A TATARANETA DE YEBÁ BURÓ
Thiago Roney
Eu sou a Ângela Boreka,
tataraneta de Yebá Buró,
nascida da fibra de Miriti
na periferia de Manaós.
Batizada no rio Negro e
No vermelho – de sangue –
do exército de reserva indígena
do Pólo Industrial de Manaus.
Refundei mais de dez cidades
– àquelas que existem em nós –
– goela adentro e também afora –
todas contidas no mapa da memória.
Desde cedo, destinada à cachaça,
o anti-ipadu da civilização e da massa,
traguei seus delírios gélidos e elétricos
dentro do mosaico líquido deletério
da república bêbada de pobreza e esquecimento
nas palafita de mudo gemido f-lutuoso (à moda filgueiriana)
fincadas na várzea da desolação e da desgraça:
a ventura da vida urbana amazônica
– fiança do PIM para morrer no crédito.
Resistir a prumo de entrar
no sindicato dos inválidos,
bastavam as etílicas porradas e
as aparições trágicas do boto escroto
do homem chamado pai, pátria e patrão.
Afundei também outras cidades da ilusão,
as cidadelas das igrejas-empresas de deus
& das drogas ilícitas & outras canções
malignas.
Eu ameríndia dessana de peito-flecha teimosa,
naveguei na nossa sufocada história,
massacrada e aterrada pelos deuses em voga,
para entrar na cidade-maloca sem fim
na selvagem poesia do vazio adentro e afora.
Na universidade quis conhecer o drone do mundo,
encontrei um grande supermercado do passado
& do presente com produtos sem futuro,
nenhuma mercadoria trazia a diversidade
as cores e os batuques dos meus
antepassados,
somente a sinfonia dos vencedores que entorpece
tanto:
as canções históricas do homem branco.
Eu ameríndia dessana de peito-flecha teimosa,
naveguei na nossa sufocada história,
massacrada e aterrada pelos deuses em voga,
para entrar na cidade-maloca sem fim
na selvagem poesia do vazio adentro e afora.
Angustiada com o mundo mínimo,
refugiei me no Zen-budismo.
Desiludida com a academia,
reinventei-me na poesia.
Desamparada com a política parlamentar,
reorganizei-me nas lógicas imprevistas.
Para todos os barões e tubarões,
sou apenas uma ruína mal paga e maldita:
professora, poeta, zen e índia
sem riso, sem terra e sem floresta.
Eu ameríndia dessana de peito-flecha teimosa,
naveguei na nossa sufocada história,
massacrada e aterrada pelos deuses em voga,
para entrar na cidade-maloca sem fim
na selvagem poesia do vazio adentro e afora.
Mas sou muito mais que isso,
o zazen, o kenshō e o satori
transfiguraram-me
num potente peixe-pajé,
com os olhos sempre abertos
para a verdadeira realidade do que se é,
dispondo me em permanente samādhi,
a condição do intenso onçar do coração,
para o reencontro abissal com a mítica avó,
deixando-me furar pelo drone de Yebá Buró.
Mas sou muito mais que isso,
sou nada mais que as formas,
sou nada mais que o vazio,
[nós somos cada um uma forma]
“a forma é o vazio, e o vazio é a forma”.
Dentro deste vazio eu sou uma pedra sólida
que é o
próprio vazio.
Dentro deste vazio eu sou os humanos e não-humanos
que são
o próprio vazio.
Dentro deste vazio eu sou a poesia de ninguém
que é o
próprio vazio.
Dentro deste vazio,
absoluta-mente
eu sou a Ângela Boreka Këhíri,
eu sou os Dessana Kéhíripõrã,
eu sou o homem que ateou fogo no próprio corpo na
Cidade das Luzes,
eu sou a constelação de povos ameríndios do Parque
das Tribos,
eu sou os mais de dois mil Waimiri-Atroari
assassinados na ditadura civil-militar,
eu sou o homem que desenterrou a avó do túmulo
para dançar com seu cadáver,
eu sou a floresta amazônica queimando todo dia e
sua tórrida cinza,
eu sou a mulher que desenterrou avó do mundo
para dançar com o vazio,
eu sou o drone de Yebá Buró,
eu sou a própria Yebá Buró
que é o próprio vazio.
RONEY, Thiago. O drone de Yebá Buró: um poemacosmopolítico. Manaus: Valer, 2022. p. 41-45
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