Erasmo Linhares (1934-1999)
Tem
álcool?
Tem.
Me
dê um cruzeiro.
Trouxe
o vidro?
Não,
me dê num copo.
O
copo não pode levar.
Eu
não vou levar.
Como
assim?
Vou
beber aqui mesmo.
Só
então o reconheci – Zacarias!
Era,
agora sou o Torto.
Os
cabelos estavam mais ralos e a barba de muito não fazer estava esfarinhada e
suja e os bigodes de piaçaba usada armavam uma cortina de palco mambembe,
dilacerada nas colunas dos caninos amarelos.
E
a charamela?
Quebrei
na cabeça de um safado.
Era
a única herdade que recebera do pai, que por sua vez a recebera do avô e este
do bisavô e este de toda uma geração de músicos profissionais, cuja vocação
fora declinando através de muitos anos até Zacarias, que nem ao menos podia ser
considerado amador, embora tocasse por música. Possuía uma coleção de velhas
partituras que exercitava nas suas tardes de folga de funcionário público de
meio expediente. Música estranha, desconhecida do comum dos vizinhos que se
estorvavam com o som agudo do instrumento, tanto que, umas três ou quatro
vezes, arrebentaram-lhe as vidraças, para espanto e raiva da patroa que saía ao
quintal gritando ferozes ameaças às vizinhas inimigas de ferro e fogo, a cujos
filhos sempre atribuía a origem dos petardos, e, arrebatada, respondendo aos
berros, quando acaso era contestada, com um vocabulário tão rasteiro que fazia
dona Joaninha persignar-se e fechar todas as portas e janelas da casa, entupir
os ouvidos com mechas de algodão e cobrir com uma toalha os antigos santos do
oratório. Também ensaiava outras músicas, escolhidas entre as valsas e
chorinhos preferidos pelos Inveterados do Copo e do Ritmo, com os quais se
reunia no Chopp de Ouro todas às noites de sábado, e estas eram de mais agrado
dos vizinhos ignorantes. Mesmo assim, nem sempre podia integrar o regional,
porque o som da charamela não harmonizava, em determinados números, com os
violões e cavaquinhos. E foi numa noite em que não participou da execução de
nenhuma peça, que se descobriu. Já meio embriagado, tanto bebera porque ficou
desocupado como pela chateação, pulou num ônibus e foi aguardar no Camilo’s,
bem localizado na periferia da zona, assim que era dela e não era, e aí, a
charamela sob o sovaco, encharcou-se por completo. Quando saiu, sem atinar com
o motivo que o levara ao centro da cidade, foi caminhando até os fundos da
Matriz onde sentou-se e começou a tocar a valsa que ensaiara durante toda a
semana e foi quando passaram dois senhores com cara de quem não é daqui e um
deles lançou entre suas pernas uma nota de dez e mais tarde uma senhora que
empurrou uma nota no bolso de sua camisa e mais outras pessoas que jogaram
notas de um e de cinco, além de moedas miúdas, de modo que, quando chegou em
casa, lá pelas duas da madrugada, conferiu trinta e sete cruzeiros, com os
quais amenizou a ira da mulher.
Segunda-feira,
na repartição, com a cabeça desanuviada da ressaca que o fizera dormir todo o
domingo, apesar das brigas constantes da mulher e das estripulias dos meninos,
fez as contas e concluiu que tocando charamela todas as noites nos fundos da
Matriz, ganharia o dobro de seu vencimento de auxiliar de portaria. Levou a
semana inteira pensando no caso e no sábado passou ao largo do Chopp, tomou o
ônibus e foi para o Camilo’s, bebeu até às oito e meia e depois dirigiu-se aos
fundos da Matriz e desta vez conseguiu juntar cinquenta e oito cruzeiros. De
volta ao bairro bebeu no bar do Esmeraldo que estranhou a visita numa noite de
sábado e quando chegou em casa, pelas duas e meia, amenizou novamente a ira da
mulher. Durante um mês, todos os sábados, repetiu o mesmo programa e no segundo
resolveu aparecer no ponto também às terças e quintas, vestindo roupas velhas e
sandálias japonesas. Passou a beber no Quintino’s, frequentado por estivadores,
e no quarto mês ia todas às noites, menos aos domingos, até o dia em que a
mulher impôs as condições, ou a farra ou ela, e ele optou pela primeira, não
voltou mais a casa e abandonou de vez a repartição, onde suas faltas constantes
já lhe tinham produzido duas repreensões, uma verbal e outra através de portaria
afixada na parede para que todos pudessem ler a sua vergonha.
Inaugurando
a nova vida, com o único remorso de abandonar os filhos, mas com o propósito de
mandar algum dinheiro por semana, alugou um covil no vasto cortiço que dominava
todo o quarteirão entre a rua de Frei José Inocentinho e a avenida do
Almirante, habitado por prostitutas, gigolôs e cafetinas, cujas iras aplacava,
vez e outra, pagando-lhes umas cervejas, até o dia em que não mais suportou
aquela colmeia fervilhante que não parava noite e dia, dia e noite, com seu
cheiro de mofo permanente e penetrante; movimentada pelas brigas das putas,
entre elas mesmas, delas com os gigolôs, de marinheiros e soldados, de
marinheiros e meganhas autoritários, delas com os bêbados e seixeiros; aturdida
a qualquer hora, fosse sol ou fosse lua, pelos bichos de cria, macacos,
cachorros, papagaios, gatos, galinhas e a jiboia da negra Belmira cujas bostas
cosia em saquinhos de pano e os vendia às raparigas mais antigas que os usavam
como bentinhos e com a dupla função de afasta-inveja e chama-machos; e as
crianças empambadas, sábias e malignas, que vagavam pelas vielas cloacinas que
separavam, coisa de um metro se muito, as casinhas de madeira e os quartos de
taipa espremidos. Além de que o Português, dono dessa angustiada Sodoma
escatológica encravada no coração da cidade, que nenhuma força conseguira
demolir, andava anunciando de cama em cama, de catre em catre, de rede em rede,
o aumento dos aluguéis, com a desculpa de que a caixinha da polícia, com o novo
e faminto delegado, estava cada vez mais gulosa, com todo o raio da puta que o
pariu. Fugiu às quatro e quarenta e cinco e a única mágoa era perder o cálido
excitante da menina que todas as manhãs vinha, nua, mijar no minúsculo alpendre
da casinhola fronteira e exibir, a dois palmos do seu nariz, a tenra e fresca
pérola do tamatiá repousada nos veludos da vitrine de cristais opacos.
Em
cinco meses de ofício conhecia toda a malandragem da zona, as manhas e venetas
de prostitutas e viados, fez-se amigo de todos os mendigos que agiam num raio
de um quilômetro e, por isso, conseguiu abrigo junto ao bando do
Capitão-Gancho, admirador intermitente de suas valsas e chorinhos, que habitava
o velho barco abandonado sob a ponte de ferro, transformado com paredes laterais
de tábuas de caixas e folhas de zinco roubadas à cidade flutuante, para
proteger a malta, em suas horas mais íntimas, dos olhares curiosos dos
canoeiros ou de algum policial bêbado e mais afoito. Ali ferviam o café e
coziam o peixe em latas enegrecidas pela fumaça do fogareiro e pela carência de
uma lavagem meticulosa. E podiam beber à vontade, chupar seus tarugos
tranquilamente e, vez por outra, arrastar uma rameira da Pausada, bêbada o
suficiente para suportá-los em uma proximidade mais estreita.
Foi
no velho barco, em noite de farra escandalosa, que partiu a charamela no crânio
do Cabeleira, numa disputa por uns restos de Cocal, e nunca mais perdoou o
desafeto, que além de ladrão era fresco, pois em mais de uma noite o ouvira
fungar e gemer sob o peso e o encanto brutal do Capitão. Batera com tanta
violência que o antiquíssimo instrumento de cana provençal espatifou-se
instantaneamente em doze pedaços, não havendo meio ou modo de consertá-lo, pois
o mecanismo interno de suas chaves era também de madeira delicada e
enfraquecida pelos anos e pela saliva abrasiva de seus muitos tocadores
ancestrais. Deu-se a partir daí sua preferência pelo álcool puro, mais barato,
e também porque descobriu, no dia seguinte, que sua féria de mendigo dos fundos
da Matriz provinha muito mais do som agudo e inquietante da charamela do que
mesmo da caridade das pessoas. Passou a beber mais ainda e a comer menos ainda,
dormia noites e dias nos bancos e sob os bancos da praça, sem ânimo e coragem
de voltar ao velho barco abandonado sob a ponte, as pernas e os braços cobertos
de escaras que se abriam em pontos diferentes imitando cores e caprichos de
cravina.
No
dia em que recebeu alta da indigência da Santa Casa de Misericórdia, após
receber contrito os conselhos do médico paizinho dos pobres, já tinha
amadurecido o projeto de reconquistar o velho posto de funcionário público e de
reconciliar-se com a mulher, mas quando saltou do ônibus pela porta da frente a
viu entrar pela porta de trás, com uma barriga que calculou de oito meses, e
compreendeu que o plano falhara, mas a vida continua e pode ser longa e boa,
dependendo da gente. No caminho do bar vislumbrou à distância as largas tábuas
das caixas de embalagem da vizinha loja de eletrodomésticos e teve a ideia
salvadora de construir uma bandurra e voltar às noitadas dos sábados de
antigamente, sem mulher para vigiar a hora, sem choro de criança, sem Capitão,
sem Cabeleira, sem putas e gigolôs, nem barcos velhos abandonados sob a ponte
de ferro, nem paizinhos médicos, mas, de verdade, um filiado permanente e
efetivo dos Inveterados do Copo e do Ritmo, pois afinal teria um instrumento de
corda e não seria posto de lado como antes e porque foi a porra da falta dessas
cordas maravilhosas que me botou no centro pegajoso e infernal desse tremendo
pesadelo.
Bota
mais um álcool.
Não,
toma uma cana decente. É oferta da casa.
LINHARES, Erasmo. O
tocador de charamela. Manaus: Edições Rádio Rio Mar, 1979. p. 35-41
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A obra de Erasmo
Linhares (1934-1999) é um testemunho vívido dos dramas, das angústias e
esperanças do ser humano. A temática recorrente de seus contos é a vida, o
homem em face de seu destino, a precariedade do cotidiano, sua insignificância,
o sentido da liberdade, o mundo e seus mistérios. Seus textos se afirmam pelo
conteúdo de humanidade que vibra em seu discurso ficcional.
TELLES, Tenório;
GRAÇA, Antônio Paulo. Estudos de Literatura do Amazonas. Manaus: Editora Valer,
2021. p. 477