SOBREVIVENTE, UM PEQUENO [ ]

É nesta altura que os moralistas desaparecem com medo de serem relacionados comigo e com o que tenho vindo aqui a contar. Ou que poderíam aparecer e escarafunchar o dedo na ferida.
É verdade que fiz muitas cenas, ensaiei mentiras, apontei presumíveis culpados, despertei o ódio e inocentei-me como vitima sacrificada e indefesa.
Também é verdade que apelei ao mais básico do ser humano para que todas estas emoções de causa-efeito tivessem o resultado que melhor me convinha. Mas também é verdade que tive que pôr a cabeça a funcionar para que o irracional despertasse sem levantar suspeitas sobre a condução das minhas intenções e sem, consequentemente, se sentirem manipulados.
Porém, não é mentira que fui uma mulher subjugada à vontade de outrém: Primeiro ao meu pai e à passividade da minha mãe; À proibição de me relacionar com um negro e seguir a escolaridade que tanto quería; À entrega a um homem que nunca me satisfez sexualmente, intelectualmente e me respeitou enquanto individuo.
A dependência financeira foi uma corrente que me prendeu e quando pedi a chave, esperaram de mim que me tornasse uma parideira, esse era o meu destino.
Tive de mentir.
Quando declarei a minha vontade de independência negaram-ma, amarrotaram os meus desejos, lembraram-me que a minha função era servir. Servir sempre a alguém e nunca aos meus sonhos, à minha descoberta do mundo que passava à medida que eu perdía os dias em conjecturas.
Menti, não me arrependo dos meus actos, de ter tido a vontade para acordar e querer mudar, de ter chegado a minha vez de me servir de terceiros para saber se a felicidade existe ou é uma coisa que alguém se lembrou de inventar para justificar não ter vontade de lutar pelo que anseia.
Ainda não descobri a felicidade mas já não me sinto infeliz.

CARACTERIZAÇÕES

Sustive a respiração e deitei as minhas mãos ao meu próprio pescoço. Senti as veias a dilatarem. De seguida derrubei o candeeiro de presença perto do sofá, atirei ao chão o cinzeiro que se partiu e do qual peguei um pedaço e passei na minha cara. O corte foi imediato e o sangue abundante.
Gritei.
Gritei com toda a força que tinha nos pulmões e o meu marido atónito voltou-se para ver o que acontecera.
Rasguei o colarinho de renda da farda e sujei-o com o meu próprio sangue. Ele acorreu de imediato a mim, o olhar possesso, vermelho de raiva, deixei-o agarrar-me e ficar com vestigios do meu sangue na camisa, no pescoço.
E porque eu continuava a gritar desesperadamente toda a gente da casa acudiu. E o empurrou como se fosse um assassino e me protegeu como a uma donzela indefesa.
O caseiro deu-lhe umas peras valentes e pelas bandas do casaco atirou-o para fora de forma humilhante. A cozinheira abanava-me e eu esforçava-me por não desatar a rir, enquanto fingía que não tinha fôlego suficiente para falar fosse o que fosse.
A dona da casa estava em estado de choque, as mãos em concha na boca e completamente paralisada.
Foi uma cena memorável.
Engraçado que até hoje só me lembro dele a chamar-me puta, dos meus gritos e depois de um silêncio que parece não fazer parte do quadro. Não me lembro do ruído dos vidros a quebrarem-se nem das aflições da criadagem e do caseiro a chegarem até mim.
Só da voz dele a dizer aquele nome e os meus gritos. E não sei porquê, lembro-me também dos cães a ladrarem furiosamente, um som aflitivo como se adivinhassem trovoada a chegar.

SURPRESA!

Quando a criada de fora, ou seja, a minha colega me chamou à sala pensei que fosse a madame a querer dar-me instruções sobre alguma coisa especifica mas quando vi que era o meu marido, o meu coração disparou de tal maneira que pensei que havería de me saltar boca fora.
Lembrava-me bem do que tinha feito, achei que vinha para se vingar.
Aliás, durante algum tempo estranhei ele não me ter descoberto; mesmo com a intenção de se divorciar de mim acreditei sempre que as coisas não iríam ficar daquela maneira, ele ferido no seu orgulho macho e largado pela mulherzinha devería ter posto a policia atrás de mim. E se não ele, decerto os meus pais quereríam saber o que era feito da sua filha, ou pelo menos a minha mãe havería de querer saber de mim, o que me tinha acontecido, se estava viva ou morta.
Agora ali estava ele, de pé, mãos nas algibeiras, eu de farda preta e branca.
A primeira coisa que me disse assim que me viu foi puta. Mais exactamente: Puta! Vais pagar pelo que me fizeste! Vou acabar contigo, minha puta de merda!
A velocidade do nosso cérebro a processar informações, filtrá-las, corrigi-las, seleccioná-las é impressionante, quase tão rápida quanto a velocidade da luz. O que nos demora e atrasa enquanto seres humanos é a escolha, saber que a opção que escolhemos é a certa para determinada situação.
Inicialmente tive medo. Que me batesse, que fizesse um escândalo, que pusesse o meu emprego e tecto em risco. Por isso a minha reacção foi não ter reacção. E mesmo que esse gesto - ou a falta dele - tivesse inconscientemente salvo a minha pele, já o cérebro tinha fornecido o leque de opções a adoptar.
É claro que o meu marido nem ninguém podería saber disso e encarou a minha paralisia como um gesto de valentia.
Atirou-me à cara uns papéis. Que não apanhei.
Voltou-me costas e dirigiu-se à porta de saída.

EXPERIÊNCIAS

Nada é pior para as decisões do que a influência dos sentimentos.
Se numa primeira análise a minha vontade foi ceder aos impulsos e dar uma tareia de enxovalho àquela mulher, deitando tudo a perder e todas as resignações a que me tinha sujeito, assim que saí daquele quartinho a lucidez voltou.
A próxima etapa era conseguir passar no teste das duas semanas e nem que me virasse do avesso, eu ía conseguir.
Foi fácil aperceber-me quem podería estar do meu lado e quem estava contra: a cozinheira e uma outra empregada tiraram-me as medidas e acharam que me punham no meu lugar de última a chegar e sem direito a nada. O caseiro foi simpatia à primeira vista e até hoje mantenho uma relação cordial com ele. Não me julga nem me condena, sempre me escutou e a sua simplicidade tem a grande vantagem de eu saber que aquilo que vejo é aquilo que ele é. Ensinou-me muito, experiências de vida quero dizer, e naquele tempo foi a minha referência a uma sanidade que de vez em quando se desviava.
Dos donos da casa não havía nada a acrescentar: Eram os donos e estava tudo dito, não havíam socializações com a criadagem.
Remeti-me obedientemente ao meu papel. Só as noites é que me custavam, sentía-me sufocar, mas era também à noite que arranjava o sossego necessário para delinear os próximos passos e alimentar como razão para toda a minha existência o meu projecto secreto.
O período experimental passou depressa, depois veio outro mês e mais outros e tudo parecía ter-se endireitado até ao dia em que o meu marido apareceu.

MALDIÇÕES

No dia seguinte lá fui eu.
Pus um ar necessitado qb. mas não miserável ao ponto de se sentirem incomodados.
Aquela casa era melhor que a encomenda. Aliás, era quase uma quinta, terreno com fartura, piscina, caseiro, cozinheira, um luxo do qual eu só ouvira falar e que nunca tinha presenciado.
Fui recebida na cozinha como convém aos empregados.
A senhora da casa começou a conversa dando-me a entender que quem precisava era eu, eu era a criada ela a patroa, tudo muito bem separado, nada de sorrisos desperdiçados e para começar ficaría duas semanas à experiência, depois logo se vía o meu desempenho.
Mas assim que me apercebi que a vaga era para uma interna, decidi que a oportunidade não me escaparía. Para além de ganhar e aumentar o meu pequeno pecúlio, ainda ficava com um tecto para me abrigar.
Folgas, só uma, à segunda-feira.
O meu trabalho era basicamente limpar e arrumar. Nada que me assustasse, nada que eu não tivesse feito em solteira e depois na minha casa e aí, sem receber nenhum ordenado.
Mostrou-me o quarto onde eu passaría a ficar, mas aquilo era tudo menos um quarto, um cubículo apertado e sem janelas, escuro, um cómodo destinado a um escravo de castigo.
Naquele instante senti um desejo imenso de vingança, uma vontade que controlei e me deixou nauseada. Apeteceu-me cuspir na cara daquela emproada, vomitar-lhe em cima as minhas capacidades, o meu curso de Espanhol, os meus conhecimentos sobre guerra, táctica, anatomia e outras pequenas coisas que me passaram pela cabeça como um filme.
Naquele instante revi momentos da minha vida em que recebera eu como dona de uma casa, e os elogios que me havíam tecido e agora, a minha vida parecía estar reduzida àqueles metros quadrados que me sufocavam.
Naquele instante, amaldiçoei o meu marido, a mulher que me acolhera e agora esta.
E amaldiçoei a minha sorte por ter nascido.

FAZ DE CONTA QUE

Eu não tinha passado por tanto, sujeitado a tantas humilhações para agora também aquela mulher se achar no direito de me dizer o que eu havería de fazer da minha vida.
Não gostei do tom com que me falou, parecía que era uma obrigação, uma divida que eu lhe devía por me ter dado a mão. Não sou ingrata ao ponto de não reconhecer que tería ficado no olho da rua ou a gastar as minhas economias se não fosse a hospitalidade dela. Mas dar voz de comando à minha vontade já era outra coisa.
Não entrei num confronto despropositado, baixei a cabeça e acenei condescendente.
Só quería ver-me dali para fora, dali já nada mais pingava ou então ficaría mais uma vez sob o jugo de alguém. E para isso já me tinha bastado o meu marido.
Deu-me uma prelecção de mais de meia-hora, e eu calada a aguentar, a dizer sim a tudo, até à ajuda que mais uma vez disponibilizou em termos juridicos, tinha conhecimentos e estava disposta a pedir favores por mim desde que eu quisesse.
Mas eu não quería.
Pelo menos nessa altura, outras coisas vinham em primeiro lugar para além de um estúpido apelido no final do meu nome.

OFERTA&PROCURA

Até hoje estão na minha memória os olhos negros daquela mulher. Pareceram-me os olhos mais tristes que alguma vez vira, quase pedintes.
Quem sabe o que quer da vida não se desperdiça em discursos: Perguntou-me se eu quería trabalhar, ter um meio de subsistência que me desse autonomia. Animei-me, pensei que ía deixar que eu permanecesse, vi a russa pelas costas.
Engano meu. Abriu a filofax de pele, tirou um cartão e informou-me que naquele endereço precisavam de uma empregada. Era gente amiga, tinha dado referências minhas sem compromisso. Era o que podía fazer por mim.
Agradeci-lhe. Excessivamente, diga-se, acho que até me ajoelhei.
Pegou na aliança e entregou-ma, que a vendesse, o ouro estava bem cotado. Ofereceu-me o telefone para fazer a chamada e marcar o encontro se as partes estivessem de acordo.
Liguei, esperavam por mim no dia seguinte para uma entrevista.
Agarrei-me à mala e comecei a pensar para onde ir naquela noite, mas a dona da casa resolveu-me o problema até ao outro dia oferecendo de novo o quarto onde estivera por quase dois meses.
Depois pediu que me sentasse, olhou-me de novo daquela maneira que me incomodava e quase num tom de ordem, disse-me que eu tinha que resolver a minha situação civil o quanto antes.

JOGADA DE OURO

O dinheiro compra tudo. Até mesmo a felicidade e até mesmo um pedaço de saúde. É bem verdade que não duradoiramente, mas quem tem a prosápia de ser sempre feliz ou qual a vantagem de ter um esqueleto saudável quando se deita na cova?
O dinheiro da mulher que me recolheu serviu para que eu fosse assistida em médicos particulares, sem depender de vagas nem meses de espera. Fui tratada como uma pessoa e daquele tempo resta uma pequena cicatriz quelóide disfarçada no meu couro-cabeludo que me lembro quando lá passo o dedo e o meu nariz-barómetro. Nada mais.
Mantive a minha história inicial, insisti nela, apimentei-a com pormenores sórdidos como o são sempre todas as histórias de violência doméstica. E joguei a minha cartada: Estava na altura de ir embora.
Já tinha trazido demasiados dissabores, muitos transtornos, tanta despesa.
A russa olhava-me de canto.
A dona da casa manteve-se silenciosa. Eu tremi. Não tinha sitio para onde ir, tinha arriscado tudo naquela frase e podía saír-me o tiro pela culatra. Lembrei-me dos meus estudos sobre estratégia, como apreender o terreno se estamos em ambiente hostil, estudar o adversário e os seus hábitos; Eu tinha tido tempo suficiente para isso tudo, achei que o passo que dava não me levava ao precipicio. E no entanto, a mulher calava-se.
Fiz a minha mala.
Cheguei perto dela, tirei a aliança de casada, pousei-a em cima da mesa e disse-lhe que para além da gratidão não tinha mais nada com que lhe pagar tudo o que fizera por mim.

FACTURAS

Escusado será dizer que se ganhei uma casa temporariamente, a factura que paguei teve consequências nefastas. Para além das dores, da cicatriz na cabeça e do dente, o meu nariz é até hoje um barómetro das mudanças de tempo.
Mas não ficou por aqui. Perdi as minhas clientes onde fazía limpezas e que eram um meio de subsistência. Por outro lado, vigiada de perto pela empregada russa e sem saber se esta era uma delatora dos meus passos, comecei a sentir-me na obrigação de prestar contas à dona da casa. E essas contas não eram dinheiro, mas de algum modo, dar-lhe a entender o quão agradecida estava e como tal, mostrar-lhe confiança e contar-lhe alguns pedaços da minha vida.
Como me mantinha recolhida no quarto enquanto a outra andava a espanar, tive tempo de sobra para imaginar o que podería contar e de que forma essas revelações "dolorosas" da minha vida privada poderíam influenciar a estadia sem que me comprometessem a provar que o que eu dizía era mesmo a verdade.
Curioso... A esta distância, dá-me vontade de sorrir perante as mentiras que contei. Não tanto pelas mentiras em si, mas como as pessoas acreditam porque querem ou precisam de acreditar naquilo que ouvem e se comovem face ao relato da miséria alheia.
Tornei-me uma mentirosa compulsiva ao longo da minha vida. Nunca consciencializei esse facto porque não o fiz deliberadamente: as circunstâncias empurraram-me para uma auto-defesa e essa foi a forma que achei. Não estaría onde estou agora se não fosse esse deturpar da realidade, continuamente faço crer aos outros aquilo que eles precisam de ouvir e se convencer. Mas não vejo a minha existência como uma fraude, assente em maus principios. No fundo, as minhas mentiras fazem os outros felizes, é isso que eles encontram quando me procuram, é esse o meu negócio, e é nisso que sou profissional: Vender felicidade.

LÁGRIMAS

Não gosto de recordar esta fase. Fiquei à mercê de outrém e foi como voltar atrás. Se de facto eu escapara da minha anterior condição de mulher casada não era para ir parar às mãos de quem não conhecía.
Mas a natureza humana tem a surpresa em si. Tanto se encontra a maldade como a nobreza do carácter e esta mulher -uma desconhecida- era sem dúvida alguma pertença dos que cumprem o que dizem.
Aprendi muito durante o tempo que convivi com ela: A ouvir, a analisar, a não perder a cabeça e a comprometer-me exclusivamente com aquilo que fosse capaz de cumprir.
Prometeu e não me denunciou, responsabilizou-se por mim durante as 24h que estive sob observação e quando saímos disponibilizou o quarto de hóspedes para eu me instalar durante a minha convalescença. Não me fez perguntas, não me ameaçou nem pressionou para o que quer que fosse. Deixou-me estar, cuidou que tomasse os anti-inflamatórios e os analségicos e vigiou-me durante a noite.
Eu sentía-me péssima, tinha dores horríveis na cara, pelo corpo, respirava mal e cansava-me. Quando me vi ao espelho, os olhos numa pasta de sangue e um aparelho de gesso a cobrir-me o nariz e as maçãs do rosto, o dente lascado, parte do meu cabelo rapado à frente e uma sutura a preto, chorei. E doía chorar e quanto mais doía mais chorava.

VULNERABILIDADE

O drama que pintei era uma invenção mas o desmaio foi real. Aliás, tremendamente real: Parti o nariz, um dente falhado mesmo à frente entre um lote de nódoas negras e uma sensação desconfortável de descontrolo total sobre a minha vida.
Não ter comido nos últimos dois dias foi a maior burrice que podería ter feito, mas no final veio a revelar-se melhor que a encomenda.
As duas mulheres devem ter ficado mais assustadas que eu, que no fundo nem soube bem o que me estava a acontecer.
A dona da casa achou que eu tinha desmaiado por causa da emoção e de delicadamente me estar a dispensar; Da outra não sei, nem me interessa.
Lembro-me que havía muito sangue, não me dóia nada, de repente estava nos braços daquela mulher toda bem posta, a sujar-lhe a roupa de marca, quería dizer coisas e havía uma tremenda confusão na minha cabeça, onde estava, que sitio era aquele, pensava em fugir, saír dali, voltar à minha casa e ao meu quarto e depois tudo se baralhava e eu não conseguía pôr-me de pé para andar, correr, libertar-me de quem me agarrava.
Vieram os para-médicos, uma ambulância.
Tudo o que eu quería era passar despercebida e agora toda a atenção estava atraída sobre mim.
Aos poucos comecei a raciocinar: Iríam identificar-me, provavelmente chamar o meu marido ou até os meus pais e eu regressaría à minha condição de escravatura.
Pedi desesperadamente à mulher que não me abandonasse e sobretudo que não contasse a ninguém onde eu estava.

ACREDITAR NA MENTIRA

Para mim estava mais do que claro que esta mulher era esperta, não ía em histórias da carochinha nem em emoções vendidas ao desbarato. As minhas lágrimas não a comoveram, vía-se que estava habituada a tomar decisões sem que estas se fizessem sentir como um peso na consciência.
Sabía pouco dela, que vivía sózinha, era patroa de si mesma e que pintava o cabelo de quase negro, tinha um excelente gosto para se vestir, sóbrio, clássico, intemporal, uma voz muito baixa, o conceito da mulher independente personificado. Mas para além do que estava à vista desarmada eu estava a zero, sem casa, sem sitio onde rumar e completamente desprotegida.
Alterar toda a minha história sería pior ainda.
Era meia-mentira, mas tinha que ser credível, eu tinha que fazer dela uma verdade, a minha verdade ou esta mulher punha-me na rua antes do diabo esfregar o olho.
Dormitei, quería sentir a altura dela se levantar para eu fazê-lo de seguida.
Preparei um pequeno-almoço completo, tive cuidado na escolha do que não engordava mas que era apetitoso, dispuz a mesa silenciosamente, fiz-me de morta.
Quando se sentou pareceu que nada do que eu tinha feito tinha importância. Esticou o guardanapo no colo e comeu a olhar para o portátil aberto.
Mantive-me de pé, tipo serviçal obediente. Ficou uma atmosfera desconfortável, eu não sabía o que dizer, precisava que ela me desse uma deixa para saber que tipo de reacção oferecer-lhe, mas nada e eu ansiava por meter uma cunha na conversa para a oferta que me fizera meses atrás para empregada a tempo inteiro.
Ouvi a porta abrir-se e fechar-se. Apareceu uma mulher muito alta e de cabelo cor de palha dos países de Leste.
A dona da casa disse-me que era a empregada.
Senti o chão a afundar-se e perdi os sentidos.

FITAS

Muito daquilo que condenamos nos outros acabamos por fazer. Não totalmente deliberado ou até mesmo consciente do que nos levou até esse ponto. Achamo-nos lá, ponto. E depois é tentar dar a volta à coisa da forma mais elegante.
Dormir numa escada de um prédio não tem nada de elegante, mas resguarda do sereno da noite e de sermos encontrados por quem não queremos.
Quem eu quería que aparecesse e me tivesse aberto a porta não estava.
Fiquei ali, primeiro encostada à parede, a luz das escadas a apagar e eu acendê-la; depois sentei-me na mala e por fim já nada importava, nem luz, nem posição, pelo que me acomodei o melhor que poude no capacho da entrada.
Não sei que horas eram quando senti o pé da mulher a tocar-me nas pernas. Achei-a mais alta do que o costume, mais negra do que era hábito seu, ou então foi tudo uma questão de perspectiva e de acordar tolhida e desorientada no espaço e no tempo.
Perguntou-me que é que eu estava ali a fazer, comecei a choramingar, uma historieta de fazer inveja a qualquer drama. Inventei que tinha sido espancada pelo meu marido e que fugira, que tinha medo, não tinha a quem recorrer, era sózinha no mundo e ela tinha sido a única alma caridosa que olhara por mim.
A mulher arregalou os olhos e manteve-se em silêncio, mandou-me entrar, fomos para a cozinha, fez um chá e perguntou-me se tinha fome. Eu tinha, mas o meu papel era fazer-me desprendida dessas coisas e respondi-lhe que não era capaz de engolir fosse o que fosse.
Não me perguntou mais nada, deu-me corda suficiente para eu me enforcar sózinha no meio das minhas invenções mirabolantes. Mas credíveis, eu já ouvira em programas de televisão muita coisa igual à que eu lhe repetira.
A madrugada chegou e nós as duas à mesa a tomar chá.
Levou-me ao quarto de visitas que eu conhecía tão bem, disse-me para eu descansar, mas quando acordasse tería de lhe contar a verdade ou a porta de saída estaría à minha espera.

SEM ANESTESIA

Depois da euforia e conforme o dia foi avançando, a pequenina mala com que saí de casa parecía um trambolho, uma coisa a despropósito e as perguntas foram aparecendo aos poucos, receosas da resposta que eu sabía de antemão.
Para onde ir?
Onde dormir?
Que comer, onde tomar banho, onde vestir-me, onde largar a mala?
De repente vi-me sózinha, perseguida, desconfiada que viessem atrás de mim, tinha de me esconder onde não me encontrassem.
Mentalmente contei o meu dinheiro. Dava perfeitamente para passar a noite num hotel, coisa modesta, não estava a fim de gastar do meu pecúlio e além disso, todo o dinheiro era pouco para os meus objectivos. Constatei que não conhecía nada da cidade onde moro. Hotéis, que tipo de hotéis não fazem perguntas nem pedem o BI, esse era outro problema.
Recordei-me do ginásio, do treinador, da queca que tinhamos dado. Mas voltar lá estava fora de questão. Não saía duma para me meter noutra.
Pedir abrigo aos meus pais sería entregar-me ao meu marido e, com toda a certeza com um enxovalho em cima se não umas boas chapadas pela mão do meu querido progenitor.
Envolvida neste beco sem saída, passei a cidade de um lado ao outro de autocarro. Saía de um, tomava outro e depois outro. Ficou escuro, noite mesmo, pouca gente na rua, menos autocarros.
Lembrei-me então daquela mulher onde trabalhara e que me quería a tempo inteiro.
Sem saber o que ía encontrar bati-lhe a porta. Enquanto esperava que atendesse, inventei mil e uma histórias para lhe contar, nunca a verdadeira.
Mas não estava ninguém em casa.

FLASH BACK

Não perco tempo a remoer no que já passou. Muito menos no que podería ter dito ou feito.
Ao contrário do que a grande maioria das pessoas pensa, uma dona-de-casa tem demasiadas ocupações para se diluír em hipóteses sobre executar determinada tarefa. Apenas tem que ir a ela e fazê-la, nada mais. Esse tipo de atitude treina, objectiva-se.
Mas!
Há sempre um mas em todas as histórias porque de facto, ele existe na vida real.
Naquele dia, naquele dia especifico e só mesmo naquele diazinho eu tería dado muito da minha vida para assistir à cara do meu marido a entrar em casa e encontrar paredes. Nada mais do que paredes marcadas pelo contorno dos quadros, dos espelhos, dos móveis, tudo coisas compradas por ele, com o dinheiro dele.
Achei-me única no pormenor de lhe deixar a chave enfiada na fechadura do lado de fora.
Foi um sentimento pleno, cheio, uma vitória a sério.
O gosto da vingança é bom, muito bom, eu gostei. Talvez porque nunca o tivesse sentido, nunca tivesse sido apreciada pelo meu valor, nem pelos meus pais nem pelo meu marido, talvez porque sempre tenha acatado o que todos me disseram, contrariada por dentro mas sempre calada, autorizando a sujeição. Senti-me tão grande nesse dia, tão corajosa de tomar uma atitude tão derradeira e não sentir medo, não pensar em consequências, em justificações para além de mim mesma.
Há dias assim na vida de uma pessoa. Na minha houve. Há. E esse foi o primeiro de muitos que se seguiram até aqui onde agora estou. Faría tudo de novo, amargaría quantas vezes fosse preciso desde esse dia até hoje. Vitória, Maria Vitória.

O ESPÓLIO

A partir do momento em que inscrevi a minha assinatura naqueles papéis soube que era irreversível a minha posição. Mesmo que algum milagre acontecesse, nada sería estável e suportável ao ponto de mantermos o estatuto social do matrimónio. Aliás, sería permanecer num logro: Eu só tinha pelo meu marido ódio e ele, mais do mesmo.
Até que ponto o tempo me permitiria agir e reorganizar-me eu desconhecía. Estas coisas dos tribunais demoram séculos mas a verdade, é que eu não sabía os trâmites das leis e se a coisa estaría ou não muito avançada.
Nos primeiros dias andei desnorteada, dormía mal, pouco, a minha única preocupação era saber para onde ir. Acho que me revoltei muito e especialmente contra mim mesma por ter deixado a minha vida entregue à dependência de outrém, por ter largado a faculdade, por ter perdido o interesse nos meus sonhos. Quando nos apercebemos já passaram anos, perdemos o ritmo, a embalagem, a busca, tornamo-nos preguiçosos e acomodados e vamos adiando, adiando.
Neste ponto, não havíam mais contemplações para mim. Não tinha ninguém a quem recorrer nem ninguém aparecería a passar-me a mão pela cabeça.
O curso de espanhol estava no fim, dia de exame.
Fiz o que tinha a fazer e saí satisfeita com o que aproveitara do curso ainda patrocinado pelo meu marido. No regresso a casa, no autocarro, apanhei um jornal de distribuição gratuita, li-o de ponta a ponta, incluíndo os signos, os tarots, os adivinhos, os penhores e um particularmente.
Saí uma paragem antes, fui a uma cabine telefónica, combinei hora, local.
Passados dois dias bateram-me à porta, espiolharam tudo meticulosamente, acertámos o preço.
Conhecem aqueles anúncios que dizem que compram o recheio integral das casas?
Compraram tudo, até a escova de dentes do meu marido foi no lote.
Exigi dinheiro à vista. Pagaram.
Peguei na minha malinha, bati a porta e deixei a chave enfiada na fechadura.

RETIRAR AS TROPAS

Uma noite chegou e senti-o junto à porta do meu quarto. Fiquei muito quieta, pensei que a qualquer momento a fosse arrombar. Depois que lhe ouvi os passos a afastarem-se acendi uma vela e vi no chão uns papéis dobrados. Não foi uma surpresa, já o esperava: eram os papéis do divórcio com uma cruz na linha onde devería assinar.
Nessa noite não dormi. Explorei todas as hipóteses que se apresentavam, quais as minhas capacidades de subsistência sem o tecto que me abrigava, que exigências podería fazer, o que sería a minha vida a partir daí. As expectativas não eram brilhantes. Não podía contar com os meus pais, não tinha amigos que não fossem os dele, estava sózinha nesta batalha e as armas mais poderosas eram as dele.
Guardei os papéis, deixei passar vários dias, sabía que ele tinha forçosamente de me voltar a procurar se eu me mantivesse neste silêncio.
E assim aconteceu.
Numa manhã ao destrancar a porta do meu quarto, lá estava ele.
Assustei-me, confesso, não tinha imaginado que nos voltassemos a encarar desta forma, mas a questão entre as relações é mesmo essa, não podemos adivinhar o que o outro possa fazer.
O tom de voz era distante, frio, exigente, quería os papéis e assinados.
E eu assinei.
Há que saber quando é a altura de saír para nos salvarmos.

VINGANÇAS

Só tomei verdadeira consciência da importância do dinheiro quando me vi privada dele.
Se bem que tivesse um pequeno pecúlio, todo ganho com o meu esforço, não gastara um único cêntimo, o que o remetía para um capricho que me fazía sentir vitoriosa e falsamente independente. Sempre vivera às custas de alguém, aperceber-me-ía deste tipo de escravatura muito em breve e da maneira mais sentida na carne. Tirando os muito, muito ricos, o dinheiro nunca é suficiente. Ou pelo menos naquele tempo ainda não o era: Dava para me aguentar o máximo uns dois meses e alojada numa pensão rasca.
A vida continuou, agora sem palavra alguma e também sem o meu marido deixar o dinheiro que habitualmente me dava para governar a casa durante o mês.
De inicio pensei que fora esquecimento, mas os dias passaram até o mês terminar, entrar no seguinte e nada.
Percebi que esta sería a sua forma de me dizer que ele é que mandava, o macho era ele, ele era o dono da casa e de mim.
Entrei no jogo. As contas da luz, da água, do telefone e do gás venceram-se, cortaram tudo. Esgotei a existência da arca-frigorifica e dos enlatados, deixou de haver comida.
Ele fez da casa apenas um sitio para dormir. Deixei de o ver, mas sentia-o chegar.
Eu deixei de limpar a casa. Aproveitava quando ía trabalhar, tomava banho e lavava a minha roupa por esses sitios alheios, comi da sopa que deixava feita para os donos das casas. Doutras vezes aparecía em casa dos meus pais e petiscava por lá sem dar a entender a fome que tinha ou o extremo em que vivía.
Não tinha que me lamentar, afinal fora eu que abrira a boca e arranjara esta situação.
Só precisava de mais algum tempo e mais algum dinheiro para me ir embora. O meu projecto tería que ficar adiado, por agora limitava-me a experimentar as técnicas de sobrevivência.

MURROS NA PAREDE

Tão mais forte que as armas, são as palavras: contundentes, perfurantes, fatalmente lentas e duradouras na sua acção de largo espectro.
Depois de ditas é impossível reter ou recuar no seu efeito, já lançaram a dúvida, a eterna questão sobre a verdade.
O meu marido depois de ter ouvido da minha boca a revelação que lhe fiz deu um murro na parede, esfolou os nós dos dedos, por vários dias a mão passou de inchada a roxo e depois a um amarelo sujo. Berrou, um grito rouco e longo.
Mas pior do que a minha afirmação foi de seguida eu ter-lhe dito que era mentira, era tudo invenção, nada tinha acontecido, eu nunca tivera outro homem para além dele e a minha atitude apenas tinha surgido como vingança por me ter chamado seca.
Não acreditou, pois se o veneno já tinha sido injectado como esquecer o que lhe havía dito, podía eu jurar quantas vezes quisesse que nada alterava o momento em que a suspeita tinha sido plantada. Para a eternidade.
A discussão foi violenta, atirámos acusações um ao outro, objectos que estavam à mão foram armas de arremesso, fizémos da cozinha um verdadeiro campo de batalha, nada ficou esquecido desde os tempos de namoro até ao presente daquela noite, odiei-o mais do que em qualquer outro dia e ele, se não me odiara até aí nesse instante os seus desejos eram acabar com a minha vida.
De preferência de um modo violento e com muito sangue.
Não sei onde passou a noite, só regressou no dia seguinte e vinha estranhamente calmo.
Eu fiz uma mala com alguma roupa, todo o dinheiro que conseguira juntar e fiquei à espera para ver em que é que as modas paravam.

GRITOS

É claro que eu não engravidava porque tinha tomado precauções para tal, mas o meu amantíssimo esposo desconhecía-o.
Desde o inicio do casamento que eu tomava a pílula, religiosamente, infalívelmente, sem nenhum esquecimento. Nunca esteve nos meus planos ter filhos dele, nem mesmo quando as coisas ainda parecíam ter a esperança de se tornarem naquilo que toda a gente me dizía, o amor, o amor há-de chegar e a felicidade, ele tem tudo para te fazer feliz.
Foi um acto de consciência, não quería que filho meu passasse por aquilo que eu havía passado ou, pior ainda, se tornasse como o pai. Não havía outra saída: se fosse mulher sería muito provavelmente mais uma empregada sem salário; se fosse homem talvez um dia perdesse a cabeça e tentaría bater na sua mulher.
O silêncio que se instalou depois da minha afirmação podía ser de vidro.
Depois estilhaçou-se. Ele berrou, chamou-me seca, estéril, incompleta.
Confesso que nesse dia não aguentei e respondi-lhe à provocação. Podería ter evitado se tivesse pensado, bastaría ter-me mantido calada, mas foi mais forte do que eu e num dos instantes em que se quedou de palma aberta à frente da minha cara, gritei-lhe eu que não podía ter filhos dele. Dele. Que já havía emprenhado de outro. O problema era dele não meu, incompleto era ele não eu.

PARA MIM, MARIA

.

.



.

.



...e haja sempre terra e estrume
e o sol case com a chuva
e nasçam sempre
novas folhas.



Do Triliti Star da Alcova dos Pesadelos



DESCENDÊNCIA

Aos poucos o tempo foi ficando mais ameno, os dias maiores.
Os humores ficam diferentes com a exposição à luz, apetece falar mais, a estação das explosões de vida renova igualmente a confiança na crença do homem bom. Claro que isto faz parte da educação a que somos todos sujeitos desde a infância, mas é inegável o efeito do sol sobre o comportamento de todos os seres vivos.
Eu tornei-me menos tensa.
O meu marido falou-me em filhos.
Elogiou o peixe assado, a temperatura do vinho, a tarte de maçã, o café cremoso. Depois foi seguindo conversa, muito calmo, lento, sobre as minhas ocupações, perguntou como ía o curso de Espanhol, divagou sobre o tempo bom, entrou pelas nossas divergências e terminou que me fazía falta ter os dias mais ocupados, que me faría bem a maternidade. Estava na altura. Todos esperavam por isso, éramos um casal saudável e o lógico sería sermos pais. Ele quería, a mim fazía-me falta, era o desejo comum de todas as mulheres. Tudo sería diferente.
Depois sorriu, esticou o braço na direcção da minha mão, aproximou-se, não havíam milagres. Para que isso acontecesse era imprescindível que um homem e uma mulher estivessem juntos, a tal história da sementinha e da terra à espera de ser cultivada.
Mantive-me calada. Não quería que se apercebesse da minha surpresa e precisava de algum tempo para processar tudo o que estava a ouvir e poder agir.
Falou-me nos quartos separados, que assim não íamos lá.
Levantei-me, rapei os pratos para a travessa, empilhei-os e disse-lhe que não podía ter filhos.

TESTES

Nunca fui uma mulher verdadeiramente feliz nem verdadeiramente triste. Acho que nunca senti nenhuma emoção que me fizesse vibrar ao ponto de dar pulos de contente, bater palmas, essas manifestações que vejo nos outros quando ganham uma corrida ou são ganhadores únicos da lotaria. Também nunca me perdi por lágrimas a fio, fechada no quarto, a moer sobre alguma coisa que me deixasse infeliz.
Na verdade, acho que nunca experimentei outras emoções mais profundas para além da raiva, da revolta e da vontade de desejar muito uma coisa, mesmo que em sonhos. Mas até isso foi de natureza passageira, passado algum tempo não sentía mais nada.
Não me considero fria, apática mas o meu carácter nunca se revelou esfusiante ao demonstrar agrado e reconhecimento. Não sei como se faz, se é que já nasce connosco ou se se adquire. Ou então, a vida nunca me proporcionou a oportunidade para ser de outra forma.
Naqueles tempos o que me mantinha viva era o meu projecto. Acabei por compreender que mais não sería do que uma forma de me testar a mim própria, saber se de facto sería aquele sonho o que me daría o click para me ligar e desligar de vez da minha dormência.

SOLILÓQUIO

Se há coisa que custe é termos alguma noticia que nos satisfaz e enche e não termos ninguém com quem a dividir.
Voltei para casa nesse dia sem me aperceber do trajecto do autocarro, foi como se tivesse estalado os dedos e aparecesse no destino sem viagem de regresso.
O convite feito não me saía da cabeça, por um lado tudo se inclinava para aceitá-lo, por outro a prudência. E por último, a inviabilidade de me meter a 100% numa casa deixando a minha, as obrigações e principalmente não dar o flanco sobre o que fazía.
Constatei com alguma tristeza que me era impossível dizer sim.
Não tinha possibilidade alguma de aceitar: menos um serviço, menos rendimentos, mais horas em casa perdida sobre o que ocupar o meu tempo.
Lembro-me que naquela altura senti uma enorme revolta. Era uma mulher adulta e prisioneira, não podía fazer o que tinha vontade, estava agarrada a um casamento que detestava e ainda não tinha dinheiro suficiente para largar tudo o que me incomodava e desaparecer no mundo.
Fiz muitas perguntas a mim mesma nessa noite. Não consegui responder-me a todas. Mas a determinação sobre o que quería para mim afirmou-se com tal força que foi como se tivesse assinado um pacto de sangue.
No dia seguinte, embora não fosse dia de ir a casa daquela senhora, meti pés a caminho para lhe dar a resposta. Achei que podería negociar com ela a minha permanência nos mesmos termos que viera a acontecer até então.
Mas não encontrei ninguém em casa.
Deixei-lhe as chaves na caixa do correio e regressei, mais sózinha que nunca.

ENGOMADORIA IDEAL

Apesar de me saber vigiada não faltei às minhas obrigações. As de dentro de casa eram as rotineiras mas o meu part-time (e porquinho-mealheiro) eram o meu garante quanto a uma sensação de liberdade e autonomia. Pouco, é certo, mas melhor que nada.
Por vezes saía de casa com muito tempo antecipado. Dava voltas pela cidade, mudava de transporte só para despistar eventuais perseguições. Na verdade nunca vi ninguém a seguir-me mas a consciência prega-nos partidas a cada esquina e com esse receio às costas achei que o melhor era prevenir-me.
Continuei a passar a ferro, aspirar, limpar, uma ou outra vez pediram-me para deixar uma sopa feita, coisa que por sinal se veio a revelar muito agradável pois recebi um rasgado elogio.
Dos proprietários dessas casas só cheguei a ver as mulheres. Eram elas que me davam as instruções, que me pagavam. Eram mulheres que trabalhavam fora de casa, com horário, com outras responsabilidades e atenções para além do universo doméstico.
Uma delas era dona da sua própria empresa. Devía andar aí pelos cinquenta, sempre muito perfumada e vestida de negro, o cabelo muito brilhante preso num carrapito enfeitado com um travessão de tartaruga. Não era de muitos sorrisos mas quando falava comigo dava atenção ao que eu lhe respondía, olhava-me nos olhos, era decidida, desenvolvía um discurso baixo mas audível claro.
Referiu-se ao meu trabalho como exemplar, especialmente na engomadoria e de seguida convidou-me para passar a ser sua exclusiva. Fiquei sem saber o que dizer. Marcou-me a semana seguinte como ultimatum para a resposta, depois disso dispensaría os meus serviços.

MORAL&BONS COSTUMES

Surpreendida mesmo, fiquei quando os meus pais apareceram a um dia de semana logo a seguir à hora do almoço.
Primeiro pensei que me vinham comunicar a morte de alguém chegado ou que algum deles tivesse adoecido seriamente.
Mas o rosto do meu pai respondeu-me de imediato e quando o tentei beijar, desviou-se.
Assim que fechei a porta levantou o tom de voz, disse-me que filha dele não era puta e que ou eu me comportava como uma mulher casada e obrigada a todos os deveres ou perdería a paciência e mesmo com a minha idade punha-me nos eixos.
A minha mãe lamuriava-se, metía-se entre mim e ele, pedía-lhe calma, que fosse esperar por ela lá embaixo no carro.
Antes de saír, o meu pai apontou-me o dedo e disse que eu já estava avisada, depois não me queixasse.
Fiquei calada, uma ira tremenda a subir-me à cara, senti-a escaldada, lembrei-me dos tempos de solteira em que à força de algumas palmadas e muitas ameças o meu pai me cerceava qualquer tipo de voo tipico para as adolescentes da minha idade. Lembrei-me do ódio que naquele tempo lhe tinha e voltei a sentir o mesmo.
A minha mãe sentou-se, segurou-me a mão, pediu-me para não lhe querer mal, que ela mesmo havía sofrido bastante com ele, com as suas escapadelas, as descobertas nos bolsos. E ainda assim lhe havía perdoado, pois estavam casados e isso era coisa para todo o sempre.
Fechei a porta.
Fiquei não sei quanto tempo encostada aí, de olhos fechados, a fazer força com a testa na ombreira. Lembrei-me do treinador. Tive saudades.
A seguir fui lavar a louça e arrumar a cozinha.

TERRITÓRIOS

Não falei ao meu marido sobre a visita da sua mãe. Aliás quase não falávamos, estava sempre alerta para que nada falhasse e ser mote para entabularmos alguma eventual discussão. Apontava tudo em pequenos papéis espalhados pelas assoalhadas correspondentes às tarefas a não esquecer: na cozinha, uma nota sobre a marca do café que ele gostava, os biscoitos de chocolate; na casa-de-banho, outra sobre o aftershave e a colónia prestes a acabar; na sala, sempre presente a garrafa de cognac que não dispensava ao fim de semana.
As poucas palavras que trocávamos resumíam-se aos cumprimentos básicos da boa-educação ou ao agradecer o cesto do pão ou o dinheiro do mês deixado em cima da mesa. Nada mais. Não havíam perguntas sobre saídas e entradas, cada um de nós sabía as delimitações do seu território e não procurávamos a invasão. Tão pouco o confronto.
Por isso não lhe falei na vinda da sua mãe, deixei que fosse ele a tocar no assunto.
Como viu que não lhe dei importância e tão pouco me queixei das suspeitas que a minha sogra me atirara à cara, calou-se.
Senti que já tinha dois contra um, ou uma - Eu - e linguaruda como era, já sería um batalhão contra mim, toda a familia.

A SOGRA

Uma tarde a minha sogra apareceu. Sem aviso, cara de poucos amigos, determinada a meter-me na ordem.
Recebi-a amável como sempre, um pouco distante como se quer a uma nora, de serviço de chá reservado às visitas mais importantes, que ela tratou de condenar pelo risco de o pôr a uso.
Olhava incisivamente nos meus olhos quando falava mas quando eu lhe respondía ajeitava o guardanapo como se nada do que dissesse tivesse realmente importância. Ignorava-me.
Rangi os dentes, mordi a lingua, houve momentos em que me apeteceu corrê-la à vassourada da minha sala mas controlei-me até ao último segundo.
Já à despedida, como se nada lhe tivesse revelado, agarrou-me com força num braço, apertou até me fazer doer e disparou se eu tinha um amante.
Respondi-lhe que não, nem o quería.
Depois ameaçou-me, perdeu a compostura e avisou-me que se eu pusesse os cornos ao filho me lixava para toda a vida, deu meia-volta e foi-se.
Achei que o meu marido lhe tinha ido chorar no colo. Apercebi-me que ía entrar num percurso dificil do meu projecto, talvez me vigiasse para me condenar.
Mas na verdade eu não tinha por que temer. Ainda.

ANATOMIA

A par com o meu interesse por estratégia de guerra, deduzi que os meus conhecimentos ficaríam incompletos se não soubesse o que podería provocar no adversário em termos de dor, ferimento infligido, paralização dos movimentos.
É que saber como actuar tería forçosamente de estender-se até ao efeito causado e nada melhor do que aprender como ser eficaz na acção cometida.
Procurei por livros de anatomia, estudei o corpo humano, as suas principais funções, para que servíam os orgãos, as articulações, o desenvolvimento hormonal ao longo do crescimento e a degradação das células a partir de uma certa altura. Aliás, bem mais cedo do que o que se imagina...
Fiquei maravilhada com a obra arquitectónica que é o nosso corpo e o tão mal que o tratamos. A sua resistência é deveras assombrosa e nunca nos devíamos queixar de doer aqui ou ali, já que é tudo fruto não de um organismo doente (na generalidade) mas do que lhe fazemos. A extensão das suas capacidades é manifestamente inexplorada ao longo da sua vida e muito mais felizes seríamos se atendessemos aos seus pedidos.
É que há que não esquecer que somos mamíferos. Vestidos de griffe, mas bestas.

ÓCIO

Habituada a gerir o tempo sob cronómetro para que nada falhasse nas minhas actividades domésticas, era agora imenso o desperdicio de horas que dantes ocupava nas viagens de ida e volta e nos treinos de boxe.
Areei todos os tachos, poli as casquinhas e as pratas, arrumei por cores as peúgas, as camisas, fiz álbuns fotográficos legendados, ensaiei novas receitas culinárias. Enfim, gastei da maneira que sabía o tempo que me sobrava.
Sentía saudades daqueles cheiros de cânfora, de pés suados, de homens, da pele ensebada das luvas, do pez e do magnésio.
Durante alguns dias pratiquei em frente ao espelho do guarda-vestidos. Mas rapidamente desanimei que o único adversário era eu mesma.
Da pesquisa que fiz todas as modalidades me aborrecíam, a maioria delas porque era frequentada em grande número por mulheres donas-de-casa que não acrescentaríam mais valia aos meus conhecimentos. Eu precisava de um mundo novo, saber coisas, beber experiências.
Não só para me preencher mas para a minha idéia, o meu projecto se constituír cada vez mais como uma realidade e arrancar de uma vez por todas.

FALTAS

Não me considero uma pessoa violenta, dada a enfrentar os outros no contacto fisico. Embora já tivesse acontecido com o meu marido e com o meu cunhado, não os posso ver como actos de quem gere a sua vida na brutalidade da pancada. Aliás, essas atitudes só surgiram como manobras de defesa ao ataque de que estava ou estaría eminente a ser vitima.
Não posso tão pouco recorrer às teorias freudianas da ausência de um pai, ausência de pénis e transformar esta minha aparente propensão para a conduta mais radical em que eu detestaría o masculino. Mentira. Gosto de homens, muito. E tolo sería se apresentasse como desculpa para o meu comportamento algum facto obscuro na minha infância. Nada disso. Fui uma criança normal como todas as outras.
A verdade é que os gestos que tive não foram manipulados, ou seja pensados.
Saltaram como molas, uma causa-efeito que nem mesma eu sei bem porque se revelaram daquela forma.
Isto tudo para dizer que naquele tempo o boxe fazía-me bem. E que a falta dele me fez um mal danado.

O NEGÓCIO

O tempo não perdoa mas ameniza. Deixam de se olhar as coisas como tragédias em que todos têm forçosamente de morrer, ou por morte cometida por outrém ou num gesto de hara kiri.
Não tenho o minimo perfil de suicida e se alguém tem que penar que seja outro.
Passado algum tempo houve condições para estarmos os dois sentados à mesa. As refeições eram tomadas no maior silêncio, eu cuidava para que nada faltasse para que ele não tivesse que pedir.
Uma noite, entre o prato de sopa tirado e o tacho de carne estufada, agarrou-me no pulso, perguntou-me o que eu quería fazer da nossa vida.
Sentei-me.
Que mantivessemos o contrato de casamento.
Ele tería uma casa cuidada, alimento, uma esposa para exibir; Eu tería abrigo e meio de sustento por ele; Ele podía ter os affaires que entendesse desde que não os arrastasse para dentro de casa; Eu tería direito a não ser questionada.
Estendi-lhe a mão para selar o negócio.
Mas ele levantou-se e saiu porta fora.

EMBATES

Nessa noite aguentei-me estoicamente.
Mal me tinha nas pernas, a cara desfigurada, inchada, embora com comprimidos as dores eram muitas, sentía que tinha sido cilindrada.
Preparei o jantar, pus a mesa, sentei-me à espera do meu marido. E do embate. Quando me olhou ficou horrorizado, desatou a fazer perguntas, se eu tinha sido assaltada, se tinham entrado em casa, o estado em que estava. Deixei-o falar. Tinha que me poupar. De repente pararam as perguntas, aproximou-se muito do meu rosto, ficou à espera da minha reacção. Disse-lhe que tinha caído do escadote quando limpava os candeeiros de tecto.
Fez-se um silêncio tremendo.
De dedo apontado à minha cara começou a gritar que nem um desalmado que eu tinha um amante. Um amante que me tinha chegado a roupa ao pêlo. Vociferava, dizía calões repetidamente, chamou-me puta. Chamei-lhe ridiculo. Disse que se ía divorciar de mim, que não me aguentava mais, que não quería um casamento destes, que estava infeliz.
Pedi-lhe que se sentasse, que me ouvisse. Mas nada o acalmava. Levantei-me e dirigi-me ao quarto, deu-me um puxão no cabelo e eu gritei com dores. Caí de rabo.
De pé, falava na minha frente, ameaçando-me, dizendo o que me ía acontecer, que me ía pôr na rua, que ele era um homem, ele é que mandava.
Respondi-lhe que fizesse o que entendesse. Nunca conseguiría provar nada de nada em Tribunal, não havíam amantes e eu sempre fora uma excelente dona-de-casa e quanto às obrigações conjugais era a palavra de um contra outro. Tería que pagar muito para se desfazer de mim.
Depois segui de gatas para o quarto e fechei a porta à chave.

ICE, ICE BABE

Um dia magoei-me seriamente nos treinos. Não fiz a esquiva rápida, tinha a cabeça cheia de idéias e conjecturas e desconcentrada apanhei com o saco de areia em cheio na cara. Caí, fiquei atordoada, ouvía falarem comigo mas não conseguía responder. Levaram-me para os balneários e o treinador acertou-me algumas chapadas na cara, sempre a falar comigo, a admoestar-me, a culpar-se por ter admitido uma mulher ali, que isto era o ponto final.
Sentou-me, amparada na sua barriga bojuda e tesa como um tambor, um pano a envolver gelo que me aplicou em cheio no nariz e nos olhos, preparando-me para a figura deformada que tería no dia seguinte, os olhos roxos, a boca inchada, uma batata a fazer de nariz.
Aos poucos comecei a ficar dorida, cada vez mais, cada vez mais intensa a dor em todo o rosto, as desculpas que iría dar em casa para o meu aspecto. Afinal, o meu marido pensava que eu estava de volta dos tachos e não num ringue de boxe.
Doía-me tudo.
O gelo ía derretendo com o calor do meu corpo e um e outro fio escorría até ao decote da t-shirt, molhava-me o soutien, sentía o frio nos mamilos, duros, erectos, um quase prazer que nunca sentira. Era uma mistura de dor e de prazer, uma coisa estranha que me aquecía entre as pernas, no baixo ventre, no abdómen.
Baixei as calças de fato de treino, as cuecas, ergui as pernas e o treinador entrou em mim.
Foi uma coisa rápida, sem beijos, mas com as mãos dele a segurarem-me as ancas, a puxarem-me contra ele, as minhas nádegas a baterem na sua barriga.
Pela primeira vez tive um orgasmo.
E essa foi a última vez que lá fui.

QUESITOS

A semana passou a estar ocupada de diferentes maneiras para além das obrigações domésticas: mulher-a-dias, desportista e estudante.
Ou seja, ganhava dinheiro para mim, tratava do meu corpo e também da minha cabeça.
Mas o que tinha planeado não se contentava só com isto; era tão pouco para o que as necessidades iríam requisitar. Afinal, fazer um bife e passar uma camisa a ferro qualquer uma podería; exibir um corpo tonificado está ao alcance da maioria das mulheres que se cuidam e para dizer yes, non e gracías bastava assistir a um qualquer programa de televisão.
Tudo o que desenvolvi e projectei era diferente, chegava mais longe e estar apenas dependente de mim exigiu que me focasse no que era realmente importante, dispensar o acessório, não perder tempo nem energia com hesitações, dar alguma atenção ao instinto e sobretudo, observar, observar muito e agrupar elementos.
Para responder a estes quesitos tornei-me fanática de métodos. Fazer bem mas com rigor, rápido mas sem erros.
Passei a analisar o comportamento das pessoas quando seguía no autocarro para os treinos, a ver o lixo nas casas que limpava, a estudar as reacções dos meus colegas de curso quando aparecía de saia ou com uma blusa decotada.
O meu marido sentía-se desconfortável à hora das refeições. Prendía-me a todos os seus gestos, pigarrear, a forma de pegar o talher, os olhos semi-cerrados quando levava o copo à boca. Tudo me era importante.
Uma noite perguntou-me porque razão tanto o olhava. Respondi-lhe que não quería que lhe faltasse coisa alguma. Senti que a conversa iría levar outro rumo, disse-lhe que era livre para ter sexo com quem quisesse desde que isso não comprometesse a nossa imagem familiar. Estilhaçou o prato contra a parede, levantou-se, a cadeira caíu e eu estiquei a faca na sua direcção.
Quesito básico no ataque: Não afrontes o inimgo se não estiveres do lado mais forte.

2/4

Uma noite telefonou-me a dizer que não viría jantar, uma reunião qualquer que se prolongaría. Não fiz perguntas, limitei-me a congelar o empadão de carne, fiz uma sandes de queijo e aproveitei para me dedicar com afinco a uma nova paixão recentemente descoberta.
Estratégia. Guerrilha. Arte de combate.
Tenho corrido tudo em bibliotecas para que possa absorver o máximo de conhecimentos sobre este tema. É verdadeiramente fascinante associarmos o que se passa num campo de batalha e o que decorre numa casa entre duas pessoas, as analogias quanto ao ataque, retirada e repouso, fortalecimento e surpresa são brutais.
Chegou perto das duas.
As aceleradelas que fez antes de desligar o carro alertaram-me para que não viría no seu estado normal, mas não esperava que chegasse tão bebedo como entrou.
Atirou-se para cima de mim, um cheiro requentado. Recordei a vez em que me tinha deitado as mãos ao pescoço e agora, musculada, preparei-me para lhe dar um directo que o pusesse KO.
Mas se o socasse e ele perdesse os sentidos, quem tería o trabalho sería eu...
Rolei-o para o lado, tirei-lhe os sapatos e falei-lhe baixo que ele vinha muito cansado. Acalmou-se na sua euforía alcoólica. Ajudei-o a despir-se, passei-lhe uma toalha molhada fria na cara e fiz café.
Chamei-o à cozinha e tomámos os dois uma chávena.
Depois dei-lhe a mão, amparou-se a mim, ainda a falar aos tropeços, deitou-se, cobri-o dedicamente com a roupa de cama e eu estendi-me a seu lado, encaixada. Sossegou e o resto da noite levou-a a roncar como uma automotora.
Eu não preguei olho: O café e o estado nervoso em que fiquei deram-me uma insónia terrível.
Na manhã seguinte chamei-o para um pequeno-almoço especial de cura rápida da ressaca: sais de fruto, sumo de laranja, café preto, torrada com geléia.
Nem me olhava. Não proferiu palavra.
À saída disse-me até logo. Eu disse-lhe que a partir daquela noite ele dormiría no outro quarto.

INVESTIMENTOS

Apesar de me auto-promover culturalmente, fazê-lo sózinha é uma tarefa bem mais árdua do que se houver alguém a levar-nos pela mão até ao caminho certo.
Foi a pensar nisso que achei que tinha de incrementar os meus conhecimentos sobre uma lingua estrangeira. O Inglês e Francês aprendidos na escola eram bons para as férias ou para dar alguma indicação aos turistas de rua, mas passado tanto tempo sem me sentar numa sala de aula, era notório como estava enferrujada.
Se bem que a lingua britânica mantenha uma universalidade incontestável, é também inegável que o nosso País está cada vez mais invadido por Espanhóis, lembrando outras conquistas de má memória que lá surgiram e foram corridas pelo Séc.XVII.
Falei com o meu marido. Mostrei-lhe os meus tempos de ócio e de algum aborrecimento, a minha vontade de estudar espanhol. Argumentei que tudo continuaría organizado cá em casa, nada influenciaría uma, duas horas por semana a minha ausência das obrigações domésticas, o curso era economico e quem sabe, talvez um dia a empresa dele fosse também parte de alguém de Castilla ou de outro reino e eu lhe pudesse valer.
Talvez tenha pensado que alguma coisa mudaría na nossa relação; Acedeu, sem mais questões; Passou-me o cheque para a mão e sorriu, Chica guapa!
Agradeci. Polidamente. E servi o jantar.
É claro que eu tinha dinheiro meu para fazer o curso e ainda outro e mais uns quantos que me desse na real gana.
Mas até isto, ser ele a pagar o investimento que eu decidira fazer em mim, estava nos meus planos. Afinal, ter uma empregada doméstica sem vencimento, não é para todos.
Para mim, há muito deixara de ser.

NÃO HÁ PERGUNTAS

Por vezes magoo-me nos treinos. Venho com nódoas negras, os dedos inchados, os músculos muito doridos.
Sei que uma e outra vez o meu marido ficou a olhar-me; Não me faz perguntas.
Eu também não lhas faço quando pego nas suas cuecas amarelecidas e tesas de esperma seco, nem quando encontro nos bolsos do casaco, restos de embalagens de preservativos.
O sexo há muito tempo que passou a ser entre nós um mero exercicio mental.
Ele sabe-o e eu também.
Partilhamos a mesma área quadrada, ele dá-me o que preciso para subsistir, eu providencio alimento e conforto.
Não desisti da idéia louca que me ataca há alguns anos.
Deixou de ser uma vingança.
Passou a ser um objectivo na minha vida.
Afinal eu só quero ser feliz.

BOXING

Vi o anúncio no jornal que embrulhava os ovos que habitualmente compro a um velhote que está do lado de fora da praça a vender.
Não sei porque razão foi o boxe e não outra coisa mais na moda como o step ou a aeróbica, a hidro ou até mesmo pilates.
Levei mais de uma hora de caminho até dar com aquilo, um velho armazém a fazer de recinto de treinos.
Falei com o encarregado, o treinador, o dono. Nenhum me quería lá: Que ía afastar a concentração dos que queríam mesmo trabalhar, que fosse procurar uma coisa mais para mulheres. Insisti. Fui mesmo carraça. Lá me aceitaram.
Treino duas vezes por semana, suo que nem um cavalo e venho sempre como nova.
Já todos se habituaram à minha presença e os assobios e bocas foleiras pararam com o tempo.
Sinto-me ali como se pertencesse àquele sitio desde sempre.
Há uma harmonia entre os cheiros, os socos e o companheirismo como nunca encontrei em mais lado algum.
Até a decadência dos sacos de areia remendados me encanta.

MERCADO DE VALORES

Uma dona-de-casa não tem salário. Não tem semana americana, com direito a Sábado e Domingo de descanso, tão pouco uma folga. Não há subsidio de almoço nem décimo terceiro mês, nem vencimento extra de férias. Não tem sindicato, não tem seguro de saúde, não tem direito a baixa.
Mas tem patrão e a maioria das vezes é ela o patrão de si mesmo nas obrigações a que se sujeita para manter a indústria doméstica a funcionar.
A certa altura consciencializei de que não tinha dinheiro meu. Tudo o que precisava para adquirir era viável através do dinheiro que o meu marido ganhava. Se quería um extra tinha de lhe dizer e pedir dinheiro, justificando.
É verdade que nunca me negou ou tão pouco se atreveu a chamar-me de esbanjadora.
Mas eu precisava mesmo de ter um meio de me subsistir a mim mesma: comecei a ver os anúncios no jornal. Quase nada me servía e aos poucos a que respondi e fui entrevistada levei uma nega redonda. Um outro era uma farsa: pagavam bem, mas era para fotos e pequenos filmes pornográficos.
Pensei muito: O que é que eu sabía fazer?
Tratar de uma casa.
E foi assim que arranjei um part-time, três vezes por semana, às tardes, não mais de duas horas.
Passava a ferro, limpava casas de banho, mudava os lençóis.
Tenho muito dinheiro meu agora. Não gastei um cêntimo. Três anos a amealhar.
É um capital que preciso para montar o meu negócio.

O CASAMENTO

Entrei no casamento como quem compra a carta de alforria. Pensava eu que conquistava a minha liberdade, a minha identidade e que mesmo não estando a caír de amor pelo meu marido um dia (eu sempre ouvira dizer que isso aparecía aos poucos), havería de o amar como lía nos romances. Haveríamos de ter noites de magia em que ele me levaría ao céu, à lua e a mais uns outros lugares.
Tudo falso.
Depressa me apercebi que o sexo era uma estopada, doía que se fartava, e depois de algum tempo a saber-me a qualquer coisa já tinha terminado. Ele fazía uns roncos, levantava-se, tomava duche e dormía até ao dia seguinte.
Era sempre muito do mesmo.
Levei três anos nesta coisa que me tirava o sono, me dava vómitos e me levou a pensar que talvez eu fosse lésbica. Comecei a olhar as mulheres de outra maneira, a encará-las de outra forma no seu corpo, a procurar descobrir como era o sexo entre mulheres. Mas rapidamente tomei consciência de que a questão não era a minha orientação sexual mas sim o parceiro com quem tinha feito um contrato.
De promessa compra e venda.
E para mim, estava na altura de vender. Só não sabía como.

PRIMEIROS PASSOS

Não fui uma criança problemática, não tive doenças para além das habituais, a minha adolescência desenvolveu-se com o número de borbulhas esperado e a menarca surgiu para bem da continuidade do nome de familia.
O meu marido foi o que me desfez a virgindade e apenas o segundo namorado que tive. O primeiro foi um colega de escola, negro, musculado, dentes muito brancos e por quem me apaixonei verdadeiramente; ele também gostava de mim, eu sentía-o. Mas mal os meus pais souberam do nosso compromisso, chegaram-me a roupa ao pêlo e deram-me o ultimatum: ou acabava com aquilo ou ía para uma escola interna de freiras.
Lá se foi tanto do nosso amor...
Talvez a minha revolta interior tenha começado aí. Não sei. Sempre fui chamada de Maria por todos mas a partir dessa altura comecei a tomar consciência do meu nome total: Maria Vitória.
Vitória era o que eu precisava na minha vida, a minha vida mesmo minha, não a vista pelos outros.

OUTRAS COISAS

Quem vê uma dona-de-casa acha sempre que ela tem buço, cheira a refogado, debulha-se em lágrimas com as novelas da televisão, usa a imitação barata do perfume francês comprado na feira e sabe ler exclusivamente os rótulos dos detergentes e fazer as contas ao quilo das batatas.
Nunca fui assim e nem pretendi ficar na obscuridade só porque me casei.
De facto, durante o primeiro ano de matrimónio ainda frequentei a universidade mas as constantes pressões do conjuge e da familia deram-me um cansaço que me tirou toda a vontade de fazer o esforço necessário para levar os estudos a bom termo.
Sempre fui boa aluna, acima da média, diga-se.
Nunca perdi o hábito de pesquisar nas horas livres, ler tudo o que me viesse parar às mãos e sempre que possível, nas tardes mais desafogadas das lides domésticas, meter pés a caminho e ir a um museu, a uma biblioteca, ver uma exposição.
Não contei destas actividades cá em casa. Revoltar-me-ía - em silêncio, sei-o - pela ironia grossa e desbocada do meu amantissimo esposo.
Agora mais do que nunca, estas coisas tornaram-se importantes na minha vida.
Mas secretas, só minhas.

HÁBITOS

Servi o almoço habitual do dia de finados, com toda a pompa e circunstância exigida a uma boa dona de casa que recebe os sogros e outros parentes mais chegados.
Fizeram-se as orações de inicio de refeição como bons católicos que todos somos.
Comeram imensamente e beberam de igual modo, alargaram os cintos e elas deram folga aos pés gordos e inchados nos sapatos de material plástico que lhes assam os calos.
Enquanto conversavam na sala, aproveitei para dar uma arrumação na cozinha.
O meu cunhado, marido da irmã do meu marido entrou e pediu um copo de água. Enquanto bebía despía-me com os olhos, depois num á-vontade que nunca lhe dei agarrou-me e apertou-me o peito, mordeu-me os seios, enfiou a mão por baixo das minhas saias e chamou-me puta.
Olhei-o nos olhos.
O cretino não entendeu rigorosamente nada e desatou a arfar no meu ouvido que eu gostava e que ficaría molhada para ele.
Dei-lhe uma joelhada nos testículos. Ele dobrou-se e abafou um grito de dor. Aproveitei e dei-lhe outra joelhada no queixo, mordeu a lingua, ficou a sangrar.
Atirei com o copo para o chão, agarrei um pedaço de vidro e passei-lho na boca. Novo golpe, desta vez um berro audível.
Toda a gente acudiu à cozinha.
Eu cunhada dedicada a estancar-lhe o sangue com o pano de cozinha. Acidentes domésticos, vá lá entender-se, o copo estilhaçou-se na boca enquanto bebía água...
Parece que se tornou um hábito eu espancar os homens desta familia.

FALAR

O jantar que servi a pedido do meu marido foi um sucesso. Esmerei-me, fiz as delicias dos convidados com o meu tempero e a minha boa disposição, sempre disponível, sempre agradável.
O fulano que vinha como um pneu sobresselente deu-me uma cantada impressionante mas eu, cortez, fiz de conta que não percebía, dei o braço ao meu marido e fiz o papel de esposa amantissima.
Depois que todos saíram e eu já bem tarde e estoirada, arrumava a cozinha, ele veio ter comigo e disse-me desculpa e obrigado, que não sabía o que tinha acontecido, que apagássemos tudo e começássemos do zero.
Sorri-lhe, disse-lhe que não havía nada para desculpar e já nem me lembrava do que se tinha passado.
Ele também me sorriu, agarrou-me na mão, beijou-ma e disse que eu estava linda, que tinha sido um encanto, uma verdadeira senhora. Depois abraçou-me com muita força, encostou o nariz ao meu pescoço, cheirou-me, mordiscou-me a orelha, beijou-me os lábios.
Foi nesse instante que tive um click e descobri como pôr em marcha aquela idéia que me consumía dia e noite.
Devolvi-lhe o beijo, lambi-lhe os lábios, as comissuras, chupei-lhe a lingua, fechei os olhos e passeei a minha mão no sexo dele que começara a ficar duro.
Ele ficou completamente louco, em meia dúzia de anos de casados nunca tinhamos tido tal tipo de intimidades, era o velho missionário e a seco cá vai disto.
Começou a falar pelos cotovelos, a pedir isto e aquilo, a maior parte das coisas eu nem percebía, continuava a beijá-lo como se quisesse comer-lhe a boca e agarrada ao sexo erecto não paráva o movimento. De repente ele sucumbiu.
Ejaculou.
Manchou as calças, eu lavei as mãos e os dentes e foi a última vez que nos tocámos.

DEPOIS

As coisas andaram muito tranquilas desde aquela noite.
Durante quase um mês não dirigimos palavra um ao outro. Ele saía para trabalhar, eu fazía as minhas tarefas de dona-de-casa. Ele voltava e eu tinha a casa arrumada e o jantar pronto a ser servido. Dormíamos na mesma cama, de costas com costas.
Todas as noites aquela idéia ocupava mais espaço dentro de mim, tomava forma, parecía uma visão, um mandamento.
Não sabía muito bem como executá-la. Só sabía que o quería fazer, que o tinha de fazer.
Um dia, à hora do jantar ele disse que precisava que eu preparasse qualquer coisa especial para receber umas pessoas, não muitas, dois casais e um fulano qualquer. Disse-lhe que sim.
Nunca conversámos sobre o que sucedera naquela outra noite.
Nem os porquês nem a minha reacção.
E agora, a esta distância, não passa de um pormenor.

A PRIMEIRA VEZ

Recordo-me como se fosse hoje.
Tínhamos recebido um casal conhecido para jantar. As coisas começaram logo a dar para o torto mal nos sentámos à mesa. Faltava o saca-rolhas e ele chamou-me estúpida pelo meu esquecimento. Durante toda a refeição elogiou a roupa, a maquilhagem, os brincos que a outra usava e comparava-a comigo, dizía-me para pôr os olhos na beleza dela.
Estava envergonhada. A outra ría-se baixinho, como um pequeno rato a desbastar o queijo e o banana do marido concordava com tudo o que o meu dizía.
Senti-me reles, pouco, inferior a qualquer mulher. Fiquei nervosa, tudo me tremía nas mãos, parecía que era a primeira vez que recebía gente em casa.
Ele bebeu muito durante toda a noite, entaramelava a lingua, as palavras saíam pela metade, esquecía-se do que quería dizer, ría-se de boca aberta, sem pudor, batía as palmas ruidosamente.
Quando por fim o casal se foi embora, também já bem bebidos, ele voltou-se para mim, agarrou-me o pescoço, apertou, apertou, senti-me tonta com a sensação da cabeça ir explodir.
Não sei onde fui arranjar forças...
Dei-lhe uma joelhada nas partes que o fez dobrar e gritar de dor.
Foi nessa altura que o pontapeei. Muito. Repetidas vezes até me saltar o sapato do pé.
Essa foi a primeira e única vez que ele tentou agredir-me.