A imagem é forte o bastante para ser reconhecida até mesmo pelos fãs de cinema que nunca tiveram a oportunidade de assistir ao filme que lhe deu origem: o assustador Conde Orlok levanta-se, rígido e cadavérico, com seus afiados dentes de coelho, orelhas de morcego, careca e dotado de gigantescas unhas, do caixão onde descansa durante os dias. A cena, envolta por uma atmosfera claustrofóbica e um tom de pesadelo, já faz parte do inconsciente coletivo há pelo menos nove décadas, mas mantém-se como um dos mais brilhantes ícones visuais jamais criados pela sétima arte. Criado em conjunto pelo cineasta F.W. Murnau e pelo ator Max Schreck, o Conde Orlok é o protagonista de “Nosferatu, uma sinfonia do horror”, um filme lançado em 1922 e que, ao mesmo tempo, fez a glória de seu estúdio, o Prana, e o levou à falência, em mais uma prova inconteste de que a ironia e o cinema caminham de mãos dadas.
Não que o filme tenha sido um
fracasso de bilheteria ou algo parecido, muito pelo contrário. Louvado pela
crítica e abraçado pelo público, ele acabou vitimado por outro inimigo, muito
mais perigoso do que estacas e a luz do sol: a Justiça. Explica-se: a intenção
de Murnau era filmar uma adaptação do romance “Drácula”, escrita pelo irlandês
Bram Stoker, publicado em 1897, mas teve seus planos barrados pela família do
escritor, que não lhe deu permissão para levar o projeto adiante. Não se dando
por vencido, ele resolveu, então, fazer algumas alterações na trama central
(não muitas e bem mal disfarçadas) e vender seu filme como uma história
diferente. Não colou. Logicamente todo mundo percebeu que o que estava na tela
era a tradução em imagens do livro de Stoker. Resultado: um processo por
violação de direitos autorais e uma ordem judicial de destruição de todas as
cópias da obra. O estúdio não conseguiu lidar com a dívida e decretou falência,
mas para a sorte de milhares de cinéfilos o filme não desapareceu como
desejavam seus detratores. Muito pelo contrário: com o passar dos anos,
“Nosferatu” acabou por tornar-se um dos mais adorados e imitados produtos do
gênero, tendo merecido inclusive um desnecessário remake dirigido por Werner
Herzog em 1978 – estrelado por Klaus Kinski e Isabelle Adjani, que reaproveita
muitas de suas ideias visuais – e uma interessante homenagem pelo diretor E. Elias Merhige e pelo roteirista Steven Katz
chamada “A sombra do vampiro” – que insinuava, em tom de humor, que o ator Max
Schreck era um sanguessuga de verdade contratado por Murnau para dar maior
veracidade às cenas imaginadas por ele.
Logicamente a hipótese levantada
pela brincadeira de Merhige e Katz não passa de hipótese, mas não é difícil imaginar de
onde ele tirou tal ideia: realmente a atuação de Schreck é notável, transmitindo
uma sensação de repulsa e putrefação como poucas vezes o cinema foi capaz –
especialmente sem contar com os recursos modernos. Contando com a ajuda
providencial da fotografia de Fritz Arno Wagner, que transforma cada rua em uma
armadilha e cada montanha em uma representação do mal, Murnau construiu uma
narrativa de ritmo ágil e tensão crescente, que oferece ao espectador um
espetáculo que mistura com precisão um clima gótico e altas doses do
expressionismo alemão, movimento do qual o cineasta era um dos maiores expoentes.
Sustentado por uma trama forte e personagens marcantes (ainda que criados por
Stoker e não pelo roteirista Henrik Galeen), Murnau extrai o máximo efeito de
seus jogos de luz e sombras, fazendo deles personagens cruciais para a série de
grandes momentos do filme: da primeira aparição do Conde, quase escondido em um
túnel que leva à sua propriedade até seu célebre desfecho (que foge do final do
livro em que foi baseado), “Nosferatu” é uma antologia de cenas visualmente bem
arquitetadas e realizadas por um diretor inteligente e de grande talento.
Cinco anos depois de assinar “Nosferatu”, F.W. (de Friedrich Wilhelm) Murnau chegou à Hollywood, amparado pelo sucesso de outros filmes, como “A última gargalhada” (24) e as adaptações (dessa vez autorizadas) de “Tartufo”, de Moliére (25) e “Fausto”, de Goethe (26). Seu primeiro filme fora da Alemanha, “Aurora” (27), foi produzido para um grande estúdio, a Fox, e levou 3 Oscar na primeira cerimônia de entrega das estatuetas: um prêmio especial de produção artística e única (!!), atriz (Janet Gaynor, também premiada por outros dois filmes) e fotografia (o que comprova seu talento especial em imprimir um visual único à sua filmografia – outra prova disso seria a vitória, na mesma categoria, de seu último filme, “Tabu” (31), que estreou uma semana depois de sua morte em um acidente de carro).
Mas, se existe um filme que resume à
perfeição todo o perfeccionismo de Murnau em contar uma história de forma
visual e cinética, esse filme é, sem dúvida, “Nosferatu”. A história do
famigerado Conde que abandona seu castelo nos Montes Cárpatos em busca do
pescoço da pura Ellen (Greta Schroder) – esposa de seu corretor imobiliário,
Hutter (Gustav von Wangenheim) – é narrada sem privar o espectador de momentos
máximos na história do cinema (e de quebra mantém, quase um século depois de
seu lançamento, uma atmosfera tétrica e desconfortável). Uma obra-prima à qual
se deve muito.