quarta-feira, dezembro 30, 2020
«Fósforos e Metal sobre Imitação de Ser Humano», de Filipa Leal
«Acidentes», de Hélia Correia
Não é a primeira vez que Hélia Correia me coloca na situação de espanto perante as suas palavras: aconteceu com «Adoecer» e agora com «Acidentes», embora em registos diferentes. Tenho acompanhado os seus livros desde sempre e também por causa da Grécia, bem presente neste último livro de poesia. Soube, pelo livro, que o poema dedicado a Maria Helena da Rocha Pereira, que foi minha professora de Cultura Clássica durante dois anos na FLUC, já teria sido publicado no JL. Constituiu uma surpresa comovedora incluir este longo poema num ciclo helénico, diria eu, dedicado a Safo e a Cleïs.
António Luís Catarino
30 de Dezembro de 2020.
sexta-feira, dezembro 25, 2020
Natal de poesia feito 2
Por vezes dá-me a febre da poesia. É por ondas. Por impulsos. Na verdade, a poesia também ela é impulso e perseverança. Encontrar a palavra, a ideia certa, é quase doloroso. As palavras quando juntas pelos poetas adquirem uma lógica que por vezes não encontramos cá fora, não sabemos como dizer e lá está ela sob os nosso olhar. Que entra em nós e permanece, num caminho permanente.
quarta-feira, dezembro 23, 2020
Natal de poesia feito
No Natal há demasiados ruídos, solicitações, companhias que dificultam muito a concentração que é obrigatória na leitura. Um poema. Um simples poema pode ajudar-nos a centrar a beleza inerente à palavra e à sua conjunção. Como os planetas em linha que permitem ver o brilho de uma estrela longínqua. É nisto que me refugio durante o Natal.
António Luís Catarino
23 de Dezembro de 2020.
terça-feira, dezembro 22, 2020
«A Ladra da Fruta», de Peter Handke
Já me tem acontecido na leitura de um livro, mas as primeiras palavras desta ficha de leitura vão, directas, para o trabalho de Helena Topa nesta tradução de «A Ladra da Fruta», de Peter Handke. É um trabalho excepcional e não queria (nem poderia) estar na sua pele a traduzir do alemão palavras, expressões, referências literárias inesperadas mas ganhando todo o sentido ao serem explicadas no final do livro por Helena Topa. Palavras e frases que o próprio Handke afirma, no decorrer da história, serem intraduzíveis alternando com expressões em alemão (a certa altura até faz um elogio à sua língua que, cá por mim, até corroboraria se não fossem as palavras de 23 letras!), francês e espanhol. Nada que não se esperasse de um livro da Relógio d'Água, mas este trabalho de tradução é mesmo de registar.
Quanto ao livro em si, lê-se de um fôlego. Não tendo capítulos ou espaços em branco para respirarmos, a cadência que nos transmite faz a leitura discorrer sem grandes problemas de fadiga. O facto estará, creio, no acompanhamento que queremos fazer com Alexia, mais tarde também com Valter, cuja viagem em espiral dura três dias. O motivo aparente, se é que é necessário um motivo, é uma caminhada pelas estradas, bosques, rios, na Picardia francesa em busca da mãe e de um irmão que não vê há muito. Alexia é siberiana e viaja em diversas situações quase surrealistas se não tivéssemos a certeza que a realidade ultrapassa em muito a ficção, tornando a deriva de Alexia verosímil.
Utilizei o termo «deriva» porque é mesmo o que acontece nesta viagem. Se isto não é uma deriva, então o que é a busca de Alexia? Se atentarmos em Thomas de Quincey que afirmava em «Confissões de um Opiómano inglês» que Londres era uma cidade onde existiam quadrículas desconhecidas ou mapas não registados oficialmente pela polícia, onde se errava em liberdade e perigosamente, então temos uma Alexia em deriva constante. Se quisermos até chamar a psicogeografia, teremos igualmente uma Alexia em busca permanente de uma identidade e de um lugar onde se identifique com ela própria. Por isso move-se em espiral, como nos informa Handke. Porque se encontra com lugares, pessoas e animais que lhe dizem quem é, mas que ela abandona de seguida - em espiral, para nunca se repetir o encontro, tal como a História, em Mircea Eliade. Esta nunca se repete se bem que os lugares-comuns, muitos deles assinalados pelo autor na obra, o repitam até ao enjoo. Não, a História não se repete. Toca-se em espiral, num movimento helicoidal, como as molas dos nossos automóveis.
E, se para esta obra excepcional, fosse necessário mostrar um epílogo, de tantos que tem, visto que a deriva de Alexia, tal como qualquer deriva, não tem fim, eu escolheria este discurso do pai:« «Nós, os que não temos Estado, aqui e hoje livres do Estado, inatingíveis pelo Estado. Tudo se converteu em seitas, Estados e Igrejas e...e...E nós? Fugitivos do tempo, heróis da fuga. Nós, que não temos um papel, enquanto os homens do Estado continuam, imperturbáveis, nos seus papéis. Nós, os eternos destemidos cheios de temor. Os eternos hesitantes e procrastinadores. Os que escolhemos os desvios. Os que andamos em círculos e espirais. Os-que-olhamos-por-cima-do-ombro para o vazio. Os herdeiros da culpa. Os amantes do amargo. Nós, os prestáveis, dinastia de serviçais, nobreza hereditária de obsequiosos. Nós, os rotos, marquesas e condes hereditários ''von Roto''. Nós, as figuras marginais! (Exclamação: «Viva o roto! Vivam as figuras marginais!») «Nós, os ilegais e os desesperados. Que temos, contudo, uma lei. Nós, os lutadores de causas perdidas.» (Exclamação: «Vida longa aos que lutam por causas perdidas!»).»»
Sois dados a serem prestáveis, pertencerem a uma dinastia de serviçais ou, ainda, eternos obsequiosos? Então não leiam este livro. Mas sereis agradavelmente surpreendidos se forem permanentes lutadores de causas perdidas.
António Luís Catarino.
22 de Dezembro de 2020
quinta-feira, dezembro 10, 2020
A ignorância ao serviço do nazismo
Lenine e Nós, de Boaventura de Sousa Santos
O artigo de Boaventura de Sousa Santos é este:
António Luís Catarino
7 de Dezembro de 2020
terça-feira, dezembro 01, 2020
Últimos exemplares de «Anjos do Desespero»
Últimos exemplares de «Anjos do Desespero».
Aproximamo-nos do final da promoção do livro/catálogo Anjos
do Desespero baseado na exposição homónima que teve lugar em Coimbra, no
Liquidâmbar. Referências poéticas e personagens que vos mostro juntamente com o
prazer do desenho, da colagem e da recolha. Foi uma edição de autor, com a
chancela da Artes Breves e composta por António Alves Martins. Tiragem pequena,
permito-me informar que já existem poucos livros para venda restrita e
simbólica de 12 euros. Um abraço de obrigado a quem já adquiriu o livro, todos
autografados. Um agradecimento aos espaços que aceitaram expô-lo:
Letra Livre em Lisboa, Utopia no Porto, Miguel de Carvalho na Figueira da Foz e
Liquidâmbar em Coimbra. Uma grande cumplicidade aos que leram os textos na exposição e presentes no livro. E um obrigado igualmente aos que o vão ainda adquirir, neste fim
de ciclo a que me propus. O contacto aqui vai, e a tempo, por causa do tempo: [email protected]
António Luís Catarino
1 de Dezembro de 2020
domingo, novembro 29, 2020
«Do Desaparecimento dos Rituais», de Byung-Chul Han
«Na busca de novos estímulos, excitações e experiências, hoje perdemos a capacidade de repetição. É intrínseco aos dispositivos neoliberais, tais como a autenticidade, a inovação ou a criatividade, coagirem-nos permanente ao novo. Mas, no final de contas, a única coisa que geram são variações do mesmo. O antigo, o passado, o que permite uma repetição satisfatória, é eliminado, porque se opõe à lógica de aumento de produção. No entanto, as repetições dão estabilidade à vida. A sua característica é a sua capacidade para nos instalarmos num lugar».
Para o pensador coreano a autenticidade é inimiga da comunidade porque narcisista. A partir daqui inicia a crítica à produção neoliberal, visto que a pessoa passa a ser um produto, uma mercadoria, tal como o tempo de trabalho e de descanso que faz parte do ritmo produtivo. A teoria de alienação de Marx? Não. Byung-Chul Han passa não só para a crítica de Marx, como para o seu antecessor Hegel, enquanto ao mesmo tempo abre uma nesga de crítica ao capitalismo como fenómeno contrário a um outro fenómeno: o da religião (a tal relegere) porque este sistema económico impede a ligação comunitária, entrando e promovendo um inferno do igual porque tudo (as mercadorias como objectos e como pessoas, dizemos nós) pode ser comparável em dados. É a ditadura dática.
Mas porque Byung-Chul Han critica, então Hegel? Porque na sua dialéctica opta pelo servo e não pelo senhor. Decide-se não pelo ócio do senhor, mas pelo trabalho do servo. A sobrevivência contra a vida! Ou seja, Hegel seria incapaz de entender o ponto de vista do jogador, do ócio, do amante da vida. E nessa esteira de pensamento, leva-nos à negação de Marx, cuja filosofia e teoria se centra no trabalho, louvando, um tanto puerilmente, o seu genro Paul Lafargue que escreveu o famoso «O Direito à Preguiça». Sabemos que Marx centrou toda a sua filosofia no trabalho, para o desconstruir como trabalho assalariado e alienante no capitalismo, decompondo o valor da mercadoria e explicando o valor do trabalho e principalmente da força de trabalho. Não irei ao ponto de sugerir que na Coreia não haja uma tradução de «O Capital», embora o coreano viva na Alemanha e saiba correntemente o alemão, o que lhe permitiria ir à fonte...
A dúvida adensa-se quando se começa a entrar por caminhos estranhos na leitura de «Do Desaparecimento dos Rituais»: o Japão como futuro dessacralizado do capitalismo, pela imposição de signos e território ritualizado do capitalismo? A mercadoria no Japão perde o seu real valor pela importância do invólucro, muitas vezes mais rentável que a mercadoria em si? E a superação da guerra inumana de drones ou pela internet, dando primazia ao jogo da guerra de olhos nos olhos, no duelo entre pares? Outra vez os samurais de Mishima?
Isto tudo poderia ser uma leitura interessante se não estivéssemos atentos às «pequenas» pesquisas de Byung-Chul Han. Não é só a tentativa (falhada quanto a nós) de superação de Hegel e Marx - e logo, neste, pelo valor das mercadorias! - nem também pelos laivos situacionistas e libertários de quando fala do ócio/trabalho ou da crítica ao digital e ao poder dático, mas já nos causa perplexidade a utilização e referência do nazi Carl Schmitt para a superação da guerra digital online, ou pela superação do Iluminismo através da assunção de sociedades ritualizadas pelo sentido comunitário dando o exemplo do Japão.
Como gostaria de estar errado sobre ele. Sim, o Iluminismo morreu, mas não creio que seja pela perspectiva do devir filosófico de Byung-Chul Han. Fico-me cá pelo Adorno e basta!
António Luís Catarino
29 de Novembro de 2020
«Imagine: Reflections on Peace»
«Comércio com História», Ministério da Economia
Este livrinho editado pelo Ministério da Economia e recebido por mão amiga não é pretensioso como é comum em livros oficiais de divulgação de projectos. Aqui, trata-se tão-só de dar conta aos cidadãos dos «critérios de classificação da Lei 42/2017 que estabelece o regime de reconhecimento e protecção de estabelecimentos e entidades de interesse histórico e cultural ou social local». Este «Comércio com História» é, para além de um lado pedagógico e de levantamento histórico inquestionável, um livro que tem a particularidade de conhecermos os melhores urban sketchers de Lisboa e Porto. Com qualidade muito variável de desenhos e textos, a verdade é que o folheamos com prazer nas variadíssimas lojas comerciais que nos acompanham nas duas cidades mais populosas do país. Assim se faz a história de um modo simples, sem grandes gastos e com grande eficácia.
Como urban skecther que pretendo ser, e só de vez em quando, não quero deixar de realçar o nome de Paulo J. Mendes que, no Porto, nos deu os melhores desenhos do livro principalmente da Pérola do Bolhão (na imagem), mas também da Casa Crocodilo, do Guarany, do Majestic ou da Livraria Lello. De Lisboa, a quantidade de desenhos de estilos diferentes dispersam-nos e alguns pecam mesmo por pueris, mas gostamos e se contribuir para que estas lojas não acabem para darem lugar a «guest houses» ou motéis manhosos, tanto melhor.
sábado, novembro 21, 2020
«Contos Arrepiantes da História de Portugal» de António F. Nabais e Rui Correia. Ilustrações de Hélio Falcão
sexta-feira, novembro 20, 2020
Colaboracionismo
Tenho uma ligação distante para com os escritos de Rui Tavares. No entanto, leio-o. Hoje de manhã, ao ler o Público e a sua crónica, lembrei-me do peso das palavras, das memórias e como elas se nos infiltram na pele. Rui Tavares usou a palavra «colaboracionista» como um objecto cortante. E tudo aponta para eu começar a usá-la para aqueles tipos de direita que acordaram com o Ch3g4. Rui Rio é um colaboracionista. Os militantes do PSD e CDS que, como carneiros, não se rebelarem contra as direcções são colaboracionistas e com este adjectivo arrastam atrás de si toda a ignomínia, a indignidade e o opróbrio de se verem aliados aos neofascistas e que a História registou como sendo das mais baixas acções políticas. São colaboracionistas. Vou usar muito esta palavra no futuro.
António Luís Catarino
20 de Novembro de 2020
domingo, novembro 15, 2020
«A Mulher como campo de batalha», de Matéi Visniec. Encenação de Sofia Lobo. Escola da Noite
Encenação de Sofia Lobo. Escola da Noite
É evidente que saímos incomodados. Mas quem quer teatros
levezinhos vá a outro lado. Este espectáculo encenado por Sofia Lobo constitui
a 70ª sessão de teatro da Escola da Noite o que não deixa de ser significativo
numa cidade cuja maioria dos habitantes são culturalmente neutros (o que é pior
do que serem incultos). Mas depois dos parabéns vem o tal murro no estômago
apontado com mestria pela encenadora e por uma dupla de excelentes actrizes que
deixo aqui os seus nomes: Ana Teresa Santos (Dorra) e Paula Garcia (Kate).
Os figurinos, adereços e imagem gráfica é de Ana Rosa Assunção
que teve um trabalho importantíssimo na atmosfera fria de um hospital e ao
mesmo tempo violentamente intimista com que seguimos a narrativa.
Sofia Lobo e Ana Teresa Santos traduziram a obra do romeno
Matéi Visniec que não conhecia. Aliás, creio que li uma obra dele, depois de
olhar para a folha de sala deste espectáculo. Se não me engano veio ter-me às
mãos, há muito, «Cuidado com as velhinhas carentes e solitárias» de 2003, que
um amigo ligado ao teatro tentou encenar em Leiria. Não creio que alguma vez
tivesse sido apresentado.
E chegamos ao texto em si. Nascido em 1956, um rapaz da
minha idade portanto, cursou Filosofia na Roménia de Ceausescu o que equivale a
estudar a influência dos pinguins nos desertos do Saara! É evidente que se
exilou porque assim teve de ser, não fosse o grande Conductor ver nas múltiplas
personagens do autor, uma imagem dele próprio. Cremos todos que o seu objetivo foi
o de seguir o seu rumo, já que se tornou uma figura incontornável da
dramaturgia mundial. A Escola da Noite e a Sofia Lobo escolheram bem.
Fotografia de Eduardo Pinto
Cito de cor: «A Europa é um monte de pedras», «Tem tantas
que um dia se afundará com o seu peso», «A Irlanda? Um monte de pedras!», «Os
Estados Unidos? Pedras, pelo que me tornei pedreiro, quando emigrei para lá».
Estas frases de uma personagem que não está fisicamente na peça são ditas pelo
avô, de ascendência irlandesa, de Kate uma psicóloga que acompanha os que
levantam centenas e centenas (milhares?) de valas comuns nos Balcãs. E quem
cuidará depois dela? Compreendi que aquelas pedras são uma metáfora dos seres
humanos. E então poderemos concluir que as pedras não existem somente naquela
península. Aliás, o abjecto, o horror e a violência demente que são as
violações em massa nos Balcãs, não residem só nos Balcãs. A mulher torna-se
então um campo aberto de batalha. Porque através dela se pode abater
mentalmente o soldado da frente. É uma guerra de rectaguarda. Como todas,
cobarde e terrível pelo que tem de sórdido. Mas da batalha dos múltiplos
nacionalismos! E, por favor, não me venham com o duplo adjectivo do
«nacionalismo exacerbado». Digam só «nacionalismo». Basta para desencadear
horrores e atitudes demenciais, inumanas, quase que diria, simiescas, se não estivéssemos
a insultar os nossos primos. O diálogo entre dois «homens» balcânicos que são imitados
por Ana Teresa e Paula podemos ouvi-los em qualquer café de Lisboa, Coimbra ou
Vila Nova de Tázem: os «mas» eternos com que se generaliza um povo constitui o
nacionalismo seja ele «exacerbado», «radical» ou «soft». Isso não existe.
Existe o nacionalismo, tout court, antecâmara do fascismo: «Os judeus? Tenho
amigos judeus. Até são cultos…mas, puderam-se a jeito na Alemanha!», «Os
ciganos? Cantam e dançam bem…mas, por vezes, são dados ao roubo!», «Romenos?
Gente boa, alegre, mas preguiçosos e têm a mania que não são eslavos!». E
continua…digam-me se já não ouviram isto vezes demais.
É Matéi Visniec que diz: «Nas guerras interétnicas, o sexo
da mulher torna-se um campo de batalha. Vimo-lo na Europa, no final do século
XX. O pénis do novo guerreiro mergulha no grito das mulheres violadas como
outrora a espada do cavaleiro no sangue do seu adversário.»
É Kate, americana de origem irlandesa que afirma: «A Europa
já se afundou com o peso das pedras!» Saímos daquela peça com a sensação nítida
do que já suspeitávamos: como poderá a Europa redimir-se destes crimes, destas
chagas deixadas nos Balcãs, que retomou a lógica horrível das primeiras e
segundas guerras mundiais? Não pode. Não podemos. Isto terá de viver connosco e
extirpar essa memória colectiva vem até aos confins da nossa mente, mesmo daqueles
que nada tiveram a ver com a ignomínia das guerras. Ou pensam estar muito longe…
E a gravidez de Dorra, fruto de uma violação colectiva,
mostra-nos como o tal murro no estômago de que falava atrás, pode originar um
encadeamento de memórias do espectador atento: que culpa? Quem são os culpados?
Como Hanna Arendt nos mostrou no julgamento de Eichmann, os soldados estavam
somente a cumprir ordens, eram administrativa e sexualmente competentes, para
além de saberem matar muito. Os mandantes defendiam a entidade nação e alguns,
como lembra Kate, eram até poetas firmados, como o psiquiatra Karadzic.
«Chorar por quem?» questiona Sofia Lobo. «Entre vinte a
cinquenta mil mulheres foram violadas nesta guerra (…). Muitas foram obrigadas
a parir crianças que não desejaram, para aumentarem o peso demográfico da etnia
dos seus agressores, porque, sabemo-lo, na maior parte das sociedades e das
culturas quem conta é o pai. Muitas das sobreviventes rejeitaram os filhos que
tiveram, abandonaram-nos, deram-nos para adoção. As que os mantiveram
inventaram-lhes pais, porque a intimidade violada gera vergonha, medo,
silêncio. Só passados cerca de vinte e cinco anos, alguns destes jovens têm a coragem
de enfrentar a sua estranha identidade para, ao darem a cara, serem a prova do
que aconteceu em território europeu há pouco mais de duas décadas.» …ou o mar
de pedras que cobrem as memórias das guerras europeias, os genocídios e os
massacres. Pedras, daquelas que não deixam crescer as sementes e, outras, as
pedras tumulares. Pedras humanas que são vítimas e perpetradores. Pedras.
Mas há, no mesmo texto da encenadora, uma afirmação que não
posso deixar de divulgar aqui nesta nota de leitura. É quando Sofia Lobo lembra
a nota esperançosa com que Visniec termina a peça, porque segundo o dramaturgo
há que acreditar na humanidade e em que as pessoas poderão ser felizes. «Eu
tenho mais dúvidas», diz Sofia. Eu, pessoalmente, também partilho esta ideia.
Entre fascismos assumidos e em evolução, entre refugiados tratados como inumanos,
migrantes perseguidos e confinados, campos de concentração modernos em que
separam pais de filhos, muros nacionalistas, metáfora exacta da loucura
confinada e aceite pelos confinados, o racismo, a xenofobia, o assassínio
selectivo e diário de mulheres, a misoginia, ou o estado de guerra permanente que
se multiplica, como cogumelos, pelo mundo, há pouco espaço para termos uma
ínfima esperança na humanidade. Esta desesperança tem vindo a estacionar nos
nossos pensamentos à espera de um erro, de um simples erro que nos leve a
deixar a luta contínua em que a vida se tornou.
Esta peça excelente e incómoda que nos atordoa, portanto
eficaz nos seus propósitos, não pode ser ignorada sob pena de perecermos todos
sob o manto do fascismo.
António Luís Catarino
Coimbra, 15 de Novembro de 2020
sábado, novembro 07, 2020
«Anjos do Desespero», livro-catálogo de António Luís Catarino
A exposição Anjos do Desespero, concebida no Porto e em Coimbra entre 2016 e 2018, contém um conjunto de desenhos que pretende mostrar-nos estes anjos enquanto mensageiros, como diria Llansol, que fizeram a modernidade e a contemporaneidade. A sua existência reflectirá nas pessoas interpretações que só lhes cabe a elas verem. Porque é possível «ver» um desenho colectivamente. Não será possível «ver» um livro da mesma forma. As escritas que enformam os desenhos são a tentativa não de uma explicação obviamente absurda, mas de uma recusa da individualização de uma única forma e o desejo de as entrecruzar. Daí, o processo das leituras que acompanham os desenhos/colagens, realizadas por amigos, que tiveram lugar na apresentação pública da exposição no Liquidâmbar (Coimbra), em 14 de Maio de 2018. Os Anjos do Desespero, tal como Paul Klee os pintou, como Heiner Müller fez deles poemas, e Wim Wenders os filmou em As Asas do Desejo, são aqueles que, apesar de tudo, rejeitam a imortalidade porque exigem a Vida total, exaltam uma liberdade pura e tentam enlouquecer-nos, como uma saída possível, para que acabemos com o sofrimento contínuo de uma vida quotidiana sem senso. Müller avisa-nos: Eu sou o anjo do desespero, com as minhas mãos distribuo o êxtase, o adormecimento, o esquecimento, o gozo e dor dos corpos. A minha fala é o silêncio, o meu canto o grito. Na sombra das minhas asas mora o terror. A minha esperança é o último sopro. Substituindo o silêncio e o ruído destes desenhos figurativos a carvão, aguarelados e contornados a tinta-da-china, sobrelevam-se as colagens e as palavras. Porque só as colagens interagem com o impossível, com o absurdo, com o non-sense. Daí a sua importância unificadora e congruente. Produzem todas, no seu cruzamento simbólico, o vácuo. Esse grande vácuo por onde voam estes anjos desesperados, vívidos.
António
Luís Catarino
Coimbra 5de Novembro de 2020
O preço da edição de autor é de 12 euros.
NIB: PT50003502390000097490077
não te esquecendo de avisar para [email protected] ou pelo Messenger quando fizeres a transferência e enviares-me por mail o teu endereço.
sexta-feira, outubro 30, 2020
«Ensaio sobre o dia conseguido», de Peter Handke
Eu leio Peter Handke. E em cada leitura que faço, vejo o
«Asas do Desejo» de Wenders, filme do qual fez o guião. Os espaçamentos são os
mesmos, os diálogos e a cadência levam-nos a essa sensação estranha. O ensaio a
que o autor deu nome é interessante. Creio que o fez como tentativa experimental
de projectar o dia, preocupação muito presente em poetas e filósofos. Começa,
na página 10, a questionar-nos se já vivemos um via «conseguido», tendo a
certeza que à partida terá imensas respostas positivas de quem pensa que esse
dia pode ser apenas «belo», «feliz», «despreocupado», «superado» ou o alívio de
um «ultrapassado». Mais um! É evidente que quem se mete por estes atalhos
saberá que vai dar a um caminho seguramente teológico ou, no mínimo, intangível.
E não é sem surpresa que esbarramos na epistolografia de Paulo quando este
escreve que um dia conseguido será o «erguer o olhar» na procura do «apreender ascendental»
pelo que, inferimos, um dia conseguido para o cristianismo será o olhar de
baixo para cima. É lá que se encontra o dia.
Segue-se o grego «kairos», expressão terrivelmente difícil
de explicar em português e que poderíamos traduzir por aquele «instante» ou
átomo de tempo conseguidos, constantes que se tornam em divindades mais fortes
que os deuses, segundo Handke este é o «deus do agora». Depois de uma passagem
por Cristo em que o tempo se transforma em eternidade, desce o autor para o
estafado «plantar uma árvore, fazer um filho, escrever um livro», que pode,
aliás e à boa maneira das sociedades ocidentais contemporâneas, fazer-se tudo
isso tudo num só dia, sem qualquer problema de abandonar o ritmo de trabalho
para o fazer, digo agora eu! Se isso é um «dia (a vida?) conseguido (a)» é
muito discutível. E ainda mais problemático é vermos pessoas com 30 anos a proclamar
«j’ai réussi ma vie» que é o mesmo que transpor para os mercados as «obras
completas» de poetas com 40 anos de idade ou menos ainda.
O latino «carpe diem», tirando o facto de ser, talvez, o que
se aproxime mais do «dia conseguido» de Peter Handke, não deixa de ser
recuperável para uma frase de uma t’shirt ou de um pin, ou ainda de uma frase
que acompanha um perfil de um site de namoro rápido! No fundo, o que vemos na
procura dessa etapa é uma luta constante com o «anjo do dia», não fosse ele o
verdadeiro autor de «Asas do Desejo», e que o aproxima cada vez mais ao
espiritual, ao que não é mensurável materialmente. O exemplo que dá é interessante:
se no comboio, eu destino a viagem também à leitura de um livro, planificando para
atingir um dia verdadeiramente conseguido e acabo a viagem a meio da leitura esquecendo-me
do livro no comboio, isso poderá colocar em causa a meta do «dia conseguido»?
Para o autor, não. Antes pelo contrário. Poder-se-á encontrar outras leituras
na ausência de resposta para «aquele» livro em particular. Aqui estaremos em
luta com o anjo do dia. Ou caminhando por outros caminhos não menos plenos de
interesse.
Handke no final do ensaio de 51 páginas, acaba por nos
informar que não teve nunca um dia conseguido. Porque se perdem linhas que
desenhamos para esse dia. Mas ao ser assim, teremos um dia conseguido pela
negação de o procurar. Finaliza ele: «- E agora perdes finalmente a linha por
completo. Regressa ao livro, à escrita, à leitura. Aos textos primitivos em que
é, por exemplo, dito: ‘’Deixa ressoar a palavra, sê-lhe fiel – seja o momento
favorável ou desfavorável.’’ Já viveste um dia conseguido? Através do qual o
instante conseguido, a vida conseguida, talvez até a eternidade conseguida se
reuniriam de uma vez por todas?»
António Luís Catarino
Coimbra, 30 de Outubro de 2020
terça-feira, outubro 20, 2020
Artaud: «O Teatro e a Peste», um excerto por causa do tempo