terça-feira, novembro 24, 2009

LIVRARIA UNIVERSITÁRIA



Dentre as boas lembranças que guardo dos meus primeiros anos de Natal está a Livraria Universitária. Era lá nas manhãs de sábado, depois das nove horas, que me encontrava com os amigos e conhecidos de perto, entre eles alguns colegas do Cineclube Tirol. Mas deixem-me abrir um breve parêntese: esses encontros só começaram quando a sessão do Cinema de Arte, promovido pelo Cineclube Tirol, que ocorria aos sábados de manhã, foi transferida para o domingo, ainda em 1965, se a memória não estiver me pregando uma peça. Parêntese fechado, volto ao assunto. Ficávamos na calçada da livraria, conversando sobre cinema, principalmente, literatura, futebol, MPB e o que desse na telha de cada um. Política era um assunto perigoso pelo momento em que vivíamos, mas, tomando precauções, também falávamos sobre ela. Enquanto conversávamos, víamos chegar algum literato já respeitado, que entrava e ia ver os livros novos. E não deixávamos de apreciar a passagem de alguma moça que chamasse a atenção pelo corpo bem feito. Vinha, às vezes, acompanhada de outra, que merecia, ou não, o mesmo interesse. Permanecíamos até pelas onze horas, quando alguns de nós iam à procura de um bar para prolongar o papo, mamando uma geladíssima cerveja.

A Livraria Universitária reinou absoluta em Natal até meados dos anos 1980. Por aí. Instalada em 1959, conforme informação do escritor e pesquisador Anchieta Fernandes, foi, portanto, durante mais de vinte anos, não só uma forma de referência para os literatos e intelectuais da cidade, mas também um ponto de encontro entre eles. Lá, na livraria de Seu Walter Pereira, um comerciante que sabia ser um gentleman, era o local escolhido pelos escritores para lançarem os seus livros, sempre aos sábados de manhã. Com discursos do apresentador do autor e deste. Até eu, que tenho pavor de falar em público, tive que dizer algumas palavras, decoradas nos dias que antecederam o lançamento do meu segundo livro, "A Noite Mágica". Era o costume da época, felizmente abolido. No entanto, naqueles anos sessenta e até os oitenta publicavam-se poucos livros em Natal. Hoje, a cada semana se fazem dois, três lançamentos. Em um mês vêm à luz bem mais livros do que em um ano inteiro daqueles tempos.

"Rabisco" estas linhas tendo perto de mim os dois volumes da "História do Cinema Mundial", de Georges Sadoul. As páginas amarelecidas e manchadas pelo tempo, mas bem viva e legível na primeira página a letra do meu nome e da data da compra: 31 de julho de 1965. O primeiro livro adquirido na Livraria Universitária. Em um sábado, por coincidência, no dia seguinte à minha chegada a Natal. Ele serve como testemunha de um local que não existe mais (não sei em que a livraria de Seu Walter se transformou, nem se o imóvel ainda pertence aos seus herdeiros) e que me traz saudades. Mas não é assim na vida? Tudo tem o seu fim.

terça-feira, novembro 17, 2009

RAPIDINHAS (2)

Foto da cidade de Copenhague. Em Google




- Um conhecido meu é muito apegado a certas coisas. Apegou-se tanto a um dinheiro que lhe emprestrei há décadas, que até hoje não o devolveu.

- "O elevador é o único transporte gratuito e igualitário da cidade". (Aníbal Machado, no conto "O Ascensorista").

- O cantor Cyro Monteiro estava no velório do compositor Geraldo Pereira (*). Eis que chega um crioulinho, vestido modesta mas decentemente, vai até ao caixão, examina rapidamente o cadáver e faz aquele indefectível movimento de cabeça. Em seguida se dirige a Cyro e lhe diz: "Seu Cyro, que coincidência"! O cantor olha, espantado, para ele, sem entender o motivo daquela "coincidência". Na verdade, o que o crioulinho queria dizer era "catástrofe".

- "Parapeito é aquilo que quando a pessoa senta nele, muda de nome". (Millor Fernandes).

- Um humorista americano (não lembro o nome), apreciador de um copo, ia deixando o restaurante e ordenou para um senhor que entrava, que, pela indumentária, julgou ser o porteiro: "Me arranje um táxi". Empertigado, o homem respondeu enfático que era um almirante. Aí o humorista emendou": "Então, me arranje um navio".

- Final de uma conversa entre dois homens, em um ônibus.
"Por tudo isso que lhe disse, não devo mesmo amá-la"
"Então, não pague".

- Com a cobertura maciça que as tevês brasileiras deram a Copenhague, onde foi realizada a escolha para a sede dos Jogos Olímpicos de 2016, é possível que os responsáveis por um dicionário geográfico, que consultei numa livraria, tenham aprendido que é ela a capital da Dinamarca. E não Oslo, como lá está.

- A respeito dessa bobagem de politicamente correto, um amigo criou esta expressão para designar o corno: "Terceirizador de serviços conjugais.

- Contam que quando foi lançado "Sansão e Dalila", de Cecil B. de Mille, Groucho Marx disse que não iria ver um filme em que Sansão (Victor Mature) tinha os peitos maiores do que Dalila (Hedy Lamarr).

- Quando se começou a falar na possibilidade de as mulheres apitarem jogos de futebol, um jornal de Natal fez uma matéria com várias pessoas ligadas a esse esporte. Entre elas, o irreverente João Machado, presidente da FNF (Federação Norte-Rio-Grandense de Futebo), que se disse favorável à ideia, porque, nessa coisa de regra, quem entende mesmo é a mulher.


(*) Geraldo Pereira compôs, entre vários sambas de sucesso, "Falsa Baiana", gravado pela primeira vez pelo próprio Cyro. Foi assassinado pelo famoso homossexual conhecido por Madame Satã.





terça-feira, novembro 10, 2009

GINGER E FRED ( 1985)





"Ginger e Fred" começa com um trem chegando a Roma, onde desembarcam pessoas que vão participar de um programa de televisão, e termina com outro trem deixando a cidade. O trem, para quem pertence à minha geração e às anteriores, é um emblema da nostalgia, que dá o tom ao filme de Fellini. Uma nostalgia que nos leva a supor que seja do diretor, que, na época, caminhando para os setenta anos e a oito anos da sua morte, não visse mais atrativos na vida contemporânea, e o remédio é queixar-se, é sentir falta do passado. Como faz o empregado do hotel, onde se hospedam os que irão participar do programa, fazendo um desabafo para Ginger/Amelia Bonetti (Giulieta Masina) de que a Itália não tem mais os grandes jogadores de outros tempos (está passando na televisão um jogo da seleção do seu país). Ou como a própria Amelia ao dizer que Roma já foi uma cidade melhor.
Também a homenagem que Fellini presta ao cinema da sua adolescência e juventude é mais um ingrediente que compõe essa nostalgia. Uma homenagem feita através do resgate da memória de dois ícones do filmusical, revivendo-os através de uma dupla de dançarinos italianos que fez sucesso nos anos 1930 e começo dos 40, que eram chamados de Ginger e Fred. Pois essa homenagem, essa evocação a Ginger Rogers e Fred Astaire torna-se uma coisa triste, até patética, pela presença do Fred italiano, de nome Pippo Botticella (Marcelo Mastroianni), que aparece bem envelhecido, com problemas de saúde, embora demonstrando uma certa vivacidade e muito bom humor. E a decadência física dele (que, talvez, possa se estender à extinção do cinema de tempos idos) é emblematizada no tombo que ele leva quando se apresenta com a sua antiga parceira diante das câmeras de televisão.
E paralela ao elemento nostálgico caminha a crítica à televisão. Fellini escolhe um desses programas que se veem tanto nos nossos canais, para por a nu o objetivo da televisão que é o de atrair as massas, oferecendo-lhes produtos que ela julga que irão atraí-las. Um programa em que são mostradas figuras exóticas, extravagantes, curiosas (anões dos dois sexos, um transexual, um milionário em greve de fome em protesto pela matança de aves, sósias de Kafka, Proust, Clark Gable e Woody Allen e até um mafioso). E no meio dessa fauna, Ginger, que diz não atender o convite para participar de um programa junto àquela gente, e Fred. Mas é possível que, ao colocar os dois, Fellini tivesse em mente promover um confronto entre a televisão e o cinema. Como também é possível que ele, amargurado e saudoso, visse nesse "duelo" o predomínio da primeira sobre o segundo, no que se refere à conquista de público.
"Ginger e Fred", se não está entre os maiores filmes de Fellini, tem daqueles algumas qualidades e mostra o cineasta ainda em boa forma naquele ano de 1985. Com ele, bem poderia ter encerrado a sua carreira, no mínimo, de uma forma digna, sem a necessidade de fazer "Entrevista" e "A Voz da Lua", seus dois últimos trabalhos, que nada acrescentaram à sua obra.

segunda-feira, novembro 02, 2009

NÃO ENTERRAREI OS MEUS MORTOS


Tinhas operado os olhos. Eu ia ver as novidades na livraria, como faço todos os sábados, quando te avistei na outra calçada. Incontinenti, atravessei a rua, tomei a calçada e fui ao teu encalço. Estavas com pressa, o teu andar nervoso, os braços balançando como se praticasses um exercício corporal. Te achei engraçado e pensei em fazer uma brincadeira. Ao chegar perto de ti, prendi-te os braços. Te viraste entre assustado e irritado, mas, ao me veres, teu rosto se alegrou e nos demos um grande abraço. Te felicitei pelo êxito da operação, começamos a conversar sobre os assuntos habituais no início dos encontros, depois sugeri entrarmos num bar, para prolongarmos o papo. Até parece que estavas esperando o convite - aceitaste-o de pronto. Fomos para um bar sossegado, lá ficamos uma tarde inteira.
Como falaste naquela tarde! A bem dizer, um monólogo. Eu te ouvia deslumbrado. Começavas a descobrir o mundo, ao modo da criança que vai tomando consciência das coisas que a rodeiam. E a descoberta te fazia feliz. Falaste das cores do dia, da beleza das pessoas. Afirmaste que agora conhecias os livros pelos teus olhos, sem ser preciso que a tua sobrinha te emprestasse os olhos dela. E isso para ti era duplamente gratificante. Mais de uma vez ficaste receoso de estares bancando o chato só falando de ti, mas não te ouvia só por delicadeza, mas porque participava da tua felicidade. Não me cansaste. Com prazer ouvia as tuas palavras, que falavam da beleza das coisas e das pessoas. Como aquela mulher na sala de espera do teu médico, cuja beleza quase te deixou hipnotizado. E a tua emoção quando falaste sobre o cinema! Naquela semana tinhas conhecido Bergman e Antonioni, e a descoberta desses dois artistas maiores te deixou feliz. Mas o teu maior desejo era conheceres Carlitos - o pai de todos nós. (Meses depois, um cinema local promoveu um festival de Chaplin e então disseste que já podias morrer.) Depois foste apresentado a Fellini, Welles, Losey, Buñuel e tantos outros que conferiram uma dimensão artística ao cinema.

Passei uma tarde inesquecível naquele sábado. Nunca mais tivemos um encontro como aquele. Nos vimos algumas vezes, geralmente aos sábados na livraria. No começo ainda te chamava para beber, mas, como sempre recusavas, de uma forma delicada, deixei de te convidar. Nunca me disseste: mas estou certo que querias recuperar o tempo perdido pela privação da tua visão. Os teus olhos tinham ainda tanta beleza a te revelar, não podias te esconder num bar tardes inteiras. Foram rápidos os nossos encontros, estavas sempre com pressa. Mas ainda falávamos de literatura, cinema, música e, às vezes, de política. Voltavas para casa, enquanto ia meu reunir com outros amigos.

E num desses sábados entro no "Glacial", à procura de amigos, quando te encontro sozinho numa mesa. Não eram ainda doze horas e já tinhas bebido muito. Não estavas nada bem, vi logo pelo teu olhar. Fazia uns dois anos que tínhamos bebido naquele mesmo bar. Mas não foste o mesmo daquele longínqüo sábado. Naquela vez não ousei interromper, por um instante que fosse, as tuas palavras deslumbradas diante do mundo que se abria a teus olhos. Te ouvia embevecido, feliz por conhecer alguém sensível e inteligente como tu. Mas dessa outra vez, vendo-te deprimido, tão chocado diante do que teus olhos tinham visto até então, não pude deixar de intervir, para te levantar o espírito. Infelizmente não o consegui. A tua imagem era a de um nauseado. E confessaste: teus olhos, que haviam te mostrado a beleza, tinham também te revelado a fealdade.Testemunhaste: a hipocrisia, a violência, a fome, a miséria, a opressão, o egoismo, a subserviência, a delação. Claro, não ignoravas nada disso, quando teus olhos viviam fechados, mas, ao conquistarem a luz, precenciaste muitas dessas mazelas bem de perto. E isso te chocou, por seres lúcido e tão sensível. Confessaste: não havias perdido a capacidade para admirar a beleza, mas sofrias quando te deparavas com uma obra de arte que punha à mostra as chagas do nosso cotidiano. Sabias (como sabias!) que a arte não deve escamotear a realidade, e, no entanto, sofrias. Ah, meu amigo, estavas deprimido demais! E como é horrível ver-se um amigo nesse estado e não se poder melhorar-lhe o ânimo. Eu bem que tentei te convencer que a vida é assim mesmo, que não vale a pena levá-la muito a sério. Porque há os momentos bons, verdade que cada vez mais raros, que nos ajudam a suportá-la. Os sensíveis, como tu e eu, são os mártires da vida, mas, em compensação, são gratificados de uma forma que é negada aos demais mortais. Fui impotente e não me posso perdoar. Saí do bar arrasado. E apreensivo por causa do teu estado.

Fui a tua casa no dia seguinte, mas não quiseste me receber. No outro dia trabalhei muito e não pude te visitar, mas telefonei e não quiseste me atender. Julguei que fosse uma crise passageira. Mas na terça tua sobrinha me telefonou para dizer que havias dado um tiro no coração. Bati o fone e soltei um grito que ainda ecoa nos meus ouvidos. Um grito como aquele que encerra "Teorema", filme que tanto nos emocionou. Lembras? E lembras daquela crônica de Clarice (a santa Clarice, como a chamavas) sobre um amigo que havia morrido? No final, ela afirmava que não tinha ido enterrá-lo, porque nem todos morrem. Alguém deve ter dito a mesma coisa quando ela morreu. Por isso, meu amigo, não fui ao cemitério.

Natal (1976)


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Este conto, já publicado aqui em 30.04.05, faz parte do meu livro de título homônimo, de 1980, edição da Fundação José Augusto, Natal.