TAL PAI, TAL FILHA
José Augusto de Castro e Costa
A parecença entre pais e filhos é, em verdade,
bastante comum, assim como é de impressionar a dessemelhança saltitante aos
olhos, entre algumas dessas pessoas.
Conhece-se pais e filhos que não têm nada a
ver uns com os outros, seja nos traços físicos, seja no porte, seja na
tonalidade da voz, enquanto somos sabedores de outros relacionamentos que,
independente do gênero, são incrivelmente parecidos.
No Acre, tenente Gesner e Rosa Maria
exemplificam bem as leis da transmissão dos caracteres hereditários dos
indivíduos.
Se existe graus de precocidade, a Rosa Maria,
desde tenra idade, já se destacava como prematura de elevadíssimo nível.
De personalidade bem realçada, Rosa Maria era
uma criança vivaz, desembaraçada e de respostas prontas para quaisquer
eventualidades.
Estando ela presente, não era raro o
enrubescimento de pessoas ao vê-la apontar o dedo médio, com o indicador e o
anular recolhidos a alguém que ela julgasse tê-la diminuído, ou subestimado-a,
ou dela caçoado: o popular “cotoco”.
Entretanto, irradiava uma simpatia
contagiante, o que a mantinha sempre rodeada de amiguinhas, apesar de arteira.
Na vizinhança sempre era vista entre os
coleguinhas e, de vez em quando era posta em prática alguma peraltice.
Fora assim que, juntamente com DAN-DAN,
amiguinho vizinho, arquitetara pregar
uma peça a uma das figuras mais sérias, mais impolutas e mais respeitáveis de
todo o Acre: nada mais nada menos que o Diretor do Instituto de Geografia e
Estatística.
Residente próximo, no trajeto do seu Meira
estava, necessariamente, a casa da Rosa Maria, na principal esquina do então
conhecido Conjunto do IPASE, guarnecida por uma compacta cerca de fícus,
arbusto de mais ou menos 80 cm de altura.
Sabedora da rotina do conceituado cidadão
e de que seu retorno se daria ao final
da tarde, na chamada “boca da noite”, Rosa Maria servira-se de um grosso cinto
preto de seu pai, amarrara um cordão escuro nas extremidades e passara às mãos
do DAN-DAN, que ficaria no outro lado da rua, aguardando suas ordens.
No momento esperado, logo após uma rápida
pancada de chuva, eis que surgira o elegante e esbelto seu Meira, dentro do
habitual e impecável terno branco, com o guarda chuva posto ao braço,
caminhando cabisbaixo, certamente meditando no transcorrido cotidiano.
Quando Rosa Maria percebeu a exatidão do
momento, sinalizara ao DAN-DAN e começara a puxar o cinto que o colega iria
desprendendo compassadamente. Ao notar a aproximação do que supusera tratar-se
de uma pequena cobra, seu Meira passara a tentar espetá-la insistentemente com
o guarda chuva. Prosseguindo na tentativa, sem atentar ao obstáculo, seu Meira projetara-se desastradamente sobre a cerca de
fícus molhada e, por consequência, sobre a Rosa Maria que ali encontrara-se
escondida.
Indignado, o intranquilo senhor esbravejara:
– É você, desgramada !!! Tinha que ser você, filha da mãe, peste
desalmada!
E adentrou a residência da garota, super nervoso:
– Rosita! Olha o que a desgraçada da tua
filha me fez !!!
O tal episódio teria sido apenas um a mais na
existência daquela menina espirituosa, admiravelmente inteligente.
Rosa Maria cresceu, estudou, e tornou-se
brilhante advogada, aposentando-se como bem sucedida defensora pública, sempre
cercada da estima de quem com ela, até hoje, se relaciona.
Rosa Maria tem a quem puxar!
Seu pai fora uma figura marcante, em vários
sentidos. Na juventude, ao servir, engajado, no 27° Batalhão de Caçadores do
Exército, em Manaus, já despertava as atenções por sua tenacidade, conduta destemida,
intrépida, arrojada e despachada, não obstante sua estatura mediana. Seus
caracteres espartanos talvez tenham justificado sua convocação para incorporar
o grupo de heróis da Força Expedicionária Brasileira, durante a Segunda Guerra,
tendo inclusive participado, empunhando arma, da tomada de Monte Castelo, na
Itália, nos últimos meses do conflito mundial.
No acampamento militar, reunidos em uma mesa,
aguardando ordens para partir para as trincheiras, surgira, repente, um caça solitário, do eixo (RO-BER-TO)
e lançara uma pequena bomba de uns 20 kl, num projétil de 45 cm, mais ou menos,
que, perfurando o teto do alojamento, fora cravar-se no pé esquerdo de um cabo
sentado à frente do sargento Gesner, ficando aquele militar com o coturno
pregado à tábua do assoalho, havendo daí, necessidade de serrar o pedaço da
madeira, que fora extraído mediante emergente cirurgia.
Em imediata ordem unida, o coronel,
comandante do grupamento, tentara levantar o moral da tropa, com palavras
negativas, justamente defronte ao Gesner, e praticamente, face a face, bradava:
– Inaptos! Estúpidos! Beócios!
Respondera o Gesner, bem baixinho, para o
coronel:
– Quem sou eu, coronel! É sua mãe!
– Sargento!! Um passo a frente! Cinquenta
apoios, sargento!
Ao regressar ao Brasil, em meados de 1945, o
então sargento Gesner, depois de receber justas honrarias, fora reformado, no
posto de Tenente da Artilharia do Exército.
A título de passeio, viajara para o Acre, onde, a convite do governador
José Guiomard dos Santos, que, anos após, viera a ser seu padrinho de casamento,
e posteriormente apadrinhado o batismo de Rosa Maria, o jovem tenente viera a fixar
residência e ingressar no Corpo de Oficialato da Guarda Territorial.
Pessoa de fácil relacionamento, de pronta
disponibilidade incondicional e de relativo conhecimento, prático e teórico sobre
assuntos civis e militares, tenente Gesner tornara-se, no Acre, uma figura
bastante requisitada.
Quando, a 23 de junho de 1959, exercendo, por
decreto governamental, o cargo de prefeito municipal de Sena Madureira, Gesner
viera a protagonizar o exemplo de memorável eficiência administrativa e de elevada benevolência de socorro, auxílio e
proteção às vítimas de uma tragédia.
Naquela data fatídica, em Sena Madureira,
ocorrera um pavoroso incêndio, que devorara, literalmente, cerca de vinte casas
comerciais e duas residenciais, vindo a tomar dois quarteirões, em formato de
“L”, compreendendo as ruas Padre Egídio
e Siqueira Campos.
Os prejuízos foram, naturalmente,
astronômicos, o que levara os vitimados ao limite do desespero, como ocorrera
com o senhor Tufic Assef, que, sentado a um banquinho, resistia em retirar-se
do interior de sua loja, que estava sendo vorazmente consumida pelo fogo.
Fora a presença de espírito, a impetuosidade
e a providência enérgica de Gesner que
desprendera aquele sofrido senhor, com assento e tudo para o exterior de
sua propriedade, prometendo-lhe que seu
estabelecimento seria o primeiro a ser reedificado. E continuara,
incansavelmente, Gesner a comandar voluntários e a prestar amparo e socorro, no combate ao pavoroso desastre, de
ignorada origem.
Com relação a esse episódio, Gesner cativou
admiração, não apenas por envidar rodos
os esforços para debelar as labaredas que devastaram as casas, mas pelo seu
empenho em comandar e participar, literalmente, da reconstrução de todos os
imóveis que foram demolidos naquele incêndio, começando pela loja de seu Tufic
Assef, conforme prometido por aquele jovem administrador de 39 anos de idade,
que dedicou grande parte de sua vida ao Acre.
Essa história ficou indelével na memória do
povo de Sena Madureira e de quantos dela tomaram conhecimento, vindo a reforçar
a tese de que, por estranho que pareça, é fato real que a vida no Acre absorve
e empolga o espírito dos fortes, que ali demoram, apagando-lhes as saudades da
terra distante e dando-lhes ânimo de permanência e fixação.
* José Augusto de Castro e Costa é autor de Brasileiro Por Opção (CEUMA, 2013). É acreano de Rio Branco, e reside em Brasília.
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