quarta-feira, dezembro 27, 2006

UM CERTO PARTE, UMAS CERTAS PALAVRAS

Foi há quase 50 anos, mas, vez por outra, me vem à lembrança a figura daquele padre. E de tão entranhada a lembrança, nos meus ouvidos sinto como se ainda ressoassem as suas palavras. Eu devia estar com 15/16 anos, estudava em Fortaleza e hóspede de uma pensão no centro da cidade. Acho que vi aquele padre 5, 6 vezes, talvez nem isso. E sempre pelas imediações dos Correios e do Banco do Brasil, o que me faz supor que morasse ali por perto. Gordo, estatura de mediana para alta, usava óculos e talvez chapéu. Uns 60 e poucos anos. E sempre que nos encontrávamos, ele esboçava um certo sorriso, que não era um sorriso de amabilidade. De ironia? Podia ser. Mas hoje tenho pra mim que era o sorriso de alguém que não tinha o juízo perfeito. Àquele padre faltava, não um, mas alguns parafusos . As palavras que me disse na última vez em que nos vimos reforça essa convicção. Me incomodava aquele sorriso, tanto quanto me causava repulsa aquela figura. E quase toda vez que andava por aqueles lados, lá aparecia o diabo do padre - o sorriso inseparável ao passar por mim.
Eu estava um dia no saguão do Banco do Brasil. Creio que tinha ido receber uma ordem de pagamento enviada por um irmão. Me recostara à parede, se bem me lembro, de frente para os caixas. De repente me viro para a entrada do prédio e vejo o padre olhando na minha direção. Cadê o sorriso? Ali grudado nos lábios, como sempre. Não viera resolver negócio coisa nenhuma. Certamente me vira entrar e , supondo que iria me demorar, não quisera perder a oportunidade de me aporrinhar a paciência, como das vezes anteriores. Daquela vez, no entanto, tinha algo a me dizer. Veio ao meu encontro e, ao chegar perto de mim, disparou estas palavras: "Você não vai viver muito". Falou baixinho, para não ser ouvido por alguém próximo a mim. E virou-se e foi embora. Pode ser que, antes de sair, tenha se voltado e esboçado aquele incômodo sorriso. Pode ser. Só que não me lembro. Me lembro, sim, que, de tão aturdido por suas palavras, me faltaram as minhas para lhe perguntar em que se baseava a sua "profecia". "Por que o senhor está dizendo isso"? Era o que devia ter perguntado àquele padre maluco, mas não: fiquei mudo. E o pior. Por muito tempo aquelas palavras não me saíram dos ouvidos. "Você não vai viver muito". E, então, deixei de andar por aquela área. Não queria mais encontrar aquele traste. E nunca mais o vi. Ainda tenho dúvida, no entanto, se se o visse, teria coragem de perguntar por que ele me dissera aquilo.
Como afirmei, esse fato ocorreu há quase 50 anos. Durante algum tempo me preocupei com as palavras do padreco. Depois, à medida que os anos passavam e eu não batia a caçoleta, deixei de me preocupar. Mas aqui-acola "vejo" aquele velho maluco de batina e "ouço" as suas palavras. Abrenúncio!

sábado, dezembro 23, 2006

OS DEZ MELHORES VISTOS E REVISTOS DE 2006


Antes de divulgar as listas dos 10 melhores filmes por mim vistos e revistos no ano que está se findando, nas quais, como todas as listas, estão presentes vários fatores individuais e subjetivos, acho necessário dar estas explicações. 1) As listas são EM ORDEM ALFABÉTICA. 2) Ao contrário de outros cinéfilos/críticos, resolvi relacionar apenas 1o títulos (tal como ocorria nas litas feitas nos anos 1960) . 3) Apesar de feito para a TV, decidi incluir Saraband , tendo em vista a sua qualidade, revelando um Bergman em grande forma do alto dos seus 85 anos à epoca da realização do filme. Agora as listas, sujeitas a chuvas e trovoadas (risos).
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FILMES VISTOS (no cinema e em DVD)
- Boa Noite e Boa Sorte (George Clooney/2005)
- Capote (Bennett Miller/2005)
- Flores Partidas (Jim Jarmusch/2005)
- O Maior Amor do Mundo (Cacá Diegues/2006)
- Marcas da Violência (David Cronenberg/2005)
- O Novo Mundo (Terrence Malick/2005)
- Saraband (Ingmar Bergman/2003)
- O Segredo de Brakeback Mountain (Ang Lee/2005)
- A Vida é um Paraíso (Kay Polack/2005)
- Volver (Pedro Almodóvar/2006)
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FILMES REVISTOS (em DVD)
- Atlantic City (Louis Malle/1980)
- Caçada Humana (Arthur Penn/1966)
- Lua de Fel (Roman Polanski/1992)
- Meu Ódio Será Sua Herança (Sam Peckinpah/1969)
- Noites de Circo (Ingmar Bergman/1953)
- Paixão dos Fortes (John Forf/1946)
- Persona (Bergman/1966)
- Rio Vermelho (Howard Hawks/1948)
- Sob o Domínio do Mal (John Frankenheimer/1862)
- O Último Pistoleiro (Donald Siegel/1976, último filme de John Wayne)
AOS AMIGOS E AMIGAS VISITANTES DESTE BLOGUET^
Têm surgido, ultimamente, problemas na parte de comentários desta página. Pessoas que não conseguem fazer seus comentários, ou estes desaparecerem depois de feitos. Em contato com o rapaz que fez o blogue, ele me prometeu estudar uma modificação na forma deles, para evitar, na medida do possível, que tais fatos venham a ocorrer.

quarta-feira, dezembro 20, 2006

UM TEXTO DE HORÁCIO PAIVA

Pela segunda vez este blogue é abrilhantado por um texto em prosa do poeta Horácio Paiva. E, por coincidência, o assunto , também como o primeiro aqui publicado, trata de uma homenagem de Horácio a um amigo que se foi. Ei-lo.
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UM MÊS
Um mês sem a presença física de D. Nivaldo Monte entre nós e nesta Natal que amou. Um mês deste tempo que inventamos e que aprendemos a repartir e contar. Mas que, sem retorno, não o devolve. Porque o seu tempo - como, de resto, o nosso tempo - é o da eternidade.
Li certa vez que perguntaram a Galileu Galilei quantos anos ele tinha, ao que respondeu: "Cinco, dez, ou quinze anos. Talvez mais, ou talvez menos. Talvez alguns dias, ou somente um dia. Sim, porque o tempo passado já não me pertence e apenas posso contar com o futuro. Mas este eu não sei precisar".
Sobre esse tema, o tempo é o que dele nos cabe em vida, diz Marco Aurélio em suas "Meditações" (Livro II, 14):
"Ainda que os anos de tua vida sejam três mil ou dez vezes três mil, lembra-te que ninguém perde outra vida, senão a que vive agora, nem vive outra senão a que perde. O prazo mais longo e o mais breve são, portanto iguais. O presente é de todos: morrer é perder o presente, que é um tempo brevíssimo. Ninguém perde o passado nem o futuro, pois a ninguém podem tirar o que não tem".
A matéria do presente seria, então, o próprio tempo. E administraria melhor o seu tempo existencial aqueles que tivessem o seu olhar mais amplo, universal, holístico, de conjunto o visionário.
Tenho que, na arte de viver, expressem sabedoria aqueles que sabem distinguir o principal e o secundário, mantendo a serenidade e a tranquilidade de espírito (mesmo diante das adversidades, comuns na vida de todos) e estando, dessa forma, maus próximos também da felicidade.
A esse própósito, D. Nivaldo Monte não foi apenas um sacerdote, mas um sábio, um visionário, alguém que soube aliar o espírito contemplativo à ação.
Sêneca, um dos mais expressivos pensadores do estoicismo romano - filosofia, aliás, tão presente em nossa religião cristã - recomendava alternar o recolhimento e a vida social: Misturemos as duas coisas: alternemos a solidão e o mundo" (in "Da Tranquilidade da Alma" - XVII, 3) .
A meu ver, portanto, o belo perfil existencial de D. Nivaldo continha esses dois lados: o contemplativo e o ativo.
Nesse último sentido, é inegável a sua profunda contribuição ao desenvolvimento educativo, cultural, político e social de nossa gente.
Entregue ao pensamento, à literatura e às reflexões, não se pode negar, também que foi um vigoroso homem de ação. Aliado ao seu grande amigo e também figura de proeminência da Igreja, D. Eugênio de Araújo Sales, é autor de inúmeros feitos exemplares, essenciais ao progresso e ao crescimento moral e espiritual de nosso povo. Crior, por exemplo, a Rádio Rural (Emissora de Educação Rural), utilizando-a como importante e pioneiro instrumento de alfabetização e educação em nosso Estado. Outra ação pioneira de sua lavra foi a instalação da Escola de Serviço Social (hoje integrada à Universidade Federal do Rio Grande do Norte), primeira entidade de ensino superior, na espécie, em Natal.
Nos anos de chumbo da ditadura, quando um grupo de humanistas e democratas (Padre Pio, Dermi Azevedo, Elias Cabral Maciel, Rivaldo Fernandes e eu) lutavam contra a opressão, e pela criação de um comitê de defesa de direitos humanos, encampou a idéia e deu-lhe forma até mais ampla, com a fundação da Comissão Pontifícia Justiça e Paz, da qual fui presidente, primeira entidade estadual (mas vinculada ao Vaticano, daí "Pontifícia" ) destinada à defesa dos direitos humanos. Movimento idealista e agregador, a ele somaram-se outros nomes, tornando-o ainda mais forte. Carlos Antônio Varela Barca, Padre Vilela (Pastoral Carcerária), Adilson Gurgel de Castro (primeiro presidente), Marcondes Assis da Silva (Pastoral da Juventude), Marlúcia Paiva, Francisco Gomes, Oswaldo e Roberto Monte e outros.
Era meu amigo e em várias ocasiões conversamos muito. Sobretudo filosofia, política, religião e poesia. Havia entre nós um elo de simpatia, a identificação espiritualo que tanto aproxima as pessoas. Mostrou-me manuscritos seus antes de torná-los livros. Certa vez falava-me sobre a coragem e definia o corajoso não como aquele despojado do medo, mas que o dominava. Tema, aliás, que aborda em seu livro "Toda Palavra é uma Semente": "O problema, o verdadeiro problema não é ter ou não ter medo, mas, quando necessário agir, deixar-se levar pelo temor".
Dediquei-lhe uma tradução que fiz do "Noche Oscura", do místico e grande poeta espanhol San Juan de la Cruz, para mim um dos momentos mais altos (senão o mais alto) da poesia em língua castelhana, que trata do encontro da alma com Deus e cuja primeira estrofe (transcrita no original) associo agora à sua própria partida, após concluída a sua obra, e estando em paz com Deus e com os homens.
"En una noche oscura
com ansias en amores inflamada,
oh dichosa ventura!,
sali sin ser notada,
estandu ya in mi casa sosegada".
Em memória do amigo, em maio às ilusões do mundo e do mistéria, revela-me a poesia, de observação e confiança cósmicas:
A realidade
é a opção
do provável.
O real
é Deus.

domingo, dezembro 17, 2006

VOLVER (2006)


O filme se inicia num cemitério, onde as irmãs Raimunda (Penelope Cruz) e Sole (Lola Dueñas) estão visitando o túmulo da mãe, acompanhadas da filha da primeira, Paula (Yolanda Cobo). Lá encontram a amiga Agustina (Blanca Portillo), que vai cuidar do próprio túmulo. Um costume cultivado naquela região da Espanha, conforme a mãe informa à filha, que estranha o fato. Com esse início e as mortes, não muito tempo depois, da velha tia das irmãs e do marido de Raimunda, Paco (Antonio de la Torre), assassinado por Paula, ao se defender de um assédio sexual dele, além da descoberta de Agustina de que está com câncer, fica patente que a morte é o elemento principal de "Volver". Mas a sua presença não inibe a intromissão do humor, já que se trata de Almodóvar, um diretor que se nos últimos anos dirigiu a atenção para o drama, não abdicou de todo do humor. Só que este já não aparece (ou aparece pouco) da forma muitas vezes grosseira e vulgar dos seus primeiros filmes. Até nesse particular é evidente a sua evolução.
"Volver" é também um filme feminino, a exemplo de "Tudo Sobre Minha Mãe". O relevo dado à mulher na história, dentre outras expressões, está a de valor quantitativo. Já a participação do homem, além de reduzida, é apresentada de forma desfavorável, como a de Paco, querendo seduzir Paula. Ou a do pai de Raimunda e Sole, cuja memória é maculada pela revelação de que teve uma relação incestuosa com Raimunda, como se não bastasse a traição frequente à esposa.
Apesar da força da narrativa, que prende a atenção, da direção de Almodóvar, que se faz sentir até na atuação das atrizes (todas muito bem) , "Volver" não chega ao nível de um grande filme, como "Fale com Ela", provavelmente o melhor dele. Acho que a causa está em certas situações do roteiro, que , apesar destas, é de boa qualidade, o que mostra, mais uma vez, o talento de Almodóvar também nesse setor. Um dos pontos altos do roteiro (talvez o mais alto) é o artifício usado por ele para pegar de surpresa o espectador a respeito da aparição de Irene (Carmen Maura, um tanto gorda, mas ainda bonita) , um personagem vital da trama.
Enfim, se "Volver" não chega a empolgar o espectador mais exigente, consegue fazer com que ele o veja com interesse, atenção e até um certo prazer. O que não é pouco tratando-se da maioria dos filmes atuais.
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10 ANOS SEM MARCELLO
No próximo dia 19 se completam 10 anos da morte de Marcello Mastroianni. Foi uma grande perda para a arte de representar, pois Marcello foi um dos grandes atores. O maior de todos, na opinião de Philippe Noiret, que trabalhou com ele em "A Comilança" e "Touchez Pas La Femme Blanche". Noiret, morto no mês passado, afirma isso num depoimento, que quase o leva às lágrimas. que integra o documentário sobre o colega ("Marcello, Uma Doce Vida", dirigido por Mario Canale e Antonello Branca) . Há outros depoimentos no filme, feitos pelas filhas Barbara e Chiara (que revelam que as coisas que o pai mais amava eram sapatos e telefonemas), Claudia Cardinale, Anouk Aimée e os diretores Ettore Scola e Giuseppe Tornatore. E sobre Scola, uma curiosidade. Quando dirigiu Marcello em "Ciúme à Italiana" (por cujo papel ele ganhou o prêmio de Melhor Ator no Festival de Cannes) , a mãe do ator reclamou ao diretor por este ter transformado o filho num homem "feio, sujo e malvado".
Marcello trabalhou com inúmeros cineastas do seu país, desde os do primeiro time (Antonioni, Visconti, Fellini, com este em vários filmes) , aos do segundo, como Germi, Monicelli, Scola. Fez 15o filmes! E vejam só. Com essa quantidade de filmes, ainda era considerado um preguiçoso . Grande, inesquecível ator.

quarta-feira, dezembro 13, 2006

UMA MULHER CHORANDO


Este conto foi aqui publicado em nov/2005. Resolvi relançá-lo para dar oportunidade aos que não visitavam este blogue, na época, de lê-lo. E também aos que se dispuserem a lê-lo outra vez de fazer uma atual avaliação dele.
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Três vezes perguntara por que ela estava tão calada. E ela sempre a responder que não era nada. Na terceira vez, quando perguntou se estava ressentida com algo que lhe fizera, Helena denotou, no tom ríspido da coz, um começo de irritação com a inquirição dele. Sentindo a reação dela, Ramiro achou prudente parar com aquelas perguntas. O certo seria buscar algum assunto, por mais trivial que fosse, para tirá-la daquele mutismo que o desconfortava. Como tinha sido o dia dela no trabalho? Bem, ela respondeu, lacônica. Afinal convencido de que não podia arrancar mais nenhuma palavra de Helena, ele resolveu também se calar.Assim mudos passaram o restante do jantar, um só abrindo a boca para pedir um prato que estivesse mais ao alcance do outro.
Ao deixarem a mesa, Helena foi escovar os dentes, enquanto ele foi ligar a televisão.Depois ela irá para junto dele. Era assim todas as noites, a té mesmo quando iriam sair. Mas naquela noite, quando voltou do banheiro, ela disse que tinha "um horror" de provas para corrigir e não podia perder tempo. "Mas não dá pra você ficar nem um pouco"? "Não dá. Eu tenho que devolver as provas amanhã". A atitude dela deixou-o ainda mais preocupado. Ela nunca procedera daquela maneira. Algum problema a estava perturbando, mas ela não queria revelá-lo. E enquanto as imagens do telejornal iam passando à sua frente, ele não se dava conta do que elas mostravam, nem ouvia direito as falas, pois o pensamento se concentrava na busca de um ato seu, um gesto, uma palavra áspera que a tivessem magoado. Vasculhou a mente, tentando rememorar fatos do dia, da noite anterior, até mesmo quando estavam na cama nos momentos de amor. Em vão. Nada. O melhor é esperar amanhã, talvez ela me diga o que está acontecendo. E continuou vendo, sem ver, o que se passava na televisão.
Ao entrar no quarto, Helena trancou a porta, mas não foi para o birô. Dirigiu-se para a janela. Mas, como o marido diante da tevê, ela não "via" a profusão de luzes iluminando aquela pequena parte da cidade. Meditava sobre a sua vida. A bem dizer, continuava uma meditação que começara já algum tempo. E a cada dia que passava, mais tomova consciência da falta de sentido em que a sua vida se transformou com a irrealização de sonhos por tantos anos acalentados, a morte das ilusões, a perda da esperança. E o pior: sem vislumbrar um aceno sequer de mudança. E o casamento? Todos os conhecidos, amigos, os familiares colocavam Ramiro num altar, ela tirara a sorte grande ao encontrar um homem de tantas qualidades: trabalhador, bem-educado, excelente profissional e, por cima, sempre apaixonado pela esposa. Sim, Ramiro podia ser tudo isso, mas havia algo nele que Helena não sabia discernir (e nem eram os pequenos defeitos que toda pessoa, mesmo as melhores, tem), que a fazia não se sentir a mulher tão invejada. Quem sabe se a culpa não seria dela? E das outras coisas era também culpada? Da profissão, que já não a satisfazia, da falta de estímulo para continuar lecionando? Do convívio com a maioria dos colegas e das amigas? Teria ela toda a culpa por não encontrar mais naquelas pessoas o que buscava para uma existência mais fácil de ser levada?
Tudo isso tinha se incrustado à vida de Helena, como uma dor persistente, e nesses últimos dias ela vinha se sentindo cada vez mais infeliz, embora procurasse disfarçar, sobretudo de Ramiro, todo o sofrimento. Mas naquela noite nem a ele conseguira enganar.Que assim seja, disse. E, de repente, enquanto olhava a parte da cidade inundade de luz, voltou-lhe à lembrança um fato que presenciara na sua adolescência. Um fato ocorrido há muitos anos na vida de uma pessoa, que nunca saíra da sua mente. Vez por outra se via a recordá-lo e não foram poucas as pessoas, atráves dos anos, às quais contou o sucedido. Até a Ramiro contou.
Era uma mulher da sua cidade. Uma fina doceira. Seus doces, das mais variadas espécies, eram motivo de comentários não só naquela cidade, mas nas cidades vizinhas. Até à capital do estado a sua fama havia chegado. Solteira, devia ter, na época, quarenta e poucos anos. A família de Helena era, como as demais famílias da mesma classe social, freguesa de Amália. E uma tarde a mãe de Helena mandou-a à casa de Amália, para comprar o doce de leite de que o marido tanto gostava. Lá chegando, Helena bateu palmas três vezes, ninguém apareceu. Nem Amália, nem uma sobrinha que morava com ela, tampouco a empregada. A porta da frente estava só encostada. Helena, acostumada a frequentar a casa, para visitar a sobrinha de Amália, foi entrando, enquanto dizia sou eu Amália. Tão logo pôs os pés dentro da casa, deparou-se com uma cena que a deixou entre chocada e penalizada. À mesa de refeições estava Amália. A cabeça curvada, as mãos tapando quase todo o rosto (só os olhos descobertos), a doceira chorava. E o choro não era silencioso - a mulher chorava como uma criança quando apanha. De tão intenso o choro, os braços tremiam. "Amália, o que foi que houve"? Helena chegou para perto dela e repetiu a pergunta, mas Amália parecia não dar pela presença dela e continuava no choro. "Aconteceu alguma coisa com Eliane"? E Amália sem responder. Helena pôs a mão sobre a cabeça de Amália, como se a leve pressão da mão pudesse aliviar a dor da mulher. Depois foi saindo devagarinho, olhando para a pobre mulher, a quem sempre vira alegre e tão disposta.
E ao recordar, mais uma vez, a cena lastimável, Helena pôde compreender, depois de tantos anos, o sofrimento daquela mulher numa tarde longinqua. E sentiu-se na pele de Amália, a fina doceira, tão elogiada e respeitada pela sua arte na culinária. Então, de repente, veio-lhe, incontrolável, a vontade de repetir o ato de Amália. E lágrimas lhe vieram aos olhos. Helena chorava. Mas, ao contrário do choro de Amália, o seu era silencioso. E assim ficou por muito tempo deixando as lágrimas banharem-lhe o rosto.

quarta-feira, dezembro 06, 2006

UMA TEMÁTICA DA VIOLÊNCIA?

O diretor Sam Pecinpah (1925-1984) ficou estigmatizado pelo grau de violência utilizada em boa parte de seus filmes. De fato, há, por exemplo, num filme como "Meu Òdio Será Sua Herança" (The Wild Bunch /1969, que revi, recentemente em DVD) , momentos em que a violência parece excessiva, chegando a causar um desconforto, até um mal-estar, no espectador. E foi, talvez, por isso, que Peckinpah não teve o seu talento melhor avaliado pela crítica (ou parte dela). Mas tomando "Meu Ódio Será Sua Herança" como referência. Sob aqueles intensos jorrar de sangue e troar de tiros é possível perceber um posicionamento crítico de Peckinpah, o que o exime da pecha de utilizar a violência de uma forma gratuita. Logo no início, o filme mostra um grupo de garotos observando um escorpião atacado por vermos, ao qual depois eles ateiam fogo. A imagem dos garotos, atentos à agonia do escorpião, coincide com a chegada do grupo, chefiado por Pike Bishop (William Holden) , que vai assaltar um banco. Pouco tempo depois tem início um tiroteio intenso entre os assaltantes e pistoleiros contratados pelo administrador da ferrovia.
A presença de crianças, em meio a cenas de violência, se faz sentir ao longo da narrativa. Já perto do final, algumas assistem, divertidas, ao suplício de um membro do grupo, arrastado por um cavalo. Esse detalhe estimula a pensar que o diretor entende a violência como um elemento entranhado no homem, já desde a infância. Ela seria para Peckinpah também uma forma de o homem elevar-se moral e espiritualmente, tal como ele apresenta o personagem de Dustin Hoffman em "Sob o Domínio do Medo" (The Straw Dogs /1971) .
E não se pode esquecer a importância que o americano, em geral, dá à arma de fogo. Até existe nos Estados Unidos uma associação de cultores de armas (o nome completo não lembro,, mas nele está inserida a palavra rifle) , cuja presidência foi exercida por algum tempo por sabem quem? Charlton Heston, que trabalhou com ele em "Juramento de Vingança" (Major Dundee/1965). Ao expor assim a violência, será que Peckinpah não pretendia mostrar o que acontecia no seu próprio país? Além disso, como lembrou alguém nos depoimentos constantes dos "Extras" de "Meu Ódio Será Sua Herança", a sua carreira foi construída, em boa parte, durante a guerra no Vietnam, e a presença desse longo conflito marcou muito a vida de seus compatriotas, mesmo os que não participaram dele. A violência, então, em seus filmes funcionaria como uma forma de temática, mesmo que de uma maneira que incomodava, perturbava as pessoas. Chegando a levar a crítica (ou parte dela) a tratar esse neto de um cacique indígena a tratá-lo apenas como um talentoso executor de cenas de um fortíssimo impacto.
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UM ARTISTA NA PIOR
Ele trabalhou em filmes , como "Os Fuzis" (Rui Guerra), "A Falecida! (Leon Hirszman), "A Gramde Cidade" (Cacá Diiegues) , "O Desafio" (Paulo César Saraceni) . Nos anos 1960 a ditadura militar o fez ir pra Itália, onde trabalhou por lá em filmes de pouca importância. Está com 5l anos no batente. Mas está desempregado, passando necessidades. É um ótimo ator. Mas está na pior. Estou falando de Joel Barcelos, sobre quem assisti a uma matéria num desses canais de tevê por assinatura. Peguei a matéria nos últimos ciinco, seis minutos finais. Aos 70 anos, aparenta bem mais, o rosto envelhecido está marcado de manchas. No final, a entrevistadora faz uma pergunta embaraçosa a ele. Falando de Glória Pires, com quem ela trabalhou na Globo, pergunta se ele não quer pedir uma ajuda à atriz. Chamando-a de Glorinha e dizendo que a conhece desde criança, pois foi amigo do pai dela (o comediante Antônio Carlos) , Barcelos não responde à pergunta, a repórter pergunta se o orgulho o impede de recorrer a Glória e a outra atriz, cujo nome não guardei. Ele faz um gesto que dá pra gente entender. É uma situação constrangedora. Pois é, aí está um ator talentoso, vivendo em grandes dificuldades, não sei como está conseguindo sobreviver. Senhores que hoje mandam no cinema brasileiro. Olhem para esse ator, dêem-lhe uma oportunidade. mesmo que a culpa seja dele por estar nessa situação (dizem que tem um temperamento difícil e durante um certo tempo teve problemas com o álcool), mas não é um crápula, como, por exemplo, boa parte dos nossos homens públicos. Não roubou ninguém, não se aproveitou da credulidade das pessoas ingênuas. Vão atrás de Joel Barcelos. Além de estarem praticando uma boa ação, terão em seus filmes a presença de um ator de grande qualidade.

domingo, dezembro 03, 2006

MOMENTOS PARA SEMPRE

Um personagem de Cidadão Kane recorda um momento inesquecível da sua juventude. Uma atraente mulher que encontrou um dia, na rua. Nunca mais a reviu, mas a imagem da mulher ficou para sempre gravada em sua memória. Até o fim de seus dias, nele permanecerá aquela visão de um momento de sua vida.
Cada pessoa guarda dentro de si um momento como o pesonagem do filme de Welles. Não um só, mas alguns. Momentos a que outras pessoas podem não dar a mínima importância, impermeáveis à sua compreensão, mas para a pessoa que os viveu têm um significado especial, de uma forma a jamais lhe sairem da lembrança. Eu tive, entre tantos momentos maravilhosos (e, muitos ruins, que o melhor é deixar pra lá, "as amargas, não") , estes três que vou relatar.
1. Uma tarde, em Fortaleza, ia atravessar uma rua, quando surge um carro dirigido por uma mulher. Ia começar a atravessar, quanto notei que a motorista parou o carro para me deixar passar. Mas em vez de me beneficiar da sua gentileza, parei e sinalizei para ela seguir. Ela retomou a marcha e no instante em que o carro passava ao meu lado, virou-se pra mim, sorriu, fez um aceno com a mão e foi embora. Era uma jovem e bonita morena e no banco de trás estavam duas crianças. Foram, o quê?, 2, 3, 5 segundos no máximo, decorridos entre o sorriso e o aceno, mas esse brevíssimo tempo dura até hoje.
2. Já estava em Natal, casado de pouco, quando fui me submeter a uma cirurgia de amidalite. Não consigo esquecer a enfermeira que me aplicou o anestésico. Não porque fosse bonita, como a jovem senhora do carro. Mas tinha um rosto que inspirava bondade. Um pouco gorda. O que tornou inesquecível a sua imagem foi a conversa que mantivemos enquanto estive acordado. Tinha um jeito calmo, sereno, a voz baixa, pausada. Não me lembro nada do que conversamos. Banalidades, acredito. E tenho a sensação de que ela teve a iniciativa daquele papo por me achar tenso, intranquilo, pela primeira vez indo me deitar em uma mesa de operação. Talvez fosse um procedimento habitual nela. Não importa. Importa, e muito, o nosso diálogo, que me trouxe um pouco de tranquilidade. Nos dissemos os nomes e o dela guardei durante algum tempo, e, numa oportunidade em que fui ao mesmo hospital (mas por outro motivo) , procurei-a, para agradecer-lhe por aqueles momentos que antecederam a cirurgia, mas ela já não trabalhava lá. E, tal como a mulher de Fortaleza, nunca mais a vi.
3. O terceiro momento ocorreu com uma celebridade. Já o contei neste espaço. Um encontro brevíssimo com Nara Leão, a quem fui pedir o autógrafo num elepê dela. Foi depois de sua apresentação no Teatro Alberto Maranhão, em Natal. Havia algumas pessoas ao redor dela, próximo a uma das entradas para o palco. Quando me vi frente a frente com a mulher que admirava não apenas como intérprete (menos pela voz, mais pelo bom gosto do repertório) , mas pela inteligência e sensibilidade e, principalmente, pela posição corajosa assumida diante do regime militar, apresentei-lhe o disco, cuja capa mostrava-a envolta em um véu. Ela me recebeu com o sorriso que expunha os dentes ressaídos. Ao ouvir o meu nome, sorriu de novo e revelou que tinha um filho que também se chamava Francisco. E escreveu uma curta dedicatória em uma letra bonita - um autógrafo que conservo com zelo e carinho. Agradeci e saí do teatro como se estivesse nas nuvens. Nara voltou a Natal, mas não fui vê-la dessa vez. Por um amigo soube que passara mal em sua estada aqui. Já devia carregar o tumor cerebral que a matou não muito tempo depois.