Oyama César Ituassú (1916-2009)
Bacia hidrográfica que já alimentou faustos,
viveu durante década exclusivamente da indústria extrativa da goma elástica e,
derrotada pela incúria, fracassou lamentavelmente, caindo no marasmo que sempre
sucede às grandes explosões econômicas. Tudo até então era riqueza desmedida,
sem o menor cuidado com o futuro, estimulada a vida esbanjada com o sistema
importador de víveres e licores estrangeiros. Nada se consumia do país e tudo
vinha do exterior, até mulheres.
Esse período de deslumbramento faraônico,
permitiu extravagâncias dignas de referência. Houve um seringalista do rio
Madeira, nobre boliviano emigrado da Espanha, cuja propriedade recebia duas
vezes por ano um navio vindo diretamente de Liverpool, para transportar com
exclusividade a produção de borracha e a cada viagem, feita de seis em seis
meses, trazia a bordo uma francesa jovem, de não mais de vinte anos, para
substituir a que viera anteriormente, para deleite do epicurista. A casa
residencial, construída de pinho de Riga, tinha ademanes luxuosos, com espelhos
de cristal de Veneza, móveis portugueses, atapetada da entrada até à sala de
jantar. Uma vida de nababo. Morreu pobre.
O Juruá não teve desses requintes. Terra bruta,
gente, mais bruta ainda que ali se plantou com garra nordestina, abocanhando
territórios imensos sem nenhuma titulação e deles fazendo propriedades
particulares, depois legalizadas por compra ao Estado. A exploração gomífera
permitiu o dilargamento das áreas tituladas, avançando para o interior,
baseados na regra possessória de quem tem a frente tem os fundos. Aliás, a
reprodução do que sucedeu nos Estados Unidos da América nos séculos 17 e 18. E
esse desenfreamento de riqueza propiciou a debacle econômica, semelhante ao da
Grā-Bretanha após o ponto agudo de seu desenvolvimento industrial e com aquele
país em 1929.
Nas décadas de 1890 a 1930, a região do Juruá
seguiu o exemplo dos demais rios e abasteceu o mundo com a sua atividade. Alí,
há um divisor de qualidade do produto: o látex extraído na terra firme,
apresenta diferença sensível do que é colhido das seringueiras de várzea, pois
nesta a produtividade reduz em razão de maior percentual de água que contém.
Quando a borracha é dos altos rios, a hidrose atinge até 20%, o que é chamado
de "quebra", ou seja a desidratação entre a feitura da péla, que é a
bola de borracha, até a entrega final ao comprador. Nas terras baixas, a
percentagem aumenta até cerca de 40% e a goma tem menos elasticidade. Se há
derrame do leite da tigela, é aproveitado como sernambi.
No baixo Juruá, os seringais são dessa última
espécie e o peso, quando o seringueiro entrega ao patrão o resultado de seu
trabalho, já calculado com o desconto percentual e quem sofre é o espoliado,
que se vê reduzido pecuniariamente de seu labor pela hidratação excessiva. Ao
mesmo passo, é respaldo para o proprietário, que assim evita pagar mais o
produto, recebendo menos do comprador de Manaus ou Belém.
Já no Médio Juruá, há terras firmes e várzeas
altas e o seringueiro trabalha em melhores condições. No verão, extrai o leite
nas terras baixas e no inverno desloca-se para as partes altas, onde a
densidade da goma é maior. Firma-se um pacto entre o seringalista e o
seringueiro, variando de seringal para seringal. Em princípio, há a dedução de
20% sobre o peso entregue, ressalvada a hipótese de um abono sobre o resultado
final. Em outros lugares, o pagamento é fixo.
Nas propriedades do Alto Juruá, o sistema
funciona de modo idêntico, embora haja exemplos de extorsão, tanto por parte do
dono como do extrator direto: aquele usa dois tipos de balança: uma para
comprar e outra para vender as mercadorias para o trabalhador, que não tem
outra opção senão adquiri-las pelo cobrado. Explorado de toda forma, também
este se defende como pode e usa de artifícios para compensar o esbulho que
sofre.
Para assim agir, quando fabrica a
"péla", denominação usada para designar as bolas de borracha
produzidas, inicia o processo de defumação do látex colhido, colocando um
pedaço de madeira roliça e sobre ele vai derramando lentamente o líquido viscoso
e aos poucos vai crescendo o volume até atingir o final da colheita diária.
Dessa maneira, com o aumento do peso graças à artimanha, equilibra a perda.
Também usa de outro meio para sanar a
espoliação que o patrão lhe aplica e, para isso, no local onde está colocado
prepara duas bolas de borracha: uma para levar ao barracão e outra para vender
ao regatão, contrabandista dos rios e fator mercantil importante para o
desenvolvimento da região. Conta-se que um deles, comerciante ambulante que
percorre os cursos d'água vendendo artigos essenciais por preços inferiores aos
do barracão e comprando ao mesmo tempo os produtos, sempre às caladas da noite,
atracou seu batelão no porto de um seringueiro e comprou uma péla de oitenta
quilos, mediante o sistema de escambo, básico no interior. Acontece que o barco
ficou com a beirada presa no barranco e, concluída a transação, embarcado o
produto, o barco cedeu e o balanço conseqüente da embarcação fez com que a bola
de borracha caísse n'água e foi para o fundo: é que dentro o vendedor colocara
um pedaço de massaranduba...
E assim viviam seringalista e seringueiro, cada
um procurando vencer na dura vida que levavam, sem nenhuma contemplação com as
recíprocas condições. Vida ingrata, trabalhada e trabalhosa e a vingança da
floresta violada, era provocar entrechoques com os atores de sua tragédia.
Nos demais rios, o comportamento era
semelhante, diferindo pouco de seringal para seringal, tudo na dependência do
caráter dos integrantes do sistema. Purús, Madeira, Solimões, Negro, Tarauacá,
Envira, tratos fluviais que abrigavam a grande produção gomífera, foram as
áreas favorecidas para a implantação do processo econômico até então existente,
e que gerou fortunas mal aproveitadas. O triste é que, delas, pouco restou e os
grandes seringalistas, ou castanheiros, não tiveram continuadores nos descendentes,
que preferiram viver nas cidades e capitais de outros Estados.
Aliás, o mesmo sucedeu com os precursores
industriais no Amazonas. Criaram fábricas, instalaram empresas, fomentaram um
surto admirável de progresso e, no entanto, ao falecerem, não tiveram
seguidores familiares que continuassem a obra. Dos grandes visionários e que
concretizaram suas ideias, nada restou.
ITUASSÚ, Oyama César. Um rio e suas estórias. Manaus: Grafima, 1996. p. 17-20