O soldado dormia esparramado na cadeira.Roncava alto, o corpo remexia-se como sob ação de descarga elétrica, o homem que vinha denunciar ficou observando-o divertido (e o homem tinha muita pressa em denunciar). Quando se achou satisfeito, foi acordar o soldado, primeiro chamando por ele, a seguir gritando e batendo na mesa. O soldado não acordava, o homem que vinha denunciar fez um canudo de papel e foi cocegar a orelha do dorminhoco. Este deu um pulo, assustado, a mão logo puxando o revólver da cartucheira, mas o homem gritou é de paz e o soldado recuou em tempo. Endireitou-se na cadeira, passou os os dedos nos olhos sonolentos e perguntou o que o homem queria.
- Desejava falar com o senhor Delegado.
- O senhor Delegado está recolhido à cela.
- É possível ser recebido por ele?
- É muito importante? Porque o senhor Delegado deu ordem para não ser incomodado com assunto que não seja de suma importânci.a
- O assunto que venho tratar não é apenas de muita importância, mas igualmente da maior urgência.
O homem que vinha denunciar disse isso com tanta convicção que o soldado saltou lépido da cadeira em busca do telefone. (A rapidez do gesto espantou o homem, que não o imaginava capaz numa pessoa que há dois minutos dormia daquele jeito.) Do outro lado demoraram a atender. O soldado ainda não estava inteiramente desperto, voltou a dormir ali mesmo em pé. Em dado momento acordou, outra vez assustado, na certa por um berro da pessoa do outro lado. Devia ser o Delegado, o soldado perfilou-se, falou manso, todo servil. Quando desligou, pediu ao homem para o acompanhar.
Penetraram logo num corredor curto, depois pegaram um outro, esse longo e largo. Tão silencioso àquela hora, o homem que vinha denunciar teve a impressão que todas as celas estavam desocupadas. Andaram um bom pedaço até chegar à cela do Delegado, que era a última do lado direito. Um homem fardado esperava atrás das grades. O soldado perfilou-se, bateu continência e apresentou o acompanhante. O Delegado lhe ordenou que abrisse a cela. Fechou-a, bateu continência, saiu correndo, por certo para não deixar fugir o sonão interrompido.
O Delegado foi para junto do birô com o homem. Não parecia ter saído do sono, como o soldado. Ou tivera o cuidado de escorraçar o sono com um jato dágua na cara.
De relance o homem que vinha denunciar descobriu uma cama no fundo da cela e uma porta que julgou dar para um banheiro. O Delegado havia juntado as mãos, como se rezasse, e assim contrito perguntou ao homem a razão da visita.
- Senhor Delegado, peço-lhe que me perdoe por incomodá-lo a esta hora, mas é que tenho uma denúncia... uma denúncia muito grava para fazer.
- Um momento, por favor. Queira declarar o nome e o endereço.
- É estritamente necessário, senhor Delegado? Porque desejava permanecer incógnito.
- Apenas uma formalidade. Na verdade, o senhor não terá qualquer responsabilidade assim que pôr os pés fora desta Casa.
Tranquilizado, o homem declarou o nome e o endereço que o Delegado anotou num livro que retirou da gaveta.
- A quem o senhor deseja denunciar?
- Ao meu vizinho.
- O nome do seu vizinho.
- O senhor vai me perdoar outra vez, mas não sei como se chama o meu vizinho. Até agora não consegui saber. Aliás, isso faz parte do procedimento esquisito do meu vizinho.
- No entretanto, torna-se imperioso que o senhor dê uma indicação mais precisa a respeito do seu vizinho. Digamos assim: é o seu vizinho do lado direito ou do lado esquerdo?
- Do lado direito, senhor Delegado.
O Delegado anotou no livro.
Muito bem. Que espécie de denúncia o senhor deseja fazer contra o seu vizinho do lado direito?
- O meu vizinho não fala, senhor Delegado. Isto é, eu nunca ouvi a voz dele em quase um ano que somos vizinhos.
- O senhor nunca ouviu a voz do seu vizinho do lado direito? Nunca o ouviu assim ralhar com o filho, ou mesmo pedir algo dentro de casa? Um par de meias para calçar, por exemplo?
- Nada, senhor Delegado. Para o senhor ter uma idéia de que o meu vizinho não fala, basta que lhe diga que nas poucas vezes que nos encontramos, nem um bom-dia me deu.
- Não se tratará de um mudo?
Não, senhor Delegado, mudo é que ele não é. Eu mesmo cheguei a pensar nessa possibilidade até o dia em que soube por um outro vizinho que ele é um professor. O senhor acha que ele poderia ser mudo sendo um professor?
O Delegado não respondeu, baixou a vista para o livro. Escreveu, escreveu, escreveu. Quando terminou, ficou pensando, de mãos juntas, parecia não perceber a presença do denunciante, que o tempo todo não despregou os olhos do rosto do Delegado. Afinal falou.
- Realmente é bem estranho o procedimento do seu vizinho do lado direito. O senhor acaba de fazer uma denúncia muito grave. Algo aqui me diz que se trata de um indivíduo sumamente perigoso. Amanhã mesmo darei ordem para que todos os passos desse indivíduo sejam fiscalizados. E quanto ao senhor, cabe-me agradecer por haver prestado um serviço de grande valia. Muito obrigado, senhor.
Ora, senhor Delegado, não há de que agradecer. A nossa obrigação de cidadão é ajudar as autoridades no combate ao mal. Só desejaria que o senhor confirmasse a promessa de que o meu nome permanecerá afastado do processo de sindicância sobre o meu vizinho.
- Não tenha o menor receio, senhor. Nada lhe acontecerá, eu dou-lhe a minha palavra de honra.
E trancou a boca. Certamente dava a entender ao denunciante que nada mais o retinha ali. O denunciante percebeu-o, falou que já estava na hora de ir-se. Um instante só, o Delegado pediu a ele, e discou o telefone.
- O meu soldado está a todo o sono - disse mais para si, nem havia impaciência em sua voz. O denunciante é que não podia desperdiçar a oportunidade de dar chocalho à língua.
- Notei que o soldado é um bocado dorminhoco.
- Todos os meus homens dormem bem. Eu os faço ingerir sempre uma quantidade razoável de soporíferos. Tenho por princípio o seguinte: o homem dormido vale por dez.
- Um princípio muito válido, não tenha a menor dúvida, senhor Delegado.
O soldado chegou, bateu continência, abriu a cela, o denunciante saiu, fechou a cela, bateu continência. E o Delegado, o Soldado e o Denunciante foram dormir com muita paz.
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- Conto extraído do meu livro A Noite Mágica (Ática/1979)