Tinhas operado os olhos. Eu ia ver as novidades na livraria, como faço todos os sábados, quando te avistei na outra calçada. Incontinenti, atravessei a rua, tomei a calçada e fui ao teu encalço. Estavas com pressa, o teu andar nervoso, os braços balançando, como se praticasses um exercício corporal. Te achei engraçado e pensei em fazer uma brincadeira. Ao chegar perto de ti, prendi-te os braços. Te viraste entre assustado e irritado, mas, ao me veres, teu rosto se alegrou e nos demos um grande abraço. Te felicitei pelo êxito da operação, começamos a conversar sobre os assuntos habituais no início dos nossos encontros, depois sugeri entrarmos num bar, para prolongarmos o papo. Até parece qie estavas esperando o convite - aceitaste-o de pronto. Fomos para um bar sossegado, lá ficamos uma tarde inteira.
Como falaste naquela tarde! A bem dizer, um monólogo. Eu te ouvia deslumbrado. Começavas a descobrir o mundo, ao modo da criança que vai tomando consciência das coisas que a rodeiam. E a descoberta te fazia feliz. Falaste das cores do dia, da beleza das pessoas. Afirmaste que agora conhecias os livros pelos teus olhos, sem ser preciso que a tua sobrinha te emprestasse os olhos dela. E isso para ti era duplamente grafificante, Mais de uma vez ficaste receoso de estares bancando o chato, só falando de ti, mas não te ouvia apenas por delicadeza, mas porque participava da tua felicidade. Não me cansaste. Com prazer ouvia as tuas palavras, que falavam das belezas das coisas e das pessoas. Como aquela mulher na sala de espera de teu médico, cuja beleza quase te deixou hipnotizado. E a tua emoção quando falaste sobre o cinema! Naquela semana tinhas conhecido Bergman e Antonioni, e a descoberta desses dois artistas maiores te deixou feliz. Mas o teu maior desejo era conheceres Carlitos - o pai de todos nós. (Meses depois um cinema local promoveu um festival de Chaplin e então disseste que já podias morrer.) Depois foste apresentado a Fellini, Welles, Losey, Buñuel e tantos outros que conferiram uma dimensão artística ao cinema.
Passei uma tarde inesquecível naquele sábado. Nunca mais tivemos um encontro como aquele. Nos vimos algumas vezes, geralmente aos sábados na livraria. No começo ainda te chamava para beber, mas, como sempre recusavas, de uma forma delicada, deixei de te convidar. Nunca me disseste: mas estou certo que querias recuperar o tempo perdido pela privação da tua visão. Os teus olhos tinham ainda tanta beleza a te revelar, não podias te esconder tardes inteiras num bar. Foram rápidos os nossos encontros, estavas sempre com pressa. Mas ainda falávamos de literatura, cinema, música e, às vezes, de política. Voltavas para casa, enquanto ia me reunir com outros amigos.
E num desses sábados entrei no Glacial, à procura de amigos, quando te encontrei sozinho numa mesa. Não eram ainda doze horas e já tinhas bebido muito. Não estavas nada bem, vi logo pelo teu olhar. Fazia dois anos que tínhamos bebido naquele mesmo bar. Mas não foste o mesmo daquele longínquo sábado. Naquela vez não ousei interromper, por um instante que fosse, as tuas palavras deslumbradas diante do mundo que se abria a teus olhos. Te ouvi embevecido, feliz por conhecer alguém sensível e inteligente como tu. Mas dessa outra vez, vendo-te deprimido, tão chocado diante do que teus olhos tinham visto até então, não pude deixar de intervir para te levantar o espírito. Infelizmente, não o consegui. A tua imagem era a de um nauseado. E confessaste: teus olhos, que haviam te mostrado a beleza, tinham também te revelado a fealdade. Testemunhaste: a hipocrisia, a violência, a fome, a miséria, a opressão, o egoísmo, a subserviência, a delação. Claro, não ignoravas nada disso, quando teus olhos viviam fechados, mas, ao conquistarem a luz, presenciaste muitas dessas mazelas bem de perto. E isso te chocou, por seres lúcido e tão sensível. Confessaste: não havias perdido a capacidade para admirar a beleza, mas sofrias quando te deparavas com uma obra de arte que punha à mostra as chagas do nosso cotidiano. Sabias (como sabias!) que a arte não deve escamotear a realidade e, no entanto, sofrias quando ela não se abstinha. Ah, meu amigo, estavas deprimido demais! E como é horrível ver alguém de quem a gente gosta nesse estado e não se poder melhorar-lhe o ânimo. Eu bem que tentei te convencer que a vida é assim mesmo, que não vale a pena levá-la muito a sério. Porque hã os momentos bons, verdade que cada vez mais raros, que nos ajudam a suportá-la. Os sensíveis, como tu e eu, são os mártires da vida, mas, em compensação, são gratificados de uma forma que é negada aos demais mortais. Fui impotente e não me posso perdoar. Saí do bar arrasado. E apreensivo pelo teu estado.
Fui a tua casa no dia seguinte, mas não quiseste me receber. No outro dia trabalhei muito e não pude te visitar, mas telefonei e não quiseste me atender. Julguei que fosse uma crise passageora. Mas na terça tua sobrinha me telefonou para dizer que havias dado um tiro no coração. Bati o fone e soltei um grito que ainda ecoa nos meus ouvidos. Um grito como aquele que encerra Teorema, filme que tanto nos emocionou. Lembras? E lembras daquela crônica de Clarice (a santa Clarice, como a chamavas) sobre um amigo que havia morrido? No final, ela afirmava que não tinha ido enterrá-lo, porque nem todos morrem. Alguém deve ter dito a mesma coisa, quando ela morreu. Por isso, meu amigo, não fui ao cemitério.
Natal (1976)
(Do livro Não Enterrarei os Meus Mortos, 1980)