Este texto já saiu aqui em 4.10.06. Estou republicando-o como uma homenagem ao companheiro de infância Quinca (Joaquim Magalhães Neto), que, segundo soube há poucos dias, faleceu no dia quatro deste mês, aos 64 anos.
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Não eram 8 horas da noite da sexta passada quando o telefone tocou. Só no apartamento, fui atender a chamada. Uma voz masculina queria falar com o Francisco. É ele, eu disse. Sem perguntar como eu ia, o homem foi iniciando uma espécie de divertido jogo para que eu o identificasse. A primeira pista: fôramos amigos, mas há exatos 50 anos perdêramos o contato. Não sei por que supus, de imediato, termos nos conhecido no Liceu, onde ingressei em 1956. Ele disse não, não estudei no Liceu (e eu depressa reconheci o meu erro, pois estudara naquele colégio até 1960, o que reduzia para 46 anos o nosso último contato), nós nos conhecemos de Canindé. E o jogo continuou. Ele disse que morava na praça da Basílica, argumentei que na praça moravam outros amigos meus. E ele, você se lembra do bar do Maciel? Disse que sim e deduzi que ele fosse o Antônio, filho do Maciel. Segundo erro meu. Aí ele deu a pista definitiva, que morava vizinho ao bar. Então, como um estalo, eu me lembrei do Quinca, filho de Antônio Magalhães e de Dona Mirtes (uma bonita mulher): então, você é o Quinca. Do outro lado da linha veio a risada jubilosa, por eu, afinal, ter identificado o dono daquela voz, e, acoplada a ela, a diversão, como se aqueles dois homens, já na casa dos 60, estivesessem participando de uma brincadeira de quando eram meninos. Aí voltamos ao presente, cada um querendo saber como o outro estava vivendo. Mas foi por um breve tempo, porque ele queria relembrar um episódio que ocorrera comigo e do qual não me lembrava. Ei-lo.
Um solteirão da nossa cidade gostava de promover na praça, à noite, uma corrida de garotos. Quinca não disse, nem me recordo, se aquele homem dava algum prêmio ao vencedor. Bom, a corrida se dava assim. Era uma disputa entre dois meninos, mas eles não corriam emparelhados. Um menino ficava no início do lado direito da praça e o outro se postava do lado esquerdo. Ao dar-se a largada, o vencedor seria o que chegasse primeiro ao final de um dos lados. Morava ali na praça o Tirso Rabelo, que corria como o diabo, e sempre ganhava. E se gabava de não ter concorrente à sua altura. Pois um dia eu resolvi enfrentar o Tirso. O Quinca não disse se por iniciativa própria, ou se fui estimulado por alguns amigos. O certo é que disputei com a fera e ganhei dele. Ainda segundo Quinca, fui ovacionado e o Tirso gozado pelos outros garotos, mas ele não me disse se houve revanche. Esse episódio tem a intromissão do insólito, porque continuo não me lembrando dele, mesmo depois de relatado por Quinca. O que lembro é que gostava de apostar corrida na praça, mas com outros meninos e as corridas eram promovidas por nós mesmos. Se a memória é seletiva, como dizem, eu não devia tê-lo esquecido. Estranho, não?
Mas o Quinca tinha outra coisa pra me contar. Você talvez não saiba que fui apaixonado por uma parenta sua. Paixão de criança, eu tinha 11 anos. A paixão dele se chamava Salete, um pouco mais nova do que ele, filha de um irmão do papai. Uma menina bonitinha, com um leve estrabismo. Na década de 1970 ela morou em Natal durante cerca de um ano, por causa da remoção do marido, da Polícia Federal, para esta cidade. Ficara mais bonita, mas evitei dizer isso ao Quinca, que, cinquenta anos depois, parece ainda estar interessado nela. Revelou que conservava uma fotografia de Salete participando de um pastoril e quis saber onde ela estava residindo. Eu não sei, mas prometi que iria cair em campo para saber o paradeiro dela e o informaria no próximo contato que tívessemos. Porque ele disse que iria me ligar outras vezes, agora que conseguira o meu telefone.
Não é necessário dizer o quanto aquele telefonema me fez bem. Por alguns minutos pude voltar aos tempos bons da infância e retomar o contato com um amigo. E depois de falar com ele, fui rever uma foto colada num álbum, em que estamos com mais 3 garotos, antes do início de uma pelada. Quinca e Boroca (um negrinho muito bom de bola) em pé, enquanto eu, Nei e Tonico estamos agachados. Eu estou ladeado pelos dois, segurando a bola, como centro-avante.
Bons tempos. Velhos tempos. E quantas saudades.
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NOTA DE HOJE - No e-mail que recebi, informando o falecimento de Quinca, é dito que o negrinho Boroca também já se foi, sem estar precisada a data da sua morte.