Jorge Araken Filho
Tenho pena dessa gente pretensiosa, que se
imagina acima do bem e do mal, que olha por cima, de nariz empinado, os que são
diferentes.
Gente que julga, para não ser julgada, que
fiscaliza os deslizes do outro, para não ver os seus, que se sente iluminada
como o sol, mas não vê as próprias sombras.
Sábios empedernidos, em seus dogmas
imutáveis, propagando verdades absolutas num mundo de relatividades. Falsos
profetas, que proferem lições de moralidade que não seguem. Arautos da verdade,
que não sabem as perguntas, e se acham no direito de nos ensinar as respostas.
Mal esfloraram os primeiros versículos da
Bíblia, que devoram com ar de superioridade, e já se sentem com força de
condenar ao purgatório as nossas almas pecadoras.
Acreditam na salvação pelo sofrimento e
imaginam, depois de algumas penitências e orações, que as pessoas, mais cedo ou
mais tarde, haverão de receber as recompensas e castigos que merecerem por suas
ações!
Infelizmente, o mundo nem sempre é justo! Não
estranhe se você for punido por suas maiores virtudes.
Nesse caldeirão de excitações onde se
confrontam as exigências da realidade e as pulsões do id, onde a essência e a
aparência entram em conflito, escolhemos viver a ilusão do bem e do mal, da
culpa e do perdão: do bem, somos autores; do mal, vítimas.
Para suportar a triste realidade do corpo
físico, acreditamos na salvação da alma! A felicidade eterna vem com a salvação,
uma espécie de recompensa pelas virtudes que acreditamos ter ou que, na
verdade, desejamos ter, ao menos na fantasia que projetamos para o mundo.
Queremos acreditar que as nossas ações,
quando somos vítimas de uma injustiça, haverão de ser recompensadas pelo
destino, e o nosso algoz haverá de ser punido por sua incúria, recebendo o
merecido castigo.
Mas nem sempre acontecem coisas boas com
pessoas boas, nem coisas ruins com pessoas más. Os bons também sofrem e os maus
podem ser felizes.
Para a vida não ser monótona, prefiro não ser
santo, nem demônio. Na verdade sou um pouco dos dois, meio Doctor Jekyll, meio
Mister Hyde. Sou essa “metamorfose ambulante”, indefinível, meio louco, por
vezes insensato, mas humano e contingente, cheio de falhas e desejos
primitivos, segredos que nem às paredes confesso.
Na verdade, sou fruto do que li e do que
vivi, sou filho dos meus sentimentos, medos, desejos, senso ético, herança
genética, exemplos familiares e interações sociais, sejam essas experiências
positivas ou negativas.
A crença em um mundo essencialmente justo,
que pune os infiéis e ampara os bons moços, pobres moços (diria Lupicínio
Rodrigues), protege-nos da sensação de desamparo e insegurança, fazendo-nos
acreditar que o sofrimento não foi em vão. Acreditamos que a bondade, por si
só, resolve todos os males e, no fim de tudo, justifica a nossa própria
salvação.
Triste ilusão imaginar que os pecadores
haverão de pagar por seus pecados e nós, bondosos e humanos, como as ovelhas de
um rebanho, haveremos de ser salvos no juízo final.
Quando vestimos a máscara de vítima,
atribuímos ao outro as nossas próprias culpas! É assim que agimos! É mais fácil
buscar no outro a justificativa das nossas misérias do que olhar no espelho e
ver as nossas sombras ali refletidas, inquietando o Narciso que habita o
inconsciente, mas molda os nossos atos. Ver-se por dentro, exatamente como se
é, pode ser uma experiência dolorosa, mas gratificante.
Sejamos honestos uma vez na vida (ninguém
precisa saber), e admitamos que muitos desses males de que nos lamentamos podem
ser causados por nossa própria culpa, por ação ou omissão nossas, e não por um
acaso do destino! É difícil admitir isso, não é? É melhor posar de vítima...
A autocomiseração nos transforma em mártires,
consolando-nos como vítimas da crueldade alheia, seres bondosos que expiam os
“pecados” do mundo. E sempre com o dedo em riste...
Assumindo a posição de vítimas, e não de
culpados, redimimos a nossa parcela do pecado e encontramos conforto na
consciência. O grande dilema é que paralisamos a caminhada, trazendo uma
estranha sensação de impotência e ansiedade, que acaba gerando melancolia.
Deixamos de amadurecer e mudar a perspectiva do olhar.
Não podemos viver na ilusão de que as nossas
misérias mais triviais só podem ter origem nas atitudes dos outros, nem pensar
que todos são demônios a confirmarem a nossa santidade.
O nosso martírio não é um mal, nem pode ser
debitado, apenas, na conta do outro. Pode representar, na verdade, a
oportunidade para mudar os trilhos da existência, buscando a felicidade, e não
culpados. Nem o outro é demônio, nem nós somos santos!
O maior risco, no entanto, é o de ficarmos
indiferentes aos que sofrem e, ainda pior, indiferentes aos responsáveis pela
desgraça alheia, acreditando que os caminhos da justiça, embora tortuosos, são
mágicos e divinos, e acabarão por punir os culpados, trazendo a salvação para
os justos.
Não espere que a punição dos ímpios aconteça
por castigo divino, nem imagine que apenas os maus serão castigados.
Muitas vezes, os justos pagam pelos pecadores,
e até percebemos a injustiça, mas acabamos indiferentes ao sofrimento alheio,
imaginando, como desculpa para a nossa própria omissão, que as vítimas
provocaram os seus algozes.
Não culpe a vítima por seu sofrimento, como o
troglodita preconceituoso que atribui à mulher, por suas vestes, o desejo
secreto de ser estuprada, ou ao traído, por não ser um malabarista na cama, o
desejo de compartilhar o objeto do seu amor.
Não vivemos num mundo intrinsecamente justo:
a vítima nem sempre será recompensada e o culpado nem sempre será punido.
Corrigir uma injustiça, muitas vezes, depende
de nós! Por isso, não podemos permanecer indiferentes ao sofrimento do próximo,
acreditando, ingenuamente, que o mundo será sempre justo, ao menos no juízo
final.
Não espere que a justiça divina vá corrigir
as transgressões humanas, nem que a tua bondade, necessariamente, haverá de ser
recompensada.
Nem todos recebem o castigo e a recompensa
que merecem e, muitas vezes, não merecem o castigo e a recompensa que recebem.
Olhe-se no espelho, antes de criticar ou
atribuir culpas; depois, coloque-se como vítima, antes de se omitir!
Sábio não é conhecer o caminho, mas saber
quando mudar!
O instinto de rebanho, que nos compele a
seguir expectativas e opiniões que não compartilhamos, leva-nos a dissimular as
nossas próprias verdades, escondendo o que somos e vivendo a felicidade no
outro e pelo outro. Carentes de curtidas e de aceitação, só desejamos
experimentar o prazer do pertencimento ao grupo da felicidade aparente e do
consumo fácil.
É o teatro de máscaras, que nos revela o
glamour de um mundo paralelo em que o sentimento de culpa e a sensação de
infelicidade nos consomem, quando sentamos diante do espelho e limpamos a
maquiagem. Mas raramente nos vemos além das ilusões que construímos sobre nós
mesmos. Só vemos no espelho o personagem, e não o intérprete, a persona, e não
o ator.
Precisamos celebrar a vida além do bem e do
mal, vendo o mundo como ele se revela para nós, e não para o outro,
percebendo-o na essência, e não apenas na aparência. Sem verdades divinas e
absolutas, sem dogmas imutáveis, sem escravidão às expectativas do outro e sem
barganhar a salvação, dissimulando uma santidade que nos aprisiona a valores
que não são nossos, enfim, que revelam o abandono de nós mesmos.
O destino não é uma linha reta, nem uma
flecha traiçoeira, que nos amarra a um alvo previamente traçado e imóvel, que
descansa à nossa espera.
São as paralelas e curvas que tornam a vida
misteriosa, mas fascinante.