A TORTURA DO MEDO (Peeping Tom, 1960, Michael Powell, 101min) Direção: Michael Powell. Roteiro: Leo Marks. Fotografia: Otto Heller. Montagem: Noreen Ackland. Música: Brian Easdale. Direção de arte: Arthur Lawson. Produção: Michael Powell. Elenco: Karlheinz Bohm, Moira Shearer, Anna Massey, Maxine Audley, Brenda Bruce, Michael Goodliffe, Jack Watson. Estreia: 07/4/60
Dois pesos e duas medidas. Quando "Psicose" estreou nos EUA, em junho de 1960, não demorou a tornar-se um dos maiores sucessos de bilheteria da carreira de Alfred Hitchcock, e uma das influências mais duradouras da história do cinema - além de uma merecidíssima indicação ao Oscar de melhor diretor. Poucos meses antes, no entanto, o britânico "A tortura do medo" havia sido lançado nos cinemas da Inglaterra e, depois de mero cinco dias de exibição, defenestrado das salas de exibição graças à polêmica em torno de seu tema e de seu resultado final. A comparação entre os dois títulos não é gratuita: assim como no filme dirigido pelo mestre do suspense, a produção dirigida por Michael Powell tem como protagonista um assassino em série, tornado simpático perante os olhos da plateia, e não hesita em fazer do espectador uma testemunha privilegiada de seus atos sangrentos. Porém, enquanto o filme de Hitchcock marcou positivamente sua trajetória já vitoriosa, o trabalho de Powell simplesmente destruiu sua carreira: a enxurrada de críticas negativas, a reação quase histérica do público e o tom mórbido em excesso afastaram o cineasta de sua Inglaterra natal e praticamente jogaram em um ostracismo o homem por trás de espetáculos como "Os sapatinhos vermelhos" (1948) e "Neste mundo e no outro" (1946) - ao menos até ser sua filmografia redescoberta e louvada por Francis Ford Coppola e Martin Scorsese no final da década de 1960.
Mas afinal de contas, por que essa gritaria toda em torno de ""A tortura do medo", que chegou a ser listado entre "os 25 filmes mais perigosos" pela revista Premiere? Visto hoje, à luz do tempo e depois de uma overdose de produções bem mais violentas e apelativas - algumas bem-sucedidas e outras abandonadas até mesmo por seu público-alvo -, o filme de Powell até soa datado, com sua fotografia excessivamente colorida e um roteiro indeciso entre o horror puro (que chocou até mesmo seu estúdio produtor, que cortou algumas cenas mais pesadas) e o drama psicológico que tenta explicar, ainda que superficialmente o comportamento de seu protagonista. Mas é bom lembrar que, à sua época, tudo que hoje soa ultrapassado era quase uma afronta ao espectador - e o filme ficou conhecido também por ser a primeira produção britânica comercial a exibir a nudez feminina. Mas o que talvez tenha sido considerado o auge da polêmica tem mais a ver com os bastidores do que com a trama: em um toque ousado, Michael Powell colocou a si mesmo, seu filho pequeno e sua esposa em cena, interpretando, respectivamente, o pai do protagonista, ele mesmo na infância e sua mãe, que já aparece morta; tal decisão ultrajou a crítica e acelerou a trajetória do filme em direção ao status de "maldito".
O personagem principal de "A tortura do medo" é Mark Lewis (Karlheinz Bohm), um jovem aparentemente normal, que trabalha para um estúdio de cinema londrino e completa o orçamento com fotografias eróticas que vende para uma sex shop. O que ninguém que o cerca sabe, no entanto, é que seu hobby é matar mulheres e filmar o momento de suas mortes. Sua vida solitária sofre um abalo quando Helen Stephens (Anna Massey), uma jovem que vive em um dos apartamentos do prédio que ele herdou dos pais, se aproxima dele e torna-se uma espécie de amiga. Morando com a mãe, cega, Helen nem de longe imagina que Mark vê nela, ao mesmo tempo, uma confidente (ainda que não completamente) e uma possível vítima de seus impulsos homicidas. Sua relação com a vizinha não o impede, porém, de saber que a polícia está em seu rastro, principalmente depois da morte de uma colega de trabalho - cujo corpo ele escondeu no baú de um dos cenários do filme em que está trabalhando. Enquanto não é descoberto, ele deixa escapar para Helen, aos poucos, alguns traumas de infância que podem ter contribuído para seus problemas psicológicos.
Ao apresentar Mark como praticamente a vítima de uma infância e não apenas um serial killer a quem o público poderia odiar sem culpa, Michael Powell mudou as regras do jogo (de certa forma da mesma maneira que Hitchcock em "Psicose") e surpreendeu negativamente seu público, apaixonado pelo belo "Os sapatinhos vermelhos" - e que sentiu-se traído com o tom mórbido e perturbador de seu filme. Em seu terceiro e último trabalho com Moira Shearer (que ficou com um pequeno mas crucial papel, que herdou de Joan Plowright e Julie Andrews), o cineasta mergulha o espectador em um pesadelo de cores fortes e claustrofóbico ao extremo. Sem alívio cômico e sem a carpintaria dramática de Hitchcock, Powell constrói um suspense incômodo que se torna inesquecível justamente por suas características menos comerciais. Um dos filmes preferidos de Martin Scorsese, "A tortura do medo" é uma pérola ainda pouco conhecida do grande público, mas pode ser considerado, sem favor algum, um dos precursores dos slasher movies que fariam a glória dos filmes de terror que proliferariam a partir da década de 1980 - mas com uma sofisticação a que eles jamais poderiam aspirar.
Filmes, filmes e mais filmes. De todos os gêneros, países, épocas e níveis de qualidade. Afinal, a sétima arte não tem esse nome à toa.
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