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quinta-feira, 22 de abril de 2010

Eu explico

Os dias andam a fugir-me como areia entre dedos afastados e por mais que economize caminhos, tarefas e sono, não tem acrescentado muito mais ao mais que preciso fazer. Rapo os restinhos e vou-me enganando o melhor que sei, ou seja, nada sei porque parece que desperdiço o que ganhei. Quero eu dizer que viver à minha maneira está curto, e do que anseio materializar há mais de imaginado do que palpável. Vou desta forma coxa dormindo em trajectos, escrevo o que sonho nesses assentos mal aquecidos, almoço enquanto trabalho e janto letras, toda contente com esta dieta. Da mão esquerda dou uso às teclas e à direita afago cabeças de cão e gato, não necessariamente por esta ordem.

Mas se no final do dia o regaço está tão vazio porque raio me sinto tão cansada?!







Ando sem tempo de aqui vos responder. Obrigado a quem vem.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Presente

As desculpas de criança há muito que havíam ficado para trás, que esta coisa do social cresce à medida dos anos a aumentarem e da vida a minguar.

Nunca gostara de funerais, velas, murmurar os pesâmes na mão tremulamente segura, afastava-se quando o assunto se deitava no funesto, conseguira durante muito tempo manter-se afastado desse episódio e alturas houve que o imaginário se lhe rasgou a assistir aos serviços últimos da sua pessoa como vez única.

Mas agora, sentía um novelo no peito a engasgar-lhe o ar e a vontade empurrava-o no sentido contrário. Quería estar perto do amigo, lastimar a perda como sua, dar-lhe a entender nos gestos e nas palavras que a dor era partilhada como alivio. Talvez de ambos, talvez de si que fugía da palavra como truque para evitar a evidência incontornável.

Por isso abraçou o amigo, sentiu-lhe a testa quente no ombro e as palmas suadas nas costas, enxugou-lhe as lágrimas e mordeu a língua com força para sentir outra dor que disfarçasse as suas próprias lágrimas a quererem romper. Nada disse ou pensou. Limitou-se ao aperto do corpo junto ao seu, beijou-o na face de barba por desfazer, conciliou-se no momento da morte como vida que se abocanha mais e nunca tanto como nesses segundos sentiu o que era ter um amigo.

terça-feira, 20 de abril de 2010

O livro negro dos homens (dez)

Com a fotografia entre os dedos girei-a, tentei que passasse despercebida ou eu, sorrateiramente, no meu despeito de não estar ali, esquecesse aquele plano liso, chato, em que duas pessoas se beijavam à socapa como um acto proscrito pelos demais.

Eu quería estar ali. Fazer parte daquele bocado de papel estreito e dizer orgulhosamente que os conhecía. E eles a mim.

Na verdade conhecíamo-nos, eles os meus, eu a deles.

Mas eram os meus de uma época fácil, sem pensares nem matutares, perguntas a complicar o dia!

... Eu quería tanto estar ali!

De novo pequenina. Ao pé deles, dos que sabíam rir.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Conversas ao Espelho

Horas tardias de tão cedo que ainda é, a noite arrasta restos e entrega o turno.



Há luz.



Artificios de homem, maleficios da imagem projectada neste espelho que aponta o rosto, um condenado a condenar-se, artefactos do surreal: O que vejo sou eu? Não quero.








(in Conversas ao espelho, Maio/2007)

domingo, 18 de abril de 2010

Sacrificios(da fama)

Ele sempre há gente muito curiosa, direi mesmo estranha, a meu olhos pois sim, pois a mim me fazem inclinar a cabeça na tentativa de os ver sob outro ângulo, arranjar conforto numa posição em que os olhos não se arregalem na surpresa.


Ou será do ouvir talvez... Tombar a orelha para que a audição não se confunda com ruídos de carros a chiarem quando os ouvimos - a essa gente curiosa, direi estranha - condenarem no aceno critico aquilo a que acorrem. Fazem parte. Abalam-se do encanto de seus lares para engrossar o número dos que repetem a cada ida que não mais voltarão. Não contem com eles. Até à próxima exposição, ao próximo lançamento de livro, ao certame seguinte, à bienal que infelizmente só se cumpre duas vezes ao ano.


Vão, estão, enrolam os croquetes na boca, dessedentam-se num Porto de honra made in Sacavém, aplaudem sem som e enjoam-se com o comércio que a arte se tornou, têm de ir, têm um nome a defender e a ser comentado entre os demais, eles estavam lá.


Mas foi a última vez.


Eu sou mesmo estranha, direi que curiosamente, pareceu-me ter ouvido que não contassem com eles para esta feira de vaidades, que curiosamente da derradeira vez que me esbarrei com eles pensei que fosse o ponto final.


sábado, 17 de abril de 2010

Os meus segredos (vinte)

Pesa-me ao ombro arrecadados na carteira, as chaves de casa, o porta-moedas, os óculos de sol, o baton, a caneta de tinta permanente e o meu caderno. Não sou de coleccionar bilhetes, facturas ou até contas de supermercado. Não tenho espelho de bolsa nem pente ou escova. Não tenho fotografias de ninguém para me recordar. Não tenho coisas perdidas que já havía procurado e satisfeita ali as ache. Quando me corto nas folhas do meu caderno chupo o dedo, saboreio o sangue, por isso não tenho pensos rápidos. Vejo e confiro frequentemente se o caderno vai comigo, apalpo-o, depois aliso os cantos das folhas. Sei tudo o que escrevi nele e por isso não me surpreendo com textos escritos há várias semanas. Nem mesmo quando as letras falham na dislexia presente e o conceito da frase se reveste de outras intenções. Agrada-me quando outros o usam, me levam as chaves e entram à minha frente na casa onde moro, troçam da cor do meu baton e disfarçam-se de mim quando ajeitam os óculos que lhes esconde o (meu) olhar.



sexta-feira, 16 de abril de 2010

Ainda o Tejo

Miseravelmente caio a teus pés, sabes como me hás-de levar neste silêncio ferrugento com que me adoças narinas e boca e vai que eu - gozo o castigo - mansa me faço e faço de conta que me surpreendes em cores nunca pintadas, é do céu penso, não vem da água este humor com que me levas e trazes todos os dias, encrespas-te, és mar se te quero forte, chuva deitada se sigo triste e às costas te dou a face. Sabes tu que te escrevo? Como não o fazer se me és cama de cansaço e fresco de letras?





(in Ainda o Tejo, Nov.2009)

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Sou assim

Não gosto de grupos. Não gosto de encaixes, protótipos, etiquetas, standard's, colectivos, tendências, repetições, chavões, frases da moda, doutrinas, impressos, gritos, conselhos, mentiras, horários, talvez sim ou talvez não, atum em lata, flores campestres, sapatos vela, evidências, anedotas explicadas, quintas-feiras, azul-cueca, touradas, injustiças, pretensões, palavras desperdiçadas, bajulações, mártires, erros ortográficos, mais ou menos, percebe?no final das frases, lol(es).

Chamam-me do contra, mau-feitio, nariz empinado, convencida, pelinho na venta, perigosa, anti-social, fria, individualista.

Será que não ouviram eu dizer que não gosto de rótulos?

Surpreendam-me e adjectivem-me de forma inovadora!

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Os livros (que li)

Sempre achei que os livros bons, com palavras boas daquelas que nos satisfazem para além da alma e que completam o estômago no amargo do dia comum, vêm ter connosco, esperam por nós, por vezes num tempo desacertado do nosso entender ora tão pequenino ora tão ocupado de afazeres, mas que se revelam como uma brecha de sol no céu carregado anos depois, tantos anos depois.

É uma tropelia.

Não dos livros ou de quem os escreveu, mas do nosso ser, impróprio para receber sem desconfiar, defeituoso por crer que coisa bela algum senão há-de ter. E depois os livros -há-os assim - parecendo serem resguardados da mutação por tudo neles ter sido impresso, vulnerabilizam-se à medida que os olhos que nos compõem por dentro se vão rasgando, adoçando, aceitando outras formas de vida impolutas ao devassar da força humana porque tudo neles -há-os assim - é feito muito para além da mão do autor, muito atingido quando os lemos, muito por quem os ama.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Viegas, Mário, porque sim

Do Viegas enchía a boca, imitava-o, pa-ra-fra-sea-va-O, manuseava os dedinhos em pianos invisiveis e até afinava os lábios como se fosse soltar um assobio inaudível, uma paragem inesperada no Dantas sabido de cor ou o trejeito marialva de bolsos invisiveis num roupão florido enquanto dava ordens à Lina despachada.


Do Viegas sabía tudo, apaixonadamente conhecedor de uma arte inconfundível no ouvido apurado dos discos de vinil - É o Viegas, é o Viegas PÁ! - e todos acenavam que sim, que tinha acertado e pedíam-lhe que o imitasse, desgrenhado na rala cabeleira, os olhos muito abertos, a audiência suspensa enquanto ele se baralhava por não saber o que recitar.



Do Viegas via-se ao espelho, mimicas do dia seguinte à ida ao teatro, ensaiava, tapava a orelha esquerda para se ouvir parecido ou a direita para a projecção de voz ampliada pelo dedo apontado.




Do Viegas deu vivas ao Rei e ao Presidente, recolheu assinaturas e brindou sigiloso quando a eleição não saiu e manteve o seu herói perto da arte que lhe gostava de beber.




Depois o Viegas morreu, ele não foi ao funeral, arranjou um gato zarolho que se aconchegava nos livros de poesia e dormitava ao som das palavras vi-vas.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Até sempre

De quando em vez lá recebía noticias, nada muito preciso quanto ao que o ocupava para lhe roubar tempo a mais palavras. O papel de carta nem sequer era papel de carta, tantas vezes conseguía descobrir o rendilhado rompido à pressa de um caderno escolar vincado com letras de outras folhas que tinham sido usadas por cima da que lhe enviava. A maior parte das missivas não se lacrava no beijo ou nem mesmo num abraço, cortava-se num traço furioso pela diagonal ocupando a parte do papel que não houvera sido utilizado.

De inicio achara estranho, uma bizarria, depois como não tinha para onde responder pensou em desleixo ou que o incómdo de alguma situação o preocupasse de forma tamanha que também a ela não a quería preocupar. E preocupou-se. E depois deixou-se disso que a ânsia de receber o envelope era mais que tudo o resto e não quería desperdiçar o bater do coração em tristezas antecipadas.

Guardou todos os pedaços de novas que lhe chegaram na lata do pão, sempre perto de si quando a saudade moía ou quando para enganar o corpo de fomes repentinas, esfarelava primeiro o miolo e só depois, calma, se entretinha na côdea. Comía e relía, comía e respondía-lhe como se ele estivesse ali permanente, a respiração contada entre cada sílaba.

Quando ele lhe bateu de novo à porta ela alisou o cabelo, encaminhou-se para a cozinha e sentaram-se os dois a olharem-se. Depois ele abriu a lata do pão, deu com as suas cartas enfarinhadas, tirou o alimento para os dois e enquanto mastigava lento ela contou-lhe o que fizera nesse dia.

domingo, 11 de abril de 2010

Domingos

Neura de Domingo. À tarde. Devería o sol ter-se envergonhado e ser cúmplice deste não querer amanhã. Barriga cheia de sabores de casa a precaverem o fastio de futuros dias. Chinelos macios a esquecerem o calo de horas perdidas na repetição de monossílabos, dúvidas, não gostares sem ser desgosto. O relógio apressa-se sem som, traiçoeiro de coisas por fazer ou das que não apetece, não apetece que seja Domingo à tarde, não se quer o dia seguinte, espera-se do amanhã o trampolim rápido até Domingo, queixume por a vida ir tão depressa.

sábado, 10 de abril de 2010

Plano de trabalho

Em cima da mesa há uma chávena manchada de café bebido, malhas de luz que entram pela fenda de uma cortina amarrotada pelo dia que boceja, um gato tigrado em tons de espiga de milho-rei que achou em papéis amachucados e folhas com altos irregulares de palavras escritas a cama ideal para os olhos esmeralda se rasgarem num fio como uma linha ténue entre a vigília e o outro lado do espelho.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Ser, estar

Como quem escolhe a indumentária pela manhã, assim sou escolhida por quem me há-de representar pelo dia fora. Dias, por vezes intermináveis, em que não tenho opção de voltar a ser eu, vítima e carrasco, dialécticas que promovo antevendo-lhes conclusões. Sei que volto a mim, esqueço o tempo do quando e aproveito cascas e conchas para me alimentar para outro que hei-de ser.

Há vezes em que me confundo, eu não sou mais eu mas ainda o outro que não se foi, porém um novo que chega e encanta, clono-me, pretendo que a coisa seja entendível mais por mim que pelos outros, esgotam-me, deixo-me sê-los. Já me habituei a vê-los chegar e ainda assim não me aquieto por saber que hão-de ir, livres, sem determinação minha, o eu uma casa devassada por quem chega e diz adeus.

Mesmo que eu aqui não esteja os que me constituem farão o papel de tantos quantos os que sou.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Repetições

Seguiu a formiga laboriosa pelas rugas do tronco, acompanhou-a com o dedo até se deter nos nós. Depois cheirou a casca, as folhas verdes, o ar. Deixou que os sentidos se fossem na brisa, sentou-se, encostou-se à árvore, fechou os olhos, abriu o livro e leu para si.

Seguiu as linhas do caderno endireitando a caligrafia, aparou vírgulas e travessões, preparou o discurso directo na ponta do lápis. Deixou que os sentidos se colassem no papel, personagens sentados sob copas de árvore confessando fraquezas, fechou os olhos, dois pontos, escreveu para si.

Seguiu as vontades de homens e mulheres, páginas folheadas entre cidades e quartos de pensão, acompanhou-os no primeiro grito, tapou-lhes o rosto na despedida. Deixou que os sentidos de outros se repetissem nos seus e os seus emprestou-os a alguns, fechou o livro, abriu os olhos e tudo quanto era redor tornou-se estória de contar ou de escrever.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Unguento

Há dias em que a poesia se torna absurda. Nada é tão perfeito assim. Há dias em que a escuridão das palavras cega. E o poema brilha. Nos dias em que a poesia se inventa para guiar mãos sem destinos volto costas ao mundo, enfaixo-me entre páginas de sábios que esqueceram o ritmo dos dias e a lentidão das noites. Repito-me. A poesia dos dias e a poesia da vida dos poemas, não desses poemas sangrados até ao fóssil do desgosto em que se muito me faltara para perecer no imediato entrego vontades e respirares, falo da poesia, desse absurdo invisível que alimenta até à fartura o espirito e sempre escasso o corpo para sentir. Pobre corpo, tão pouco, absurdo corpo consolado.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Q (é uma letra que se lê)

- Que é que TU estás a fazer???

Nada, não estava a fazer nada mas o que lhe saíu foi um não fui eu, a apreensão a agarrar-lhe os ombros para evitar a fuga e no entanto, com este simples retorquir sentía que o timbre da pergunta surgido como uma mão esticada à régua lhe havería de bater e fazer ricochete, atingindo no remorso mais dolorosamente do que a força com que havía sido disparado. Não fizera nada, não se lembrava de nada que tivesse feito, assim coisa de mal, devía ser mau, só podía ser horrível ou o susto que sentira tería sido em vão, um tremor sem fundamento, um desperdício de sangue pelas faces que se condoíam pelo crime desconhecido. Estava quase certo que nada havía feito e ainda assim lambeu o cómodo com os olhos ávidos de achar provas por si desleixadas, o pânico de não as ver, não se lembrar, não encontrar nada, nada a provar a sua inocência, condenado, condenava-se de ter feito o que não recordava, merecía o castigo, aceitava a sua sorte.

- Ainda bem, assim podes ajudar-me a escrever isto.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

A entrevista

Pediu que se sentasse, a educação obrigou-a a ficar de pé. Depois tomou assento, olhou as folhas ao contrário e descobriu-lhe o seu perfil. O interlocutor não a olhava, ajeitava os cantos das páginas, arrastava o nome como quem pega num carro que esteve muito tempo parado. Ela não sabía onde pôr as mãos, lembrava sua mãe e a proibição sobre cotovelos em cima da mesa, entalou-as entre pernas e sentiu as virilhas húmidas pelo nervoso que a electrificava, ía dizendo para si não falar, não falar antes de te fazerem a pergunta, abrir os olhos e escutar com o corpo todo, sentir o que vem do outro, as aproximações, o cruzar de braços, aprendera isso. A pergunta apareceu com reticências no final... A mudança, a mais-valia, empregou chavões com cabimento, não se balançou na cadeira, deu espaço, elogiu-se sem ser narcísica, calou-se quando interrompida. Mas as mãos traíam-na a cada espaço, volteavam, os dedos arqueavam-se como asas de pombo no namoro e por mais que a razão as atasse lá voltavam elas a voar independentes de lições bem tomadas. Não quis olhar o relógio, o interlocutor fazía-o por si e pela tarefa a cumprir, mais uma serei eu, não mais uma serei eu, que pensa ele de mim, porque não me vem à boca a frase certa como uma legenda correctamente revista? Colocou a tampa na esferográfica e ela sentiu o fim, ergueu-se, agradeceu e atabalhoada no comando das mãos recebeu dois beijos que não sentiu. Depois a sala agigantou-se na distância entre eles, sentiu-se cuspida para a parede que tinha nas costas, ouviu a resposta ao longe, muito ao longe: demasiado criativa para o que pretendemos, o seu lugar é nas artes, noutro sitio qualquer menos este, temos pena. As penas das mãos estenderam-se de novo e ela voou não sabe para onde, essa lição nunca aprendera.

domingo, 4 de abril de 2010

(Porquê) O ovo

Acordou desorientado do espaço onde estava, o zumbido da campainha na porta parecera-lhe um grito que levava o seu nome, quem sería a deshoras de um Domingo de Páscoa, lento, devagar, ainda o efeito do açúcar a prender-lhe o discernimento, o torpor embriagado do chocolate a deformar sons e dimensões, deixa tocar, toca que não está ninguém, talvez se vá cansado de esperar e a noite se faça na melancolia destes dias com sabor a férias grandes que tão pequenos se fizeram no gosto de os viver, vai, volta amanhã que é dia bravo e tudo se encaixa neste aborrecimento tedioso de um dia após o outro sem doce algum para disfarçar os amargos de boca que se leva e se traz fechada sem vislumbrar esperanças de interesse maior, não desiste, escancara a porta, gritam-lhe os olhos furiosos do incómodo, sim, não, sim, porque não, um ovo, para que diabos se quer um ovo, é a vida, é vida e vai-se, deixa-o de ovo na palma da mão, um ninho desajeitado sem calor nem mimo, encolhe os dedos à concha lisa e dá-lhe no peito um bater forte, forte de loucura, de gritos, de trovões, de ai que quase me perdi!
Acordou desorientado do espaço onde estava. Ainda agora sonhava que renascía.

sábado, 3 de abril de 2010

Fabular(es)-8ºEnsaio (sobre uma Foto de Silvestre Raposo)

[Um pó finíssimo não assenta, traz odores a cascos, bosta morna de cavalo, um travo de suor acidulado da jaqueta apertada do cavaleiro, vai poisando devagar e sobre os cabelos, engole as gargantas, suja as unhas que coçam sem dono]

- Gosto de cavalos.

- Eu também.

- Um dia hei-de nascer cavalo e ninguém me apanha.

- Até ao dia do domador...

- Não. Nunca há esse dia para os cavalos.

[As selas foram ensebadas e as crinas da cabeça fecham-se numa trança. A mulher roda na saia longa abrindo-a como abas de chapéu, meneios, pata, trote, há ecos nas paredes enferrujadas pelos tempos e a noite escorre na cor do cavalo]

- Vou tirar uma fotografia...

- Não vais conseguir.

- Ora, porquê?! Claro que consigo!

- Só consegues o que vês, nada mais.

- Vou esmerar-me.

- Fecha os olhos e dispara a tua máquina.

[Um fio de vento obriga os rostos a abrigarem-se, o pó tornou-se nuvem castanha, relinchos e ferraduras calcam as marcas dos passos bailados]

- Já tirei!

- Ainda bem. Quando a revelares vais ver o que te dizía.

- Que seja, melhor ainda!

- Hás-de ver-me a correr quando nascer cavalo.

[Aplausos, pelos arreios seguem a mão que os afaga, roçam focinhos, piscam-me o olho]

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Recuso-me

É tudo uma questão de perspectiva. Para alguns o tempo tornou-se amigo, conforto numa sabedoria feita de popular vivência que lhes traz a gestão do é assim porque é assim.

Hábitos. Para mim são hábitos. Ou negações, não quero entregar tudo o que fui, a minha rebeldia numa era em que devería já ter juízo. Não quero tê-lo. Não devo tê-lo para manter a sanidade.

É tudo uma questão de é assim porque tem de ser assim comigo e para o meu mundo, para o que vou descobrindo todos os dias, na impopular garantia de que a morte ocorre muito antes do corpo.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Dia da mentira (verdade?)

Desvendar as verdades pode parecer corajoso, e é-o, mas há também a considerar a cobardia de a termos mantido em segredo. Seja para nós seja em outros momentos em que não somos quem pensam que somos.

Eu sou outros.

Já o afirmei por diversas vezes, porém esta verdade tão absolutamente verdadeira parece disfarçar-se de mais uma coisa que se diz, uma verdade juntando-se a tantas outras verdades, que julgo, ninguém entendeu como sendo verídicas.

Que diríam se eu dissesse que estou morta, enterrada e benzida e voltei para vos contar como foi?

Acharíam que era uma história inventada, uma verdade que gostaríam se repetisse... mas não passava de ficção.

É verdade.

Já pereci tantas vezes quantas aquelas que precisei para voltar a ser verdadeira nos outros eus.