quarta-feira, maio 23, 2018

Exposição de desenhos Anjos do Desespero, 14 de Maio de 2018, abertura às 21:30 no Liquidâmbar, Praça da República, 28, Coimbra

Cartaz de Ana Catarino


A exposição Anjos do desespero concebida no Porto e em Coimbra entre 2016 e 2018, contém um conjunto de desenhos que pretende mostrar-nos estes anjos como mensageiros, como diria Llansol, que fizeram a modernidade e a contemporaneidade. A sua existência reflectirá nas pessoas interpretações que só lhes cabe a elas verem. Porque é possível «ver» um desenho colectivamente. Não será possível «ver» um livro da mesma forma. As escritas que enformam os desenhos são a tentativa não de uma explicação obviamente absurda, mas uma recusa da individualização de uma única forma e o desejo de as entrecruzar. Os Anjos do desespero tal como Paul Klee os pintou, como Heiner Müller fez deles poemas, e Wim Wenders os filmou em As Asas do desejo são aqueles que, apesar de tudo, rejeitam a imortalidade porque exigem a Vida total, exaltam uma liberdade pura e tentam enlouquecer-nos, como uma saída possível, para que acabemos com o sofrimento contínuo de uma vida quotidiana sem senso. Müller avisa-nos: Eu sou o anjo do desespero, com as minhas mãos distribuo o êxtase, o adormecimento, o esquecimento, o gozo e dor dos corpos. A minha fala é o silêncio, o meu canto o grito. Na sombra das minhas asas mora o terror. A minha esperança é o último sopro. Substituindo o silêncio e o ruído destes desenhos figurativos a carvão, aguarelados e contornados a tinta-da-china, sobrelevam-se as colagens e as palavras. Porque só as colagens interagem com o impossível, com o absurdo, com o non-sense. Daí a sua importância unificadora e congruente. Produzem todas, no seu cruzamento simbólico, o vácuo. Esse grande vácuo por onde voam estes anjos desesperados, vívidos.

António Luís Catarino
Coimbra, 27 de abril de 2018

domingo, maio 20, 2018

Converter, ou a aventura dos portugueses no Tibete 7

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No século XVII, quase dois séculos depois da inicial «descoberta» das Índias por caminho marítimo, os portugueses depois de consolidado os negócios de «cabedais» entre a Ásia e a Europa, nos quais incluía ainda o Japão e a China, enveredaram pela não menos aventurosa causa da conversão dos infiéis. Coube aos Jesuítas essa missão não isenta de alguns pecados e violências como atestam alguns documentos coevos e uma epistolografia que tem sido objeto de estudo. António de Andrade deve ser particularmente estudado, até porque foge ao cânone. Nascido em Oleiros, em 1580, início da União Ibérica dos Filipes, faleceu em 1634. Entretanto, depois de estudar em Coimbra, vai para Goa, então capital do Império português do Oriente e entre 1626 e 1633 escreve quatro cartas sobre a sua procura de Cataio, região utópica que povoava as mentes conversoras de um reino longínquo que seguiria o cristianismo. Estamos a falar de um jesuíta que, com o irmão, Manuel Andrade, chegou ao Reino do Tibete primeiro que qualquer outro ocidental. Quem estudou a história dos jesuítas saberá que esta procura do Cataio, tal como o do Reino de Prestes João, não era mais do que uma quimera. Não existindo Cataio, António de Andrade empreende a viagem para o Tibete, a partir de Agra e é o primeiro a passar a cordilheira dos Himalaias, não sem agruras várias que quase o levaram à morte. Não se intimida e escreve que foi a fé que o salvou, assim como salvará todos os indígenas que encontrará à sua frente. Entrará no Reino do Tibete disfarçado de peregrino hindu. Em 1624 chega a Chaparangue, onde faz amizade e converte o rei do Guge, Tashi Drakpa De. As suas cartas transpiram um desprezo enorme pela religião budista e hindu e um ódio figadal aos muçulmanos, fonte de todas as intrigas contra os cristãos. É aqui que reside alguma diferença para com outros jesuítas. Numa das cartas, exulta pela tortura de um homem santo hindu a quem, por castigo e com a sua concordância, lhe cortam o longo cabelo e as unhas, sinal exterior da pureza. Consegue transformar, por conversão do rei e da rainha de Guge, a maior parte dos lamas dos mosteiros do Tibete em seculares e não está isento (aliás, está bem presente) nas guerras então travadas com os exércitos vizinhos e rivais e que levarão à derrota impiedosa do reino de Guge. António de Andrade é o rosto da intolerância religiosa bem soletrada nas cartas que envia ao Provincial da Companhia de Jesus em Goa. Razão pela qual, depois dele, todas as missões falharam. É o que dá. Este jesuíta morrerá nesta cidade indiana, envenenado… por um seu fiel criado.

António Luís Catarino
4 de junho de 2017

Doce Helena 6


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Maria Helena da Rocha Pereira (MHRP) era catedrática de Cultura Clássica na Faculdade de Letras em Coimbra, para além de tradutora de grandes obras diretamente do grego e do latim. Foi minha professora dessa disciplina durante dois anos. Faleceu a 10 de abril obrigando Portugal a múltiplas homenagens. Senti um profundo incómodo pelo seu desaparecimento. Maria Helena era uma professora invulgar, rara. Com uma aparência frágil, dobrada sobre si própria, embrenhada em pensamentos, passava por nós com um sorriso estampado no rosto. Foi a primeira professora catedrática da Universidade. Preparou a tese em Oxford, em 1949, ainda com a Grã-Bretanha a senhas de racionamento da guerra. O seu saber era profundíssimo e o legado que nos deixou inesquecível. A questão final e habitual em MHRP, quando nos encontrávamos com ela nos exames, era esta: «qual o legado que nos deixou a cultura grega para as nossas culturas ocidentais?». Nos finais de 70 e inícios dos 80, não éramos muito afins à dita «civilização ocidental». Mas tentávamos, na nossa arrogante e eventual sapiência de estudantes, ligarmos Aristóteles à democracia (de preferência, direta), Platão ao autoritarismo, procurávamos Nietzsche, citávamos Goethe, transpirávamos o tardio Luciano, destacávamos a fraturante Safo, entrávamos felizes pelo etéreo das pitonisas de Delfos e pelas neves do Olimpo, replicávamos as Bacantes; contudo, MHRP, nas aulas, tinha-nos avisado: «Não vão só por aí!». A cultura grega, afirmava, deixou-nos alguns momentos marcantes à nossa cultura europeia: a despedida de Heitor de Andrómaca «…pôs nos braços da esposa o filhinho; ela recebeu-o no seio perfumado, entre risos e lágrimas; condoeu-se o marido ao vê-la, acariciou-a e dirigiu-lhe (…) palavras, chamando-a pelo nome…», o pedido de resgate do cadáver de Heitor ao brutal Aquiles pelo pai, Príamo, na Ilíada «…Colocando-se perto, abraçou-se aos joelhos de Aquiles e beijou-lhe as mãos terríveis, assassinas, que lhe mataram tantos dos seus filhos…», e o gesto arrependido de Aquiles que manda alindar o corpo de Heitor. Na Odisseia, o choro de Ulisses quando ouve uma canção que lhe lembra a saudosa Ítaca e o reconhecimento e morte do seu cão quando lá chega «...Mas a Moira da morte negra se apossara de Argos, assim que vira Ulisses, ao cabo de vinte anos.» Segundo Maria Helena eram estes, também, os momentos da matriz ocidental. Ficávamos dececionados, é certo, mas hoje, passados mais de trinta anos, percebemo-la…este é o nosso cimento: ódio, amor, arrependimento, sangue, suor, lágrimas, alegria, vida e morte. A Moira que a todos espera.


António Luís Catarino
24 de maio de 2017