BOM COMPORTAMENTO (Good time, 2017, Elara Pictures/Rhea Films, 101min) Direção e roteiro: Benny Safdie, Josh Safdie. Fotografia: Sean Price Williams. Montagem: Ronald Bronstein, Benny Safdie. Música: Oneothrix Point Never. Figurino: Miyako Bellizzi, Mordechai Rubinstein. Direção de arte/cenários: Sam Lisenco/Audrey Turner. Produção executiva: Jean-Luc De Fanti. Produção: Sebastian Bear-McClard, Oscar Boyson, Terry Douglas, Paris Kasidokostas Latsis. Elenco: Robert Pattinson, Benny Safdie, Buddy Duress, Jennifer Jason Leigh, Taliah Webster, Barkhad Abdi. Estreia: 25/5/17 (Festival de Cannes)
Fazer parte de um fenômeno cultural logicamente ajuda na carreira de um ator/atriz. Ao mesmo tempo, porém, pode transformar-se em uma prisão, especialmente quando tal fenômeno não alcança, em termos de prestígio, o tanto que alcançou comercialmente. É o que aconteceu com o elenco da saga "Crepúsculo", inspirada nos livros de Stephanie Meyer: desde que começaram a chegar aos cinemas, em 2008, suas adaptações lotaram salas de exibição mundo afora e deram instantaneamente a seus atores principais, Kristen Stewart e Robert Pattinson, status de estrelas. Mesmo bombardeados pela crítica, os filmes seguiram aplaudidos por milhares de adolescentes, encantados com o triângulo amoroso entre uma mortal, um vampiro melancólico e um lobisomem juvenil. Presos a personagens quase risíveis e entregando atuações constrangedoras, os jovens atores saíram da empreitada com seus currículos chamuscados e desacreditados diante de Hollywood. Demorou um bom tempo até que finalmente eles começassem a demonstrar que, por trás de ídolos juvenis, eles tinham talento suficiente para encarar desafios maiores. Kristen (que começou a ser notada como a filha de Jodie Foster em "O quarto do pânico", de 2002) foi a primeira, integrando o elenco de produções de peso, como a versão cinematográfica de "Na estrada", de Jack Kerouac - dirigida por Walter Salles em 2012 - e "Acima das nuvens" (2014), de Olivier Assayas, que lhe rendeu um César de atriz coadjuvante (ela foi a primeira atriz norte-americana a levar o prêmio, considerado o Oscar francês). Já seu colega de elenco - e também namorado por um determinado período de tempo, durante as filmagens da série - demorou um pouco mais a convencer além de seus fãs adolescentes.
Lembrado também como Cedric Diggory em "Harry Potter e o cálice de fogo" (2005), Pattinson já tinha vivido o pintor Salvador Dalí em "Poucas cinzas", de 2008, antes mesmo de interpretar o vampiro Edward Cullen, mas seu trabalho nas tramas de Meyer atrapalhou sua trajetória como ator sério. Suas participações em "Bel Ami: o sedutor" (baseado em Guy de Maupassant) e "Cosmópolis", dirigido por David Cronenberg, chamaram a atenção de alguns críticos, mas não chegaram a alterar a forma como o espectador médio o via. Até que "Bom comportamento", uma produção independente com orçamento de cerca de 4,5 milhões de dólares mudou tudo: aplaudidíssimo no Festival de Cannes 2017, o filme dos irmãos Benny e Josh Safdie lhe rendeu indicações a vários prêmios na temporada, elogios rasgados da imprensa e a chance de finalmente deixar para trás a imagem de galã púbere. A melhor notícia, no entanto, é que ele realmente faz esquecer as caras e bocas de seu mais célebre papel e convence com um personagem amoral e pouco confiável - escrito especialmente para ele depois que ele contatou os diretores/roteiristas e comunicou que queria trabalhar com eles.
Intrigado pelo cartaz do filme "Amor, drogas e Nova York" quando o viu pela Internet, Pattinson escreveu um email aos irmãos, demonstrando interesse em um projeto qualquer no futuro. Poucas semanas depois os três se encontraram, e os Safdie, sabendo que o nome do ator poderia abrir muitas portas para uma produção sem o apoio de grandes produtoras, não perderam tempo. Logo criaram Connie Nickas, um jovem criminoso que, movido pela força do amor que sente por seu irmão com problemas mentais, Nick (o próprio Benny Safdie, um dos diretores), se vê obrigado a entrar em uma perigosa jornada para tirá-lo do hospital em que se encontra internado desde que um assalto cometido pelos dois resultou em sua prisão. Para isso, ele conta com a ajuda de sua namorada, Corey (participação especial de Jennifer Jason Leigh) e com a adolescente Crystal (Taliah Lennice Webster), que se envolve quase sem querer na situação.
Situando sua trama em uma única noite (com poucos flashbacks), "Bom comportamento" não é, nem de longe, um filme perfeito. Apesar do esforço de Pattinson e alguns bons momentos de tensão, a trama não é forte o bastante para segurar a atenção da plateia sem que se torne cansativa. Um tanto superficial em seu desenvolvimento e com um roteiro que deixa coisas demais para a imaginação do espectador, tem um começo promissor, mas vai perdendo o gás com o decorrer do tempo - para retomá-lo, e mesmo assim sem a mesma força, na reta final. Desperdiçando o talento de Jennifer Jason Leigh e de Barkhad Abdi (indicado ao Oscar de coadjuvante por "Capitão Phillips", de 2013), "Bom comportamento" aposta todas as suas fichas no desempenho de seu ator central e no ritmo ágil: acerta no primeiro - Pattinson nunca esteve tão bem em cena -, mas tropeça no segundo, já que a agilidade da edição é, talvez, um dos calcanhares de Aquiles da produção: ao invés de complexa e inteligente, é apenas confusa. O filme seguinte dos cineastas, "Joias brutas", foi igualmente elogiado pela crítica e havia quem confiasse que a Academia iria lembrar de Adam Sandler entre seus indicados da temporada 2019 - e novamente pareceu mais uma alucinação coletiva, já que foi a produção foi solenemente ignorada pelo Oscar. Aparentemente, os irmãos tem talento, mas ainda precisam lapidá-lo antes de sua consagração. "Bom comportamento" apresenta boas ideias, mas está bem longe de estar acima da média.
Filmes, filmes e mais filmes. De todos os gêneros, países, épocas e níveis de qualidade. Afinal, a sétima arte não tem esse nome à toa.
quinta-feira
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A TORTURA DO MEDO
A TORTURA DO MEDO (Peeping Tom, 1960, Michael Powell, 101min) Direção: Michael Powell. Roteiro: Leo Marks. Fotografia: Otto Heller. Montagem: Noreen Ackland. Música: Brian Easdale. Direção de arte: Arthur Lawson. Produção: Michael Powell. Elenco: Karlheinz Bohm, Moira Shearer, Anna Massey, Maxine Audley, Brenda Bruce, Michael Goodliffe, Jack Watson. Estreia: 07/4/60
Dois pesos e duas medidas. Quando "Psicose" estreou nos EUA, em junho de 1960, não demorou a tornar-se um dos maiores sucessos de bilheteria da carreira de Alfred Hitchcock, e uma das influências mais duradouras da história do cinema - além de uma merecidíssima indicação ao Oscar de melhor diretor. Poucos meses antes, no entanto, o britânico "A tortura do medo" havia sido lançado nos cinemas da Inglaterra e, depois de mero cinco dias de exibição, defenestrado das salas de exibição graças à polêmica em torno de seu tema e de seu resultado final. A comparação entre os dois títulos não é gratuita: assim como no filme dirigido pelo mestre do suspense, a produção dirigida por Michael Powell tem como protagonista um assassino em série, tornado simpático perante os olhos da plateia, e não hesita em fazer do espectador uma testemunha privilegiada de seus atos sangrentos. Porém, enquanto o filme de Hitchcock marcou positivamente sua trajetória já vitoriosa, o trabalho de Powell simplesmente destruiu sua carreira: a enxurrada de críticas negativas, a reação quase histérica do público e o tom mórbido em excesso afastaram o cineasta de sua Inglaterra natal e praticamente jogaram em um ostracismo o homem por trás de espetáculos como "Os sapatinhos vermelhos" (1948) e "Neste mundo e no outro" (1946) - ao menos até ser sua filmografia redescoberta e louvada por Francis Ford Coppola e Martin Scorsese no final da década de 1960.
Mas afinal de contas, por que essa gritaria toda em torno de ""A tortura do medo", que chegou a ser listado entre "os 25 filmes mais perigosos" pela revista Premiere? Visto hoje, à luz do tempo e depois de uma overdose de produções bem mais violentas e apelativas - algumas bem-sucedidas e outras abandonadas até mesmo por seu público-alvo -, o filme de Powell até soa datado, com sua fotografia excessivamente colorida e um roteiro indeciso entre o horror puro (que chocou até mesmo seu estúdio produtor, que cortou algumas cenas mais pesadas) e o drama psicológico que tenta explicar, ainda que superficialmente o comportamento de seu protagonista. Mas é bom lembrar que, à sua época, tudo que hoje soa ultrapassado era quase uma afronta ao espectador - e o filme ficou conhecido também por ser a primeira produção britânica comercial a exibir a nudez feminina. Mas o que talvez tenha sido considerado o auge da polêmica tem mais a ver com os bastidores do que com a trama: em um toque ousado, Michael Powell colocou a si mesmo, seu filho pequeno e sua esposa em cena, interpretando, respectivamente, o pai do protagonista, ele mesmo na infância e sua mãe, que já aparece morta; tal decisão ultrajou a crítica e acelerou a trajetória do filme em direção ao status de "maldito".
O personagem principal de "A tortura do medo" é Mark Lewis (Karlheinz Bohm), um jovem aparentemente normal, que trabalha para um estúdio de cinema londrino e completa o orçamento com fotografias eróticas que vende para uma sex shop. O que ninguém que o cerca sabe, no entanto, é que seu hobby é matar mulheres e filmar o momento de suas mortes. Sua vida solitária sofre um abalo quando Helen Stephens (Anna Massey), uma jovem que vive em um dos apartamentos do prédio que ele herdou dos pais, se aproxima dele e torna-se uma espécie de amiga. Morando com a mãe, cega, Helen nem de longe imagina que Mark vê nela, ao mesmo tempo, uma confidente (ainda que não completamente) e uma possível vítima de seus impulsos homicidas. Sua relação com a vizinha não o impede, porém, de saber que a polícia está em seu rastro, principalmente depois da morte de uma colega de trabalho - cujo corpo ele escondeu no baú de um dos cenários do filme em que está trabalhando. Enquanto não é descoberto, ele deixa escapar para Helen, aos poucos, alguns traumas de infância que podem ter contribuído para seus problemas psicológicos.
Ao apresentar Mark como praticamente a vítima de uma infância e não apenas um serial killer a quem o público poderia odiar sem culpa, Michael Powell mudou as regras do jogo (de certa forma da mesma maneira que Hitchcock em "Psicose") e surpreendeu negativamente seu público, apaixonado pelo belo "Os sapatinhos vermelhos" - e que sentiu-se traído com o tom mórbido e perturbador de seu filme. Em seu terceiro e último trabalho com Moira Shearer (que ficou com um pequeno mas crucial papel, que herdou de Joan Plowright e Julie Andrews), o cineasta mergulha o espectador em um pesadelo de cores fortes e claustrofóbico ao extremo. Sem alívio cômico e sem a carpintaria dramática de Hitchcock, Powell constrói um suspense incômodo que se torna inesquecível justamente por suas características menos comerciais. Um dos filmes preferidos de Martin Scorsese, "A tortura do medo" é uma pérola ainda pouco conhecida do grande público, mas pode ser considerado, sem favor algum, um dos precursores dos slasher movies que fariam a glória dos filmes de terror que proliferariam a partir da década de 1980 - mas com uma sofisticação a que eles jamais poderiam aspirar.
Dois pesos e duas medidas. Quando "Psicose" estreou nos EUA, em junho de 1960, não demorou a tornar-se um dos maiores sucessos de bilheteria da carreira de Alfred Hitchcock, e uma das influências mais duradouras da história do cinema - além de uma merecidíssima indicação ao Oscar de melhor diretor. Poucos meses antes, no entanto, o britânico "A tortura do medo" havia sido lançado nos cinemas da Inglaterra e, depois de mero cinco dias de exibição, defenestrado das salas de exibição graças à polêmica em torno de seu tema e de seu resultado final. A comparação entre os dois títulos não é gratuita: assim como no filme dirigido pelo mestre do suspense, a produção dirigida por Michael Powell tem como protagonista um assassino em série, tornado simpático perante os olhos da plateia, e não hesita em fazer do espectador uma testemunha privilegiada de seus atos sangrentos. Porém, enquanto o filme de Hitchcock marcou positivamente sua trajetória já vitoriosa, o trabalho de Powell simplesmente destruiu sua carreira: a enxurrada de críticas negativas, a reação quase histérica do público e o tom mórbido em excesso afastaram o cineasta de sua Inglaterra natal e praticamente jogaram em um ostracismo o homem por trás de espetáculos como "Os sapatinhos vermelhos" (1948) e "Neste mundo e no outro" (1946) - ao menos até ser sua filmografia redescoberta e louvada por Francis Ford Coppola e Martin Scorsese no final da década de 1960.
Mas afinal de contas, por que essa gritaria toda em torno de ""A tortura do medo", que chegou a ser listado entre "os 25 filmes mais perigosos" pela revista Premiere? Visto hoje, à luz do tempo e depois de uma overdose de produções bem mais violentas e apelativas - algumas bem-sucedidas e outras abandonadas até mesmo por seu público-alvo -, o filme de Powell até soa datado, com sua fotografia excessivamente colorida e um roteiro indeciso entre o horror puro (que chocou até mesmo seu estúdio produtor, que cortou algumas cenas mais pesadas) e o drama psicológico que tenta explicar, ainda que superficialmente o comportamento de seu protagonista. Mas é bom lembrar que, à sua época, tudo que hoje soa ultrapassado era quase uma afronta ao espectador - e o filme ficou conhecido também por ser a primeira produção britânica comercial a exibir a nudez feminina. Mas o que talvez tenha sido considerado o auge da polêmica tem mais a ver com os bastidores do que com a trama: em um toque ousado, Michael Powell colocou a si mesmo, seu filho pequeno e sua esposa em cena, interpretando, respectivamente, o pai do protagonista, ele mesmo na infância e sua mãe, que já aparece morta; tal decisão ultrajou a crítica e acelerou a trajetória do filme em direção ao status de "maldito".
O personagem principal de "A tortura do medo" é Mark Lewis (Karlheinz Bohm), um jovem aparentemente normal, que trabalha para um estúdio de cinema londrino e completa o orçamento com fotografias eróticas que vende para uma sex shop. O que ninguém que o cerca sabe, no entanto, é que seu hobby é matar mulheres e filmar o momento de suas mortes. Sua vida solitária sofre um abalo quando Helen Stephens (Anna Massey), uma jovem que vive em um dos apartamentos do prédio que ele herdou dos pais, se aproxima dele e torna-se uma espécie de amiga. Morando com a mãe, cega, Helen nem de longe imagina que Mark vê nela, ao mesmo tempo, uma confidente (ainda que não completamente) e uma possível vítima de seus impulsos homicidas. Sua relação com a vizinha não o impede, porém, de saber que a polícia está em seu rastro, principalmente depois da morte de uma colega de trabalho - cujo corpo ele escondeu no baú de um dos cenários do filme em que está trabalhando. Enquanto não é descoberto, ele deixa escapar para Helen, aos poucos, alguns traumas de infância que podem ter contribuído para seus problemas psicológicos.
Ao apresentar Mark como praticamente a vítima de uma infância e não apenas um serial killer a quem o público poderia odiar sem culpa, Michael Powell mudou as regras do jogo (de certa forma da mesma maneira que Hitchcock em "Psicose") e surpreendeu negativamente seu público, apaixonado pelo belo "Os sapatinhos vermelhos" - e que sentiu-se traído com o tom mórbido e perturbador de seu filme. Em seu terceiro e último trabalho com Moira Shearer (que ficou com um pequeno mas crucial papel, que herdou de Joan Plowright e Julie Andrews), o cineasta mergulha o espectador em um pesadelo de cores fortes e claustrofóbico ao extremo. Sem alívio cômico e sem a carpintaria dramática de Hitchcock, Powell constrói um suspense incômodo que se torna inesquecível justamente por suas características menos comerciais. Um dos filmes preferidos de Martin Scorsese, "A tortura do medo" é uma pérola ainda pouco conhecida do grande público, mas pode ser considerado, sem favor algum, um dos precursores dos slasher movies que fariam a glória dos filmes de terror que proliferariam a partir da década de 1980 - mas com uma sofisticação a que eles jamais poderiam aspirar.
terça-feira
A BELA E A FERA
A BELA E A FERA (Beauty and the Beast, 2017, Walt Disney Films, 129min) Direção: Bill Condon. Roteiro: Stephen Chbosky, Evan Spiliotopoulos, roteiro da animação original de Linda Woolverton. Fotografia: Tobias Schliessler. Montagem: Virginia Katz. Música: Alan Menken. Figurino: Jacqueline Durran. Direção de arte/cenários: Sarah Greenwood/Katie Spencer. Produção executiva: Don Hahn, Thomas Schumacher, Jeffrey Silver. Produção: David Hoberman, Todd Lieberman. Elenco: Emma Watson, Dan Stevens, Luke Evans, Josh Gad, Kevin Kline, Ewan McGregor, Ian McKellen, Emma Thompson, Stanley Tucci. Estreia: 23/02/17
2 indicações ao Oscar: Figurino, Direção de Arte/Cenários
Em 1992, "A Bela e a Fera", animação produzida pela Disney, conseguiu furar um bloqueio histórico e ser indicada ao Oscar de Melhor Filme, anos antes que desenhos animados tivessem uma categoria para chamarem de sua e passassem a ser levados tão a sério quanto qualquer gênero mais "adulto" - e frequentemente também lembrados na corrida à estatueta principal. Na época, ficou apenas com os prêmios tradicionalmente relegados às animações (trilha sonora original e canção), mas abriu um precedente inesperado, já que fazia pouco tempo que o estúdio do Mickey havia readquirido seu status de grande produtor de filmes do gênero. Bem-sucedido nas bilheterias e aplaudido pela crítica, "A Bela e a Fera" se manteve no inconsciente coletivo do público por décadas, até que a mesma Disney teve a ideia de apresentá-lo a novas gerações - mas em formato diferente. A intenção era manter o clima original, parte das canções e a trama central, mas em live-action. Algo assim já havia sido testado em "Cinderela", dirigido por Kenneth Branagh em 2015, mas dessa vez o projeto era muito mais ambicioso: não apenas estenderia o roteiro em 45 minutos (em relação ao original) como contaria com uma atriz de considerável poder de atração, a inglesa Emma Watson, famosa por sua participação na bilionária série cinematográfica "Harry Potter". Além disso, o orçamento seria muito generoso (cerca de 160 milhões de dólares) e o diretor seria o vencedor do Oscar de melhor roteiro, Bill Condon (que arrebatou a estatueta em 1999 por "Deuses e monstros" e tinha no currículo ainda o elogiado "Kinsey: vamos falar de sexo", de 2004). Não tinha como dar errado. E não deu.
Antes mesmo de sua estreia, a nova versão de "A Bela e a Fera" já prometia ser um enorme sucesso: em suas primeiras 24 horas on line, o teaser do filme foi visto quase 92 milhões de vezes, estabelecendo, à época, um recorde. Com suas filmagens terminadas em agosto de 2015, o estúdio deixou a plateia em compasso de espera por cerca de um ano e meio até seu lançamento, em fevereiro de 2017: se foi proposital ou não é uma incógnita, mas o fato é que a estratégia deu certo, e o filme rendeu mais de 174 milhões de dólares em seu primeiro fim-de-semana nos EUA. Ao redor do mundo, a renda total foi de mais de um bilhão de dólares - uma cifra que nem mesmo os mais otimistas executivos ousariam sonhar. A melhor notícia, no entanto, quem recebeu foi o público: apesar do marketing, do orçamento inchado e de precisar atingir um patamar altíssimo de expectativa, a versão em carne e osso de "A Bela e a Fera" é um filme que em nada fica a dever a seu original: é visualmente belíssimo, tem uma trilha sonora da mais alta qualidade, um elenco muitíssimo bem escalado (desde os protagonistas até os coadjuvantes dos quais apenas se ouvem as vozes até o belo final) e um perfeito equilíbrio entre drama, aventura, romance e comédia. Tal conexão, porém, poderia não ter acontecido, caso o elenco escolhido tivesse sido outro - o que poderia muito bem ter acontecido.
Antes que Emma Watson tivesse assinado o contrato para viver Belle - com um cachê de três milhõs de dólares mais percentagem sobre a milionária bilheteria -, vários nomes chegaram a ser considerados: Lily Collins (que viveu Branca de Neve em "Espelho, espelho meu", de 2011), Emmy Rossum (a mocinha de "O fantasma da ópera", lançado em 2004), Amanda Seyfried (que havia soltado a voz em "Mamma Mia!", de 2008), Kristen Stewart (que também interpretou Branca de Neve, em "Branca de Neve e o caçador", em 2011) e Emma Roberts. O papel principal masculino - que exigiria de seu intérprete uma alta dose de paciência para atuar sob uma pesada maquiagem e ter seu rosto escondido sob CGI - também teve alguns nomes considerados antes que Dan Stevens o assumisse: Robert Pattinson, o famigerado vampiro Edward da série "Crepúsculo" esteve na mira do diretor Bill Condon - que assinou os dois últimos filmes baseados nos livros de Stephanie Meyer - e o galã do momento, Ryan Gosling, chegou a ser convidado para o papel, preferindo literalmente cantar em outra freguesia - mais precisamente nos sets de "La La Land: Cantando Estações", que lhe rendeu uma indicação ao Oscar de melhor ator. Coincidência ou não, Emma Watson fez o caminho inverso: declinou da proposta para ser a protagonista do premiado filme de Demian Chazelle e preferiu realizar nas telas um de seus sonhos de criança. E o veterano Ian McKellen - que havia recusado dublar o relógio Cogsworth na produção de 1991 - dessa vez aceitou o desafio de criar o mesmo personagem. A seu lado, no time de dubladores que só mostram o rosto no desfecho do filme, nomes como os de Ewan McGregor, Emma Thompson e Stanley Tucci.
A trama do filme dessa vez comandado por Condon continua a mesma, diferindo apenas no desenvolvimento maior de alguns personagens: um príncipe, vaidoso e arrogante (Dan Stevens) é amaldiçoado por uma feiticeira e se transforma em um monstro, além de ver seu castelo, sua história e seus empregados apagados da memória de todos os que os conheceram. Seus criados são transformados em objetos e, na nova forma animalesca, ele se isola do mundo, permanecendo em seu castelo longe da vista de todos. Alguns anos mais tarde, ao tentar levar uma rosa do jardim do palácio para sua filha, o solitário Maurice (Kevin Kline) é aprisionado pela fera. Guiada por seu cavalo, que a leva diretamente ao castelo, Belle (Emma Watson), uma bela e voluntariosa jovem, consegue libertar seu pai ao oferecer-se ao posto de prisioneira. Empolgados com a situação, os objetos/criados tentam aproximar Belle da Fera - eles sabem que a única maneira de voltarem à forma original é fazer com que a garota se apaixone por ele apesar de sua aparência. Como todo conto de fadas, "A Bela e a Fera" precisa que o público compre sua história sem maiores questionamentos, e o filme de Condon consegue tal façanha sem fazer muita força. Ao transformar Belle em uma heroína de atitudes decididas, independente e com personalidade de sobra, o roteiro aproxima a trama de um contexto mais apropriado ao século XXI - o que torna o antagonista, Gaston (Luke Evans), ainda mais desagradável mesmo em comparação com uma fera. Inspirada em Katharine Hepburn, a jovem Emma Watson alcança o tom exato da personagem e conduz o espetáculo com segurança e graça. Pode até não agradar a quem não é fã de musicais, mas é inegavelmente um espetacular trabalho de adaptação, visualmente excitante e artisticamente sofisticado - mas sem perder, por um segundo sequer, seu diálogo com qualquer tipo de plateia. Um triunfo!
2 indicações ao Oscar: Figurino, Direção de Arte/Cenários
Em 1992, "A Bela e a Fera", animação produzida pela Disney, conseguiu furar um bloqueio histórico e ser indicada ao Oscar de Melhor Filme, anos antes que desenhos animados tivessem uma categoria para chamarem de sua e passassem a ser levados tão a sério quanto qualquer gênero mais "adulto" - e frequentemente também lembrados na corrida à estatueta principal. Na época, ficou apenas com os prêmios tradicionalmente relegados às animações (trilha sonora original e canção), mas abriu um precedente inesperado, já que fazia pouco tempo que o estúdio do Mickey havia readquirido seu status de grande produtor de filmes do gênero. Bem-sucedido nas bilheterias e aplaudido pela crítica, "A Bela e a Fera" se manteve no inconsciente coletivo do público por décadas, até que a mesma Disney teve a ideia de apresentá-lo a novas gerações - mas em formato diferente. A intenção era manter o clima original, parte das canções e a trama central, mas em live-action. Algo assim já havia sido testado em "Cinderela", dirigido por Kenneth Branagh em 2015, mas dessa vez o projeto era muito mais ambicioso: não apenas estenderia o roteiro em 45 minutos (em relação ao original) como contaria com uma atriz de considerável poder de atração, a inglesa Emma Watson, famosa por sua participação na bilionária série cinematográfica "Harry Potter". Além disso, o orçamento seria muito generoso (cerca de 160 milhões de dólares) e o diretor seria o vencedor do Oscar de melhor roteiro, Bill Condon (que arrebatou a estatueta em 1999 por "Deuses e monstros" e tinha no currículo ainda o elogiado "Kinsey: vamos falar de sexo", de 2004). Não tinha como dar errado. E não deu.
Antes mesmo de sua estreia, a nova versão de "A Bela e a Fera" já prometia ser um enorme sucesso: em suas primeiras 24 horas on line, o teaser do filme foi visto quase 92 milhões de vezes, estabelecendo, à época, um recorde. Com suas filmagens terminadas em agosto de 2015, o estúdio deixou a plateia em compasso de espera por cerca de um ano e meio até seu lançamento, em fevereiro de 2017: se foi proposital ou não é uma incógnita, mas o fato é que a estratégia deu certo, e o filme rendeu mais de 174 milhões de dólares em seu primeiro fim-de-semana nos EUA. Ao redor do mundo, a renda total foi de mais de um bilhão de dólares - uma cifra que nem mesmo os mais otimistas executivos ousariam sonhar. A melhor notícia, no entanto, quem recebeu foi o público: apesar do marketing, do orçamento inchado e de precisar atingir um patamar altíssimo de expectativa, a versão em carne e osso de "A Bela e a Fera" é um filme que em nada fica a dever a seu original: é visualmente belíssimo, tem uma trilha sonora da mais alta qualidade, um elenco muitíssimo bem escalado (desde os protagonistas até os coadjuvantes dos quais apenas se ouvem as vozes até o belo final) e um perfeito equilíbrio entre drama, aventura, romance e comédia. Tal conexão, porém, poderia não ter acontecido, caso o elenco escolhido tivesse sido outro - o que poderia muito bem ter acontecido.
Antes que Emma Watson tivesse assinado o contrato para viver Belle - com um cachê de três milhõs de dólares mais percentagem sobre a milionária bilheteria -, vários nomes chegaram a ser considerados: Lily Collins (que viveu Branca de Neve em "Espelho, espelho meu", de 2011), Emmy Rossum (a mocinha de "O fantasma da ópera", lançado em 2004), Amanda Seyfried (que havia soltado a voz em "Mamma Mia!", de 2008), Kristen Stewart (que também interpretou Branca de Neve, em "Branca de Neve e o caçador", em 2011) e Emma Roberts. O papel principal masculino - que exigiria de seu intérprete uma alta dose de paciência para atuar sob uma pesada maquiagem e ter seu rosto escondido sob CGI - também teve alguns nomes considerados antes que Dan Stevens o assumisse: Robert Pattinson, o famigerado vampiro Edward da série "Crepúsculo" esteve na mira do diretor Bill Condon - que assinou os dois últimos filmes baseados nos livros de Stephanie Meyer - e o galã do momento, Ryan Gosling, chegou a ser convidado para o papel, preferindo literalmente cantar em outra freguesia - mais precisamente nos sets de "La La Land: Cantando Estações", que lhe rendeu uma indicação ao Oscar de melhor ator. Coincidência ou não, Emma Watson fez o caminho inverso: declinou da proposta para ser a protagonista do premiado filme de Demian Chazelle e preferiu realizar nas telas um de seus sonhos de criança. E o veterano Ian McKellen - que havia recusado dublar o relógio Cogsworth na produção de 1991 - dessa vez aceitou o desafio de criar o mesmo personagem. A seu lado, no time de dubladores que só mostram o rosto no desfecho do filme, nomes como os de Ewan McGregor, Emma Thompson e Stanley Tucci.
A trama do filme dessa vez comandado por Condon continua a mesma, diferindo apenas no desenvolvimento maior de alguns personagens: um príncipe, vaidoso e arrogante (Dan Stevens) é amaldiçoado por uma feiticeira e se transforma em um monstro, além de ver seu castelo, sua história e seus empregados apagados da memória de todos os que os conheceram. Seus criados são transformados em objetos e, na nova forma animalesca, ele se isola do mundo, permanecendo em seu castelo longe da vista de todos. Alguns anos mais tarde, ao tentar levar uma rosa do jardim do palácio para sua filha, o solitário Maurice (Kevin Kline) é aprisionado pela fera. Guiada por seu cavalo, que a leva diretamente ao castelo, Belle (Emma Watson), uma bela e voluntariosa jovem, consegue libertar seu pai ao oferecer-se ao posto de prisioneira. Empolgados com a situação, os objetos/criados tentam aproximar Belle da Fera - eles sabem que a única maneira de voltarem à forma original é fazer com que a garota se apaixone por ele apesar de sua aparência. Como todo conto de fadas, "A Bela e a Fera" precisa que o público compre sua história sem maiores questionamentos, e o filme de Condon consegue tal façanha sem fazer muita força. Ao transformar Belle em uma heroína de atitudes decididas, independente e com personalidade de sobra, o roteiro aproxima a trama de um contexto mais apropriado ao século XXI - o que torna o antagonista, Gaston (Luke Evans), ainda mais desagradável mesmo em comparação com uma fera. Inspirada em Katharine Hepburn, a jovem Emma Watson alcança o tom exato da personagem e conduz o espetáculo com segurança e graça. Pode até não agradar a quem não é fã de musicais, mas é inegavelmente um espetacular trabalho de adaptação, visualmente excitante e artisticamente sofisticado - mas sem perder, por um segundo sequer, seu diálogo com qualquer tipo de plateia. Um triunfo!
segunda-feira
OS OLHOS SEM ROSTO
OS OLHOS SEM ROSTO (Les yeux sans visage, 1960, Champs-Élysées Production/Lux Films, 90min) Direção: Georges Franju. Roteiro: Pierre Boileau, Thomas Narcejac, Jean Redon, Claude Sautet, romance de Jean Redon. Fotografia: Eugen Shuftan. Montagem: Gilbert Natot. Música: Maurice Jarre. Figurino: Marie-Martine. Direção de arte/cenários: Auguste Capelier/Margot Capelier. Produção: Jules Borkon. Elenco: Pierre Brasseur, Alida Valli, Juliette Mayniel, Alexandre Rignaut, Béatrice Altariba. Estreia: 11/01/60
Em Hollywood, os filmes de terror sempre foram relegados à incômoda categoria de filmes marginais, sem qualidade artística e criados unicamente com o objetivo de ganhar dinheiro fácil, às custas, no entanto, de uma plateia fiel ao gênero. Na França, terra da nouvelle vague e da prestigiada revista Cahièrs do Cinemà, a situação não era assim tão diferente: em 1960, quando "Os olhos sem rosto" estreou, a imprensa fez questão de demonstrar sua opinião absolutamente negativa a respeito da produção. Dirigida por Georges Franju, até então respeitado por seus documentários em curta-metragem e por ser o co-fundador da imprescindível Cinemateca Francesa, ao lado de Henri Langlois, a adaptação do livro de Jean Redon foi considerada um passo em falso em sua carreira, por tratar-se, segundo os críticos, de um "gênero menor". O único crítico razoavelmente importante a ter a coragem de desafiar o pensamento comum, um britânico do jornal "The spectator"", quase perdeu o emprego pela ousadia de reconhecer no filme as qualidades que o cineasta já havia demonstrado em trabalhos anteriores - e que continuavam aparecendo em "Os olhos sem rosto" apesar do desprezo dos jornalistas especializados. Em sua defesa - se é que precisasse de uma -, Franju declarou que escolheu adaptar o livro de Redon justamente para dar credibilidade aos filmes de suspense e terror. Demorou até que tal objetivo fosse alcançado - e, mesmo assim, com reservas.
Ao ser lançado nos EUA, "Os olhos sem rosto" já havia sido renegado em seu país de origem, o que encorajou seus exibidores a tratá-lo com quase desprezo. Não só recebeu um novo e inexplicável título - "The horror chamber of Dr. Faustus", seja lá quem seja esse Dr. Faustus criado pelos norte-americanos - como chegou aos cinemas como segunda parte de um programa duplo - o outro filme era o japonês "The manster". A essa altura, em outubro de 1962, a plateia já sabia que, durante sua exibição no Festival de Cinema de Edimburgo, alguns espectadores chegaram a desmaiar diante de uma de suas cenas consideradas mais pesadas - a saber, uma cirurgia mostrada sem preocupação com o bem-estar da audiência. Foi somente em 2003, no entanto, que o filme teve um lançamento digno, sem os cortes de sua primeira exibição e com o título original: tornou-se cult e, em 2008, ficou em 74º lugar em uma pesquisa feita pela revista Entertainment Weekly para classificar os 100 novos clássicos do cinema, lançados a partir de 1983 - está certo que, sendo de 1960, entrou na lista como um quase intruso, mas se for levado em consideração de que só foi corretamente assistido já no século XXI, dá para fechar os olhos a tal pequena trapaça.
Influente a ponto de inspirar John Carpenter a criar o visual de Michael Myers em seu "Halloween: a noite do terror" (1978) e o roqueiro Billy Idol a compor a bela "Eyes without a face", o filme de Georges Franju se destaca entre seus parceiros de gênero ao levar a história bastante a sério. Não há espaço para piadas na trama criada por Jean Redon, um sufocante pesadelo em preto-e-branco, valorizado pela trilha sonora de Maurice Jarre e pelas atuações inspiradas de seu trio de atores centrais. O filme já começa em plena ação, quando, durante a noite, uma mulher tira o corpo de outra de seu carro e o joga em um rio. Tal mulher é Louise (Alida Valli), a assistente do famoso cirurgião Genéssier (Pierre Brasseur) - e a jovem vítima é reconhecida no necrotério pelo próprio médico, que afirma tratar-se de sua filha, Christine (Juliette Maynel). Na verdade, porém, Christine não está morta, e Genéssier não apenas sabe disso como a mantém escondida em sua mansão/consultório - além disso, ele sequestra jovens do sexo feminino com a ajuda de Louise e as faz passar por cirurgias de remoção de seus rostos. Seu objetivo é um só: reconstruir o rosto de sua filha, desfigurado em um trágico acidente que foi sua responsabilidade. Ele obriga a melancólica Christine a usar uma máscara que esconde suas feições e testa com frequência a pele de outras mulheres - uma obsessão que o leva cada vez mais à insanidade.
A direção certeira de Franju mergulha o espectador em um labirinto dos mais angustiantes quando revela, aos poucos, o rumo que a trama vai tomando quando Christine passa a tentar fugir de sua situação de prisioneira (tanto do pai quanto da máscara que é obrigada a usar). Optando por um suspense psicológico salpicado por sequências bastante explícitas, o cineasta constrói um clima opressor através da música, de silêncios significativos e de uma direção de arte impressionante, que contrapõe os atos desvairados do protagonista masculino a cães e pássaros presos em algo que lembra facilmente uma masmorra. Suas opções estéticas - emuladas por Pedro Almodóvar em "A pele que habito" (2011) - são fascinantes, provocando ao mesmo tempo interesse e repulsa, curiosidade e tensão. Um filme de terror que não apela para sustos fáceis e vilões inverossímeis, "Os olhos sem rosto" é um programa de primeira para os fãs do gênero - e até mesmo aqueles avessos a produções do tipo pode ser uma descoberta das mais felizes. Uma pequena obra-prima!
Em Hollywood, os filmes de terror sempre foram relegados à incômoda categoria de filmes marginais, sem qualidade artística e criados unicamente com o objetivo de ganhar dinheiro fácil, às custas, no entanto, de uma plateia fiel ao gênero. Na França, terra da nouvelle vague e da prestigiada revista Cahièrs do Cinemà, a situação não era assim tão diferente: em 1960, quando "Os olhos sem rosto" estreou, a imprensa fez questão de demonstrar sua opinião absolutamente negativa a respeito da produção. Dirigida por Georges Franju, até então respeitado por seus documentários em curta-metragem e por ser o co-fundador da imprescindível Cinemateca Francesa, ao lado de Henri Langlois, a adaptação do livro de Jean Redon foi considerada um passo em falso em sua carreira, por tratar-se, segundo os críticos, de um "gênero menor". O único crítico razoavelmente importante a ter a coragem de desafiar o pensamento comum, um britânico do jornal "The spectator"", quase perdeu o emprego pela ousadia de reconhecer no filme as qualidades que o cineasta já havia demonstrado em trabalhos anteriores - e que continuavam aparecendo em "Os olhos sem rosto" apesar do desprezo dos jornalistas especializados. Em sua defesa - se é que precisasse de uma -, Franju declarou que escolheu adaptar o livro de Redon justamente para dar credibilidade aos filmes de suspense e terror. Demorou até que tal objetivo fosse alcançado - e, mesmo assim, com reservas.
Ao ser lançado nos EUA, "Os olhos sem rosto" já havia sido renegado em seu país de origem, o que encorajou seus exibidores a tratá-lo com quase desprezo. Não só recebeu um novo e inexplicável título - "The horror chamber of Dr. Faustus", seja lá quem seja esse Dr. Faustus criado pelos norte-americanos - como chegou aos cinemas como segunda parte de um programa duplo - o outro filme era o japonês "The manster". A essa altura, em outubro de 1962, a plateia já sabia que, durante sua exibição no Festival de Cinema de Edimburgo, alguns espectadores chegaram a desmaiar diante de uma de suas cenas consideradas mais pesadas - a saber, uma cirurgia mostrada sem preocupação com o bem-estar da audiência. Foi somente em 2003, no entanto, que o filme teve um lançamento digno, sem os cortes de sua primeira exibição e com o título original: tornou-se cult e, em 2008, ficou em 74º lugar em uma pesquisa feita pela revista Entertainment Weekly para classificar os 100 novos clássicos do cinema, lançados a partir de 1983 - está certo que, sendo de 1960, entrou na lista como um quase intruso, mas se for levado em consideração de que só foi corretamente assistido já no século XXI, dá para fechar os olhos a tal pequena trapaça.
Influente a ponto de inspirar John Carpenter a criar o visual de Michael Myers em seu "Halloween: a noite do terror" (1978) e o roqueiro Billy Idol a compor a bela "Eyes without a face", o filme de Georges Franju se destaca entre seus parceiros de gênero ao levar a história bastante a sério. Não há espaço para piadas na trama criada por Jean Redon, um sufocante pesadelo em preto-e-branco, valorizado pela trilha sonora de Maurice Jarre e pelas atuações inspiradas de seu trio de atores centrais. O filme já começa em plena ação, quando, durante a noite, uma mulher tira o corpo de outra de seu carro e o joga em um rio. Tal mulher é Louise (Alida Valli), a assistente do famoso cirurgião Genéssier (Pierre Brasseur) - e a jovem vítima é reconhecida no necrotério pelo próprio médico, que afirma tratar-se de sua filha, Christine (Juliette Maynel). Na verdade, porém, Christine não está morta, e Genéssier não apenas sabe disso como a mantém escondida em sua mansão/consultório - além disso, ele sequestra jovens do sexo feminino com a ajuda de Louise e as faz passar por cirurgias de remoção de seus rostos. Seu objetivo é um só: reconstruir o rosto de sua filha, desfigurado em um trágico acidente que foi sua responsabilidade. Ele obriga a melancólica Christine a usar uma máscara que esconde suas feições e testa com frequência a pele de outras mulheres - uma obsessão que o leva cada vez mais à insanidade.
A direção certeira de Franju mergulha o espectador em um labirinto dos mais angustiantes quando revela, aos poucos, o rumo que a trama vai tomando quando Christine passa a tentar fugir de sua situação de prisioneira (tanto do pai quanto da máscara que é obrigada a usar). Optando por um suspense psicológico salpicado por sequências bastante explícitas, o cineasta constrói um clima opressor através da música, de silêncios significativos e de uma direção de arte impressionante, que contrapõe os atos desvairados do protagonista masculino a cães e pássaros presos em algo que lembra facilmente uma masmorra. Suas opções estéticas - emuladas por Pedro Almodóvar em "A pele que habito" (2011) - são fascinantes, provocando ao mesmo tempo interesse e repulsa, curiosidade e tensão. Um filme de terror que não apela para sustos fáceis e vilões inverossímeis, "Os olhos sem rosto" é um programa de primeira para os fãs do gênero - e até mesmo aqueles avessos a produções do tipo pode ser uma descoberta das mais felizes. Uma pequena obra-prima!
domingo
A UM PASSO DA LIBERDADE
A UM PASSO DA LIBERDADE (Le trou, 1960, Filmsonor/Play Art/Titanus, 131min) Direção: Jacques Becker. Roteiro: Jacques Becker, José Giovanni, Jean Aurel (adaptação), Jacques Becker, José Giovanni (diálogos), livro de José Giovanni. Fotografia: Ghislain Cloquet. Montagem: Marguerite Renoir, Geneviève Vaury. Música: Philippe Arthuys. Direção de arte: Rino Mondellini. Produção executiva: Georges Charlot, Jean Mottet. Produção: Serge Silberman. Elenco: Michel Constantin, Jean Keraudy, Philippe Leroy, Raymond Meunier, Mark Michel. Estreia: 18/3/60
Em 1947, o jovem Claude Gaspard (Marc Michel) é transferido da cela onde está cumprindo pena por agressão à ex-mulher para uma outra, onde vivem quatro outros prisioneiros. Sua chegada inesperada cria um clima de tensão no pequeno espaço, cujos moradores nutrem um relacionamento de completa confiança. A princípio isolado dos demais colegas, Claude aos poucos vai ganhando sua simpatia - até que um dia o grupo resolve contar a ele o motivo de tamanha desconfiança: eles estão planejando uma fuga, e em um canto da cela está o túnel que já estão cavando há meses. Sem pestanejar, Claude se une ao plano - mas será que ele realmente é uma pessoa leal o bastante para ficar em silêncio a respeito? E se for, será que é capaz de manter segredo mesmo quando pressionado pelas autoridades locais? Com essa premissa simples, que une o suspense sobre a fuga com a pressão psicológica da situação, o filme "A um passo da liberdade" - ou "O buraco", em uma tradução literal do título original -, o último filme do diretor francês Jacques Becker, que morreu duas semanas após o término das filmagens, sem completar o trabalho de pós-produção. De narrativa simples e claustrofóbica, o filme é baseado em uma história real e se utiliza de atores amadores para criar mais autenticidade junto à plateia. O resultado é simplesmente sensacional.
Menos festejado que seus contemporâneos cineastas da nouvelle vague, Becker morreu antes da finalização da mixagem de som de seu último filme. Sua morte, porém, não impediu que o resultado ficasse como ele desejava: o único senão foi a eliminação de cerca de 24 minutos da metragem original, com o objetivo de atender as demandas do mercado internacional - uma perda significativa, uma vez que nunca mais se teve notícias das cenas cortadas na versão comercial. Apesar disso, "A um passo da liberdade" pode ser considerado o canto do cisne do diretor. Coautor do roteiro, baseado no livro de José Giovanni - por sua vez inspirado em uma tentativa de fuga real -, Becker demonstra total domínio do tempo, da atmosfera e da direção de atores, mesmo que todos os protagonistas sejam interpretados por atores não profissionais (um deles, Jean Keraudy, interpreta ele mesmo no filme, mesmo que com o nome disfarçado). A autenticidade da produção é perceptível também na direção de arte, que reconstitui a prisão em seus mínimos detalhes - crédito para dois membros da história real, contratados como consultores. Salvo raras exceções, todo o filme se passa dentro da cela dos presidiários e no túnel construído por eles para possibilitar a tão sonhada liberdade, ainda que tomada à força.
O protagonista, interpretado por Marc Michel é apresentado como um sujeito tímido, fechado em si e com uma clara diferença em relação a seus novos colegas: bem educado e perceptivelmente deslocado na prisão, ele se vê diante de quatro pessoas já acostumadas com a rotina do local e desprovidas de qualquer tipo de otimismo em relação a seu destino - ao menos até que seja revelado o plano de fuga. A partir daí, Becker convida o espectador a participar da trama, como uma testemunha privilegiada e - por que não? - simpática à causa dos detentos. Nesse ponto, o cineasta sublinha com precisão a tensão entre eles, abdicando de trilha sonora e enfatizando a opressão do silêncio que os cerca. Como um artesão competente, ele ainda consegue surpreender ao filmar, em tempo real, uma das incursões dos personagens ao túnel que está sendo cavado: sem cortes, o filme leva o público a sentir sua mesma sensação de cansaço e claustrofobia. O mesmo acontece em outros momentos, que desafiam a edição avassaladora do cinema comercial hollywoodiano: algumas cenas mostram pequenos acontecimentos do dia-a-dia, como a hora do jantar ou conversas pouco relevantes à trama central. É um estilo particular que pode incomodar a alguns e encantar a outros - tudo depende de quanto o espectador está disposto a embarcar em um gênero de filme normalmente associado à ação. "A um passo da liberdade", apesar do tema, jamais abandona seu DNA europeu.
Filmado em dez semanas, "A um passo da liberdade" acrescenta ainda mais "transgressões" às regras do cinema comercial: não há créditos iniciais, o filme é aberto com um dos atores (justamente um dos participantes da fuga, apresentando a trama) e a trilha sonora, quando acontece, é diagética (toda música vem de dentro dos cenários e não externamente, com exceção dos créditos finais). Além disso, Becker faz questão de retratar todos os personagens com um certo ar de mistério, que se avoluma nos minutos finais. O fato de os intérpretes serem amadores e sem experiência em cinema torna a experiência ainda mais rica: o público tem a impressão de estar assistindo a um quase documentário - beneficiado por seu talento em borrar as fronteiras do gênero e envolver a audiência com o mínimo de artifícios. Imperdível por inúmeras razões, "A um passo da liberdade" é a prova de que, se Jacques Becker é um diretor pouco reconhecido hoje em dia, precisa urgentemente ser redescoberto pelas novas gerações.
Em 1947, o jovem Claude Gaspard (Marc Michel) é transferido da cela onde está cumprindo pena por agressão à ex-mulher para uma outra, onde vivem quatro outros prisioneiros. Sua chegada inesperada cria um clima de tensão no pequeno espaço, cujos moradores nutrem um relacionamento de completa confiança. A princípio isolado dos demais colegas, Claude aos poucos vai ganhando sua simpatia - até que um dia o grupo resolve contar a ele o motivo de tamanha desconfiança: eles estão planejando uma fuga, e em um canto da cela está o túnel que já estão cavando há meses. Sem pestanejar, Claude se une ao plano - mas será que ele realmente é uma pessoa leal o bastante para ficar em silêncio a respeito? E se for, será que é capaz de manter segredo mesmo quando pressionado pelas autoridades locais? Com essa premissa simples, que une o suspense sobre a fuga com a pressão psicológica da situação, o filme "A um passo da liberdade" - ou "O buraco", em uma tradução literal do título original -, o último filme do diretor francês Jacques Becker, que morreu duas semanas após o término das filmagens, sem completar o trabalho de pós-produção. De narrativa simples e claustrofóbica, o filme é baseado em uma história real e se utiliza de atores amadores para criar mais autenticidade junto à plateia. O resultado é simplesmente sensacional.
Menos festejado que seus contemporâneos cineastas da nouvelle vague, Becker morreu antes da finalização da mixagem de som de seu último filme. Sua morte, porém, não impediu que o resultado ficasse como ele desejava: o único senão foi a eliminação de cerca de 24 minutos da metragem original, com o objetivo de atender as demandas do mercado internacional - uma perda significativa, uma vez que nunca mais se teve notícias das cenas cortadas na versão comercial. Apesar disso, "A um passo da liberdade" pode ser considerado o canto do cisne do diretor. Coautor do roteiro, baseado no livro de José Giovanni - por sua vez inspirado em uma tentativa de fuga real -, Becker demonstra total domínio do tempo, da atmosfera e da direção de atores, mesmo que todos os protagonistas sejam interpretados por atores não profissionais (um deles, Jean Keraudy, interpreta ele mesmo no filme, mesmo que com o nome disfarçado). A autenticidade da produção é perceptível também na direção de arte, que reconstitui a prisão em seus mínimos detalhes - crédito para dois membros da história real, contratados como consultores. Salvo raras exceções, todo o filme se passa dentro da cela dos presidiários e no túnel construído por eles para possibilitar a tão sonhada liberdade, ainda que tomada à força.
O protagonista, interpretado por Marc Michel é apresentado como um sujeito tímido, fechado em si e com uma clara diferença em relação a seus novos colegas: bem educado e perceptivelmente deslocado na prisão, ele se vê diante de quatro pessoas já acostumadas com a rotina do local e desprovidas de qualquer tipo de otimismo em relação a seu destino - ao menos até que seja revelado o plano de fuga. A partir daí, Becker convida o espectador a participar da trama, como uma testemunha privilegiada e - por que não? - simpática à causa dos detentos. Nesse ponto, o cineasta sublinha com precisão a tensão entre eles, abdicando de trilha sonora e enfatizando a opressão do silêncio que os cerca. Como um artesão competente, ele ainda consegue surpreender ao filmar, em tempo real, uma das incursões dos personagens ao túnel que está sendo cavado: sem cortes, o filme leva o público a sentir sua mesma sensação de cansaço e claustrofobia. O mesmo acontece em outros momentos, que desafiam a edição avassaladora do cinema comercial hollywoodiano: algumas cenas mostram pequenos acontecimentos do dia-a-dia, como a hora do jantar ou conversas pouco relevantes à trama central. É um estilo particular que pode incomodar a alguns e encantar a outros - tudo depende de quanto o espectador está disposto a embarcar em um gênero de filme normalmente associado à ação. "A um passo da liberdade", apesar do tema, jamais abandona seu DNA europeu.
Filmado em dez semanas, "A um passo da liberdade" acrescenta ainda mais "transgressões" às regras do cinema comercial: não há créditos iniciais, o filme é aberto com um dos atores (justamente um dos participantes da fuga, apresentando a trama) e a trilha sonora, quando acontece, é diagética (toda música vem de dentro dos cenários e não externamente, com exceção dos créditos finais). Além disso, Becker faz questão de retratar todos os personagens com um certo ar de mistério, que se avoluma nos minutos finais. O fato de os intérpretes serem amadores e sem experiência em cinema torna a experiência ainda mais rica: o público tem a impressão de estar assistindo a um quase documentário - beneficiado por seu talento em borrar as fronteiras do gênero e envolver a audiência com o mínimo de artifícios. Imperdível por inúmeras razões, "A um passo da liberdade" é a prova de que, se Jacques Becker é um diretor pouco reconhecido hoje em dia, precisa urgentemente ser redescoberto pelas novas gerações.
sábado
ACORRENTADOS
ACORRENTADOS (The defiant ones, 1958, United Artists, 96min) Direção: Stanley Kramer. Roteiro: Nathan E. Douglas, Harold Jacob Smith. Fotografia: Sam Leavitt. Montagem: Frederic Knudtson. Música: Ernest Gold. Direção de arte/cenários: Rudolph Sternad/Fernando Carrere. Produção: Stanley Kramer. Elenco: Tony Curtis, Sidney Poitier, Theodore Bikel, Charles McGraw, Lon Chaney Jr., King Donovan, Cara Williams. Estreia: 14/8/58
8 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Stanley Kramer), Ator (Tony Curtis), Ator (Sidney Poitier), Ator Coadjuvante (Theodore Bickel), Atriz Coadjuvante (Cara Williams), Roteiro Original, Fotografia em preto-e-branco
Vencedor de 2 Oscar: Roteiro Original, Fotografia em preto-e-branco
Vencedor do Golden Globe de Melhor Filme/Drama
Dá para imaginar a controvérsia que "Acorrentados" provocou quando estreou nos Estados Unidos, em agosto de 1958. Ainda faltava praticamente uma década para que Martin Luther King Jr. fosse assassinado e se transformasse na mais importante figura pela luta dos direitos civis pelos negros, mas a tensão racial já era bastante perceptível na sociedade norte-americana quando a produção, dirigida por Stanley Kramer, chegou aos cinemas: disfarçada na forma de um drama policial com momentos de ação, estava diante do público uma discussão inteligente e relevante a respeito de racismo. Em seu terceiro longa como diretor, Stanley Kramer - que mais tarde ainda assinaria outros filmes de temática social, incluindo "Adivinhe quem vem para o jantar", de 1967, que voltava a discutir a discriminação racial inserida em pretensos liberais - convidava o espectador a mergulhar em uma trama empolgante sobre dois fugitivos da justiça que se viam presos a uma convivência forçada e passavam a reconhecer, um no outro, qualidades até então insuspeitas. Pode parecer uma história comum, mas o roteiro - indicado ao Oscar - tinha um grande trunfo: os dois protagonistas eram um homem branco e um homem negro. Estava estabelecido um enredo que unia, de forma precisa, entretenimento dos melhores com discussões imprescindíveis que se tornariam ainda mais urgentes poucos anos mais tarde.
Para se ter uma ideia do quão enraizado estava o racismo - inclusive dentro da indústria cinematográfica -, basta lembrar que foi somente em 1959 que um ator negro finalmente conseguiu uma indicação ao Oscar de atuação, e que Robert Mitchum, um dos atores mais populares de então, recusou o papel principal por achar inverossímil a premissa do filme, que unia um branco e um negro no mesmo par de algemas: segundo ele, isso jamais aconteceria na realidade, especialmente em uma prisão do sul do país, amplamente conhecido por sua discriminação racial. Inverossímil ou não, o fato é que o filme aconteceu e fez um grande sucesso de crítica e de bilheteria, sendo indicado a oito estatuetas da Academia, incluindo Melhor Ator para seus dois protagonistas. Mas, apesar dos elogios generalizados à sua atuação, Tony Curtis não era a primeira escolha para o papel: o diretor Stanley Kramer tinha em mente unir Poitier a Marlon Brando - que não pode aceitar o papel por estar preso às complicadas filmagens de "O grande motim", lançado apenas em 1962. Quem também tinha interesse no projeto era ninguém menos que Elvis Presley. O ídolo da música queria mostrar que tinha talento suficiente para encarar o desafio ao lado de Sammy Davis Jr. (a primeira escolha para o papel que ficou com Poitier), mas acabou desistindo depois de ser convencido a tal por seu agente. Como teria sido o filme com esse elenco alternativo - ou com nomes como Frank Sinatra, Gregory Peck, Anthony Quinn e Burt Lancaster, todos devidamente sondados sem êxito -, jamais saberemos, mas é fato inquestionável que, da forma que estreou, ""Acorrentados" cumpriu muito bem sua missão.
Uma história de bastidores dizia, em tom de sarcasmo, quando o filme estava em seus primeiros estágios, que Kirk Douglas só aceitaria participar se fizesse o papel do fugitivo negro; a mesma anedota afirmava que Burt Lancaster só assinaria contrato se fosse escalado para os dois papéis principais. Brincadeiras à parte, "Acorrentados" acabou ficando com o elenco que deveria. Tony Curtis, ansioso em provar-se um ator competente e não apenas um galã vazio, chegou a colaborar com o orçamento de um milhão de dólares do filme, alcançado através de sua produtora, a Curtleigh - criada juntamente com sua mulher, Janet Leigh. Poitier, por sua vez, tinha a grande chance de sua carreira até então. O filme de Kramer ajudou ambos em suas ambições: indicados ao Oscar, perderam a estatueta para David Niven (por "Vidas separadas"), mas conseguiram ser vistos além dos estereótipos que marcavam suas carreiras até então. Com personagens complexos que vão se desenvolvendo conforme o avanço da narrativa, os dois atores exploram cada nuance de seu relacionamento, escapando de armadilhas melodramáticas ou de qualquer tipo de humor que, algumas décadas mais tarde, consagraria uma série de outros filmes baseados na premissa "dois parceiros aparentemente opostos descobrem que precisam um do outro para resolver suas questões (fuga, investigação e afins) e acabam por admirar-se mutuamente". "Acorrentados" é um filme sério, e mesmo que pareça pouco criativo agora, tem qualidades em número suficiente para agradar ao público.
O filme já começa em plena ação: junto com outros condenados, a dupla de detentos John Jackson, o Joker (Tony Curtis) e Noah Cullen (Sidney Poitier) está sendo transportada para a penitenciária quando um acidente com o veículo lhes oferece a oportunidade única de fuga. Acorrentados um ao outro, eles decidem ir em busca de um trem de carga que pode finalmente lhes oferecer a tão sonhada liberdade. No caminho, eles precisam lidar com os defeitos um do outro - assim como descobrem suas qualidades. Em seu encalço está o incansável xerife Max Mullen (Theodore Bickel, indicado ao Oscar de ator coadjuvante) e em seu caminho surge uma mulher simpática à sua fuga (Cara Williams, indicada ao Oscar de atriz coadjuvante) e que, juntamente com seu filho Billy (Kevin Coughlin), pode ajudá-los a finalmente atingir seu objetivo. Com um ritmo ágil e personagens interessantes, o roteiro flui de forma a conquistar o espectador e fazê-lo torcer por seus protagonistas - mesmo que eles talvez não sejam tão inocentes: mesmo que por vezes o público esqueça que ambos são criminosos (em maior ou menor grau), a trama segue até um final que renega o clichê e aponta em direção mais verossímil e que apontava inclusive para o cinema que Hollywood viria a celebrar em poucos anos, com filmes mais próximos da realidade e distante da fantasia que reinava até então. "Acorrentados" é, sem dúvida, um filme-mensagem, mas entrega seu discurso com uma embalagem atraente e que não esquece sua principal razão de ser: o entretenimento.
8 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Stanley Kramer), Ator (Tony Curtis), Ator (Sidney Poitier), Ator Coadjuvante (Theodore Bickel), Atriz Coadjuvante (Cara Williams), Roteiro Original, Fotografia em preto-e-branco
Vencedor de 2 Oscar: Roteiro Original, Fotografia em preto-e-branco
Vencedor do Golden Globe de Melhor Filme/Drama
Dá para imaginar a controvérsia que "Acorrentados" provocou quando estreou nos Estados Unidos, em agosto de 1958. Ainda faltava praticamente uma década para que Martin Luther King Jr. fosse assassinado e se transformasse na mais importante figura pela luta dos direitos civis pelos negros, mas a tensão racial já era bastante perceptível na sociedade norte-americana quando a produção, dirigida por Stanley Kramer, chegou aos cinemas: disfarçada na forma de um drama policial com momentos de ação, estava diante do público uma discussão inteligente e relevante a respeito de racismo. Em seu terceiro longa como diretor, Stanley Kramer - que mais tarde ainda assinaria outros filmes de temática social, incluindo "Adivinhe quem vem para o jantar", de 1967, que voltava a discutir a discriminação racial inserida em pretensos liberais - convidava o espectador a mergulhar em uma trama empolgante sobre dois fugitivos da justiça que se viam presos a uma convivência forçada e passavam a reconhecer, um no outro, qualidades até então insuspeitas. Pode parecer uma história comum, mas o roteiro - indicado ao Oscar - tinha um grande trunfo: os dois protagonistas eram um homem branco e um homem negro. Estava estabelecido um enredo que unia, de forma precisa, entretenimento dos melhores com discussões imprescindíveis que se tornariam ainda mais urgentes poucos anos mais tarde.
Para se ter uma ideia do quão enraizado estava o racismo - inclusive dentro da indústria cinematográfica -, basta lembrar que foi somente em 1959 que um ator negro finalmente conseguiu uma indicação ao Oscar de atuação, e que Robert Mitchum, um dos atores mais populares de então, recusou o papel principal por achar inverossímil a premissa do filme, que unia um branco e um negro no mesmo par de algemas: segundo ele, isso jamais aconteceria na realidade, especialmente em uma prisão do sul do país, amplamente conhecido por sua discriminação racial. Inverossímil ou não, o fato é que o filme aconteceu e fez um grande sucesso de crítica e de bilheteria, sendo indicado a oito estatuetas da Academia, incluindo Melhor Ator para seus dois protagonistas. Mas, apesar dos elogios generalizados à sua atuação, Tony Curtis não era a primeira escolha para o papel: o diretor Stanley Kramer tinha em mente unir Poitier a Marlon Brando - que não pode aceitar o papel por estar preso às complicadas filmagens de "O grande motim", lançado apenas em 1962. Quem também tinha interesse no projeto era ninguém menos que Elvis Presley. O ídolo da música queria mostrar que tinha talento suficiente para encarar o desafio ao lado de Sammy Davis Jr. (a primeira escolha para o papel que ficou com Poitier), mas acabou desistindo depois de ser convencido a tal por seu agente. Como teria sido o filme com esse elenco alternativo - ou com nomes como Frank Sinatra, Gregory Peck, Anthony Quinn e Burt Lancaster, todos devidamente sondados sem êxito -, jamais saberemos, mas é fato inquestionável que, da forma que estreou, ""Acorrentados" cumpriu muito bem sua missão.
Uma história de bastidores dizia, em tom de sarcasmo, quando o filme estava em seus primeiros estágios, que Kirk Douglas só aceitaria participar se fizesse o papel do fugitivo negro; a mesma anedota afirmava que Burt Lancaster só assinaria contrato se fosse escalado para os dois papéis principais. Brincadeiras à parte, "Acorrentados" acabou ficando com o elenco que deveria. Tony Curtis, ansioso em provar-se um ator competente e não apenas um galã vazio, chegou a colaborar com o orçamento de um milhão de dólares do filme, alcançado através de sua produtora, a Curtleigh - criada juntamente com sua mulher, Janet Leigh. Poitier, por sua vez, tinha a grande chance de sua carreira até então. O filme de Kramer ajudou ambos em suas ambições: indicados ao Oscar, perderam a estatueta para David Niven (por "Vidas separadas"), mas conseguiram ser vistos além dos estereótipos que marcavam suas carreiras até então. Com personagens complexos que vão se desenvolvendo conforme o avanço da narrativa, os dois atores exploram cada nuance de seu relacionamento, escapando de armadilhas melodramáticas ou de qualquer tipo de humor que, algumas décadas mais tarde, consagraria uma série de outros filmes baseados na premissa "dois parceiros aparentemente opostos descobrem que precisam um do outro para resolver suas questões (fuga, investigação e afins) e acabam por admirar-se mutuamente". "Acorrentados" é um filme sério, e mesmo que pareça pouco criativo agora, tem qualidades em número suficiente para agradar ao público.
O filme já começa em plena ação: junto com outros condenados, a dupla de detentos John Jackson, o Joker (Tony Curtis) e Noah Cullen (Sidney Poitier) está sendo transportada para a penitenciária quando um acidente com o veículo lhes oferece a oportunidade única de fuga. Acorrentados um ao outro, eles decidem ir em busca de um trem de carga que pode finalmente lhes oferecer a tão sonhada liberdade. No caminho, eles precisam lidar com os defeitos um do outro - assim como descobrem suas qualidades. Em seu encalço está o incansável xerife Max Mullen (Theodore Bickel, indicado ao Oscar de ator coadjuvante) e em seu caminho surge uma mulher simpática à sua fuga (Cara Williams, indicada ao Oscar de atriz coadjuvante) e que, juntamente com seu filho Billy (Kevin Coughlin), pode ajudá-los a finalmente atingir seu objetivo. Com um ritmo ágil e personagens interessantes, o roteiro flui de forma a conquistar o espectador e fazê-lo torcer por seus protagonistas - mesmo que eles talvez não sejam tão inocentes: mesmo que por vezes o público esqueça que ambos são criminosos (em maior ou menor grau), a trama segue até um final que renega o clichê e aponta em direção mais verossímil e que apontava inclusive para o cinema que Hollywood viria a celebrar em poucos anos, com filmes mais próximos da realidade e distante da fantasia que reinava até então. "Acorrentados" é, sem dúvida, um filme-mensagem, mas entrega seu discurso com uma embalagem atraente e que não esquece sua principal razão de ser: o entretenimento.
sexta-feira
TARA MALDITA
TARA MALDITA (The bad seed, 1956, Warner Bros, 129min) Direção: Mervyn LeRoy. Roteiro: John Lee Mahin, livro de William March, peça teatral de Maxwell Anderson. Fotografia: Hal Rosson. Montagem: Warren Low. Música: Alex North. Figurino: Moss Mabry. Direção de arte/cenários: John Beckman/Ralph Hurst. Produção: Mervyn LeRoy. Elenco: Nancy Kelly, Patty McCormack, Henry Jones, Eileen Heckart, Evelyn Varden, William Hopper, Paul Fix, Gage Clark, Frank Cady. Estreia: 12/9/56
4 indicações ao Oscar: Atriz (Nancy Kelly), Atriz Coadjuvante (Patty McCormack/Eilleen Heckart), Fotografia em preto-e-branco
Vencedor do Golden Globe de Atriz Coadjuvante (Eileen Heckart)
Transferir uma peça de teatro para um filme hollywoodiano pode ser uma tarefa inglória. Muitas vezes os roteiristas e cineastas não conseguem escapar do formato de teatro filmado - o que compromete o ritmo e testa a paciência do espectador mais afeito à ação do que a diálogos. Quando o filme de suspense, então, o desafio é ainda maior: como conquistar os fãs do gênero em um roteiro em que a palavra assume tanta importância quanto a imagem? Alfred Hitchcock sabia como equilibrar as duas vertentes - e não à toa, foi cogitado para dirigir "Tara maldita", adaptação de uma bem-sucedida peça de teatro (por sua vez adaptada de um romance). O mestre do suspense acabou por recusar a missão, que caiu nas mãos do versátil Mervyn LeRoy, que acertou em cheio ao levar boa parte do elenco original do palco para as telas: mesmo que o roteiro de John Lee Mahin não consiga disfarçar sua origem (e talvez realmente não o queira), a direção competente de LeRoy e a segurança de seus atores (já acostumados com seus papéis) fazem da adaptação um sucesso inquestionável, a ponto de três de suas atrizes terem recebido indicações ao Oscar.
Antes que Nancy Kelly voltasse ao cinema depois de dez anos dedicados ao teatro - para onde retornou depois das filmagens, dividindo seu tempo com produções televisivas -, a excepcional Bette Davis quase ficou com seu papel. Quando o projeto estava nas mãos do ator e diretor Paul Henreid (O marido de Ingrid Bergman em "Casablanca", de 1941), a personagem principal seria interpretada por Davis, o que só não aconteceu porque Henreid não conseguiu comprar os direitos de adaptação. Antes que o estúdio decidisse manter Kelly no elenco, até mesmo Rosalind Russell foi cogitada - mas parece que o papel de Christine Penmark já estava destinado à sua intérprete no teatro. Foi uma escolha acertada - apesar de não ser um nome capaz de lotar as salas e manter no cinema seus cacoetes teatrais. Isso não impediu, no entanto, de ser indicada ao Oscar de melhor atriz - perdeu a estatueta para Ingrid Bergman em seu retorno à Hollywood, em "Anastasia: a princesa esquecida".
A trama de "Tara maldita" - um nome em português que talvez passe uma ideia errada a seu respeito - começa quando a dedicada dona-de-casa Christine Penmark (Nancy Kelly) se despede do amoroso marido, o Coronel Kenneth Penmark, transferido para Washington. Com a ausência do marido, Christine se vê com a responsabilidade de cuidar sozinha da filha do casal, Rhoda (Patty McCormack), uma adorável menina de oito anos de idade que aparenta ser perfeita em tudo. Só quem não acredita totalmente na inocência de Rhoda é o jardineiro Leroy, que frequentemente bate de frente com a garota. Christine tem grande orgulho da filha, mas repentinamente se vê diante de um dilema: em um piquenique escolar, um dos colegas de Rhoda morre afogado - e seria coincidência que Rhoda não apenas tenha brigado com o garoto por ele ter ganho um prêmio que ela achava merecer, mas também por ter sido a última pessoa a vê-lo vivo? A diretora da escola, Claudia Fern parece ter dúvidas a respeito da inocência da angelical aluna - e quando a mãe do garoto morto, Hortense (Eileen Eckhart), começa a pressionar mãe e filha para saber o que realmente aconteceu no momento da tragédia, Christine não tem outra alternativa senão tentar juntar as peças e inocentar (ou não) sua única filha.
Apostando no clima de mistério e no poder de seu elenco, Mervyn LeRoy constrói uma trama absorvente, que prende o espectador até o minuto final. A pequena Patty McCormack - que tinha dez anos de idade à época das filmagens - é particularmente competente, a ponto de ter indicada ao Oscar de coadjuvante por sua personagem repleta de dubiedade. Da mesma forma, Eileen Eckhart se destaca, com apenas duas pequenas cenas na pele da mãe do menino morto - não só também concorreu ao Oscar como levou um Golden Globe. Em alguns momentos a origem teatral de "Tara maldita" fica bem clara, mas não a ponto de truncar a narrativa ou aborrecer ao público. O final - um dos três escritos e mantidos em segredo até as filmagens - pode soar um pouco abrupto, mas felizmente não suaviza a trama para buscar um final feliz. Quem gosta de um bom filme de suspense, que privilegia a inteligência e não a violência gratuita precisa assistir a "Tara maldita". É, com certeza, um dos clássicos escondidos.
4 indicações ao Oscar: Atriz (Nancy Kelly), Atriz Coadjuvante (Patty McCormack/Eilleen Heckart), Fotografia em preto-e-branco
Vencedor do Golden Globe de Atriz Coadjuvante (Eileen Heckart)
Transferir uma peça de teatro para um filme hollywoodiano pode ser uma tarefa inglória. Muitas vezes os roteiristas e cineastas não conseguem escapar do formato de teatro filmado - o que compromete o ritmo e testa a paciência do espectador mais afeito à ação do que a diálogos. Quando o filme de suspense, então, o desafio é ainda maior: como conquistar os fãs do gênero em um roteiro em que a palavra assume tanta importância quanto a imagem? Alfred Hitchcock sabia como equilibrar as duas vertentes - e não à toa, foi cogitado para dirigir "Tara maldita", adaptação de uma bem-sucedida peça de teatro (por sua vez adaptada de um romance). O mestre do suspense acabou por recusar a missão, que caiu nas mãos do versátil Mervyn LeRoy, que acertou em cheio ao levar boa parte do elenco original do palco para as telas: mesmo que o roteiro de John Lee Mahin não consiga disfarçar sua origem (e talvez realmente não o queira), a direção competente de LeRoy e a segurança de seus atores (já acostumados com seus papéis) fazem da adaptação um sucesso inquestionável, a ponto de três de suas atrizes terem recebido indicações ao Oscar.
Antes que Nancy Kelly voltasse ao cinema depois de dez anos dedicados ao teatro - para onde retornou depois das filmagens, dividindo seu tempo com produções televisivas -, a excepcional Bette Davis quase ficou com seu papel. Quando o projeto estava nas mãos do ator e diretor Paul Henreid (O marido de Ingrid Bergman em "Casablanca", de 1941), a personagem principal seria interpretada por Davis, o que só não aconteceu porque Henreid não conseguiu comprar os direitos de adaptação. Antes que o estúdio decidisse manter Kelly no elenco, até mesmo Rosalind Russell foi cogitada - mas parece que o papel de Christine Penmark já estava destinado à sua intérprete no teatro. Foi uma escolha acertada - apesar de não ser um nome capaz de lotar as salas e manter no cinema seus cacoetes teatrais. Isso não impediu, no entanto, de ser indicada ao Oscar de melhor atriz - perdeu a estatueta para Ingrid Bergman em seu retorno à Hollywood, em "Anastasia: a princesa esquecida".
A trama de "Tara maldita" - um nome em português que talvez passe uma ideia errada a seu respeito - começa quando a dedicada dona-de-casa Christine Penmark (Nancy Kelly) se despede do amoroso marido, o Coronel Kenneth Penmark, transferido para Washington. Com a ausência do marido, Christine se vê com a responsabilidade de cuidar sozinha da filha do casal, Rhoda (Patty McCormack), uma adorável menina de oito anos de idade que aparenta ser perfeita em tudo. Só quem não acredita totalmente na inocência de Rhoda é o jardineiro Leroy, que frequentemente bate de frente com a garota. Christine tem grande orgulho da filha, mas repentinamente se vê diante de um dilema: em um piquenique escolar, um dos colegas de Rhoda morre afogado - e seria coincidência que Rhoda não apenas tenha brigado com o garoto por ele ter ganho um prêmio que ela achava merecer, mas também por ter sido a última pessoa a vê-lo vivo? A diretora da escola, Claudia Fern parece ter dúvidas a respeito da inocência da angelical aluna - e quando a mãe do garoto morto, Hortense (Eileen Eckhart), começa a pressionar mãe e filha para saber o que realmente aconteceu no momento da tragédia, Christine não tem outra alternativa senão tentar juntar as peças e inocentar (ou não) sua única filha.
Apostando no clima de mistério e no poder de seu elenco, Mervyn LeRoy constrói uma trama absorvente, que prende o espectador até o minuto final. A pequena Patty McCormack - que tinha dez anos de idade à época das filmagens - é particularmente competente, a ponto de ter indicada ao Oscar de coadjuvante por sua personagem repleta de dubiedade. Da mesma forma, Eileen Eckhart se destaca, com apenas duas pequenas cenas na pele da mãe do menino morto - não só também concorreu ao Oscar como levou um Golden Globe. Em alguns momentos a origem teatral de "Tara maldita" fica bem clara, mas não a ponto de truncar a narrativa ou aborrecer ao público. O final - um dos três escritos e mantidos em segredo até as filmagens - pode soar um pouco abrupto, mas felizmente não suaviza a trama para buscar um final feliz. Quem gosta de um bom filme de suspense, que privilegia a inteligência e não a violência gratuita precisa assistir a "Tara maldita". É, com certeza, um dos clássicos escondidos.
quinta-feira
A BALADA DE BUSTER SCRUGGS
A BALADA DE BUSTER SCRUGGS (The ballad of Buster Scruggs, 2018, Netflix, 133min) Direção: Ethan Coen, Joel Coen. Roteiro: Ethan Coen, Joel Coen, contos "All gold canyon", de Jack London, e "The gall who got rattled", de Stewart Edward White. Fotografia: Bruno Delbonnell. Montagem: Roderick Jaynes. Música: Carter Burwell. Figurino: Mary Zophres. Direção de arte/cenários: Jess Gonchor/Nancy Haigh. Produção executiva: Jillian Longnecker. Produção: Ethan Coen, Joel Coen, Megan Ellison, Robert Graf, Sue Naegle. Elenco: Tim Blake Nelson, James Franco, Liam Neeson, Zoe Kazan, Brendan Gleeson, Harry Melling, Clancy Brown, David Krumholtz, Stephen Root, Tom Waits, Sam Dillon, Grainger Hines, Saul Rubinek. Estreia: 31/8/2018 (Festival de Veneza)
3 indicações ao Oscar: Roteiro Adaptado, Figurino, Canção Original ("When the cowboy trades his spurs for wings"
Quando foi anunciado que os irmãos Coen estavam desenvolvendo um trabalho para a Netflix, de imediato todos imaginaram uma série - especialmente quando ficou revelado que seu projeto consistia de seis pequenas histórias que tinham em comum a ambientação no Velho Oeste. A ansiedade em relação ao que dois dos cineastas mais festejados de Hollywood apresentariam teve fim no Festival de Veneza de 2018: "A balada de Buster Scruggs" é um filme digno de figurar entre os destaques da carreira da dupla e em nenhum momento parece amarrado a qualquer tipo de limitação que porventura poderia cercear sua criatividade. Mesclando histórias próprias e duas adaptações literárias, os vencedores do Oscar (roteiro por "Fargo", de 1996, e filme, direção e roteiro em 2007, por "Onde os fracos não tem vez") apresentaram a seu fiel público - e a uma extasiada crítica - uma produção caprichadíssima, que consegue equilibrar belas situações dramáticas com seu particular senso de humor. Em "A balada de Buster Scruggs", ironia e delicadeza caminham lado a lado, para deleite do espectador mais exigente.
O filme já começa de forma heterodoxa, em forma de musical: o protagonista da primeira história - e que empresta seu nome para o título da produção - chega a um vilarejo típico do velho oeste cantando e se apresentando como um dos mais procurados pela lei. Consciente de seus talentos como atirador e cantor, ele faz pouco caso do fato de estar sendo caçado e resolve descansar e beber na cantina local. Logo que chega, portanto, ele arruma confusão com um valentão do lugar, o assustador Joe (Clancy Brown) - e, em consequência, transforma o bar no palco de um quebra-quebra generalizado, até ser desafiado em duelo por outro autoconfiante atirador (Willy Watson). O segmento acaba com mais uma canção - a indicada ao Oscar "When the cowboy trades his spurs for wings" - e se destaca pelo inusitado do humor bizarro, pela agilidade e pela atuação impecável de Tim Blake Nelson, que já havia percorrido o musical e a comédia pelas mãos dos Coen no ótimo "E aí, meu irmão, cadê você?", de 2000. A segunda história tem o titulo de "Near algodones" e apresenta um jovem cowboy (James Franco) tentando assaltar a agência bancária do destemido (Stephen Root) e descobrindo, da pior forma possível, que o aparentemente frágil veterano não irá se submeter facilmente à situação. Mais uma vez é o equilibrio entre dois gêneros - faroeste e comédia - que sustenta a ágil narrativa.
O terceiro conto, "Meal ticket", conta as desventuras de um empresário irlandês (Liam Neeson) que percorre as cidades pequenas para apresentar à população o show de Horatio Edwin Harrison (Harry Melling, da série de filmes "Harry Potter", irreconhecível), que, desprovido de pernas e braços, declama uma série de textos célebres. Aos poucos, no entanto, o empresário começa a ver o público rarear - e descobre um outro (e surreal) talento para cuidar. É, sem dúvida, o conto mais tocante, sustentado pelo belo visual e pela interpretação de Melling, que consegue conquistar a plateia mesmo que não fale nenhuma palavra própria - todo o texto declamado por ele vem de outras fontes, como a Bíblia, Shakespeare e Abraham Lincoln, misturados em um monólogo memorável. O quarto segmento, "All gold canyon", é baseado em uma história de Jack London e mostra um experiente garimpeiro, interpretado por Tom Waits, buscando, incansavelmente, o ouro que o deixará rico. Seus esforços, porém, encontram um revés inesperado - e que pode destruir suas chances de entregar-se à aposentadoria. Talvez seja a mais fraca das histórias, mas ainda assim consegue surpreender.
O conto seguinte, "The gal who got rattled", é inspirado na obra de Stewart Edward White, e é a única história protagonizada por uma mulher - no caso, a inocente e tímida Alice Longabaugh (Zoe Kazan), que parte em direção ao Oregon em companhia do irmão, Gilbert (Jefferson Mays) - que lhe arrumou um casamento que também beneficia a seus negócios. O longo trajeto de sua caravana, no entanto, lhes reservas algumas surpresas - capazes de mudar completamente seu destino. Nesse episódio quem se sobressai é a atriz Zoe Kasdan: neta do lendário cineasta Elia Kazan, ela entrega uma performance acima da média, vivendo uma personagem repleta de nuances. O segmento final é o mais, digamos assim, surreal. "The mortal remains" apresenta cinco personagens em uma viagem de diligência em direção a uma cidade do Colorado. No diálogo que sustenta a trama, eles se revelam completamente diferentes um do outro - seja em vivência ou atitudes. E é preciso prestar atenção em cada palavra dita: há uma reviravolta em seus minutos finais, que o deixa ser a conclusão perfeita para o filme. Tal reviravolta é o trunfo da história, assim como seus intérpretes - que incluem os veteranos Brendan Gleeson e Saul Rubinek.
O melhor de "A balada de Buster Scruggs" é que, apesar de ser um filme construído em um formato episódico, ele jamais cai na armadilha da irregularidade. Claro que alguns segmentos chamam mais a atenção que outros - mas isso é de cada espectador. Todas as seis histórias apresentam características da filmografia de seus diretores/roteiristas/produtores e é evidente a qualidade ímpar de cada uma delas. O capricho do filme - independente se visto em uma sala de cinema ou via streaming - chamou a atenção da Academia de Hollywood, que lhe indicou em três categorias do Oscar: roteiro adaptado, figurino e canção original. O preconceito contra plataformas como a Netflix foi maior, entretanto, e essa pequena pérola da carreira de Joel e Ethan Coen acabou ficando de fora da lista de vencedores - sem falar em outras categorias em que ele poderia facilmente ter sido indicado, como direção de arte, fotografia e coadjuvantes: tudo é sensacional em "A balada de Buster Scruggs", que não fica nada a dever aos outros trabalhos da dupla. Um grande pequeno filme!
3 indicações ao Oscar: Roteiro Adaptado, Figurino, Canção Original ("When the cowboy trades his spurs for wings"
Quando foi anunciado que os irmãos Coen estavam desenvolvendo um trabalho para a Netflix, de imediato todos imaginaram uma série - especialmente quando ficou revelado que seu projeto consistia de seis pequenas histórias que tinham em comum a ambientação no Velho Oeste. A ansiedade em relação ao que dois dos cineastas mais festejados de Hollywood apresentariam teve fim no Festival de Veneza de 2018: "A balada de Buster Scruggs" é um filme digno de figurar entre os destaques da carreira da dupla e em nenhum momento parece amarrado a qualquer tipo de limitação que porventura poderia cercear sua criatividade. Mesclando histórias próprias e duas adaptações literárias, os vencedores do Oscar (roteiro por "Fargo", de 1996, e filme, direção e roteiro em 2007, por "Onde os fracos não tem vez") apresentaram a seu fiel público - e a uma extasiada crítica - uma produção caprichadíssima, que consegue equilibrar belas situações dramáticas com seu particular senso de humor. Em "A balada de Buster Scruggs", ironia e delicadeza caminham lado a lado, para deleite do espectador mais exigente.
O filme já começa de forma heterodoxa, em forma de musical: o protagonista da primeira história - e que empresta seu nome para o título da produção - chega a um vilarejo típico do velho oeste cantando e se apresentando como um dos mais procurados pela lei. Consciente de seus talentos como atirador e cantor, ele faz pouco caso do fato de estar sendo caçado e resolve descansar e beber na cantina local. Logo que chega, portanto, ele arruma confusão com um valentão do lugar, o assustador Joe (Clancy Brown) - e, em consequência, transforma o bar no palco de um quebra-quebra generalizado, até ser desafiado em duelo por outro autoconfiante atirador (Willy Watson). O segmento acaba com mais uma canção - a indicada ao Oscar "When the cowboy trades his spurs for wings" - e se destaca pelo inusitado do humor bizarro, pela agilidade e pela atuação impecável de Tim Blake Nelson, que já havia percorrido o musical e a comédia pelas mãos dos Coen no ótimo "E aí, meu irmão, cadê você?", de 2000. A segunda história tem o titulo de "Near algodones" e apresenta um jovem cowboy (James Franco) tentando assaltar a agência bancária do destemido (Stephen Root) e descobrindo, da pior forma possível, que o aparentemente frágil veterano não irá se submeter facilmente à situação. Mais uma vez é o equilibrio entre dois gêneros - faroeste e comédia - que sustenta a ágil narrativa.
O terceiro conto, "Meal ticket", conta as desventuras de um empresário irlandês (Liam Neeson) que percorre as cidades pequenas para apresentar à população o show de Horatio Edwin Harrison (Harry Melling, da série de filmes "Harry Potter", irreconhecível), que, desprovido de pernas e braços, declama uma série de textos célebres. Aos poucos, no entanto, o empresário começa a ver o público rarear - e descobre um outro (e surreal) talento para cuidar. É, sem dúvida, o conto mais tocante, sustentado pelo belo visual e pela interpretação de Melling, que consegue conquistar a plateia mesmo que não fale nenhuma palavra própria - todo o texto declamado por ele vem de outras fontes, como a Bíblia, Shakespeare e Abraham Lincoln, misturados em um monólogo memorável. O quarto segmento, "All gold canyon", é baseado em uma história de Jack London e mostra um experiente garimpeiro, interpretado por Tom Waits, buscando, incansavelmente, o ouro que o deixará rico. Seus esforços, porém, encontram um revés inesperado - e que pode destruir suas chances de entregar-se à aposentadoria. Talvez seja a mais fraca das histórias, mas ainda assim consegue surpreender.
O conto seguinte, "The gal who got rattled", é inspirado na obra de Stewart Edward White, e é a única história protagonizada por uma mulher - no caso, a inocente e tímida Alice Longabaugh (Zoe Kazan), que parte em direção ao Oregon em companhia do irmão, Gilbert (Jefferson Mays) - que lhe arrumou um casamento que também beneficia a seus negócios. O longo trajeto de sua caravana, no entanto, lhes reservas algumas surpresas - capazes de mudar completamente seu destino. Nesse episódio quem se sobressai é a atriz Zoe Kasdan: neta do lendário cineasta Elia Kazan, ela entrega uma performance acima da média, vivendo uma personagem repleta de nuances. O segmento final é o mais, digamos assim, surreal. "The mortal remains" apresenta cinco personagens em uma viagem de diligência em direção a uma cidade do Colorado. No diálogo que sustenta a trama, eles se revelam completamente diferentes um do outro - seja em vivência ou atitudes. E é preciso prestar atenção em cada palavra dita: há uma reviravolta em seus minutos finais, que o deixa ser a conclusão perfeita para o filme. Tal reviravolta é o trunfo da história, assim como seus intérpretes - que incluem os veteranos Brendan Gleeson e Saul Rubinek.
O melhor de "A balada de Buster Scruggs" é que, apesar de ser um filme construído em um formato episódico, ele jamais cai na armadilha da irregularidade. Claro que alguns segmentos chamam mais a atenção que outros - mas isso é de cada espectador. Todas as seis histórias apresentam características da filmografia de seus diretores/roteiristas/produtores e é evidente a qualidade ímpar de cada uma delas. O capricho do filme - independente se visto em uma sala de cinema ou via streaming - chamou a atenção da Academia de Hollywood, que lhe indicou em três categorias do Oscar: roteiro adaptado, figurino e canção original. O preconceito contra plataformas como a Netflix foi maior, entretanto, e essa pequena pérola da carreira de Joel e Ethan Coen acabou ficando de fora da lista de vencedores - sem falar em outras categorias em que ele poderia facilmente ter sido indicado, como direção de arte, fotografia e coadjuvantes: tudo é sensacional em "A balada de Buster Scruggs", que não fica nada a dever aos outros trabalhos da dupla. Um grande pequeno filme!
quarta-feira
CHÁ E SIMPATIA
CHÁ E SIMPATIA (Tea and sympathy, 1956, MGM Pictures, 122min) Direção: Vincente Minnelli. Roteiro: Robert Anderson, peça teatral de sua autoria. Fotografia: John Alton. Montagem: Ferris Webster. Música: Adolph Deutsch. Direção de arte/cenários: Edward Carfagno, William A. Horning/Keogh Gleason, Edwin B. Willis. Produção: Pandro S. Berman. Elenco: Deborah Kerr, John Kerr, Leif Erickson, Edward Andrews, Darryl Hickman, Norma Crane. Estreia: 27/9/56
Vencedor do Golden Globe de Revelação Masculina (John Kerr)
Desafiar o Código Hays - conjunto de "normas morais" que regulou a produção cinematográfica nos EUA entre os anos 1930 e 1968 - não era tarefa das mais fáceis: ciosos de que qualquer desvio na conduta de suas produções poderia resultar em boicote ou simplesmente censura, os estúdios de Hollywood permaneceram por décadas amarradas a um puritanismo quase medieval. Desde coisas como cenas de nudez, prostituição e tráfico de drogas até miscigenação, insinuação de perversões sexuais e escravidão - de brancos, é preciso salientar -, o Código Hays atrasou por um bom tempo a maturidade do cinema norte-americano. Porém, muito de vez em quando, algum filme tentava quebrar as regras, com o objetivo de contar histórias mais adultas e realistas. Foi o caso de "Chá e simpatia", lançado pela MGM em 1956, ou seja, no auge da vigência do Código. Adaptação de uma peça teatral de sucesso na Broadway, o filme de Vincente Minnelli manteve seus dois atores principais na transposição dos palcos para as telas, mas mesmo com a presença de Deborah Kerr - que no mesmo estava no elenco do vitorioso "O rei e eu" -, o filme repetiu o destino de outros que tiveram a mesma ousadia: o fracasso nas bilheterias.
Não que a ideia de transformar a peça em um filme tenha sido um mar de rosas: levou anos até que a MGM finalmente aceitasse um roteiro - escrito pelo mesmo autor da versão teatral, Robert Anderson - que passasse pelo aval do famigerado Código. O desafio de disfarçar homossexualidade, adultério e prostituição (temas que faziam parte do texto original) era tanto que Anderson ganhou três vezes mais do estúdio pelo roteiro do que pelos direitos da peça. De certa forma foi bem-sucedido: apesar de o roteiro não escapar de certos tiques de teatro filmado (como a opção por diálogos em detrimento de ação visual), o filme consegue manter o público até o final, com discussões cada vez mais válidas: até que ponto uma minoria deve submeter-se às regras da maioria? Existe certo e errado na forma com que as pessoas conduzem suas vidas? E até onde as regras da sociedade podem intervir na vida particular de cada um? Tais questões podem ter ficado mais evidente no palco - no filme a palavra "homossexualidade" jamais é citada, apesar de ser o ponto principal da trama -, mas é impossível que o público não associe o drama do protagonista a um dos pecados mortais do Código Hays.
O personagem principal de "Chá e simpatia" é o jovem adolescente Tom Lee (John Kerr, que apesar do sobrenome não tem qualquer relação familiar com a estrela Deborah). Aos dezessete anos, John não consegue se enturmar com seus colegas masculinos, preferindo atividades intelectuais ao invés de outras, consideradas mais masculinas. John sabe cozinhar e costurar, sonha em ser um cantor de folk, entende de jardinagem e suas aventuras pelo teatro interpretando personagens femininas; tais fatos, aliados à falta de jeito de John em lidar com meninas, fazem com que ele seja o alvo preferido dos rapazes da escola, que não demoram em lhe arrumar um apelido pouco elogioso. Sofrendo com tal situação - e ainda o desprezo do próprio pai, viúvo e pouco compreensivo -, Tom encontra alívio em sua relação de amizade com Laura Reynolds (Deborah Kerr), a esposa do diretor da escola, Bill Reynolds: percebendo a angústia do jovem, Laura começa a servir como a voz da razão, defendendo-o e entrando em rota de colisão com aqueles que o atacam, incluindo seu marido.
Dirigido com delicadeza por Vincente Minnelli - ele próprio vítima de suspeitas quanto à sua orientação sexual nos bastidores de Hollywood -, "Chá e simpatia" é um filme corajoso, mesmo que tente disfarçar (mas não muito) seu polêmico tema. Os diálogos - ricos e viscerais - servem como uma contundente crítica do preconceito: porque um homem não se sente confortável em atividades masculinas ele pode ser classificado como homossexual? Até que ponto suas preferências a atividades menos másculas determinam a orientação sexual de um homem? E por fim: é justo que jovens como Tom tentem encaixar-se nos moldes da sociedade para que sejam aceitos, mesmo que tal atitude castre sua personalidade? O roteiro de Robert Anderson joga tais perguntas ao ar, enquanto os personagens de sua obra buscam, de uma maneira ou outra, a felicidade (ou ao menos a tolerância). O final - diferente da versão teatral - pode até diminuir o impacto do filme como um todo (foi quase uma imposição da MGM), mas não consegue destruir as qualidades de uma produção sutil, respeitosa e necessária.
Vencedor do Golden Globe de Revelação Masculina (John Kerr)
Desafiar o Código Hays - conjunto de "normas morais" que regulou a produção cinematográfica nos EUA entre os anos 1930 e 1968 - não era tarefa das mais fáceis: ciosos de que qualquer desvio na conduta de suas produções poderia resultar em boicote ou simplesmente censura, os estúdios de Hollywood permaneceram por décadas amarradas a um puritanismo quase medieval. Desde coisas como cenas de nudez, prostituição e tráfico de drogas até miscigenação, insinuação de perversões sexuais e escravidão - de brancos, é preciso salientar -, o Código Hays atrasou por um bom tempo a maturidade do cinema norte-americano. Porém, muito de vez em quando, algum filme tentava quebrar as regras, com o objetivo de contar histórias mais adultas e realistas. Foi o caso de "Chá e simpatia", lançado pela MGM em 1956, ou seja, no auge da vigência do Código. Adaptação de uma peça teatral de sucesso na Broadway, o filme de Vincente Minnelli manteve seus dois atores principais na transposição dos palcos para as telas, mas mesmo com a presença de Deborah Kerr - que no mesmo estava no elenco do vitorioso "O rei e eu" -, o filme repetiu o destino de outros que tiveram a mesma ousadia: o fracasso nas bilheterias.
Não que a ideia de transformar a peça em um filme tenha sido um mar de rosas: levou anos até que a MGM finalmente aceitasse um roteiro - escrito pelo mesmo autor da versão teatral, Robert Anderson - que passasse pelo aval do famigerado Código. O desafio de disfarçar homossexualidade, adultério e prostituição (temas que faziam parte do texto original) era tanto que Anderson ganhou três vezes mais do estúdio pelo roteiro do que pelos direitos da peça. De certa forma foi bem-sucedido: apesar de o roteiro não escapar de certos tiques de teatro filmado (como a opção por diálogos em detrimento de ação visual), o filme consegue manter o público até o final, com discussões cada vez mais válidas: até que ponto uma minoria deve submeter-se às regras da maioria? Existe certo e errado na forma com que as pessoas conduzem suas vidas? E até onde as regras da sociedade podem intervir na vida particular de cada um? Tais questões podem ter ficado mais evidente no palco - no filme a palavra "homossexualidade" jamais é citada, apesar de ser o ponto principal da trama -, mas é impossível que o público não associe o drama do protagonista a um dos pecados mortais do Código Hays.
O personagem principal de "Chá e simpatia" é o jovem adolescente Tom Lee (John Kerr, que apesar do sobrenome não tem qualquer relação familiar com a estrela Deborah). Aos dezessete anos, John não consegue se enturmar com seus colegas masculinos, preferindo atividades intelectuais ao invés de outras, consideradas mais masculinas. John sabe cozinhar e costurar, sonha em ser um cantor de folk, entende de jardinagem e suas aventuras pelo teatro interpretando personagens femininas; tais fatos, aliados à falta de jeito de John em lidar com meninas, fazem com que ele seja o alvo preferido dos rapazes da escola, que não demoram em lhe arrumar um apelido pouco elogioso. Sofrendo com tal situação - e ainda o desprezo do próprio pai, viúvo e pouco compreensivo -, Tom encontra alívio em sua relação de amizade com Laura Reynolds (Deborah Kerr), a esposa do diretor da escola, Bill Reynolds: percebendo a angústia do jovem, Laura começa a servir como a voz da razão, defendendo-o e entrando em rota de colisão com aqueles que o atacam, incluindo seu marido.
Dirigido com delicadeza por Vincente Minnelli - ele próprio vítima de suspeitas quanto à sua orientação sexual nos bastidores de Hollywood -, "Chá e simpatia" é um filme corajoso, mesmo que tente disfarçar (mas não muito) seu polêmico tema. Os diálogos - ricos e viscerais - servem como uma contundente crítica do preconceito: porque um homem não se sente confortável em atividades masculinas ele pode ser classificado como homossexual? Até que ponto suas preferências a atividades menos másculas determinam a orientação sexual de um homem? E por fim: é justo que jovens como Tom tentem encaixar-se nos moldes da sociedade para que sejam aceitos, mesmo que tal atitude castre sua personalidade? O roteiro de Robert Anderson joga tais perguntas ao ar, enquanto os personagens de sua obra buscam, de uma maneira ou outra, a felicidade (ou ao menos a tolerância). O final - diferente da versão teatral - pode até diminuir o impacto do filme como um todo (foi quase uma imposição da MGM), mas não consegue destruir as qualidades de uma produção sutil, respeitosa e necessária.
segunda-feira
ATÔMICA
ATÔMICA (Atomic blonde, 2017, Universal Pictures/Focus Features, 115min) Direção: David Leitch. Roteiro: Kurt Johanstad, graphic novel de Antony Johnston, Sam Hart. Fotografia: Jonathan Sela. Montagem: Elisabet Ronaldsdóttir. Música: Tyler Bates. Figurino: Cindy Evans. Direção de arte/cenários: David Scheunemann/Zsuzsa Mihalek, Mark Rosinski. Produção executiva: David Guillod, Kurt Johanstad, Nicky Meyer, Joe Nozemak, Steven V. Scavelli, Marc Shaberg, Ethan Smith. Produção: A.J. Dix, Eric Gitter, Beth Kono, Kelly McCormick, Peter Schwering, Charlize Theron. Elenco: Charlize Theron, James McAvoy, Eddie Marsan, John Goodman, Toby Jones, James Faulkner, Sofia Boutella, Bill Skarsgaard, Til Schweiger. Estreia: 12/3/2017
Quando "Mad Max: estrada da fúria" (2015) surpreendeu todo mundo com uma arrecadação internacional de mais de 375 milhões de dólares e seis Oscar (além das indicações a melhor filme e diretor), os executivos chegaram à conclusão de que a) filmes de ação comandados por mulheres ainda era um nicho consideravelmente promissor e b) Charlize Theron, com sua beleza e carisma, parecia ser a atriz ideal para preencher essa lacuna no gênero, a despeito do fracasso de bilheteria de "Aeon Flux", estrelado por ela em um já distante 2005. Por coincidência, destino ou inconsciente coletivo na indústria, a bela Theron vinha tentando há cinco anos tirar do papel a adaptação da graphic novel "The coldest city", de Antony Johnston e Sam Hart, e viu no interesse dos estúdios a chance de finalmente o filme a sair dos planos e tornar-se realidade. Com um custo modesto de cerca de 30 milhões de dólares, por fim o filme saiu: como novo nome, "Atomic Blonde", um coastro em ascensão - James McAvoy - e um visual arrebatador - cortesia da fotografia de Jonathan Sela. Fugindo da estreia em pleno verão - quando os blockbusters são lançados em busca dos dólares de quem está de férias -, "Atômica" acabou se dando bem, arrecadando pouco mais de 100 milhões pelo mundo.
Dirigido por David Leitch - estreando como diretor depois da experiência de co-dirigir "John Wick: de volta ao jogo", de 2014 -, "Atômica" é um filme que deve muito à trilogia Jason Bourne, mas de certa forma consegue andar sozinho. Sua trama não é nada criativa - algo que há muito não se vê em filmes que tratam de espionagem - e seus personagens são rasos, sem qualquer traço de sutileza ou complexidade. No entanto, situar sua trama na iminência da queda do muro de Berlim permite ao diretor retratar a efervescência da Alemanha dos anos 1980 através dos cenários e de uma trilha sonora genial, que inclui New Order, Nena, Sioux And The Banshees, The Clash, David Bowie (que chegou a negociar uma participação no elenco pouco antes de sua morte) e George Michael - cuja "Father figure" enfeita uma das várias lutas corpo-a-corpo do filme. Já o enredo, rocambolesco e um tanto confuso em alguns momentos, acaba por se tornar, diante da beleza de Theron e das cenas de ação, quase desnecessário: é apenas um fio que conduz a narrativa, repleta de reviravoltas, traições e paranoias típicas da Guerra Fria.
Quando o filme começa, a espiã inglesa Lorraine Broughton (Charlize Theron, no auge da sensualidade) está sendo interrogada por Eric Gray (Toby Jones), um agente do MI6 britânico, e Emmett Kurzfeld (John Goodman), agente da CIA, a respeito de sua estadia em Berlim pouco antes da queda do muro. Lorraine foi ao país para pôr as mãos em uma lista que contém os nomes de todos os agentes secretos - tanto dos EUA quanto da Rússia. Por causa dessa lista, o agente inglês James Cascoigne (Sam Hargrave) foi morto - e Lorraine tem um motivo a mais para encontrar os responsáveis por sua morte, já que teve um romance (também secreto) com Cascoigne. Quem ajuda a bela espiã em sua trajetória de violência e traição é seu contato em Berlim, o pouco ortodoxo David Percival (James McAvoy) - e a misteriosa Delphine Lasalle (Sofia Boutella) também parece saber mais do que aparenta. Em uma narrativa que vai e vem no tempo, o espectador segue os preparados e misteriosos agentes pelas ruas de Berlim - uma cidade literalmente dividida.
Quando a sessão de "Atômica" termina, a sensação é de ter dado uma volta na montanha-russa. Explorando o talento de Charlize Theron em fazer suas próprias cenas de luta - depois de um treinamento com nada menos que oito preparadores físicos e com dois dentes quebrados como consequência -, David Leitch coreografa tais embates com o máximo de veracidade possível. Apesar de as cenas de ação dominarem o roteiro (ao invés de qualquer minimalismo como acontece em "O espião que sabia demais", por exemplo), não há, em nenhum momento, a sensação de dèja-vu: por mais que se saiba que a protagonista sempre vai vencer os duelos, não deixa de ser empolgante acompanhá-los com prazer. A química entre Theron e James McAvoy (apesar de não haver romance entre seus personagens) é convincente, e o elenco coadjuvante empresta prestígio à produção. Mesmo que soe como mais do mesmo, "Atômica" cumpre o que promete - não à toa, rendeu mais de 100 milhões de dólares pelo mundo e confirmou o status de grande estrela do gênero à bela Charlize Theron - uma das produtoras do filme. Diversão descompromissada e acima da média.
Quando "Mad Max: estrada da fúria" (2015) surpreendeu todo mundo com uma arrecadação internacional de mais de 375 milhões de dólares e seis Oscar (além das indicações a melhor filme e diretor), os executivos chegaram à conclusão de que a) filmes de ação comandados por mulheres ainda era um nicho consideravelmente promissor e b) Charlize Theron, com sua beleza e carisma, parecia ser a atriz ideal para preencher essa lacuna no gênero, a despeito do fracasso de bilheteria de "Aeon Flux", estrelado por ela em um já distante 2005. Por coincidência, destino ou inconsciente coletivo na indústria, a bela Theron vinha tentando há cinco anos tirar do papel a adaptação da graphic novel "The coldest city", de Antony Johnston e Sam Hart, e viu no interesse dos estúdios a chance de finalmente o filme a sair dos planos e tornar-se realidade. Com um custo modesto de cerca de 30 milhões de dólares, por fim o filme saiu: como novo nome, "Atomic Blonde", um coastro em ascensão - James McAvoy - e um visual arrebatador - cortesia da fotografia de Jonathan Sela. Fugindo da estreia em pleno verão - quando os blockbusters são lançados em busca dos dólares de quem está de férias -, "Atômica" acabou se dando bem, arrecadando pouco mais de 100 milhões pelo mundo.
Dirigido por David Leitch - estreando como diretor depois da experiência de co-dirigir "John Wick: de volta ao jogo", de 2014 -, "Atômica" é um filme que deve muito à trilogia Jason Bourne, mas de certa forma consegue andar sozinho. Sua trama não é nada criativa - algo que há muito não se vê em filmes que tratam de espionagem - e seus personagens são rasos, sem qualquer traço de sutileza ou complexidade. No entanto, situar sua trama na iminência da queda do muro de Berlim permite ao diretor retratar a efervescência da Alemanha dos anos 1980 através dos cenários e de uma trilha sonora genial, que inclui New Order, Nena, Sioux And The Banshees, The Clash, David Bowie (que chegou a negociar uma participação no elenco pouco antes de sua morte) e George Michael - cuja "Father figure" enfeita uma das várias lutas corpo-a-corpo do filme. Já o enredo, rocambolesco e um tanto confuso em alguns momentos, acaba por se tornar, diante da beleza de Theron e das cenas de ação, quase desnecessário: é apenas um fio que conduz a narrativa, repleta de reviravoltas, traições e paranoias típicas da Guerra Fria.
Quando o filme começa, a espiã inglesa Lorraine Broughton (Charlize Theron, no auge da sensualidade) está sendo interrogada por Eric Gray (Toby Jones), um agente do MI6 britânico, e Emmett Kurzfeld (John Goodman), agente da CIA, a respeito de sua estadia em Berlim pouco antes da queda do muro. Lorraine foi ao país para pôr as mãos em uma lista que contém os nomes de todos os agentes secretos - tanto dos EUA quanto da Rússia. Por causa dessa lista, o agente inglês James Cascoigne (Sam Hargrave) foi morto - e Lorraine tem um motivo a mais para encontrar os responsáveis por sua morte, já que teve um romance (também secreto) com Cascoigne. Quem ajuda a bela espiã em sua trajetória de violência e traição é seu contato em Berlim, o pouco ortodoxo David Percival (James McAvoy) - e a misteriosa Delphine Lasalle (Sofia Boutella) também parece saber mais do que aparenta. Em uma narrativa que vai e vem no tempo, o espectador segue os preparados e misteriosos agentes pelas ruas de Berlim - uma cidade literalmente dividida.
Quando a sessão de "Atômica" termina, a sensação é de ter dado uma volta na montanha-russa. Explorando o talento de Charlize Theron em fazer suas próprias cenas de luta - depois de um treinamento com nada menos que oito preparadores físicos e com dois dentes quebrados como consequência -, David Leitch coreografa tais embates com o máximo de veracidade possível. Apesar de as cenas de ação dominarem o roteiro (ao invés de qualquer minimalismo como acontece em "O espião que sabia demais", por exemplo), não há, em nenhum momento, a sensação de dèja-vu: por mais que se saiba que a protagonista sempre vai vencer os duelos, não deixa de ser empolgante acompanhá-los com prazer. A química entre Theron e James McAvoy (apesar de não haver romance entre seus personagens) é convincente, e o elenco coadjuvante empresta prestígio à produção. Mesmo que soe como mais do mesmo, "Atômica" cumpre o que promete - não à toa, rendeu mais de 100 milhões de dólares pelo mundo e confirmou o status de grande estrela do gênero à bela Charlize Theron - uma das produtoras do filme. Diversão descompromissada e acima da média.
domingo
QUANDO O CORAÇÃO FLORESCE
QUANDO O CORAÇÃO FLORESCE (Summertime, 1955, United Artists, 99min) Direção: David Lean. Roteiro: David Lean, H.E. Bates, peça teatral "The time of the cuckoo", de Arthur Laurents. Fotografia: Jack Hildyard. Montagem: Peter Taylor. Música: Alessandro Cicognini. Direção de arte/cenários: Vincent Korda. Produção: Ilya Lopert. Elenco: Katharine Hepburn, Rossano Brazzi, Isa Miranda, Darren McGavin, Mari Aldon, Gaetano Autiero. Estreia: 29/5/55 (Festival de Veneza)
2 indicações ao Oscar: Diretor (David Lean), Atriz (Katharine Hepburn)
Quando aceitou o papel de Jane Hudson, uma secretária solteirona que descobre o amor em uma viagem à Itália, a atriz Katharine Hepburn já estava longe dos sets de filmagem desde "A mulher absoluta", de George Cukor - uma de suas várias colaborações com o ator Spencer Tracy. Seu retorno ao cinema, depois de três anos afastada, lhe rendeu a sexta indicação ao Oscar de melhor atriz. Baseado em uma peça de teatro estrelada por Shirley Booth e estreada em 1952, "Quando o coração floresce" é um filme perfeito para os românticos e um deleite para os olhos. Filmado quase totalmente na própria Veneza, o filme ofereceu à Hepburn o raro desafio de interpretar uma mulher apaixonada e vulnerável, e ao diretor David Lean a chance de assinar um último filme de pequena escala antes de dedicar-se a produções épicas e monumentalmente caras - seu filme seguinte seria "A ponte do Rio Kwai", lançado em 1957. Simples e sem afetações, "Quando o coração floresce" é, ao mesmo tempo, a história de um amor maduro e um cartão postal de seu cenário natural. E também o preferido de Lean dentre toda a sua filmografia - o que, haja visto seu currículo, é um elogio e tanto.
O primeiro cineasta interessado em dirigir a adaptação a peça de Arthur Laurents, chamada originalmente de "The time of the cuckoo", foi Roberto Rosselini. Um dos criadores do neorrealismo italiano planejava entregar à sua amada Ingrid Bergman o papel principal, mas o projeto não foi adiante em suas mãos. Olivia de Havilland também chegou a considerar a ideia de protagonizá-lo, e até mesmo Vittorio De Sica esteve entre os possíveis nomes do elenco - e não como diretor, mas no papel do galante Renato de Rossi, o galã que balança o coração da solitária Jane. Quando David Lean assumiu as rédeas da produção é que as coisas encontraram seu rumo, ou ao menos, era a impressão. Quando decidiu filmar tudo em locações, o premiado cineasta não tinha ideia dos problemas que teria de enfrentar: a equipe chegou em Veneza em plena alta temporada, e as filmagens, logicamente, demandavam de controle, o que significava que muitos dos turistas não contavam com tais transtornos. Lean teve de pagar pelos prejuízos dos comerciantes, dos condutores de gôndolas e até pela restauração de uma igreja da cidade. Afora esse pequeno empecilho, porém, tudo transcorreu tranquilamente - até mesmo a filmagem da cena em que Katharine Hepburn teve que cair em um dos canais de Veneza (e que lhe rendeu uma infecção no olho que nunca mais a abandonou). Foi tudo tão pacífico que Lean confirmou sua paixão pela cidade e fez dela seu segundo lar.
Já os moradores de Veneza, depois da confusão proporcionada pelas filmagens, foram surpreendidos com um efeito positivo para sua economia: após o lançamento de ""Quando o coração floresce" (justamente no festival de cinema realizado na cidade), o turismo no local simplesmente dobrou. Os espectadores conquistados pela história de amor contada por Lean queriam visitar os cenários do filme - e desde então Veneza é considerada uma das cidades mais românticas do mundo. Tudo por conta de uma história de amor madura, que rejeita o sentimentalismo e abraça um tom de romance outonal que trata o espectador com respeito - e que apresenta mais uma interpretação impecável de Hepburn. Ela vive Jane Hudson, que depois de anos de trabalho finalmente consegue realizar a viagem dos sonhos. Sozinha - acompanhada apenas por sua câmera filmadora -, ela passeia por Veneza absorvendo a atmosfera lírica da cidade. Ao entrar em um antiquário para comprar um objeto pelo qual se apaixonou, ela conhece Renato de Rossi (Rossano Brazzi), que acaba por se tornar seu amigo. Aos poucos, no entanto, Jane percebe que quer mais do que a amizade do sedutor Renato - mas nem tudo é o que parece, e em breve ela terá de lutar contra seus próprios valores para se entregar ao amor.
Assim como em "Desencanto" (1945), um de seus mais memoráveis filmes, David Lean retrata uma relação amorosa condenada pelas regras sociais. Mais uma vez seus personagens são jogados em um turbilhão sentimental e precisam encontrar forças para lutar por sua felicidade, que está justamente em um local aparentemente inalcançável. Katharine Hepburn é uma força da natureza: qualquer cena, por mais insignificante que pareça, é transformada em um espetáculo à parte - principalmente no terço final, quando ela precisa decidir entre a felicidade (ainda que fugaz) ou a ética social. A Rossano Brazzi resta pontuar com discrição o desempenho de Hepburn e entregar uma performance correta, mas jamais brilhante. A química entre os dois não chega a ser faiscante - o amor talvez surja de forma um tanto rápida -, mas é inegável que juntos eles conseguem cumprir o que o filme promete: um romance entre pessoas adultas e com sentimentos palpáveis, que pode fazer com que os mais sensíveis espectadores derramem uma ou outra lagrimazinha. Não é nem de longe o melhor filme de David Lean, mas oferece ao público uma trama séria e emocionante.
2 indicações ao Oscar: Diretor (David Lean), Atriz (Katharine Hepburn)
Quando aceitou o papel de Jane Hudson, uma secretária solteirona que descobre o amor em uma viagem à Itália, a atriz Katharine Hepburn já estava longe dos sets de filmagem desde "A mulher absoluta", de George Cukor - uma de suas várias colaborações com o ator Spencer Tracy. Seu retorno ao cinema, depois de três anos afastada, lhe rendeu a sexta indicação ao Oscar de melhor atriz. Baseado em uma peça de teatro estrelada por Shirley Booth e estreada em 1952, "Quando o coração floresce" é um filme perfeito para os românticos e um deleite para os olhos. Filmado quase totalmente na própria Veneza, o filme ofereceu à Hepburn o raro desafio de interpretar uma mulher apaixonada e vulnerável, e ao diretor David Lean a chance de assinar um último filme de pequena escala antes de dedicar-se a produções épicas e monumentalmente caras - seu filme seguinte seria "A ponte do Rio Kwai", lançado em 1957. Simples e sem afetações, "Quando o coração floresce" é, ao mesmo tempo, a história de um amor maduro e um cartão postal de seu cenário natural. E também o preferido de Lean dentre toda a sua filmografia - o que, haja visto seu currículo, é um elogio e tanto.
O primeiro cineasta interessado em dirigir a adaptação a peça de Arthur Laurents, chamada originalmente de "The time of the cuckoo", foi Roberto Rosselini. Um dos criadores do neorrealismo italiano planejava entregar à sua amada Ingrid Bergman o papel principal, mas o projeto não foi adiante em suas mãos. Olivia de Havilland também chegou a considerar a ideia de protagonizá-lo, e até mesmo Vittorio De Sica esteve entre os possíveis nomes do elenco - e não como diretor, mas no papel do galante Renato de Rossi, o galã que balança o coração da solitária Jane. Quando David Lean assumiu as rédeas da produção é que as coisas encontraram seu rumo, ou ao menos, era a impressão. Quando decidiu filmar tudo em locações, o premiado cineasta não tinha ideia dos problemas que teria de enfrentar: a equipe chegou em Veneza em plena alta temporada, e as filmagens, logicamente, demandavam de controle, o que significava que muitos dos turistas não contavam com tais transtornos. Lean teve de pagar pelos prejuízos dos comerciantes, dos condutores de gôndolas e até pela restauração de uma igreja da cidade. Afora esse pequeno empecilho, porém, tudo transcorreu tranquilamente - até mesmo a filmagem da cena em que Katharine Hepburn teve que cair em um dos canais de Veneza (e que lhe rendeu uma infecção no olho que nunca mais a abandonou). Foi tudo tão pacífico que Lean confirmou sua paixão pela cidade e fez dela seu segundo lar.
Já os moradores de Veneza, depois da confusão proporcionada pelas filmagens, foram surpreendidos com um efeito positivo para sua economia: após o lançamento de ""Quando o coração floresce" (justamente no festival de cinema realizado na cidade), o turismo no local simplesmente dobrou. Os espectadores conquistados pela história de amor contada por Lean queriam visitar os cenários do filme - e desde então Veneza é considerada uma das cidades mais românticas do mundo. Tudo por conta de uma história de amor madura, que rejeita o sentimentalismo e abraça um tom de romance outonal que trata o espectador com respeito - e que apresenta mais uma interpretação impecável de Hepburn. Ela vive Jane Hudson, que depois de anos de trabalho finalmente consegue realizar a viagem dos sonhos. Sozinha - acompanhada apenas por sua câmera filmadora -, ela passeia por Veneza absorvendo a atmosfera lírica da cidade. Ao entrar em um antiquário para comprar um objeto pelo qual se apaixonou, ela conhece Renato de Rossi (Rossano Brazzi), que acaba por se tornar seu amigo. Aos poucos, no entanto, Jane percebe que quer mais do que a amizade do sedutor Renato - mas nem tudo é o que parece, e em breve ela terá de lutar contra seus próprios valores para se entregar ao amor.
Assim como em "Desencanto" (1945), um de seus mais memoráveis filmes, David Lean retrata uma relação amorosa condenada pelas regras sociais. Mais uma vez seus personagens são jogados em um turbilhão sentimental e precisam encontrar forças para lutar por sua felicidade, que está justamente em um local aparentemente inalcançável. Katharine Hepburn é uma força da natureza: qualquer cena, por mais insignificante que pareça, é transformada em um espetáculo à parte - principalmente no terço final, quando ela precisa decidir entre a felicidade (ainda que fugaz) ou a ética social. A Rossano Brazzi resta pontuar com discrição o desempenho de Hepburn e entregar uma performance correta, mas jamais brilhante. A química entre os dois não chega a ser faiscante - o amor talvez surja de forma um tanto rápida -, mas é inegável que juntos eles conseguem cumprir o que o filme promete: um romance entre pessoas adultas e com sentimentos palpáveis, que pode fazer com que os mais sensíveis espectadores derramem uma ou outra lagrimazinha. Não é nem de longe o melhor filme de David Lean, mas oferece ao público uma trama séria e emocionante.
sábado
ARTISTA DO DESASTRE
ARTISTA DO DESASTRE (The disaster artist, 2017, Warner Bros/New Line Cinema, 104min) Direção: James Franco. Roteiro: Scott Neustadter, Michael H. Weber, livro "The disaster artist: my life inside 'The room', the greatest bad movie ever made", de Greg Sestero, Tom Bissell. Fotografia: Brandon Trost. Montagem: Stacey Shroeder. Música: Dave Porter. Figurino: Brenda Abbandandolo. Direção de arte/cenários: Chris Spelman/Susan Lynch. Produção executiva: Richard Brener, Michael Disco, Joe Drake, Toby Emmerich, Nathan Kahane, Kelli Konop, Roy Lee, Alexandria McAtee, John Powers Middleton, Dave Neustadter, Scott Neustadter, Hans Ritter, Michael H. Weber, Erin Westerman. Produção: James Franco, Evan Golberg, Vince Jolivette, Seth Rogen, James Weaver. Elenco: James Franco, Dave Franco, Seth Rogen, Allison Brie, Megan Mullally, Melanie Grifith, Sharon Stone, Ari Graynor, Jackie Weaver, Zac Efron, Josh Hutcherson, Bob Odenkirk. Estreia: 11/9/17 (Festival de Toronto)
Indicado ao Oscar de roteiro adaptado
Vencedor do Golden Globe de Melhor Ator em Comédia/Musical: James Franco
Excêntrico no modo de vestir, falar e se comportar, Tommy Wiseau convida o melhor (e talvez único) amigo, Greg Sesteros, para ir com ele a Hollywood e tentar carreira no cinema. Depois de vários meses batalhando por uma chance - que nem mesmo o bem-apessoado Greg consegue -, o misterioso Wiseau (que esconde a verdadeira idade e a fonte de seu dinheiro) resolve arrombar a porta da indústria e fazer seu próprio filme. Dedica-se a escrever um roteiro e, quando ele fica pronto, parte para a ação: com ele e Greg nos papéis principais, "The room" começa a ser filmado - apesar das idiossincrasias de seu criador e de sua absoluta falta de talento em todas as funções (ator, diretor, roteirista e produtor). Depois de meses enervando a equipe do filme - incrédulos quanto à possível qualidade do filme -, a produção finalmente tem sua estreia marcada. Mas como será que os espectadores irão reagir diante de tanto amadorismo?
Tommy Wiseau é um personagem riquíssimo: sempre vestido de forma bizarra, com um sotaque indefinível e absolutamente reservado em relação à sua vida, ele age de maneira errática e se acredita muito mais talentoso do que realmente é - desde suas aulas de teatro até seu estrelato em "The room", um filme muito aquém de trash e hoje um cult movie por excelência. Apesar de ser pouco verossímil, Wiseau existe de verdade - e é sobre a produção de seu filme que trata "Artista do desastre", uma das comédias mais engraçadas e inteligentes dos últimos anos. Com ecos de "Ed Wood" (1994), de Tim Burton - especialmente no carinho com que o protagonista é retratado - e uma série de participações especiais valiosas, o filme agradou em cheio a crítica e poderia ter chegado facilmente às principais categorias do Oscar se não fosse um escândalo de assédio sexual que atingiu seu diretor, produtor e ator principal, James Franco. Vencedor do Golden Globe de melhor ator em comédia/musical e elogiado unanimemente, Franco acabou sendo deixado de lado pela Academia - que reconheceu com uma indicação apenas seu roteiro, adaptado por Scott Neustadter e Michael H. Weber do livro escrito pelo próprio Greg Sesteros, testemunha oficial dos fatos.
A exclusão de Franco da lista de indicações ao Oscar pode até ter sido surpresa, mas ninguém pode negar que seu filme é uma pérola. A segunda metade especialmente, quando começa a produção repleta de momentos bizarros de "The room", é simplesmente impossível não gargalhar. Ao contrário da maioria das comédias produzidas em Hollywood - algumas inclusive estreladas pelo próprio James Franco e seu colega de elenco, Seth Rogen -, "Artista do desastre" extrai seu humor não da escatologia, mas sim do absurdo de suas situações. De sua primeira aparição em cena - em uma interpretação no mínimo sui generis de Stanley Kowalski, de "Uma rua chamada pecado" - até seu final, de certa forma emocionante aos fãs de cinema -, Wiseau é uma figura absolutamente imprevisível, capaz tanto de gestos generosos (como abrigar Sesteros em sua chegada em Los Angeles) quanto de uma mesquinharia inacreditável (como não proporcionar água no set de filmagem, quente a ponto de levar uma atriz ao desmaio). James Franco encarna Wiseau com nítido prazer, entregando uma performance brilhante, que eclipsa até mesmo seu irmão, Dave, que ficou com o papel de Greg Sesteros: enquanto Sesteros é, de um modo, a voz da razão na dupla, Wiseau é um vulcão de sentimentos contraditórios - e pode, inclusive, suscitar a compaixão do público.
E se não fosse tão engraçado quanto é, "Artista do desastre" ainda tem o bônus de contar com inúmeras participações especiais, para deleite do espectador. Melanie Griffith, Sharon Stone, Megan Mullally, Bryan Cranston, Bob Odenkirk, Zac Efron, Josh Hutcherson, Jackie Weaver, Kevin Smith, Adam Scott e outros aparecem em pequenos papéis - ou em depoimentos falsos antes do filme começar (uma referência a "Reds", de Warren Beatty, lançado em 1981). É um prazer a mais identificá-los enquanto se acompanha a trajetória do protagonista em busca do lançamento de seu filme e sua esperada entrada no mercado cinematográfico de Hollywood. Seu filme,"The room", estreou em 2003, e, para não estragar a surpresa de quem ainda não sabe o final da história, basta dizer que, em determinado nível, ele conseguiu projetar-se na indústria e tornar-se famoso - mesmo que não exatamente do jeito que procurava. "The room" pode ser considerado um dos piores filmes da história do cinema, mas seu filho, "Artista do desastre", é um brilhante documento de sua realização.
Indicado ao Oscar de roteiro adaptado
Vencedor do Golden Globe de Melhor Ator em Comédia/Musical: James Franco
Excêntrico no modo de vestir, falar e se comportar, Tommy Wiseau convida o melhor (e talvez único) amigo, Greg Sesteros, para ir com ele a Hollywood e tentar carreira no cinema. Depois de vários meses batalhando por uma chance - que nem mesmo o bem-apessoado Greg consegue -, o misterioso Wiseau (que esconde a verdadeira idade e a fonte de seu dinheiro) resolve arrombar a porta da indústria e fazer seu próprio filme. Dedica-se a escrever um roteiro e, quando ele fica pronto, parte para a ação: com ele e Greg nos papéis principais, "The room" começa a ser filmado - apesar das idiossincrasias de seu criador e de sua absoluta falta de talento em todas as funções (ator, diretor, roteirista e produtor). Depois de meses enervando a equipe do filme - incrédulos quanto à possível qualidade do filme -, a produção finalmente tem sua estreia marcada. Mas como será que os espectadores irão reagir diante de tanto amadorismo?
Tommy Wiseau é um personagem riquíssimo: sempre vestido de forma bizarra, com um sotaque indefinível e absolutamente reservado em relação à sua vida, ele age de maneira errática e se acredita muito mais talentoso do que realmente é - desde suas aulas de teatro até seu estrelato em "The room", um filme muito aquém de trash e hoje um cult movie por excelência. Apesar de ser pouco verossímil, Wiseau existe de verdade - e é sobre a produção de seu filme que trata "Artista do desastre", uma das comédias mais engraçadas e inteligentes dos últimos anos. Com ecos de "Ed Wood" (1994), de Tim Burton - especialmente no carinho com que o protagonista é retratado - e uma série de participações especiais valiosas, o filme agradou em cheio a crítica e poderia ter chegado facilmente às principais categorias do Oscar se não fosse um escândalo de assédio sexual que atingiu seu diretor, produtor e ator principal, James Franco. Vencedor do Golden Globe de melhor ator em comédia/musical e elogiado unanimemente, Franco acabou sendo deixado de lado pela Academia - que reconheceu com uma indicação apenas seu roteiro, adaptado por Scott Neustadter e Michael H. Weber do livro escrito pelo próprio Greg Sesteros, testemunha oficial dos fatos.
A exclusão de Franco da lista de indicações ao Oscar pode até ter sido surpresa, mas ninguém pode negar que seu filme é uma pérola. A segunda metade especialmente, quando começa a produção repleta de momentos bizarros de "The room", é simplesmente impossível não gargalhar. Ao contrário da maioria das comédias produzidas em Hollywood - algumas inclusive estreladas pelo próprio James Franco e seu colega de elenco, Seth Rogen -, "Artista do desastre" extrai seu humor não da escatologia, mas sim do absurdo de suas situações. De sua primeira aparição em cena - em uma interpretação no mínimo sui generis de Stanley Kowalski, de "Uma rua chamada pecado" - até seu final, de certa forma emocionante aos fãs de cinema -, Wiseau é uma figura absolutamente imprevisível, capaz tanto de gestos generosos (como abrigar Sesteros em sua chegada em Los Angeles) quanto de uma mesquinharia inacreditável (como não proporcionar água no set de filmagem, quente a ponto de levar uma atriz ao desmaio). James Franco encarna Wiseau com nítido prazer, entregando uma performance brilhante, que eclipsa até mesmo seu irmão, Dave, que ficou com o papel de Greg Sesteros: enquanto Sesteros é, de um modo, a voz da razão na dupla, Wiseau é um vulcão de sentimentos contraditórios - e pode, inclusive, suscitar a compaixão do público.
E se não fosse tão engraçado quanto é, "Artista do desastre" ainda tem o bônus de contar com inúmeras participações especiais, para deleite do espectador. Melanie Griffith, Sharon Stone, Megan Mullally, Bryan Cranston, Bob Odenkirk, Zac Efron, Josh Hutcherson, Jackie Weaver, Kevin Smith, Adam Scott e outros aparecem em pequenos papéis - ou em depoimentos falsos antes do filme começar (uma referência a "Reds", de Warren Beatty, lançado em 1981). É um prazer a mais identificá-los enquanto se acompanha a trajetória do protagonista em busca do lançamento de seu filme e sua esperada entrada no mercado cinematográfico de Hollywood. Seu filme,"The room", estreou em 2003, e, para não estragar a surpresa de quem ainda não sabe o final da história, basta dizer que, em determinado nível, ele conseguiu projetar-se na indústria e tornar-se famoso - mesmo que não exatamente do jeito que procurava. "The room" pode ser considerado um dos piores filmes da história do cinema, mas seu filho, "Artista do desastre", é um brilhante documento de sua realização.
sexta-feira
O AMOR NÃO TEM SEXO
O AMOR NÃO TEM SEXO (Prick up your ears, 1987, Zenith Entertainment, 105min) Direção: Stephen Frears. Roteiro: Alan Bennett, biografia por John Lahr. Fotografia: Oliver Stapleton. Montagem: Mick Audsley. Música: Stanley Myers. Figurino: Bob Ringwood. Direção de arte/cenários: Hugo Luczyk Wyhowski/Philip Elton. Produção: Andrew Born. Elenco: Gary Oldman, Alfred Molina, Vanessa Redgrave, Wallace Shawn, Lindsay Duncan, Julie Walters, Frances Barber. Estreia: 17/4/87
Vencedor no Festival de Cannes: Melhor Trilha Sonora
Quem começar a assistir à "O amor não tem sexo" pensando tratar-se de mais um filme de temática gay com uma mensagem edificante certamente vai levar um choque ao final da sessão: o título em português de "Prick up your ears" (algo intraduzível mas pouco romântico ou formal) esconde a verdadeira e chocante história de amor, sexo, ciúme, violência e literatura do dramaturgo britânico Joe Orton e seu amante, Kenneth Halliwell, também escritor, mas sem o mesmo prestígio. Baseado em uma biografia de Orton escrita por John Larh, o filme de Stephen Frears (pouco antes de conquistar Hollywood com seu excepcional "Ligações perigosas", lançado em 1988) é seco, frio e um tanto irônico em sua tentativa de retratar não apenas um casal vivendo quase à margem da sociedade, mas também a própria sociedade hipócrita e falsamente liberal dos anos 1960.
Conhecido na Inglaterra como o autor de peças teatrais repletas de humor negro e críticas à sociedade, como "Entertaining Mr. Sloane" e "Loot", Orton chegou a ser chamado para escrever o roteiro de um filme dos Beatles e conhecer pessoalmente Paul McCartney. Enquanto ascendia profissionalmente, porém, sua relação com Halliwell entrava cada vez mais em uma crise sem fim: sete anos mais velho que Orton e sem seu charme, Halliwell sofria com as traições do parceiro - ainda que por vezes fosse chamado por ele para participar - e via sua carreira ser eclipsada pelo sucesso de Orton. A relação, desequilibrada sob todos os aspectos, parece atrair uma atmosfera de urgência e melancolia. Sob a visão de Frears, quase documental, os protagonistas parecem vislumbrar a tragédia, mas, ao mesmo tempo, sabem que não há como evitá-la. O tom de decadência impresso pelo cineasta nas aventuras sexuais de Orton transmitem uma sensação de incômodo e angústia - ainda que justamente essas jornadas pelo lado sombrio do sexo tenham feito dele o dramaturgo visceral que foi.
Um dos grandes trunfos de "O amor não tem sexo" é o elenco escolhido por Stephen Frears - notoriamente conhecido como um excelente diretor de atores. Antes de começar sua bem-sucedida carreira em Hollywood, Gary Oldman assume com perfeição o sotaque e os trejeitos de Joe Orton - um ano antes ele havia encarnado o roqueiro Sid Vicious e cinco anos mais tarde ele faria um Lee Harvey Oswald brilhante em "JFK: a pergunta que não quer calar", de Oliver Stone. Oldman, um ator dedicado e capaz de transformar-se fisicamente de um filme para outro encontra o par ideal em Alfred Molina. No papel, recusado por Ian McKellen (que anos mais tarde assumiu o arrependimento por isso), Molina brilha como o introvertido e apaixonado Halliwell, com um trabalho impressionante que vai se avolumando até o desfecho trágico. Não bastasse o par central, a excelente Vanessa Redgrave faz uma participação especial como a editora de Orton, Peggy Ramsay, em uma interpretação que lhe rendeu um prêmio de coadjuvante pela associação de críticos de Nova York e indicações ao Golden Globe e ao Bafta. É Redgrave quem surge como a voz da razão em um filme que mergulha sem medo no retrato de uma história de amor, sexo, inveja e literatura.
"O amor não tem sexo" não é, definitivamente, um filme que glamoriza a homossexualidade, mas tampouco a condena: é um desenho o mais fiel possível de uma tragédia, contado com imparcialidade e sem artifícios visuais ou melodramáticos. A fotografia crua de Oliver Stapleton e a edição ágil (mas nunca apressada) de Mick Ausdley são fatores cruciais para o sucesso do filme, mas é a direção incisiva de Stephen Frears quem reúne todos os elementos para formarem um único e chocante painel sobre um dos relacionamentos mais doídos da arte britânica dos anos 1960. É um filme desconfortável, mas, ao mesmo tempo, imprescindível!
Vencedor no Festival de Cannes: Melhor Trilha Sonora
Quem começar a assistir à "O amor não tem sexo" pensando tratar-se de mais um filme de temática gay com uma mensagem edificante certamente vai levar um choque ao final da sessão: o título em português de "Prick up your ears" (algo intraduzível mas pouco romântico ou formal) esconde a verdadeira e chocante história de amor, sexo, ciúme, violência e literatura do dramaturgo britânico Joe Orton e seu amante, Kenneth Halliwell, também escritor, mas sem o mesmo prestígio. Baseado em uma biografia de Orton escrita por John Larh, o filme de Stephen Frears (pouco antes de conquistar Hollywood com seu excepcional "Ligações perigosas", lançado em 1988) é seco, frio e um tanto irônico em sua tentativa de retratar não apenas um casal vivendo quase à margem da sociedade, mas também a própria sociedade hipócrita e falsamente liberal dos anos 1960.
Conhecido na Inglaterra como o autor de peças teatrais repletas de humor negro e críticas à sociedade, como "Entertaining Mr. Sloane" e "Loot", Orton chegou a ser chamado para escrever o roteiro de um filme dos Beatles e conhecer pessoalmente Paul McCartney. Enquanto ascendia profissionalmente, porém, sua relação com Halliwell entrava cada vez mais em uma crise sem fim: sete anos mais velho que Orton e sem seu charme, Halliwell sofria com as traições do parceiro - ainda que por vezes fosse chamado por ele para participar - e via sua carreira ser eclipsada pelo sucesso de Orton. A relação, desequilibrada sob todos os aspectos, parece atrair uma atmosfera de urgência e melancolia. Sob a visão de Frears, quase documental, os protagonistas parecem vislumbrar a tragédia, mas, ao mesmo tempo, sabem que não há como evitá-la. O tom de decadência impresso pelo cineasta nas aventuras sexuais de Orton transmitem uma sensação de incômodo e angústia - ainda que justamente essas jornadas pelo lado sombrio do sexo tenham feito dele o dramaturgo visceral que foi.
Um dos grandes trunfos de "O amor não tem sexo" é o elenco escolhido por Stephen Frears - notoriamente conhecido como um excelente diretor de atores. Antes de começar sua bem-sucedida carreira em Hollywood, Gary Oldman assume com perfeição o sotaque e os trejeitos de Joe Orton - um ano antes ele havia encarnado o roqueiro Sid Vicious e cinco anos mais tarde ele faria um Lee Harvey Oswald brilhante em "JFK: a pergunta que não quer calar", de Oliver Stone. Oldman, um ator dedicado e capaz de transformar-se fisicamente de um filme para outro encontra o par ideal em Alfred Molina. No papel, recusado por Ian McKellen (que anos mais tarde assumiu o arrependimento por isso), Molina brilha como o introvertido e apaixonado Halliwell, com um trabalho impressionante que vai se avolumando até o desfecho trágico. Não bastasse o par central, a excelente Vanessa Redgrave faz uma participação especial como a editora de Orton, Peggy Ramsay, em uma interpretação que lhe rendeu um prêmio de coadjuvante pela associação de críticos de Nova York e indicações ao Golden Globe e ao Bafta. É Redgrave quem surge como a voz da razão em um filme que mergulha sem medo no retrato de uma história de amor, sexo, inveja e literatura.
"O amor não tem sexo" não é, definitivamente, um filme que glamoriza a homossexualidade, mas tampouco a condena: é um desenho o mais fiel possível de uma tragédia, contado com imparcialidade e sem artifícios visuais ou melodramáticos. A fotografia crua de Oliver Stapleton e a edição ágil (mas nunca apressada) de Mick Ausdley são fatores cruciais para o sucesso do filme, mas é a direção incisiva de Stephen Frears quem reúne todos os elementos para formarem um único e chocante painel sobre um dos relacionamentos mais doídos da arte britânica dos anos 1960. É um filme desconfortável, mas, ao mesmo tempo, imprescindível!
quinta-feira
LUA DE MEL AGITADA
LUA DE MEL AGITADA (The long, long trailer, 1954, MGM Pictures, 96min) Direção: Vincent Minnelli. Roteiro: Albert Hackett, Frances Goodrich, romance de Clinto Twiss. Fotografia: Robert Surtees. Montagem: Ferris Webster. Música: Adolph Deutsch. Figurino: Helen Rose. Direção de arte/cenários: Edward Carfagno, Cedric Gibbons/F. Keogh Gleason, Edwin B. Willis. Produção: Pandro S. Berman. Elenco: Lucille Ball, Desi Arnaz, Marjorie Main, Keenan Wyn. Estreia: 17/02/54
Quando o filme "Lua de mel agitada" estreou nos EUA, no começo de 1954, seus dois atores principais eram extremamente populares graças a um seriado de televisão - então visto como um concorrente desleal ao cinema. Astros da bem-sucedida e campeã de audiência "I love Lucy" (no ar desde 1951 e acompanhada por milhões de telespectadores), Lucille Ball e seu marido, Desi Arnaz, acharam que já estava mais do que na hora de testar seu carisma junto a um público maior. Com um contrato assinado com a MGM para uma série de filmes, eles começaram com o pé direito. Adaptado de um best-seller de Cliton Twiss e dirigido por ninguém menos que Vincent Minnelli, "Lua de mel agitada" levou para as telas grandes o mesmo delicioso humor visual do programa de televisão e comprovou que, além do fidelíssimo público da dupla de astros, ainda havia um vasto território a explorar na tela grande.
Fazer a transição de um veículo a outro nem sempre é fácil - muita gente tentou aproveitar sua fama na televisão como trampolim para uma "promoção" e não teve sucesso. Para minimizar as chances de erro, nada como contar com a experiência de um diretor experiente: Vincent Minnelli já havia sido indicado ao Oscar pelo musical "Sinfonia de Paris", estrelado por Gene Kelly em 1951, e tinha prestígio mais que suficiente para emprestar uma aura de seriedade ao projeto - mesmo se tratando de uma comédia rasgada, bem mais explicita do que a sofisticação de seus trabalhos anteriores. Com um diretor capaz de compreender o estilo já consagrado de Ball e tirar o máximo proveito dele, Minnelli mostrou-se uma escolha muito apropriada. Apesar de não ter imprimir no filme suas características mais marcantes (leia-se cenários mirabolantes e números musicais pomposos), o cineasta foi capaz de controlar qualquer tipo de excesso no humor pastelão de Ball e dotar a produção de um ritmo mais apropriado ao cinema que à televisão. Poderia-se dizer que, experiente como era, Minnelli mesclar o senso de humor da dupla à narrativa mais ambiciosa exigida pelo cinema. O resultado é um filme redondinho, com sequências engraçadíssimas valorizadas pelo talento incomum de Ball para fazer rir sem demonstrar muito esforço para isso.
Quando o filme começa, Tacy (Lucille Ball) e Nicky Collini (Desi Arnaz) estão prestes a se casar. Usando de seu poder de convencimento, ela consegue fazer com que o noivo aceite sua ideia de comprar um trailer ao invés de alugar um apartamento ou casa. Seus argumentos giram em torno da liberdade de escolher viver onde quiserem e da economia que farão sem precisar gastar dinheiro em uma moradia convencional. Logo depois do casamento, já de posse de um trailer maior do que o primeiramente imaginado, o casal parte para sua lua-de-mel - e não demoram a perceber que talvez a ideia de um lar motorizado possa não ter sido tão genial. Passando por diversas situações vexaminosas e (e até perigosas), Tacy e Nicky precisam de muito pensamento positivo para chegarem vivos ao final de sua aventura tão pouco ortodoxa. E um dos principais problemas é descoberto por Tacy justamente onde ela aparentemente se sairia melhor: como fazer um jantar quando a cozinha não para quieta em momento algum?
"Lua de mel agitada" é um filme sem contra-indicações. É bobo? Muitas vezes, mas com um senso de timing perfeito, capaz de arrancar gargalhadas até do mais sério espectador. É datado? De forma alguma, já que o estilo de humor do casal é atemporal. É capaz de mudar a história do cinema? Claro que não, mas isso é ambição de diretores e elencos mais sérios e compenetrados a discutir temas relevantes. É cansativo? De jeito algum: o ritmo imposto pela direção, pelo roteiro e pelos atores impede que a plateia sofra de qualquer tipo de impaciência. E por fim, por que não há mais filmes com Lucille e Desi? Simples: seu segundo filme na MGM, "Eu e meu anjo", de 1956, sofreu ataques inclementes da crítica e foi um fracasso de bilheteria, interrompendo o contrato antes de uma terceira tentativa. Para sorte do público, existe "Lua de mel agitada" para salvar um fim de semana chuvoso.
Quando o filme "Lua de mel agitada" estreou nos EUA, no começo de 1954, seus dois atores principais eram extremamente populares graças a um seriado de televisão - então visto como um concorrente desleal ao cinema. Astros da bem-sucedida e campeã de audiência "I love Lucy" (no ar desde 1951 e acompanhada por milhões de telespectadores), Lucille Ball e seu marido, Desi Arnaz, acharam que já estava mais do que na hora de testar seu carisma junto a um público maior. Com um contrato assinado com a MGM para uma série de filmes, eles começaram com o pé direito. Adaptado de um best-seller de Cliton Twiss e dirigido por ninguém menos que Vincent Minnelli, "Lua de mel agitada" levou para as telas grandes o mesmo delicioso humor visual do programa de televisão e comprovou que, além do fidelíssimo público da dupla de astros, ainda havia um vasto território a explorar na tela grande.
Fazer a transição de um veículo a outro nem sempre é fácil - muita gente tentou aproveitar sua fama na televisão como trampolim para uma "promoção" e não teve sucesso. Para minimizar as chances de erro, nada como contar com a experiência de um diretor experiente: Vincent Minnelli já havia sido indicado ao Oscar pelo musical "Sinfonia de Paris", estrelado por Gene Kelly em 1951, e tinha prestígio mais que suficiente para emprestar uma aura de seriedade ao projeto - mesmo se tratando de uma comédia rasgada, bem mais explicita do que a sofisticação de seus trabalhos anteriores. Com um diretor capaz de compreender o estilo já consagrado de Ball e tirar o máximo proveito dele, Minnelli mostrou-se uma escolha muito apropriada. Apesar de não ter imprimir no filme suas características mais marcantes (leia-se cenários mirabolantes e números musicais pomposos), o cineasta foi capaz de controlar qualquer tipo de excesso no humor pastelão de Ball e dotar a produção de um ritmo mais apropriado ao cinema que à televisão. Poderia-se dizer que, experiente como era, Minnelli mesclar o senso de humor da dupla à narrativa mais ambiciosa exigida pelo cinema. O resultado é um filme redondinho, com sequências engraçadíssimas valorizadas pelo talento incomum de Ball para fazer rir sem demonstrar muito esforço para isso.
Quando o filme começa, Tacy (Lucille Ball) e Nicky Collini (Desi Arnaz) estão prestes a se casar. Usando de seu poder de convencimento, ela consegue fazer com que o noivo aceite sua ideia de comprar um trailer ao invés de alugar um apartamento ou casa. Seus argumentos giram em torno da liberdade de escolher viver onde quiserem e da economia que farão sem precisar gastar dinheiro em uma moradia convencional. Logo depois do casamento, já de posse de um trailer maior do que o primeiramente imaginado, o casal parte para sua lua-de-mel - e não demoram a perceber que talvez a ideia de um lar motorizado possa não ter sido tão genial. Passando por diversas situações vexaminosas e (e até perigosas), Tacy e Nicky precisam de muito pensamento positivo para chegarem vivos ao final de sua aventura tão pouco ortodoxa. E um dos principais problemas é descoberto por Tacy justamente onde ela aparentemente se sairia melhor: como fazer um jantar quando a cozinha não para quieta em momento algum?
"Lua de mel agitada" é um filme sem contra-indicações. É bobo? Muitas vezes, mas com um senso de timing perfeito, capaz de arrancar gargalhadas até do mais sério espectador. É datado? De forma alguma, já que o estilo de humor do casal é atemporal. É capaz de mudar a história do cinema? Claro que não, mas isso é ambição de diretores e elencos mais sérios e compenetrados a discutir temas relevantes. É cansativo? De jeito algum: o ritmo imposto pela direção, pelo roteiro e pelos atores impede que a plateia sofra de qualquer tipo de impaciência. E por fim, por que não há mais filmes com Lucille e Desi? Simples: seu segundo filme na MGM, "Eu e meu anjo", de 1956, sofreu ataques inclementes da crítica e foi um fracasso de bilheteria, interrompendo o contrato antes de uma terceira tentativa. Para sorte do público, existe "Lua de mel agitada" para salvar um fim de semana chuvoso.
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