Já faz tempo que converso com pássaros;
ultimamente com aqueles que visitam o meu quintal. E foi nessas conversações,
por exemplo, que percebi que os pardais são muito confusos, falam muito, mas é
só prosa fiada jogada ao léu. Até parecem algumas pessoas que conheço mundo
afora.
Explicar como conversar com pássaros é
uma empreitada a qual não me dou ao trabalho de explicar, nem a ensinar,
depende muito da sensibilidade de cada um. Para quem acredita que em outra vida
já foi pássaro tudo fica mais fácil, pois deve ter esses registros passarescos
guardados em algum arquivo das suas memórias de vidas passadas.
No meu caso, visitando minhas lembranças
acabei percebendo que isso nem era novo para mim. Pois desde os tempos de guri,
quando aos oito anos de idade fui parar num internato na zona rural de
Curitiba, eu já me punha a prosear com a bicharada. Gostava muito de andar pelo mato, de admirar
com certa curiosidade os animais que encontrava. Naquele tempo os bichos e as
frutas eram de uma fartura sem igual: guabiroba, araticum, araçá, butiá, fruta
de São João, jerivá, pitanga do campo, caqui (Dava no mato, sim senhor!)
cafezinho, amora, uva do Japão, pinhão, tarumã, goiaba e um tanto de outras
frutas que hoje nem lembro nome ou já foram extintas. Havia um equilíbrio
natural na mata, tinha frutas pros homens e pros animais. Naquele tempo o tal
do “bicho homem” ainda não era o grande destruidor da natureza que veio a ser.
No começo das minhas andanças, aonde eu
ia pela mata o desejo de conversar com os animais me instigava. Nada fácil,
pois alguns deles eram muito esquivos e fugiam quando eu tentava principiar
algum diálogo. Creio que eles deviam me achar um guri muito estranho. Como
aconteceu uma vez quando uma cobra ficou ali na minha frente um tempão me
olhando e botando a linguinha pra fora, mas, depois se escafedeu mata adentro
sem responder se era verdade aquela história de que uma parenta dela teria
tentado Eva a comer a maçã no paraíso.
De outra feita fiquei um par de horas sentado observando um serelepe que
tentava descascar um pinhão, mas, o danadinho nem me deu bola quando tentei
puxar conversa. Tinha até macaco zombeteiro que ria de mim, isso eu sei por que
eu os escutava comentando no bando.
Para encurtar a prosa, durante certo
tempo parecia-me que seria em vão tentar conversar com os bichos. Arrisquei
umas palavras até com o ramo dos galináceos, mas, com todo respeito pelo valor
deles, nunca vi bicho tão bobo como galinha, até o burro que já tem um nome
cabeludo desse, agia com maior esperteza.
O papagaio nem se fala, ele só ficava repetindo o que eu falava; desse
jeito não deu prosa também.
Foi aí que uma coruja que eu sempre
encontrava pela manhã cochilando escondida no alto de um pinheirinho, me deu a
ideia de procurar os pássaros:
– Vai conversar com os passarinhos, guri...
No começo isso não foi muito simples,
pois eles só andavam em turma, e
voando né. Uma vez tentei me aproximar de um bando de bico de lacre que comiam
sementes de capim próximo dum riacho. Escolhi-os primeiro por que eu queria
pedir desculpas por causa de uma vez que eu tinha atirado algumas mamonas pra
espantá-los e a minha traquinagem tinha dado um baita susto nos
coitadinhos. Nunca mais fiz isso, até
confessei o acontecido pro Padre Luís que me mandou rezar uma dúzia de
Ave-Maria de penitência.
A minha conversa com os bicos de lacre
também não foi adiante. Mas tudo mudou no dia que encontrei um sabiazinho caído
debaixo de um pé de ameixa; daquelas amarelinhas de dar água na boca. Vi que
ele não conseguia voar porque estava com uma das asinhas machucada. Peguei-o
com muito cuidado e, sei lá porque, perguntei-lhe como tinha
se machucado. Foi aí que ele, para meu assombro, sussurrando com uma voz de
criança começou a falar. Enquanto eu passava o dedo sobre a sua cabecinha para
acalmá-lo, me contou que tinha caído do ninho. Falou que batera num galho da
árvore quando tentava levantar voo junto com os outros sabiás da família, e por
isso acabou ficando ali sozinho na esperança de que eles voltassem; fato que
não aconteceu.
Quando a gente é criança acontece um
montão de coisas na vida da gente, e nem tudo tem uma explicação lógica. E
assim, entre mistério e magia, a gente se acostuma com certos fenômenos e acha
tudo natural. Digo isso porque naquele momento, olhando para o passarinho
machucado, lembrei que um dia minha avó tinha contado que algumas plantas eram
boas pra curar muito machucado. Então, na querência de ajudar o coitadinho do
sabiá, juntei umas folhas dum mato conhecido como alecrim do campo e espremi
bem com os dedos, e depois passei a sumo verde no machucado do dele. Pela cara dele atinei que devia ter ardido um
pouco, mas, passado algum tempo, ele se aprumou e depois voou. Foi e retornou
algumas vezes, como que agradecendo a minha ajuda, até que não mais voltou...
Depois desse acontecido, virava e mexia
lá estava eu conversando com algum sabiá. E eu sempre perguntava sobre o
Camilo, nome que dei ao sabiá ferido, mas, eles diziam que a família dos sabiás
era muito grande e que era difícil saber por ande voava o Camilo. Tudo bem,
“pelo menos ele deve estar por aí voando e espalhando que tinha encontrado um
guri que o ajudou a voltar a voar”, era o que eu comentava para umas borboletas
que de vez em quando me seguiam mata adentro.
Como o Camilo era um sabiá muito novinho
e como tal não tinha muita história para contar. Porém, guardo até hoje algo
que ele falou. Foi quando certo vez perguntei-lhe como tinha aprendido a voar e
ele respondeu:
– Nós não aprendemos a voar, só voamos...
Mais à frente na vida é que fui
entender o que ele dissera. Os humanos têm a capacidade de desenvolver-se e
criar, já os pássaros trazem em si o dom de voar, por isso quando estão prontos
eles apenas voam; não criam o voo, apenas voam, é da natureza deles. Já os
homens têm muita coisa boa para aprender e criar; uns aprendem e criam – outros
não.
Quando conheci os pássaros do meu
quintal percebi que eles eram diferentes dos que eu conhecera quando criança, e
eu também era diferente, é claro. Eles
eram muito ariscos, mas, entre um fubazinho aqui, uma quirerinha acolá e
algumas palavras de aconchego eles foram se acostumando comigo. Os pardais eram
os mais arredios, acho que por sentimento de culpa, pois eles vivem predando os
ninhos alheios; às vezes até derrubando filhotes dos ninhos dos outros, daí a
apreensão que vivem; são como certas pessoas que fazem coisas escondidas e
depois vivem com medo de serem descobertos.
Mas não quero que alguém pense que todo
pardal é igual, pois, como é da sabedoria popular, toda regra possui alguma
exceção. Desse modo, aconteceu que certa ocasião uma mãe pardal deixou um
filhotinho pra que eu cuidasse. Ele
ainda não sabia voar e foi ficando ali pelo quintal, fui tratando dele, dando
água e comida. Era muito tímido, Pitiguinho o nome dele. Creio que do seu jeito
ele entendia que eu era o cuidador dele, pois, com o tempo foi ficando cada vez
mais tranquilo em minha companhia, e ficava na porta da cozinha demonstrando
que não tinha medo de mim. Para tranquilizá-lo, de vez em quando eu o lembrava
de que a mãe dele tinha o deixado ali só até ele ficar forte e poder voar. Um
dia ele me disse que sabia disso e que a mãe dele sempre vinha visita-lo.
“Melhor pra ele”, pensei, porque entre os homens tem mãe ou pai que vai, some
no mundo, e nunca mais aparece.
Aos poucos Pitiguinho foi crescendo e
ensaiando seus voos. Então, quando percebi que ele já estava dando uns voos
mais altos, eu disse pra ele:
- Vê se não some hein, aparece de vez
em quando, Pitiguinho...
E assim aconteceu. Depois que foi embora com o bando, vez por
outra Pitiguinho aparece contente, o conheço pelo trinado e porque costuma
ficar um tempo pendurado num pé de romã do quintal, local onde habituava ficar
quando eu cuidava dele.
As rolinhas roxas são aves mais
sossegadas, muito tranquilas. “Cuidam da vida delas”, como diria dona Malvina,
uma senhora negra, muito simples e sábia, com quem aprendi um tanto da vida na
minha juventude. Porém, de vez em quando
elas perdem a calma com os pardais, e então partem pra cima deles e colocam
ordem no quintal.
Quando comecei a conversar com elas,
ficavam só ouvindo. São muito tímidas, porém mais sábias, falam tão baixinho
que às vezes quase nem escuto e tenho que pedir para repetirem o que estão
dizendo. Uma delas, que dei o nome tupi de Anahí, que significa bela flor do céu, até fez ninho num
pequeno arbusto que cultivo no quintal, onde já nasceram outras quatro
rolinhas, duas de cada vez. Ela é a que mais conversa comigo; ás vezes, até se
dependura na grade da janela do meu escritório. Anahí tem uma paciência de Jó,
pois passa ali um bom tempo me observando teclar no computador. Acredito também
que ela deve gostar das músicas suaves que costumo ouvir quando escrevo.
Na família das rolinhas, o que as
diferencia é que o macho possui penas marrom-avermelhadas, contrastando com as
penas cinza-azuladas na cabeça. Por sua vez, as fêmeas são totalmente pardas.
Na serenidade que é peculiar às
rolinhas, outro dia as ouvi confabulando sobre a falta de sementes para seu
alimento; sobre a escassez de algumas frutas silvestres que sumiram dos campos
junto com outros bichos. Com Anahí tenho
aprendido a silenciar de vez em quando; a ouvir mais e falar menos. E foi numa
dessas ocasiões que ela, com ar solene, disse-me que não entendia por que o
homem não respeita a vida que há na natureza:
– Ele age como se fosse o centro de tudo. Como se tudo que há no ambiente natural fosse
propriedade dele, quando até os pássaros sabem que tudo e todos fazem parte de
uma mesma teia, de um mesmo plano que precisa de harmonia para permanecer.
Os canários que também passeiam pelo
meu quintal são pássaros alegres, pra cima; inda mais agora que diminuíram as
caças, as gaiolas e o tráfico de aves. Riem e cantam. É isso mesmo, eles riem!
Contou-me Suruì, uma espécie de líder do bando, que o canto deles, além de
servir para se comunicarem é também uma louvação à vida, uma espécie de
reverência à natureza e ao Criador. É muito agradável conversar com os
canários, porque eles respondem cantando... São dóceis também. Quando acostumam
com o lugar não fogem quando a gente se aproxima. Aliás, se fugissem não dava
para eu conversar com eles, não é mesmo?
No mais, creio que não seria exagero
algum narrar que desde que me iniciei na conversação com os animais,
especialmente com os pássaros, aos poucos fui intuindo e aprendendo que a
natureza é repleta de cores, sons, cheiros, sabores, encantos e vozes. E que
para admirar, sentir, usufruir e compreender esse universo é necessário
tornarmo-nos crianças livres. Condição necessária para que possam fluir em nós
os dons extraordinários que possuímos e que nos aproxima como criaturas, dessa
única e impar orbe existencial; dessa infinita teia que é a vida em todas as
suas múltiplas dimensões.