quarta-feira, dezembro 30, 2020

«Fósforos e Metal sobre Imitação de Ser Humano», de Filipa Leal

 

Foto: Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa (FLUP)

Literalmente: uma folha deste livro fez-me um corte no dedo. Não chegarei ao ponto de o mostrar, mas será uma boa metáfora da última poesia de Filipa Leal. De livro para livro a poeta vai avisando da explosão iminente, da ira contida. Desde, pelo menos (e sublinho, com dúvida), do «Vem à Quinta-feira» que se nota uma contenção, uma contenda íntima que a sua escrita não esconde. Portanto, a sua poesia torna-se perigosa no sentido em que nos podemos ferir seriamente. Não será esse o desígnio último da poesia? Encontrarmo-nos violentamente com as sensações? 

Desde 2015, ano fatídico deste país, que assistiu impávido e impotente aos seus filhos emigrarem para sobreviver, que Filipa Leal se rebelou com o já conhecidíssimo «Europa» e a sua continuidade com «Europa, segunda carta», em 2019, até este tão excelente como indefinível «Fósforos e Metal sobre Imitação de ser Humano». Filipa senta a Europa no seu colo e diz-lhe, tão baixinho que nos esforçamos para ouvir, «Europa, senta-te aqui. Vamos conversar, vamos fazer terapia de casal.(...)» e adivinhamos o seu esgar de desprezo para uma entidade que tem tanto de falsa como de fraca, mas que ainda assim lhe levou amigos e talvez dos nossos melhores filhos. Europa que, na mitologia grega, era raptada e seduzida por Zeus, é hoje completamente livre na sua arrogância? Somos nós?

A Filipa Leal que nos diz que «dificilmente viverei na absurda arrumação dos quartos, dos livros dos deuses. A cabeça é como a casa que se limpa quando a memória instala o caos. (...)» é a que igualmente nos atira à cara «Eu hei-de ser galega, portugueses, meus irmãos,/e por elas hei-de me calar, calar-me definitivamente,/salvando-me tanto mais assim, e às cabras, lendo bem,/lendo cada vez melhor o manual de intervenção cirúrgica/fundamental para salvar cabras de pessoas como eu». O recorrer a um silêncio tornado ruidoso. Demasiado ruidoso, este calar auto infligido? Não pressentem, pois, a explosão?

A poeta que aqui se apresenta quis esculpir o poema em forma de epílogo: «No princípio, até correu bem. Trabalhava contente no meu atelier imaginário. Depois, houve um problema. O problema eram as mãos perfeitamente limpas sobre o teclado. Não é o que se espera de um escultor».

E a contenção, o refreamento que antecede a ferida nas nossas mãos (possivelmente nada limpas): «Uma pessoa promete calar e até cala/mas depois há a segunda e a terceira tinta./Somos cada vez mais grisalhos com cabelo cada vez/mais escuro. Escuro como tudo».

Não pressentem pois a explosão?
António Luís Catarino
30 de Dezembro de 2020


«Acidentes», de Hélia Correia

Foto Jornal «Sol»
                                                                    Foto: Jornal «Sol»

Li o desencanto e o desânimo de Hélia Correia em «Acidentes» acompanhando-a no que pude: sublinhando o escorraçar das palavras, obra de homens que as submetem ao risível. «Deixai, deixai cair uma palavra,/e outra, e outra,/os ossos do banquete,/para que me roje e as apanhe com a boca,/(...)» e, em «Distracção», o desbaste contínuo e assassino da Natureza em consonância com a ideia «(...) dessa coisa a que chamam utopia/porque não tem lugar na natureza,/e que, por falta de raiz, não dura/muito mais que um insecto luminoso.(...)»; e Hélia Correia volta novamente à palavra para nos avisar que a poesia tem longo trato (viciante) com as metáforas, tornando os lobos na imagem-lugar-comum do mal. Mas «(...) Eles matarão/somente porque existe um pensamento,/como um tumor,/ naquilo que os constitui. (...)»; a desconfiança na ciência cria uma atitude poética de fusão para com ela, visto que «passado o espanto fundador» tudo é possível porque os Mestres, a humanidade, domesticou tudo, desenhou tudo nos mapas, trouxe tudo para casa e desenhou igualmente o extermínio. Como se desvendou tudo haverá então espaço para a poesia? «Vindo o momento, tudo aquilo que separou/ciência e poesia deixará/de existir sobre a terra.» O mistério da respiração, pela mão de Hélia Correia, é desde sempre um mistério. Os pulmões que pulsam a vida, a transformação do ar no corpo, não é explicável pelo movimento das células e do sangue. Só pela poesia se consegue sentir esse pulsar, essa transformação vital.

Não é a primeira vez que Hélia Correia me coloca na situação de espanto perante as suas palavras: aconteceu com «Adoecer» e agora com «Acidentes», embora em registos diferentes. Tenho acompanhado os seus livros desde sempre e também por causa da Grécia, bem presente neste último livro de poesia. Soube, pelo livro, que o poema dedicado a Maria Helena da Rocha Pereira, que foi minha professora de Cultura Clássica durante dois anos na FLUC, já teria sido publicado no JL. Constituiu uma surpresa comovedora incluir este longo poema num ciclo helénico, diria eu, dedicado a Safo e a Cleïs. 

António Luís Catarino

30 de Dezembro de 2020.

sexta-feira, dezembro 25, 2020

Natal de poesia feito 2

Por vezes dá-me a febre da poesia. É por ondas. Por impulsos. Na verdade, a poesia também ela é impulso e perseverança. Encontrar a palavra, a ideia certa, é quase doloroso. As palavras quando juntas pelos poetas adquirem uma lógica que por vezes não encontramos cá fora, não sabemos como dizer e lá está ela sob os nosso olhar. Que entra em nós e permanece, num caminho permanente.

quarta-feira, dezembro 23, 2020

Natal de poesia feito

No Natal há demasiados ruídos, solicitações, companhias que dificultam muito a concentração que é obrigatória na leitura. Um poema. Um simples poema pode ajudar-nos a centrar a beleza inerente à palavra e à sua conjunção. Como os planetas em linha que permitem ver o brilho de uma estrela longínqua. É nisto que me refugio durante o Natal. 

António Luís Catarino

23 de Dezembro de 2020.

terça-feira, dezembro 22, 2020

«A Ladra da Fruta», de Peter Handke

Relógio D'Água, 2020, Tradução de Helena Topa

Já me tem acontecido na leitura de um livro, mas as primeiras palavras desta ficha de leitura vão, directas, para o trabalho de Helena Topa nesta tradução de «A Ladra da Fruta», de Peter Handke. É um trabalho excepcional e não queria (nem poderia) estar na sua pele a traduzir do alemão palavras, expressões, referências literárias inesperadas mas ganhando todo o sentido ao serem explicadas no final do livro por Helena Topa. Palavras e frases que o próprio Handke afirma, no decorrer da história, serem intraduzíveis alternando com expressões em alemão (a certa altura até faz um elogio à sua língua que, cá por mim, até corroboraria se não fossem as palavras de 23 letras!), francês e espanhol. Nada que não se esperasse de um livro da Relógio d'Água, mas este trabalho de tradução é mesmo de registar.

Quanto ao livro em si, lê-se de um fôlego. Não tendo capítulos ou espaços em branco para respirarmos, a cadência que nos transmite faz a leitura discorrer sem grandes problemas de fadiga. O facto estará, creio, no acompanhamento que queremos fazer com Alexia, mais tarde também com Valter, cuja viagem em espiral dura três dias. O motivo aparente, se é que é necessário um motivo, é uma caminhada pelas estradas, bosques, rios, na Picardia francesa em busca da mãe e de um irmão que não vê há muito. Alexia é siberiana e viaja em diversas situações quase surrealistas se não tivéssemos a certeza que a realidade ultrapassa em muito a ficção, tornando a deriva de Alexia verosímil. 

Utilizei o termo «deriva» porque é mesmo o que acontece nesta viagem. Se isto não é uma deriva, então o que é a busca de Alexia? Se atentarmos em Thomas de Quincey que afirmava em «Confissões de um Opiómano inglês» que Londres era uma cidade onde existiam quadrículas desconhecidas ou mapas não registados oficialmente pela polícia, onde se errava em liberdade e perigosamente, então temos uma Alexia em deriva constante. Se quisermos até chamar a psicogeografia, teremos igualmente uma Alexia em busca permanente de uma identidade e de um lugar onde se identifique com ela própria. Por isso move-se em espiral, como nos informa Handke. Porque se encontra com lugares, pessoas e animais que lhe dizem quem é, mas que ela abandona de seguida - em espiral, para nunca se repetir o encontro, tal como a História, em Mircea Eliade. Esta nunca se repete se bem que os lugares-comuns, muitos deles assinalados pelo autor na obra, o repitam até ao enjoo. Não, a História não se repete. Toca-se em espiral, num movimento helicoidal, como as molas dos nossos automóveis. 

E, se para esta obra excepcional, fosse necessário mostrar um epílogo, de tantos que tem, visto que a deriva de Alexia, tal como qualquer deriva, não tem fim, eu escolheria este discurso do pai:« «Nós, os que não temos Estado, aqui e hoje livres do Estado, inatingíveis pelo Estado. Tudo se converteu em seitas, Estados e Igrejas e...e...E nós? Fugitivos do tempo, heróis da fuga. Nós, que não temos um papel, enquanto os homens do Estado continuam, imperturbáveis, nos seus papéis. Nós, os eternos destemidos cheios de temor. Os eternos hesitantes e procrastinadores. Os que escolhemos os desvios. Os que andamos em círculos e espirais. Os-que-olhamos-por-cima-do-ombro para o vazio. Os herdeiros da culpa. Os amantes do amargo. Nós, os prestáveis, dinastia de serviçais, nobreza hereditária de obsequiosos. Nós, os rotos, marquesas e condes hereditários ''von Roto''. Nós, as figuras marginais! (Exclamação: «Viva o roto! Vivam as figuras marginais!») «Nós, os ilegais e os desesperados. Que temos, contudo, uma lei. Nós, os lutadores de causas perdidas.» (Exclamação: «Vida longa aos que lutam por causas perdidas!»).»»

Sois dados a serem prestáveis, pertencerem a uma dinastia de serviçais ou, ainda, eternos obsequiosos? Então não leiam este livro. Mas sereis agradavelmente surpreendidos se forem permanentes lutadores de causas perdidas.

António Luís Catarino. 

22 de Dezembro de 2020

quinta-feira, dezembro 10, 2020

A ignorância ao serviço do nazismo



Eu sei que o texto é longo, mas por vezes é necessário desconstruir o negócio em torno de Auschwitz. Porque não é só o negócio. É também a ideologia que lhe está subjacente. O horror pode ser banalizado por um idiota útil do nazismo. É o caso, não único, de José Rodrigues dos Santos. Percam cinco minutos a ler esta denúncia. Talvez seja importante.

Começo por agradecer o alerta à Irene Pimentel – com quem continuo a aprender - e junto-me ao seu protesto.
A verdade é que perdi a conta aos livros que li, desde os já longínquos tempos da faculdade, sobre a perseguição aos judeus na Europa durante o séc. XX. Entre eles, apenas um romance – As Benevolentes, com que Jonathan Littell ganhou o Goncourt e o Grande Prémio de Romance da Academia Francesa. Esta minha aversão pela ficção em torno de uma matéria tão sensível raia o paradoxo, já que foi o género que escolhi para falar do assunto nos três livros que escrevi. A explicação é simples: sempre receei a falta de rigor, mesmo tendo sido injusto com alguns ficcionistas que sabiam o que diziam. Até os livros académicos foram escolhidos a dedo, uma obsessão que se afirmava cada vez que conversava com algum sobrevivente. Quando me falavam da sua vida no campo, contavam que, ao acordarem – às 4h30, no verão; uma hora mais tarde, no inverno –, deparavam muitas vezes com mortos e quase mortos prostrados nos beliches, pois nem todos resistiam às noites geladas de Auschwitz em barracões com lareiras que nunca eram acesas. Se fossem a tempo, ainda se aproximavam do companheiro que agonizava, ajoelhavam-se e davam-lhe a mão para que não morresse só. Sobrassem forças para dizer alguma coisa, o moribundo despedia-se da vida com um pedido: as últimas palavras reservadas para implorar a sobrevivência de quem lhe segurava a mão. Para quê? Para que contasse o que se passava ali. Ninguém suportava morrer, permitindo que a mentira lhe sobrevivesse.
Eu disse pedido? Era mais do que isso: era uma sentença de testemunho. Então, e só então, soube o que me faltava para escrever sobre Auschwitz, Jedwabne ou qualquer aldeia toscana devassada pelos nazis. Alguém imagina que valor dá à Verdade quem ouve uma história destas?
E é também por isso que vos falo do Rodrigues dos Santos. Não dos livros – que não li -, mas da entrevista recentemente dada à RTP.
Cito-o:
«A minha ideia era transportar o leitor de Portugal, em 2020, para Auschwitz, em 1944. De tal maneira que as pessoas estão a ler o romance e a certa altura já não estão aqui, estão lá, naquele tempo. Estão a sentir os cheiros, as cores, a visão, as emoções, como se estivessem lá.»
Uma proeza para qualquer autor, mais ainda nunca lá tendo estado. Censuro-o por isso? Essa agora! Mas estranho como suportou não fazer essa visita.
Já eu não sosseguei enquanto não fiz a viagem. E mesmo tendo lá ido quatro vezes, de ter passado dias a fio a trabalhar nos antigos campos, de atravessar sem pressas a mata de bétulas de Birkenau, ou de caminhar, por vezes à noite e quase sempre sozinho, entre os barracões do Stammlager, nunca concebi os cheiros ou as emoções de quem lá sobreviveu ou fez tudo por isso. Muito menos tentei descrevê-los. Mas cada um faz o que pode e, sobre isso, nada a dizer.
Igualmente não censuro JRS por dizer que nenhum autor português escreveu sobre o assunto, muito menos que se esqueça das perguntas que me fez quando me entrevistou num Telejornal em outubro de 2017 - pelo que vejo agora, apenas quatro dias antes da epifania que o levou a escrever os dois romances sobre Auschwitz. Também não o critico pelas gafes – logo eu, que me espalho tantas vezes-, mesmo quando nos diz:
«Os nazis tinham 50 campos de concentração, que é uma coisa gigantesca, e os comunistas, na Rússia, tinham 500! Eram dez vezes mais.”
Classificar Auschwitz como um campo de concentração é uma imprecisão muito mais comum do que afirmar que os nazis tinham 50 campos. Infelizmente o número foi superior, dolorosamente superior: mais de 44.000, somados os campos de concentração e guetos, campos de trabalho, de trânsito, de extermínio, etc.
De regresso à entrevista, ouvimo-lo dizer o seguinte:
«A certa altura, há alguém que diz: - Eh, pá, estão nos guetos, estão a morrer de fome, não podemos alimentá-los. Se é para morrer, mais vale morrer de uma forma mais humana. E porque não com gás?»
Não sei até que ponto JRS está a par do debate académico sobre as origens do genocídio nazi, nem se conhece os conceitos de Funcionalismo e Intencionalismo que têm dividido os historiadores nas últimas décadas. De uma coisa tenho a certeza: não vai encontrar nenhum académico respeitado que alegue razões humanitárias para justificar os gaseamentos. A não ser, claro, que essas razões recaiam sobre os próprios alemães, membros dos einzatsgruppen que fuzilaram multidões de judeus durante a invasão da União Soviética e que apresentaram sinais compreensíveis de fadiga e distúrbio psicológico, após dispararem a eito sobre milhares de mulheres e crianças indefesas. Andava eu convencido de que os primeiros camiões de gás tinham surgido para agilizar as mortes e torná-las mais “limpas”; oiço agora que foi por piedade pelas vítimas.
Aberrante? Há mais e há pior. Atente-se:
«Nós vemos no livro que há ali uma máquina que está montada e que é quase como quem vai para o trabalho. Aquilo é um trabalho, portanto, eles vão lá fazer um trabalho. (…) Chegou ao ponto de terem um bordel no campo para os prisioneiros (…) tinham uma piscina para os prisioneiros, (…) tinham uma escola para as crianças judias no Familienlager, em Birkenau. Por outro lado, o ser humano tem uma enorme capacidade de se adaptar às situações.»
Adaptar a quê? A Auschwitz? Terá JRS lido Primo Levi? No lager, a única adaptação possível é a abreviatura da morte, os Muselmänner.
Não. Eles não vão lá fazer um trabalho, vão lá para morrer. Por cada transporte que chegava a Birkenau, a maior parte era imediatamente conduzida para as câmaras de gás. Os que ficavam trabalhavam como escravos até morrerem também. Não iam para a piscina e mesmo os bordéis criados nalguns campos para “premiar” os mais produtivos não passavam de um embuste, um lugar de humilhação para os prisioneiros, ou mais um exemplo do cinismo e crueldade dos nazis. Oiçam-se as vítimas, pela voz de uma de muitas - Jozef Szajna: «Os bordéis eram apenas mais uma forma de os SS atormentarem os prisioneiros. Todos os que pensam que o bloco 24 era uma espécie de prenda para os prisioneiros, não fazem a mínima ideia do que foi Auschwitz.»
O exemplo descontextualizado da escola do Familienlager, a extensão propagandística do campo/gueto de Theresienstadt situada em Birkenau, também é pernicioso. Essa escola destinava-se às crianças vindas de Terezin e, assim como as condições dadas aos restantes prisioneiros desse setor do campo – ligeiramente mais favoráveis do que as concedidas aos demais – mantinha o propósito ardiloso do campo de origem. É uma ilha irrisória nos 150 hectares de Auschwitz II e, sem ser o facto de menos de 1 em cada dez deportados ter sobrevivido, não representa o que se passou ao redor.
É esse o problema do discurso de JRS. Desdenha as obras de ficção que falam da Shoah por «suavizarem a realidade», mas doura a pílula e confunde tudo. Pior: sobram-lhe certezas onde falta a perplexidade; e só ficciona sobre Auschwitz quem desistir das respostas – sempre pequenas para tão grandes perguntas, como lembrou Raul Hilberg. Sem querer, cai naquilo que Deborah Lipstadt apelida de «soft core denial». Exagero? Então leiam:
«Os nazis acreditavam que faziam isto para um bem superior, que eles iam salvar a humanidade. Nós encontramos este raciocínio na Inquisição, quando está a queimar as bruxas, a matar os judeus, a torturar as pessoas, acreditando que aquilo é para as salvar, para que encontrem o caminho de Deus.»
Não comento. Apenas lamento esta entrevista. Lamento que JRS não usasse melhor os 23 minutos que o canal PÚBLICO onde trabalha lhe ofereceu para publicitar o romance. Mas também me lembro das horas que passei a falar destas coisas a muitos jovens deste país, mais de 100 sessões escolares em que pesei cada palavra para não dizer asneiras, ou mesmo dos 20 anos que esperei para me atrever a escrever sobre Auschwitz e o grande desastre humano.

Lenine e Nós, de Boaventura de Sousa Santos



O facto de Boaventura de Sousa Santos escrever sobre Lenine, já por si, é uma notícia. Mais notícia será se nos ativermos às posições políticas do sociólogo que está longe de estar em consonância com o PCP. Tal como disse há uns tempos por aqui, o BE irá ser penalizado pela posição que tomou relativamente ao fim da negociação na especialidade do Orçamento para 2021 com o Governo, votando contra. Sei que alguns companheiros do BE estão zangados com as medidas do PS e do Governo no campo do trabalho, da precariedade e da saúde que não são uma novidade, nem apontam para uma flexão (mais) à direita. Porque já estariam nos orçamentos anteriores que foram votados com abstenções da esquerda parlamentar. Qual, então, a importância deste artigo de BSS? É que a sua análise à posição do Bloco vem de encontro ao que já aqui dissemos repetidamente sobre o seu vazio ideológico muito mais permeável a incompreensões sociológicas e erros políticos, que o impedem de uma compreensão global sobre o querer e a sensibilidade políticas do «povo de esquerda». Apresentar um artigo desta importância tendo como base «O Esquerdismo doença infantil do Comunismo», de Lenine, nem em sonhos eu era capaz de o pensar e muito menos de o fazer (então aqui, no FB!). Mas Boaventura fá-lo com a elegância e a síntese que lhe são atribuídas por muitos. Outros, também muitos, nunca o diriam assim. Não tenho para mim que o BE seja esquerdista e, segundo compreendo, nem BSS o acha, senão entraria em contradição com a acusação de vazio ideológico do BE. A análise recai sobre a estratégia do BE e do PCP que apoiaram a Geringonça. Estratégias díspares, mas valorizando a do PCP. A análise vale por isso mesmo. O ataque concertado ao PCP também é visto como parte integrante da estratégia da direita que absorve as críticas ao Governo pela esquerda. A direita sabe muito bem o que faz. E, prova disso mesmo é que logo após a publicação deste artigo, o ataque de toda a direita se faz a BSS por causa da chamada de Lenine à colação. Compreende-se a proscrição do revolucionário russo por antinomia, mas é inegável o apoio implícito ou explícito de largas franjas da esquerda a esta figura que Boaventura corajosamente foi chamar. Um texto a ler e a (re)pensar. Antes que a direita e a extrema-direita toquem as trombetas do triunfo.

O artigo de Boaventura de Sousa Santos é este:

https://www.publico.pt/2020/12/07/opiniao/opiniao/lenine-1941149?fbclid=IwAR10lSJtdmscoOUXd0csPWUwz5elHQ_MNnu9RRVQKyG46dj10S-0PRk0Lfw

António Luís Catarino

7 de Dezembro de 2020

terça-feira, dezembro 01, 2020

Últimos exemplares de «Anjos do Desespero»

 

Últimos exemplares de «Anjos do Desespero».

Aproximamo-nos do final da promoção do livro/catálogo Anjos do Desespero baseado na exposição homónima que teve lugar em Coimbra, no Liquidâmbar. Referências poéticas e personagens que vos mostro juntamente com o prazer do desenho, da colagem e da recolha. Foi uma edição de autor, com a chancela da Artes Breves e composta por António Alves Martins. Tiragem pequena, permito-me informar que já existem poucos livros para venda restrita e simbólica de 12 euros. Um abraço de obrigado a quem já adquiriu o livro, todos autografados. Um agradecimento aos espaços que aceitaram expô-lo: Letra Livre em Lisboa, Utopia no Porto, Miguel de Carvalho na Figueira da Foz e Liquidâmbar em Coimbra. Uma grande cumplicidade aos que leram os textos na exposição e presentes no livro. E um obrigado igualmente aos que o vão ainda adquirir, neste fim de ciclo a que me propus. O contacto aqui vai, e a tempo, por causa do tempo: [email protected]

António Luís Catarino

1 de Dezembro de 2020

domingo, novembro 29, 2020

«Do Desaparecimento dos Rituais», de Byung-Chul Han

 

Por vezes há autores que nos desiludem. Mas creio que isso fará parte de quem segue desde há anos o percurso singular do filósofo coreano Byung-Chul Han, como é o caso. Não exijo que todos os filósofos contemporâneos deixem de interpretar o mundo e comecem a querer transformá-lo, mas há pequenas nuances que gostaria de maior clarificação. O título do livro leva-nos à questão central: serão os rituais necessários perante uma sociedade que rapidamente os está a esquecer? Depois de um ataque ao ritmo neoliberal e ao trabalho/descanso da contemporaneidade como facto maior da alienação, o autor define rituais como actos simbólicos que transmitem e representam os «valores e os regimes que tornam coesa uma comunidade» gerando uma comunidade sem comunicação, enquanto que hoje, o que existe é uma comunicação sem comunidade. Parece-nos pois natural que o filósofo parta para a crítica aberta e, por vezes, violenta à mercadoria. Essa mercadoria, que foi classificada por Marx como fétiche, como alienação do capitalismo é, todavia, objecto de crítica ao neoliberalismo, pelo autor. A diferença é clara e entendida por todos nós: o capitalismo não é colocado em causa como sistema, mas sim os regimes que dele transpiram como o neoliberalismo culpado de todos os exageros e exploração desenfreada, tal como o capital e o dinheiro. Até aqui tudo conforme, embora já duvidoso. Mas Byung-Chul Han inicia pois o seu ataque concertado, e até certo ponto sintetizado e estruturado, ao smartphone, ao pensamento dático (baseado na quantidade de dados), à deslocalização - a ausência de lugar fruto da falta de identidade de um ritual que nos coloca no mundo - , à emocionalização da mercadoria e à estetização ligada a esta que obriga a um consumo de produção que coloniza o ego cada vez mais narcisista e, por isso, fora da comunidade. As pessoas, por isso, isolam-se, como nas redes sociais, mas construindo um ego em comunicação constante, falando para si próprias. A palavra «ritual», hoje, é vista com repugnância porque está ligada ao silêncio - cada vez mais impossível de atingir -, ao lugar, à pertença a um comum, à reflexão. O narcisismo e o egotismo estará assim associado à ausência de conclusões, ou da procura da verdade assente em factos observáveis, mas num continuum de updates, que nos desligam (relegere) do mundo sensível e nos fazem entrar numa roda de hiperactividade e de défice de atenção. Mais do que o conteúdo de um post necessitamos de likes, friends e followers como um campo de ressonância. O eco do eu. Leiamos o filósofo: 

«Na busca de novos estímulos, excitações e experiências, hoje perdemos a capacidade de repetição. É intrínseco aos dispositivos neoliberais, tais como a autenticidade, a inovação ou a criatividade, coagirem-nos permanente ao novo. Mas, no final de contas, a única coisa que geram são variações do mesmo. O antigo, o passado, o que permite uma repetição satisfatória, é eliminado, porque se opõe à lógica de aumento de produção. No entanto, as repetições dão estabilidade à vida. A sua característica é a sua capacidade para nos instalarmos num lugar».

Para o pensador coreano a autenticidade é inimiga da comunidade porque narcisista. A partir daqui inicia a crítica à produção neoliberal, visto que a pessoa passa a ser um produto, uma mercadoria, tal como o tempo de trabalho e de descanso que faz parte do ritmo produtivo. A teoria de alienação de Marx? Não. Byung-Chul Han passa não só para a crítica de Marx, como para o seu antecessor Hegel, enquanto ao mesmo tempo abre uma nesga de crítica ao capitalismo como fenómeno contrário a um outro fenómeno: o da religião (a tal relegere) porque este sistema económico impede a ligação comunitária, entrando e promovendo um inferno do igual porque tudo (as mercadorias como objectos e como pessoas, dizemos nós) pode ser comparável em dados. É a ditadura dática. 

Mas porque Byung-Chul Han critica, então Hegel? Porque na sua dialéctica opta pelo servo e não pelo senhor. Decide-se não pelo ócio do senhor, mas pelo trabalho do servo. A sobrevivência contra a vida! Ou seja, Hegel seria incapaz de entender o ponto de vista do jogador, do ócio, do amante da vida. E nessa esteira de pensamento, leva-nos à negação de Marx, cuja filosofia e teoria se centra no trabalho, louvando, um tanto puerilmente, o seu genro Paul Lafargue que escreveu o famoso «O Direito à Preguiça». Sabemos que Marx centrou toda a sua filosofia no trabalho, para o desconstruir  como trabalho assalariado e alienante no capitalismo, decompondo o valor da mercadoria e explicando o valor do trabalho e principalmente da força de trabalho. Não irei ao ponto de sugerir que na Coreia não haja uma tradução de «O Capital», embora o coreano viva na Alemanha e saiba correntemente o alemão, o que lhe permitiria ir à fonte...

A dúvida adensa-se quando se começa a entrar por caminhos estranhos na leitura de «Do Desaparecimento dos Rituais»: o Japão como futuro dessacralizado do capitalismo, pela imposição de signos e território ritualizado do capitalismo? A mercadoria no Japão perde o seu real valor pela importância do invólucro, muitas vezes mais rentável que a mercadoria em si? E a superação da guerra inumana de drones ou pela internet, dando primazia ao jogo da guerra de olhos nos olhos, no duelo entre pares? Outra vez os samurais de Mishima? 

Isto tudo poderia ser uma leitura interessante se não estivéssemos atentos às «pequenas» pesquisas de Byung-Chul Han. Não é só a tentativa (falhada quanto a nós) de superação de Hegel e  Marx - e logo, neste, pelo valor das mercadorias! - nem também pelos laivos situacionistas e libertários de quando fala do ócio/trabalho ou da crítica ao digital e ao poder dático, mas já nos causa perplexidade a utilização e referência do nazi Carl Schmitt para a superação da guerra digital online, ou pela superação do Iluminismo através da assunção de sociedades ritualizadas pelo sentido comunitário dando o exemplo do Japão. 

Como gostaria de estar errado sobre ele. Sim, o Iluminismo morreu, mas não creio que seja pela perspectiva do devir filosófico de Byung-Chul Han. Fico-me cá pelo Adorno e basta!

António Luís Catarino

29 de Novembro de 2020

«Imagine: Reflections on Peace»

 

Foto de Ron Haviv: os Tigres de Arkan em acção na Bósnia Herzegovina


Um livro sobre a paz mostrando-nos a guerra. Fotos duras estas, como a que escolhi para ilustrar a brutalidade e a desumanidade, mas imperioso conhecê-las. Nesta, um «arkan» sérvio pontapeia uma mulher bósnia prostrada junto a dois cadáveres, um dos quais teria sido atirado de uma janela de interrogatórios em andares superiores do edifício. Nada que o paramilitar que a agride na cabeça o faça sequer apagar o cigarro que segura na mão esquerda. Um pequeno pormenor que nos transmite o horrível da situação. Ao lado, nenhum dos outros dois se vira para observar a cena. Possivelmente saberão o epílogo do que vai seguir-se que é a morte certa das vítimas. Este livro Reflections on Peace é por isso feroz, mas não só. Ajuda-nos a perpectivar uma paz necessária em todo o mundo onde ela não existe ainda. A construção da paz é muito mais honrosa e difícil do que a cobardia da guerra. Bater em mais fracos não segura a mão vitoriosa de quem se julga forte. Neste livro viajamos pelo Líbano, Camboja, Ruanda, Bósnia, Irlanda do Norte, Colômbia, Iraque e Síria regiões martirizadas pelo poder do dinheiro, da ganância, do capitalismo neoliberal e do imperialismo, mas que teima em atingir uma vida digna de ser vivida.


«Comércio com História», Ministério da Economia


Desenho de Paulo J. Mendes

Este livrinho editado pelo Ministério da Economia e recebido por mão amiga não é pretensioso como é comum em livros oficiais de divulgação de projectos. Aqui, trata-se tão-só de dar conta aos cidadãos dos «critérios de classificação da Lei 42/2017 que estabelece o regime de reconhecimento e protecção de estabelecimentos e entidades de interesse histórico e cultural ou social local». Este «Comércio com História» é, para além de um lado pedagógico e de levantamento histórico inquestionável, um livro que tem a particularidade de conhecermos os melhores urban sketchers de Lisboa e Porto. Com qualidade muito variável de desenhos e textos, a verdade é que o folheamos com prazer nas variadíssimas lojas comerciais que nos acompanham nas duas cidades mais populosas do país. Assim se faz a história de um modo simples, sem grandes gastos e com grande eficácia.

Como urban skecther que pretendo ser, e só de vez em quando, não quero deixar de realçar o nome de Paulo J. Mendes que, no Porto, nos deu os melhores desenhos do livro principalmente da Pérola do Bolhão (na imagem), mas também da Casa Crocodilo, do Guarany, do Majestic ou da Livraria Lello. De Lisboa, a quantidade de desenhos de estilos diferentes dispersam-nos e alguns pecam mesmo por pueris, mas gostamos e se contribuir para que estas lojas não acabem para darem lugar a «guest houses» ou motéis manhosos, tanto melhor.

sábado, novembro 21, 2020

«Contos Arrepiantes da História de Portugal» de António F. Nabais e Rui Correia. Ilustrações de Hélio Falcão

 


Pode-se brincar com a História de Portugal? Pode e deve-se. São dois livros com um sentido de humor impecável e sem uma preocupação desmesurada pelo politicamente correcto. No entanto, há uma atitude pedagógica que não se pode ignorar e que pode levar os nossos jovens a iniciar-se na História ou na leitura. Os autores são António F. Nabais e Rui Correia que publicaram dois livros dentro da série «Contos Arrepiantes da História de Portugal»: a «Idade Média Medonha» com episódios da formação do Reino de Portugal e do seu quotidiano e «Descobrimentos Desgraçados». Dois volumes ilustrados por Hélio Falcão. Nos tempos em que vivemos relembrar a História deste modo é uma mais-valia, tanto quanto a língua portuguesa. Necessário que os mais novos conheçam estes livros e, desconfiamos, os que lhes seguirem.
É Rui Correia, professor de História, que numa entrevista ao DN em Agosto deste ano, diz 
«É bom que se perceba que nenhum de nós leva anedotas para dentro da sala de aula, não há aqui a ideia do infoentretenimento. A aula é uma coisa, o livro é outra, mas pretende-se nas duas formas que aluno e professor, leitor e autor, estejam juntos no mesmo sorriso e, assim, poder fazer que as mensagens sejam mais facilmente transmitidas. No ato de aprender, o humor é fundamental. Ninguém aprende sem estar bem-humorado, ninguém aprende de mau humor. Portanto, aprender com um sorriso nos lábios é mil vezes melhor do que aprender com um esgar de horror ou qualquer coisa do género. O humor é uma excelente calçadeira para podermos entender os momentos mais difíceis da história e isto funciona também como uma filosofia de vida. É como aquele momento em que alguém conta a anedota no funeral.» 
António F. Nabais:
«Com o decorrer do processo, encontraram histórias que ainda não conheciam ou que viram confirmadas?
António F. Nabais - Isto foi também um processo de aprendizagem para mim e é um prolongamento daquilo que a minha profissão me dá. Obviamente, aprendemos sempre muito durante uma licenciatura, mas eu nunca aprendi tanto desde que dou aulas. A simples necessidade de investigar aquilo que se vai ensinar obriga-nos a investigar e a encontrar coisas que não sabíamos. Um desafio destes é algo semelhante. Fiquei a saber coisas que também não sabia. Gosto especialmente da história da ribeirinha que tramou o seu próprio raptor.»
ALC
21 de Novembro de 2020


sexta-feira, novembro 20, 2020

Colaboracionismo

Tenho uma ligação distante para com os escritos de Rui Tavares. No entanto, leio-o. Hoje de manhã, ao ler o Público e a sua crónica, lembrei-me do peso das palavras, das memórias e como elas se nos infiltram na pele. Rui Tavares usou a palavra «colaboracionista» como um objecto cortante. E tudo aponta para eu começar a usá-la para aqueles tipos de direita que acordaram com o Ch3g4. Rui Rio é um colaboracionista. Os militantes do PSD e CDS que, como carneiros, não se rebelarem contra as direcções são colaboracionistas e com este adjectivo arrastam atrás de si toda a ignomínia, a indignidade e o opróbrio de se verem aliados aos neofascistas e que a História registou como sendo das mais baixas acções políticas. São colaboracionistas. Vou usar muito esta palavra no futuro.

António Luís Catarino

20 de Novembro de 2020

domingo, novembro 15, 2020

«A Mulher como campo de batalha», de Matéi Visniec. Encenação de Sofia Lobo. Escola da Noite

 


                                                                 A Mulher como campo de batalha, de Matéi Visniec. 
                                                                         Encenação de Sofia Lobo. Escola da Noite

É evidente que saímos incomodados. Mas quem quer teatros levezinhos vá a outro lado. Este espectáculo encenado por Sofia Lobo constitui a 70ª sessão de teatro da Escola da Noite o que não deixa de ser significativo numa cidade cuja maioria dos habitantes são culturalmente neutros (o que é pior do que serem incultos). Mas depois dos parabéns vem o tal murro no estômago apontado com mestria pela encenadora e por uma dupla de excelentes actrizes que deixo aqui os seus nomes: Ana Teresa Santos (Dorra) e Paula Garcia (Kate).

Os figurinos, adereços e imagem gráfica é de Ana Rosa Assunção que teve um trabalho importantíssimo na atmosfera fria de um hospital e ao mesmo tempo violentamente intimista com que seguimos a narrativa.

Sofia Lobo e Ana Teresa Santos traduziram a obra do romeno Matéi Visniec que não conhecia. Aliás, creio que li uma obra dele, depois de olhar para a folha de sala deste espectáculo. Se não me engano veio ter-me às mãos, há muito, «Cuidado com as velhinhas carentes e solitárias» de 2003, que um amigo ligado ao teatro tentou encenar em Leiria. Não creio que alguma vez tivesse sido apresentado.

E chegamos ao texto em si. Nascido em 1956, um rapaz da minha idade portanto, cursou Filosofia na Roménia de Ceausescu o que equivale a estudar a influência dos pinguins nos desertos do Saara! É evidente que se exilou porque assim teve de ser, não fosse o grande Conductor ver nas múltiplas personagens do autor, uma imagem dele próprio. Cremos todos que o seu objetivo foi o de seguir o seu rumo, já que se tornou uma figura incontornável da dramaturgia mundial. A Escola da Noite e a Sofia Lobo escolheram bem.

Fotografia de Eduardo Pinto

                                                                 Fotografia de Eduardo Pinto

Cito de cor: «A Europa é um monte de pedras», «Tem tantas que um dia se afundará com o seu peso», «A Irlanda? Um monte de pedras!», «Os Estados Unidos? Pedras, pelo que me tornei pedreiro, quando emigrei para lá». Estas frases de uma personagem que não está fisicamente na peça são ditas pelo avô, de ascendência irlandesa, de Kate uma psicóloga que acompanha os que levantam centenas e centenas (milhares?) de valas comuns nos Balcãs. E quem cuidará depois dela? Compreendi que aquelas pedras são uma metáfora dos seres humanos. E então poderemos concluir que as pedras não existem somente naquela península. Aliás, o abjecto, o horror e a violência demente que são as violações em massa nos Balcãs, não residem só nos Balcãs. A mulher torna-se então um campo aberto de batalha. Porque através dela se pode abater mentalmente o soldado da frente. É uma guerra de rectaguarda. Como todas, cobarde e terrível pelo que tem de sórdido. Mas da batalha dos múltiplos nacionalismos! E, por favor, não me venham com o duplo adjectivo do «nacionalismo exacerbado». Digam só «nacionalismo». Basta para desencadear horrores e atitudes demenciais, inumanas, quase que diria, simiescas, se não estivéssemos a insultar os nossos primos. O diálogo entre dois «homens» balcânicos que são imitados por Ana Teresa e Paula podemos ouvi-los em qualquer café de Lisboa, Coimbra ou Vila Nova de Tázem: os «mas» eternos com que se generaliza um povo constitui o nacionalismo seja ele «exacerbado», «radical» ou «soft». Isso não existe. Existe o nacionalismo, tout court, antecâmara do fascismo: «Os judeus? Tenho amigos judeus. Até são cultos…mas, puderam-se a jeito na Alemanha!», «Os ciganos? Cantam e dançam bem…mas, por vezes, são dados ao roubo!», «Romenos? Gente boa, alegre, mas preguiçosos e têm a mania que não são eslavos!». E continua…digam-me se já não ouviram isto vezes demais.

É Matéi Visniec que diz: «Nas guerras interétnicas, o sexo da mulher torna-se um campo de batalha. Vimo-lo na Europa, no final do século XX. O pénis do novo guerreiro mergulha no grito das mulheres violadas como outrora a espada do cavaleiro no sangue do seu adversário.»

É Kate, americana de origem irlandesa que afirma: «A Europa já se afundou com o peso das pedras!» Saímos daquela peça com a sensação nítida do que já suspeitávamos: como poderá a Europa redimir-se destes crimes, destas chagas deixadas nos Balcãs, que retomou a lógica horrível das primeiras e segundas guerras mundiais? Não pode. Não podemos. Isto terá de viver connosco e extirpar essa memória colectiva vem até aos confins da nossa mente, mesmo daqueles que nada tiveram a ver com a ignomínia das guerras. Ou pensam estar muito longe…

E a gravidez de Dorra, fruto de uma violação colectiva, mostra-nos como o tal murro no estômago de que falava atrás, pode originar um encadeamento de memórias do espectador atento: que culpa? Quem são os culpados? Como Hanna Arendt nos mostrou no julgamento de Eichmann, os soldados estavam somente a cumprir ordens, eram administrativa e sexualmente competentes, para além de saberem matar muito. Os mandantes defendiam a entidade nação e alguns, como lembra Kate, eram até poetas firmados, como o psiquiatra Karadzic.

«Chorar por quem?» questiona Sofia Lobo. «Entre vinte a cinquenta mil mulheres foram violadas nesta guerra (…). Muitas foram obrigadas a parir crianças que não desejaram, para aumentarem o peso demográfico da etnia dos seus agressores, porque, sabemo-lo, na maior parte das sociedades e das culturas quem conta é o pai. Muitas das sobreviventes rejeitaram os filhos que tiveram, abandonaram-nos, deram-nos para adoção. As que os mantiveram inventaram-lhes pais, porque a intimidade violada gera vergonha, medo, silêncio. Só passados cerca de vinte e cinco anos, alguns destes jovens têm a coragem de enfrentar a sua estranha identidade para, ao darem a cara, serem a prova do que aconteceu em território europeu há pouco mais de duas décadas.» …ou o mar de pedras que cobrem as memórias das guerras europeias, os genocídios e os massacres. Pedras, daquelas que não deixam crescer as sementes e, outras, as pedras tumulares. Pedras humanas que são vítimas e perpetradores. Pedras.

Mas há, no mesmo texto da encenadora, uma afirmação que não posso deixar de divulgar aqui nesta nota de leitura. É quando Sofia Lobo lembra a nota esperançosa com que Visniec termina a peça, porque segundo o dramaturgo há que acreditar na humanidade e em que as pessoas poderão ser felizes. «Eu tenho mais dúvidas», diz Sofia. Eu, pessoalmente, também partilho esta ideia. Entre fascismos assumidos e em evolução, entre refugiados tratados como inumanos, migrantes perseguidos e confinados, campos de concentração modernos em que separam pais de filhos, muros nacionalistas, metáfora exacta da loucura confinada e aceite pelos confinados, o racismo, a xenofobia, o assassínio selectivo e diário de mulheres, a misoginia, ou o estado de guerra permanente que se multiplica, como cogumelos, pelo mundo, há pouco espaço para termos uma ínfima esperança na humanidade. Esta desesperança tem vindo a estacionar nos nossos pensamentos à espera de um erro, de um simples erro que nos leve a deixar a luta contínua em que a vida se tornou.

Esta peça excelente e incómoda que nos atordoa, portanto eficaz nos seus propósitos, não pode ser ignorada sob pena de perecermos todos sob o manto do fascismo.

António Luís Catarino

Coimbra, 15 de Novembro de 2020

sábado, novembro 07, 2020

«Anjos do Desespero», livro-catálogo de António Luís Catarino




A exposição Anjos do Desespero, concebida no Porto e em Coimbra entre 2016 e 2018, contém um conjunto de desenhos que pretende mostrar-nos estes anjos enquanto mensageiros, como diria Llansol, que fizeram a modernidade e a contemporaneidade. A sua existência reflectirá nas pessoas interpretações que só lhes cabe a elas verem. Porque é possível «ver» um desenho colectivamente. Não será possível «ver» um livro da mesma forma. As escritas que enformam os desenhos são a tentativa não de uma explicação obviamente absurda, mas de uma recusa da individualização de uma única forma e o desejo de as entrecruzar. Daí, o processo das leituras que acompanham os desenhos/colagens, realizadas por amigos, que tiveram lugar na apresentação pública da exposição no Liquidâmbar (Coimbra), em 14 de Maio de 2018. Os Anjos do Desespero, tal como Paul Klee os pintou, como Heiner Müller fez deles poemas, e Wim Wenders os filmou em As Asas do Desejo, são aqueles que, apesar de tudo, rejeitam a imortalidade porque exigem a Vida total, exaltam uma liberdade pura e tentam enlouquecer-nos, como uma saída possível, para que acabemos com o sofrimento contínuo de uma vida quotidiana sem senso. Müller avisa-nos: Eu sou o anjo do desespero, com as minhas mãos distribuo o êxtase, o adormecimento, o esquecimento, o gozo e dor dos corpos. A minha fala é o silêncio, o meu canto o grito. Na sombra das minhas asas mora o terror. A minha esperança é o último sopro. Substituindo o silêncio e o ruído destes desenhos figurativos a carvão, aguarelados e contornados a tinta-da-china, sobrelevam-se as colagens e as palavras. Porque só as colagens interagem com o impossível, com o absurdo, com o non-sense. Daí a sua importância unificadora e congruente. Produzem todas, no seu cruzamento simbólico, o vácuo. Esse grande vácuo por onde voam estes anjos desesperados, vívidos.

António Luís Catarino

Coimbra 5de Novembro de 2020

 Texto de apresentação
5.      Cartaz da exposição
7.      Leitura 1 – Heiner Müller, leitura de Rui Damasceno, «O Anjo de Desespero», Relógio d’Água.
8.      Desenho 1
9.      Leitura 2 – Isidore Ducasse / Conde de Lautréamont, leitura de António Alves Marins, «Os Cantos de Maldoror», Antígona.
10. Desenho 2
11. Leitura 3 – Guy Debord, leitura de António Alves Martins, «A Sociedade do Espectáculo», mobilis in mobile.
12. Desenho 3
13. Leitura 4 – Charles Baudelaire, leitura de Maria João Seabra Santos, «O Rapaz Raro», Relógio d’Água.
14. Desenho 4
15. Leitura 5 – Asger Jorn, leitura de Manuel Rocha, «A Roda da Fortuna», Frenesi.
16. Desenho 5
17. Leitura 6 – Alfred Jarry, leitura de Rui Damasceno, «UBU», Campo das Letras.
18. Desenho 6
19. Leitura 7 – Raoul Vaneigem, leitura de João Pedro Gonçalves, «Aviso aos alunos do Básico e do Secundário», Antígona.
20. Desenho 7
21. Leitura 8 – Ulrike Meinhof, leitura de João Moreira, «Everybody Talks About the Weather . . . We Don't: The Writings of Ulrike Meinhof», Seven Stories Press.
22. Desenho 8
23. Leitura 9 – Hanna Arendt, leitura de Sílvia Franklin, «As Origens do Totalitarismo», D. Quixote.
24. Desenho 9
25. Leitura 10 – Wallace Stevens, leitura de Sílvia Franklin, «Antologia», Relógio D’Água.
26. Desenho 10

   O preço da edição de autor é de 12 euros.

NIB: PT50003502390000097490077


não te esquecendo de avisar para [email protected] ou pelo Messenger quando fizeres a transferência e enviares-me por mail o teu endereço.

sexta-feira, outubro 30, 2020

«Ensaio sobre o dia conseguido», de Peter Handke

 


Pormenor do auto-retrato do pintor do século XVIII William Hogarth,
«Line of Beauty and Grace», citado por Peter Handke por causa do tempo, do dia conseguido.
«...E, na secretária, uma pedra chata, arredondada, vinda das margens do Lago Constança: no granito escuro, uma fina sinuosidade diagonal, como que lúdica, desviando-se da recta exactamente no momento certo, uma veia branca como a cal que separa e mantém unidas as metades do seixo.»

Eu leio Peter Handke. E em cada leitura que faço, vejo o «Asas do Desejo» de Wenders, filme do qual fez o guião. Os espaçamentos são os mesmos, os diálogos e a cadência levam-nos a essa sensação estranha. O ensaio a que o autor deu nome é interessante. Creio que o fez como tentativa experimental de projectar o dia, preocupação muito presente em poetas e filósofos. Começa, na página 10, a questionar-nos se já vivemos um via «conseguido», tendo a certeza que à partida terá imensas respostas positivas de quem pensa que esse dia pode ser apenas «belo», «feliz», «despreocupado», «superado» ou o alívio de um «ultrapassado». Mais um! É evidente que quem se mete por estes atalhos saberá que vai dar a um caminho seguramente teológico ou, no mínimo, intangível. E não é sem surpresa que esbarramos na epistolografia de Paulo quando este escreve que um dia conseguido será o «erguer o olhar» na procura do «apreender ascendental» pelo que, inferimos, um dia conseguido para o cristianismo será o olhar de baixo para cima. É lá que se encontra o dia.

Segue-se o grego «kairos», expressão terrivelmente difícil de explicar em português e que poderíamos traduzir por aquele «instante» ou átomo de tempo conseguidos, constantes que se tornam em divindades mais fortes que os deuses, segundo Handke este é o «deus do agora». Depois de uma passagem por Cristo em que o tempo se transforma em eternidade, desce o autor para o estafado «plantar uma árvore, fazer um filho, escrever um livro», que pode, aliás e à boa maneira das sociedades ocidentais contemporâneas, fazer-se tudo isso tudo num só dia, sem qualquer problema de abandonar o ritmo de trabalho para o fazer, digo agora eu! Se isso é um «dia (a vida?) conseguido (a)» é muito discutível. E ainda mais problemático é vermos pessoas com 30 anos a proclamar «j’ai réussi ma vie» que é o mesmo que transpor para os mercados as «obras completas» de poetas com 40 anos de idade ou menos ainda.

O latino «carpe diem», tirando o facto de ser, talvez, o que se aproxime mais do «dia conseguido» de Peter Handke, não deixa de ser recuperável para uma frase de uma t’shirt ou de um pin, ou ainda de uma frase que acompanha um perfil de um site de namoro rápido! No fundo, o que vemos na procura dessa etapa é uma luta constante com o «anjo do dia», não fosse ele o verdadeiro autor de «Asas do Desejo», e que o aproxima cada vez mais ao espiritual, ao que não é mensurável materialmente. O exemplo que dá é interessante: se no comboio, eu destino a viagem também à leitura de um livro, planificando para atingir um dia verdadeiramente conseguido e acabo a viagem a meio da leitura esquecendo-me do livro no comboio, isso poderá colocar em causa a meta do «dia conseguido»? Para o autor, não. Antes pelo contrário. Poder-se-á encontrar outras leituras na ausência de resposta para «aquele» livro em particular. Aqui estaremos em luta com o anjo do dia. Ou caminhando por outros caminhos não menos plenos de interesse.

Handke no final do ensaio de 51 páginas, acaba por nos informar que não teve nunca um dia conseguido. Porque se perdem linhas que desenhamos para esse dia. Mas ao ser assim, teremos um dia conseguido pela negação de o procurar. Finaliza ele: «- E agora perdes finalmente a linha por completo. Regressa ao livro, à escrita, à leitura. Aos textos primitivos em que é, por exemplo, dito: ‘’Deixa ressoar a palavra, sê-lhe fiel – seja o momento favorável ou desfavorável.’’ Já viveste um dia conseguido? Através do qual o instante conseguido, a vida conseguida, talvez até a eternidade conseguida se reuniriam de uma vez por todas?»

Peter Handke. «Ensaio sobre o dia conseguido» foi publicado pela Relógio D'Água.

António Luís Catarino

Coimbra, 30 de Outubro de 2020

terça-feira, outubro 20, 2020

Artaud: «O Teatro e a Peste», um excerto por causa do tempo

 


Quis Artaud mostrar, em 1933, a peste verdadeira: a do mundo e dos corpos confinados e torturados no quotidiano. Tal como hoje, a epidemia, ou melhor, as epidemias, as pestes que se nos apresentam, são o espelho de uma sociedade profundamente doente. Tão doente que não sabe falar de outro tema. Nem é já o medo da morte, mas sim do outro, do vizinho, do amigo, dos amantes, dos entes próximos porque a família desconjuntou-se rapidamente. O vazio está aí. Recuemos pois a Artaud e leia-se algo de diferente da mediocridade do que vamos observando. Ou de como a descrição do teatro e da peste nos pode ser arremetido à cara quase um século depois. Por paradoxal que seja, uma frescura pestífera.

«(...) Como a peste, o teatro é uma crise que se desenlaça com a morte ou com a cura. E a peste é um mal superior porque é uma crise completa, e depois dela nada mais resta a não ser a morte ou uma extrema purificação. De igual forma, o teatro é um mal porque equilíbrio supremo, não adquirível sem destruição. Convida o espírito a um delírio que lhe exalta as energias; e para terminar, só podemos ver que a acção do teatro, como a da peste, sob o ponto de vista humano é benéfica porque, levando os homens a verem-se como são, faz cair a máscara, põe à mostra a mentira, a frouxidão, a baixeza e a hipocrisia; sacode a inércia asfixiante da matéria, que chega às mais claras certezas dos sentidos; e revelando a colectividades o seu poder sombrio, a sua força oculta, convida-as a assumir perante o destino uma atitude heróica e superior que, sem isto, nunca teriam tido.
E o problema que agora se põe é saber se neste mundo que escorrega, se suicida sem dar por isso, será encontrado um núcleo de homens capazes de impor esta noção superior do teatro que a todos nós restituirá o equivalente natural e mágico dos dogmas em que deixámos de acreditar.»

Antonin Artaud, excerto de «O Teatro e a Peste», 1933, em «Eu, Antonin Artaud», Sistema Solar
Tradução de Aníbal Fernandes

No fim desta conferência que teve lugar numa sala da Sorbonne e em que Artaud foi vaiado tumultuosamente, encontrava-se Anaïs Nin que esperou, sentada e silenciosa, que as portas da sala deixassem de bater para conhecer Artaud. Nessa noite passearam à chuva os dois por Paris em direcção a um bar. Ela deixou-nos um relato muito impressivo do que se passou. Escreveu: «Tinha o rosto em convulsões de angústia e os cabelos ensopados em suor. Os olhos dilatavam-se, enrijava os músculos, os dedos lutavam para conservar a flexibilidade. Fazia-nos sentir a secura e o ardor da sua garganta, o sofrimento, a febre, o fogo das suas entranhas. Estava em tortura. Berrava. Delirava. Representava a sua própria morte, a sua própria crucificação.»

António Luís Catarino
Coimbra, 20 de Outubro de 2020