Recentemente, surgiu um novo navegador para o Windows, da Apple, chamado Safari (já existia antes para outros sistemas operativos). Evidentemente, é gratuito. Entretanto, estalou a polémica porque a Apple enfiou o navegador nas actualizações automáticas do iTunes; como a maior parte das pessoas aceita o que lhe enfiam no computador, vão ficar com um novo navegador, que tem também a "vantagem" de estar integrado com o iTunes. Quem protestou? Os homens (sim, parece que são sempre homens) do Firefox.
Trocaram-se argumentos de um lado e do outro, mas ninguém queria mencionar o que estava verdadeiramente em causa, porque essa é a alma do novo negócio digital: fingir que se dá coisas às pessoas, ao mesmo tempo que se faz muito dinheiro sem elas se aperceberem disso porque não pagam directamente.
Até que Larry Dignan (ler aqui), da ZDNet, pôs tudo em pratos limpos: o que está em causa é que os homens do Mozzila ganham muito dinheiro do Google com as pesquisas que as pessoas fazem no Firefox; e quantas mais pessoas começarem a usar o Safari da Apple, mais dinheiro do Google vai para a Apple em vez de ir para os bolsos dos homens do Firefox.
Este é o retrato da nova economia digital, baseada na publicidade. O gratuito é uma miragem que sai caro: um mundo com cada vez mais publicidade e cada vez mais controlado pelas grandes companhias que vivem da publicidade, como o Google. E baseado em grande parte no trabalho voluntário de jovens crédulos que pensam que os bons e os maus são fáceis de identificar como nos filmes de Hollywood.
E já agora, se quiser realmente um navegador alternativo, experimente o Opera. É muito melhor do que o Firefox.
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segunda-feira, 24 de março de 2008
sábado, 22 de março de 2008
Eldorado II
A propósito da discussão sobre o pagamento aos criadores, vale a pena ler este Op-ed do NYT: The Royalty Scam, de Billy Bragg.
Tenho mantido uma discussão com o Ludwig, tanto no blog dele como privadamente, sobre este tema. Compreendo melhor as suas ideias, mas não fui persuadido da beleza de uma economia em que as pessoas podem ouvir música, ler livros em PDF e usar software sem pagar directamente aos criadores uma parcela do seu trabalho. Penso que é muito importante explicar às pessoas por que razão devem pagar aos autores do freeware que usam, assim como aos músicos cuja música ouvem, etc. Ao contrário do que Ludwig argumenta, pagar uma parcela aos criadores directamente ou tão directamente quanto possível não é pagar a cópia -- e é nisto que se baseia todo o argumento dele. É pagar uma parcela do trabalho que deu fazer aquilo que depois é copiado tão facilmente.
Esclarecer o público é também importante para que se perceba as diferenças. Por exemplo, se eu pegar numa enciclopédia portuguesa com 90 anos, a digitalizar e a colocar online, não é preciso pagar aos autores originais da enciclopédia, nem faria sentido. Só é preciso pagar-me a mim pelo trabalho de digitalização. Mas se essa enciclopédia depois começa a usar o trabalho de outras pessoas, criadores que actualizam os artigos originais, então esses criadores devem ser pagos.
O que eu acabei de descrever é o que a Wikipédia fez. Mas as únicas pessoas que ganham dinheiro com a Wikipédia são os gestores e o director -- os autores dos artigos nada ganham. Porquê? Porque é gratuita. Sendo gratuita, não gera capital suficiente para pagar aos autores. Mas gera o suficiente para pagar ao director, secretária, advogado, programador, etc.
O mesmo acontece com a campanha Creative Commons. Esta campanha protege os criadores do quê, exactamente? De nada. Qualquer pessoa pode dar o que quiser, para isso não precisa de protecção legal. E as leis existentes já impedem o aproveitamento comercial do que as pessoas criam, sem o seu consentimento. O movimento Creative Commons não tem por objectivo proteger os criadores, mas antes espalhar uma mentalidade na Internet: a mentalidade de que é feio pedir dinheiro pelo trabalho criativo. Não é disto que precisam os criadores. O que os criadores precisam é de campanhas que sensibilizem as pessoas para que elas saibam a importância que é pagar aos criadores sempre que possível, e tão directamente quanto possível. Então para que serve a campanha Creative Commons? Bom, serve para haver algumas pessoas que vivem dos donativos que as pessoas enviam para a campanha. Mas essas pessoas não são os criadores.
O que precisamos é de uma campanha como o Fair Trade, mas para o mundo digital. Precisamos de dar discernimento às pessoas para que saibam que devem pagar todo o freeware que usam, pois só desse modo esses criadores poderão competir com as grandes companhias, como a Microsoft ou a Apple ou a Sun. Que precisam de pagar aos músicos e escritores tão directamente quanto possível, pois só assim poderemos ter criadores independentes. Que precisam de pagar as revistas e jornais online, pois só assim essas revistas e jornais podem manter-se independentes, sem ficarem reféns das grandes companhias que fazem publicidade e dos intermediários da publicidade, como o gigante Google.
Nada disto implica perseguir as pessoas com a polícia, ou proibir o "file sharing". Nada disto implica pagar tudo, incluindo shows de TV que foram feitos e pagos há 40 anos. Há muita coisa que já foi feita há anos, já foi paga e pode ser disponibilizada gratuitamente. Mas para podermos produzir agora coisas novas e de qualidade é preciso que se acabe com a mentalidade borlista que invadiu a Internet.
Tenho mantido uma discussão com o Ludwig, tanto no blog dele como privadamente, sobre este tema. Compreendo melhor as suas ideias, mas não fui persuadido da beleza de uma economia em que as pessoas podem ouvir música, ler livros em PDF e usar software sem pagar directamente aos criadores uma parcela do seu trabalho. Penso que é muito importante explicar às pessoas por que razão devem pagar aos autores do freeware que usam, assim como aos músicos cuja música ouvem, etc. Ao contrário do que Ludwig argumenta, pagar uma parcela aos criadores directamente ou tão directamente quanto possível não é pagar a cópia -- e é nisto que se baseia todo o argumento dele. É pagar uma parcela do trabalho que deu fazer aquilo que depois é copiado tão facilmente.
Esclarecer o público é também importante para que se perceba as diferenças. Por exemplo, se eu pegar numa enciclopédia portuguesa com 90 anos, a digitalizar e a colocar online, não é preciso pagar aos autores originais da enciclopédia, nem faria sentido. Só é preciso pagar-me a mim pelo trabalho de digitalização. Mas se essa enciclopédia depois começa a usar o trabalho de outras pessoas, criadores que actualizam os artigos originais, então esses criadores devem ser pagos.
O que eu acabei de descrever é o que a Wikipédia fez. Mas as únicas pessoas que ganham dinheiro com a Wikipédia são os gestores e o director -- os autores dos artigos nada ganham. Porquê? Porque é gratuita. Sendo gratuita, não gera capital suficiente para pagar aos autores. Mas gera o suficiente para pagar ao director, secretária, advogado, programador, etc.
O mesmo acontece com a campanha Creative Commons. Esta campanha protege os criadores do quê, exactamente? De nada. Qualquer pessoa pode dar o que quiser, para isso não precisa de protecção legal. E as leis existentes já impedem o aproveitamento comercial do que as pessoas criam, sem o seu consentimento. O movimento Creative Commons não tem por objectivo proteger os criadores, mas antes espalhar uma mentalidade na Internet: a mentalidade de que é feio pedir dinheiro pelo trabalho criativo. Não é disto que precisam os criadores. O que os criadores precisam é de campanhas que sensibilizem as pessoas para que elas saibam a importância que é pagar aos criadores sempre que possível, e tão directamente quanto possível. Então para que serve a campanha Creative Commons? Bom, serve para haver algumas pessoas que vivem dos donativos que as pessoas enviam para a campanha. Mas essas pessoas não são os criadores.
O que precisamos é de uma campanha como o Fair Trade, mas para o mundo digital. Precisamos de dar discernimento às pessoas para que saibam que devem pagar todo o freeware que usam, pois só desse modo esses criadores poderão competir com as grandes companhias, como a Microsoft ou a Apple ou a Sun. Que precisam de pagar aos músicos e escritores tão directamente quanto possível, pois só assim poderemos ter criadores independentes. Que precisam de pagar as revistas e jornais online, pois só assim essas revistas e jornais podem manter-se independentes, sem ficarem reféns das grandes companhias que fazem publicidade e dos intermediários da publicidade, como o gigante Google.
Nada disto implica perseguir as pessoas com a polícia, ou proibir o "file sharing". Nada disto implica pagar tudo, incluindo shows de TV que foram feitos e pagos há 40 anos. Há muita coisa que já foi feita há anos, já foi paga e pode ser disponibilizada gratuitamente. Mas para podermos produzir agora coisas novas e de qualidade é preciso que se acabe com a mentalidade borlista que invadiu a Internet.
quinta-feira, 13 de março de 2008
O jardineiro digital
O Ludwig volta hoje à sua defesa da cópia gratuita indiscriminada e eu quero sublinhar duas coisas.
A primeira é que os seus argumentos são falaciosos. Um dos argumentos usados é que o sistema actual de copyright é injusto, dando o exemplo do que ganham os grandes cineastas por comparação com as outras pessoas que trabalharam no filme, e referindo o facto de a maior parte da música ser controlada por apenas quatro empresas.
Destes exemplos não se segue que o sistema proposto por Ludwig é melhor. Segue-se apenas que o sistema actual não é bom. É falacioso argumentar que ou ficamos com o sistema actual ou ficamos com um sistema em que toda a gente pode copiar tudo sem pagar. É falacioso porque entre uma coisa e outra há muitas alternativas viáveis, que é fácil descobrir se tivermos um pouco de imaginação.
O outro argumento é o do jardineiro. O Ludwig está sempre a argumentar por analogia a favor do seu ponto de vista, mas as suas analogias raramente são procedentes. E neste caso é claramente falaciosa. Para ser correcta, teria de ser assim: eu sou jardineiro e decido arranjar o jardim público do meu bairro, que está uma vergonha. Toda a gente do bairro que vai ao jardim vai usufruir do meu trabalho. Quem me paga e como, e como é mais justo que me paguem? Estas são as verdadeiras questões, mas a resposta não é favorável ao Ludwig. Porque é óbvio que o mais sensato é que todas as pessoas que usufruem do meu trabalho me paguem, e não apenas dois ou três que pagam para todos os outros. E também não faz muito sentido que eu seja pago por toda a população do país, transformando-me em funcionário público, pois basta que as pessoas vivam a dez quilómetros do meu bairro e já não usufruem do meu trabalho.
O segundo aspecto que quero sublinhar é o seguinte. O que está em causa não é saber se é possível ou não eliminar as cópias ilegais. O que está em causa não é saber se as leis actuais de propriedade intelectual são as melhores. O que está em causa nem é sequer saber se a criação intelectual é possível caso se tornasse legal copiar tudo indiscriminadamente. O que está em causa é unicamente saber se o tipo de mundo que teremos caso se copie tudo indiscriminadamente é realmente melhor do que o que temos hoje. E a minha resposta é que não é. Poderá não ser pior, mas não é melhor. E é aí que o sonho da internet morreu cedo, apesar de alguns ainda continuarem a dormir.
O Ludwig fala das grandes discográficas, mas no mundo que ele deseja as coisas serão pelo menos idênticas. Porque no mundo em que o criador não pode ganhar a vida cobrando dois euros a quem puxar a sua música da internet, o criador só pode viver de duas maneiras. Ou recorrendo à publicidade, ou integrando-se numa grande companhia — que por sua vez vive da publicidade. Ora, a publicidade na internet só é lucrativa quando atinge milhões de pessoas. É por isso que o mundo que o Ludwig apregoa como se fosse excelente é um mundo das grandes companhias, pois são elas que controlam a publicidade; das grandes companhias, porque são elas que fazem publicidade a si mesmas; e da publicidade em tudo quanto é canto, porque se ninguém pagar directamente os trabalhos intelectuais de que usufrui, tem de pagar por via da publicidade. E a ironia deste mundo económico é que o criador é quem ganha a menor percentagem do dinheiro que ele mesmo gerou -- tal e qual como hoje.
Veja-se o caso do jornalismo. Quando surgiu a internet pensou-se que seria maravilhoso: quaisquer cinco bons jornalistas poderiam fartar-se da dependência directa da publicidade, que muitas vezes condiciona o trabalho que se pode fazer. Poderiam ser verdadeiramente independentes. Como? Fazendo um jornal digital. Como os custos são mínimos, as pessoas pagariam o mesmo ou menos do que pagam pelo jornal em papel, todo o seu dinheiro seria directamente usado para pagar aos jornalistas (que receberiam uma maior percentagem das receitas geradas pelo jornal) e teriam jornalismo de alta qualidade, profissional e totalmente independente dos grandes grupos económicos, porque seria independente da publicidade.
O sonho morreu cedo. As pessoas não pagam na internet — foi essa a mentalidade que se instalou e que o Ludwig aplaude. E porque não pagam, não temos jornalismo independente na internet. Temos infelizmente apenas duas alternativas: amadores e jornais tradicionais, que vivem da publicidade. Este não é um mundo melhor do que era antes. É apenas ligeiramente diferente. Mas o que é desencorajante é pensar quão melhor o mundo poderia ser — e é desencorajante pensar que se possa aplaudir a mentalidade borlista que cedo matou o sonho que era a internet.
A primeira é que os seus argumentos são falaciosos. Um dos argumentos usados é que o sistema actual de copyright é injusto, dando o exemplo do que ganham os grandes cineastas por comparação com as outras pessoas que trabalharam no filme, e referindo o facto de a maior parte da música ser controlada por apenas quatro empresas.
Destes exemplos não se segue que o sistema proposto por Ludwig é melhor. Segue-se apenas que o sistema actual não é bom. É falacioso argumentar que ou ficamos com o sistema actual ou ficamos com um sistema em que toda a gente pode copiar tudo sem pagar. É falacioso porque entre uma coisa e outra há muitas alternativas viáveis, que é fácil descobrir se tivermos um pouco de imaginação.
O outro argumento é o do jardineiro. O Ludwig está sempre a argumentar por analogia a favor do seu ponto de vista, mas as suas analogias raramente são procedentes. E neste caso é claramente falaciosa. Para ser correcta, teria de ser assim: eu sou jardineiro e decido arranjar o jardim público do meu bairro, que está uma vergonha. Toda a gente do bairro que vai ao jardim vai usufruir do meu trabalho. Quem me paga e como, e como é mais justo que me paguem? Estas são as verdadeiras questões, mas a resposta não é favorável ao Ludwig. Porque é óbvio que o mais sensato é que todas as pessoas que usufruem do meu trabalho me paguem, e não apenas dois ou três que pagam para todos os outros. E também não faz muito sentido que eu seja pago por toda a população do país, transformando-me em funcionário público, pois basta que as pessoas vivam a dez quilómetros do meu bairro e já não usufruem do meu trabalho.
O segundo aspecto que quero sublinhar é o seguinte. O que está em causa não é saber se é possível ou não eliminar as cópias ilegais. O que está em causa não é saber se as leis actuais de propriedade intelectual são as melhores. O que está em causa nem é sequer saber se a criação intelectual é possível caso se tornasse legal copiar tudo indiscriminadamente. O que está em causa é unicamente saber se o tipo de mundo que teremos caso se copie tudo indiscriminadamente é realmente melhor do que o que temos hoje. E a minha resposta é que não é. Poderá não ser pior, mas não é melhor. E é aí que o sonho da internet morreu cedo, apesar de alguns ainda continuarem a dormir.
O Ludwig fala das grandes discográficas, mas no mundo que ele deseja as coisas serão pelo menos idênticas. Porque no mundo em que o criador não pode ganhar a vida cobrando dois euros a quem puxar a sua música da internet, o criador só pode viver de duas maneiras. Ou recorrendo à publicidade, ou integrando-se numa grande companhia — que por sua vez vive da publicidade. Ora, a publicidade na internet só é lucrativa quando atinge milhões de pessoas. É por isso que o mundo que o Ludwig apregoa como se fosse excelente é um mundo das grandes companhias, pois são elas que controlam a publicidade; das grandes companhias, porque são elas que fazem publicidade a si mesmas; e da publicidade em tudo quanto é canto, porque se ninguém pagar directamente os trabalhos intelectuais de que usufrui, tem de pagar por via da publicidade. E a ironia deste mundo económico é que o criador é quem ganha a menor percentagem do dinheiro que ele mesmo gerou -- tal e qual como hoje.
Veja-se o caso do jornalismo. Quando surgiu a internet pensou-se que seria maravilhoso: quaisquer cinco bons jornalistas poderiam fartar-se da dependência directa da publicidade, que muitas vezes condiciona o trabalho que se pode fazer. Poderiam ser verdadeiramente independentes. Como? Fazendo um jornal digital. Como os custos são mínimos, as pessoas pagariam o mesmo ou menos do que pagam pelo jornal em papel, todo o seu dinheiro seria directamente usado para pagar aos jornalistas (que receberiam uma maior percentagem das receitas geradas pelo jornal) e teriam jornalismo de alta qualidade, profissional e totalmente independente dos grandes grupos económicos, porque seria independente da publicidade.
O sonho morreu cedo. As pessoas não pagam na internet — foi essa a mentalidade que se instalou e que o Ludwig aplaude. E porque não pagam, não temos jornalismo independente na internet. Temos infelizmente apenas duas alternativas: amadores e jornais tradicionais, que vivem da publicidade. Este não é um mundo melhor do que era antes. É apenas ligeiramente diferente. Mas o que é desencorajante é pensar quão melhor o mundo poderia ser — e é desencorajante pensar que se possa aplaudir a mentalidade borlista que cedo matou o sonho que era a internet.
quarta-feira, 12 de março de 2008
A utopia do custo zero
A propósito da viva discussão mantida por Desidério Murcho com Ludwig Krippahl sobre a cópia gratuita indiscriminada de ficheiros na Internet, convidámos o economista Álvaro Santos Pereira para nos dar a sua perspectiva sobre o tema. Álvaro Santos Pereira é professor na Universidade de York, autor do blog Desmitos e dos livros Diário de um Deus Criacionista e Os Mitos da Economia Portuguesa (ambos na Guerra & Paz).
Em Outubro de 2007, os Radiohead decidiram colocar o seu novo álbum na internet, pedindo somente às pessoas que pagassem “um preço justo”. A iniciativa teve um sucesso extraordinário. No primeiro dia na Net, o álbum dos Radiohead foi descarregado por mais de um milhão de pessoas, muitas das quais optaram por pagar zero libras (ou euros ou dólares). De forma semelhante, uma das inovações mais recentes no mundo académico é a introdução de manuais escolares (“textbooks”) a custo zero para os estudantes. Os estudantes fazem o download dos livros sem pagar, com a pequena contrapartida de serem expostos à publicidade dos patrocinadores destes sites (como este e este).
E assim surge a questão inevitável: será a iniciativa dos Radiohead o prenúncio daquilo que está para vir? Serão os manuais escolares a custo zero uma revolução, como é publicitado pelos seus promotores? Será o preço zero a tendência do futuro? Será o preço zero inevitável com o crescente desenvolvimento da internet (e por causa da pirataria)?
A resposta a estas perguntas até pode ser afirmativa. No entanto, não é crível que o seja num futuro mais próximo. Para percebermos o porquê, imagine outro cenário. Suponha que decide escrever um livro. Já sabe o tema, já decidiu como proceder, e até pensa que o livro possa ser bastante inovador. No entanto, imaginemos que, de antemão, sabe que o livro será pirateado na internet ou será distribuído a preço zero. O que fazer? Vale ou não a pena escrever o livro, despendendo recursos e tempo precioso para o fazer? O(a) leitor(a) até pode decidir ir em frente com o projecto. Contudo, não pertencerá à maioria. Com efeito, se fizermos uma sondagem a escritores, cientistas, inventores ou outros criadores, é mais que certo que o preço zero simplesmente não seja opção para a grande maioria deles(as). Não é toa que se inventaram patentes. Exactamente para recompensar os criadores do esforço (e do investimento) empreendido.
Ora, não há qualquer evidência empírica que o número de patentes tenha diminuído nos últimos anos com a “chegada” do custo zero. Muito pelo contrário. Em todos os países, o número de patentes tem crescido a olhos vistos. Além do mais, se pensarmos nas novas tecnologias em desenvolvimento hoje em dia (como a biotecnologia, a nanotecnologia, a robótica, etc.), nenhuma ou quase nenhuma será vendida a preço zero. Porquê? Porque desenvolver e aperfeiçoar estas tecnologias é caro, muito caro mesmo. E ainda por cima existe uma grande incerteza quer quanto ao sucesso quer quanto à rendibilidade dessas tecnologias inovadoras. Só quando há uma garantia de (potenciais) lucros futuros é que as empresas investem nessas tecnologias. Por isso, é difícil acreditar que o preço zero se irá tornar numa realidade com aplicação generalizada.
Aliás, a nível económico, a existência de compensação para os inventores é fundamental para a continuação do processo inovativo. Sem compensação, não existirão incentivos à inovação. A remuneração pode ser monetária ou não (por exemplo, escrever artigos académicos quase nunca melhora o salário de quem os escreve, mas pode aumentar o prestígio profissional do seu autor(a)), mas tem de existir. Se não houver compensação deixa de haver processo criativo. (Neste sentido, o exemplo dos Radiohead não é o melhor. Os Radiohead são uma banda de culto. Muitos dos fãs que fizeram o download do álbum optaram por pagar, porque, se não o fizessem, poderiam estar a ofender os seus ídolos. O mesmo não se passará com outras bandas ou artistas.)
A mesma lógica aplica-se perfeitamente à pirataria. Existem fortes incentivos para a combater, porque, se tal não acontecer, é o próprio processo criativo que fica em causa. São os incentivos à criação e à inventividade que são comprometidos. Com efeito, o copyright não está morto. O que está moribundo são algumas das nossas leis e normas que regulam estes copyrights. No fundo, o que se passa actualmente é que as tecnologias têm evoluído a uma taxa muito mais rápida do que as próprias leis. Porque é que o Napster teve tanto sucesso e ameaçou tombar alguns dos gigantes da indústria discográfica? Porque antes da internet existir, não tínhamos leis para regular o download de música na internet. Isto é, a legislação seguiu a tecnologia, contrariamente ao que é habitual. E vai levar algum tempo até termos legislação adequada para lidar com este tipo de situações completamente novas.
Por outro lado, a tecnologia também tem crescido mais rapidamente do que os mecanismos de controlo e de combate à pirataria. É por este motivo que uma das áreas da internet em mais rápida expansão é o desenvolvimento de processos de encriptação e segurança de dados. Obviamente, as centenas de milhões de dólares despendidas nesta área não se destinam propriamente a promover a utopia do custo zero.
Em suma, o custo zero é uma miragem. A sua utilização será sempre mais pontual do que muitas vezes nos levam a crer e o seu impacto no processo criativo será sempre limitado. E mesmo que seja praticado (como no caso dos jornais com edições na internet), certamente que existirão mecanismos compensatórios para os criadores (como a publicidade nos jornais na Net ou nos jornais de distribuição gratuita). É que, como dizem os economistas, infelizmente, não há almoços grátis. E não é a internet que vai mudar este facto.
Álvaro Santos Pereira
Em Outubro de 2007, os Radiohead decidiram colocar o seu novo álbum na internet, pedindo somente às pessoas que pagassem “um preço justo”. A iniciativa teve um sucesso extraordinário. No primeiro dia na Net, o álbum dos Radiohead foi descarregado por mais de um milhão de pessoas, muitas das quais optaram por pagar zero libras (ou euros ou dólares). De forma semelhante, uma das inovações mais recentes no mundo académico é a introdução de manuais escolares (“textbooks”) a custo zero para os estudantes. Os estudantes fazem o download dos livros sem pagar, com a pequena contrapartida de serem expostos à publicidade dos patrocinadores destes sites (como este e este).
E assim surge a questão inevitável: será a iniciativa dos Radiohead o prenúncio daquilo que está para vir? Serão os manuais escolares a custo zero uma revolução, como é publicitado pelos seus promotores? Será o preço zero a tendência do futuro? Será o preço zero inevitável com o crescente desenvolvimento da internet (e por causa da pirataria)?
A resposta a estas perguntas até pode ser afirmativa. No entanto, não é crível que o seja num futuro mais próximo. Para percebermos o porquê, imagine outro cenário. Suponha que decide escrever um livro. Já sabe o tema, já decidiu como proceder, e até pensa que o livro possa ser bastante inovador. No entanto, imaginemos que, de antemão, sabe que o livro será pirateado na internet ou será distribuído a preço zero. O que fazer? Vale ou não a pena escrever o livro, despendendo recursos e tempo precioso para o fazer? O(a) leitor(a) até pode decidir ir em frente com o projecto. Contudo, não pertencerá à maioria. Com efeito, se fizermos uma sondagem a escritores, cientistas, inventores ou outros criadores, é mais que certo que o preço zero simplesmente não seja opção para a grande maioria deles(as). Não é toa que se inventaram patentes. Exactamente para recompensar os criadores do esforço (e do investimento) empreendido.
Ora, não há qualquer evidência empírica que o número de patentes tenha diminuído nos últimos anos com a “chegada” do custo zero. Muito pelo contrário. Em todos os países, o número de patentes tem crescido a olhos vistos. Além do mais, se pensarmos nas novas tecnologias em desenvolvimento hoje em dia (como a biotecnologia, a nanotecnologia, a robótica, etc.), nenhuma ou quase nenhuma será vendida a preço zero. Porquê? Porque desenvolver e aperfeiçoar estas tecnologias é caro, muito caro mesmo. E ainda por cima existe uma grande incerteza quer quanto ao sucesso quer quanto à rendibilidade dessas tecnologias inovadoras. Só quando há uma garantia de (potenciais) lucros futuros é que as empresas investem nessas tecnologias. Por isso, é difícil acreditar que o preço zero se irá tornar numa realidade com aplicação generalizada.
Aliás, a nível económico, a existência de compensação para os inventores é fundamental para a continuação do processo inovativo. Sem compensação, não existirão incentivos à inovação. A remuneração pode ser monetária ou não (por exemplo, escrever artigos académicos quase nunca melhora o salário de quem os escreve, mas pode aumentar o prestígio profissional do seu autor(a)), mas tem de existir. Se não houver compensação deixa de haver processo criativo. (Neste sentido, o exemplo dos Radiohead não é o melhor. Os Radiohead são uma banda de culto. Muitos dos fãs que fizeram o download do álbum optaram por pagar, porque, se não o fizessem, poderiam estar a ofender os seus ídolos. O mesmo não se passará com outras bandas ou artistas.)
A mesma lógica aplica-se perfeitamente à pirataria. Existem fortes incentivos para a combater, porque, se tal não acontecer, é o próprio processo criativo que fica em causa. São os incentivos à criação e à inventividade que são comprometidos. Com efeito, o copyright não está morto. O que está moribundo são algumas das nossas leis e normas que regulam estes copyrights. No fundo, o que se passa actualmente é que as tecnologias têm evoluído a uma taxa muito mais rápida do que as próprias leis. Porque é que o Napster teve tanto sucesso e ameaçou tombar alguns dos gigantes da indústria discográfica? Porque antes da internet existir, não tínhamos leis para regular o download de música na internet. Isto é, a legislação seguiu a tecnologia, contrariamente ao que é habitual. E vai levar algum tempo até termos legislação adequada para lidar com este tipo de situações completamente novas.
Por outro lado, a tecnologia também tem crescido mais rapidamente do que os mecanismos de controlo e de combate à pirataria. É por este motivo que uma das áreas da internet em mais rápida expansão é o desenvolvimento de processos de encriptação e segurança de dados. Obviamente, as centenas de milhões de dólares despendidas nesta área não se destinam propriamente a promover a utopia do custo zero.
Em suma, o custo zero é uma miragem. A sua utilização será sempre mais pontual do que muitas vezes nos levam a crer e o seu impacto no processo criativo será sempre limitado. E mesmo que seja praticado (como no caso dos jornais com edições na internet), certamente que existirão mecanismos compensatórios para os criadores (como a publicidade nos jornais na Net ou nos jornais de distribuição gratuita). É que, como dizem os economistas, infelizmente, não há almoços grátis. E não é a internet que vai mudar este facto.
Álvaro Santos Pereira
quarta-feira, 5 de março de 2008
O Eldorado Digital
A minha discussão com o Ludwig tem continuado viva (aqui e aqui e ainda aqui e aqui), e muitos leitores têm participado, defendendo uma e outra posição. Quero esclarecer neste post algumas ideias fundamentais.
Eu compreendo a ideia original dos que defendem a cópia sem compensação aos autores. De repente, parece um Eldorado Digital: a um custo mínimo, toda a gente vai poder ouvir Bach. Toda a gente vai poder puxar seja o que for da Internet e usufruir disso sem pagar. Não é maravilhoso? Como se pode ser tão casmurro que não se festeje tal coisa?
Esta é a ideologia do momento. É muito popular em muitos blogs e fóruns da Internet. É quase a ideologia oficial dos nerds. E eu atrevi-me a argumentar contra isso. Mas porquê? Porque o resultado final da cópia gratuita sem compensação aos autores não tem os resultados que os seus defensores pensam que tem. E este é o aspecto fundamental. Por isso insisti desde a primeira hora que não me interessa a metafísica do valor, a metafísica da cópia, nada disso. Nem isto interessa verdadeiramente aos defensores da cópia gratuita sem compensação aos autores. Este tipo de conversa é só uma tentativa de justificação de uma ideia que é defendida não por causa de tais justificações, mas porque se imagina que terá efeitos maravilhosos: toda a gente com acesso à cultura de borla, as grandes companhias e capitais a capitular finalmente perante o poder do Zé-ninguém. É quase bom demais para ser verdade. E o problema é que não é mesmo verdade.
É muito desagradável destruir sonhos bonitos. Daí que a discussão fique num impasse. Independentemente dos argumentos que qualquer pessoa possa apresentar, os defensores da cópia gratuita sem compensação aos autores não irão mudar de ideias, porque investiram num sonho o seu modo de vida, os seus afectos, e comprometeram a sua racionalidade. Não reagem à argumentação cuidadosa porque independentemente do que seja a realidade, querem manter o sonho. (E querem continuar a copiar coisas de graça.) É compreensível. Mas é um erro.
Os factos empíricos são estes. Quando oferecemos algo de graça na Internet e pedimos um donativo voluntário, só 1% aproximadamente dos consumidores paga. O mesmo acontece quando oferecemos um serviço como o Flickr, e depois pedimos dinheiro para ter certas funcionalidades complementares.
O que significa isto? Significa que para um criador poder viver de uma coisa dessas tem de atingir milhões de pessoas — para que o que 1% delas paga seja suficiente para viver disso. Logo, tais negócios só são viáveis para as grandes empresas: Google, Yahoo, Microsoft... não há assim tantas no mundo todo. É por isso que não há empresas pequenas, com apenas um engenheiro, a oferecer tais serviços. Nem software. Nem música. Neste modelo, só se pode viver de tais criações quando o que se faz atinge milhões de pessoas. Se o número de pessoas que usa o serviço for de apenas 20 mil, o criador não consegue viver do seu trabalho. Mas conseguiria, se todas pagassem uma ninharia. Isto tanto se aplica ao software como à música ou aos livros.
Quando surgiu a Internet parecia realmente um Eldorado Digital. Subitamente, os custos de distribuição de bens digitais estavam quase reduzidos a zero. Qualquer autor de um livro, de um software, de uma música, poderia vender directamente o seu trabalho na Internet. Mesmo que tivesse apenas mil fãs, isso seria em muitos casos suficiente para poder viver das suas criações. E isso seria bom, porque iria estimular a diversidade. Os criadores não teriam de trabalhar noutra coisa qualquer; poderiam entregar-se integralmente à sua música, ao seu software, aos seus livros. Não teriam de se preocupar muito com a chatice de saber como vão ganhar a vida — algo que só quem não viveu a vida toda à sombra da família ou do estado pode compreender. Poderiam dedicar-se a fazer o que melhor sabem fazer, e vender directamente o seu trabalho aos seus fãs. Não teriam de pensar em estratégias enviesadas para poder viver da sua música ou do seu software.
O sonho do Eldorado morreu cedo, com as cópias gratuitas sem pagamento aos autores. Mesmo que um criador faça algo que é usado quase diariamente por 20 mil pessoas, só 1% delas paga uns patacos voluntariamente. E isso não é suficiente para esse criador viver da sua criatividade. Terá de trabalhar numa universidade ou numa empresa — quer o seu trabalho tenha relação com a sua criatividade quer não. Isto é particularmente preocupante porque, historicamente, as pessoas que mais contribuíram para os avanços das ciências, das artes e da filosofia foram muitas vezes criadores independentes, que foram activamente excluídos das universidades. Como todas as instituições complexas e pesadas, as universidades e as grandes empresas tendem a repetir coisas, a ir por caminhos seguros, e não a ser inovadoras. A cópia gratuita sem pagamento aos autores produz monolitismo e estagnação porque os criadores independentes não podem viver do seu trabalho criativo. Para ter uma sociedade saudável e criativa é importante haver diversidade: criadores universitários, criadores empresários, criadores independentes. Defender que todos os criadores devem ser professores universitários, como se isso fosse uma coisa boa, é uma aberração.
Talvez não seja possível impedir as cópias ilegais. Mas aplaudir tal coisa, como se isso fosse um passo em frente para a humanidade, é uma palermice. Na verdade, é um salto atrás, e dos grandes. Um salto na direcção das grandes companhias ultrapoderosas, pois só elas sobrevivem neste tipo de economia. Um salto na mesma direcção que já foi seguida pela televisão aberta: os produtos são pagos pela publicidade, o que significa que somos bombardeados com publicidade a torto e a direito: hoje em dia, na maior parte da Internet falsamente gratuita, quase toda a largura de banda é consumida com publicidade. E quase todos os emails a circular no mundo são spam, que é apenas publicidade. No falsamente maravilhoso mundo digital gratuito, a publicidade impera. Chegará o dia em que um músico, para poder sobreviver sem trabalhar noutra coisa, tem de ser financiado pela Nike, e fazer publicidade à Nike no meio das suas músicas? Aplaudir este estado de coisas é uma das grandes ilusões do nosso tempo.
Eu compreendo a ideia original dos que defendem a cópia sem compensação aos autores. De repente, parece um Eldorado Digital: a um custo mínimo, toda a gente vai poder ouvir Bach. Toda a gente vai poder puxar seja o que for da Internet e usufruir disso sem pagar. Não é maravilhoso? Como se pode ser tão casmurro que não se festeje tal coisa?
Esta é a ideologia do momento. É muito popular em muitos blogs e fóruns da Internet. É quase a ideologia oficial dos nerds. E eu atrevi-me a argumentar contra isso. Mas porquê? Porque o resultado final da cópia gratuita sem compensação aos autores não tem os resultados que os seus defensores pensam que tem. E este é o aspecto fundamental. Por isso insisti desde a primeira hora que não me interessa a metafísica do valor, a metafísica da cópia, nada disso. Nem isto interessa verdadeiramente aos defensores da cópia gratuita sem compensação aos autores. Este tipo de conversa é só uma tentativa de justificação de uma ideia que é defendida não por causa de tais justificações, mas porque se imagina que terá efeitos maravilhosos: toda a gente com acesso à cultura de borla, as grandes companhias e capitais a capitular finalmente perante o poder do Zé-ninguém. É quase bom demais para ser verdade. E o problema é que não é mesmo verdade.
É muito desagradável destruir sonhos bonitos. Daí que a discussão fique num impasse. Independentemente dos argumentos que qualquer pessoa possa apresentar, os defensores da cópia gratuita sem compensação aos autores não irão mudar de ideias, porque investiram num sonho o seu modo de vida, os seus afectos, e comprometeram a sua racionalidade. Não reagem à argumentação cuidadosa porque independentemente do que seja a realidade, querem manter o sonho. (E querem continuar a copiar coisas de graça.) É compreensível. Mas é um erro.
Os factos empíricos são estes. Quando oferecemos algo de graça na Internet e pedimos um donativo voluntário, só 1% aproximadamente dos consumidores paga. O mesmo acontece quando oferecemos um serviço como o Flickr, e depois pedimos dinheiro para ter certas funcionalidades complementares.
O que significa isto? Significa que para um criador poder viver de uma coisa dessas tem de atingir milhões de pessoas — para que o que 1% delas paga seja suficiente para viver disso. Logo, tais negócios só são viáveis para as grandes empresas: Google, Yahoo, Microsoft... não há assim tantas no mundo todo. É por isso que não há empresas pequenas, com apenas um engenheiro, a oferecer tais serviços. Nem software. Nem música. Neste modelo, só se pode viver de tais criações quando o que se faz atinge milhões de pessoas. Se o número de pessoas que usa o serviço for de apenas 20 mil, o criador não consegue viver do seu trabalho. Mas conseguiria, se todas pagassem uma ninharia. Isto tanto se aplica ao software como à música ou aos livros.
Quando surgiu a Internet parecia realmente um Eldorado Digital. Subitamente, os custos de distribuição de bens digitais estavam quase reduzidos a zero. Qualquer autor de um livro, de um software, de uma música, poderia vender directamente o seu trabalho na Internet. Mesmo que tivesse apenas mil fãs, isso seria em muitos casos suficiente para poder viver das suas criações. E isso seria bom, porque iria estimular a diversidade. Os criadores não teriam de trabalhar noutra coisa qualquer; poderiam entregar-se integralmente à sua música, ao seu software, aos seus livros. Não teriam de se preocupar muito com a chatice de saber como vão ganhar a vida — algo que só quem não viveu a vida toda à sombra da família ou do estado pode compreender. Poderiam dedicar-se a fazer o que melhor sabem fazer, e vender directamente o seu trabalho aos seus fãs. Não teriam de pensar em estratégias enviesadas para poder viver da sua música ou do seu software.
O sonho do Eldorado morreu cedo, com as cópias gratuitas sem pagamento aos autores. Mesmo que um criador faça algo que é usado quase diariamente por 20 mil pessoas, só 1% delas paga uns patacos voluntariamente. E isso não é suficiente para esse criador viver da sua criatividade. Terá de trabalhar numa universidade ou numa empresa — quer o seu trabalho tenha relação com a sua criatividade quer não. Isto é particularmente preocupante porque, historicamente, as pessoas que mais contribuíram para os avanços das ciências, das artes e da filosofia foram muitas vezes criadores independentes, que foram activamente excluídos das universidades. Como todas as instituições complexas e pesadas, as universidades e as grandes empresas tendem a repetir coisas, a ir por caminhos seguros, e não a ser inovadoras. A cópia gratuita sem pagamento aos autores produz monolitismo e estagnação porque os criadores independentes não podem viver do seu trabalho criativo. Para ter uma sociedade saudável e criativa é importante haver diversidade: criadores universitários, criadores empresários, criadores independentes. Defender que todos os criadores devem ser professores universitários, como se isso fosse uma coisa boa, é uma aberração.
Talvez não seja possível impedir as cópias ilegais. Mas aplaudir tal coisa, como se isso fosse um passo em frente para a humanidade, é uma palermice. Na verdade, é um salto atrás, e dos grandes. Um salto na direcção das grandes companhias ultrapoderosas, pois só elas sobrevivem neste tipo de economia. Um salto na mesma direcção que já foi seguida pela televisão aberta: os produtos são pagos pela publicidade, o que significa que somos bombardeados com publicidade a torto e a direito: hoje em dia, na maior parte da Internet falsamente gratuita, quase toda a largura de banda é consumida com publicidade. E quase todos os emails a circular no mundo são spam, que é apenas publicidade. No falsamente maravilhoso mundo digital gratuito, a publicidade impera. Chegará o dia em que um músico, para poder sobreviver sem trabalhar noutra coisa, tem de ser financiado pela Nike, e fazer publicidade à Nike no meio das suas músicas? Aplaudir este estado de coisas é uma das grandes ilusões do nosso tempo.
sábado, 1 de março de 2008
Regresso a zero
O Ludwig retoma hoje o tema da propriedade intelectual, que tem abordado já várias vezes. Discordo da posição dele e quero explicar porquê, apesar de eu não perceber nada da economia da produção intelectual, nem da legislação dos direitos de autor, nem da situação económica dos grandes editores de discos e livros. Mas apesar desta ignorância, há um aspecto que me parece claro. Vejamos qual.
Pergunta Ludwig: o que torna errado copiar ilegalmente um livro ou um CD? Não pode ser o facto de tirarmos o livro ou CD ao autor, porque nos limitámos a fazer uma cópia e ele ficou com outro — não é parecido a ir a casa dele e roubar-lhe o carro. E continua Ludwig:
“Então deve ser errado neste caso porque permite que alguém goze a música sem recompensar o criador. Mas isto implica ser errado emprestar o CD, tocá-lo ao pé dos amigos ou comprá-lo em segunda mão.”
Ludwig está a repetir um argumento já muitas vezes usado: se fosse errada a partilha ilegal de ficheiros, então essas outras coisas que podemos legalmente fazer teriam de ser também erradas; mas dado que nenhuma dessas outras coisas é errada, então a partilha ilegal de ficheiros também não é errada.
O argumento é válido (é um modus tollens) mas a primeira premissa é falsa. Porquê? Porque pressupõe que a nossa vida legal e económica tem de ter a precisão da física ou da matemática. Mas não tem. A nossa vida legal e económica é um enleio de coisas que são decididas em função das consequências que têm, más ou não. Emprestar CDs ou livros ou vendê-los em segunda mão nada tem de errado porque não põe em causa a sustentabilidade económica dos autores. Nada mais. Não há nada mais profundo, mais metafísico, mais geral, mais axiomático. É só isto mesmo.
Ora, o argumento invocado por Ludwig é o seguinte: dado que não há princípios gerais axiomáticos absolutamente visíveis que regulem estas coisas, não podemos invocá-los para explicar o que há de errado na partilha ilegal de ficheiros.
Mas também não temos princípios desses absolutamente à prova de fogo para explicar a maior parte das nossas opções na vida — casar com quem casámos, comprar a casa que comprámos, ter a profissão que temos, usar o tipo de roupa que usamos. A vida é mesmo assim: não é um modelo matemático todo arrumadinho. É uma bagunça.
É indefensável a livre partilha de livros e música na Internet contra a vontade dos seus autores. Mas é claro que há quem defenda o indefensável só porque quer ouvir música sem pagar ou ler sem pagar ou usar software sem pagar. E há quem defenda o indefensável porque vê na partilha de ficheiros a possibilidade de se voltar à economia comunista que falhou nos países comunistas. Quando o Ludwig explica como vão viver os autores de livros, os músicos, os actores de cinema, responde que façam como ele: é funcionário público, e depois oferece de borla as suas tretas e notas de aulas e tal. Ora, é precisamente isto que está profundamente errado. No dia em que para se ser músico ou escritor for preciso ser professor ou padeiro ou taxista, teremos dado um passo atrás, e um monstruoso passo atrás. É importante que haja diversidade; que alguns escritores sejam professores e possam oferecer as suas tretas de borla na Internet, mas que outros vivam directamente da escrita de livros.
O que está em causa é apenas isto mesmo: a sustentabilidade económica dos criadores. É pura e simplesmente falso que um músico ou um escritor possa viver do seu trabalho se o produto desse trabalho puder ser copiado livremente. É pura e simplesmente falso que as pessoas vão pagar-lhe porque são boazinhas: em todos os casos em que é possível ter as coisas sem pagar e sem ser preso, só uma percentagem irrelevante das pessoas pagam de livre vontade (não conheço qualquer estudo sobre isso, mas prevejo que essa percentagem seja cerca de 1% na Internet, onde há muito software que só pagamos se quisermos). Os futebolistas famosos são muito ricos porque as pessoas não podem evitar pagar para os ver. Mas sempre que há jogos de futebol não se pede às pessoas para pagar só se lhes der na telha ou se forem muito responsáveis e boazinhas. Caso se fizesse tal coisa acabaria a viabilidade económica do futebolista profissional: teriam de ser todos padeiros, taxistas ou professores universitários e depois ir dar uns chutos nas horas vagas. No caso do futebol, até nem se perdia nada e talvez se ganhasse, mas no caso da criação intelectual perdia-se diversidade, autonomia, independência relativamente a instituições, individualismo -- e a qualidade que resulta da dedicação exclusiva, porque os criadores teriam todos de se sustentar a vender qualquer coisa física para poderem depois dar ao mundo aquela coisa que por não ser física e se poder copiar facilmente o Ludwig acha que não vale a pena pagar.
O post vai longo, mas quero terminar com mais duas observações.
Primeiro: quando alguém nas horas vagas oferece livros ou música ao pessoal porque não os consegue vender, está de facto a subsidiar indirectamente a sua actividade criativa. Imagine-se que eu sou mecânico de automóveis e toco pífaro nas horas vagas. Meto as minhas músicas na Internet, mil pessoas por mês fazem o download mas só umas 10 pagam 3 euros. Mal me dá para pagar o servidor e tal, mas eu faço-o porque gosto de música. Ora bem, a pergunta é esta: quem está na verdade a pagar a minha música? Evidentemente, são os clientes da minha oficina. Pagam o óleo, o meu trabalho de mudar o óleo e a música que depois os outros ouvem de borla.
Este modelo de pagamento indirecto do que se consome é evidentemente defendido por quem ganha com esse modelo, e muito: empresas como o Google, e toda a indústria associada à Internet. É claro que este modelo já existe há muito tempo: os jornais e a TV estão pejados de publicidade, o que significa que em vez de pagarmos directamente o que consumimos, pagamos mais caros outros produtos cujas empresas depois vão fazer publicidade para a TV e para os jornais. Este modelo é uma treta. Sem a Internet, todavia, era uma treta que não punha em causa o profissionalismo dos criadores. Mas com a Internet é uma treta que põe precisamente isso em causa. O que o Google e a restante indústria da Internet quer é que eu venha para aqui escrever as minhas tretas sem ser pago, para eles serem pagos através do meu trabalho -- pois sem conteúdos, quem viria fazer o quê à Internet?
O primeiro ponto relaciona-se com o segundo: como muitas outras pessoas que defendem o mesmo que ele, Ludwig atira também a matar contra os intermediários: as empresas discográficas, os editores, etc. O raciocínio é que os criadores são gente boa, e devemos empregá-los todos orwellianamente no estado para poderem viver a dar aulas, mas os intermediários são uma corja que merece ficar toda na bancarrota. Isto é como argumentar que somos contra os merceeiros, mas a favor do horticultor. Acontece que sem o merceeiro, o horticultor terá de fazer as vezes de merceeiro também, coisa que poderá não ter qualquer interesse em fazer ou competência, se tivesse o interesse. Pior. No dia em que os CDs deixarem de se vender, e esse dia não está longe, haverá apenas outros intermediários e não nenhuns, como vimos no ponto anterior. Esses intermediários são os ISP, os donos dos servidores, o Google, o Yahoo, os técnicos que fazem a manutenção de todos os sistemas informáticos necessários para que se possa ter a ilusão de que entre o criador e o consumidor não há intermediários. Pela lógica do Ludwig, também estes intermediários são uns parasitas e deviam ficar todos na bancarrota. O que significaria acabar com a Internet e com a partilha de ficheiros: o regresso a zero.
Pergunta Ludwig: o que torna errado copiar ilegalmente um livro ou um CD? Não pode ser o facto de tirarmos o livro ou CD ao autor, porque nos limitámos a fazer uma cópia e ele ficou com outro — não é parecido a ir a casa dele e roubar-lhe o carro. E continua Ludwig:
“Então deve ser errado neste caso porque permite que alguém goze a música sem recompensar o criador. Mas isto implica ser errado emprestar o CD, tocá-lo ao pé dos amigos ou comprá-lo em segunda mão.”
Ludwig está a repetir um argumento já muitas vezes usado: se fosse errada a partilha ilegal de ficheiros, então essas outras coisas que podemos legalmente fazer teriam de ser também erradas; mas dado que nenhuma dessas outras coisas é errada, então a partilha ilegal de ficheiros também não é errada.
O argumento é válido (é um modus tollens) mas a primeira premissa é falsa. Porquê? Porque pressupõe que a nossa vida legal e económica tem de ter a precisão da física ou da matemática. Mas não tem. A nossa vida legal e económica é um enleio de coisas que são decididas em função das consequências que têm, más ou não. Emprestar CDs ou livros ou vendê-los em segunda mão nada tem de errado porque não põe em causa a sustentabilidade económica dos autores. Nada mais. Não há nada mais profundo, mais metafísico, mais geral, mais axiomático. É só isto mesmo.
Ora, o argumento invocado por Ludwig é o seguinte: dado que não há princípios gerais axiomáticos absolutamente visíveis que regulem estas coisas, não podemos invocá-los para explicar o que há de errado na partilha ilegal de ficheiros.
Mas também não temos princípios desses absolutamente à prova de fogo para explicar a maior parte das nossas opções na vida — casar com quem casámos, comprar a casa que comprámos, ter a profissão que temos, usar o tipo de roupa que usamos. A vida é mesmo assim: não é um modelo matemático todo arrumadinho. É uma bagunça.
É indefensável a livre partilha de livros e música na Internet contra a vontade dos seus autores. Mas é claro que há quem defenda o indefensável só porque quer ouvir música sem pagar ou ler sem pagar ou usar software sem pagar. E há quem defenda o indefensável porque vê na partilha de ficheiros a possibilidade de se voltar à economia comunista que falhou nos países comunistas. Quando o Ludwig explica como vão viver os autores de livros, os músicos, os actores de cinema, responde que façam como ele: é funcionário público, e depois oferece de borla as suas tretas e notas de aulas e tal. Ora, é precisamente isto que está profundamente errado. No dia em que para se ser músico ou escritor for preciso ser professor ou padeiro ou taxista, teremos dado um passo atrás, e um monstruoso passo atrás. É importante que haja diversidade; que alguns escritores sejam professores e possam oferecer as suas tretas de borla na Internet, mas que outros vivam directamente da escrita de livros.
O que está em causa é apenas isto mesmo: a sustentabilidade económica dos criadores. É pura e simplesmente falso que um músico ou um escritor possa viver do seu trabalho se o produto desse trabalho puder ser copiado livremente. É pura e simplesmente falso que as pessoas vão pagar-lhe porque são boazinhas: em todos os casos em que é possível ter as coisas sem pagar e sem ser preso, só uma percentagem irrelevante das pessoas pagam de livre vontade (não conheço qualquer estudo sobre isso, mas prevejo que essa percentagem seja cerca de 1% na Internet, onde há muito software que só pagamos se quisermos). Os futebolistas famosos são muito ricos porque as pessoas não podem evitar pagar para os ver. Mas sempre que há jogos de futebol não se pede às pessoas para pagar só se lhes der na telha ou se forem muito responsáveis e boazinhas. Caso se fizesse tal coisa acabaria a viabilidade económica do futebolista profissional: teriam de ser todos padeiros, taxistas ou professores universitários e depois ir dar uns chutos nas horas vagas. No caso do futebol, até nem se perdia nada e talvez se ganhasse, mas no caso da criação intelectual perdia-se diversidade, autonomia, independência relativamente a instituições, individualismo -- e a qualidade que resulta da dedicação exclusiva, porque os criadores teriam todos de se sustentar a vender qualquer coisa física para poderem depois dar ao mundo aquela coisa que por não ser física e se poder copiar facilmente o Ludwig acha que não vale a pena pagar.
O post vai longo, mas quero terminar com mais duas observações.
Primeiro: quando alguém nas horas vagas oferece livros ou música ao pessoal porque não os consegue vender, está de facto a subsidiar indirectamente a sua actividade criativa. Imagine-se que eu sou mecânico de automóveis e toco pífaro nas horas vagas. Meto as minhas músicas na Internet, mil pessoas por mês fazem o download mas só umas 10 pagam 3 euros. Mal me dá para pagar o servidor e tal, mas eu faço-o porque gosto de música. Ora bem, a pergunta é esta: quem está na verdade a pagar a minha música? Evidentemente, são os clientes da minha oficina. Pagam o óleo, o meu trabalho de mudar o óleo e a música que depois os outros ouvem de borla.
Este modelo de pagamento indirecto do que se consome é evidentemente defendido por quem ganha com esse modelo, e muito: empresas como o Google, e toda a indústria associada à Internet. É claro que este modelo já existe há muito tempo: os jornais e a TV estão pejados de publicidade, o que significa que em vez de pagarmos directamente o que consumimos, pagamos mais caros outros produtos cujas empresas depois vão fazer publicidade para a TV e para os jornais. Este modelo é uma treta. Sem a Internet, todavia, era uma treta que não punha em causa o profissionalismo dos criadores. Mas com a Internet é uma treta que põe precisamente isso em causa. O que o Google e a restante indústria da Internet quer é que eu venha para aqui escrever as minhas tretas sem ser pago, para eles serem pagos através do meu trabalho -- pois sem conteúdos, quem viria fazer o quê à Internet?
O primeiro ponto relaciona-se com o segundo: como muitas outras pessoas que defendem o mesmo que ele, Ludwig atira também a matar contra os intermediários: as empresas discográficas, os editores, etc. O raciocínio é que os criadores são gente boa, e devemos empregá-los todos orwellianamente no estado para poderem viver a dar aulas, mas os intermediários são uma corja que merece ficar toda na bancarrota. Isto é como argumentar que somos contra os merceeiros, mas a favor do horticultor. Acontece que sem o merceeiro, o horticultor terá de fazer as vezes de merceeiro também, coisa que poderá não ter qualquer interesse em fazer ou competência, se tivesse o interesse. Pior. No dia em que os CDs deixarem de se vender, e esse dia não está longe, haverá apenas outros intermediários e não nenhuns, como vimos no ponto anterior. Esses intermediários são os ISP, os donos dos servidores, o Google, o Yahoo, os técnicos que fazem a manutenção de todos os sistemas informáticos necessários para que se possa ter a ilusão de que entre o criador e o consumidor não há intermediários. Pela lógica do Ludwig, também estes intermediários são uns parasitas e deviam ficar todos na bancarrota. O que significaria acabar com a Internet e com a partilha de ficheiros: o regresso a zero.
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