Luis Maffei e a capa de Telefunken que saiu hoje para o público
Luis, o facto de ser professor de Literatura Portuguesa na Universidade Fluminense, ter uma tese de doutoramento sobre Herberto Helder e colaborar amiúde com revistas como a Relâmpago e Telhados de Vidro influenciam, de algum modo, a sua poesia?
Leio Literatura Portuguesa e lido com ela há bastante tempo. Em certo momento, passo a tê-la como objeto direto de trabalho, mais especificamente quando começo, no mestrado, a estudar Herberto Helder a sério. É inevitável, portanto, que a Literatura Portuguesa, que tanto participa de minha vida, participe também de meu modo de enxergar a literatura, e, em particular, a poesia. Não se trata, suponho, de uma angústia da influência, mas da percepção apaixonada e talvez íntima de um vasto universo a se ter em relação. É óbvio que, se eu crer em Borges (penso em “El escritor argentino y la tradición”), inapelavelmente terei de ser um poeta brasileiro, e gosto que seja assim: sou um poeta brasileiro, faço minha poesia no Brasil e dentro de uma, agora sim, angústia bastante brasileira, ou melhor, advinda de uma noção particular do que seja viver neste lugar, o Rio de Janeiro, neste momento e sob diversas variantes de uma cultura na qual me insiro. Isso tampouco terá que ver com influência no sentido consagrado por Bloom; talvez seja da ordem do combate. Por outro lado, diante dos olhos de todos nós há um campo mais vasto ainda, que é o da poesia de todos os tempos, todas as línguas e todos os lugares. Não lemos tudo, mas muita coisa ainda é legível.
Há referências que nos são óbvias, para além da grande originalidade da poesia que faz, como o já referido Herberto Helder, mas também O’Neill, Camões ou Bocage, não é? Chega a fazer sonetos de uma musicalidade fantástica como em Pano de Corte e Vocativa.
Obrigado. O notável Alexandre O’Neill aparece em Telefunken por causa de seu poema “Gato”, com que converso no meu “Prioritárias 1”. Quanto ao soneto, é presença muito forte na tradição ocidental, especificamente na tradição da poesia em português. Sinto-me à vontade nessa forma fixa, e “Vocativa” é uma pequena homenagem a Bocage, poeta que reputo merecedor de novas e renovadas leituras, sobretudo no que toca a seus poemas que levam o erotismo a uma pornográfica alcova. “Vocativa” é baseado em “[Amar dentro do peito uma donzela]”, e devo ao Bocage a fluidez que meu soneto tem, pois peguei a métrica, por assim dizer, pronta. Já Camões me parece uma grande razão para que se escrevam poemas em português até hoje e até sempre, e também uma grande razão para que não se escreva nada. Isso porque é preciso voltar constantemente, como homenagem, conflito, dúvida e humanidade, ao mais vivo artista que nossa língua possui e que possui nossa língua, e tal gesto (metaforizável, penso agora, pela ideia de “porta giratória” que encontro em Luiza Neto Jorge) foi praticado por multidões de poetas desde que Camões passou a ser lido. Por outro lado, não tanto em virtude das trapaças que Camões sofreu ao longo do tempo (penso no Sena de “Camões dirige-se a seus contemporâneos”, na Sophia de “Camões e a tença”, no Gastão de Outro nome, etc., como, além de muito mais, denúncias dessas trapaças), mas da inesgotável contemporaneidade do que esse poeta está escrevendo, talvez conversar com ele seja um tanto perigoso, já que corremos o risco de apenas, maravilhados, ouvir.
Este é o seu segundo livro de poesia (o primeiro, A, foi editado no Brasil, em 2006). Não se pode dizer que é um poeta muito prolixo ou dará «…todo o meu tempo a verso alheio…»?
A reúne bastante coisa do que eu escrevi até 2006, ano em que foi lançado. É um livro talvez com demasiados poemas, não sei. O seguinte, este Telefunken, veio dois anos depois.Não há, tem razão, prolixidade, nem na internalidade dos meus poemas nem na frequência da minha escrita, mas isso não tem que ver com dedicar muito “tempo ao verso alheio”, mas sim com um ritmo de produção sobre o qual não tenho muito poder deliberativo. Na pergunta anterior, fala generosamente numa “originalidade” do que faço. Não a procuro. Mas procuro fazer com que meus poemas não se bastem em redizer o já dito, ou em estabelecer uma mera leitura de poemas alheios que meu cânone pessoal tenha elegido. O poema que cita termina do seguinte modo: “Não dou todo o meu tempo ao verso alheio/ mas/ ao meu/ prefiro a prosa/ não da vida e sim/ de pêlos sem metáfora ou/ mentira”. Longe de querer desconfiar muito da poesia, seja ela minha ou alheia, penso que temos todo o direito (talvez ético...) de dizer daquilo que esteja fora das bibliotecas, fora do imenso e restrito universo da literatura, mesmo porque o mundo nos exige atenção e escuta para que os livros façam sentido e possam mudar alguma coisa no próprio mundo extralivros – e existe, por mais que nos possa parecer estranho, um mundo extralivros.
Qual o papel da música na sua poesia? Editou um disco com Marcelo Gargaglione.
Sim, há esse disco, na mesma situação de blake, lançado em 2005. O título foi retirado de um poema de Fiama Hasse Pais Brandão, “A minha vida, a mais hermética”. Não sei dizer se há um papel da música em minha poesia. Talvez me fosse mais fácil dizer de um papel da literatura na música que Marcelo Gargaglione e eu fazemos: lá está Fiama, também um poema de Jorge de Sena, uma adaptação de Ésquilo, uma transgressão a um poema de Eugenio Montale, etc. Não obstante, nossa música não persegue poemas ou textos literários, pois quer ser efetivamente música, tanto que boa parte da força (talvez a mais nuclear) de na mesma situação de blake advém da própria música – o canto, os longos instrumentais, certo desafio à lógica consagrada do sistema tonal. No caso da música em minha poesia, talvez eu preferisse falar de ritmo e quebra, mas há quem diga de efetivos traços musicais. Deixo essa consideração aos bons leitores.
Explique-nos um pouco melhor a série coordenada por si na Editora Oficina Raquel com um nome tão singular como Portugal, 0.
A série é dedicada à literatura recente feita em Portugal, sobretudo a poesia. Até agora foram lançadas antologias de Manuel de Freitas, Rui Pires Cabral, Luís Quintais e Pedro Eiras. Por ser a novíssima literatura a que interessa à série, Portugal, 0: ponto zero, princípio, hoje. As antologias vêm com estudos (prefácio ou posfácio) feitos por pesquisadores brasileiros de poesia portuguesa (Maria Lucia Dal Farra, no caso de Rui Pires Cabral, e Ida Ferreira Alves, no caso de Luís Quintais, por exemplo, além de mim próprio), já que: por aqui, pelo Brasil, alguns estudiosos andam dando inteligente atenção à nova literatura portuguesa; os estudos de literatura portuguesa no Brasil, nos dias de hoje, possuem uma inegável força; o que Portugal, 0 quer, sendo uma coleção brasileira, é apresentar esses autores ao público brasileiro (nada vasto, em verdade bastante pouco, mas...) e permitir uma leitura “à brasileira” (devo a expressão a um gigante dos estudos portugueses no Brasil, Jorge Fernandes da Silveira, sem o qual eu não saberia ler direito) desses poetas. Torço para que a coleção tenha vida longa, pois o fôlego que a nova poesia portuguesa possui e o generoso número de bons autores são dignos de nota.
Pedro Eiras, no posfácio a Telefunken afirma, referindo-se a Ikeda’s Morning que o seu poema obriga à igualdade do rei na medida do homem. Homem esse, aliás, que deve ter a atitude de um rei. Assim é?
Daisaku Ikeda é o líder da Soka Gakkai, organização leiga que se dedica a promover paz, cultura e educação com base no Budismo de Nitiren Daishonin. Tenho orgulho de ser membro da Gakkai e, portanto, “singelamente/ atento” ao que diz Ikeda, humanista mais lúcido de que tenho notícia. “O homem deve ter a atitude/ de um rei” são versos escritos por Ikeda, para quem o ser humano atinge algum reinado (no mais generoso sentido) na medida mesma de sua humanidade (no mais corajoso sentido), não de sua aristocracia (no mais segregacional sentido). Estou de pleno acordo com o que escreveu Pedro Eiras em seu magnífico posfácio a meu livro, e poderia dizer mais: estar “singelamente/ atento” ao que diz e escreve Daisaku Ikeda é meu modo de acessar uma rara esperança na construção de algo distinto do que nosso mundo nos tem mostrado.
Que inferno é esse criado por «…boa vontade dum / filho da puta que não existe chamado / Deus…»?
O subúrbio do Rio de Janeiro, este “inferno sem beira ou piscina de nome/
subúrbio”. Em verdade, o Rio de Janeiro, já que o poema se chama “Rio, subúrbio”. Ou melhor, nada disso, mas certa impressão que toca minha vivência carioca, terceiro-mundista em muitos aspectos, bastante credora do que Pedro Eiras, no posfácio a Telefunken, chama de “Deus, mercadoria”: um pouco as Igrejas Evangélicas e Neo-Evangélicas, febre na maioria dos casos nociva, corrupta, corruptora e torpe, que transforma a poderosa simbologia de Deus no “mais escrito nome duns/ cartazes de publicidade”. Também a insistente pobreza que vitima muitos habitantes de minha cidade, que é, a propósito, muitas vezes “imbecilmente quente”, pois por aqui uma temperatura acima dos 35º é comum. Mas, em certa medida, viver não deixa de ser infernal, tanto pela necessidade de lidar com o outro como pela eventual maravilha da diferença e do desvio. Não é à-toa que Pedro Eiras escolheu como título de seu posfácio um sintagma de “Hélice”, “com esquerda mão”. Isso, sim, me interessa imensamente. Interessa-me também certo comentário de Sebastião Edson Macedo, poeta e amigo que comparece a dois poemas de Telefunken e que me deu o prazer de apresentar o livro no Rio de Janeiro. Ele percebe certo não-inferno em minha poesia, algo como um paraíso em construção ou a construir.
Há mais projectos no ar? Que expectativas na sua viagem a Portugal em duas datas de referência: o 25 de Abril, no Porto e a 1 de Maio, na Feira do Livro de Lisboa?
As datas das apresentações de meu livro em Portugal são inegavelmente significativas, sobretudo a primeira, já que vivo às voltas com a Literatura Portuguesa e 25 de abril é uma das datas a que mais vezes me referi em sala de aula. Além disso, o ano de 1974 é o de meu nascimento, a 16 de fevereiro, o que torna tudo ainda mais propício. Estar bem perto da Literatura Portuguesa faz-me estar bem perto de Portugal, de modo interessado, por vezes crítico mas sempre na esfera da paixão. Desde que comecei a pesquisar Literatura Portuguesa, venho construindo relações muito afetuosas com diversos portugueses que muito me ensinam, e com quem partilho afinidades, interesses e inquietudes. Um pormenor: desde sempre estive com Portugal por perto, em virtude de algo muito forte e pré-literário: a mais antiga de minhas paixões tem por nome Vasco da Gama, e é um Clube de futebol. Portanto, sou “adepto” de um nome português desde sempre.
Projetos? Vários. A Universidade por si só leva seus Professores a constantemente projetar coisas, desde as atividades cotidianas (muitas vezes mais surpreendentes que cotidianas, pois lecionar é de fato uma aventura) até as pesquisas de vulto um bocado mais ambicioso. Não penso que meu terceiro livro de poemas surja em 2009, pois os inéditos ainda não são muitos; isso fica, provavelmente, para 2010. Para este ano, é provável que seja lançado o quinto volume de Portugal, 0 e, talvez, um livro que reúna minhas reflexões sobre música, pois escrevo desde 2000 sobre o tema para uma revista ítalo-brasileira de nome Forum Democratico. Além disso, ensaios, as recensões periódicas para a revista pequena morte, e o que mais possa vir.