quinta-feira, abril 23, 2020

Dia do Livro: «A Fera tem de Morrer», ou em louvor do livro policial


O policial merece-o. No Dia do Livro aí vai «A Fera tem de Morrer», de Nicholas Blake, representando todo o manancial de livros policiais lidos até aqui desde a minha juventude. Ele há de tudo. Autores fascistas como S.S. Van Dine (esta coisa do SS, não engana!) que cita Oswald Spengler e o esplendor e decadência da civilização ocidental, mais Phillips Oppenheim que vai pelo mesmo caminho com a superioridade das elites face às «classes perigosas» propensas aos crimes hediondos, os arrogantes detetives vitorianos ingleses que, apesar das guerras, teimam em viver de acordo com o código de conduta de gentlemen como Jeffrey Farjeon e Ellery Queen, de Rex Stout a Edgar Wallace, as seguidoras falhadas de Agatha Christie como Margery Allingham e os extraordinários Dashiell Hammett e Raymond Chandler que, só por si, valem toda a parafernália de páginas e páginas até os descobrirmos e os seguirmos nos filmes homónimos dos anos 50. Quem lê estes policiais fica vacinado, nunca mais os deixa.

Um facto indiscutível é que nos anos pós-29 se vivia muito melhor do que hoje. Bebia-se sem parar, fumava-se em todo o lado e com a avidez de uma chaminé de Liverpool, amava-se loucamente, praticava-se o adultério sempre por uma boa razão escondida em que os culpados eram quase sempre os cônjuges demissionários, passeava-se em enormes jardins públicos, o campo ainda salvaguardava os bons selvagens que o habitavam e os homens e as mulheres temiam a Deus enquanto faziam precisamente o contrário do que Ele dizia. As casas eram quase sempre cottages, enormes com enormes pés direitos e amplas escadarias em caracol, as mesas de carvalho, a comida era uma quase religião que desconhecia ainda o estúpido conceito gourmet e os automóveis de uma beleza clássica, isto se a civilização clássica tivesse parido carros autogovernados. O futurismo deu ao automóvel uma elevação que, de todo, hoje não merece e a arte, já depois de o dadaísmo e o surrealismo lhe fazerem a folha, atinge, no crime, uma espécie de leitmotiv, de presença fúnebre. Todo um mundo a descobrir nos policiais. Havia sempre dinheiro para tudo e os gastos eram enormes. Poder-se-ia permanecer num hotel dos Alpes suíços uma eternidade, despreocupadamente. O dinheiro vinha sempre de honorários ou heranças sumptuosos. Os próprios crimes eram de uma elegância enorme. Sim, o sangue escorria aos borbotões, mas nada que pudesse travar o desenrolar magnânimo da inteligência do investigador que, quase sempre, era acompanhada pelo arrependimento do assassino ou da assassina, embora esta última ou tenha uma forte razão para o cometer ou era portadora de um cérebro tortuoso e frio de homicida. Freud explicava tudo e não é raro encontrarmos o doutor citado nas páginas amareladas da Vampiro.

Neste «A Fera tem de Morrer», Nicholas Blake demonstra como uma vingança pode ser montada partindo do princípio que, se se propagandear o fim e o objetivo dessa mesma vingança, o seu executante estará fora das suspeitas. Um suspeito que diz que vai cometer um crime chegará a ser um suspeito? É nessa grande questão dos nossos tempos que a coisa flui.

Escolham pois, hoje, a fera que há de morrer. Terão muito por onde escolher.

António Luís Catarino
Coimbra, 23 de abril de 2020

Puro exercício de estilo aplicado para a noite de 24 de abril: saia de casa devagarinho, com máscara e luvas. Não leve o cão porque pode ser identificado. Mas não se esqueça de uma sweatshirt e cubra a cabeça com o capuz, porque está frio e pode até chover. Olhe para cima e identifique os andares dos prédios com panos pretos. Não, não são anarquistas. São fascistas que os mostram e já não têm vergonha. Muna-se de uma pequena fisga que usa na pesca para atirar longe o engodo aos peixes. Em vez do engodo, use as esferas de metal ou carretos de uma bicicleta velha, mas podem ser também pequenas pedras. Agora, com o covid19 ninguém desconfia. Pode igualmente levar uma pressão de ar, mas não se jura que os efeitos serão tão graves como a fisga e pode gerar interrogações evitáveis. Aponte bem e atire. Ouvirá um estilhaçar de um vidro. Boa. Inicie a sua rusga pelo fim do cotovelo da rua e não pelo princípio. A fuga será então possível, sem grandes problemas ou perturbações inesperadas. No fundo, estarão quase todos em casa a ouvir a Grândola. Não se assuste. Isto é só imaginação minha. Um exercício sem qualquer consequência de maior. Porque se o fizer pode correr o risco de encontrar a felicidade que acompanha a transgressão e a revolta. Bom 25A!

António Luís Catarino
Coimbra, 21 de abril de 2020

segunda-feira, abril 13, 2020

Si Dispensa dai Fiori, de José Ricardo Nunes

volta d' mar

Um livrinho recebido, uma alegria acrescentada. De José Ricardo Nunes, tenho dado conta que o poeta se rejuvenesce cada vez que se edita. Agora na editora Volta d’Mar ([email protected]) deduzo que em pequena tiragem. Quem o quer, peça-o à editora, porque a poesia esmifra-se nas estantes das grandes cadeias livreiras.

A anotação do tempo sempre presente na poesia de José Ricardo. 2018-19, como se a voragem dos dias consumisse as folhas grafadas. «Si Dispensa dai Fiori» divide-se em quatro partes: «Gesualdo», «Caravaggio», «Si Dispensa dai Fiori» que dá o título ao livro e «Ainda a Propósito da Ressurreição». Continua-se na ideia de tempo: «(...) e depois/ que patetice/ tornava a pensar na ressurreição/ com muita intensidade // o tempo descoordena as imagens/ favorece os erros ortográficos/ mas o adicionalzinho sempre/ dava jeito talvez até/ pudesse reparar umas torneiras/ (...)». Em «Si dispensa dai Fiori» com a sonoridade e o ritmo de um soneto envolve-se, José Ricardo, no platonismo das ideias e do epicurismo dos átomos e das células para desaguar em personagens bíblicas ou lugares renascentistas em busca das caveiras de Santa Maria delle Anime del Purgatorio ad Arco, como em S. Jeronimo que anota o tempo. «(...) lembra-se a alma por mim/ dos que deveras me amaram/ e dos que me foram queridos/ dos que apenas por obrigação/ irão ajudá-la a subir/ quando for o momento/ e nem então houver remédio// si dispensa dai fiori/ il presente vale anche per rigraziamento».

António Luís Catarino
Coimbra, 13 de abril de 2020

quinta-feira, abril 09, 2020

«São Paulo», de Teixeira de Pascoaes. A Lenda corrige a História


São Paulo - Livro - WOOK
Reconheço que foi uma tarefa difícil, esta, a que me propus. Tentar conhecer S. Paulo, (antes de ler o livro de Teixeira de Pascoaes) minimamente, como eu fiz, pondo de lado ideias feitas e apriorísticas é quase impossível mas, no final da empresa, consegui deixar para trás de mim um certo afastamento e mesmo incómodo que mantinha relativamente a esta personagem central na hagiografia católica. Li, claro, a sua epistolografia e detive-me nalguns trechos mais ou menos controversos que, para espanto meu, tinham quase as mesmas interpretações somente em duas fontes que consultei: a Bíblia dos Capuchinhos e a de Frederico Lourenço. Mesmo as que eram identificadas por pseudopaulinas, como as Cartas de Tito e as de Timóteo, o seu discípulo preferido. As duas Bíblias eram concordantes na generalidade, igualmente, na maioria dos verbos e expressões traduzidos principalmente do grego. Menos mal, porque pensaria que as coisas fossem mais complicadas neste aspeto.

Religionline: Prémio Pessoa para Frederico Lourenço – e para a ...
Paulo era, sem dúvida alguma, um espírito atormentado, febril, nervoso, autoritário, fisicamente diminuído, doente e claramente místico. Judeu nascido em Tarso ao que se julga nos anos 20, ainda com Cristo vivo, numa grande cidade cosmopolita e cruzamento de todas as mercadorias e ideias do mundo de então, foi um aluno de Gamaliel, fariseu e zeloso da Lei do Antigo Testamento e da Torá. Saulo de Tarso, como se chamava então, perseguiu e matou cristãos entre os quais Estevão dado como o primeiro mártir cristão. Na estrada para Damasco num episódio conhecido entre físico e místico adivinhou a presença de Jesus. A partir daí tornou-se evangelizador e tão zeloso como o era antes da conversão, mas agora divulgando a palavra de Cristo, numa síntese da velha com uma nova aliança. Criou a Igreja cristã universal contra o judaísmo integralista, contra a Roma dos Césares e a hierarquia um tanto hostil de Pedro e Tiago, por razões que Teixeira de Pascoaes classifica, aos olhos do poeta, como pueris e mesquinhas (ser circuncidado ou não, comer com gentios, etc.). Mas o que me leva a tentar perceber S. Paulo é o processo, não o produto da sua evangelização. É a ideia feita ação. Aquilo a que hoje se chama a política (o conceito de pólis que não seria de todo desconhecido de um estudante da Lei em Tarso, cujos contactos coma cultura helenística eram óbvios).
Leyaonline - São Paulo - WRIGHT, N.T.
Já irei a Teixeira de Pascoaes. Antes, li a biografia de S. Paulo, publicada pela D. Quixote e cujo autor, Nicholas Thomas Wright, Professor anglicano em Oxford e Cambridge, entre outras instituições académicas, me deu garantias sólidas de conhecedor profundo do apóstolo e um estudioso, igualmente, da história do cristianismo primitivo. Mas Frederico Lourenço foi, também, uma referência importante na tradução dos Atos.

Ora, é aqui que entra Teixeira de Pascoaes um poeta luso da decadência, da saudade e do misticismo sebastianista. Tem, tal como Junqueiro e Raúl Brandão, laivos surrealistas e antirracionalistas nas suas obras, razão pela qual me aproximaram sempre como autores excecionais. É amigo de Unamuno com quem troca vasta correspondência. Como vê, Teixeira de Pascoaes, S. Paulo? Não minto que o vê com uma vontade férrea em edificar o «projeto» cristão e alargá-lo a todo o mundo, mas vendo uma oportunidade no seu livro, editado em 1934 no Porto, de o «cruzar» com a ideia decadentista e passadista muito portuguesa e que compartilha com os autores citados anteriormente.

No entanto, vejo-o igualmente com Antero num retorno ao cristianismo primitivo, com Eça do Suave Milagre e principalmente com Camilo Castelo Branco a quem dedica a excecional biografia «O Penitente». Juntamente, com S. Jerónimo, compõe-se esta trilogia de anjos rebeldes e desesperados. Embora tenha biografado Santo Agostinho, esta não pertencerá a esta trilogia, segundo António Cândido Franco que teve o condão de publicar as suas obras na Assírio e Alvim. Reparem: entre a 1ª edição de 1934, só 25 anos depois é publicada a 2ª edição e a 3ª edição é de 1984, noutros 25 anos! S. Paulo Foi traduzido para espanhol, holandês, alemão, francês (na Gallimard), inglês e húngaro. Cá, como em Espanha, o livro foi censurado e criticado violentamente, pelo que se percebe os longos interlúdios editoriais. Além disso, Pascoaes não é assimilável pela Brasileira do Chiado. É um marginal que se acantona em Amarante e que recusa a advocacia e o sistema de ensino, como o conimbricense, que compara a um presídio! Raúl Brandão safa-se do epíteto porque os neorrealistas o absorvem depois do tão estranho, quanto belo, «Húmus». 

Para Pascoaes não há perdão. É o anarquista, o cristão, o idealista que afirma no seu «São Paulo»: «(…) como descobrimos na Ceia, o sentido da religião cristã, o culto do espírito que redime a criação material. O Banquete atingiu aspetos desvairados e teve um significado superior. Era a carne, louca de gozo, a suicidar-se, a provocar a ressurreição espiritual. A embriaguez dionisíaca deu o misticismo cristão. Da uva báquica saiu o vinho eucarístico». 

É evidente, também, o seu anti-cientismo «Enquanto o homem sofrer e amar, perdido na noite do mistério, haverá religião, porque a ciência não lhe basta»; a santificação pela loucura elegendo o seu panteão: «S. Paulo foi a alma ansiosa que jamais parou, na subida, aquele sim do Amor gritado contra todos os nãos do egoísmo materialista. Foi a alma-mater de todas as almas, para as quais o Universo sem Deus é um zero tão grande como inútil. Dela descendem os santos e poetas da Loucura: Santo Agostinho, S. Francisco de Assis, Santa Teresa de Ávila, que divinizou o amor humano e Soror Mariana que humanizou o amor divino»; 

Pascoaes anti epicurista que afasta Lucrécio que se suicida no Tibre «como um cão» lembrando-se talvez do suicídio do seu irmão, estudante em Coimbra, em 1903: «Paulo o poeta supremo da loucura e da fome; Lucrécio, o poeta supremo da saciedade e da razão» e mais à frente: «Paulo vive, rodeado de anjos e fantasmas. Lucrécio vive sozinho, no deserto»; no capítulo XXIII, que poderemos considerar o epílogo de um livro de uma beleza extraordinária e elegíaca para com Paulo podemos ler projetando os futuros:

«A conversão da alma pagã na cristã é uma passagem misteriosa, como a do ser animal para o consciente. A alma pagã, caída no ceticismo e ateísmo, deveria evoluir dentro de uma compreensão materialista da existência. Rejeitado o estoicismo rígido, hostil, pertenceria ao epicurismo romano orientar a Humanidade. Teríamos Lucrécio em vez de Paulo. Mas não: mortos os deuses clássicos, surge-nos um deus romântico. [… as influências de Cristo] Recebeu-as S. Paulo, que as transmitiu aos outros, em palavras maternais, infinitamente insinuantes. Vibraram num meio social esterilizado pela filosofia racionalista, percursora dos gramofones e dos gases venenosos. As forças poéticas, sentimentais, dominaram as ideias, que amesquinham a existência, restringindo-a a um simples jogo inútil e mecânico».

E mais uma vez a superação necessária da Razão em Pascoaes: «O mundo foi da Poesia, nos primeiros séculos da nossa era. Repetir-se-á o milagre? Voltará o deus dos poetas contra os sábios que só acreditam na matéria? E com ela fabricam explosivos, gases asfixiantes, máquinas pavorosas? Nesta orgia industrial moderna, paródia em ferro e vapor, orgia pagã, o homem está morto ou isolado do seu espírito. Existe, mas não vive. Existe a duzentos quilómetros à hora, mas com a vida parada, dentro dele. Vida inerte numa existência delirante. Seduzido pelo ruído e movimento, as duas faces desta civilização americana ou neo-neroniana [de Nero, a quem Pascoaes acusa da morte de Paulo, talvez em Roma], integrou-se num sistema mecânico industrial, e é simplesmente uma engrenagem (…) O homem desviado do seu destino, que é tornar-se, perante o Criador, consciência universal, mente à sua própria natureza e perde a razão de ser».

Teixeira de Pascoaes, premonitório e contemporâneo, conclui: «Esta civilização americana depende de materiais esgotáveis ou em quantidade limitada. A fábrica, esse templo moderno, há de ser destruída, como o templo de Artemisa, em Éfeso, e o de Vénus, em Pafos. Templo quer dizer túmulo, casa dos mortos, que os mortos foram os primeiros deuses. Foram eles que dirigiram, para além do mundo, a atenção dos vivos. Destruída a fábrica pagã, teremos a Igreja de Cristo, a confraria dos irmãos, o convívio universal e amoroso. Confiemos no Deus de Paulo».

A ingenuidade febril de um e o zelo pelo amor e fraternidade de outro confundem-se num território ideal de ninguém e de todos nós. A vida ainda há de pertencer, um dia, aos Poetas.

António Luís Catarino

Coimbra, 9 de abril de 2020


segunda-feira, abril 06, 2020

Apoiar o Estado Social? Sobre um novo Plano Marshall e a esquerda anémica


Vai sendo habitual, tristemente habitual, o slogan de uma certa esquerda, cada vez mais bem comportada e colaborante com o «status», do «queremos mais estado social». Nos últimos dias, houve quem, célere, se juntasse às palmas ao SNS e, evidentemente, ao glorioso Estado Social que o apoia. Gostaria de lembrar que a formulação de Estado Social foi construído, após 1945, pela Democracia-Cristã, sustentado pelo Relatório Beveridge, este último formulado em plena guerra e com plena consciência que era necessário dar alguma coisa aos trabalhadores antes que eles se virassem contra o Estado. A ascensão dos fascismos e as tentativas operárias revolucionárias entre as duas guerras na Europa não deixavam dúvidas sobre a emergência de um Estado Social salvador o que se veio a verificar a partir de 1947 com a ajuda americana do Plano Marshall. Sabemos que, a partir daí, a América nunca mais deixou a liderança económica do Mundo tornando-o numa colónia sua. Hoje, em Portugal, da esquerda a toda a direita, da Grécia à Alemanha, da Comissão Europeia ao FMI e ao Banco Mundial, retirando os incómodos «eurobonds», já todos querem um Plano Marshall. Esta unanimidade é claramente desmobilizadora para quem quer mudar radicalmente a vida que até aqui temos tido. É igualmente estranha e, para muitos, desconfortável, impedindo a formulação de verdadeiras alternativas sociais.

Hoje, o recuo da esquerda é bem visível em relação à formulação do conceito de Estado. Um dirigente do BE dá-nos um slogan ainda mais claro desse mesmo recuo: «Estado Social ou Barbárie» contrapondo esta expressão, evidentemente, aos anos 50/60 da revista «Socialismo ou Barbárie». Entretanto, o Estado Social tornou-se sacrossanto. Se se explana minimamente a defesa dessa tese substituindo o Socialismo pelo Estado Social, já ficamos boquiabertos, mesmo com gente acima de toda a suspeita de serem de direita, com o recuo total em formular qualquer crítica, mínima que seja, aos dirigentes desse mesmo Estado, nomeadamente à Directora da DGS e à Ministra da Saúde, confundindo-o deliberadamente com o Governo. Assim, o apoio ao tal Estado Social torna-se um apoio objectivo ao Governo PS, coisa de que já suspeitávamos há muito e que de todo, este não merece. Nem a incompetência da ministra da Saúde, dos ministros da Administração Interna e da Educação têm sido incomodada. O estado das coisas não permite grandes desaforos para com esta gente que bem merecia que a verdade lhes fosse dita.

A crítica suspende-se (se é que alguma vez existiu de facto!) e remete-se para o fim da pandemia, porque fazê-la agora seria uma machadada na luta contra o coronavírus. Que saibamos o estado de emergência não a suspendeu ainda.

Mas de que Estado Social estamos a falar? Do que nos sobrecarrega de impostos sobre o trabalho e que distribui para os que dominam desde sempre esse mesmo Estado? O das intocáveis PPP? O das Obras Públicas? O dos contractos principescos com a iniciativa privada? O dos subsídios às grandes empresas e às multinacionais? O que alimenta os Bancos? O que permite um sistema de influências individualistas e de nepotismo, seja ele familiar ou de partido? 

Nunca esta esquerda, que hoje se remete para a suspensão das críticas ao Estado e ao Governo do PS, se interessou por uma alternativa onde víssemos, ao menos um mísero esqueleto, as possibilidades objectivas e subjectivas de apropriação dos meios de produção através da construção de uma rede de trabalhadores, organizados economicamente e que decidissem autonomamente no plano político. Nem bastariam somente as nacionalizações, que só por si nada valeriam, mas nem disso falam.

Dêem-lhes o termo que quiserem, mas chama-se a isto, no mínimo, uma hipótese apresentada e defendida tantas vezes ao longo dos tempos, que é património da Esquerda, reduzindo o Estado ao mínimo denominador comum que é o da coordenação das vontades e dos desejos colectivos, ou se quiserem, de novas subjectividades. Configura-se o Estado Social nisto? É evidente que não. 

Se quiserem falar de utopias não se acantonem no Estado Social. É pouco, muito pouco. Mas que a breve trecho o terão de fazer, isso é quase uma certeza. Depois veremos as posições públicas que tomam.

Teorias da conspiração


Nada me seduz menos do que ler formulações de teorias da conspiração. Muito menos num momento em que nos deparamos com uma epidemia gigantesca, global e não inteiramente conhecida. Mas letal e com consequências terríveis. Adivinharmos o que vem a seguir é, creio eu, não conhecer a História, embora esta última tenha as costas muito largas. As opiniões não sustentadas nem teórica, nem cientificamente, não nos permitem construir utopias e distopias à vontade de quem as faz e, principalmente, trocando os desejos pelas suas realidades. Porque não existindo uma só realidade, partiremos do princípio que elas aí estão ao dispor da imaginação de cada um.

Mas que isto não nos impeça de pensar e apresentar alguns factos menos perceptíveis de imediato. Devido a um dos «posts» que coloquei no FB, sou obrigado a explicar-me que não me move, tal como disse atrás, nenhuma vontade de abraçar teorias da conspiração. Contudo, há aspectos que convém apresentar como dados concretos. Baseei-me em jornalistas que estão acima de qualquer suspeita, que são considerados honestos e assertivos. Não comungam do «mainstream» e dos media subjugados por quaisquer interesses económicos ou partidários. São jornalistas de investigação. Por isso estão alguns à margem. E é nessa mesma margem que me gosto de mover e possivelmente, pelo que acabo de escrever, onde se se pode aproximar mais da verdade. 

Portanto, houve uma reunião da auto-proclamada elite mundial económica que se preparou, em 18 de novembro de 2019, em Nova Iorque, para uma pandemia enorme à escala global? Houve. Alguns deles conhecíamos por serem multimilionários como Bill Gates; outros nomes nem tanto, como a ex-responsável pelo Departamento de Saúde dos EUA no tempo de Obama e pela especialista em epidemiologia da CIA. Houve uma reunião sim, e, nessa reunião, o que saiu? Houve alguma acta ou conclusão que pudéssemos ter acesso? Não.

Ainda ontem (dia 4 de abril), Bill Gates voltou a anunciar, através do Observador, novas epidemias, mais letais que esta para o futuro. Que factos causais tem ele para o dizer, além do que já sabemos de antemão? Por exemplo, as causas ancoradas na devastação de florestas, dos ecossistemas existentes e as agressões contínuas ao ambiente do planeta e as péssimas capacidades intelectuais e políticas dos chamados dirigentes mundiais. Que políticas estão por detrás destes planos que serão sempre «de emergência global»? Ora, são essas as perguntas que devemos colocar, além de muitas outras que lhes estarão intimamente ligadas, à medida que vamos sabendo, aqui e ali, de factos que, continuo a dizer, são pouco claros.

Sobre o papel dos estados a nível global e da tal «elite» devo lembrar Guy Debord que, nos seus «Comentários sobre a Sociedade do Espectáculo», editado em 1988 e apresentando já o conceito de «espectáculo integrado», afirma: «A sociedade modernizada até ao estádio do espectacular integrado caracteriza-se pelo efeito combinado de cinco traços principais, que são: a renovação tecnológica incessante; a fusão económico-estatal: o segredo generalizado; o falso sem réplica; um presente perpétuo.» (o «bold» é meu). 

Mais à frente explica o que entende por estes dois traços: «O segredo generalizado mantém-se por detrás do espectáculo, como o complemento decisivo daquilo que ele mostra e, se aprofundamos mais as coisas, como a sua mais importante operação». (...) «O simples facto de estar a partir de agora sem réplica deu ao falso uma qualidade completamente nova. É ao mesmo tempo o verdadeiro que deixou de existir quase por todo o lado ou, no melhor caso, viu-se reduzido ao estado de uma hipótese que nunca pode ser demonstrada. O falso sem réplica acabou por fazer desaparecer a opinião pública, que de início se encontrava incapaz de se fazer ouvir; depois, rapidamente em seguida, de somente se formar (...)».

Por isso, entendam-me quando falo de conquistar a verdade do momento, sabendo antecipadamente que qualquer réplica será uma simples hipótese. Não mais que isso. Mas devemos não ter medo de a colocar.