Os créditos são lidos por uma voz em "off". É uma antecipação do tema do filme, que as duas sequências iniciais irão expor. Um rapaz recebe um telefonema anônimo, em que alguém lhe diz para deixar a casa imediatamente, sem nenhuma explicação. Em seguida, uma brigada de bombeiros sai da guarnição com destino à residência do rapaz. O motivo do telefonema e da invasão dos bombeiros é então justificado pela existência de livros no local. Encontrados, entre eles uma edição condensada de "Dom Quixote" (conforme foto acima), eles são levados para fora e ali queimados, sob a presença de cidadãos. Entre estes, um garoto folheia um dos livros, um dos bombeiros lhe lança um olhar de reprovação, o pai (supostamente) do menino, de imediato, tira-lhe o livro das mãos e o atira no meio dos outros. Está-se em um país, numa época de um futuro não determinado, em que a leitura de livros é proibida e a pessoa que os possuir é levada à prisão, enquanto os seus livros vão para a fogueira.
De 1966, este filme de François Truffaut ("Os Incompreendidos", "A Noite Americana") , antes de constituir-se em uma denúncia contra o totalitarismo, é uma declaração de amor ao livro, feita por um cineasta que foi um apaixonado leitor. Mostra a importância, a necessidade, até o prazer da leitura, ao mesmo tempo que investe contra o domínio da televisão sobre os habitantes daquele país. Por sinal que na invasão à residência do rapaz, os livros estão quase todos escondidos em um móvel simulando um aparelho de televisão.
Mas, como em todo regime totalitário, há os resistentes, os que, às escondidas, lutam contra a proibição da leitura. O líder desses combatentes é a jovem Clarisse (Julie Christie). Ela mora perto de um dos incendiários de livros, Montag (Oscar Werner) e, sentindo nele uma pessoa de bons princípios, apesar de sua dedicação àquele intolerante ofício, procura, com habilidade, torná-lo um dos seus. E consegue. Truffaut mostra o início do ingresso de Montag no universo que ele combate numa cena em que, tarde da noite, aproveitando-se do sono pesado da esposa, ele retira de um esconderijo um exemplar do "David Copperfield", de Charles Dickens, e começa a lê-lo. A câmera flagra com nitidez o capítulo inicial, cujo título é justamente "I am born"...
Em entrevista a uma jornalista, Truffaut revela que só aproveitou 60% do livro homônimo do escritor americano Ray Bradbury, lançado em 1953. Os restantes 40% foram criados por ele e Jean-Louis Richard, seu parceiro de roteiro. Uma dessas invenções é o fato de as duas mulheres na vida de Montag, Clarisse e a passiva esposa Linda, serem vividas por Julie Christie. Na sua visão, não funcionaria bem a escolha de outra atriz e com características físicas opostas à de Julie para o papel de Linda. A única diferença entre as duas, no filme, é quanto ao cabelo. Curto, parecido com o de um homem, em Clarisse, longo na esposa de Montag.
Truffaut não o revela, mas acredito que um dos elementos preservados do romance de Bradbury é a existência dos homens-livros. São homens que decoram livros, indo refugiar-se num local distante no país, a salvo das garras dos incendiários, e passam os dias "lendo". Um momento comovente mostra o velho avô, já agonizante, repassando as palavras de um livro para o neto, que as vai repetindo para retê-las na memória. A esse grupo de "leitores" vai se reunir Montag, de posse de uma obra de Edgar Allan Poe. Numa homenagem a Bradbury, um dos homens escolheu o seu "Crônicas Marcianas".
É um belo e emocionante final, cada uma das pessoas dizendo as palavras do livro de sua preferência. Pela memória dos amantes da leitura, as grandes obras da literatura não serão destruídas naquele país.
Rodado na Inglaterra, com atores britânicos, à exceção do austríaco Oskar Werner, que já trabalhara com Truffaut no belíssimo "Jules e Jim", "Fahrenheit 451" (o título refere-se ao grau de combustão ideal para a queima do papel de livro), parece ser um filme subestimado do diretor, e, no entanto, é um dos seus melhores trabalhos.