sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

O encontro

Autor: Flávio Cruz
 
Smuk deu alguns passos, abriu uma porta e já estava na praia. Ninguém menos do que Libes o esperava, logo ali, debaixo do sol e com um sorriso róseo, quase divino, iluminando ainda mais seu rosto maravilhoso. Smuk beijou a esposa, passou a mão por seus cabelos negros, deu-lhe a mão e ambos começaram a andar. Uma brisa morna acariciava suas faces e seus pés descalços eram massageados pela areia macia. Um cheirinho bom e peculiar vinha do mar. A vegetação da praia, verde, estabelecia um equilíbrio gostoso com o azul do céu e o brilho das ondas iluminadas pelo sol que, cá e lá, insistia em penetrar entre as nuvens.
 
Conversaram. Falaram dos filhos. Sorriram. Trocaram lembranças. Era bom estar ali, um sentir o outro. Afinal, foram tantas coisas juntos, tantos momentos. Depois aquela longa separação, coisa da profissão dele. Mas agora podiam se ver, pelo menos de vez em quando. Ficaram horas se deliciando um com o outro. Eram tão íntimos que completavam a frase um do outro. Smuk e Libes definitivamente se amavam.
 
Chegou o momento de se despedirem. Um abraço afetuoso,um beijo na boca. Ela foi voltando com passos leves e lentos para o outro lado da praia, de onde viera. Seus pés suaves deixavam leves marcas na areia que logo a seguir eram desmanchadas pela brisa. Smuk fez um último sinal com a mão e entrou.
 
O último aceno que Smuk fez, demorou pouco mais de dez minutos para chegar até a Terra e, na verdade, foi um aceno virtual. Ele estava na Estação Centaurus, em Marte, sentado em uma sala especial de efeitos virtuais. Sua esposa Libes estava na Terra numa sala do Departamento de Controle de Estações extraterrestres. Tinham acabado de participar do encontro quinzenal promovido pelo departamento entre funcionários trabalhando em Marte e seus familiares aqui na Terra.

         Quando estava saindo da base, alguém perguntou para Libes como havia sido o encontro. Ela sorriu e disse que aquela praia podia ser virtual, mas era a mais linda que ela já tinha conhecido até então.

Autor: Flávio Cruz - Flórida/EUA
Publicação autorizada pelo autor


Comentários:

Seja bem vindo ao Blog Flávio Cruz. Um abraço.
Carlos A. Lopes
 
Obrigado, Carlos. Para mim é uma honra estar na companhia de gente tão inspirada!
          Flávio Cruz
 
Flávio, que inesperado! Amei. Abraços.
Wanderley Dantas
 
Excelente. Gosto de textos inteligentes. Parabéns Flávio Cruz. Vou dar uma passada na sua página no RL. Um abraço.
Patrícia Celeste



domingo, 13 de janeiro de 2013

Nossa, que calor! - Autora: Marina Alves

          O calor? Ela tinha certeza, beirava aos 300º. Verdade que ainda não tinha um termômetro em casa, mas ia comprar um, só pra confirmar que não falava mentiras quando comentasse o calorão, no dia seguinte. Mas era guerreira! Era preciso bem mais que um ensaio do inferno na terra para desmoralizá-la e fazê-la ter problemas com o sono. Heroicamente aprontou a cama e foi dormir. Rolou daqui, rolou dali, não conseguiu. Também naquele dia Guaraci, dos irmãos silvícolas, tinha exagerado... O dia inteirinho torrando tudo! Abriu as janelas. Um cochilo, e foi logo saudada por uma banda de música formada por integrantes do mundo inteiro: uma legião de pernilongos que ameaçavam levá-la de seus domínios...
Ia se amofinar? Xingar? Esbravejar? Resmungar? Contra quem? Catou o travesseiro e foi dormir na varandinha que dava para o jardim. Exultou intimamente: por que não tinha tido aquela ideia antes? Tão simples, tão melhor, quase agradável! E teria mesmo dado certo, não fossem os colegas pernilongos que lhe pegaram amizade e não desgrudavam... E ainda  havia o tétrico assobio de mil morcegos a voejar nas imediações. É que ali perto havia uma pequena área de antigas e sombrias mangueiras, esconderijo dos simpáticos  e únicos mamíferos voadores que, à noite, saiam para fazer a festa... E que festa acordar com um bichinho aveludado daqueles, caindo bem em cima da barriga! Teve um arrepio e retornou ao seguro e tórrido interior da moradia...
Voltou pra cama. Cochilou  e acordou com o pijama grudado no corpo. O suor brotava por todos os poros, o cabelo enrolado num coque, todo colado. Culpa do colchão novo. Tinham lhe falado  que aquela marca era cara, mas  era es-pe-ta-cu-lar! Era mesmo...  Pra pegar fogo em noites como aquela! Agora entendia com clareza (e calor) o significado da expressão “se queimar na fogueira das vaidades”. Ah que vontade de ligar o ar! Que vontade de ligar o “Tufão”, (nada de Tufa da novela, só o ventilador da casa da amiga Maria), porque ela mesma não tinha nem ar, nem ventilador: era alérgica a tudo que refrigerasse por meios antinaturais... Espirros, garganta seca, voz sumida... Coisa de gente cheia de chilique!
Não ia reclamar! Ia  era abrir a casa inteira! Escancarou portas e janelas para entrar as deliciosas e notívagas correntes de ar da madrugada. E elas entraram... Mas foi em greve! Quem lhe deu a notícia foi a cortina completamente imóvel que não se mexia de jeito nenhum! Ô noite! E o relógio só voando. Duas, três, três e meia... Batendo à porta, o romper da aurora. Queria ver como é que ia trabalhar no dia seguinte! Ia acordar um trapo! E acordar, naquela situação, já era pensar bastante positivo...
Resolveu peregrinar pela casa. Numa demonstração de total ignorância, tentou a área perto da geladeira. Inútil! O eletrodoméstico era geladinho só mesmo por dentro. E aquele barulhinho do motor competindo com o calor? Dava empate! Foi pra sala tentar o sofá. Nem cinco minutos! Uma cochilada, e a sensação de que saía de um forno a sacudiu: Ctrl V/ Ctrl C do colchão. Insuportável. Insistiu num outro quarto da casa. Quem sabe ali fosse mais fresquinho. Abriu a janela e deixou os braços negros da noite adentrar, trazendo consigo a esperança de um arzinho mais fresco... A banda de música se apresentava lá também e insistia em tirá-la para uma valsa... de tapas e pontapés em si mesma. Enrolou-se no lençol para não ouvir a orquestra. Foi aí que viveu a experiência de ser um tomate desidratado...
Por fim, acendeu a luz. Tinham lhe dito que pernilongo não gosta de luz. Os dali gostavam, pois não se intimidaram nem um pouco com os zilhões de watts em cima de suas trombetas. Aí que zuniram bonito mesmo! Com a luz, o calor redobrado! Estratégia descartada, apagou a lâmpada... Mas nem tudo estava perdido. A longa e escaldante noite estava no fim! Bom que não ia ter trabalho de se levantar, uma vez que não tinha se deitado. Tá vendo? Tudo tem seu lado positivo. Resolveu: não ia trabalhar.  Não podia correr o risco de dormir no lugar errado: sob as vistas do chefe. Quando a turma do firim fim fim sossegou, ela caiu na cama e finalmente pôde entregar-se aos braços de Morfeu... Acordou só mais tarde, prontinha para enfrentar mais um longo e cálido dia de verão, em plena primavera...


Autora: Marina Alves - Lagoa da Prata/MG

Página da autora:

http://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=64920

Publicação autorizada pela autora






COMENTÁRIOS:




Maria Mineira

 
Boa tarde, comadre Marina. Gosto demais de seus contos, causos, crônicas. Aliás, tudo que você escreve fica perfeito. Parabéns! Um abraço aqui da Serra. Hoje chove que é uma beleza! Amo chuva.

Marina Alves
Muito bom fazer parte deste espaço, ao lado tanta gente de talento. Muito honrada por estar aqui, dividindo com os amigos um pouco das minhas modestas letras. Um abraço ao Carlos, à Comadre Maria da Serra e a todos que me prestigiam com suas leituras. Obrigada!
Carlos A. Lopes

Eu que agardeço, Marina Alves.  Quando faziamos teatro, lá pela década de 70, costumava levar nossas mensagens pelas cidades vizinhas ao meu município. Hoje sinto essa mesma vontade de compartilhar, só que desta vez, não preciso me arriscar em Jeep ou Rural ... pela rede mundial é bem melhor e mais abrangente, rsrsrsr.





 



 

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Virgindade leiloada

Autor: Geraldinho do Engenho

O grande capitalista com seu poder e riqueza, mantinha sua família alheia as suas atividades comerciais. A esposa jamais imaginou de onde vinha todo aquele luxo do a qual ela e o casal de filhos desfrutavam no palacete onde residiam. Na área mais nobre da grande cidade. Dois filhos adolescentes. A garota no auge dos seus quinze anos e o menino de doze; idolatravam o pai. Seu império crescia cada vez mais.uma verdadeira fábula seu patrimônio.
 
Cassinos e boates restaurantes e mais e mais restaurantes espalhados pelas grandes metrópoles de todo o país. Sempre de cidade em cidade cuidando de negócios pouco contato mantinha com sua esposa e filhos. A esposa sempre magoada com o procedimento do marido que nunca dava aos filhos aquele carinho de pai-, que os adolescentes tanto necessitavam. Nas visitas relâmpagos em sua mansão mal respondia aos apelos dos filhos mendigando um pouco de sua atenção. Mergulhada na solidão a esposa ia levando a vida com dignidade. Tentava confortar os filhos alegando o compromisso do pai no trabalho, ocupando-se com os negócios. Os garotos sempre diziam, preferiam viver numa favela recebendo o afeto e carinho do pai, á andar escoltados por seguranças em seus carros luxuosos. Dinheiro apenas não é felicidade.

Com seu caráter libidinoso ao extremo julgando o todo poderoso, o milionário cometia os piores atos de libertinagem com seus subordinados. Quando era chamado; à responsabilidade cobria com seu dinheiro todas as maldades praticadas.

Na sua rede comercial havia um estabelecimento luxuoso, um verdadeiro inferninho, freqüentado pela classe opulenta da alta sociedade. Ali era o maior e mais requintado centro de prostituição, onde as pobres garotas arrebanhadas clandestinamente nas áreas periferias das cidades eram atraídas com promessas de empregos, sonhando com trabalhos dignos que lhes eram prometidos, mas terminavam sendo exploradas e humilhadas como objetos de uso dos dementes e psicopatas sexuais.

As pobres jovens tinham a desventura em ter sua virgindade leiloada. Meninas lindas cheias de sonhos sendo violentada, satisfazendo o apetite insano dos ricaços inescrupulosos.

Promoviam-se grandes festas, quando os agentes clandestinos apresentavam novas presas. Que após ser embelezadas numa clinica de estética mantida a propósito, eram entrevistadas pelo magnata, proprietário-, leiloadas e submetidas às taras e fantasias animalescas dos brutamontes donos de poder. Esta contravenção era a mais rendosa daquele malfeitor sem caráter.

Certo agente anunciou a captura de uma presa muito especial, solicitando um valor mais alto pelo seu serviço. A jovem era uma colegial da elite segundo afirmações do agente. Colocada seminua na sala de entrevista. O magnata entra no recinto. A garota perfilada de costas, imóvel como uma estátua, ele vai até ela acaricia seu corpo inteiro pelas costas, elogia seus longos cabelos, tecendo galanteios. Terminado o assédio, autoriza a ela se virar de frente mostrando–lhe o rosto coberto por uma pequena mascara, a menina obedece, ele retira sua mascara. Ao fitar seu rosto, um súbito trauma o atinge. Assustado perdeu o chão e o oxigênio que alimentava sua corrente sanguínea-, uma parada cardíaca... Ele caiu sem vida. A garota se vestiu deu o alarme do ocorrido e desapareceu em meio à confusão. Levaram-no imediatamente ao hospital, mas nada pode ser feito estava morto. Avisaram esposa, que muito chocada ligou para ligou para a filha que deveria estar no colégio. A menina atendeu-, ela: - filha venha imediatamente pra casa-, problemas com seu pai! -Calma mãe... Estou sabendo... Ele faleceu! - Como assim estou sabendo? Você não está no colégio? –Não mãe, sonhei a noite toda com o papai! Hoje de manhã resolvi matar aula e fui visitá-lo, mas ele se emocionou tanto com minha visita, que não resistiu tamanha alegria e faleceu. Levaram-no ao hospital. Mas ao que parece nada pode ser feito!... Tudo bem fique calma estou indo pra casa, vai dar tudo certo. Pelos menos a partir de agora podemos visitar meu pai, sabemos onde encontrá-lo, em fim vai ele vai ter mais tempo pra gente em sua nova morada!



Geraldinho do Engenho - Bom Despacho/MG

Publicações autorizadas pelos autores


COMENTÁRIOS:


Ana Bailune:

Uau! Muito forte!... Ótimo texto.
 
LENAPENA:

Boa tarde, meu amigo, Geraldinho. Sua pena sempre nos presenteia com excelente textos. Esse, mostra o quanto a vida por caminhos indiretos nos leva a corrigir ações. Belíssimo texto. Um abraço


Geraldinho do Engenho:

Obrigado e obrigado amigos!

Maria Mineira:

Boa noite, Geraldinho. Acho que é verdadeiro do ditado: Aqui se faz, aqui se paga. Ótimo texto, como sempre. Um abraço.
 




quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

As gafes em velórios!

Autor: Carlos Costa
 
Todos nós, seres humanos, cometemos “gafes” em velógios. Eu mesmo já cometi algumas como cumprimentar com “felicidade” ou “parabéns” em alguns. Tenho que me policiar muito para não cometê-los, mas sempre ocorre!

Nada disso é comparado, entretanto, à “gafe” que minha esposa cometeu no velório de um de seus professores da Faculdade de Direito. Estavam ela, Yara Queiroz, e seu amigo Aurilúcio, hoje servidor público da Justiça Federal, dirigindo-se ao velório do professor deles.

O corpo do professor estava sendo velado em uma funerária que tem uma matriz e uma filial. No entanto, minha esposa, na época minha namorada, deslocou-se para a funerária da Av. Joaquim Nabuco, acompanhada de seu colega, a fim de velarem o corpo.

- Aurillúcio, você não está achando estranho que vários colegas nossos ficaram de vir também ao velório e nenhum deles esteja aqui? –perguntou minha esposa ao amigo com que ela se acompanhava.

Não sei se ele respondeu. Talvez tenha dito apenas um “é, sim”, mas não posso afirmar isso com certeza.

Entraram, cumprimentaram uma a uma todas as pessoas presentes. Só depois que tiveram a curiosidade de se aproximar do “de cujus”, devidamente acomodado no caixão e perceberam que estavam pranteando o “corpo” errado, ao tempo em que, in continenti, perguntaram, discretamente, de quem era o velório.

Para a surpresa de ambos, o velório encomendado naquele local era de outra pessoa. Embora fosse também de um homem, não era o professor deles mas, coincidentemente, sim, o corpo velado era do pai de uma colega de trabalho de minha esposa. Ela, contudo, não perdeu o rebolado: também, juntamente com seu colega Arilúcio, apresentou os pêsames à colega, como se tivesse lembrado da morte e do velório do pai de sua colega de trabalho. E ainda tinha levado um colega da Faculdade, que nem conhecia o falecido; muito menos, familiares dele!

Desconsertos à parte, após cumprirem as formalidades pertinentes de despedidas, então, os dois rumaram para o velório do professor. Agora, no endereço correto.

Encontraram vários colegas de Faculdade e concluíram que não havia mais nenhuma dúvida: era o valório do professor deles.

É como eu costumo dizer: “gafes todos nós cometemos, o difícil é assumí-las”!
 

Autor: Carlos Costa - Manaus/AM
Blog do autor: http://carloscostajornalismo.blogspot.com/

Desenho: Edmar Sales
 
Publicações autorizadas pelos autores



terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Geração de risco - Dias Índios (XXV)

  Autor: Professor Wanderley Dantas
-Então, eu tenho um projeto! Quando o filho do cacique disse isso, depois de tudo o que foi discutido sobre a situação precária de apoio material às aulas dos outros dois professores indígenas, esperei ansiosamente uma ação positiva na direção da alfabetização da língua materna. - Então - continuou ele - penso que o Professor poderia nos ajudar a escrever um projeto que resgatasse a maneira das mulheres na aldeia colherem a mandioca!
-...!
-Muita coisa mudou e a ideia é fazer as mulheres carregarem as mandiocas como era antes! "Como era antes?!", pensei. Ora, o que ele estava propondo era que as mulheres não usassem mais as bacias de metal, mas voltassem a confeccionar os sacos de embira para carregar a mandioca; voltassem a descascar a mandioca com a concha, parassem de usar panela, voltassem ao ralador de origem vegetal, etc. Enfim, todo o uso de tecnologia que facilitou a vida delas estava para ser jogado pro mato.

- Você já conversou com as mulheres sobre isso? Perguntou o antropólogo.

- Não! Mas a gente vai decidir e elas vão retornar, porque muita coisa está mudando. Minha mãe não fazia assim, nem minha avó!
-Gosto muito dessa sua atitude e ideia de preservar a cultura do seu povo, disse o antropólogo. Eu ri por dentro, obviamente, ouvindo aqueles dois seres conversando em ridiculoquês profundo entre eles.
-A cultura está mudando e eu quero preservar as coisas para nossos filhos, insistiu o filho do cacique.
-Você acha que as coisas estão mudando por causa do contato com o branco?, perguntou maliciosamente o antropólogo.
-Sim, respondeu. Diante dessa resposta, orei por sabedoria, pois naquele momento era preciso dizer alguma coisa que cortasse na raiz aquela palhaçada acadêmico-primitiva.

- O que o Professor acha? Perguntou-me o filho do cacique.
-Bem, eu sou da área da Educação, assim, eu não entendo nada do que vocês estão falando. O que eu posso dizer é que se vocês estão querendo salvar a cultura e preservar as crianças, creio que o melhor projeto seria a aldeia abraçar a alfabetização na língua materna e dar condições aos dois professores indígenas de se prepararem melhor. Além disso, as crianças de vocês estão crescendo em contato direto com a televisão. Esta, sim, está fazendo um estrago na identidade cultural delas, até mesmo porque elas não estão sendo alfabetizadas na própria língua. A língua portuguesa está entrando na aldeia pela televisão. As imagens do Jornal Nacional e das novelas estão moldando as crianças de vocês, daqui a pouco elas vão substituir a língua materna pelo português. Suas crianças são uma geração em risco. Nunca elas foram tão expostas à língua portuguesa e sem nenhuma contrapartida de um projeto de valorização da língua materna. Assim, a presença da televisão causa um dano muito maior e fica pior por estar associado à falta de um projeto de alfabetização na língua materna. Isto é um dano real maior à cultura do que a constatação de que as mulheres tiveram a sua vida facilitada pela introdução das panelas de metal.
-…
-Digo mais - continuei - e sei que o antropólogo aqui vai entender bem o que eu estou dizendo: eu amo a minha língua portuguesa, porque ela carrega o testemunho de uma história que vem desde os gregos e romanos, é uma história milenar! A língua de vocês também carrega a história dos seus antepassados. Se vocês a perderem, grande parte da memória cultural de vocês será perdida junto com a língua. A língua é um testemunho importante da cultura histórica de um povo...
Eu disse aquelas palavras pensando no entendimento do antropólogo que estava me ouvindo atentamente e que não respondeu mais nada. Por que insisti no discurso sobre a televisão? Bem, o filho do cacique, que estava tendo a brilhante ideia de retornar as mulheres ao trabalho de 50 anos atrás, leva e traz a própria esposa todos os dias para a roça de mandioca na garupa de uma moto yamaha que ele comprou. E mais: neste ano, ele mesmo trouxe para a aldeia uma enorme tv de plasma, na qual, todas as noites, ele assiste suas novelas ao lado de várias crianças... O filho do cacique estudou fora da aldeia por mais de sete anos, domina a língua portuguesa e tem se erguido como liderança da aldeia exatamente por dominar um conhecimento que ele mesmo não quer compartilhar com seus semelhantes...

Autor: Professor Wanderley Dantas

http://o-seringueiro.blogspot.com.br/

Publicação autorizada pelo autor

Em poucos dias, o livro: Gandavos - Contando outras histórias


Autores: Carlos A.Lopes, Maria Mineira, Geraldinho do Engenho, Ana Soares, Celêdian Assis de Sousa, Augusto Sampaio Angelim, Carlos Costa, JCarneiro, Fernando José Carneiro de Souza, Rangel Alves da Costa, Jorge Farias Remígio, Maria Olimpia Alves de Melo, José Soares de Melo, Fábio Ribas, Ana Bailune, Sevy Oliveira, Marina Alves, Jussara Burgos e Jailson Vital.

Ilustrações: Edmar Sales

Formato: 14x21; capa 4 cores com brilho; papel amarelo
Número de páginas: 192

A amizade tem todas as cores - Autora: Maria Mineira


Vendidas as poucas cabeças de gado, nos mudamos da Beira da Serra. Meu pai resolvera abandonar a vida de lavrador e abrir um pequeno comércio na beira de uma estrada. Na região conhecida como “Leites” no município de São Roque.


A venda era sortida, tinha desde o sal de cozinha até cortes de tecido, querosene, Cibalena, Passajá , remédio para dor de dente, lâmina de gilete, fumo de rolo, Leite de Rosas, lamparina, marmelada, sardinha em lata, cachaça, bacias para banho, botinas. Havia também garrafas de guaraná, daquele que se furava a tampa com um prego, cujo sabor ainda tenho na memória.

As crianças adoravam um conjunto de vidros que ficava no balcão. Dentro havia balas, pirulitos e aneizinhos de pedras coloridas.

A vida seguia... Meu pai cuidava da venda, mamãe cuidava dos filhos e costurava para as mulheres das fazendas vizinhas.

Na região havia uma comunidade formada por descendentes de escravos. É provável que o lugar fosse um antigo quilombo, denominado “Furão”. Ali ainda moravam muitas famílias que se sustentavam trabalhando para os fazendeiros. Na venda trocavam feijão por querosene, sal e sardinha. Eram muito pobres e ainda sofriam preconceito por parte dos brancos.

Influenciada pelas vizinhas, mamãe acreditou serem feiticeiras, as remanescentes do quilombo. Nunca me deixava ir naquela direção. Eu só visitava as meninas brancas. O que ela nunca soube é que essas“amigas” me levavam para um quintal onde havia uma cisterna sem tampa. Brincando de casinha, mandavam-me subir na beira do poço e puxar água num balde preso por uma corda. Ingênua nunca percebi o perigo quando via meu reflexo lá no fundo.

As meninas pretinhas, filhas de uma empregada da fazenda me vigiavam de longe, escondidas atrás das árvores. Nunca chegavam perto.

Um dia ouvi assustada a proposta das “amigas”:

–Ô Mariinha, si ocê quisé brincá aqui em casa, tem qui pulá do outro lado da cisterna sem tampa...

–Ieu sô piquena, tenho medo de caí lá no fundo...

–Ocê iscói, pula ô nunca mais vorta aqui.

–Podexá! Ieu pulo.

Lembro-me muito bem disso. Quando armei o pulo senti alguém segurando firme meu braço. Era a Cida!

–Bamu simbora Mariinha, essas minina qué machucá ocê.

Cida e as irmãs me levaram dali e avisaram às outras:

–Nunca mais ocêis faiz isso cum ninguém! Sinão nóis vai pidi à vó Arminda pa modi infeitiçá ocêis tudo. Vão ficá tudo preta qui nem carvão.

A partir daquele dia conheci amigas de verdade. Descobri um mundo novo. Ali no "Furão", havia mais de vinte casinhas de capim, onde viviam várias famílias. Era um povo amistoso, bem humorado, contador de causos.

Dona Rita e seu Nicanor eram seus pais. A casinha deles era linda! O fogão à lenha e o chão eram limpinhos, rebocados de tabatinga branca. As panelinhas de ferro brilhavam no jirau, secando ao sol.

Havia uma horta de couve cercadinha com bambu. Canteiros de alface, couve, cebolinha, pimenta... Um jardinzinho de rosas, jasmins, dálias. Uns pés de laranja e mexericas docinhas.

Água para beber buscavam na mina do barranco, entre as samambaias. Para lavar roupas havia logo abaixo, uma laje grande e lisa, enterrada na areia clara de um riachinho. Muitas pedras nas margens, arbustos e capins rasteiros serviam como quaradouro.

Dona Rita fazia óleo de coco macaúba, um poderoso remédio contra a tosse. Usava-o também no cabelo das filhas e no meu antes de pentear e fazer tranças . Fez para mim também muitas bonecas de pano iguais as de suas meninas.

Aquela gente, sem ninguém saber, fez parte de minha infância por quase dois anos. Até nos mudarmos dali. Seu modo de ser sem preconceitos povoou meus dias.

Aprendi uma gama enorme de ensinamentos muito mais importantes que muitas pessoas conseguem entender. Sua amizade era verdadeira e terna, seus caminhos retos.

Passaram-se muitos anos... Não sei que rumo tomaram aqueles pezinhos descalços das meninas pretinhas, minhas queridas amigas de infância.



Autora: Maria Mineira - São Roque de Minas/MG

Página da autora:

http://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=86838

Publicação autorizada pela autora



Comentários:

Êta texto danado de bão, sô! Dilícia!
Professor Wanderley Dantas








Duas irmãs: uma azeda e uma doce - Autora: Meire Boni

Totõe entrou na puberdade precocemente.  De uma hora para outra mudou suas prioridades. Enquanto todos os garotos de sua idade corriam atrás de carrinhos feitos de loba¹, ele corria atrás de rabo de saia.  Sua mãe achava que era cedo demais para ele invocar com mulher, mas o pai puxava um saco danado de seu único filho homem. Além de apoiá-lo, dava umas diquinhas. Não era segredo para ninguém que Seu Bento, de bento só tinha o nome, pois eram muitas as histórias dele “bulinando” quanto tinha a idade do filho. As más línguas diziam que até hoje ele dava lá suas escapadinhas, que só não eram de grande proporção, por causa de Dona Luzia, que era muito centrada e trazia o marido a rédeas curtas.
 
Seu Bento era vizinho de fazenda de Seu Joaquim. Os dois estavam entre os mais ricos da região, eram amigos, mas muito diferentes um do outro. Seu Bento era um homem de paz, tratava bem os empregados, a família. Enquanto o vizinho administrava a família e a fazenda com mãos de ferro. Na sua fazenda tinha até jagunço e muitos de seus desafetos sumiram de uma hora para outra. Todo mundo sabia, mas ninguém falava. Nem Seu Bento, que era amigo, comentava esses assuntos. Seu Joaquim tinha três filhos, duas meninas e um menino. As meninas tinham ido para a cidade estudar, moravam com a avó, só vinham para casa nas férias de final de ano. O menino Quinzinho estava sendo criado para continuar o legado do pai.
 
Totõe era muito amigo do filho de Seu Joaquim. Brincavam dizendo que iam trocar as irmãs. Um ia casar com a irmã do outro. Nas últimas férias, quando as meninas vieram, se juntavam e formavam um bando de moleques. Quinzinho tinha duas irmãs Maria e Mariana. Maria a mais velha era rabugenta e azeda. Inzibida andava e se portava dura, como uma estaca de arame. Totõe gostava de Mariana, que era um doce de menina, mais bonita, mais educada.  Totõe não se cansava de brincar com o amigo:
 
-Você tem duas irmãs, uma doce e uma azeda, então eu posso escolher qual é a melhor! Como eu só tenho a entojada da Sebastiana, você não tem jeito de escolher. – Dizia isso e os dois riam. Todo mundo já sabia que Quinzinho era apaixonado por Sebastiana.
 
Os dois amigos iniciaram o ano meninos e terminaram homens. Não era a toa que viviam lá para as bandas das casas dos agregados quando todos os maridos estavam para o trabalho.
 
Era dia da lavagem das roupas. As mulheres iam uma vez por semana ao rio para lavarem roupa. Entravam no rio seminuas, e com água até o joelhos batiam as roupas nas pedras.  Os dois nunca perdiam esse acontecimento.  Ficavam amoitados só olhando, e depois apareciam como se fosse por acaso e acabavam todos dentro do rio.  Ainda em casa, Totõe recebeu através da mãe um recado:
 
-Filho, o Quinzinho mandou dizer pro’cê que vai na cidade buscar as meninas, elas chegam hoje, no trem das 10. Imagine o tamanhão que elas devem de estar, heim?
 
As palavras da mãe ecoaram muito tempo na cabeça de Totõe: “o tamanhão que elas devem de estar...” Não parava de pensar em Mariana, teria encorpado, devia de estar com corpo de mulher.  Muito mais bonita muito mais doce... E o tamanho do azedume da Maria só deve ter crescido. Pensou isso e riu.
 
Foi sozinho, não podia deixar as mulheres do rio na mão. À tarde, tomou um banho, se perfumou todinho e seguiu para a casa do amigo.
 
Quem lhe abriu a porta foi Maria, se olharam e tocaram um cumprimento forçado. Totõe viu que o tamanho da antipatia de Maria tinha realmente aumentado. Ela se sentou como uma estaca de arame, toda retinha e disse que o irmão estava no quarto.
 
Mas não tinha ninguém lá. Não quis perguntar para Maria, saiu pela mesma porta que entrou, passou pela “estaca azeda”, viu que ela o seguiu com os olhos, e balbuciou alguma coisa que ele não entendeu. Sentou-se no alpendre, logo apareceria alguém que lhe diria onde o amigo estava. Se encontrasse ele, encontraria Mariana. Eram pregados. Ouviu umas vozes vindas lá do fundo do quintal, reconheceu a voz do amigo. Seguiu o som e se deparou com uma imagem de sonho. Mariana, ali na sua frente, linda, com um vestido cor do céu, que deixava suas formas ainda mais exuberantes. Ela estava com o irmão, embaixo de uma mangueira. Encostada numa cerca com as mãos e a boca lambuzadas de manga madura. 
 
Mariana reconheceu logo Totõe:
 
-Agora chegou quem vai acertar com a primeira pedrada aquela manga que você, Quinzinho, tentou até o braço doer e não conseguiu pegar para mim. – Disse sorrindo, tentando esconder com a mão a boca suja de manga.
 
Totõe pegou uma pedra do chão e pediu que Mariana lhe mostrasse qual manga queria. Ela, no intuito de mostrar a fruta lá no alto, chegou tão pertinho, que ele sentiu o cheiro de seu cabelo.  Totõe derrubou a manga, e ao entregá-la a sua dona, deixou seus dedos roçar de leve nos dela. Totõe assistiu extasiado Mariana devorar a fruta. Ficou imaginando como deveriam ser doce os beijos daquela dona, e pensou: “É com Mariana que vou me casar.”
 
Chegou em casa conversou seriamente com o pai e a decisão foi tomada. Fariam o pedido.
 
Seu Joaquim não se opôs, e marcaram logo a data.
 
E chegou o dia. Era o casamento de Totõe e Mariana. Não teve namoro, nem noivado. Os pais combinaram tudo, Seu Joaquim organizaria a festa, o enxoval, e Seu Bento providenciaria a casa e os móveis.  A cerimônia seria celebrada na fazenda do pai da noiva. Seria um festão, como poucos. Os filhos dos fazendeiros mais importantes da região iam se casar. Eles se amavam.  Desde a chegada de Mariana, Totõe nunca mais foi ao rio, nem lá para o lado das casas dos agregados.
 
Totõe mandou vir um terno lá da capital. Todo engomado. Estava tudo pronto. Quando chegou a hora, a família toda, seguida pelos parentes e agregados, se dirigiu para a fazenda vizinha.
 
Totõe chegou e se posicionou no local a ele designado, perto do altar. Esperava ansioso. Estava contando os minutos para finalmente ter Mariana nos seus braços. Desde o dia em que a viu debaixo do pé de manga, voltou a vê-la umas duas vezes, Seu Joaquim, muito severo, disse que não ficava bem os dois ficarem se encontrando. Totõe sabia que se quisesse ter Mariana, tinha que seguir os desígnios do futuro sogro.
 
De braços dados com o pai, a noiva encoberta pelo véu caminhou até o altar. O coração de Totõe acelerava a cada passo que ela dava. Até que o momento chegou. Seu Joaquim lhe deu a filha, e os dois seguiram em direção ao padre. Sem tirar o véu, a noiva olhou o tempo todo fixo como uma estaca, para o padre, não se virou nenhuma vez para o noivo. Ele de vez em quando de rabo de olho, conferia se aquilo tudo era verdade, se estava mesmo ali do lado de sua noiva se casando.
 
Terminada a cerimônia, o padre disse:
 
-Agora o noivo pode tirar o véu da noiva e beijá-la.
 
Totõe delicadamente levantou o véu de sua, agora, esposa.  E viu algo que o pegou de surpresa. A surpresa foi tão grande que o noivo teve um treco. Caiu desmaiado. Ninguém entendeu nada. No meio da confusão a noiva saiu rapidamente, e o noivo desmaiado foi levado para um quarto dentro da casa, onde o padre tentava lhe reanimar.
 
Na festa todos culparam o calor, o terno que não estava acostumado a usar, a emoção do momento, mas Totõe no quarto quando recobrou os sentidos dizia repetidamente:
 
-Cadê Mariana? O que fizeram com ela? Onde está Mariana?
 
Foi quando Seu Joaquim pediu que todos saíssem do quarto, queria conversar com o genro. Quando ficaram a sós, o velho despejou:
 
-Mariana está no quarto dela. Você vai para casa, não acho bom que fique na festa, pode desmaiar de novo. Quando você chegar lá, sua esposa já estará esperando por você. - Totõe apesar da confusão que se instaurava em sua cabeça, tentou dizer ao sogro o motivo do desmaio, mas foi convencido pelo velho que era o calor.
 
Totõe foi levado por um dos capangas do sogro, quando chegou em casa, já era noitinha, entrou na casa meio tonto ainda e viu que de sua noiva já o esperava na cama. Na penumbra do quarto, as núpcias aconteceram e o casamento foi consumado.
 
Só no outro dia, ao acordar se deu conta que o que havia de seu lado não era a doce Mariana, mas a irmã rabugenta e azeda: era a Maria.
 
Ele bem que teve uma impressão quando levantou o véu. Mas foi convencido pelo sogro que era o calor, que era a maquiagem. Afinal eram irmãs. Uma muito mais bonita do que a outra, mas afinal tinham suas semelhanças.  O velho Joaquim havia lhe enganado.
 
Saiu sem fazer barulho, quando abriu a porta, deu de cara com o jagunço que tinha ordens de levá-lo a ter com o sogro.
 
A família de Totõe tinha um imenso respeito pelo Seu Joaquim, eram quase da família, por mais que estivesse contrariado, não ia fazer nada sem falar com seu pai antes. Seu Bento saberia como resolver amigavelmente esse terrível engano. Mas não pode ir até o pai, seguiu para a sede do sogro, escoltado pelo jagunço.
 
Seu Joaquim o esperava no alpendre, com mais dois de seus capangas recebeu-o com muita cortesia:
 
-O que trás meu genro aqui logo cedo, não deverias estar em núpcias?
 
-O senhor sabe muito bem o motivo de eu estar aqui. Onde está Mariana, o que o senhor fez com a minha noiva? – Disse meio gaguejando, em tom de voz alterado:
 
-Sua mulher, a Maria deve de estar em sua casa neste momento, mas Mariana seguiu com a mãe e o irmão para a capital, voltou para a casa da avó, vai ficar por lá por mais um tempo. – disse o sogro, enquanto enrolava calmamente um cigarro de palha.
 
-Vocês não tem o direito de fazerem isso com a nossa vida. Eu e Mariana... -Totõe não conseguiu terminar a frase, o sogro mirando o cigarro, o colocou no canto da boca, sem acender e falou:
 
-Não existe mais “Eu e Mariana”, agora é só você e a Maria. Vocês se casaram, com a benção do Nosso Senhor, consumaram o casamento, agora Maria é sua mulher e não se fala mais no assunto. Não adianta choramingar, você sabe que não tem como voltar atrás. Esqueça Mariana, você tem a Maria, é tudo a mesma coisa. Logo você vai se acostumar e vir que eu fiz a escolha certa. Vocês são muito novos, não sabem o que pensam. Eu o compadre Bento acabamos de conversar, ele acabou de sair daqui. Não adianta você ir pedir ajuda, ele concorda comigo – o velho repetiu: – Vocês se casaram perante Deus e já fizeram o que tinha de fazer a noite toda que eu sei o Fulô, meu capataz ficou de butuca atrás da janela pra ouvir se... bem você sabe!
 
-O senhor se certificou de tudo mesmo, né?-Falou isso e deu as costas para o sogro, e saiu.
 
-Não pense em fugir, você se casou com uma das minhas filhas, não me decepcione, ou vou esquecer que é filho do meu compadre! – Interrompeu seu trago e berrou o velho em tom ameaçador, no meio de um trago.
 
Totõe não tinha saída, pensou de todo jeito e viu que estava encurralado. Foi quando se lembrou do padre. Será que ele estava envolvido nisso?
 
Foi a pé até a igreja, que não era muito longe dali. O padre parecia que o estava esperando.
 
-Padre, o senhor já ficou sabendo? O senhor já sabia? – Perguntou Totõe, engasgado.
 
-Meu filho, todo mundo já sabe do acontecido. Quem veio marcar o casamento foi Seu Joaquim, eu nunca soube mesmo diferenciar as meninas, nomes parecidos. Agora você está casado perante Deus, só a morte pode separá-los. - Até o padre sabia que o casamento já fora consumado. Mas que casamento? Em casa, aquela “estaca azeda” o estaria esperando. Totõe ficava com náuseas só de lembrar que teria que aturá-la até que a morte os separasse.
 
Totõe foi para a casa do pai e o que ouviu dele, já sabia:
 
-Casamento que Deus faz só a morte separa se ao menos você não tivesse... Mas você é como eu, não pode ver mulher!
 
O que restava a Totõe era ficar com a azeda e pensar na doce... E assim o fez. O casamento durou dez anos. Maria foi feliz, apesar de nunca ter tocado no assunto com o marido. Foi ela quem se lembrou de dizer ao pai que não se casa uma filha mais nova antes da mais velha. O pai que atendia a todos os seus caprichos, não se importou com o amor. E atendeu ao capricho da filha, por conveniência, pois Mariana a mais nova, poderia casar com algum político da capital, e Maria já estava passando da idade de arrumar um bom partido.
 
-Ninguém se casa por amor mesmo, compadre! – Foi umas das frases que Seu Joaquim usou para convencer Seu Bento, e os demais.
 
          Mariana voltou à fazenda poucas vezes durante esses todos esses anos, e evitava ficar a sós com o cunhado, sabia que ele também não a tinha esquecido. Sebastiana, irmã de Totõe se casou com Quinzinho, e Maria morreu no parto da segunda filha.
 
Mariana não se casou o pai lhe arrumava pretendentes e ela sempre via algum defeito que o fazia desistir.
 
Apesar de ser uma estaca de arame farpado, Maria fazia de tudo para agradar Totõe, que acabou se acostumando com seu azedume, e de certa forma a fez feliz. Vale acrescentar que ele abandonou as visitas ao rio no dia da lavação de roupa e também a as visitas nas casas das agregadas.
 
Já viúvo, depois do luto, deixou as filhas aos cuidados da irmã e do cunhado, e foi procurar Mariana, sabia que ela nunca o dera esperanças, mas que continuava linda e doce...
 
Aos depois os dois se casaram em um altar erguido debaixo da mangueira. Ele só fez um pedido:
 
-Não use véu no rosto, Mariana.
 
Autora: Meire Boni - Bela Vista de Goiás/GO
 
Publicação autorizada pela autora


1-       Carrinho de loba: brinquedo muito comum entre as crianças da época uma espécie de carrinho feito através da junção de três frutas de lobeira, arbusto comum no cerrado, através de um eixo, e com um cabo que servia para empurrar o brinquedo ladeira abaixo.