À
memória de Paulo Silva Araújo
Catulo
da Paixão Cearense
Foto: Revista A Noite Ilustrada |
Um lenhadô
derribava
as árve, sem
percizão,
e sêmpe a vó li
dizia:
“Meu fiô: tem dó
das árve,
que as árve tem
coração!”
O lenhadô, n’um
muchôcho,
e rindo, cumo um
sarváge,
dizia que os seus
consêio
não passava de
bobage.
As vez, meu branco,
o marvado,
acordando munto
cedo,
pegava no seu
machado,
e levava o dia
intêro,
iscangaiando o
arvoredo.
E a vó, supricando
im vão,
sêmpe, sêmpe li
dizia:
“Meu fio: tem dó
das árve,
que as árve tem
coração!”
N’uma minhã, o
mardito,
inda mais bruto que
os bruto,
sem fazê caso dos
grito
da sua vó, que já
tinha
mais de noventa
Janêro,
botou no chão um
ingazêro,
carregadinho de
fructo.
D’outra feita, o
arrenegado
fez pió, munto pió!
Disgaiou a
laranjêra
da pobrezinha da
vó,
uma véia laranjêra,
donde ela tirou as
frô
prá levá no seu vistido,
quando, virge, si
casou
cum o véio, que
tanto amou,
cum o difunto... o falicido!!!
E a vó, supricando
im vão,
sêmpe , sêmpe li
dizia:
“Meu fio: tem dó
das árve,
que as árve tem
coração!”
Do lado do capinzá,
adonde pastava o
gado,
táva um grande e véio
ipê,
que o avô tinha
prantado.
Despois de levá na
roça
C’uma inxada a
iscavacá,
debaxo d’aquela
sombra,
nas hora quente do
dia,
vinha o veio
discansá.
Se era noite de
luá,
ali, num banco de
pedra,
c’uma viola
cunversando,
o véio, já
caducando,
rasgava o peito a
cantá.
Apois, meu branco,
o tinhoso,
o bruto, o máo, o
tirano,
a féra disnaturada,
um dia jogou no
chão
aquela árve
sagrada,
que tinha mais de
cem ano!
Mas porém, quando o
tinhoso
isgaiava o grande
ipê,
viu uns burbuio de
sangue
do tronco véio
iscorrê!
Sacudiu fóra o
machado,
e deu de perna a
valê!
E foi correndo!...
correndo!!
Cada tronco que ia
vendo
das árve que ele
torou,
era um braço
alevantado
d’um hôme, meio
interrado,
a gritá: “Vai-te,
marvado!...
Assassino !...
Matadô!
Foi Deus quem te
castigou!”
E foi correndo!...
correndo!!
Cada vez curria
mais!
Mas porém, quando,
já longe,
uma vez ôiou
prá-traz,
vendo ipê
alevantado,
cumo um hôme
insanguentado,
cum os braço todo
torado...
cada vez curria
mais!
Na barranca do
caminho,
abandonado, um
ranchinho,
entre os mato
entonce viu!
Qué vê se isbarra e
discansa
e o ranchinho, prú
vingança,
im riba d’ele caiu!
E foi correndo e
gritando!
E as árve que ia
topando,
e que má pudia vê,
cumo se fosse
arrancada
cum toda a raiz da
terra,
n’uma grande adisparada
ia atraz d’ele a
corrê!!
Na boca da incruziada
vendo uma gruta
fechada
de verde capuangá,
o hôme introu pulos
mato,
que logo que viu o
ingrato,
de mato manso e
macio,
ficou sendo um
ispinhá!
E foi outra vez
correndo,
cansado, pulos
caminho!...
Toda a pranta que incontrava,
o capim que ele
pizava
táva crivado de
íspinho!!!
Curria... e não
aparava!!!
Ia correndo, sem
tino,
cumo o marvado, o
assassino,
que um inocente
matou!
Mas porém, na sua
frente,
o que ele viu, de
repente,
que, de repente,
impacou?!
Era um rio que
passava,
ali, n’aquele
lugá!!
O rio tinha uma
ponte,
que nós chamemo —
pinguéla...
O hôme foi travessá!
Poz o pé... Ia
passando...
E a ponte rangeu,
quebrando,
e toca o bicho a nadá!!!
O bruto tava
afogando,
mas porém, sêmpe
gritando:
“Soccorro, meu
Deus, socorro!
Socorro, que eu vou
morrê!!
eu juro a Deus, supricando,
nunca mais na minha
vida
uma só árve ofendê!!!”
Entonce, um verde
ingazêro
que táva im riba
das água,
isticou um braço
verde,
dando ao hôme a
sarvação!
O hôme garrou no
gaio,
no gaio cum os dente
aférra,
foi assubindo...
assubindo...
e quando firmou im
terra,
chorava, cumo um
jobão!
Bêjando o gaio e
chorando,
dizia: “Munto
obrigado!
Deus te faça,
abençoado,
todo o ano tê
verdô!
Vou rebentá meu
machado!
Quero isquecê meu
passado!
Não serei mais
lenhadô!”
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Despois d’esta jura
santa,
prá tê de todas as
pranta
a graça, o perdão
intêro
dos crime de hôme
ruim,
foi se fazê
jardinêro,
e não fazia outra
coisa
sinão tratá do
jardim.
À vó, que já
carregava
mais de noventa
janêro,
dizia que neste
mundo
nunca viu um
jardinêro,
que fosse tão bom
ansim!
Drumia todas as
noite,
dêxando a jinela
aberta,
prá iscutá todo o rumô,
e ás vez, inté
artas hora,
ficava, ali na
jinela,
uvindo o sonho das
frô!
De minhã, de minhã
ceda,
lá ia sabê das
rosa,
dos cravo das
sêmpe-viva,
das manguinolia
chêrosa,
se tinha drumido
bem!
Tinha cuidado cum
as rosa
que munta vó
carinhosa
cum os seus netinho
não tem!
Dizia a uma frô: “Bom
dia!
Cumo tá hoje
vremêia!...”
Dizia a outra: “Coitada!
Perdeu seu mé!... Foi
róbada!
Já sei quem foi!...
Foi a abêia!”
Despois, cum pena
das rosa,
que parece que
chorava,
batia leve no gaio,
e as rosa disavexava
daqueles pingo de
orvaio!
Ia apanhando do
chão,
as frô que no chão
caía!
Despois, cum as
costa da mão,
alimpando os pingo
d’água
que vinha do
coração,
batia im riba do
peito,
cumo quem fas
cunfissão.
Quando no sino da
ingrêja
tocava as
Ave-Maria,
nos cantêro,
ajueiado,
pidia a Deus pulas
arma
das frô, que
naquele dia
no jardim tinha
interrado!
E agora, quando
passava
junto das árve,
cantando,
cheio d’água
carregando
o seu véio regadô,
as árve, filiz,
contente,
que o lenhadô
perduava,
no jardinêro
atirava
as suas parma de
frô!
CEARENSE, Catulo da
Paixão in revista A Noite Ilustrada,
edição especial Homenagem a Catulo da Paixão Cearense, 19-7-1946, p.10 e 34
NOTA: — Deste mesmo
poema existe uma outra versão, mais extensa e em linguagem erudita, versão essa
que foi incluída no volume intitulado “Poemas bravios” e, posteriormente, em “Fábulas
e alegorias”.