terça-feira, outubro 27, 2009

A DITADURA E A PARANÓIA



Já se disse que o maior dano causado pela ditadura militar foi o de ter introduzido a paranóia na mente das pessoas. Qualquer estranho, que aparecesse no meio de um agrupamento de pessoas, era visto com suspeita. Era assim na nossa Faculdade, era assim em qualquer outro local fechado. (Lembro Nélio me contando que alguns de seus companheiros do Cine Clube Tirol estavam com o pé atrás em relação a um sócio recém-admitido, vindo de outro Estado. Só depois de alguns meses verificaram que o coitado era inocente.) Nas ruas, nos bares, ficava-se incomodado com a presença, por perto, de alguém que estivesse sozinho. Mas, como naquele caso contado por Nélio, muitas a suspeita era infundada.
Por uma dessas ironias de que a vida está cheia, fui eu em certa ocasião também vítima desse tipo de suspeita. Logo eu que procurava estar sempre atento à presença desses informantes em nosso meio. Foi num sábado, fim de tarde. Estava sentado no batente da entrada do meu edifício, à espera de um colega de turma. Ele vinha me apanhar para jantar em sua casa e em seguida estudaríamos a matéria da qual faríamos exame na segunda-feira. O final do ano letivo se aproximava.
Vizinho ao edifício funcionava um café, assim chamado, mas que servia também bebidas. Café da Mocidade era o nome nem um pouco inspirado do estabelecimento. Além de, conforme ouvi um cliente dizer certa vez ao proprietário, conter esse nome o risco de afugentar os fregueses que já tivessem passado pela juventude. Ao que o dono (um sujeito magrinho, risonho e que desmunhecava um pouco) replicou que, ao contrário, aquele nome seria um chamariz para atraí-los ao seu café, por lhes dar a ilusão de que ainda eram jovens. Quando fui morar no edifício, ali funcionava uma marcenaria, onde, aliás, mandei fazer uma pequena estante, logo depois de ocupar o apartamento.
Três homens estavam bebendo à primeira mesa localizada à esquerda de quem penetrava no café. Um deles era presença assídua nos bares, sempre dava com ele, ao entrar num. Ocupava uma cadeira ao lado da parede, de frente para um dos acompanhantes, enquanto o outro ficara à sua esquerda, na cabeceira. Ficando a mesa logo à entrada do café, era possível a quem estivesse na posição em que me encontrava, ver aquele papudinho, bastando-lhe apenas virar o rosto para o interior do bar. Ele, por sua vez, poderia me ver com nitidez, desde que se interessasse em olhar na minha direção.
Ali sozinho, aguardando o colega, de vez em quando, para me distrair, olhava na direção do sujeito. Olhava um pouco e voltava o rosto para a rua. Nas primeiras vezes ele não pareceu dar pela minha presença. Até que numa hora em que olhava em sua direção, ele, de repente, virou o rosto para mim e me encarou, obrigando-me a desviar o rosto.Pela reação estampada no olhar do papudinho, percebi que ele não tinha gostado nada de me ver ali por perto. Assim, o melhor a fazer era parar de olhar o sujeito. Mas o que devia ter feito era simplesmente ter dado o fora dali. Eu teria sido poupado de ouvir as palavras duras e feias do papudinho, que não foram dirigidas a mim diretamente, mas era como se tivesse sido, já que ele falou bem alto para que eu pudesse escutar. Ele me confundira com um informante, um dedo-duro. Falava aos companheiros de mesa, como se fosse comigo. Um deles, foi o que pressenti, pois continuava com o rosto virado para o outro lado, veio até à porta e ficou me observando. O destempero verbal daquele desgraçado acabou chamando a atenção do proprietário do café, que, ao ficar sabendo do que se tratava, livrou a minha cara. Eu estava ali porque morava no edifício. Ele tinha me visto sentado no batente, numa ocasião em que apareceu na entrada do café, e até me cumprimentara. Apesar do esclarecimento do dono do café, fiquei arrasado. Precisei desabafar com o colega, que chegou logo depois.
Ao contar o episódio a Laura no dia seguinte, ao nos encontrarmos no Cinema de Arte, mostrei a ela a que grau de paranóia as pessoas haviam chegado. Até um sujeito como aquele, que levava o tempo a freqüentar os bares, se sentira espionado.

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- Trecho do meu romance A Venda Retirada, EDUFRN, 1998.
- Mantive a forma ortográfica da época em que o livro foi publicado.

terça-feira, outubro 20, 2009

15 FILMES DE GRANDE FINAL (*)


A fotografia, a cor, a pintura, a poesia: final de Gritos e Sussurros


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- Oito e Meio (Federico Fellini)
- A Doce Vida (Fellini)
- Rastros de Ódio (John Ford)
- Crepúsculo dos Deuses (Billy Wilder)
- Luzes da Cidade (Charles Chaplin)
- Blow-Up (Michelangelo Antonioni)
- Lola Montés (Max Ophuls)
- O Tesouro de Sierra Madre (John Huston)
- Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha)
- O Leopardo (Luchino Visconti)
- Shane/Os Brutos Também Amam (George Stevens)
- Cinema Paradiso (Giuseppe Tornatore)
- Pickpocket ( Robert Bresson)
- De Punhos Cerrados (Marco Bellocchio)
- Gritos e Sussurros (Ingmar Bergman)

(*) Ordem não preferencial.

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LIVRO SOBRE O CINEMA BRASILEIRO

Hoje, a partir das 16 horas, no auditório do Departamento de Enfermagem do campus da UFRN., ocorrerá o lançamento do livro "CENAS BRASILEIRAS - O cinema em perspectiva multidisciplinar (1928-1988)" - Sessenta anos de cinema brasileiros analisados através de filmes comentados por vários cinéfilos/críticos. Este blogueiro é um dos participantes, como também Moacy Cirne, do blogue Balaio Porreta, e Bené Chaves, do desativado blogue O Apanhador de Sonhos. Aliás, Bené é um dos organizadores da coletânea, juntamente com Marcos Silva, potiguar que leciona na USP. A edição do livro é da EDUFRN.










terça-feira, outubro 13, 2009

O MAIOR AMOR DE CAMÕES


Folha de rosto da primeira edição de "Os Lusíadas"
Foto em www.unicamp.br/



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Sabem aquele belo e conhecidíssimo soneto de Camões que começa com os versos "alma minha gentil que te partiste, tão cedo desta vida descontente"? Pois bem, há uma história por trás dele. A mulher a quem ele se dirige não só existiu, como é considerada o maior amor do poeta, que os teve muitos. Tantos que, para o escritor cearense Airton Monte (*), comparado com ele, Vinicius de Moraes" é o mais casto dos seminaristas".
O fato assim aconteceu. Nomeado pelo rei de Portugal da época, Camões foi trabalhar na Ásia, em uma região onde é hoje o Vietnam de amarga lembrança para os americanos do Norte. Chefiava um órgão que administrava os casos de heranças sem a existência de herdeiros. Consta que problemas financeiras levaram o poeta a meter a mão no dinheiro que pertencia ao reino ao qual servia, e, por conta disso, foi intimado a regressar a Portugal para se explicar e se defender. Embarcou levando uma bela asiática que conquistara enquanto ficou na região. Além da mulher, levou o manuscrito de "Os Lusíadas". No meio da viagem, abateu-se uma tempestade, que faria o navio naufragar. E aí o poeta confrontou-se com uma luta interior, tão intensa quanto a fúria do mar: ou se salvava (e com ele o manuscrito), ou salvava o seu grande amor. Não é preciso dizer qual foi a sua decisão. Mais tarde compõe o soneto em que, na medida em que chora a perda da amada, expõe o remorso pela culpa da morte dela.
O ato de Camões dá ensejo a uma questão. Uma obra literária, por maior que seja, é mais importante do que a vida de uma pessoa? E mais ainda se se tratava de alguém que ele tanto amava, a ponto de levá-la para Portugal? Não é exagero, nem impróprio, considerá-lo um criminoso. Por outro lado, o poeta (e, por extensão, o artista), é um ser diferente dos demais mortais, não é uma pessoa "normal", é alguém que vê e sente as coisas de um outro ponto de vista. A sua obra é o que mais lhe importa. Não deveria ser assim, mas, infelizmente, é assim. Pode haver exceções, mas, no geral, o homem a quem foi dado o dom de criar coisas belas e imorredouras, é assim.
E se existe algo que, não digo possa absolvê-lo, mas que seja uma atenuante para o seu ato, é que o que ele preservou foi uma obra da grandiosidade de "Os Lusíadas"; e, de quebra, ele produziu esse soneto belíssimo em homenagem à mulher que mais amou. Muito mais grave seria se tivesse acontecido algo idêntico a Sarney, para que não se perdessem os originais daquele tal de "Marimbondos de Fogo".

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(*) O fato aqui narrado, com alterações de linguagem, foi extraído da crônica "Ninguém é Perfeito", publicada por Airton Monte no jornal "O Povo", de Fortaleza (CE), em 23.9.09.

terça-feira, outubro 06, 2009

UM APELIDADOR DIFERENTE



Em Canindé havia um rapaz chamado Wilson Monteiro. Sua grande paixão era o futebol. Torcedor do Flamengo. Chegou a formar um time de garotos. Algumas vezes reunia em torno dele, num banco da praça da Basílica, um grupo de meninos, entre eles eu, para falar de futebol. Houve uma noite em que ocupou o serviço de alto-falantes para assumir a função de um narrador esportivo (quem sabe se não era essa a sua vocação?). Tinha ocorrido no dia anterior uma partida de dois times de Canindé, esses de adultos. Ele narrou os gols, desde o início da jogada até à entrada da bola na rede.
Mas não quero destacar aqui o grande apaixonado pelo futebol, mas o seu talento especial para colocar apelidos. Um apelidador diferente de todos que conhecemos. No apelidar, não usava o recurso de se valer de um defeito físico da pessoa, de um hábito, uma mania esquisitos que ela tivesse, ou ainda um tique nervoso. Essas formas perversas que provocam a ira dos apelidados, como se a eles não bastasse o estigma de ter uma anomalia, principalmente no corpo.
O método de Wilson Monteiro era o de alterar o nome da pessoa, identificando-o com o de outra pessoa famosa ou prestigiada. Assim. Edmundo Soares (de quem já falei aqui uma vez) era por ele chamado de Macedo, por causa de uma figura de projeção nacional, o Edmundo Macedo Soares. Um meu companheiro de infância, Batista, era o Luzardo, numa analogia com o político e embaixador gaúcho Batista Luzardo. Já o meu irmão Haroldo foi apelidado de Juaçaba, nesse caso a fonte foi um muito conceituado médico de Fortaleza, Haroldo Juaçaba, que faleceu recentemente aos 90 anos.
E por aí ia. Mas ele não punha apelido em todo mundo. Aliás, não era muito grande o número de apelidados. Talvez ele não o fizesse por uma falta de intimidade com a pessoa. E também houvesse dificuldade para conseguir essa conciliação de nomes.
Outro irmão meu tinha um apelido, mas não me lembro qual era. Já eu "escapei", talvez por ele não saber que não me chamo apenas Francisco, mas Francisco de Paula. O nome de um santo italiano, o mesmo do presidente da República Rodrigues Alves. Não teria sido apelidado de Rodrigues Alves? Ou Rodrigues?
Wilson Magalhães Monteiro - grande figura.