FLORES RARAS (Flores raras, 2013, LC Barreto Productions/Globo Filmes, 118min) Direção: Bruno Barreto. Roteiro: Matthew Chapman, Julie Sayres, livro "Flores raras e banalíssimas", de Carmem L. Oliveira, roteiro de Carolina Kotscho. Fotografia: Mauro Pinheiro Jr.. Montagem: Letícia Giffoni. Música: Marcelo Zarvos. Figurino: Marcelo Pies. Direção de arte/cenários: José Joaquim Salles/Clara Rocha. Produção executiva: Rômulo Marinho Jr., Penny Wolf. Produção: Lucy Barreto, Paula Barreto. Elenco: Glória Pires, Miranda Otto, Tracy Middendorf, Marcelo Airoldi, Treat Williams. Estreia: 09/02/2013 (Festival de Berlim)
Em dezembro de 1951, em meio a um bloqueio criativo, a poetista norte-americana Elizabeth Bishop aportou no Brasil, disposta a uma curta temporada para rever uma amiga de faculdade. Seus planos de ficar pouco tempo no país foram alterados graças a uma internação hospitalar - era alérgica a castanhas de caju - e à paixão avassaladora justamente pela companheira de sua colega. Lota Macedo de Soares, uma bem-sucedida arquiteta, encantada pela fragilidade de Bishop - que contrastava com sua personalidade forte e decidida -, não pensou duas vezes antes de assumir sua nova parceira. Começava então uma história de amor que atravessaria, aos trancos e barrancos, mais de uma década, e testemunharia momentos de dor e glória nas trajetórias de ambas. Embora tenham vivido um período auspicioso profissionalmente - Bishop ganhou um Pulitzer e Lota criou o ambicioso projeto do Aterro do Flamengo -, nem tudo era felicidade nos bastidores. O alcoolismo da escritora e a tendência da arquiteta em dominar a relação (além de problemas relacionados a seu trabalho no Rio) transformaram o idílio dos primeiros anos em uma constante guerra de nervos - e levaram o relacionamento a um final doloroso. Contada no livro "Flores raras e banalíssimas", de Carmem L. de Oliveira, a história de Bishop e Lota serviu como complemento ideal à redescoberta da poetisa pelo público brasileiro, na década de 1990 - e desde então lutou para ser adaptada para o cinema.
O preconceito a respeito do tema "delicado" do projeto afastou possíveis financiadores de "Flores raras", e o processo de realização do filme - já normalmente ampliado quando se trata de produções brasileiras - estendeu-se por quase uma década. Nem o compromisso de Bruno Barreto - diretor de um dos maiores sucessos do cinema nacional, "Dona Flor e seus dois maridos", de 1976 - em assumir a direção e o interesse de Glória Pires em interpretar Lota foram argumentos fortes o bastante para facilitar a batalha das produtoras Lucy (mãe de Bruno) e Paula Barreto. Nesses oito anos entre o lançamento do livro e a estreia do filme, pode-se dizer que o projeto amadureceu. Quando chegou ao Festival de Berlim de 2013, "Flores raras" já tinha a elegância e a delicadeza que a história pedia, somadas à experiência de Bruno, dono de uma respeitável carreira internacional, iniciada no final dos anos 1980. Lançado para o público brasileiro em agosto do mesmo ano de sua apresentação na Alemanha, o filme agradou mais aos críticos do que à plateia média, mais afeita a comédias despretensiosas do que a romances homossexuais de mulheres na meia-idade. No entanto, apesar da relação entre Lota e Bishop ser o centro da trama, "Flores raras" caminha na direção oposta a histórias de amor lacrimosas quando opta - acertadamente - em explorar também o mundo que as rodeia, repleto de armadilhas profissionais que as afastam fisicamente e, ao mesmo tempo, as aproximam emocionalmente.
Foi durante o período em que Lota e Bishop estiveram juntas, por exemplo, que Carlos Lacerda foi eleito o primeiro governador do então Estado da Guanabara (em 1961) e deu à Lota a missão (absurdamente absorvente) de projetar o Aterro do Flamengo, fato que obrigou as duas mulheres a deixarem o idílio de Petrópolis pela agitação do Rio de Janeiro. Bishop não era fã da cidade, e enquanto Lota trabalhava quase sem folga, a poeta saía a beber em botequins - e ser, quase sempre, carregada para casa. Antes disso, em 1956, foi premiada com o Pulitzer, uma honra que deve a seus momentos no Brasil, quando finalmente retornou à criação de suas obras - e ganhou de presente da companheira um estúdio com vista para o verde de sua propriedade. Sua relação com o Brasil era dúbia: ao mesmo tempo em que amava o espírito nacional, não deixava de perceber as mazelas da sociedade, o que, logicamente, não a tornava exatamente popular entre os nativos. Seu romance com Lota também tinha altos e baixos: planejavam longas viagens que nunca fizeram e frequentemente se desentendiam, principalmente por causa dos ciúmes da arquiteta. Em uma dessas crises, a escritora aceitou o convite para lecionar por uma temporada nos EUA, uma forma de afastar-se terapeuticamente de Lota, severamente deprimida pelos problemas de seu trabalho no Aterro. Era o começo do fim. E elas certamente perceberam isso, apesar das tentativas de ignorarem tal destino.
O filme de Bruno Barreto é, sem dúvida, um recorte caprichado e bastante abrangente do relacionamento entre Lota e Bishop. Boa parte dos acontecimentos mais importantes de seu período como amantes está retratado no roteiro de Matthew Chapman e Julie Sayres, adaptado tanto do livro de Carmem L. de Oliveira quanto de um primeiro tratamento escrito por Carolina Kotscho, e a direção de Barreto é contemplativa, sem chamar a atenção para si. O que realmente dá suporte a "Flores raras" - assim como dava à relação entre as protagonistas - é a combinação entre a força de Glória Pires (premiada como melhor atriz no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, de onde a produção saiu também com as estatuetas de direção, figurino e direção de arte) e a fragilidade física de Miranda Otto, que empresta à Elizabeth Shop um misto de elegância e inteligência. A atriz australiana (conhecida por sua participação na trilogia "O Senhor dos Anéis" e na série de TV "Homeland") é o contraponto ideal ao desempenho (como sempre) sólido de Glória, que não permite que a barreira do idioma atrapalhe uma bela interpretação. Se "Flores raras" fosse um filme medíocre, somente a dupla de atrizes centrais já bastaria para que fosse altamente recomendável. Como absolutamente não o é, o encontro entre dois talentos à prova de qualquer crítica o torna imperdível para qualquer fã de bom cinema.
Filmes, filmes e mais filmes. De todos os gêneros, países, épocas e níveis de qualidade. Afinal, a sétima arte não tem esse nome à toa.
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FILHOS DA GUERRA
FILHOS DA GUERRA (Europa, Europa, 1990, Bayerischer Rundfunk/Filmforderungsantalt, 112min) Direção: Agnieszka Holland. Roteiro: Agnieszka Holland, livro de Salomon Perel. Fotografia: Jacek Petrycki. Montagem: Ewa Smal, Isabelle Lorente. Música: Zbigniew Priesner. Figurino: Wieslawa Starska, Malgorzata Stefaniek. Direção de arte/cenários: Allan Starski/Ewa Braun, Anna Kowarska. Produção: Artur Brauner, Margaret Ménégoz. Elenco: Marco Hofschneider, Julie Delpy, Hanns Zischler, André Wilms, Ashley Wanninger. Estreia: 14/11/90
Indicado ao Oscar de Roteiro Adaptado
Vencedor do Golden Globe de Melhor Filme Estrangeiro
Em algumas ocasiões, por mais qualidades que um filme tenha, são situações alheias a ela que acabam por ficar marcadas em sua trajetória. É o caso de "Filhos da guerra", uma produção alemã dirigida pela polonesa Agniezska Holland que enfrentou o descaso das autoridades germânicas em seu lançamento e acabou não apenas por tornar-se uma das maiores bilheterias de filmes internacionais nos EUA, mas também por arrebatar uma série de prêmios da crítica - incluindo o Golden Globe de melhor filme estrangeiro e uma indicação ao Oscar de roteiro adaptado. Elogiado por onde passou e com respeitáveis 3,5 milhões de dólares de renda no mercado norte-americano - normalmente hermético a filmes legendados -, "Filhos da guerra" volta seu olhar a uma inacreditável história real ocorrida em meio à II Guerra Mundial, e trata, com sensibilidade, a capacidade humana de adaptar-se a situações adversas quando confrontado com a possibilidade da morte.
Com base no livro autobiográfico de Salomon Perel, o roteiro, escrito pela diretora, atravessa o período entre 1938 e 1945, quando seu protagonista, ainda adolescente, se vê diante dos horrores da II Guerra Mundial. Filho de judeus poloneses, ele e seu irmão mais velho saem da Alemanha temendo os horrores do antissemitismo, mas acabam separados no caminho rumo à Rússia. Sozinho e torturado pelas lembranças da invasão de seu apartamento, Salomon é internado em um orfanato comunista, onde torna-se parte de uma doutrina que acredita que "religião é o ópio do povo". Em seguida, confundido com um nazista, aceita se passar por ariano e torna-se parte do exército, como intérprete. Sempre à beira do pânico de ser descoberto, Salomon esconde sua circuncisão a todo preço - mesmo quando é assediado por um superior e se apaixona por Leni (Julie Delpy), uma jovem alemã com quem ele evita intimidades sexuais.
Vencedor de melhor filme estrangeiro pelos críticos de Kansas, Los Angeles e Nova York e pelo National Board of Review (que também o incluiu em sua lista dos de melhores do ano), "Filhos da guerra" segue o caminho inverso da maioria dos filmes do gênero, ao concentrar-se mais nos bastidores do conflito entre judeus e nazistas do que às batalhas em si. Mesmo as cenas mais violentas acontecem sob o ponto de vista do protagonista, interpretado pelo competente (mas nunca excelente) Marco Hofschneider. O foco do roteiro de Holland são as relações de Salomon com as situações que se apresentam e a forma com que ele lida com elas: ao moldar-se a cada uma, o personagem vai perdendo a própria identidade, ainda que ela nunca seja esquecida. O filme se utiliza da circuncisão do jovem como ponto de retorno a suas origens, como algo que ele não consegue esconder sem muita dor e sofrimento - e que pode afastá-lo de uma vida plena e sincera. Suas tentativas de sobreviver à perseguição aos judeus são cercadas de paranoia, desconfiança e uma constante sensação de não pertencimento, tudo conduzido com extrema sensibilidade pela cineasta que se tornaria famosa pela direção de uma nova versão do clássico "O jardim secreto" (lançada em 1993) e pelo irregular "Eclipse de uma paixão" (1995), estrelado pelo então ascendente Leonardo DiCaprio.
É fácil compreender o sucesso de "Filhos da guerra", tanto em termos comerciais quanto de crítica. Além do assunto ser caro às plateias, a direção de Agnieszka Holland insiste em um registro universal, questionando até que ponto uma pessoa é capaz de ir para garantir a própria sobrevivência. Ainda que soe um tanto superficial em vários momentos - opção da diretora em deixar a violência apenas como pano de fundo -, o filme conquista principalmente devido à atuação de Hofschneider, cujo carisma compensa a inexperiência. Seu olhar desesperado quando posto diante de situações diz muito mais do que diálogos longos, e Holland explora ao máximo a sutileza, como que a sublinhar a delicadeza ainda viva dentro do rapaz mesmo depois de tanta desgraça. Seu final abrupto pode incomodar, mas no balanço final, "Filhos da guerra" é um filme de suma importância, apesar das palavras do governo alemão, que recusou-se a inscrevê-lo para uma disputa no Oscar porque "não representava mais a nação germânica". Haja visto o enorme êxito do filme junto aos críticos - e ao extremo interesse da Academia em seu fundo histórico - pode-se apenas lamentar a visão de pouco alcance das autoridades locais, que traduziu a pouca bilheteria do filme na Alemanha em rejeição absoluta. Sorte das plateias que desafiaram sua percepção e encontraram um filme delicado e emocionante.
Indicado ao Oscar de Roteiro Adaptado
Vencedor do Golden Globe de Melhor Filme Estrangeiro
Em algumas ocasiões, por mais qualidades que um filme tenha, são situações alheias a ela que acabam por ficar marcadas em sua trajetória. É o caso de "Filhos da guerra", uma produção alemã dirigida pela polonesa Agniezska Holland que enfrentou o descaso das autoridades germânicas em seu lançamento e acabou não apenas por tornar-se uma das maiores bilheterias de filmes internacionais nos EUA, mas também por arrebatar uma série de prêmios da crítica - incluindo o Golden Globe de melhor filme estrangeiro e uma indicação ao Oscar de roteiro adaptado. Elogiado por onde passou e com respeitáveis 3,5 milhões de dólares de renda no mercado norte-americano - normalmente hermético a filmes legendados -, "Filhos da guerra" volta seu olhar a uma inacreditável história real ocorrida em meio à II Guerra Mundial, e trata, com sensibilidade, a capacidade humana de adaptar-se a situações adversas quando confrontado com a possibilidade da morte.
Com base no livro autobiográfico de Salomon Perel, o roteiro, escrito pela diretora, atravessa o período entre 1938 e 1945, quando seu protagonista, ainda adolescente, se vê diante dos horrores da II Guerra Mundial. Filho de judeus poloneses, ele e seu irmão mais velho saem da Alemanha temendo os horrores do antissemitismo, mas acabam separados no caminho rumo à Rússia. Sozinho e torturado pelas lembranças da invasão de seu apartamento, Salomon é internado em um orfanato comunista, onde torna-se parte de uma doutrina que acredita que "religião é o ópio do povo". Em seguida, confundido com um nazista, aceita se passar por ariano e torna-se parte do exército, como intérprete. Sempre à beira do pânico de ser descoberto, Salomon esconde sua circuncisão a todo preço - mesmo quando é assediado por um superior e se apaixona por Leni (Julie Delpy), uma jovem alemã com quem ele evita intimidades sexuais.
Vencedor de melhor filme estrangeiro pelos críticos de Kansas, Los Angeles e Nova York e pelo National Board of Review (que também o incluiu em sua lista dos de melhores do ano), "Filhos da guerra" segue o caminho inverso da maioria dos filmes do gênero, ao concentrar-se mais nos bastidores do conflito entre judeus e nazistas do que às batalhas em si. Mesmo as cenas mais violentas acontecem sob o ponto de vista do protagonista, interpretado pelo competente (mas nunca excelente) Marco Hofschneider. O foco do roteiro de Holland são as relações de Salomon com as situações que se apresentam e a forma com que ele lida com elas: ao moldar-se a cada uma, o personagem vai perdendo a própria identidade, ainda que ela nunca seja esquecida. O filme se utiliza da circuncisão do jovem como ponto de retorno a suas origens, como algo que ele não consegue esconder sem muita dor e sofrimento - e que pode afastá-lo de uma vida plena e sincera. Suas tentativas de sobreviver à perseguição aos judeus são cercadas de paranoia, desconfiança e uma constante sensação de não pertencimento, tudo conduzido com extrema sensibilidade pela cineasta que se tornaria famosa pela direção de uma nova versão do clássico "O jardim secreto" (lançada em 1993) e pelo irregular "Eclipse de uma paixão" (1995), estrelado pelo então ascendente Leonardo DiCaprio.
É fácil compreender o sucesso de "Filhos da guerra", tanto em termos comerciais quanto de crítica. Além do assunto ser caro às plateias, a direção de Agnieszka Holland insiste em um registro universal, questionando até que ponto uma pessoa é capaz de ir para garantir a própria sobrevivência. Ainda que soe um tanto superficial em vários momentos - opção da diretora em deixar a violência apenas como pano de fundo -, o filme conquista principalmente devido à atuação de Hofschneider, cujo carisma compensa a inexperiência. Seu olhar desesperado quando posto diante de situações diz muito mais do que diálogos longos, e Holland explora ao máximo a sutileza, como que a sublinhar a delicadeza ainda viva dentro do rapaz mesmo depois de tanta desgraça. Seu final abrupto pode incomodar, mas no balanço final, "Filhos da guerra" é um filme de suma importância, apesar das palavras do governo alemão, que recusou-se a inscrevê-lo para uma disputa no Oscar porque "não representava mais a nação germânica". Haja visto o enorme êxito do filme junto aos críticos - e ao extremo interesse da Academia em seu fundo histórico - pode-se apenas lamentar a visão de pouco alcance das autoridades locais, que traduziu a pouca bilheteria do filme na Alemanha em rejeição absoluta. Sorte das plateias que desafiaram sua percepção e encontraram um filme delicado e emocionante.
terça-feira
BRINQUEDO ASSASSINO
BRINQUEDO ASSASSINO (Child's play, 1988, United Artists, 87min) Direção: Tom Holland. Roteiro: Don Mancini, Tom Holland, John Lafia, estória de Don Mancini. Fotografia: Bill Butler. Montagem: Roy E. Peterson, Edward Warschilka. Música: Joe Renzetti. Figurino: April Ferry. Direção de arte/cenários: Daniel A. Lomino/Cloudia. Produção executiva: Barrie M. Osborne. Produção: David Kirschner. Elenco: Chris Sarandon, Catherine Hicks, Alex Vincent, Brad Dourif, Dinah Manoff. Estreia: 09/11/88
Antes de tornar-se vítima de uma série sofrível de filmes que apelavam para o humor trash, o boneco Chucky teve seus momentos de glória: sua estreia nas telas, "Brinquedo assassino", que custou menos de dez milhões de dólares, rendeu quatro vezes isso pelo mundo e o transformou, de imediato, um ícone do cinema de terror. Concebido como uma crítica ao consumismo infantil e ao marketing direcionado às crianças, o filme logo transformou-se em um violento conto sobrenatural, protagonizado por um boneco homicida e seu dono, um menino solitário que precisa provar aos adultos que sua imaginação infantil não chegaria ao ponto de inventar uma história tão bizarra - enquanto corpos vão sendo acumulados pelo caminho. Dirigido por Tom Holland, experiente cineasta que já havia conquistado os fãs do gênero com "A hora do espanto" (1985), "Brinquedo assassino" pode não ter chegado às telas da forma como inicialmente imaginado - mais um suspense psicológico do que um filme de terror despretensioso -, mas conquistou o público justamente por buscar o susto mais simples ao invés da sofisticação dramática. Não à toa, Chucky já faz parte do panteão reservado a nomes célebres como Leatherface, Freddy Krueger e Jason Vorhees.
A trama de "Brinquedo assassino" é simples como convém: durante uma perseguição policial, o homicida Charles Lee Ray - assim batizado em "homenagem" a criminosos famosos, como Charles Manson, Lee Harvey Oswald e James Earl Ray - é atingido pelo detetive Mike Norris (Chris Sarandon) e, antes de morrer, apela a um ritual de magia e passa sua alma para um boneco extremamente popular entre as crianças, o Good Guy. Esse mesmo brinquedo, chamado Chucky, acaba parando nas mãos do menino Andy (Alex Vincent), que nem de longe imagina que seu novo amiguinho é capaz dos crimes mais cruéis em sua tentativa de tomar seu corpo. Quando finalmente percebe que Chucky não é tão inocente quanto tenta parecer para os adultos, Andy descobre que a verdade dificilmente será aceita pela polícia e até por sua mãe, Karen (Catherine Hicks): sua missão passa a ser, então, impedir novos assassinatos e destruir seu presente de aniversário, cada vez mais independente e violento.
É claro que a ideia de juntar brinquedos homicidas e crianças inocentes não poderia passar sem levantar polêmicas junto ao público mais conservador dos EUA: piquetes em frente aos estúdios da MGM exigiam que o filme fosse cancelado, para impedir que incentivasse a violência infantil. Logicamente suas reivindicações não foram acatadas e o filme estreou mesmo envolvido em debates a respeito do assunto. Não foi de nenhuma ajuda o fato de que, algum tempo depois do lançamento do filme, uma gangue juvenil estuprou e matou uma adolescente de 16 anos de idade enquanto seu líder declamava frases do roteiro. Tal controvérsia - que na verdade surge sempre que alguma produção flerta com a violência e é escolhida como bode expiatório - não impediu que "Brinquedo assassino" se tornasse um sucesso de bilheteria e até de crítica: o respeitado Roger Ebert, que não era um apreciador de produções do gênero, foi bastante generoso em sua avaliação e ofereceu um inesperado prestígio ao trabalho de Holland. É de imaginar se o conceito original criado pelo roteirista Don Mancini - que, segundo ele mesmo, usou apenas 50% do que havia imaginado - teria melhor recepção: na versão original, o sangue de Andy e Chucky se misturava e o boneco mataria todas as pessoas de quem o menino porventura pudesse desgostar por alguma razão.
De uma forma ou outra, "Brinquedo assassino" encontrou seu lugar junto aos admiradores dos filmes de terror, um status que nem mesmo as duas continuações diretas - lançadas em 1990 e 1991 - e a série de produções que apostavam no trash e no humor sombrio conseguiram. Transformando o sinistro boneco em praticamente uma piada, "A noiva de Chucky" (1998), "O filho de Chucky" (2004), "A maldição de Chucky" (2013) e "O culto de Chucky" (2017) levaram o personagem a um caminho praticamente sem volta, que nem mesmo um remake do original, lançado sem muito sucesso em 2019, conseguiu reverter. Mesmo que depois de trinta anos os sustos proporcionados pelo primeiro filme soem datados e mais risíveis do que assustadores, nada justifica a humilhação a que o pequeno e sádico boneco foi obrigado a passar. O melhor mesmo é ficar com o original apesar de seus defeitinhos e curtir uma boa e nostálgica sessão de terror.
Antes de tornar-se vítima de uma série sofrível de filmes que apelavam para o humor trash, o boneco Chucky teve seus momentos de glória: sua estreia nas telas, "Brinquedo assassino", que custou menos de dez milhões de dólares, rendeu quatro vezes isso pelo mundo e o transformou, de imediato, um ícone do cinema de terror. Concebido como uma crítica ao consumismo infantil e ao marketing direcionado às crianças, o filme logo transformou-se em um violento conto sobrenatural, protagonizado por um boneco homicida e seu dono, um menino solitário que precisa provar aos adultos que sua imaginação infantil não chegaria ao ponto de inventar uma história tão bizarra - enquanto corpos vão sendo acumulados pelo caminho. Dirigido por Tom Holland, experiente cineasta que já havia conquistado os fãs do gênero com "A hora do espanto" (1985), "Brinquedo assassino" pode não ter chegado às telas da forma como inicialmente imaginado - mais um suspense psicológico do que um filme de terror despretensioso -, mas conquistou o público justamente por buscar o susto mais simples ao invés da sofisticação dramática. Não à toa, Chucky já faz parte do panteão reservado a nomes célebres como Leatherface, Freddy Krueger e Jason Vorhees.
A trama de "Brinquedo assassino" é simples como convém: durante uma perseguição policial, o homicida Charles Lee Ray - assim batizado em "homenagem" a criminosos famosos, como Charles Manson, Lee Harvey Oswald e James Earl Ray - é atingido pelo detetive Mike Norris (Chris Sarandon) e, antes de morrer, apela a um ritual de magia e passa sua alma para um boneco extremamente popular entre as crianças, o Good Guy. Esse mesmo brinquedo, chamado Chucky, acaba parando nas mãos do menino Andy (Alex Vincent), que nem de longe imagina que seu novo amiguinho é capaz dos crimes mais cruéis em sua tentativa de tomar seu corpo. Quando finalmente percebe que Chucky não é tão inocente quanto tenta parecer para os adultos, Andy descobre que a verdade dificilmente será aceita pela polícia e até por sua mãe, Karen (Catherine Hicks): sua missão passa a ser, então, impedir novos assassinatos e destruir seu presente de aniversário, cada vez mais independente e violento.
É claro que a ideia de juntar brinquedos homicidas e crianças inocentes não poderia passar sem levantar polêmicas junto ao público mais conservador dos EUA: piquetes em frente aos estúdios da MGM exigiam que o filme fosse cancelado, para impedir que incentivasse a violência infantil. Logicamente suas reivindicações não foram acatadas e o filme estreou mesmo envolvido em debates a respeito do assunto. Não foi de nenhuma ajuda o fato de que, algum tempo depois do lançamento do filme, uma gangue juvenil estuprou e matou uma adolescente de 16 anos de idade enquanto seu líder declamava frases do roteiro. Tal controvérsia - que na verdade surge sempre que alguma produção flerta com a violência e é escolhida como bode expiatório - não impediu que "Brinquedo assassino" se tornasse um sucesso de bilheteria e até de crítica: o respeitado Roger Ebert, que não era um apreciador de produções do gênero, foi bastante generoso em sua avaliação e ofereceu um inesperado prestígio ao trabalho de Holland. É de imaginar se o conceito original criado pelo roteirista Don Mancini - que, segundo ele mesmo, usou apenas 50% do que havia imaginado - teria melhor recepção: na versão original, o sangue de Andy e Chucky se misturava e o boneco mataria todas as pessoas de quem o menino porventura pudesse desgostar por alguma razão.
De uma forma ou outra, "Brinquedo assassino" encontrou seu lugar junto aos admiradores dos filmes de terror, um status que nem mesmo as duas continuações diretas - lançadas em 1990 e 1991 - e a série de produções que apostavam no trash e no humor sombrio conseguiram. Transformando o sinistro boneco em praticamente uma piada, "A noiva de Chucky" (1998), "O filho de Chucky" (2004), "A maldição de Chucky" (2013) e "O culto de Chucky" (2017) levaram o personagem a um caminho praticamente sem volta, que nem mesmo um remake do original, lançado sem muito sucesso em 2019, conseguiu reverter. Mesmo que depois de trinta anos os sustos proporcionados pelo primeiro filme soem datados e mais risíveis do que assustadores, nada justifica a humilhação a que o pequeno e sádico boneco foi obrigado a passar. O melhor mesmo é ficar com o original apesar de seus defeitinhos e curtir uma boa e nostálgica sessão de terror.
segunda-feira
GREMLINS
GREMLINS (Gremlins, 1984, Warner Bros, 106min) Direção: Joe Dante. Roteiro: Chris Columbus. Fotografia: John Hora. Montagem: Tina Hirsch. Música: Jerry Goldsmith. Direção de arte/cenários: James H. Spencer/Jackie Carr. Produção executiva: Steven Spielberg, Kathleen Kennedy, Frank Marshall. Produção: Michel Finnell. Elenco: Zach Galligan, Phoebe Cates, Corey Feldman, Hoyt Axon, Frances Lee McCain, Polly Holliday. Estreia: 08/6/84
No verão norte-americano de 1984, os cinemas dos EUA foram dominados por animaizinhos estranhos, de origem misteriosa e que, caso não cumpridas as regras para seu bem-estar, se transformavam - de dóceis e encantadores - em criaturas vorazes, cruéis e debochadas. Eram os gremlins, protagonistas de um dos maiores sucessos de bilheteria da década de 1980. Dirigido por Joe Dante, escrito por Chris Columbus e produzido por Steven Spielberg no auge de sua imaginação criativa, "Gremlins" acabou por se tornar um ícone de sua época, um misto de comédia e horror que pegou todo mundo de surpresa com seu senso de humor macabro. Quarta maior bilheteria de um ano que também apresentou ao público os sucessos "Os Caça-fantamas" e "Indiana Jones e o templo da perdição" (este último dirigido pelo mesmo Spielberg que foi seu produtor executivo), o filme de Dante também atingiu, com o passar do tempo, o status de cult por excelência, um filme amado por diversas gerações e que, a despeito de seu jeitão trash, ainda mantém, mesmo depois de mais de trinta anos de idade, o frescor e a originalidade de sua estreia.
A ideia inicial era de fazer "Gremlins" um filme de horror, mas quando o roteiro de Chris Columbus - ainda sem os dois filmes de "Esqueceram de mim" no currículo - chegou às mãos de Steven Spielberg, o já consagrado cineasta achou que era melhor transformar a trama em uma produção dirigida a um público mais jovem. Depois de algumas importantes alterações - inclusive com a exclusão de cenas mais violentas -, Spielberg encontrou em Joe Dante o diretor ideal para a empreitada: conhecido como um fiel discípulo de Roger Corman e alguém capaz de trabalhar com orçamentos apertados, Dante havia chamado a atenção de Spielberg com "Grito de horror" (1981) e parecia a escolha mais apropria - antes disso, até mesmo Tim Burton, ainda sem nenhum longa na carreira havia chamado a atenção do produtor, sendo deixado de lado justamente por sua inexperiência. Com Dante no barco, junto com o roteiro de Columbus e a supervisão atenta de Spielberg, "Gremlins" começou a tomar forma. Se na fase de testes de elenco nomes como os de Emilio Estevez e Judd Nelson foram recusados para o papel que ficou com Zach Galligan, o processo de filmagens obrigou a decisões criativas que modificaram razoavelmente o script de Columbus. Foi por decisão de Spielberg, por exemplo, a divisão entre o bem e o mal, representada pelo terno Gizmo e seus agressivos filhotes (em especial o líder, Stripe) - o criador de "ET: O extraterrestre" (1982) sabia que o público precisaria se identificar com algum dos bichinhos. E a regra de não expor os personagens-título à luz surgiu de uma prosaica falta de confiança de Dante (e da Amblin Entertainment) nos efeitos especiais da época - algo que o próprio Spielberg havia experimentado na pele, durante as filmagens de "Tubarão" (1975).
Quarta maior bilheteria de 1984, "Gremlins" se passa às vésperas do Natal, quando o jovem Billy (Zach Galligan) ganha, de presente do pai, um encantador e desconhecido animalzinho encontrado em posse de um chinês idoso e hesitante. O bichinho - um mogwai, segundo o experiente oriental - é capaz de conquistar o coração até do mais empedernido ser humano, mas, para manter-se dessa forma, seu dono precisa cuidar de três regras importantíssimas: eles não podem ser expostos à luz, não podem ser molhados e muito menos comer depois da meia-noite. Não é preciso ser especialista em cinema para imaginar que as normas não serão cumpridas e que o doce Gizmo será testemunha da proliferação de seus irmãos anarquistas e cruéis. Em bando e vorazes, os gremlins tomam conta da cidade e caberá a Billy e sua paixonite, Kate (Phoebe Cates), resolver a bagunça generalizada. Mesclando um humor sinistro e momentos de suspense, Joe Dante conduz a plateia a uma montanha-russa constante - e que poderia ter sido ainda maior caso a versão original, de 160 minutos, tivesse sido aprovada pela Warner. O estúdio, aliás, teve certos problemas com os órgãos de censura dos EUA, que consideravam o filme pouco palatável para plateias menores de 13 anos: junto com "Indiana Jones e o templo da perdição", o filme de Joe Dante praticamente obrigou a MPAA (Motion Pictures Association of America) a criar uma nova classificação (PG-13), que permitia a entrada de menores de 13 anos desde que acompanhados dos pais.
Divertido e feito com o simples objetivo de entreter, "Gremlins" deu frutos: não apenas teve uma segunda parte, lançada em 1990 e novamente dirigida por Joe Dante, como aproximou dois cérebros criativos. Encantado com o trabalho de Chris Columbus no roteiro do filme, Steven Spielberg esteve envolvido em dois de seus futuros projetos, "O enigma da pirâmide" (dirigido por Barry Levinson) e "Os Goonies" (comandado por Richard Donner), ambos lançados em 1985. Além disso, "Gremlins" - neologismo criado pelo escritor Roald Dahl em seu "Gremlin Lore" - ficou na mente daqueles que o assistiram em seu lançamento como uma diversão um tanto insana, capaz de tirar sarro de coros de Natal, "Branca de Neve e os sete anões" e o american way of life. No fundo, é uma sessão da tarde para quem não tem paciência para filmes água com açúcar.
No verão norte-americano de 1984, os cinemas dos EUA foram dominados por animaizinhos estranhos, de origem misteriosa e que, caso não cumpridas as regras para seu bem-estar, se transformavam - de dóceis e encantadores - em criaturas vorazes, cruéis e debochadas. Eram os gremlins, protagonistas de um dos maiores sucessos de bilheteria da década de 1980. Dirigido por Joe Dante, escrito por Chris Columbus e produzido por Steven Spielberg no auge de sua imaginação criativa, "Gremlins" acabou por se tornar um ícone de sua época, um misto de comédia e horror que pegou todo mundo de surpresa com seu senso de humor macabro. Quarta maior bilheteria de um ano que também apresentou ao público os sucessos "Os Caça-fantamas" e "Indiana Jones e o templo da perdição" (este último dirigido pelo mesmo Spielberg que foi seu produtor executivo), o filme de Dante também atingiu, com o passar do tempo, o status de cult por excelência, um filme amado por diversas gerações e que, a despeito de seu jeitão trash, ainda mantém, mesmo depois de mais de trinta anos de idade, o frescor e a originalidade de sua estreia.
A ideia inicial era de fazer "Gremlins" um filme de horror, mas quando o roteiro de Chris Columbus - ainda sem os dois filmes de "Esqueceram de mim" no currículo - chegou às mãos de Steven Spielberg, o já consagrado cineasta achou que era melhor transformar a trama em uma produção dirigida a um público mais jovem. Depois de algumas importantes alterações - inclusive com a exclusão de cenas mais violentas -, Spielberg encontrou em Joe Dante o diretor ideal para a empreitada: conhecido como um fiel discípulo de Roger Corman e alguém capaz de trabalhar com orçamentos apertados, Dante havia chamado a atenção de Spielberg com "Grito de horror" (1981) e parecia a escolha mais apropria - antes disso, até mesmo Tim Burton, ainda sem nenhum longa na carreira havia chamado a atenção do produtor, sendo deixado de lado justamente por sua inexperiência. Com Dante no barco, junto com o roteiro de Columbus e a supervisão atenta de Spielberg, "Gremlins" começou a tomar forma. Se na fase de testes de elenco nomes como os de Emilio Estevez e Judd Nelson foram recusados para o papel que ficou com Zach Galligan, o processo de filmagens obrigou a decisões criativas que modificaram razoavelmente o script de Columbus. Foi por decisão de Spielberg, por exemplo, a divisão entre o bem e o mal, representada pelo terno Gizmo e seus agressivos filhotes (em especial o líder, Stripe) - o criador de "ET: O extraterrestre" (1982) sabia que o público precisaria se identificar com algum dos bichinhos. E a regra de não expor os personagens-título à luz surgiu de uma prosaica falta de confiança de Dante (e da Amblin Entertainment) nos efeitos especiais da época - algo que o próprio Spielberg havia experimentado na pele, durante as filmagens de "Tubarão" (1975).
Quarta maior bilheteria de 1984, "Gremlins" se passa às vésperas do Natal, quando o jovem Billy (Zach Galligan) ganha, de presente do pai, um encantador e desconhecido animalzinho encontrado em posse de um chinês idoso e hesitante. O bichinho - um mogwai, segundo o experiente oriental - é capaz de conquistar o coração até do mais empedernido ser humano, mas, para manter-se dessa forma, seu dono precisa cuidar de três regras importantíssimas: eles não podem ser expostos à luz, não podem ser molhados e muito menos comer depois da meia-noite. Não é preciso ser especialista em cinema para imaginar que as normas não serão cumpridas e que o doce Gizmo será testemunha da proliferação de seus irmãos anarquistas e cruéis. Em bando e vorazes, os gremlins tomam conta da cidade e caberá a Billy e sua paixonite, Kate (Phoebe Cates), resolver a bagunça generalizada. Mesclando um humor sinistro e momentos de suspense, Joe Dante conduz a plateia a uma montanha-russa constante - e que poderia ter sido ainda maior caso a versão original, de 160 minutos, tivesse sido aprovada pela Warner. O estúdio, aliás, teve certos problemas com os órgãos de censura dos EUA, que consideravam o filme pouco palatável para plateias menores de 13 anos: junto com "Indiana Jones e o templo da perdição", o filme de Joe Dante praticamente obrigou a MPAA (Motion Pictures Association of America) a criar uma nova classificação (PG-13), que permitia a entrada de menores de 13 anos desde que acompanhados dos pais.
Divertido e feito com o simples objetivo de entreter, "Gremlins" deu frutos: não apenas teve uma segunda parte, lançada em 1990 e novamente dirigida por Joe Dante, como aproximou dois cérebros criativos. Encantado com o trabalho de Chris Columbus no roteiro do filme, Steven Spielberg esteve envolvido em dois de seus futuros projetos, "O enigma da pirâmide" (dirigido por Barry Levinson) e "Os Goonies" (comandado por Richard Donner), ambos lançados em 1985. Além disso, "Gremlins" - neologismo criado pelo escritor Roald Dahl em seu "Gremlin Lore" - ficou na mente daqueles que o assistiram em seu lançamento como uma diversão um tanto insana, capaz de tirar sarro de coros de Natal, "Branca de Neve e os sete anões" e o american way of life. No fundo, é uma sessão da tarde para quem não tem paciência para filmes água com açúcar.
domingo
EM RITMO DE FUGA
EM RITMO DE FUGA (Baby driver, 2017, TriStar Pictures, 113min) Direção e roteiro: EdgarWright. Fotografia: Bill Pope. Montagem: Jonathan Amos, Paul Machliss. Música: Steven Price. Figurino: Courtney Hoffman. Direção de arte/cenários: Marcus Rowland/Lance Totten. Produção executiva: James Biddle, Liza Chasin, Adam Merims, Rachel Prior, Edgar Wright, Michelle Wright. Produção: Tim Bevan, Eric Fellner, Nira Park. Elenco: Ansel Elgort, Kevin Spacey, Jamie Foxx, Jon Hamm, Eiza González, John Bernthal, Lily James. Estreia: 11/3/2017 (South by Southwest Festival)
3 indicações ao Oscar: Montagem, Edição de Som, Mixagem de Som
Em Hollywood nem tudo caminha com velocidade. Que o diga o cineasta/roteirista britânico Edgar Wright: foi em 1995 que ele começou a trabalhar no roteiro de um filme que misturava policial, romance e uma trilha sonora que, combinada com as sequências mais alucinantes, praticamente transformava o produto final em uma espécie de policial musical. De lá até o começo das filmagens, em 2016, Wright firmou seu nome em comédias como "Todo mundo quase morto" (2004), "Chumbo grosso"(2007) e "Scott Pilgrim contra o mundo" (2010), que brincavam com gêneros consagrados do cinema comercial - a saber, filmes de zumbis, tramas policiais e adaptações de HQ, respectivamente. Nesse meio tempo, sua ideia inicial foi transformada (ao menos sua primeira sequência) em um videoclipe de "Blue sky", da banda inglesa Mint Royale, em 2003, e somente em 2017 finalmente saiu do papel - quase uma década depois de ter recebido o sinal verde para tocar o projeto adiante - e chegou às telas como "Em ritmo de fuga", um dos melhores filmes da temporada, reconhecido com uma bilheteria inesperada de mais de 100 milhões de dólares no mercado doméstico (contra um custo baixo de pouco menos de 35 milhões) e três merecidíssimas indicações ao Oscar, que reconheceram algumas das maiores qualidades do filme - edição de som, mixagem de som e montagem.
A dupla de editores (Jonathan Amos e Paul Machliss) podem ter perdido o Oscar para "Dunkirk" (2017) - também um filme cuja edição é fator preponderante -, mas tiveram melhor sorte em outras disputas, como o BAFTA (o Oscar britânico) e as associações de críticos de Las Vegas, Los Angeles, São Francisco e Chicago. Não foram prêmios de consolação. A montagem de "Em ritmo de fuga" é das mais empolgantes realizadas em Hollywood em muito tempo - e não apenas porque é ágil e de tirar o fôlego do espectador, mas também (e principalmente) porque se utiliza de todos os elementos à sua disposição sem que se deixe deslumbrar pela forma em detrimento do conteúdo. A trama pode até parecer banal, mas Wright consegue a façanha de fazer com que soe extremamente original ao inserir um elemento crucial em seus momentos de mais adrenalina: ponto essencial para a narrativa de "Em ritmo de aventura", a música assume papel crucial na trajetória dos personagens (e, como forma de respeitá-la em absoluto, a própria edição se utiliza dela como base e ritmo). Por quase duas horas, o público é brindado com uma mistura exata entre músicas de primeira, perseguições milimetricamente calculadas pelo cineasta, personagens carismáticos e um tom que, mesmo diante da violência, nunca se torna sombrio em demasia. Ou seja, "Em ritmo de fuga" é o que se convenciona chamar de "filme de verão" do mercado norte-americano, mas está muitos degraus acima da média graças ao casamento perfeito entre suas partes.
Baby, o protagonista do filme, é um exímio motorista que, para pagar uma dívida contraída com um chefão do crime (interpretado por Kevin Spacey pouco antes de sua queda em desgraça na comunidade cinematográfica por acusações de assédio sexual), trabalha em assaltos planejados por ele: dotado de um talento preciso para fugas em alta velocidade, ele é o homem de confiança para tais eventos criminosos, mesmo que não seja um entusiasta a respeito. Enquanto se prepara para uma última missão antes de finalmente quitar seu débito, Baby se apaixona pela garçonete Debora (Lily James em papel que só não ficou com Emma Stone porque ela foi fazer "La La Land: cantando estações", que lhe rendeu o Oscar de melhor atriz). Debora acaba se tornando o principal motivo pelo qual Baby deseja abandonar de vez seu "emprego", mas, como normalmente acontece, o jovem se vê arrastado para um assalto que dá muito errado - em parte graças ao pouco confiável Bats (Jamie Foxx) - e precisa salvar a própria pele, assim como livrar sua namorada e seu pai adotivo da rota de vingança do violento Buddy (Jon Hamm, da série "Mad Men"). Se a trama parece derivativa, basta conferir como o roteiro de Wright consegue jogar com todos os clichês e torná-los parte de uma produção caprichadíssima e emocionante.
O principal mérito de "Em ritmo de fuga" - cujo título original, "Baby driver", soa muito melhor - é, além do roteiro esperto e de sua união perfeita de elementos simples, a escolha de seu ator principal. Revelado no romântico "A culpa é das estrelas" (2014), o jovem Ansel Elgort está absolutamente perfeito no papel do complexo Baby. Dono de características próprias - sofre de um problema de audição causado por um acidente que vitimou seus pais, mora com um pai adotivo surdo-mudo, é monossilábico quando em ação e costuma gravar as reuniões de "trabalho" para remixar com suas músicas preferidas -, Baby é o herói que todo espectador pediu a Deus. Carismático, competente e cheio de boas intenções (ainda que soterradas por um currículo pouco recomendável), é ele quem conduz a plateia por vibrantes fugas - todas filmadas em Atlanta e quase sem auxílio de CGI - e rege uma sinfonia de velocidade capazes de deixar qualquer um de queixo caído. Envolto em uma embalagem atraente até mesmo para o público mais jovem - e mais atraído por continuações e adaptações de quadrinhos -, "Em ritmo de fuga" é o entretenimento mais que perfeito, e que será, sem dúvida, reconhecido no futuro como uma das pequenas obras-primas de sua geração.
3 indicações ao Oscar: Montagem, Edição de Som, Mixagem de Som
Em Hollywood nem tudo caminha com velocidade. Que o diga o cineasta/roteirista britânico Edgar Wright: foi em 1995 que ele começou a trabalhar no roteiro de um filme que misturava policial, romance e uma trilha sonora que, combinada com as sequências mais alucinantes, praticamente transformava o produto final em uma espécie de policial musical. De lá até o começo das filmagens, em 2016, Wright firmou seu nome em comédias como "Todo mundo quase morto" (2004), "Chumbo grosso"(2007) e "Scott Pilgrim contra o mundo" (2010), que brincavam com gêneros consagrados do cinema comercial - a saber, filmes de zumbis, tramas policiais e adaptações de HQ, respectivamente. Nesse meio tempo, sua ideia inicial foi transformada (ao menos sua primeira sequência) em um videoclipe de "Blue sky", da banda inglesa Mint Royale, em 2003, e somente em 2017 finalmente saiu do papel - quase uma década depois de ter recebido o sinal verde para tocar o projeto adiante - e chegou às telas como "Em ritmo de fuga", um dos melhores filmes da temporada, reconhecido com uma bilheteria inesperada de mais de 100 milhões de dólares no mercado doméstico (contra um custo baixo de pouco menos de 35 milhões) e três merecidíssimas indicações ao Oscar, que reconheceram algumas das maiores qualidades do filme - edição de som, mixagem de som e montagem.
A dupla de editores (Jonathan Amos e Paul Machliss) podem ter perdido o Oscar para "Dunkirk" (2017) - também um filme cuja edição é fator preponderante -, mas tiveram melhor sorte em outras disputas, como o BAFTA (o Oscar britânico) e as associações de críticos de Las Vegas, Los Angeles, São Francisco e Chicago. Não foram prêmios de consolação. A montagem de "Em ritmo de fuga" é das mais empolgantes realizadas em Hollywood em muito tempo - e não apenas porque é ágil e de tirar o fôlego do espectador, mas também (e principalmente) porque se utiliza de todos os elementos à sua disposição sem que se deixe deslumbrar pela forma em detrimento do conteúdo. A trama pode até parecer banal, mas Wright consegue a façanha de fazer com que soe extremamente original ao inserir um elemento crucial em seus momentos de mais adrenalina: ponto essencial para a narrativa de "Em ritmo de aventura", a música assume papel crucial na trajetória dos personagens (e, como forma de respeitá-la em absoluto, a própria edição se utiliza dela como base e ritmo). Por quase duas horas, o público é brindado com uma mistura exata entre músicas de primeira, perseguições milimetricamente calculadas pelo cineasta, personagens carismáticos e um tom que, mesmo diante da violência, nunca se torna sombrio em demasia. Ou seja, "Em ritmo de fuga" é o que se convenciona chamar de "filme de verão" do mercado norte-americano, mas está muitos degraus acima da média graças ao casamento perfeito entre suas partes.
Baby, o protagonista do filme, é um exímio motorista que, para pagar uma dívida contraída com um chefão do crime (interpretado por Kevin Spacey pouco antes de sua queda em desgraça na comunidade cinematográfica por acusações de assédio sexual), trabalha em assaltos planejados por ele: dotado de um talento preciso para fugas em alta velocidade, ele é o homem de confiança para tais eventos criminosos, mesmo que não seja um entusiasta a respeito. Enquanto se prepara para uma última missão antes de finalmente quitar seu débito, Baby se apaixona pela garçonete Debora (Lily James em papel que só não ficou com Emma Stone porque ela foi fazer "La La Land: cantando estações", que lhe rendeu o Oscar de melhor atriz). Debora acaba se tornando o principal motivo pelo qual Baby deseja abandonar de vez seu "emprego", mas, como normalmente acontece, o jovem se vê arrastado para um assalto que dá muito errado - em parte graças ao pouco confiável Bats (Jamie Foxx) - e precisa salvar a própria pele, assim como livrar sua namorada e seu pai adotivo da rota de vingança do violento Buddy (Jon Hamm, da série "Mad Men"). Se a trama parece derivativa, basta conferir como o roteiro de Wright consegue jogar com todos os clichês e torná-los parte de uma produção caprichadíssima e emocionante.
O principal mérito de "Em ritmo de fuga" - cujo título original, "Baby driver", soa muito melhor - é, além do roteiro esperto e de sua união perfeita de elementos simples, a escolha de seu ator principal. Revelado no romântico "A culpa é das estrelas" (2014), o jovem Ansel Elgort está absolutamente perfeito no papel do complexo Baby. Dono de características próprias - sofre de um problema de audição causado por um acidente que vitimou seus pais, mora com um pai adotivo surdo-mudo, é monossilábico quando em ação e costuma gravar as reuniões de "trabalho" para remixar com suas músicas preferidas -, Baby é o herói que todo espectador pediu a Deus. Carismático, competente e cheio de boas intenções (ainda que soterradas por um currículo pouco recomendável), é ele quem conduz a plateia por vibrantes fugas - todas filmadas em Atlanta e quase sem auxílio de CGI - e rege uma sinfonia de velocidade capazes de deixar qualquer um de queixo caído. Envolto em uma embalagem atraente até mesmo para o público mais jovem - e mais atraído por continuações e adaptações de quadrinhos -, "Em ritmo de fuga" é o entretenimento mais que perfeito, e que será, sem dúvida, reconhecido no futuro como uma das pequenas obras-primas de sua geração.
sábado
DUBLÊ DO DIABO
O DUBLÊ DO DIABO (The devil's double, 2011, Corsan/Staccato Films, 109min) Direção: Lee Tamahori. Roteiro: Michael Thomas, livro de Latif Yahia. Fotografia: Sam McCurdy. Montagem: Luis Carballar. Música: Christian Henson. Figurino: Anna B. Sheppard. Direção de arte/cenários: Paul Kirby/Caroline Smith. Produção executiva: Arjen Terpstra, Harris Tulchin. Produção: Paul Breuls, Michael John Fedun, Emjay Rechsteiner, Catherine Vandeleene. Elenco: Dominic Cooper, Ludivine Sagnier, Raad Rawi, Philip Quast. Estreia: 22/01/2011 (Festival de Sundance)
O que você faria se fosse um sósia quase perfeito do filho de um dos terroristas mais procurados do mundo? Para Latif Yahia não houve qualquer tipo de escolha: idêntico a Uday, o filho mais velho de Saddam Hussein, Latif foi obrigado a aceitar o "convite" para tornar-se o dublê de corpo do excêntrico e tempestuoso herdeiro - caso contrário, toda a sua família corria sérios riscos de pagar o pato. Testemunha de situações de extrema violência e excessos de todos os tipos, Latif pode contar sua história, com detalhes, em um livro onde descrevia seu período sob as ordens de Hussein - uma fase encerrada em 1991. Dirigido pelo neozelandês Lee Tamahori, "O dublê do diabo" estreou no Festival de Sundance de 2011 e conquistou boa parte da crítica, principalmente graças ao esforçado
desempenho de Dominic Cooper nos dois papéis centrais. Apesar de contestado por várias testemunhas dos fatos - inclusive confidentes de Uday, um guarda do palácio onde ele vivia, um dos cirurgiões da família Hussein e até um agente da CIA - o livro inspirou um filme de fôlego, bem equilibrado entre seus gêneros (drama e ação) e interessante do princípio ao fim. Se tudo aconteceu da forma como narrada pelo autor pode até ser algo duvidoso, mas o fato é que dramaticamente a coisa funciona muito bem.
Revelado ao mundo pelo elogiado "O amor e a fúria" - premiado com um prêmio no Festival de Veneza de 1994 - e abraçado pelo cinema mainstream com "Na teia da aranha" (2001), estrelado por Morgan Freeman e "007 - Um novo dia para morrer" (2002), Lee Tamahori oferece, a "O dublê do diabo", seu talento em equacionar de forma consistente, a violência a que os personagens estão suscetíveis e o drama do protagonista em ser obrigado a conviver com o risco constante. Segundo o livro de Latif Yahia - e consequentemente o roteiro do filme -, ser o sósia de Hussein (com direito a cirurgias plásticas para aumentar ainda mais as semelhanças entre os dois) era permanecer em constante estado de tensão. Não bastasse ser o filho de um líder político dos mais controversos, Uday ainda tinha, a ser considerado, uma extravagância ímpar em termos de orgias sexuais, uso abusivo de drogas e álcool e um narcisismo dos mais doentios. A Latif cabia administrar tudo isso enquanto tentava, das mais diversas maneiras, encontrar um modo de libertar-se de seu pesadelo. Enquanto algumas testemunhas do caso tenham insistido que o rapaz se aproveitava da semelhança com Hussein para arrumar mulheres, o filme opta por comprar a narrativa de Yahia - até mesmo porque sua versão dos fatos seja bem mais atraente e dramaticamente potente.
É difícil não se deixar envolver pelo roteiro de Michael Thomas e pela direção energética de Tamahori: assim que a história começa e Latif se vê aprisionado por um mundo onde atentados e assassinatos são moeda corrente, o público imediatamente compra a ideia. Boa parte desse resultado positivo se deve ao desempenho muito além de correto do jovem Dominic Cooper. Mais conhecido do grande público por seu trabalho como o noivo de Amanda Seyfried em "Mamma Mia!" (2008), o ator inglês trabalha com sutilezas para realçar as diferenças entre seus dois personagens - enquanto parece se divertir na pele do irresponsável Uday Hussein, arrebata a simpatia da audiência ao interpretar Latif Yahia, um homem que presencia atrocidades com frequência assustadora e busca manter a sanidade mental para sobreviver. No terço final do filme, quando Yahia finalmente resolve arriscar tudo para fugir, a direção de Lee Tamahori mostra um cineasta capaz de manipular com segurança os recursos à sua disposição: por mais que não seja exatamente inovador ou surpreendente, o filme não deixa muito espaço disponível para o tédio - durante seus 109 minutos, entrega o que foi proposto, e de quebra, apresenta alguns momentos bastante tensos e violentos, como a sequência em uma boate que quase termina em uma carnificina e o último embate entre os dois personagens principais. Quem procura um bom filme policial vai aplaudir - e quem busca um drama baseado em uma história real também não terá do que reclamar.
Infelizmente, apesar das qualidades redentoras, "O dublê do diabo" não é um filme perfeito - e isso tem pouco a ver se a história contada é real ou pura imaginação de Latif Yahia. A direção de Lee Tamahori é correta, a atuação de Dominic Cooper tem momentos excelentes e tecnicamente o filme é admirável. Porém, nada disso afasta uma sensação de que falta alguma coisa no resultado final. Talvez seja um aprofundamento na vida de Yahia fora de sua relação com Hussein - sua família é brevemente citada mas nunca é permitido ao espectador saber o quanto de sua situação é conhecida por ela, uma vez que, segundo o sósia, ele tinha sido dado como morto na guerra. Talvez seja uma espécie de maniqueísmo na construção dos personagens, que parecem servir ao roteiro mais do que a um retrato da realidade. Ou ainda, no fato de todos os personagens (incluindo aí Saddam Hussein em rápida cena) falarem inglês mesmo com toda a ação se passando no Iraque do final dos anos 1980 (antes, portanto, do atentado ao World Trade Center): é uma escolha compreensível para uma produção que ambiciona o mercado norte-americano, mas não consegue deixar no ar um certo desconforto ao espectador mais exigente em termos de realismo. Nada disso atrapalha, no entanto, a quem procura um entretenimento de qualidade e bem acima da média.
sexta-feira
ECLIPSE DE UMA PAIXÃO
ECLIPSE DE UMA PAIXÃO (Total eclipse, 1995, FIT Productions/Portman Productions, 111min) Direção: Agnieszka Holland. Roteiro: Christopher Hampton. Fotografia: Yorgos Arvanitis. Montagem: Isabel Lorente. Música: Jan A.P. Kaczmarek. Figurino: Pierre-Yves Gayraud. Direção de arte/cenários: Dan Weil/Françoise Benoit-Fresco. Produção executiva: Staffan Ahrenberg, Jean-Yves Asselin, Pascale Faubert. Produção: Jean-Pierre Ramsay Levi. Elenco: Leonardo DiCaprio, David Thewlis, Romane Bohringer, Dominique Blanc. Estreia: 03/11/95
No final de 1995, o muito jovem Leonardo DiCaprio já havia sido indicado ao Oscar de coadjuvante por "Gilbert Grape - aprendiz de sonhador" (1993) e caminhava para tornar-se o galã da vez do público adolescente, graças ao sucesso de "Romeu + Julieta" (1996) e principalmente "Titanic" (1997). Antes, porém, de ser rotulado como o melhor ator de sua geração (a despeito da febre que se tornou sua presença), ele parecia já saber que uma das maiores qualidades de um artista é a coragem para embarcar em projetos considerados "perigosos". Sem desconfiar que sua imagem estava em vias de decorar as paredes juvenis do mundo inteiro, ele apostou em uma produção polêmica que dificilmente seria a escolha de atores menos autoconfiantes. Em "Eclipse de uma paixão", dirigido pela polonesa Agniesza Holland, ele viveu um dos mais viscerais poetas da história, o francês Arthur Rimbaud. Assim como ídolos do rock, Rimbaud tinha um comportamento selvagem e iconoclasta, misturava álcool e drogas enquanto produzia sua obra e, talvez o fator mais polêmico para uma plateia conservadora, mergulhava em um romance homossexual obsessivo com Paul Verlaine, outro poeta célebre, mais velho, casado e esperando o primeiro filho.
O papel de Rimbaud - complexo e pouco simpático - teria sido de River Phoenix, caso o jovem astro em ascensão não tivesse morrido precocemente em outubro de 1993. Assim como Phoenix, DiCaprio também já se caracterizava por buscar desafios e desafiar a trajetória que se esperava de um ator com pretensões de estrelato. Enquanto os atores em começo de carreira fugiam como o diabo da cruz de papéis de gays, DiCaprio enfrentou o desafio com um personagem que, não bastasse ser homossexual - um perigo para a carreira de qualquer um -, ainda era egoísta, pouco afeito a regras de convivência social e rebelde como qualquer astro de rock seria mais de um século depois. Fugindo do arquetípico gay de Hollywood - doce, afável e frequentemente servindo de alívio cômico -, Rimbaud já seria um desafio suficiente para um ator experiente: nas mãos de DiCaprio, já um bom ator mas ainda precisando ser lapidado pelo tempo, o personagem soa muitas vezes desagradável e arrogante. Ou seja, tinha todas as características que atormentavam qualquer ator que prezasse por seus cachês milionários. Corajoso, DiCaprio já fazia antever o excelente ator que se tornaria com a idade, mas, vez ou outra, apresenta uma atuação um tanto exagerada. Culpa dele, do personagem excêntrico ou da direção?
Agnieszka Holland entende de polêmicas. Em 1990 ela lançou o controverso "Filhos da guerra" e foi rechaçada pelo governo e pela mídia alemãs, que não gostaram de ver na tela uma história que o país preferiria esquecer (o filme falava sobre um jovem germânico se fazendo passar por judeu na II Guerra Mundial). Quem assistiu ao filme - e foram muitos espectadores, uma vez que ele tornou-se um grande sucesso de bilheteria nos EUA e foi premiado com o Golden Globe de melhor produção estrangeira - pode perceber a sensibilidade da cineasta em tocar em assuntos delicados. Algo em "Eclipse de uma paixão", porém, não deu assim tão certo. Mesmo com um roteirista competente - Christopher Hampton, oscarizado por "Ligações perigosas", de 1988 - e atores talentosos, seu filme falha em conquistar o espectador. Com protagonistas francamente desagradáveis (Rimbaud é retratado como um moleque irascível e Verlaine como um homem capaz de espancar a esposa grávida) e pouca atenção dada a seus poemas, o filme parece estar mais interessado no romance gay do que no talento dos dois poetas. O roteiro de Hampton, inclusive, aposta mais na obsessão entre os dois do que em qualquer outro aspecto possível. Cabe então a DiCaprio e Thewlis (substituindo John Malkovich, o primeiro a ser cogitado para o papel) minimizar os estragos, mas nem mesmo eles conseguem deixar seus personagens menos desprezíveis.
"Eclipse de uma paixão" se passa na Paris do século XIX: o renomado poeta Paul Verlaine convida o talentoso e iniciante Arthur Rimbaud para passar uma temporada em sua casa, junto a ele e sua esposa, Mathildte (Romane Bohring), grávida do primeiro filho do casal. Encantado com o trabalho do jovem escritor, Verlaine logo se vê atraído por um novo estilo de vida, boêmia e irresponsável. Ao lado de Rimbaud, ele passa a frequentar a noite parisiense e mergulha no alcoolismo, para angústia de Mathiltde. As coisas ficam ainda piores quando mentor e aprendiz transformam a amizade em romance: obcecado pela jovialidade e coragem de Rimbaud, Verlaine arrisca o casamento, a carreira e o renome para assumir uma história não apenas de amor, mas também de dor e violência. Ao enfatizar os atos inconsequentes de seus personagens, o roteiro simplesmente deixa de lado o que talvez seja o mais importante: cadê a poesia de Rimbaud e Verlaine? Por mais que seja atraente viajar pelos bastidores da criação literária dos dois protagonistas, há um vácuo imperdoável quando o espectador acaba a sessão sabendo mais sobre suas vidas pessoais do que sobre sua importância para a poesia francesa e mundial. "Eclipse de uma paixão" é, portanto, bem mais sensacionalista do que informativo. Era de se esperar mais de todo o conjunto!
No final de 1995, o muito jovem Leonardo DiCaprio já havia sido indicado ao Oscar de coadjuvante por "Gilbert Grape - aprendiz de sonhador" (1993) e caminhava para tornar-se o galã da vez do público adolescente, graças ao sucesso de "Romeu + Julieta" (1996) e principalmente "Titanic" (1997). Antes, porém, de ser rotulado como o melhor ator de sua geração (a despeito da febre que se tornou sua presença), ele parecia já saber que uma das maiores qualidades de um artista é a coragem para embarcar em projetos considerados "perigosos". Sem desconfiar que sua imagem estava em vias de decorar as paredes juvenis do mundo inteiro, ele apostou em uma produção polêmica que dificilmente seria a escolha de atores menos autoconfiantes. Em "Eclipse de uma paixão", dirigido pela polonesa Agniesza Holland, ele viveu um dos mais viscerais poetas da história, o francês Arthur Rimbaud. Assim como ídolos do rock, Rimbaud tinha um comportamento selvagem e iconoclasta, misturava álcool e drogas enquanto produzia sua obra e, talvez o fator mais polêmico para uma plateia conservadora, mergulhava em um romance homossexual obsessivo com Paul Verlaine, outro poeta célebre, mais velho, casado e esperando o primeiro filho.
O papel de Rimbaud - complexo e pouco simpático - teria sido de River Phoenix, caso o jovem astro em ascensão não tivesse morrido precocemente em outubro de 1993. Assim como Phoenix, DiCaprio também já se caracterizava por buscar desafios e desafiar a trajetória que se esperava de um ator com pretensões de estrelato. Enquanto os atores em começo de carreira fugiam como o diabo da cruz de papéis de gays, DiCaprio enfrentou o desafio com um personagem que, não bastasse ser homossexual - um perigo para a carreira de qualquer um -, ainda era egoísta, pouco afeito a regras de convivência social e rebelde como qualquer astro de rock seria mais de um século depois. Fugindo do arquetípico gay de Hollywood - doce, afável e frequentemente servindo de alívio cômico -, Rimbaud já seria um desafio suficiente para um ator experiente: nas mãos de DiCaprio, já um bom ator mas ainda precisando ser lapidado pelo tempo, o personagem soa muitas vezes desagradável e arrogante. Ou seja, tinha todas as características que atormentavam qualquer ator que prezasse por seus cachês milionários. Corajoso, DiCaprio já fazia antever o excelente ator que se tornaria com a idade, mas, vez ou outra, apresenta uma atuação um tanto exagerada. Culpa dele, do personagem excêntrico ou da direção?
Agnieszka Holland entende de polêmicas. Em 1990 ela lançou o controverso "Filhos da guerra" e foi rechaçada pelo governo e pela mídia alemãs, que não gostaram de ver na tela uma história que o país preferiria esquecer (o filme falava sobre um jovem germânico se fazendo passar por judeu na II Guerra Mundial). Quem assistiu ao filme - e foram muitos espectadores, uma vez que ele tornou-se um grande sucesso de bilheteria nos EUA e foi premiado com o Golden Globe de melhor produção estrangeira - pode perceber a sensibilidade da cineasta em tocar em assuntos delicados. Algo em "Eclipse de uma paixão", porém, não deu assim tão certo. Mesmo com um roteirista competente - Christopher Hampton, oscarizado por "Ligações perigosas", de 1988 - e atores talentosos, seu filme falha em conquistar o espectador. Com protagonistas francamente desagradáveis (Rimbaud é retratado como um moleque irascível e Verlaine como um homem capaz de espancar a esposa grávida) e pouca atenção dada a seus poemas, o filme parece estar mais interessado no romance gay do que no talento dos dois poetas. O roteiro de Hampton, inclusive, aposta mais na obsessão entre os dois do que em qualquer outro aspecto possível. Cabe então a DiCaprio e Thewlis (substituindo John Malkovich, o primeiro a ser cogitado para o papel) minimizar os estragos, mas nem mesmo eles conseguem deixar seus personagens menos desprezíveis.
"Eclipse de uma paixão" se passa na Paris do século XIX: o renomado poeta Paul Verlaine convida o talentoso e iniciante Arthur Rimbaud para passar uma temporada em sua casa, junto a ele e sua esposa, Mathildte (Romane Bohring), grávida do primeiro filho do casal. Encantado com o trabalho do jovem escritor, Verlaine logo se vê atraído por um novo estilo de vida, boêmia e irresponsável. Ao lado de Rimbaud, ele passa a frequentar a noite parisiense e mergulha no alcoolismo, para angústia de Mathiltde. As coisas ficam ainda piores quando mentor e aprendiz transformam a amizade em romance: obcecado pela jovialidade e coragem de Rimbaud, Verlaine arrisca o casamento, a carreira e o renome para assumir uma história não apenas de amor, mas também de dor e violência. Ao enfatizar os atos inconsequentes de seus personagens, o roteiro simplesmente deixa de lado o que talvez seja o mais importante: cadê a poesia de Rimbaud e Verlaine? Por mais que seja atraente viajar pelos bastidores da criação literária dos dois protagonistas, há um vácuo imperdoável quando o espectador acaba a sessão sabendo mais sobre suas vidas pessoais do que sobre sua importância para a poesia francesa e mundial. "Eclipse de uma paixão" é, portanto, bem mais sensacionalista do que informativo. Era de se esperar mais de todo o conjunto!
quinta-feira
HARRY POTTER E O PRISIONEIRO DE AZKABAN
HARRY POTTER E O PRISIONEIRO DE AZKABAN (Harry Potter and the prisoner of Azkaban, 2004, Warner Bros, 142min) Direção: Alfonso Cuarón. Roteiro: Steve Kloves, romance de J.K. Rowling. Fotografia: Michael Seresin. Montagem: Steven Weisberg. Música: John Williams. Figurino: Jany Temine. Direção de arte/cenários: Stuart Craig/Stephenie McMillan. Produção executiva: Michael Barnathan, Callum McDougall, Tanya Seghatchian. Produção: Chris Columbus, David Heyman, Mark Radcliffe. Elenco: Daniel Radcliffe, Emma Watson, Rupert Grint, Michael Gambon, Maggie Smith, Gary Oldman, Emma Thompson, Julie Walters, Alan Rickman, David Thewliss, Tom Felton, Richard Griffiths, Fiona Shaw, Julie Christie, Robbie Coltrane. Estreia: 23/5/2004
2 indicações ao Oscar: Trilha Sonora Original, Efeitos Visuais
Quando Chris Columbus voltou atrás em sua decisão de comandar todos os filmes da série "Harry Potter" - da qual ele já havia dirigido os dois primeiros - uma nova odisseia de bastidores começou. A Warner, afinal, tinha um investimento dos mais preciosos em mãos (os direitos de todos os sete livros da saga) para entregá-lo a qualquer um. Entre os candidatos a assumir as rédeas do terceiro capítulo da milionária obra da britânica J.K. Rowling, então, surgiram nomes tão díspares quanto M. Night Shyamalan e Marc Forster. O primeiro tinha no currículo o megasucesso "O sexto sentido" (1999), que havia lhe rendido indicações ao Oscar de filme, direção e roteiro; o outro havia sido responsável por "A última ceia" (2001), que deu à Hale Berry a estatueta de melhor atriz. A responsabilidade de estar à frente de um blockbuster dos mais esperados da temporada 2004, porém, não foi tão sedutora assim, e ambos declinaram do convite: Shyamalan para realizar "A vila" (2004), e Forster para assinar "Em busca da Terra do Nunca" (2004). Foi aí que entrou em cena o mexicano Guillermo Del Toro, cujo currículo até então (com filmes como "Mutação", de 1997, "A espinha do diabo", de 2001, e "Blade II: O caçador de vampiros", de 2002) pouco recomendava para uma produção cujo público-alvo era infanto-juvenil. Para surpresa de muitos, Del Toro recusou o convite para penetrar no mundo de Hogwarts, mas não sem antes recomendar um amigo: enquanto preferiu tocar adiante um projeto de estimação - a adaptação de "Hellboy", baseado nas HQs de Mike Mignola -, ele apontou para seu conterrâneo Alfonso Cuarón. Em um primeiro olhar, Cuarón não poderia estar mais distante de Harry Potter, com filmes como o sexy "E sua mãe também" - que havia lhe rendido uma indicação ao Oscar de roteiro original - no portfolio. No entanto, Cuarón também sabia ser sensível e apropriado aos espectadores juvenis, como mostrou em 1995, ao adaptar o clássico "A princesinha", de Frances Hodgson Burnett, com a dose certa de emoção e delicadeza.
Com Cuarón no comando - aprovado por Rowling, fã de seus trabalhos anteriores - e um orçamento de estimados 130 milhões de dólares, "Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban" começava a dar os primeiros passos da série em direção à seriedade que os últimos capítulos apresentariam. Com um visual diferente dos dois primeiros filmes - cortesia da bela fotografia de Michael Seresin - e com sequências inteiras filmadas com câmeras em movimento, o terceiro filme da série apresenta também diferenças no figurino (especialmente os protagonistas) e um ritmo que equilibra cenas de ação, suspense e até comédia (como sempre acontece no começo do filme, Potter sofre nas mãos de seus tios e resolve a situação da melhor maneira que pode, com a ajuda de seus dons de bruxo, é claro). O roteiro, novamente adaptado por Steve Kloves, apresenta ao espectador novos elementos da saga, como o misterioso Sirius Black (interpretado com gosto por Gary Oldman), o padrinho do protagonista, que foge da prisão de Azkaban e, segundo a lenda, tem o objetivo de assassinar Harry, uma vez que é um dos mais fiéis seguidores do temido Voldemort (Ralph Fiennes). O que acontece, porém, é que Potter acaba descobrindo que o que sempre foi tido como verdade pode muito bem ser apenas parte dela. Com a ajuda de Hermione (Emma Watson) e Ron (Rupert Grint) - assim como também de alguns professores que conhecem a real história de Black -, o adolescente enfrenta o ano letivo mais perigoso de sua vida, visto até mesmo pelas previsões da professora Trelwaney (Emma Thompson, em papel pequeno que ela tira de letra).
Substituindo o falecido Richard Harris no crucial papel do professor Dumbledore, que foi oferecido também a Ian McKellen, Peter O'Toole e Christopher Lee, mantém em alto nível o elenco coadjuvante da série. Nomes como Maggie Smith, Alan Rickman, Fiona Shaw e Julie Walters continuam servindo de apoio a seus jovens colegas de cena, com generosidade ímpar. Conforme a trajetória de Harry Potter vai ficando cada vez menos infantil e se aproxima de momentos bastante tensos e violentos, a importância do corpo docente de Hogwarts se torna ainda mais importante e presente - e é admirável que a direção de Cuarón seja sensível ao ritmo da trama: o cineasta acelera quando precisa e mantém-se delicada ao examinar a relação de Potter com os personagens a seu lado. Daniel Radcliffe - assim como seus colegas mais próximos - mostra um amadurecimento tanto físico quanto artístico: não é um grande ator, mas é difícil imaginar outro intérprete para o jovem bruxo, um dos personagens mais populares da literatura e do cinema, um perfeito exemplo de entretenimento divertido e realizado com extremo cuidado e talento.
E "Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban" é justamente isso: entretenimento de primeira, capaz de agradar aos fãs dos livros e até mesmo àqueles que nunca abriram uma página sequer da saga de Rowling. Apesar de tratar - metaforicamente - com temas como depressão (representada pelos aterrorizantes dementadores), o filme de Cuarón se mantém no limite entre a fantasia e o terror, que ficaria a cada filme mais próximo dos protagonistas. Único filme da saga a não alcançar (por pouco) a marca de 800 milhões de dólares de bilheteria mundial, "Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban" concorreu a dois Oscar (trilha sonora original e efeitos visuais) e provou que, a despeito das mudanças na cadeira de diretor, mantém uma coerência interna e uma qualidade à prova das grandes expectativas de seu público. Cuarón, que assumiu não ter lido nenhum dos livros quando convidado para comandar esse terceiro filme - e que levaria o Oscar de direção por "Gravidade" (2013) - mostrou-se uma escolha certeira, que manteve o alto nível da série e emprestou-lhe um prestígio que apenas colaborou para seu sucesso de crítica e público.
quarta-feira
ESCRITORES DA LIBERDADE
ESCRITORES DA LIBERDADE (Freedom writers, 2007, Paramount Pictures, 123min) Direção: Richard LaGravanese. Roteiro: Richard LaGravenese, livro de Erin Grunwell e Escritores da Liberdade. Fotografia: Jim Denault. Montagem: David Moritz. Música: Mark Isham, Will.i.am. Figurino: Cindy Evans. Direção de arte/cenários: Laurence Bennett/Linda Lee Sutton. Produção executiva: Tracey Durning, Dan Levine, Nan Morales, Hilary Swank. Produção: Danny DeVito, Michael Shamberg, Stacey Sher. Elenco: Hilary Swank, Patrick Dempsey, Scott Glenn, Imelda Staunton, April Lee Hernandez, Jaclyn Ngan, Deance Wyatt. Estreia: 05/01/2007
Mais conhecido como roteirista - de alguns filmes de sucesso, como "As pontes de Madison" (1995) e "O pescador de ilusões" (1991), que lhe rendeu uma indicação ao Oscar -, Richard LaGravenese ocasionalmente se aventura na cadeira de diretor. Sendo um homem das letras, então, não é difícil compreender por que ele escolheu o projeto de "Escritores da liberdade", seu segundo longa-metragem: baseado em uma história real, o filme fala sobre o poder da escrita mesmo em situações adversas e enfatiza a luta incansável de uma professora para abrir os horizontes de um grupo de alunos que conhecem mais a violência do que a literatura. Mesmo escorado em alguns clichês - e com uma semelhança bastante perceptível com "Mentes perigosas", estrelado por Michelle Pfeiffer em 1996 -, seu filme conquista justamente por abraçar suas referências e explorá-las de maneira eficaz, sem ousadias narrativas mas com respeito a seus personagens e sua história. "Escritores da liberdade" não é um grande filme - por vezes soa como um filme para a televisão - e tampouco causou barulho nas bilheterias e nas cerimônias de premiação da temporada, mas está bem acima de outras produções estreladas por Hilary Swank depois de seu segundo Oscar, como "Dália negra" (dirigida pelo veterano Brian DePalma) e "Colheita maldita", lançado poucos meses depois.
Também produtora executiva do filme e com um salário reduzido para caber no orçamento, Swank interpreta Erin Grunwell, uma professa idealista e inexperiente que escolhe, para o início de sua carreira, uma escola de Long Beach longe de seus dias de glória e atormentada por alunos cujo principal interesse é chegarem vivos ao fim do dia ou escapar da polícia e dos tiroteios frequentes em seus bairros. Logo de cara Erin encontra dificuldades com a diretora da escola, Margaret Campbell (Imelda Staunton), que nã vê com bons olhos o programa que permitiu o ingresso de tais estudantes. Arriscado seu casamento com Scott (Patrick Dempsey) e comprando briga até mesmo com alguns colegas - já acostumados com o ambiente tenso do local -, a nova professora é também rechaçada pelos próprios alunos, que não entendem como os livros do currículo podem ajudar em seu cotidiano presente e futuro. Com tenacidade e coragem, Erin começa a conquistar a turma quando percebe que precisa aproximar suas teoria do cotidiano. A chave é "O diário de Anne Frank", que abre as mentes dos jovens, incentivando-os a começar um diário onde podem escrever seus pensamentos e seus conflitos.
A trama de "Escritores da liberdade" está longe de ser inovadora, e LaGravenese assume sem pudor, desde as primeiras cenas, que não pretende revolucionar o gênero. Estabelece sua heroína, apresenta os percalços com os quais ela fatalmente irá esbarrar, mostra alguns vislumbres de sua vida pessoal e, como era de se esperar, enfatiza a relação problemática com os estudantes - essa sim o foco principal do filme. A princípio hostilizada pelos alunos, Erin encontra o caminho para sua confiança ao tentar colocar-se no lugar deles: a partir daí, em uma série de cenas curtas mas interessantes, ela os apresenta ao mundo dos livros e abre seus horizontes ao aproximá-los da história de Anne Frank - primeiro com a leitura de seu diário, em seguida com uma visita ao Museu do Holocausto, e por fim com um encontro com uma sobrevivente dos campos de concentração nazistas. Este paralelo funciona muito bem no filme, e serve também para orientá-lo ao desfecho do filme, talvez um pouco anti-climático mas de certa forma coerente e verossímil.
Hilary Swank não está brilhante como em seus desempenhos premiados com o Oscar, mas ainda assim consegue dar credibilidade a uma personagem que, a despeito de ter sido escrita por um roteirista consagrado, soa um tanto superficial. A transformação de Erin em uma mulher cuja paixão por ensinar é mostrada sem muita profundidade, assim como seu relacionamento com os alunos dá a impressão de ocorrer muito facilmente. Porém, os atores jovens servem como grande parceiro de cena: apesar de ser o principal nome do elenco coadjuvante, a sempre ótima Imelda Staunton (que perdeu o Oscar 2005 justamente para Swank) divide a atenção com nomes desconhecidos que seguram com garra e emoção seu lugares na produção. Como prova dessa homogeneidade, nenhum deles se destaca mais que os outros, como se todos fossem (e de certa forma o são) os retalhos de tecido que, juntos, constroem uma colcha. "Escritores da liberdade" pode não ser o filme mais original e comovente de todos os tempos, mas é um entretenimento suficientemente agradável e bem-intencionado. Ou seja, é como uma boa aula de literatura!
Mais conhecido como roteirista - de alguns filmes de sucesso, como "As pontes de Madison" (1995) e "O pescador de ilusões" (1991), que lhe rendeu uma indicação ao Oscar -, Richard LaGravenese ocasionalmente se aventura na cadeira de diretor. Sendo um homem das letras, então, não é difícil compreender por que ele escolheu o projeto de "Escritores da liberdade", seu segundo longa-metragem: baseado em uma história real, o filme fala sobre o poder da escrita mesmo em situações adversas e enfatiza a luta incansável de uma professora para abrir os horizontes de um grupo de alunos que conhecem mais a violência do que a literatura. Mesmo escorado em alguns clichês - e com uma semelhança bastante perceptível com "Mentes perigosas", estrelado por Michelle Pfeiffer em 1996 -, seu filme conquista justamente por abraçar suas referências e explorá-las de maneira eficaz, sem ousadias narrativas mas com respeito a seus personagens e sua história. "Escritores da liberdade" não é um grande filme - por vezes soa como um filme para a televisão - e tampouco causou barulho nas bilheterias e nas cerimônias de premiação da temporada, mas está bem acima de outras produções estreladas por Hilary Swank depois de seu segundo Oscar, como "Dália negra" (dirigida pelo veterano Brian DePalma) e "Colheita maldita", lançado poucos meses depois.
Também produtora executiva do filme e com um salário reduzido para caber no orçamento, Swank interpreta Erin Grunwell, uma professa idealista e inexperiente que escolhe, para o início de sua carreira, uma escola de Long Beach longe de seus dias de glória e atormentada por alunos cujo principal interesse é chegarem vivos ao fim do dia ou escapar da polícia e dos tiroteios frequentes em seus bairros. Logo de cara Erin encontra dificuldades com a diretora da escola, Margaret Campbell (Imelda Staunton), que nã vê com bons olhos o programa que permitiu o ingresso de tais estudantes. Arriscado seu casamento com Scott (Patrick Dempsey) e comprando briga até mesmo com alguns colegas - já acostumados com o ambiente tenso do local -, a nova professora é também rechaçada pelos próprios alunos, que não entendem como os livros do currículo podem ajudar em seu cotidiano presente e futuro. Com tenacidade e coragem, Erin começa a conquistar a turma quando percebe que precisa aproximar suas teoria do cotidiano. A chave é "O diário de Anne Frank", que abre as mentes dos jovens, incentivando-os a começar um diário onde podem escrever seus pensamentos e seus conflitos.
A trama de "Escritores da liberdade" está longe de ser inovadora, e LaGravenese assume sem pudor, desde as primeiras cenas, que não pretende revolucionar o gênero. Estabelece sua heroína, apresenta os percalços com os quais ela fatalmente irá esbarrar, mostra alguns vislumbres de sua vida pessoal e, como era de se esperar, enfatiza a relação problemática com os estudantes - essa sim o foco principal do filme. A princípio hostilizada pelos alunos, Erin encontra o caminho para sua confiança ao tentar colocar-se no lugar deles: a partir daí, em uma série de cenas curtas mas interessantes, ela os apresenta ao mundo dos livros e abre seus horizontes ao aproximá-los da história de Anne Frank - primeiro com a leitura de seu diário, em seguida com uma visita ao Museu do Holocausto, e por fim com um encontro com uma sobrevivente dos campos de concentração nazistas. Este paralelo funciona muito bem no filme, e serve também para orientá-lo ao desfecho do filme, talvez um pouco anti-climático mas de certa forma coerente e verossímil.
Hilary Swank não está brilhante como em seus desempenhos premiados com o Oscar, mas ainda assim consegue dar credibilidade a uma personagem que, a despeito de ter sido escrita por um roteirista consagrado, soa um tanto superficial. A transformação de Erin em uma mulher cuja paixão por ensinar é mostrada sem muita profundidade, assim como seu relacionamento com os alunos dá a impressão de ocorrer muito facilmente. Porém, os atores jovens servem como grande parceiro de cena: apesar de ser o principal nome do elenco coadjuvante, a sempre ótima Imelda Staunton (que perdeu o Oscar 2005 justamente para Swank) divide a atenção com nomes desconhecidos que seguram com garra e emoção seu lugares na produção. Como prova dessa homogeneidade, nenhum deles se destaca mais que os outros, como se todos fossem (e de certa forma o são) os retalhos de tecido que, juntos, constroem uma colcha. "Escritores da liberdade" pode não ser o filme mais original e comovente de todos os tempos, mas é um entretenimento suficientemente agradável e bem-intencionado. Ou seja, é como uma boa aula de literatura!
segunda-feira
EXTRAORDINÁRIO
EXTRAORDINÁRIO (Wonder, 2017, Lionsgate, 113min) Direção: Stephen Chbosky. Roteiro: Stephen Chbosky, Steven Conrad, Jack Thorne, romance de R.J. Palacio. Fotografia: Don Burgess. Montagem: Mark Livolsi. Música: Marcelo Zarvos. Figurino: Monique Prudhomme. Direção de arte/cenários: Kalina Ivanov/Shannon Gotlieb. Produção executiva: Michael Beugg, Qiuyun Long, R. J. Palacio, Jeff Skol, Alexander Young. Produção: David Hoberman, Todd Lieberman. Elenco: Julia Roberts, Owen Wilson, Jacob Tremblay, Mandy Patinkin, Izabela Vidovic, Noah Jupe, Daveed Diggs, Danielle Rose Russell, Sonia Braga. Estreia: 14/11/2017
Indicado ao Oscar de Maquiagem
Em 2012, o escritor Steven Chbosky realizou um feito raro na indústria do cinema, ao roteirizar e dirigir a adaptação cinematográfica de seu livro "As vantagens de ser invisível", que mesmo não se tornando um fenômeno de bilheteria, agradou seu público-alvo (adolescentes e afins) e arrancou elogios da maioria esmagadora dos críticos. Sua incursão seguinte na cadeira de diretor surgiu cinco anos mais tarde, com outra adaptação literária - dessa vez de um best-seller de R.J. Palacio - e com uma dose ainda maior de emoção e uma estrela de primeira grandeza no elenco. Com Julia Roberts à frente do elenco que contava ainda com Owen Wilson e Jacob Tremblay (o excelente ator mirim de "O quarto de Jack", de 2015), "Extraordinário" chegou às telas cercado de expectativas e, como raramente acontece, correspondeu a todas elas: não apenas conquistou os críticos mais ranzinzas como arrecadou mais de 300 milhões de dólares ao redor do mundo. Certamente a presença de Roberts ajudou muito na carreira comercial do filme, mas o que realmente faz dele uma produção acima da média é o conjunto de acertos: da direção ao elenco, da trilha sonora ao roteiro - passando pela escolha acertadíssima do material -, tudo funciona como um relógio, e até mesmo quando a produção escorrega no clichê, tudo soa tão verdadeira que é difícil não se deixar envolver.
O caminho de "Extraordinário" em direção ao cinema começou quando a escritora R.J. Palacio, acompanhada do filho, viu uma criança que sofria de uma condição chamada Treacher Collins Syndrome, na qual alguns ossos e tecidos do rosto não se desenvolvem: o menino, que impressionou o filho de Palacio, era um dos poucos pacientes do mundo a apresentar os sintomas da doença, que acomete um a cada cinquenta mil bebês. Sensibilizada com a visão da vítima e a reação do próprio filho, Palacio resolveu criar um personagem assim, imaginando como seria o dia a dia de uma família confrontada com uma situação tão extrema. Livro publicado (no Brasil pela Intrínseca) e sucesso de vendas - figurando na lista dos mais vendidos do New York Times - era apenas questão de tempo até que Hollywood percebesse seu potencial. Sob o controle de Chbosky, contratado depois que a primeira opção (Paul King) preferiu comandar o infantil "Paddington 2", a adaptação encontrou seu diretor ideal: mantendo o tom leve do livro e sua narrativa em diversos pontos de vista, o roteirista/cineasta sublinhou as maiores qualidades da obra, evitou a lágrima fácil e injetou um senso de humor muito bem-vindo. Contando ainda com a ajuda do carisma de Julia Roberts e o talento impressionante do pequeno Jacob Tremblay, "Extraordinário" não tinha como dar errado.
É claro que um filme como "Extraordinário" não consegue escapar completamente das armadilhas do sentimentalismo, mas o trabalho de Chbosky é tão honesto, que qualquer escorregadela é facilmente perdoável, principalmente graças ao carisma e talento do pequeno Jacob Tremblay, que, mesmo sob pesada maquiagem (que levava uma hora e meia para ficar pronta, e concorreu ao Oscar da categoria) é capaz de conquistar o mais empedernido espectador. Assim como em "O quarto de Jack" - que deu à Brie Larson o Oscar de melhor atriz em 2016 -, Tremblay chama a responsabilidade para si e encara sem medo o desafio de interpretar um personagem que poderia facilmente cair no exagero. No filme, ele vive Auggie Pullman, um menino cuja doença rara o afasta do cotidiano das crianças comuns. Depois de alguns anos estudando em casa, ele é matriculado em uma escola normal para começar a quinta série - uma situação que deixa sua dedicada mãe, Isabel (Julia Roberts), e seu amoroso pai, Nate (Owen Wilson), apreensivos mas um tanto orgulhosos. Na escola, Auggie faz amizade com um dos colegas, Jack Will (o encantador Noah Jupe), mas demora a sentir-se parte do grupo. Enquanto isso, sua irmã, Via (Izabela Vidovic), sofre com o afastamento da melhor amiga, Miranda (Danielle Rose Russell) - que também tem uma boa dose de problemas familiares.
A maior qualidade de "Extraordinário" - além de seu elenco impecável, que conta inclusive com uma simpática participação especial da brasileira Sonia Braga - é a forma com que o filme lida com as diversas situações envolvendo seus personagens, todos mais complexos do que parecem à primeira vista. É um alívio perceber que a irmã mais velha do protagonista não cai no lugar-comum de adolescente rebelde e revoltada - e, milagre dos milagres, é um porto seguro para o menino e não um motivo a mais para preocupações. Julia Roberts, generosamente, assume um papel quase de coadjuvante, e seu sorriso, como sempre, ilumina a tela. Focando sua atenção basicamente sobre Auggie e suas aventuras (e desventuras) escolares, "Extraordinário" é um filme para estampar sorrisos no público - e também algumas sinceras lágrimas. Fugindo do drama extremo - como o já clássico "Marcas do destino", estrelado por Cher em 1985 e vencedor do Oscar de maquiagem - e dotado de um otimismo inquebrantável, é daquelas produções que ficam marcadas no coração da plateia.
Indicado ao Oscar de Maquiagem
Em 2012, o escritor Steven Chbosky realizou um feito raro na indústria do cinema, ao roteirizar e dirigir a adaptação cinematográfica de seu livro "As vantagens de ser invisível", que mesmo não se tornando um fenômeno de bilheteria, agradou seu público-alvo (adolescentes e afins) e arrancou elogios da maioria esmagadora dos críticos. Sua incursão seguinte na cadeira de diretor surgiu cinco anos mais tarde, com outra adaptação literária - dessa vez de um best-seller de R.J. Palacio - e com uma dose ainda maior de emoção e uma estrela de primeira grandeza no elenco. Com Julia Roberts à frente do elenco que contava ainda com Owen Wilson e Jacob Tremblay (o excelente ator mirim de "O quarto de Jack", de 2015), "Extraordinário" chegou às telas cercado de expectativas e, como raramente acontece, correspondeu a todas elas: não apenas conquistou os críticos mais ranzinzas como arrecadou mais de 300 milhões de dólares ao redor do mundo. Certamente a presença de Roberts ajudou muito na carreira comercial do filme, mas o que realmente faz dele uma produção acima da média é o conjunto de acertos: da direção ao elenco, da trilha sonora ao roteiro - passando pela escolha acertadíssima do material -, tudo funciona como um relógio, e até mesmo quando a produção escorrega no clichê, tudo soa tão verdadeira que é difícil não se deixar envolver.
O caminho de "Extraordinário" em direção ao cinema começou quando a escritora R.J. Palacio, acompanhada do filho, viu uma criança que sofria de uma condição chamada Treacher Collins Syndrome, na qual alguns ossos e tecidos do rosto não se desenvolvem: o menino, que impressionou o filho de Palacio, era um dos poucos pacientes do mundo a apresentar os sintomas da doença, que acomete um a cada cinquenta mil bebês. Sensibilizada com a visão da vítima e a reação do próprio filho, Palacio resolveu criar um personagem assim, imaginando como seria o dia a dia de uma família confrontada com uma situação tão extrema. Livro publicado (no Brasil pela Intrínseca) e sucesso de vendas - figurando na lista dos mais vendidos do New York Times - era apenas questão de tempo até que Hollywood percebesse seu potencial. Sob o controle de Chbosky, contratado depois que a primeira opção (Paul King) preferiu comandar o infantil "Paddington 2", a adaptação encontrou seu diretor ideal: mantendo o tom leve do livro e sua narrativa em diversos pontos de vista, o roteirista/cineasta sublinhou as maiores qualidades da obra, evitou a lágrima fácil e injetou um senso de humor muito bem-vindo. Contando ainda com a ajuda do carisma de Julia Roberts e o talento impressionante do pequeno Jacob Tremblay, "Extraordinário" não tinha como dar errado.
É claro que um filme como "Extraordinário" não consegue escapar completamente das armadilhas do sentimentalismo, mas o trabalho de Chbosky é tão honesto, que qualquer escorregadela é facilmente perdoável, principalmente graças ao carisma e talento do pequeno Jacob Tremblay, que, mesmo sob pesada maquiagem (que levava uma hora e meia para ficar pronta, e concorreu ao Oscar da categoria) é capaz de conquistar o mais empedernido espectador. Assim como em "O quarto de Jack" - que deu à Brie Larson o Oscar de melhor atriz em 2016 -, Tremblay chama a responsabilidade para si e encara sem medo o desafio de interpretar um personagem que poderia facilmente cair no exagero. No filme, ele vive Auggie Pullman, um menino cuja doença rara o afasta do cotidiano das crianças comuns. Depois de alguns anos estudando em casa, ele é matriculado em uma escola normal para começar a quinta série - uma situação que deixa sua dedicada mãe, Isabel (Julia Roberts), e seu amoroso pai, Nate (Owen Wilson), apreensivos mas um tanto orgulhosos. Na escola, Auggie faz amizade com um dos colegas, Jack Will (o encantador Noah Jupe), mas demora a sentir-se parte do grupo. Enquanto isso, sua irmã, Via (Izabela Vidovic), sofre com o afastamento da melhor amiga, Miranda (Danielle Rose Russell) - que também tem uma boa dose de problemas familiares.
A maior qualidade de "Extraordinário" - além de seu elenco impecável, que conta inclusive com uma simpática participação especial da brasileira Sonia Braga - é a forma com que o filme lida com as diversas situações envolvendo seus personagens, todos mais complexos do que parecem à primeira vista. É um alívio perceber que a irmã mais velha do protagonista não cai no lugar-comum de adolescente rebelde e revoltada - e, milagre dos milagres, é um porto seguro para o menino e não um motivo a mais para preocupações. Julia Roberts, generosamente, assume um papel quase de coadjuvante, e seu sorriso, como sempre, ilumina a tela. Focando sua atenção basicamente sobre Auggie e suas aventuras (e desventuras) escolares, "Extraordinário" é um filme para estampar sorrisos no público - e também algumas sinceras lágrimas. Fugindo do drama extremo - como o já clássico "Marcas do destino", estrelado por Cher em 1985 e vencedor do Oscar de maquiagem - e dotado de um otimismo inquebrantável, é daquelas produções que ficam marcadas no coração da plateia.
domingo
HARRY POTTER E A CÂMARA SECRETA
HARRY POTTER E A CÂMARA SECRETA (Harry Potter and the chamber of secrets, 2002, Warner Bros, 161min) Direção: Chris Columbus. Roteiro: Steve Kloves, romance de J. K. Rowling. Fotografia: Roger Pratt. Montagem: Peter Honess. Música: John Williams. Figurino: Lindy Hemming. Direção de arte/cenários: Stuart Craig/Stephenie McMillan. Produção executiva: Michael Barnathan, David Barron, Chris Columbus, Mark Radcliffe. Produção: David Heyman. Elenco: Daniel Radcliffe, Emma Watson, Rupert Grint, Richard Harris, Maggie Smith, Kenneth Branagh, Julie Walters, Alan Rickman, Robbie Coltrane, Jason Isaacs, Tom Felton. Estreia: 03/11/02
Quando "Harry Potter e a câmara secreta" estreou, no final de 2002, até mesmo o público que não acompanhava a saga do jovem bruxo em sua encarnação literária já conhecia seu universo mágico: graças à "Harry Potter e a pedra filosofal", o primeiro capítulo de uma coleção que prometia estender-se até um sétimo volume, o mundo inteiro estava tomado por uma febre que não atingia apenas seu público-alvo (o infantojuvenil), mas que havia se espalhado também entre aqueles adultos sem medo de entregar-se à fantasia. Com uma renda mundial de quase 980 milhões de dólares e elogiado pela maioria dos críticos, o filme de Chris Columbus - diretor também de "Esqueceram de mim" (1990) e "Uma babá quase perfeita" (1993) - estabeleceu as regras do jogo, apresentou seus personagens e confirmou o apelo comercial que há muito tempo as editoras já conheciam (e festejavam). Sem mexer em um time já ganhando, a Warner manteve a mesma equipe do primeiro filme para a realização do segundo e, para a surpresa de ninguém, voltou a cativar plateias ao redor do mundo - e mais uma vez chegou perto de um sucesso quase bilionário, com uma bilheteria de 88 milhões de dólares em seu fim-de-semana de estreia.
Mais sombrio do que o primeiro filme - em uma transformação gradual da série, que vai ficando menos ingênua conforme a trama vai caminhando e os protagonistas vão de crianças a adolescentes, "Harry Potter e a câmara secreta" é o filme mais longo da série, a despeito do fato de o livro no qual ele é baseado é o segundo mais curto da saga, e começou a ser filmado apenas três dias após a estreia de "Harry Potter e a pedra filosofal". Tal pressa tinha motivo: não apenas o elenco infantil logo começaria a passar pela puberdade (a tragédia de qualquer produtor) como o ator Richard Harris, que vivia um personagem crucial nos filmes, Alvo Dumbledore - um dos professores mais importantes de Hogwarts e peça fundamental na trajetória do protagonista - estava com a saúde debilitada a ponto de ser quase afastado das filmagens; Harris morreu poucas semanas antes do lançamento do filme, e foi substituído, nas produções seguintes, por Michael Gambon. Com o elenco reforçado pela presença de Jason Isaacs e Kenneth Branagh, "Harry Potter e a câmara secreta" consegue uma façanha e tanto: mantém o alto nível de entretenimento do primeiro filme (se é que não o eleva) e agrada em cheio aos fãs dos livros.
"Harry Potter e a câmara secreta" começa com um tom leve, mas não demora a mergulhar aos poucos em uma tensa jornada: ainda na casa de seus tios, Potter é visitado por um atrapalhado elfo doméstico, Dobby (voz de Tony Jones), que não apenas coloca o bruxinho em péssimos lençóis, graças a suas interferências em outros membros da família. Sua aparição, no entanto, tem motivos bastante sinistros: segundo ele, coisas horríveis estão para acontecer em Hogwarts, e Potter deve evitar voltar à escola. É claro que seus avisos de nada adiantam: Potter retorna para mais um ano letivo, assim como seus melhores amigos, Ron e Hermione, e logo de cara percebe que os conselhos que não seguiu estavam mais do que certos. Vozes vindas das paredes, escritos de sangue com mensagens enigmáticas e alunos sendo petrificados sem motivo aparente levam Harry a uma investigação que revela muito mais do que ele esperava e remete à uma misteriosa câmara secreta, cujo histórico é ligado à presença malévola de Voldemort, que controla (não se sabe como) o lendário quarto da escola.
Assim como em "Harry Potter e a pedra filosofal", o segundo filme dirigido por Columbus ainda mostra seus protagonistas aprendendo a lidar com seus novos dons e lutando contra o mal, seja ele na forma de um apavorante guardião da câmara secreta, na pele do maquiavélico Draco Malfoy (Tom Felton) ou na figura pouco amistosa de Voldemort - além das dúbias ações do professor Severo Snape (Alan Rickman). A primeira metade do filme é dedicada a ilustrar os acontecimentos funestos que ameaçam fechar a escola, e sua segunda parte hipnotiza o espectador com revelações surpreendentes e constrói um clímax dos mais interessantes. Kenneth Branagh - substituindo Hugh Grant, que não pode participar do filme por problemas de agenda - é a melhor e mais acertada aquisição neste segundo capítulo, interpretando um falastrão e vaidoso Gilderoy Lockhart, professor que mostra sua real personalidade quando é chamado a desafiar o mal vindo do tétrico cômodo. É ele quem equilibra o tom entre a comédia (especialidade de Ron) e a tragédia (cortesia de Voldemort em si). O elenco juvenil se mostra mais à vontade nas peles dos protagonistas, e os veteranos do grupo (Harris, Maggie Smith, Julie Walters, Alan Rickman) aproveitam cada minuto em cena para provar que, mesmo em um filme direcionado a uma plateia menos madura, são capazes de roubar a cena - coisa que os efeitos visuais, discretos mas eficientíssimos, ajuda a ressaltar. Tão bom quanto o primeiro capítulo da saga, "Harry Potter e a câmara secreta" é, também, o último da série dirigido por Chris Columbus - um cineasta acostumado com o sucesso e com o diálogo com a audiência mais jovem. Columbus deu o pontapé inicial a um universo que se tornaria, a cada filme, mais e mais escuro e surpreendente.
Quando "Harry Potter e a câmara secreta" estreou, no final de 2002, até mesmo o público que não acompanhava a saga do jovem bruxo em sua encarnação literária já conhecia seu universo mágico: graças à "Harry Potter e a pedra filosofal", o primeiro capítulo de uma coleção que prometia estender-se até um sétimo volume, o mundo inteiro estava tomado por uma febre que não atingia apenas seu público-alvo (o infantojuvenil), mas que havia se espalhado também entre aqueles adultos sem medo de entregar-se à fantasia. Com uma renda mundial de quase 980 milhões de dólares e elogiado pela maioria dos críticos, o filme de Chris Columbus - diretor também de "Esqueceram de mim" (1990) e "Uma babá quase perfeita" (1993) - estabeleceu as regras do jogo, apresentou seus personagens e confirmou o apelo comercial que há muito tempo as editoras já conheciam (e festejavam). Sem mexer em um time já ganhando, a Warner manteve a mesma equipe do primeiro filme para a realização do segundo e, para a surpresa de ninguém, voltou a cativar plateias ao redor do mundo - e mais uma vez chegou perto de um sucesso quase bilionário, com uma bilheteria de 88 milhões de dólares em seu fim-de-semana de estreia.
Mais sombrio do que o primeiro filme - em uma transformação gradual da série, que vai ficando menos ingênua conforme a trama vai caminhando e os protagonistas vão de crianças a adolescentes, "Harry Potter e a câmara secreta" é o filme mais longo da série, a despeito do fato de o livro no qual ele é baseado é o segundo mais curto da saga, e começou a ser filmado apenas três dias após a estreia de "Harry Potter e a pedra filosofal". Tal pressa tinha motivo: não apenas o elenco infantil logo começaria a passar pela puberdade (a tragédia de qualquer produtor) como o ator Richard Harris, que vivia um personagem crucial nos filmes, Alvo Dumbledore - um dos professores mais importantes de Hogwarts e peça fundamental na trajetória do protagonista - estava com a saúde debilitada a ponto de ser quase afastado das filmagens; Harris morreu poucas semanas antes do lançamento do filme, e foi substituído, nas produções seguintes, por Michael Gambon. Com o elenco reforçado pela presença de Jason Isaacs e Kenneth Branagh, "Harry Potter e a câmara secreta" consegue uma façanha e tanto: mantém o alto nível de entretenimento do primeiro filme (se é que não o eleva) e agrada em cheio aos fãs dos livros.
"Harry Potter e a câmara secreta" começa com um tom leve, mas não demora a mergulhar aos poucos em uma tensa jornada: ainda na casa de seus tios, Potter é visitado por um atrapalhado elfo doméstico, Dobby (voz de Tony Jones), que não apenas coloca o bruxinho em péssimos lençóis, graças a suas interferências em outros membros da família. Sua aparição, no entanto, tem motivos bastante sinistros: segundo ele, coisas horríveis estão para acontecer em Hogwarts, e Potter deve evitar voltar à escola. É claro que seus avisos de nada adiantam: Potter retorna para mais um ano letivo, assim como seus melhores amigos, Ron e Hermione, e logo de cara percebe que os conselhos que não seguiu estavam mais do que certos. Vozes vindas das paredes, escritos de sangue com mensagens enigmáticas e alunos sendo petrificados sem motivo aparente levam Harry a uma investigação que revela muito mais do que ele esperava e remete à uma misteriosa câmara secreta, cujo histórico é ligado à presença malévola de Voldemort, que controla (não se sabe como) o lendário quarto da escola.
Assim como em "Harry Potter e a pedra filosofal", o segundo filme dirigido por Columbus ainda mostra seus protagonistas aprendendo a lidar com seus novos dons e lutando contra o mal, seja ele na forma de um apavorante guardião da câmara secreta, na pele do maquiavélico Draco Malfoy (Tom Felton) ou na figura pouco amistosa de Voldemort - além das dúbias ações do professor Severo Snape (Alan Rickman). A primeira metade do filme é dedicada a ilustrar os acontecimentos funestos que ameaçam fechar a escola, e sua segunda parte hipnotiza o espectador com revelações surpreendentes e constrói um clímax dos mais interessantes. Kenneth Branagh - substituindo Hugh Grant, que não pode participar do filme por problemas de agenda - é a melhor e mais acertada aquisição neste segundo capítulo, interpretando um falastrão e vaidoso Gilderoy Lockhart, professor que mostra sua real personalidade quando é chamado a desafiar o mal vindo do tétrico cômodo. É ele quem equilibra o tom entre a comédia (especialidade de Ron) e a tragédia (cortesia de Voldemort em si). O elenco juvenil se mostra mais à vontade nas peles dos protagonistas, e os veteranos do grupo (Harris, Maggie Smith, Julie Walters, Alan Rickman) aproveitam cada minuto em cena para provar que, mesmo em um filme direcionado a uma plateia menos madura, são capazes de roubar a cena - coisa que os efeitos visuais, discretos mas eficientíssimos, ajuda a ressaltar. Tão bom quanto o primeiro capítulo da saga, "Harry Potter e a câmara secreta" é, também, o último da série dirigido por Chris Columbus - um cineasta acostumado com o sucesso e com o diálogo com a audiência mais jovem. Columbus deu o pontapé inicial a um universo que se tornaria, a cada filme, mais e mais escuro e surpreendente.
sábado
DO QUE AS MULHERES GOSTAM
DO QUE AS MULHERES GOSTAM (What women want, 2000, Paramount Pictures/Icon Entertainment International, 127min) Direção: Nancy Meyers. Roteiro: Josh Goldsmith, Cathy Yuspa, estória de Josh Goldsmith, Cathy Yuspa, Diane Drake. Fotografia: Dean Cundey. Montagem: Thomas J. Nordberg, Stephen A. Rotter. Música: Alan Silvestri. Figurino: Ellen Mirojnick. Direção de arte/cenários: Jon Hutman/Rosemary Brandenburg. Produção executiva: Carmen Finestra, Stephen McEveety, David McFadzean. Produção: Susan Cartsonis, Bruce Davey, Gina Matthews, Nancy Meyers, Matt Williams. Elenco: Mel Gibson, Helen Hunt, Alan Alda, Marisa Tomei, Judy Greer, Sarah Paulson, Bette Midler, Mark Feuerstein, Lisa Edelstein, Loretta Devine. Estreia: 13/12/2000
No ano 2000, poucos astros de Hollywood eram tão confiáveis, em termos de bilheteria, quanto Mel Gibson. Além de popular, ele também agradava à crítica, com desempenhos elogiados como sua interpretação em "O preço de um resgate" (96) e os Oscar conquistados por seu "Coração valente", premiado pela Academia como o melhor filme de 1995. Seu apelo comercial era tão grande que até mesmo um filme previsível e apenas correto rendeu, só no mercado doméstico, mais de 180 milhões de dólares (colaborando para uma arrecadação total de pouco menos de 375 milhões. Tudo bem que sua parceira de cena era Helen Hunt, premiada com o Oscar de melhor atriz pouco tempo antes - por "Melhor é impossível", de 1997 -, mas foi seu carisma o principal responsável pelo êxito de "Do que as mulheres gostam", uma comédia romântica inofensiva e quase esquecível dirigida por Nancy Meyers - a mesma cineasta que se especializaria no gênero, mas com uma dose extra de inteligência e elegância.
Meyers, cuja única experiência havia sido o remake de "Operação Cupido", de 1998 - que ela havia co-dirigido pelo então marido Charles Shyer - foi contratada apenas para reescrever um roteiro concebido pela Touchstone para o estrelato de Tim Allen, um ator de grande sucesso nos EUA mas pouco celebrado internacionalmente. Com o roteiro pronto, ela chegou à conclusão de que ninguém seria melhor do que ela mesma para comandar - e pediu à Paramount, novo estúdio do projeto, para assinar também a direção e a co-produção. Pedido aceito e filme realizado, ficou claro para todos que, mesmo que outros pudessem ter sido o diretor, poucos falariam do assunto com tanta propriedade quanto Meyers. uma mulher bem-sucedida em um campo onde a grande maioria é formada por homens. Muitas das falas de sua protagonista feminina, Darcy Maguire, interpretada com correção por Helen Hunt, poderiam sair diretamente de suas memórias de sobrevivência no mercado de trabalho. Apesar disso, falta um pouco de consistência no resultado final de ""Do que as mulheres gostam": mesmo com algumas sequências bastante inspiradas e uma trilha sonora das melhores - que vão de Frank Sinatra a Alanis Morissette - o filme termina sem explorar todas as situações que apresenta no começo, e apela para um final feliz apressado e superficial, apesar de ter pouco mais de duas horas de duração.
A trama, improvável mas divertida, é mais um capítulo da série de guerras dos sexos que Hollywood sempre promoveu nas telas, com resultados os mais diversos - de Katharine Hepburn/Cary Grant a Meg Ryan/Tom Hanks, passando pelos icônicos Doris Day/Rock Hudson. Gibson vive Nick Marshall, um publicitário mulherengo e pouco sensível às necessidades das mulheres à sua volta - ex-esposa, filha adolescente, colegas de trabalho e eventuais amantes. Talentoso mas famoso por seu machismo, ele acaba perdendo a promoção que buscava para a igualmente competente Darcy McGuire, responsável por ser a responsável por conquistar o mercado feminino. Desgostoso com a situação, Nick se embebeda em seu apartamento e, enquanto tenta sentir o que as mulheres passam com seus rituais de beleza - o que inclui depilação por cera quente -, sofre um acidente doméstico e acorda com um dom inesperado: ouvir o pensamento de todas as mulheres à sua volta. A princípio totalmente desesperado com a novidade, ele descobre, em uma visita a uma terapeuta (interpretação não creditada da sempre ótima Bette Midler), que, em vez de uma maldição, sua nova condição pode ser uma bênção. Com esse novo olhar sobre o fato, Nick resolve utilizá-lo para roubar as ideias de Darcy e recuperar suas chances de promoção. Porém, como em toda boa comédia romântica, ele se apaixona pela nova colega, que, por sua vez, está encantada com a "sensibilidade feminina" de quem ela considerava desprezível pela forma com que tratava o "sexo frágil".
Meyers consegue fazer rir em boa parte do filme, principalmente quando mostra Nick tentando tirar vantagem de seus novos poderes - suas cenas com Marisa Tomei são engraçadíssimas, tanto no esperado encontro entre os dois quanto na revelação de seu "segredo". Os momentos de Nick antes do acidente são igualmente divertidos, apesar da canastrice de Gibson, e sua química com Marisa solta faíscas - o que não acontece com sua dupla com Helen Hunt, uma boa atriz mas dona de um papel que não se presta a maiores voos. Quando brinca e não se leva a sério, o filme de Meyers conquista sem esforço, mas o mesmo não acontece quando decide ser romântico: quando Nick e Darcy começam a se acertar, o bom humor da primeira parte fica de lado e quase assume, inclusive, uma subtrama dramática que aproxima o publicitário de uma jovem estagiária (interpretada por Judy Greer, uma atriz ainda subaproveitada em Hollywood). No final do jogo, pode-se dizer que "Do que as mulheres gostam" ganha mais do que perde, mas o resultado - que tinha tudo para ser uma goleada - é uma vitória apertada, sem o brilho que jogadores como Gibson e Hunt poderiam apresentar. É divertido, mas poderia ter sido muito melhor.
No ano 2000, poucos astros de Hollywood eram tão confiáveis, em termos de bilheteria, quanto Mel Gibson. Além de popular, ele também agradava à crítica, com desempenhos elogiados como sua interpretação em "O preço de um resgate" (96) e os Oscar conquistados por seu "Coração valente", premiado pela Academia como o melhor filme de 1995. Seu apelo comercial era tão grande que até mesmo um filme previsível e apenas correto rendeu, só no mercado doméstico, mais de 180 milhões de dólares (colaborando para uma arrecadação total de pouco menos de 375 milhões. Tudo bem que sua parceira de cena era Helen Hunt, premiada com o Oscar de melhor atriz pouco tempo antes - por "Melhor é impossível", de 1997 -, mas foi seu carisma o principal responsável pelo êxito de "Do que as mulheres gostam", uma comédia romântica inofensiva e quase esquecível dirigida por Nancy Meyers - a mesma cineasta que se especializaria no gênero, mas com uma dose extra de inteligência e elegância.
Meyers, cuja única experiência havia sido o remake de "Operação Cupido", de 1998 - que ela havia co-dirigido pelo então marido Charles Shyer - foi contratada apenas para reescrever um roteiro concebido pela Touchstone para o estrelato de Tim Allen, um ator de grande sucesso nos EUA mas pouco celebrado internacionalmente. Com o roteiro pronto, ela chegou à conclusão de que ninguém seria melhor do que ela mesma para comandar - e pediu à Paramount, novo estúdio do projeto, para assinar também a direção e a co-produção. Pedido aceito e filme realizado, ficou claro para todos que, mesmo que outros pudessem ter sido o diretor, poucos falariam do assunto com tanta propriedade quanto Meyers. uma mulher bem-sucedida em um campo onde a grande maioria é formada por homens. Muitas das falas de sua protagonista feminina, Darcy Maguire, interpretada com correção por Helen Hunt, poderiam sair diretamente de suas memórias de sobrevivência no mercado de trabalho. Apesar disso, falta um pouco de consistência no resultado final de ""Do que as mulheres gostam": mesmo com algumas sequências bastante inspiradas e uma trilha sonora das melhores - que vão de Frank Sinatra a Alanis Morissette - o filme termina sem explorar todas as situações que apresenta no começo, e apela para um final feliz apressado e superficial, apesar de ter pouco mais de duas horas de duração.
A trama, improvável mas divertida, é mais um capítulo da série de guerras dos sexos que Hollywood sempre promoveu nas telas, com resultados os mais diversos - de Katharine Hepburn/Cary Grant a Meg Ryan/Tom Hanks, passando pelos icônicos Doris Day/Rock Hudson. Gibson vive Nick Marshall, um publicitário mulherengo e pouco sensível às necessidades das mulheres à sua volta - ex-esposa, filha adolescente, colegas de trabalho e eventuais amantes. Talentoso mas famoso por seu machismo, ele acaba perdendo a promoção que buscava para a igualmente competente Darcy McGuire, responsável por ser a responsável por conquistar o mercado feminino. Desgostoso com a situação, Nick se embebeda em seu apartamento e, enquanto tenta sentir o que as mulheres passam com seus rituais de beleza - o que inclui depilação por cera quente -, sofre um acidente doméstico e acorda com um dom inesperado: ouvir o pensamento de todas as mulheres à sua volta. A princípio totalmente desesperado com a novidade, ele descobre, em uma visita a uma terapeuta (interpretação não creditada da sempre ótima Bette Midler), que, em vez de uma maldição, sua nova condição pode ser uma bênção. Com esse novo olhar sobre o fato, Nick resolve utilizá-lo para roubar as ideias de Darcy e recuperar suas chances de promoção. Porém, como em toda boa comédia romântica, ele se apaixona pela nova colega, que, por sua vez, está encantada com a "sensibilidade feminina" de quem ela considerava desprezível pela forma com que tratava o "sexo frágil".
Meyers consegue fazer rir em boa parte do filme, principalmente quando mostra Nick tentando tirar vantagem de seus novos poderes - suas cenas com Marisa Tomei são engraçadíssimas, tanto no esperado encontro entre os dois quanto na revelação de seu "segredo". Os momentos de Nick antes do acidente são igualmente divertidos, apesar da canastrice de Gibson, e sua química com Marisa solta faíscas - o que não acontece com sua dupla com Helen Hunt, uma boa atriz mas dona de um papel que não se presta a maiores voos. Quando brinca e não se leva a sério, o filme de Meyers conquista sem esforço, mas o mesmo não acontece quando decide ser romântico: quando Nick e Darcy começam a se acertar, o bom humor da primeira parte fica de lado e quase assume, inclusive, uma subtrama dramática que aproxima o publicitário de uma jovem estagiária (interpretada por Judy Greer, uma atriz ainda subaproveitada em Hollywood). No final do jogo, pode-se dizer que "Do que as mulheres gostam" ganha mais do que perde, mas o resultado - que tinha tudo para ser uma goleada - é uma vitória apertada, sem o brilho que jogadores como Gibson e Hunt poderiam apresentar. É divertido, mas poderia ter sido muito melhor.
quarta-feira
HARRY POTTER E A PEDRA FILOSOFAL
HARRY POTTER E A PEDRA FILOSOFAL (Harry Potter and the sorcere's stone, 2001, Warner Bros, 152min) Direção: Chris Columbus. Roteiro: Steve Kloves, romance de J. K. Rowling. Fotografia: John Seale. Montagem: Richard Francis-Bruce. Música: John Williams. Figurino: Juddiana Makovsky. Direção de arte/cenários: Stuart Craig/Stephenie McMillan. Produção executiva: Michael Barnathan, Chris Columbus, Duncan Henderson, Mark Radcliffe. Produção: David Heyman. Elenco: Daniel Radcliffe, Emma Watson, Rupert Grint, Richard Harris, Maggie Smith, Alan Rickman, Ian Hart, Julie Walters, John Hurt, Robbie Coltrane, Fiona Shaw, Richard Griffiths, Harry Melling. Estreia: 04/11/2001
3 indicações ao Oscar: Trilha Sonora Original, Figurino, Direção de Arte/Cenários
Não tinha como dar errado: o primeiro volume de um fenômeno editorial que só crescia a cada livro lançado, um cineasta acostumado a lidar com potenciais blockbusters e todo o capricho que um generoso orçamento de cerca de 125 milhões de dólares pode comprar. Além disso, um marketing poderoso, uma pré-produção que enchia de expectativas os fãs mais ardorosos, e um elenco que reunia jovens iniciantes com veteranos acima de qualquer suspeita. "Harry Potter e a pedra filosofal" não era apenas mais um filme, era um evento de enormes proporções e uma aposta certeira da Warner para bater de frente com outro fenômeno literário que também chegava às telas de cinema: o ambicioso "O Senhor dos Anéis". Mesmo com um público-alvo mais jovem do que aquele dos filmes de Peter Jackson que começavam sua trajetória nas salas de exibição, a comparação entre as duas produções não era completamente equivocada: ambos os filmes davam o pontapé inicial em séries que tanto poderiam passar à história como imensos sucessos ou avassaladores fracassos. Para o bem de todos e felicidade geral dos estúdios, porém, os leitores fiéis - e os neófitos curiosos - correram para os cinemas, e os críticos, normalmente bem avessos à superproduções, aplaudiram de pé e ficaram ansiosos pelo próximo capítulo.
A trajetória de "Harry Potter e a pedra filosofal" para passar das páginas escritas pela britânica J. K. Rowling para os cinemas do mundo inteiro já começou com uma batalha campal para que o estúdio chegasse ao nome mais apropriado para sentar na cadeira de diretor. Rowling sugeriu o nome do excêntrico Terry Gilliam - e provavelmente por seu histórico irregular o cineasta foi dispensado pela Warner. A princípio, o estúdio pensava em transformar os livros em um filme de animação - uma providência que evitaria os problemas que poderiam ter com o elenco infantil, que fatalmente cresceriam durante a produção dos (então) sete livros. Steven Spielberg até demonstrou interesse na primeira fase de negociações, mas acabou recusando o trabalho por, segundo boatos de bastidores, considerá-lo "fácil demais" - o que não deixa de ser verdade, haja visto seu vasto currículo de filmes-evento. A saída de Spielberg do projeto o levou novamente à estaca zero, e sua sugestão para a empreitada, M. Night Shyamalan, tampouco teve sucesso nas negociações. Nomes de vários estilos começaram a pipocar na imprensa especializada como sendo de prováveis diretores do primeiro filme - dos mais sérios (Jonathan Demme, Alan Parker, Peter Weir) aos mais apropriados para desenvolver um universo mais divertido e mais próximo à obra literária (Ivan Reitman, Rob Reiner, Brad Silberling). Quem acabou levando a melhor, no entanto, foi um diretor já acostumado com sucessos de bilheteria infantojuvenis: Chris Columbus, o homem por trás de "Esqueceram de mim" (90) e "Uma babá quase perfeita" (92) se apaixonou pelos livros de Rowling através de sua filha, e insistiu tanto com os executivos da Warner que acabou ganhando o trabalho - não apenas para o primeiro filme, mas também para o segundo.
Mas se encontrar um diretor que agradasse à escritora e respeitasse o desejo do estúdio de uma produção comercialmente viável foi difícil, o pior ainda estava por vir: o elenco. Rowling exigia que os atores escolhidos para o filme fossem britânicos, o que logo de cara excluía alguns fãs do livro que sonhavam em fazer parte do espetáculo, como Robin Williams, Rosie O'Donnell. Rowling em pessoa escolheu Alan Rickman (Severo Snape), Maggie Smith (McGonnagal) e Robbie Coltrane (Hagrid) para papéis fundamentais na trama, e o irlandês Richard Harris (única exceção permitida pela escritora) para viver o sábio Albus Dombledore, mas a grande questão no momento era uma só: quem irá interpretar os fiéis amigos do protagonista e, principalmente, quem emprestaria seu rosto a Harry Potter pela próxima década? Chris Columbus tinha uma ideia bastante clara a esse respeito, e sempre que perguntado sobre o assunto pelos executivos da Warner, mostrava cenas de uma adaptação televisiva de Charles Dickens, "David Copperfield" (1999) e apontava para o jovem Daniel Radcliffe como o intérprete ideal. Foram mais de 5000 testes até que finalmente a diretora de elenco do filme conseguiu o que o diretor mais desejava: convencer os pais do rapaz para que aprovassem sua participação no projeto. Para interpretar seus dois leais companheiros foram escolhidos Rupert Grint (Ronnie Weasley) e Emma Watson (Hermione Granger). No papel do rival de Potter na escola Howgrats de bruxaria, o escolhido foi Tom Felton, que havia feito o teste para viver Harry. E o resto é de conhecimento internacional.
Filmado na Inglaterra e na Escócia entre setembro de 2000 e março de 2001, "Harry Potter e a pedra filosofal" acabou se tornando um capítulo de estreia dos mais empolgantes. Somado ao senso de ritmo e humor de Columbus, o roteiro de Steve Kloves acertou em cheio ao introduzir sua trama e seus personagens de maneira fluida e sem pressa: com 152 minutos de duração, o filme mantém o espectador atento dos primeiros (e cômicos) momentos até seu clímax - um jogo de xadrez sinistro onde o mal começa a mostrar a que veio, fato que irá se aprofundar nos demais filmes (e livros), que vão se tornando gradualmente sombrios. A química entre o elenco de novatos e veteranos é impecável e o visual foi lembrado pela Academia com uma indicação aos Oscar de direção de arte e figurino - a trilha sonora, do onipresente John Williams também foi indicada. Aplaudido pela crítica e pelos fãs mais exigentes, "Harry Potter e a pedra filosofal" arrecadou quase 1 bilhão de dólares pelo mundo - foi a maior bilheteria do ano - e abriu as portas para os demais filmes da série, cada vez menos infantil e mais empolgante. Uma produção infanto-juvenil que ultrapassa sua definição mais óbvia e conquista também a plateia mais velha, o filme de Chris Columbus é um entretenimento dos mais bem-sucedidos, e se não foi levado tão a sério quanto seu rival direto - "O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel" - ao menos se mantém fresco e agradável mesmo depois de quase vinte anos. Um clássico instantâneo!
3 indicações ao Oscar: Trilha Sonora Original, Figurino, Direção de Arte/Cenários
Não tinha como dar errado: o primeiro volume de um fenômeno editorial que só crescia a cada livro lançado, um cineasta acostumado a lidar com potenciais blockbusters e todo o capricho que um generoso orçamento de cerca de 125 milhões de dólares pode comprar. Além disso, um marketing poderoso, uma pré-produção que enchia de expectativas os fãs mais ardorosos, e um elenco que reunia jovens iniciantes com veteranos acima de qualquer suspeita. "Harry Potter e a pedra filosofal" não era apenas mais um filme, era um evento de enormes proporções e uma aposta certeira da Warner para bater de frente com outro fenômeno literário que também chegava às telas de cinema: o ambicioso "O Senhor dos Anéis". Mesmo com um público-alvo mais jovem do que aquele dos filmes de Peter Jackson que começavam sua trajetória nas salas de exibição, a comparação entre as duas produções não era completamente equivocada: ambos os filmes davam o pontapé inicial em séries que tanto poderiam passar à história como imensos sucessos ou avassaladores fracassos. Para o bem de todos e felicidade geral dos estúdios, porém, os leitores fiéis - e os neófitos curiosos - correram para os cinemas, e os críticos, normalmente bem avessos à superproduções, aplaudiram de pé e ficaram ansiosos pelo próximo capítulo.
A trajetória de "Harry Potter e a pedra filosofal" para passar das páginas escritas pela britânica J. K. Rowling para os cinemas do mundo inteiro já começou com uma batalha campal para que o estúdio chegasse ao nome mais apropriado para sentar na cadeira de diretor. Rowling sugeriu o nome do excêntrico Terry Gilliam - e provavelmente por seu histórico irregular o cineasta foi dispensado pela Warner. A princípio, o estúdio pensava em transformar os livros em um filme de animação - uma providência que evitaria os problemas que poderiam ter com o elenco infantil, que fatalmente cresceriam durante a produção dos (então) sete livros. Steven Spielberg até demonstrou interesse na primeira fase de negociações, mas acabou recusando o trabalho por, segundo boatos de bastidores, considerá-lo "fácil demais" - o que não deixa de ser verdade, haja visto seu vasto currículo de filmes-evento. A saída de Spielberg do projeto o levou novamente à estaca zero, e sua sugestão para a empreitada, M. Night Shyamalan, tampouco teve sucesso nas negociações. Nomes de vários estilos começaram a pipocar na imprensa especializada como sendo de prováveis diretores do primeiro filme - dos mais sérios (Jonathan Demme, Alan Parker, Peter Weir) aos mais apropriados para desenvolver um universo mais divertido e mais próximo à obra literária (Ivan Reitman, Rob Reiner, Brad Silberling). Quem acabou levando a melhor, no entanto, foi um diretor já acostumado com sucessos de bilheteria infantojuvenis: Chris Columbus, o homem por trás de "Esqueceram de mim" (90) e "Uma babá quase perfeita" (92) se apaixonou pelos livros de Rowling através de sua filha, e insistiu tanto com os executivos da Warner que acabou ganhando o trabalho - não apenas para o primeiro filme, mas também para o segundo.
Mas se encontrar um diretor que agradasse à escritora e respeitasse o desejo do estúdio de uma produção comercialmente viável foi difícil, o pior ainda estava por vir: o elenco. Rowling exigia que os atores escolhidos para o filme fossem britânicos, o que logo de cara excluía alguns fãs do livro que sonhavam em fazer parte do espetáculo, como Robin Williams, Rosie O'Donnell. Rowling em pessoa escolheu Alan Rickman (Severo Snape), Maggie Smith (McGonnagal) e Robbie Coltrane (Hagrid) para papéis fundamentais na trama, e o irlandês Richard Harris (única exceção permitida pela escritora) para viver o sábio Albus Dombledore, mas a grande questão no momento era uma só: quem irá interpretar os fiéis amigos do protagonista e, principalmente, quem emprestaria seu rosto a Harry Potter pela próxima década? Chris Columbus tinha uma ideia bastante clara a esse respeito, e sempre que perguntado sobre o assunto pelos executivos da Warner, mostrava cenas de uma adaptação televisiva de Charles Dickens, "David Copperfield" (1999) e apontava para o jovem Daniel Radcliffe como o intérprete ideal. Foram mais de 5000 testes até que finalmente a diretora de elenco do filme conseguiu o que o diretor mais desejava: convencer os pais do rapaz para que aprovassem sua participação no projeto. Para interpretar seus dois leais companheiros foram escolhidos Rupert Grint (Ronnie Weasley) e Emma Watson (Hermione Granger). No papel do rival de Potter na escola Howgrats de bruxaria, o escolhido foi Tom Felton, que havia feito o teste para viver Harry. E o resto é de conhecimento internacional.
Filmado na Inglaterra e na Escócia entre setembro de 2000 e março de 2001, "Harry Potter e a pedra filosofal" acabou se tornando um capítulo de estreia dos mais empolgantes. Somado ao senso de ritmo e humor de Columbus, o roteiro de Steve Kloves acertou em cheio ao introduzir sua trama e seus personagens de maneira fluida e sem pressa: com 152 minutos de duração, o filme mantém o espectador atento dos primeiros (e cômicos) momentos até seu clímax - um jogo de xadrez sinistro onde o mal começa a mostrar a que veio, fato que irá se aprofundar nos demais filmes (e livros), que vão se tornando gradualmente sombrios. A química entre o elenco de novatos e veteranos é impecável e o visual foi lembrado pela Academia com uma indicação aos Oscar de direção de arte e figurino - a trilha sonora, do onipresente John Williams também foi indicada. Aplaudido pela crítica e pelos fãs mais exigentes, "Harry Potter e a pedra filosofal" arrecadou quase 1 bilhão de dólares pelo mundo - foi a maior bilheteria do ano - e abriu as portas para os demais filmes da série, cada vez menos infantil e mais empolgante. Uma produção infanto-juvenil que ultrapassa sua definição mais óbvia e conquista também a plateia mais velha, o filme de Chris Columbus é um entretenimento dos mais bem-sucedidos, e se não foi levado tão a sério quanto seu rival direto - "O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel" - ao menos se mantém fresco e agradável mesmo depois de quase vinte anos. Um clássico instantâneo!
domingo
A CRIANÇA
A CRIANÇA (L'enfant, 2005, Les Films du Fleuve, 95 min) Direção e roteiro: Jean-Pierre Dardenne, Luc Dardenne. Fotografia: Alain Marcoen. Montagem: Marie-Helène Dozo. Figurino: Monic Parelle. Direção de arte: Igor Gabriel. Produção executiva: Olivier Bronckart. Produção: Jean-Pierre Dardenne, Luc Dardenne, Denis Freyd. Elenco: Jérémie Renier, Déborah François, Jéremie Segard. Estreia: 17/5/05 (Festival de Cannes)
Palma de Ouro (Festival de Cannes)
Assim como Hollywood conta com Ethan e Joel Coen como um time cuja filmografia (quase) nunca decepciona, a Bélgica também tem uma dupla de irmãos cujo prestígio é atestado pela crítica e pelo Festival de Cannes - de onde já saíram premiados duas vezes com a Palma de Ouro de melhor filme, uma vez com o prêmio de melhor direção, três vezes com o Prêmio do Júri Ecumênico, uma vez com o Grande Prêmio do Júri e, em uma ocasião, com a láurea de Melhor Roteiro. Desde 1987 realizando longas-metragem, Jean-Pierre e Luc Dardenne, vindos do universo dos documentários, vem encantando o público de festivais internacionais e críticos do mundo inteiro com sua simplicidade estética, seu humanismo à toda prova e a delicadeza com que tratam seus personagens - invariavelmente passando por crises pessoais e/ou financeiras. Um de seus mais bem-sucedidos filmes, "A criança", não apenas lhes rendeu o prêmio máximo de Cannes 2005, como colocou-os em evidência em inúmeros festivais europeus, encantados por sua trama, capaz de emocionar e angustiar na mesma proporção. Com uma dupla central de atores completamente imersa em seus personagens e um tom de urgência quase palpável - enfatizado pela nervosa câmera de mão e pela ausência de trilha sonora -. "A criança" é um respiro de humanidade, ainda que seja preciso passar por boas doses de sofrimento para alcançar (ou não) um final feliz.
O filme começa quando a jovem Sonia (Déborah François) deixa a maternidade, com seu pequeno Jimmy nos braços. Ela sai em busca de seu namorado e pai do bebê, o irresponsável Bruno (Jérémie Renier), que vive de pequenos golpes e furtos e nem se deu ao trabalho de visitá-la durante sua estadia no hospital. Apesar de seu comportamento imaturo, Bruno realmente gosta da namorada, e juntos eles tentam encontrar maneiras de sustentar o bebê, apelando para benefícios sociais e abrigos para pessoas carentes. O idílio familiar, no entanto, dura pouco: ciente de que pode embolsar 500 euros pela venda de seu recém-nascido filho, Bruno resolve vendê-lo sem o conhecimento de Sonia. Quando ela fica sabendo da transação, o elo que os unia quebra imediatamente e o rapaz passa a tentar desesperadamente desfazer o negócio, algo que não é tão fácil quanto ele poderia pensar: além de recuperar o bebê, ele precisa também reconquistar a confiança e o amor da namorada.
O roteiro de "A criança" é simples ao extremo, ao focar sua atenção quase que exclusivamente em seu par de protagonistas - outros personagens são apenas circunstanciais, entrando em cena apenas para empurrar a trama à frente, como o adolescente que serve de sócio a Bruno em seus golpes e roubos e os responsáveis pela compra e venda de bebês. Os diretores acertam em cheio em não julgar os atos de Bruno e tampouco minimizá-los: como todo mundo, o rapaz tem qualidades e defeitos, e sua falta de maturidade pode até lhe servir de atenuante, mas não o exime de culpa e responsabilidade. Não deixa de ser interessante que o título do filme seja "A criança", já que, conforme o desenvolvimento da trama, o personagem-título tanto pode ser o recém-nascido Jimmy ou o pouco confiável Bruno. Para dar vida a alguém tão complexo, o ator Jérémie Renier foi a escolha perfeita: é impossível não simpatizar com ele mesmo diante de seus erros mais imperdoáveis, e torcer, na medida do possível, para que ele consiga reaver o filho e reatar com a namorada. No papel de Sonia - um contraponto necessário às loucuras de Bruno - está Déborah François, que transmite (até mesmo em poucas palavras) uma variedade de sentimentos que conquista o espectador logo na primeira cena. A química entre o casal é um trunfo e tanto nas mãos dos cineastas: outra dupla talvez não tivesse, em cena, a mesma força e o mesmo tom naturalista que é a força-motriz do filme.
"A criança" é um filme que parece com a vida - tanto com suas dores quanto por suas pequenas vitórias. No cerne da obra dos irmãos Dardenne - aqui e em outros filmes - está a compaixão pelo ser humano, por suas idiossincrasias e erro. É sintomático que Bruno seja tão falho e, ao mesmo tempo, tão apaixonante: ele é um arquetípico personagem da dupla de cineastas, dotado de uma verdade quase angustiante e incapaz de perceber que todos os seus atos, por menores que sejam, tem consequências avassaladoras - e, de vez em quando, irremediáveis. Em seu carinho pelo ser humano em geral e por Bruno em particular, Jean-Pierre e Luc Dardenne apontam, no desfecho de sua obra, uma luz no fim do túnel. Se Bruno e Sonia irão aproveitar tal luz ou desperdiçá-la com sua falta de maturidade é uma questão menor. O que importa, em "A criança", é jogar luz em vidas corriqueiras e mostrar ao público que, apesar de tudo, sempre há uma esperança. Em tempos difíceis, não deixa de ser uma ideia reconfortante.
Palma de Ouro (Festival de Cannes)
Assim como Hollywood conta com Ethan e Joel Coen como um time cuja filmografia (quase) nunca decepciona, a Bélgica também tem uma dupla de irmãos cujo prestígio é atestado pela crítica e pelo Festival de Cannes - de onde já saíram premiados duas vezes com a Palma de Ouro de melhor filme, uma vez com o prêmio de melhor direção, três vezes com o Prêmio do Júri Ecumênico, uma vez com o Grande Prêmio do Júri e, em uma ocasião, com a láurea de Melhor Roteiro. Desde 1987 realizando longas-metragem, Jean-Pierre e Luc Dardenne, vindos do universo dos documentários, vem encantando o público de festivais internacionais e críticos do mundo inteiro com sua simplicidade estética, seu humanismo à toda prova e a delicadeza com que tratam seus personagens - invariavelmente passando por crises pessoais e/ou financeiras. Um de seus mais bem-sucedidos filmes, "A criança", não apenas lhes rendeu o prêmio máximo de Cannes 2005, como colocou-os em evidência em inúmeros festivais europeus, encantados por sua trama, capaz de emocionar e angustiar na mesma proporção. Com uma dupla central de atores completamente imersa em seus personagens e um tom de urgência quase palpável - enfatizado pela nervosa câmera de mão e pela ausência de trilha sonora -. "A criança" é um respiro de humanidade, ainda que seja preciso passar por boas doses de sofrimento para alcançar (ou não) um final feliz.
O filme começa quando a jovem Sonia (Déborah François) deixa a maternidade, com seu pequeno Jimmy nos braços. Ela sai em busca de seu namorado e pai do bebê, o irresponsável Bruno (Jérémie Renier), que vive de pequenos golpes e furtos e nem se deu ao trabalho de visitá-la durante sua estadia no hospital. Apesar de seu comportamento imaturo, Bruno realmente gosta da namorada, e juntos eles tentam encontrar maneiras de sustentar o bebê, apelando para benefícios sociais e abrigos para pessoas carentes. O idílio familiar, no entanto, dura pouco: ciente de que pode embolsar 500 euros pela venda de seu recém-nascido filho, Bruno resolve vendê-lo sem o conhecimento de Sonia. Quando ela fica sabendo da transação, o elo que os unia quebra imediatamente e o rapaz passa a tentar desesperadamente desfazer o negócio, algo que não é tão fácil quanto ele poderia pensar: além de recuperar o bebê, ele precisa também reconquistar a confiança e o amor da namorada.
O roteiro de "A criança" é simples ao extremo, ao focar sua atenção quase que exclusivamente em seu par de protagonistas - outros personagens são apenas circunstanciais, entrando em cena apenas para empurrar a trama à frente, como o adolescente que serve de sócio a Bruno em seus golpes e roubos e os responsáveis pela compra e venda de bebês. Os diretores acertam em cheio em não julgar os atos de Bruno e tampouco minimizá-los: como todo mundo, o rapaz tem qualidades e defeitos, e sua falta de maturidade pode até lhe servir de atenuante, mas não o exime de culpa e responsabilidade. Não deixa de ser interessante que o título do filme seja "A criança", já que, conforme o desenvolvimento da trama, o personagem-título tanto pode ser o recém-nascido Jimmy ou o pouco confiável Bruno. Para dar vida a alguém tão complexo, o ator Jérémie Renier foi a escolha perfeita: é impossível não simpatizar com ele mesmo diante de seus erros mais imperdoáveis, e torcer, na medida do possível, para que ele consiga reaver o filho e reatar com a namorada. No papel de Sonia - um contraponto necessário às loucuras de Bruno - está Déborah François, que transmite (até mesmo em poucas palavras) uma variedade de sentimentos que conquista o espectador logo na primeira cena. A química entre o casal é um trunfo e tanto nas mãos dos cineastas: outra dupla talvez não tivesse, em cena, a mesma força e o mesmo tom naturalista que é a força-motriz do filme.
"A criança" é um filme que parece com a vida - tanto com suas dores quanto por suas pequenas vitórias. No cerne da obra dos irmãos Dardenne - aqui e em outros filmes - está a compaixão pelo ser humano, por suas idiossincrasias e erro. É sintomático que Bruno seja tão falho e, ao mesmo tempo, tão apaixonante: ele é um arquetípico personagem da dupla de cineastas, dotado de uma verdade quase angustiante e incapaz de perceber que todos os seus atos, por menores que sejam, tem consequências avassaladoras - e, de vez em quando, irremediáveis. Em seu carinho pelo ser humano em geral e por Bruno em particular, Jean-Pierre e Luc Dardenne apontam, no desfecho de sua obra, uma luz no fim do túnel. Se Bruno e Sonia irão aproveitar tal luz ou desperdiçá-la com sua falta de maturidade é uma questão menor. O que importa, em "A criança", é jogar luz em vidas corriqueiras e mostrar ao público que, apesar de tudo, sempre há uma esperança. Em tempos difíceis, não deixa de ser uma ideia reconfortante.
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