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quarta-feira

REVELAÇÃO

 


REVELAÇÃO (What lies beneath, 2000, 20th Century Fox/DreamWorks Pictures, 130min) Direção: Robert Zemeckis. Roteiro: Clark Gregg, história de Clark Gregg, Sarah Kernochan. Fotografia: Don Burgess. Montagem: Arthur Schmidt. Música: Alan Silvestri. Figurino: Susie DeSanto. Direção de arte/cenários: Rick Carter, Jim Teegarden/Karen O'Hara. Produção executiva: Joan Bradshaw, Mark Johnson. Produção: Jack Rapke, Steve Starkey, Robert Zemeckis. Elenco: Harrison Ford, Michelle Pfeiffer, Miranda Otto, James Remar, Diana Scarwid, Katharine Towne. Estreia: 18/7/2000

Em 2000, quando dirigiu "Revelação", o cineasta Robert Zemeckis já tinha no currículo uma comédia adolescente ("Febre de juventude"), um clássico da ficção científica juvenil ("De volta para o futuro" e suas continuações), um marco na interação entre live action e animação ("Uma cilada para Roger Rabbit"), um vencedor de múltiplos Oscar ("Forrest Gump: o contador de histórias") e uma adaptação de Carl Sagan ("Contato"). Faltava ainda exercitar seu músculo hitchcockiano e a oportunidade chegou na pausa das filmagens de "Náufrago" - enquanto Tom Hanks sofria para emagrecer o necessário para a segunda etapa dos trabalhos do filme que lhe daria mais uma indicação à estatueta, Zemeckis mergulhou em seu desejo de assustar os espectadores com uma trama que mistura fantasmas, assassinatos... e um Harrison Ford deixando de lado a persona heroica para dar vida a um personagem no mínimo dúbio. 

A um custo estimado de cem milhões de dólares - recuperado facilmente nas bilheterias ao redor do mundo, seduzido pela presença de Ford e da estrela Michelle Pfeiffer -, "Revelação" é uma exibição das técnicas de Zemeckis como diretor, um filme repleto de jogos de câmera, cortes rápidos, uso generoso da trilha sonora e exploração inteligente do som e da fotografia. Mas é, também, um filme com sérios problemas de roteiro e um desfecho atolado em clichês - problemas disfarçados por uma embalagem luxuosa proporcionada pelo orçamento milionário e por seus astros fotogênicos. Pfeiffer, linda e exuberante, brilha a maior parte do tempo - mesmo quando o roteiro apela para explicações sobrenaturais pouco críveis para uma trama que se propõe séria. Ford, por sua vez, só é devidamente aproveitado na segunda metade da história - mas não consegue fugir do tom monocórdio da maioria de seus trabalhos que não Indiana Jones. A dupla de atores - escolhas únicas do cineasta desde a concepção do projeto - apresenta uma química interessante que vai crescendo a cada sequência, mas ambos esbarram na preferência de Zemeckis em abusar de seus virtuosismos visuais em detrimento da consistência da história que deseja contar.

 

"Revelação" gira em torno do casal Spencer. Ele, Norman, é um cientista respeitado que tenta desesperadamente fugir da sombra do pai, igualmente prestigiado pela comunidade. Ela, Claire, é uma violoncelista que abandonou a carreira para cuidar do marido e da filha e que, um ano depois de um violento acidente de carro, se vê diante da solidão causada pela viagem de sua filha adolescente à universidade. Sozinha e entediada, Claire começa a acreditar que seu vizinho (James Remar) assassinou a esposa (Miranda Otto), a quem testemunhou chorando através da cerca de sua propriedade. Tal certeza coloca seu casamento em crise - agravada ainda mais quando a bela dona-de-casa passa também a ouvir vozes misteriosas e sentir presenças ameaçadoras em sua bela casa à beira de um lago de Vermont. Norman tem certeza de que sua esposa está passando por uma séria crise de nervos, mas a situação muda completamente quando tais eventos começam a remeter à identidade de uma jovem estudante desaparecida - cujo destino parece intimamente ligado à mansão dos Spencer.

A história concebida pelo também ator Clark Gregg - que coescreveu o roteiro com Sarah Kernochan - apresenta várias possibilidades para o espectador, mas infelizmente não consegue equilibrá-las a contento. Ao mesclar uma narrativa policial tradicional com elementos do mais puro terror sobrenatural, o filme parece derrapar em dois gêneros que, em mãos mais seguras, podem ser complementares - mas que sob o comando de Zemeckis nem sempre conseguem dialogar entre si. De talento mais que comprovado, o cineasta perde a mão ao enfatizar o suspense visual e deixar de lado o desenvolvimento de seus personagens - talvez mais uma homenagem a Hitchcock, que privilegiava a manipulação dos nervos do público através de artifícios narrativos visuais e sonoros. Em especial no ato final, a tensão assume um protagonismo tal que a trama em si soa ainda mais insignificante, como se servisse unicamente como vitrine das peripécias estilísticas de seu diretor. No final das contas, "Revelação" se mostra um filme de suspense acima da média, mas que fica aquém do talento de seu time - ao menos em termos de roteiro e consistência.

sábado

CHOCOLATE


CHOCOLATE (Chocolate, 2000, Miramax, 121min) Direção: Lasse Halstrom. Roteiro: Robert Nelson Jacobs, romance de Joanne Harris. Fotografia: Roger Pratt. Montagem: Andrew Mondshein. Música: Rachel Portman. Figurino: Renée Ehrlich Kalfus. Direção de arte/cenários: David Gropman/Stephenie McMillan. Produção executiva: Alan C. Blomquist, Meryl Poster, Bob Weinstein, Harvey Weinstein. Produção: David Brown, Kit Golden, Leslie Holleran. Elenco: Juliette Binoche, Judi Dench, Johnny Depp, Lena Olin, Alfred Molina, Carrie-Anne Moss, Peter Stormare, Leslie Caron, Victoire Thivisol. Estreia: 15/12/2000

5 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Atriz (Juliette Binoche), Atriz Coadjuvante (Judi Dench), Roteiro Adaptado, Trilha Sonora Original

 Dentre os indicados ao Oscar de melhor filme do ano de 2000 - com produções aplaudidas pela crítica ("Traffic" e "O tigre e o dragão") e sucessos de bilheteria ("Erin Brockovich: uma mulher de talento" e o grande vencedor, "Gladiador") -, a presença do apenas correto "Chocolate", dirigido pelo sueco Lasse Halstrom, pegou muita gente de surpresa. Porém, não era preciso pensar muito para descobrir os motivos de sua lembrança pelos membros da Academia: com uma campanha agressiva que caracterizava sua produtora, a Miramax (responsável pelo sucesso de "Shakespeare apaixonado" contra o superior "O resgate do soldado Ryan", da temporada 1998), os então todo-poderosos Bob e Harvey Weinstein fizeram de um drama convencional e simpático o candidato da temporada preferido dos mais românticos - e de quebra arrancou ainda indicações importantes, como atriz (Juliette Binoche), atriz coadjuvante (Judi Dench) e roteiro adaptado. Porém, a verdade é que, se não fosse o belo empurrão dos irmãos Weinstein, o filme adaptado do romance de Joanne Harris até poderia encantar o público, mas dificilmente chegaria ao páreo final. Isso não significa, no entanto, que o filme de Halstrom seja medíocre - ele é apenas pouco memorável, apesar da união de enormes talentos.

A trama se passa em uma pequena cidade francesa, em 1959. É lá que chega a misteriosa e sedutora Vianne Rocher (Juliette Binoche), acompanhada de sua pequena filha, Anouk (Victoire Thivisol). As duas chegam às vésperas da Semana Santa com o objetivo de abrir uma chocolateria - e o fato de desafiarem - ainda que inconscientemente - os dogmas religiosos da cidade, esmagadoramente católica e liderada com mão de ferro pelo prefeito, Conde de Reynaud (Alfred Molina), um homem de preceitos morais rígidos e que é assombrado pelo desaparecimento da esposa, anos antes. Espontânea e independente, Vianne divide opiniões na pequena cidade: enquanto boa parte da população segue a opinião equivocada de Reynaud, outros habitantes se deixam seduzir por seus belos e deliciosos chocolates e por seus conselhos - que abalam o até então pacato local. É Vianne, por exemplo, que aproxima sua locatária, Amande Voizin (Judi Dench), de seu neto, mantido afastado por obra de sua filha, Caroline (Carrie-Anne Moss), e incentiva a submissa Josephine Muscat (Lena Olin) a dar um basta em casamento com o abusivo Serge (Peter Stormare). Como se não bastasse tantos problemas, a situação fica ainda pior com a chegada de um grupo de nômades, que reacendem os preconceitos dos moradores. Quando seu líder, Roux (Johnny Depp) se envolve romanticamente com Vianne não é apenas a magia de seus doces que passa a perturbar Reynaud e a parcela conservadora do local: tratados com rispidez e intolerância, resta a eles lutarem por seus direitos ou partir para outra cidade.


 

A atmosfera romântica e lúdica de "Chocolate" é seu maior trunfo: a fotografia suave de Roger Pratt e a trilha sonora de Rachel Portman conduzem o espectador a um universo quase de contos-de-fada, valorizado pela cuidadosa reconstituição de época. A presença de Juliette Binoche - em papel recusado por Gwyneth Paltrow (queridinha dos irmãos Weinstein) - é outro achado do filme: mesmo que não tenha necessitado utilizar-se de todo seu potencial, a atriz francesa oferece ao espectador o carisma necessário para envolver o público em uma trama que, se não apresenta maiores novidades, tampouco decepciona aos fãs do gênero. Explorando com delicadeza o clichê da forasteira misteriosa que altera a dinâmica de uma sociedade conservadora, a trama de Joanne Harris - adaptada por Robert Nelson Jacobs, indicado ao Oscar da categoria - brinda o público com personagens fascinantes (ainda que não devidamente aprofundados) interpretados por atores acima de qualquer crítica. Lena Olin (casada com o diretor Lasse Halstrom) brilha na pele de uma mulher descobrindo sua própria força, soterrada em um casamento tóxico. Alfred Molina exercita sua persona de vilão com um Conde Reynaud com sentimentos escondidos sob uma carcaça insensível. E Judi Dench, excelente como sempre, mereceu sua indicação ao Oscar de atriz coadjuvante como a aparentemente ríspida Amande - que se revela uma mulher ansiando pelo reencontro com a família que lhe foi tirada pela própria filha.

Acertando em colocar o romance entre Vienna e Roux como trama secundária - preferindo focar a relação da doceira com os preconceitos locais em primeiro plano -, "Chocolate" é um filme que, assim como o doce que lhe dá título, oferece conforto e satisfação, ao menos durante as duas horas de sua duração. Mas é inegável que, apesar de ser vendido como uma produção ao estilo europeu, não consegue disfarçar certa superficialidade em seu roteiro e até mesmo na direção quase mecânica de Halstrom - que pouco antes havia brindado os cinéfilos com o doce "Regras da vida" (1999). Esteticamente caprichado e com um elenco de sonhos, "Chocolate" é o filme ideal para quem procura um drama mais leve e com um pé na fantasia - elemento sublinhado pela narração em off, que lhe empresta um tom de fábula apropriado e delicado. Talvez não tenha merecido um lugar entre os melhores filmes de um ano que deu ao mundo "Billy Elliot", "Quase famosos" e "Réquiem para um sonho", mas é difícil não se deixar seduzir pelo menos enquanto dura a sessão.

terça-feira

EU, EU MESMO E IRENE


EU, EU MESMO E IRENE (Me, myself & Irene, 2000, 20thCentury Fox, 116min) Direção: Bobby Farrelly, Peter Farrelly. Roteiro: Bobby Farrelly, Peter Farrelly, Mike Cerrone. Fotografia: Mark Irwin. Montagem: Christopher Greenbury. Música: Lee Scott, Pete Yorn. Figurino: Pamela Withers.Direção de arte/cenários: Sidney J. Bartholomew Jr./Scott Jacobson. Produção executiva: Tom Schulman, Charles B. Wessler. Produção: Bobby Farrelly, Peter Farrelly, Bradley Thomas. Elenco: Jim Carrey, Renée Zellweger, Chris Cooper, Robert Forster, Richard Jenkins. Estreia: 15/6/2000

Sutileza nunca foi o forte de Bobby e Peter Farrely. Desde que apareceram no radar de Hollywood com "Débi & Lóide: dois idiotas em apuros" (1994), os irmãos não pararam de apelar para a vulgaridade como forma de fazer as plateias gargalharem sem que fosse preciso acionar o cérebro. Atingiram o auge do sucesso com "Quem vai ficar com Mary?" (1998), em que aproveitaram a popularidade e o carisma de Cameron Diaz para um desfile de piadas infames com o verniz de credibilidade oferecido por um grande estúdio (a 20th Century Fox) e se tornaram nomes quentes na indústria. Porém, até mesmo aqueles que fingiam não ver o excesso de grosserias visuais e verbais de seus primeiros filmes não deixaram de ficar chocados com a absoluta falta de noção apresentada em "Eu, eu mesmo e Irene". Estrelado pelo mesmo Jim Carrey de "Débi & Lóide" e valorizado pela presença da sempre ótima Renée Zellweger, o terceiro longa dos Farrelly não poupa o espectador de piadas constrangedoras que atingem todo e qualquer tipo de minoria - racial, étnica ou médica -, mas esbarra perigosamente em sua falta de limites. Mesmo com uma bilheteria polpuda de quase 150 milhões de dólares, a comédia quase romântica dos Farrelly encontrou severa resistência em sua estreia, e foi criticado justamente por aquilo que parecia ser o ponto forte dos cineastas: o humor politicamente incorreto.

Quem primeiro chiou a respeito do filme foram as associações de familiares de portadores de esquizofrenia, que não gostaram nem um pouco de ver a doença tratada como piada - principalmente da forma avassaladoramente histriônica apresentada por Jim Carrey no auge de seu sucesso no gênero. Depois disso, vieram reclamações sobre como o filme debochava de anões, negros e albinos - se quisesse, qualquer um poderia encontrar motivos justos para queixas. A grande questão, porém,  descontado o absoluto desprezo da dupla de realizadores por um mísero traço de sofisticação, é o fato de que, apesar de seguir quase à risca a fórmula dos primeiros filmes dos cineastas, "Eu, eu mesmo e Irene" não é nem de longe tão engraçado quanto eles. Primeiro por forçar piadas que soam deslocadas e nem sempre funcionam. E principalmente porque, ao contrário de seus trabalhos anteriores, elas estão diluídas em uma trama que exige mais do espectador do que simplesmente risadas - por vezes, a história (fraca) que envolve os personagens fica tão confusa que sobra pouco tempo para rir.

 

O personagem central do filme é Charlie Baileygates, um pacato policial de Rhode Island, cumpridor das leis, afável a ponto de ser tratado como capacho por quase todo mundo e um pai dedicado de trigêmeos que são a prova do adultério da ex-esposa. Continuamente abusado em sua boa-fé, ingenuidade e bondade, um dia Charlie deixa escapar uma nova personalidade: bruto, desbocado, vulgar e sem filtros, Hank assusta os moradores da pequena cidade e principalmente seus colegas de trabalho. Ciente dessa nova condição psíquica de Charlie - administrável quando devidamente medicada -, seu superior, Coronel Partington (Robert Forster) lhe dá uma missão simples: acompanhar com segurança, até o estado de Nova York, a forasteira Irene Walker (Renée Zellweger), presa por dívidas com a polícia rodoviária. No caminho, porém, Charlie descobre que Irene está na mira de policiais corruptos e um ex-namorado tóxico, que farão de tudo para eliminá-la. Intercalando momentos bons com outros dominados por Hank, ele se apaixona pela bela fugitiva e passa a disputá-la com seu grosseiro alterego.

Assumindo o papel central depois que Jack Black pulou fora do projeto, Jim Carrey deita e rola em sua mais absoluta zona de conforto. Seu talento para o humor físico serve como uma luva para as insanidades do roteiro - terminado por Mike Cerrone em 1991 e posteriormente adequado ao estilo dos irmãos Farrelly pelos próprios diretores - e é difícil imaginar outro ator com a coragem suficiente de participar, em uma fase já de grande prestígio na carreira, de algumas sequências francamente duvidosas (sem spoilers, basta citar um momento com uma mãe amamentando um bebê e outro com uma vaca atropelada no meio da estrada). Renée Zellweger está encantadora como Irene Walker, mas tem pouco a fazer diante das atrocidades comandadas por Carrey (com quem namorou durante as filmagens), e o elenco coadjuvante conta com nomes consagrados por indicações ou vitórias no Oscar (Chris Cooper, Richard Jenkins, Robert Forster). Nada disso impede, no entanto, que "Eu, eu mesmo e Irene" fique na história mais como um filme que talvez tenha ido longe demais em seu conceito de humor a qualquer preço do que por suas qualidades artísticas e/ou cômicas. Não à toa, os próprios Farrelly o consideram seu pior filme - e isso que depois eles ainda virariam sua metralhadora giratória para obesos ("O amor é cego", de 2000) e gêmeos siameses ("Ligado em você", de 2003), até Peter deixar de lado seu pendor para o politicamente incorreto, e cometer "Green Book: O Guia", que levou o Oscar de melhor filme de 2018 ao falar sobre racismo (mesmo que sob um ponto de vista branco e pouco profundo).

sábado

DO QUE AS MULHERES GOSTAM

DO QUE AS MULHERES GOSTAM (What women want, 2000, Paramount Pictures/Icon  Entertainment International, 127min) Direção: Nancy Meyers. Roteiro: Josh Goldsmith, Cathy Yuspa, estória de Josh Goldsmith, Cathy Yuspa, Diane Drake. Fotografia: Dean Cundey. Montagem: Thomas J. Nordberg, Stephen A. Rotter. Música: Alan Silvestri. Figurino: Ellen Mirojnick. Direção de arte/cenários: Jon Hutman/Rosemary Brandenburg. Produção executiva: Carmen Finestra, Stephen McEveety, David McFadzean. Produção: Susan Cartsonis, Bruce Davey, Gina Matthews, Nancy Meyers, Matt Williams. Elenco: Mel Gibson, Helen Hunt, Alan Alda, Marisa Tomei, Judy Greer, Sarah Paulson, Bette Midler, Mark Feuerstein, Lisa Edelstein, Loretta Devine. Estreia: 13/12/2000

No ano 2000, poucos astros de Hollywood eram tão confiáveis, em termos de bilheteria, quanto Mel Gibson. Além de popular, ele também agradava à crítica, com desempenhos elogiados como sua interpretação em  "O preço de um resgate" (96) e os Oscar conquistados por seu "Coração valente", premiado pela Academia como o melhor filme de 1995. Seu apelo comercial era tão grande que até mesmo um filme previsível e apenas correto rendeu, só no mercado doméstico, mais de 180 milhões de dólares (colaborando para uma arrecadação total de pouco menos de 375 milhões. Tudo bem que sua parceira de cena era Helen Hunt, premiada com o Oscar de melhor atriz pouco tempo antes - por "Melhor é impossível", de 1997 -, mas foi seu carisma o principal responsável pelo êxito de "Do que as mulheres gostam", uma comédia romântica inofensiva e quase esquecível dirigida por Nancy Meyers - a mesma cineasta que se especializaria no gênero, mas com uma dose extra de inteligência e elegância.

Meyers, cuja única experiência havia sido o remake de "Operação Cupido", de 1998 - que ela havia co-dirigido pelo então marido Charles Shyer - foi contratada apenas para reescrever um roteiro concebido pela Touchstone para o estrelato de Tim Allen, um ator de grande sucesso nos EUA mas pouco celebrado internacionalmente. Com o roteiro pronto, ela chegou à conclusão de que ninguém seria melhor do que ela mesma para comandar - e pediu à Paramount, novo estúdio do projeto, para assinar também a direção e a co-produção. Pedido aceito e filme realizado, ficou claro para todos que, mesmo que outros pudessem ter sido o diretor, poucos falariam do assunto com tanta propriedade quanto Meyers. uma mulher bem-sucedida em um campo onde a grande maioria é formada por homens. Muitas das falas de sua protagonista feminina, Darcy Maguire, interpretada com correção por Helen Hunt, poderiam sair diretamente de suas memórias de sobrevivência no mercado de trabalho. Apesar disso, falta um pouco de consistência no resultado final de ""Do que as mulheres gostam": mesmo com algumas sequências bastante inspiradas e uma trilha sonora das melhores - que vão de Frank Sinatra a Alanis Morissette - o filme termina sem explorar todas as situações que apresenta no começo, e apela para um final feliz apressado e superficial, apesar de ter pouco mais de duas horas de duração.


A trama, improvável mas divertida, é mais um capítulo da série de guerras dos sexos que Hollywood sempre promoveu nas telas, com resultados os mais diversos - de Katharine Hepburn/Cary Grant a Meg Ryan/Tom Hanks, passando pelos icônicos Doris Day/Rock Hudson. Gibson vive Nick Marshall, um publicitário mulherengo e pouco sensível às necessidades das mulheres à sua volta - ex-esposa, filha adolescente, colegas de trabalho e eventuais amantes. Talentoso mas famoso por seu machismo, ele acaba perdendo a promoção que buscava para a igualmente competente Darcy McGuire, responsável por ser a responsável por conquistar o mercado feminino. Desgostoso com a situação, Nick se embebeda em seu apartamento e, enquanto tenta sentir o que as mulheres passam com seus rituais de beleza - o que inclui depilação por cera quente -, sofre um acidente doméstico e acorda com um dom inesperado: ouvir o pensamento de todas as mulheres à sua volta. A princípio totalmente desesperado com a novidade, ele descobre, em uma visita a uma terapeuta (interpretação não creditada da sempre ótima Bette Midler), que, em vez de uma maldição, sua nova condição pode ser uma bênção. Com esse novo olhar sobre o fato, Nick resolve utilizá-lo para roubar as ideias de Darcy e recuperar suas chances de promoção. Porém, como em toda boa comédia romântica, ele se apaixona pela nova colega, que, por sua vez, está encantada com a "sensibilidade feminina" de quem ela considerava desprezível pela forma com que tratava o "sexo frágil".

Meyers consegue fazer rir em boa parte do filme, principalmente quando mostra Nick tentando tirar vantagem de seus novos poderes - suas cenas com Marisa Tomei são engraçadíssimas, tanto no esperado encontro entre os dois quanto na revelação de seu "segredo". Os momentos de Nick antes do acidente são igualmente divertidos, apesar da canastrice de Gibson, e sua química com Marisa solta faíscas - o que não acontece com sua dupla com Helen Hunt, uma boa atriz mas dona de um papel que não se presta a maiores voos. Quando brinca e não se leva a sério, o filme de Meyers conquista sem esforço, mas o mesmo não acontece quando decide ser romântico: quando Nick e Darcy começam a se acertar, o bom humor da primeira parte fica de lado e quase assume, inclusive, uma subtrama dramática que aproxima o publicitário de uma jovem estagiária (interpretada por Judy Greer, uma atriz ainda subaproveitada em Hollywood). No final do jogo, pode-se dizer que "Do que as mulheres gostam"  ganha mais do que perde, mas o resultado - que tinha tudo para ser uma goleada - é uma vitória apertada, sem o brilho que jogadores como Gibson e Hunt poderiam apresentar. É divertido, mas poderia ter sido muito melhor.

terça-feira

O BARATO DE GRACE

O BARATO DE GRACE (Saving Grace, 2000, Sky Pictures, 93min) Direção: Nigel Cole. Roteiro: Craig Ferguson, Mark Crowdy, estória de Mark Crowdy. Fotografia: John de Borman. Montagem: Alan Strachan. Música: Mark Russell. Figurino: Annie Symons. Direção de arte/cenários: Eve Stewart/Tom Read. Produção executiva: Xavier Marchand, Cat Villiers. Produção: Mark Crowdy. Elenco: Brenda Blethyn, Craig Ferguson, Martin Clunes, Tchéky Karyo, Jamie Foreman, Valerie Edmond, Phyllida Law. Estreia: 24/01/00 (Festival de Sundance)

Só mesmo um cineasta inglês conseguiria o feito de realizar uma comédia sobre maconha sem chocar o público mais conservador - e ainda por cima conquistar a crítica a ponto de receber uma indicação ao Golden Globe de melhor atriz e o prêmio da audiência no Festival de Sundance. Extraindo seu humor do dia-a-dia, de personagens carismáticos e do surrealismo da situação central, "O barato de Grace" é uma delícia! Leve, inteligente, ligeiro e alto-astral, é o triunfo da simplicidade em uma indústria anabolizada por orçamentos milionários e efeitos visuais estonteantes. Sem grandes astros no elenco - o nome mais conhecido é o de Brenda Blethyn, indicada ao Oscar por "Segredos e mentiras" (96) - e dirigido por Nigel Cole - que três anos depois lançaria o igualmente simpático "Garotas do calendário", estrelado por Helen Mirren -, é o que se convencionou chamar de feel good movie, mas tem a seu favor a coragem de provocar a plateia com um assunto delicado, mesmo que faça isso apenas superficialmente e de maneira menos ofensiva possível.

A protagonista, interpretada com perfeito timing cômico por uma surpreendente Brenda Blethyn, é Grace Trevethyn, que acaba de ficar viúva e descobrir, do pior jeito possível, que está na bancarrota. Além de não lhe deixar nenhuma herança, seu marido, morto em circunstâncias estranhas, acumulou dívidas a ponto de sua própria casa estar correndo o risco de ser leiloada. Desesperada com sua situação, conhecida de toda a pequena cidade onde ela vive, Grace encontra uma saída inesperada quando se oferece para ajudar seu jovem jardineiro, Matthew (Craig Ferguson, também um dos autores do roteiro), recém demitido, a cultivar uma erva que, sem a luz apropriada, não está crescendo o suficiente enquanto escondida em um terreno atrás da casa do vigário do local. Encantada com a rapidez com que as plantas se desenvolvem em sua estufa, Grace descobre que está com uma mina de ouro em mãos: Matthew planta maconha e sua venda, caso o investimento seja maior, pode não apenas salvar seu lar mas lhe render uma bela grana.


As artimanhas de Grace para defender seu novo modo de vida, sua relação de mãe e filho com Matthew, a ajuda dos amigos para esconder a contravenção da querida moradora da cidade, as tentativas da protagonista em vender a mercadoria a um perigoso traficante londrino (Tchéky Karyo) e os problemas entre o jardineiro e sua namorada grávida, Nicky (Valerie Edmond) dão a tônica do filme. Com um ritmo admirável, que mescla humor e uma certa melancolia, o roteiro explora ao máximo as idiossincrasias de uma cidade do interior, com generosidade suficiente para oferecer cenas memoráveis até mesmo a coadjuvantes com papéis quase insignificantes (a dupla de idosas que tomam chá de maconha, uma delas interpretada por Phyllida Law, mãe da atriz Emma Thompson é hilariante). Além disso, a trilha sonora repleta de sucessos dos anos 70 e 80 ilustra com perfeição o clima da produção - e convida o espectador a uma doce nostalgia enquanto acompanha as travessuras de uma personagem principal encantadora e corajosa. A despretensão do filme lembra a de outro produto britânico, "Ou tudo ou nada" (97), mas sua crítica social é bem menos contundente - ainda que ambos se utilizem de assuntos tabu (nudez masculina e uso de maconha) para divertir e emocionar.

É inegável que, em determinado ponto, "O barato de Grace" sofre uma pequena queda de ritmo - quando a protagonista sai de sua cidadezinha para ir ao encontro do traficante o filme perde um pouco seu tom doméstico e parece prestes a cair na armadilha de querer ir mais longe do que deveria. Mas felizmente o roteiro logo retorna às suas origens e volta a centrar seu foco nos problemas de Grace e na relação problemática entre Matthew e Nicky. O desfecho também pode soar um pouco forçado, buscando um final feliz meio inverossímil. Porém, é tudo tão simpático, agradável e bem-humorado que é difícil reclamar. Nigel Cole dirige o filme com mão leve, sem forçar a barra nos dramas de sua personagem principal - mesmo que sua situação seja bastante preocupante - e tratando o casal romântico central com carinho de pai. É um filme que merecia ter tido mais sucesso - e que é altamente recomendável a qualquer espectador que esteja disposto a relaxar diante da tela sem abrir mão de seus neurônios. Uma bela e aconchegante surpresa!

domingo

LINHAS CRUZADAS

LINHAS CRUZADAS (Hanging up, 2000, Columbia Pictures Corporation, 94min) Direção: Diane Keaton. Roteiro: Nora Ephron, Delia Ephron, romance de Delia Ephron. Fotografia: Howard Atherton. Montagem: Julie Monroe. Música: David Hirschfelder. Figurino: Bobbie Read. Direção de arte/cenários: Waldemar Kalinowski/Florence Fellman. Produção executiva: Delia Ephron, Bill Robinson. Produção: Nora Ephron, Laurence Mark. Elenco: Meg Ryan, Walter Matthau, Diane Keaton, Lisa Kudrow, Adam Arkin, Cloris Leachman. Estreia: 16/02/00

O time formado pela atriz Meg Ryan e pela roteirista Nora Ephron se mostrou uma fórmula de sucesso em pelo menos três ocasiões: em 1989, com "Harry e Sally: feitos um para o outro" (que revelou Ryan como estrela e rendeu à Ephron uma indicação ao Oscar), em 1993, com "Sintonia de amor" (enorme sucesso de bilheteria que também concorreu a uma estatueta pelo script romântico e bem-humorado), e em 1997,  com "Mensagem para você" (remake do clássico "A pequena loja da esquina" e que voltava a reunir Ryan com Tom Hanks, depois do êxito de "Sintonia"). No caso dos dois últimos, Ephron não apenas assinava o roteiro como também assumia a cadeira de direção, imprimindo a eles um estilo inconfundível que mesclava risos, lágrimas, música de qualidade e romantismo para dar e vender. Em "Linhas cruzadas", lançado em 2000, a dupla voltou a se encontrar, mas dessa vez com uma alteração em sua dinâmica: Ephron continuava por trás do texto, Meg continuava com o principal papel feminino, mas a direção ficou a cargo de Diane Keaton - atriz consagrada e cineasta bissexta. Porém, o filme, baseado no romance de Delia Ephron (irmã de Nora e coautora do roteiro), mostrou que nem mesmo receitas já testadas funcionam o tempo todo: massacrado pela crítica e com uma bilheteria tímida que nem mesmo cobriu seu custo, "Linhas cruzadas" só fica na memória mesmo por um fato triste: ser o último trabalho do ator Walter Matthau, que morreu quatro meses após sua estreia.

Na verdade "Linhas cruzadas" não é um filme ruim. Pelo menos não tão ruim quanto fizeram pensar as críticas à época de seu lançamento e a renda minguada de pouco mais de 30 milhões de dólares no mercado doméstico. Talvez seu maior problema tenha sido a equivocada estratégia de marketing, que, ao invés de assumi-lo como o drama familiar que é, preferiu vender a ideia de que se tratava de uma comédia - fator agravado pela presença de Lisa Kudrow (da popular série "Friends"), de Keaton (cujo "Clube das desquitadas", de 1996, foi um sucesso-surpresa) e até da própria Meg Ryan, a encarnação mais perfeita do romantismo ingênuo na década. Mesmo que o texto de Ephron tenha mantido alguns de seus toques de sarcasmo, a história que envolve três irmãs lidando com a iminência da morte do pai não é exatamente leve ou divertida - e nem mesmo o timing cômico de suas atrizes é capaz de levantar um tema tão denso. A indecisão entre o drama e a comédia (acentuada pela pouca experiência de Keaton atrás das câmeras) impede o filme de decolar em qualquer um dos gêneros.Em "Linhas cruzadas" o público não ri nem chora - fica sempre no meio do caminho, esperando que finalmente o roteiro tome um rumo definido (e quando isso acontece, perto do final, já é tarde demais para esperar a empatia da plateia).


Walter Matthau, simpático como sempre, dá vida a Lou Mozell, um septuagenário bonachão, mulherengo e irresponsável que, vítima de câncer, dá entrada em um hospital já demonstrando sinais de demência - que o leva a frequentemente fugir da realidade e relembrar traumas do passado. Entre esses traumas, o maior é a separação de sua mulher, Pat (Cloris Leachman), que o abandonou e às três filhas por não ter "o instinto maternal" como uma de suas características. A doença de Lou afeta especialmente sua filha do meio, Eve (Meg Ryan), dona de uma empresa de planejamento de festas e que, há alguns anos, se afastou dele depois de um incidente em uma festa de família. Como sua irmã mais velha, Georgia (Diane Keaton) é uma ocupadíssima dona de revista e celebridade nacional, e sua caçula, Maddy (Lisa Kudrow) está tentando uma carreira como atriz de telenovelas, cabe à Eve lidar com a enfermidade paterna e todas as suas consequências - o que irá fatalmente fazê-la encarar alguns fantasmas e a sua relação com as irmãs, com quem mantém um relacionamento ameno mas repleto de arestas e alguns ressentimentos.

Apesar de não atingir a todo o seu potencial dramático (ou cômico), "Linhas cruzadas" é um filme altamente simpático e agradável. Não é uma produção detestável e tampouco "o pior filme já feito", segundo alguns críticos mais severos, mas também não pode ser considerado bom. Seu elenco é ótimo, mas todos repetem à exaustão seus maneirismos típicos: Ryan como a adorável protagonista desengonçada, Keaton como a elegante atrapalhada, Kudrow como a desajeitada e Matthau como o pai ranzinza. Ninguém sai de sua zona de conforto, ninguém arrisca um voo mais alto - e isso se reflete no resultado final, pouco memorável e até decepcionante. Visualmente atraente e com alguns bons momentos perdidos em um roteiro cheio de vai-e-vens, é um filme muito aquém do que se poderia esperar de uma união de tantos talentos, mas vale uma sessão da tarde descompromissada - especialmente para os fãs do trio de atrizes ou do saudoso Walter Matthau. Não muda a vida de ninguém, mas também não tira nenhum pedaço.

segunda-feira

NOVE RAINHAS

NOVE RAINHAS (Nueve reinas, 2000, FX Sound, 114min) Direção e roteiro: Fabian Bielinski. Fotografia: Marcelo Camorino. Montagem: Sergio Zottola. Música: Cesar Lerner. Figurino: Mônica Toschi. Direção de arte/cenários: Daniela Passalaqua/Marcelo Salvioli. Produção: Pablo Bossi. Elenco: Ricardo Darin, Gastón Pauls, Leticia Brédice, Oscar Nuñez, Ignasi Abadal. Estreia: 31/8/00

A cinematografia argentina, forte, criativa e inteligente, começou a despontar com toda a sua força no início dos anos 2000, quando passou a ser respeitada não apenas pela crítica e pelos assíduos frequentadores de cinematecas, mas também pelo público em geral, que só raramente tomava conhecimento de sua qualidade - até mesmo a Academia de Hollywood já havia se rendido a ela, lhe oferecendo, em 1985, o Oscar de melhor produção estrangeira por "A história oficial", de Luis Puenzo. Um dos primeiros filmes a chamar a atenção dos espectadores por sua mistura perfeita entre entretenimento e inteligência foi "Nove rainhas", um delicioso exercício de estilo do diretor Fabián Belinski que consegue a façanha de prender a atenção da audiência do primeiro ao último minuto sem precisar apelar para cenas de ação desnecessárias ou efeitos especiais milionários. Calcado basicamente em um roteiro repleto de diálogos saborosos, uma edição ágil e atores no topo de sua forma, Belisnki criou uma diversão perfeita - a ponto de chamar a atenção de Hollywood, que quatro anos mais tarde, lançou um remake estrelado por John C. Reilly e Diego Luna, logicamente sem o mesmo brilho.

Sem perder muito tempo - até mesmo os créditos só aparecerão no final da sessão - e indo diretamente ao ponto, o roteiro de "Nove rainhas" começa quando o jovem Juan (Gastón Pauls) é flagrado tentando dar um golpe em um mini-mercado e é socorrido pelo veterano Marcos (Ricardo Darín), que, se passando por policial, consegue administrar a situação e livrá-lo de uma punição mais severa do que um simples sermão. Longe do local da contravenção, o experiente Marcos - que vive de expedientes e de passar a perna em quem quer que esteja distraído - propõe sociedade ao novato, explicando que não gosta de trabalhar sozinho e que acaba de perder o parceiro. Convencido depois de perceber que o generoso estranho tem um vasto catálogo de truques, Juan - que precisa juntar dinheiro para ajudar ao pai, que está preso - aceita ser seu companheiro por um período. Depois de um tempo juntos, em que testam a capacidade um do outro em improvisar e escapar de imprevistos, os dois finalmente tem a grande chance de dar um golpe milionário - graças à involuntária presença de Valeria (Leticia Brédice), irmã de Marcos.





Revoltada com Marcos devido a problemas na herança que recebeu do pai, Valeria acaba por ser a responsável pelo reencontro do irmão com um antigo colaborador, Sandler (Oscar Nuñez), no hotel onde ela trabalha. Com a saúde frágil e debilitada, Sandler oferece a Marcos a possibilidade única de ganhar uma bolada, ao vender uma cartela de selos falsos - intitulada Nove Rainhas - a um colecionador milionário hospedado no local. Sabendo que a oportunidade é boa demais para ser recusada, Marcos e Juan aceitam o desafio e começam uma apressada jornada para conseguir fazer com que o pretenso comprador, Vidal Gandolfo (Ignasi Abadal), não saia de Buenos Aires sem a mercadoria que pode lhes deixar ricos. Para isso, apelam para as mais variadas e criativas mentiras - enquanto Juan se sente irremediavelmente atraído por Valeria.

E a partir daí, o roteiro do diretor Fabián Belinsky convida o espectador a uma montanha-russa: enquanto acompanha Marcos e Juan em suas tentativas nem sempre bem-sucedidas de enganar o próximo, o público se sente parte do cambalacho, mesmo que não saiba exatamente quem está enganando a quem. Recheando sua trama de reviravoltas e personagens pouco confiáveis, Belinsky exige da plateia atenção redobrada em cada diálogo, em cada expressão de seus atores, em cada silêncio revelador. Inserindo um humor inteligente e sardônico na narrativa, ele consegue transformar seus protagonistas em herois, mesmo que eles tenham, logicamente, grandes falhas de caráter - até mesmo Juan, que aprendeu com o pai todos os truques que conhece mas ainda mantém uma certa ética. A química excelente entre Ricardo Darín (o maior astro do cinema argentino) e Gastón Pauls é outro dos grandes trunfos do filme, que cativa e surpreende na medida exata, oferecendo um final de deixar qualquer um com um enorme sorriso estampado no rosto. Cinema de primeira linha!

domingo

COISAS QUE VOCÊ PODE DIZER SÓ DE OLHAR PARA ELA

COISAS QUE VOCÊ PODE DIZER SÓ DE OLHAR PARA ELA (Things you can tell just by looking at her, 2000, Franchise Pictures, 109min) Direção e roteiro: Rodrigo Garcia. Fotografia: Emmanuel Lubezki. Montagem: Amy E. Duddleston. Música: Edward Shearmur. Figurino: George L. Little. Direção de arte/cenários: Jerry Fleming/Betty Berberian. Produção executiva: Elie Samaha, Andrew Stevens. Produção: Jon Avnet, Lisa Lindstrom, Marsha Oglesby. Elenco: Glenn Close, Cameron Diaz, Holly Hunter, Calista Flockhart, Kathy Baker, Ammy Brenneman, Valeria Golino, Gregory Hines, Matt Craven. Estreia: 22/01/00 (Festival de Sundance)

Filmes que tratam de mulheres interessantes e complexas são artigo raro em uma Hollywood cujos olhos estão sempre voltados para as caixas registradoras - e os dólares que as enchem com produções anabolizadas e repletas de efeitos visuais e machões dispostos a salvar o mundo de ameaças alienígenas ou terroristas. Por essa razão é um oásis encontrar uma produção como "Coisas que você pode dizer só de olhar para ela", um drama de visão essencialmente feminina que, é, surpreendentemente, escrita e dirigida por um homem, Rodrigo Garcia. Filho do grande romancista colombiano Gabriel Garcia Marquez e dono de uma sensibilidade única quando se trata da compreensão de um universo oposto ao seu, Garcia - que posteriormente exercitaria tal característica em episódios da série "A sete palmos" e no subestimado "Passageiros" (2008) - constrói, em seu primeiro filme, uma narrativa doce e compassiva que substitui o tradicional roteiro com início, meio e fim por uma composição de histórias simples e discretas que, juntas, formam uma bela paisagem, capaz de emocionar e fazer pensar.

O filme começa quando uma equipe da polícia, liderada pela detetive Kathy Faber (Amy Brenneman), encontra o corpo de uma mulher, aparentemente suicida, em uma casa do subúrbio de Los Angeles. Em seguida, o roteiro dá um pulo para apresentar a dra. Elaine Keener (Glenn Close), uma médica solteira que mora com a mãe idosa e doente e que está apaixonada - sem muitas esperanças - por um colega de trabalho. Para acalmar sua tensão quanto ao assunto, ela chama uma cartomante, a jovem Christine (Calista Flockhart), que não lhe dá as notícias que ela esperava. A história seguinte acompanha o drama de Rebecca Waynon (Holly Hunter), gerente de um banco que se descobre grávida do amante casado, Robert (Gregory Hines) e passa a questionar suas escolhas em conversas com Nancy (Penelope Allen), uma mendiga com quem encontra constantemente - dúvidas essas que a levam aos braços de Walter (Matt Craven), um colega de trabalho. Logo em seguida, o público é apresentado à Rose (Kathy Baker), uma escritora de livros infantis, separada e mãe de um adolescente, que se sente irresistivelmente atraida pelo novo vizinho, o anão Albert (Danny Woodburn), e redescobre a sensação de estar apaixonada. A cartomante do primeiro episódio, Christine, volta a aparecer quando torna-se protagonista de uma triste história de amor, que acompanha seus cuidados com a namorada, Lilly (Valeria Golino), que está em fase terminal de câncer. Elas são vizinhas de Walter, o amante ocasional de Rebecca, que, pai de uma menina cega, se envolve também com a professora dela, Carol (Cameron Diaz), que, mesmo sem enxergar, é capaz de perceber com extrema clareza a vida como ela é, dividindo suas conclusões com a irmã, a detetive Kathy da primeira cena, uma mulher que dedicou sua vida a cuidar da irmã e da carreira e que somente depois dos trinta anos começa a sentir falta de uma vida só para si.


Mesmo que distingua claramente as histórias entre si, inclusive com títulos separando-as, o roteiro de "Coisas" não se furta a continuamente fundí-las, de forma sutil ou mais explícita - caso da presença da cartomante Christine na casa da dra. Keener logo no começo do filme. Tais ligações, longe de soarem forçadas ou criadas exclusivamente para incluírem a produção na linhagem de "filmes-coral" que pipocavam à sua época - no qual o mais bem-sucedido foi o potente "Magnólia", de Paul Thomas Anderson - dão a ele uma consistência de unidade dramática bastante sólida, principalmente por sua opção em não dar necessariamente a cada um dos segmentos uma estrutura engessada que mutile do espectador a possibilidade de completar as lacunas com sua própria sensibilidade. Desse modo, é o público que, de posse das informações essenciais à cada personagem, preenche suas histórias, dando a elas o desfecho (ou até mesmo o início) mais apropriado a cada uma. Mostrando de cada uma dessas (valentes) mulheres apenas um recorte de suas vidas muitas vezes solitárias e melancólicas, o roteiro de Garcia - que homenageia o pai citando nominalmente sua obra-prima "Cem anos de solidão" em uma cena com Carol - dá a suas atrizes presentes inestimáveis, com sequências de uma beleza dolorosa e pungente onde o silêncio muitas vezes fala mais do que os diálogos.

E para defender tais mulheres - frágeis, corajosas, românticas, estoicas e assustadoramente reais - o diretor conta com um elenco em dias inspirados. Se Glenn Close e Holly Hunter não precisam provar nada para ninguém há um bom tempo - e Hunter se destaca magistralmente com uma personagem tão rica em nuances que merecia um filme só para si - é uma surpresa ver atrizes como Calista Flockhart e Cameron Diaz se distanciando tanto (e com tanto desapego) das personas que marcaram suas carreiras: Flockhart deixa de lado o jeitão moleque de sua "Ally McBeal" televisiva para criar uma jovem sofrida e apaixonada - às vésperas de perder a mulher que ama - sem os trejeitos que lhe deram notoriedade; e Diaz, famosa por suas comédias românticas e/ou pastelão, interpreta com delicadeza uma jovem cega que, a despeito do senso de humor e do defeito físico, consegue enxergar nitidamente todos os recônditos da alma humana (como deixa claro em seu discurso final, de uma poesia rara no cinema americano).

E se não bastasse tantas qualidades (o roteiro poético, a direção segura, o elenco impecável), "Coisas que você pode dizer só de olhar para ela" ainda tem um golpe de mestre quase invisível, mas intrigante e devastador, na figura da misteriosa suicida da primeira sequência: vivida sem uma linha sequer de diálogo por Elpidia Carrilo, ela atravessa todo o filme em silêncio, cruzando com as protagonistas em momentos aparentemente banais, sempre com uma atmosfera de tristeza e dor a seu redor, como que prenunciando seu triste destino. É ela, em sua mais absoluta quietude, que dá unidade ao filme, como uma espécie de aviso sobre o que pode acontecer com qualquer uma daquelas mulheres tão intensas e que escondem tal turbilhão sob um manto de placidez.

Um filme pouco conhecido e comentado, "Coisas que você pode dizer só de olhar para ela" - um título apropriado e sugestivo, ainda que pouco comercial - é uma das produções mais interessantes do final dos anos 90, e uma das investigações mais sensíveis sobre a alma feminina até o advento de "As horas", dois anos depois. Uma pérola a ser descoberta.

quarta-feira

ANTES DO ANOITECER

ANTES DO ANOITECER (Before night falls, 2000, El Mar Pictures/Grandview Pictures, 133min) Direção: Julian Schnabel. Roteiro: Cunningham O'Keefe, Lazaro Gomez Carriles, Julian Schnabel, livro de Reinaldo Arenas e documentário "Havana", de Jana Bokova. Fotografia: Xavier Pérez Grobet, Guillermo Rosas. Montagem: Michael Berenbaum. Música: Carter Burwell. Figurino: Mariestela Fernández. Direção de arte/cenários: Salvador Parra/Laurie Friedman. Produção executiva: Olatz Lopez Garmendia, Julian Schnabel. Produção: Jon Kilik. Elenco: Javier Bardem, Johnny Depp, Sean Penn, Diego Luna, Olivier Martinez. Estreia: 03/9/00 (Festival de Veneza)

Indicado ao Oscar de Melhor Ator (Javier Bardem)

Poeta, escritor e dramaturgo cubano que abandonou a ilha devido à perseguição do governo de Fidel Castro - que não aceitava sua homossexualidade aberta e seus ataques explícitos à revolução - Reinaldo Arenas encontrou em Nova York, onde se estabeleceu no início da década de 80, o lugar ideal para usufruir de sua liberdade pessoal e intelectual, até que o vírus da AIDS interrompeu uma importante trajetória literária, cujo auge foi sua autobiografia, lançada dez anos depois de sua morte. Retratada em sua poesia dura e melancólica, a vida de Arenas, repleta de lances dramáticos é a base da versão para as telas de seu livro póstumo, "Antes do anoitecer", que, sob a direção sensível e igualmente lírica de Julian Schnabel - cujo currículo já incluía "Basquiat, traços de uma vida" (96), cinebiografia do artista plástico que também foi vítima da AIDS - se equilibra entre a narrativa convencional e rasgos de criatividade que nem sempre convivem em harmonia dentro do resultado final.

Apesar de contar a história de Arenas desde sua infância, no interior do país e sem a presença paterna, "Antes do anoitecer" concentra-se principalmente na juventude do escritor, quando, já em Havana, vê florescer em si seu talento como escritor, sua sexualidade pouco conveniente à sociedade conservadora de Cuba e sua tendência em lutar contra o governo (mesmo que a princípio tenha sido favorável à revolução) - fatores que o levam a uma sistemática perseguição que resultou em constantes prisões e torturas. Mantendo-se fiel à autobiografia de Arenas, um livro de memórias atípico que mistura passagens de uma crueza ímpar a poesia, narração de sonhos e pesadelos alucinantes, o filme de Schnabel convida o espectador a uma viagem recheada de imagens cuidadosamente planejadas - a fotografia em tons ocres transmite com perfeição o clima quente da capital cubana e a trilha sonora (que tem o reforço de Lou Reed e Laurie Anderson) ilustra com inteligência o tênue equilíbrio entre a liberdade da personalidade de Arenas com a repressão do governo de Fidel - até mesmo nas sequências em que o protagonista é preso e interrogado (em uma participação especial de um Johnny Depp tentando controlar sua tendência ao excesso) o cineasta jamais perde a mão em sua busca de evitar a violência, optando pelo lirismo e pela fantasia, felizmente encontrando um intérprete genial em Javier Bardem, merecidamente indicado ao Oscar por seu desempenho.


Mesclando fragilidade e um estoicismo que faz de Reinaldo Arenas uma força da natureza, Bardem - então um ator conhecido apenas no mercado espanhol, o que deixa sua lembrança pela Academia ainda mais impressionante - domina a cena do filme de Schnabel mesmo que em vários momentos o roteiro, em sua obsessão de manter-se fiel ao livro que lhe deu origem, careça de um foco mais definido e dilua os dramas de seu protagonista em sequências desnecessariamente longas, como aquela que mostra a tentativa de fuga de um grupo de cubanos através de um balão, antecedida por uma cena que reflete o tom de festa constante do submundo cubano que funciona poeticamente mas quebra o ritmo cinematográfico. Também é um pecado do roteiro não deixar claro o tipo de relacionamento entre Arenas e Lázaro (Olivier Martinez), que se torna seu leal e compreensivo companheiro de apartamento em Nova York até sua angustiante morte, com a AIDS o obrigando a abreviar uma trajetória que poderia ser ainda mais brilhante e provocativa.

Dono de uma personalidade própria, que o distingue das cinebiografias convencionais, "Antes do anoitecer" deve seu bom-gosto ao diretor Julian Schnabel, que imprime em cada cena um visual que aproxima o espectador da história que está sendo contada. A interpretação intensa de Javier Bardem - convincente em sua fase adolescente e avassalador em seus dias adultos - apresenta Reinaldo Arenas ao público como um homem sensível mas disposto a enfrentar qualquer luta, seja no âmbito pessoal e sexual ou no contexto social. O equilíbrio atingido por Schnabel entre esse dois polos é admirável, mesmo quando tal decisão soe algumas vezes como falta de foco. Porém, é preciso lembrar que o próprio livro de Arenas caracteriza-se por tal estrutura e é louvável o trabalho do diretor em transferir para as telas as palavras doloridas do escritor cubano. O ritmo pode não ser dos mais ágeis, mas "Antes do anoitecer" é um belo exemplo de cinema poético e sensorial que o cineasta aprimoraria no belo "O escafandro e a borboleta", lançado em 2007.

terça-feira

MISS SIMPATIA

MISS SIMPATIA (Miss Congeniality, 2000, Castle Rock Entertainment/Village Roadshow Pictures, 109min) Direção: Donald Petrie. Roteiro: Marc Lawrence, Katie Ford, Caryn Lucas. Fotografia: László Kovács. Montagem: Billy Weber. Música: Edward Shearmur. Figurino: Susie DeSanto. Direção de arte/cenários: Peter Larkin/Barbara Haberecht, Randy Smith Huke. Produção executiva: Bruce Berman, Marc Lawrence, Ginger Sledge. Produção: Sandra Bullock. Elenco: Sandra Bullock, Michael Caine, Benjamin Bratt, Candice Bergen, William Shatner, Ernie Hudson. Estreia: 14/12/00

Depois de ter dirigido o ônibus ameaçado de explosão em "Velocidade máxima" (94) - um sucesso tão justo quanto inesperado - Sandra Bullock tornou-se, de imediato, em uma das maiores estrelas em ascensão do cinema americano. Filmes como "A rede" e "Enquanto você dormia" lotavam as salas de cinema simplesmente por tê-la em seus elencos, e o público parecia encantado com sua imagem de garota normal, tangível e esperta. Então, de uma hora pra outra, parecia que tal mágica havia acabado: com uma sucessão de más escolhas (incluindo um segundo capítulo de "Velocidade máxima", dessa vez a bordo de um navio), Bullock estava em vias de repetir o caminho de várias outras atrizes de sucesso efêmero, que sumiram diante da chegada de novos rostos e corpos. Foi então que uma comédia simples, direta e sem medo de ser popular lembrou o público que ela podia ser encantadora e carismática quando explorada devidamente. Com uma renda de mais de 100 milhões de dólares arrecadados nas salas americanas, "Miss Simpatia" devolveu à Sandra o título de grande estrela (ainda que por pouco tempo) e comprovou o poder da despretensão.

Sem ambições outras que não fazer rir e divertir o público por pouco menos de duas horas, "Miss Simpatia" é entretenimento garantido para quem gosta de Sandra Bullock e até para quem não nutre por ela a maior das simpatias. Graças a um roteiro com piadas ligeiras (apesar de previsíveis em alguns casos) e à participação de veteranos como Candice Bergen, William Shatner e Michael Caine - roubando a cena como um especialista em criar misses - o filme de Donald Petrie parte de uma piada única para conquistar a plateia com uma sucessão de gags visuais e verbais que o dotam de um ritmo agradável e ágil, capaz de agradar até ao mais exigente dos espectadores (exceto, é claro, aqueles que não se sentem atraídos pelo gênero em si). É difícil não se deixar conquistar pelo humor desprovido de intelectualidades e soltar uma ou outra gargalhada - se não por Bullock, ao menos pela crítica sem disfarces ao culto obsessivo pela superficialidade que domina os concursos de beleza (ainda que, no fundo, até mesmo consiga lhe ser simpática no cômputo final).


A trama é puro nonsense: um terrorista que anda desafiando a polícia e tem a alcunha de "Cidadão"  ameaça, através de uma carta anônima, o concurso de Miss Estados Unidos, a ser realizado no Texas. A forma encontrada para evitar que o criminoso faça novas vítimas é infiltrar uma agente dentre as candidatas ao título. A missão acaba sobrando para Gracie Hart (Sandra Bullock), única mulher na corporação com as características necessárias para não despertar suspeitas... pelo menos a princípio, já que a jovem não é exatamente um modelo de feminilidade: desleixada, grosseira e sem o menor vestígio de vaidade, ela só aceita fazer parte da força-tarefa para limpar sua barra junto aos colegas, depois de ter sido quase responsável pela morte de um deles. Corajosa e inteligente, Gracie precisa apenas transformar-se completamente em uma cinderela, da noite para o dia, e para isso conta com a ajuda de Victor Melling (Michael Caine), outrora famoso e atualmente decadente coordenador dos mais importantes desfiles do país. Aos poucos, Gracie - uma feroz crítica do sistema machista dos concursos - vai se tornando uma mulher atraente, despertando a inesperada atração do colega Eric Matthews (Benjamin Bratt) e fazendo amizade com as demais candidatas. Suas confusões para chegar ao criminoso, porém, levam ao desespero a organizadora do show, Kathy Morningside (Candice Bergen), que vê na policial tudo que há de mais errado na nova geração de mulheres americanas.

Que não se espere de "Miss Simpatia" mais do que uma simpática, leve e realmente engraçada comédia de situações. Utilizando-se de uma premissa extremamente clichê (o mito de Pigmalião), o roteiro debocha dos concursos de beleza, brinca com as expectativas relativas a gêneros e, apesar das caras e bocas de Sandra Bullock - que frequentemente exagera na composição da personagem central - tem um elenco coadjuvante que vale a sessão: Michael Caine, Candice Bergen e William Shatner (como o veterano apresentador do concurso) estão sensacionais, roubando cada cena em que aparecem. Uma bola dentro na carreira de Sandra - que infelizmente não aprendeu a lição de "Velocidade máxima" e pouco tempo depois entraria em uma continuação das aventuras de Gracie Hart, mas dessa vez sem graça e sem sucesso.

segunda-feira

MAIS QUE O ACASO

MAIS QUE O ACASO (Bouce, 2000, Miramax, 106min) Direção e roteiro: Don Roos. Fotografia: Robert Elswit. Montagem: David Codron. Música: Mychael Danna, Dean Landon. Figurino: Peter Mitchell. Direção de arte/cenários: David Wasco/Sandy Reynolds-Wasco. Produção executiva: Bob Osher, Meryl Poster, Bob Weinstein, Harvey Weinstein. Produção: Michael Besman, Steve Golin. Elenco: Ben Affleck, Gwyneth Paltrow, Natasha Henstridge, Jennifer Grey, Tony Goldwin, Caroline Aaron. Estreia: 17/11/00

Ben Affleck e Gwyneth Paltrow não estavam mais namorando quando contracenaram em "Mais que o acaso", mas é inegável que sua química é um dos maiores méritos do filme de Don Roos - exercitando um lado sério e romântico que havia deixado de lado em seu filme de estreia, a cínica comédia "O oposto do sexo", estrelada por Christina Ricci. Vivendo uma história de amor sustentada por uma mentira capaz de separá-los, seus personagens estão entre os mais consistentes de suas carreiras, confirmando o talento do cineasta/roteirista em criar tipos realistas e complexos, que seduzem o espectador justamente por sua capacidade de refletir sentimentos verdadeiros e banais - transformados, na tela, em dramas maiores que a vida.

Canastrão como sempre, mas apoiado em um roteiro inteligente, Affleck vive Buddy Amaral, um publicitário mulherengo que, prestes a embarcar em uma viagem de retorno a Los Angeles, decide mudar de ideia e passar a noite em Chicago com a bela Mimi Prager (Natasha Henstridge), aproveitando que seu voo está atrasado devido a uma forte nevasca. Em um ato de generosidade, ele troca de passagem com o aspirante a dramaturgo Greg Janello (Tony Goldwin), ansioso para retornar aos braços da esposa e dos dois filhos pequenos. Como o destino é muitas vezes traiçoeiro, o avião em que deveria viajar sofre um acidente fatal, que mata todos os passageiros e a tripulação. Mesmo consumido pela culpa, Buddy assume a campanha de marketing solicitada pela companhia aérea para limpar sua imagem e acaba se tornando viciado em álcool. Um ano depois, saindo da clínica de reabilitação e lutando para retomar sua vida normal, ele se aproxima de Abby (Gwyneth Paltrow, desglamourizada mas ainda assim belíssima), a viúva de Greg e, aos poucos, surge entre eles uma forte atração, que evolui para uma intensa história de amor. O fato de Buddy esconder de Abby os caminhos que o levaram até ela, no entanto, podem ameaçar a felicidade do relacionamento.


Sem recorrer a artifícios narrativos e optando por seu conhecido estilo claro e direto de contar uma história, Don Roos acerta mais uma vez. Brindando o público com diálogos naturais e personagens que se comportam como gente normal e verossímil, o cineasta não tem pressa em apresentar sua dupla central ou construir as bases para seu complicado relacionamento, oferecendo à plateia uma consistência das mais raras nos filmes românticos. Fugindo claramente às regras não escritas, ele até mesmo abre mão da maior característica do gênero - o alívio cômico - preferindo, ao invés disso, criar uma espécie de "grilo falante" para Buddy, um funcionário gay, também com problemas com álcool, que serve para empurrá-lo em direção à verdade e à recuperação de sua alma. Uma pena que Affleck não tenha suporte dramático o suficiente para explorar a contento todas as nuances do personagem, permanecendo apenas na superfície de todo o turbilhão emocional de Buddy. Felizmente sua parceira de cena consegue disfarçar tais fragilidades com um carisma e uma luz que justificam o questionável Oscar de melhor atriz que ganhou por "Shakespeare apaixonado": na pele da insegura e angustiada Abby Janello, Gwyneth Paltrow está madura, discreta e eficiente, emprestando brilho a uma personagem que, em outras mãos, poderia ser apenas insossa. Mesmo os detratores de Paltrow são obrigados a reconhecer que, a despeito de sua classe e elegância, a filha da também atriz Blythe Danner sai-se muito bem no papel dessa mulher de suburbano coração.

"Mais que o acaso" é uma história de amor simples e banal, que explora sentimentos e pessoas comuns em uma trama que, mesmo parecendo sinopse de telenovela, consegue retratar seu universo dramático sem apelar para as lágrimas fáceis ou reviravoltas maquiavélicas. É a vida como ela é, cheia de momentos intensos, pausas leves e felicidades efêmeras. Mais um belo filme de Don Roos.

domingo

NÁUFRAGO

NÁUFRAGO (Cast away, 2000, 20th Century Fox/DreamWorks SKG, 143min) Direção: Robert Zemeckis. Roteiro: William Broyles Jr.. Fotografia: Don Burgess. Montagem: Arthur Schmidt. Música: Alan Silvestri. Figurino: Joanna Johnston. Direção de arte/cenários: Rick Carter/Rosemary Brandenburg, Karen O'Hara. Produção executiva: Joan Bradshaw. Produção: Tom Hanks, Jack Rapke, Steve Starkey, Robert Zemeckis. Elenco: Tom Hanks, Helen Hunt, Chris Noth. Elenco: 07/12/00

2 indicações ao Oscar: Ator (Tom Hanks), Som
Vencedor do Golden Globe de Melhor Ator/Drama (Tom Hanks)

A história da gênese de "Náufrago" - um projeto arriscado do cineasta Robert Zemeckis e do ator Tom Hanks que acabou se tornando um enorme sucesso de bilheteria e crítica - todo mundo conhece: para dar veracidade à história de um homem preso em uma ilha deserta, sem comida e sendo obrigado a aprender as regras de sobrevivência de um lugar até então inóspito e desconhecido, os dois interromperam as filmagens por um ano. Nesse meio-tempo, Hanks perdeu o peso que havia adquirido para criar seu personagem antes do acidente que o joga na ilha e Zemeckis concluiu outro filme - o suspense "Revelações", estrelado por Harrison Ford e Michelle Pfeiffer. O fato é que, a despeito dessa curiosa e até hoje única particularidade, o filme que saiu dela é, ao contrário da maioria das produções cujas anedotas de bastidores são mais interessantes que o resultado final, digno dos mais entusiasmados aplausos. Com exceção de um posfácio um tanto redundante, "Náufrago" é um belíssimo trabalho de roteiro, ritmo, emoção e principalmente atuação. Não foi à toa que Hanks esteve bastante perto de abocanhar um terceiro Oscar de melhor ator - perdeu para Russell Crowe em "Gladiador", mas não deixou de ficar com um Golden Globe por seu desempenho antológico.

Depois das estatuetas douradas por "Filadélfia" e "Forrest Gump, o contador de histórias", Hanks arrancou elogios rasgados e unânimes na pele de Chuck Noland, um executivo da FedEx (a agência de Correios dos EUA) extremamente dedicado ao trabalho que deixa até menos sua relação com a namorada, Kelly (Helen Hunt) em segundo plano, priorizando sempre os prazos exatos prometidos aos clientes e a imagem da empresa. Às vésperas do Natal de 1995, porém, sua vida regrada e constantemente corrida sofre um abalo profundo: durante uma viagem a negócios, seu avião cai em algum ponto do Oceano Pacífico, matando toda a tripulação (seus colegas) e deixando-o à deriva, sob uma violenta tempestade. Sozinho em uma ilha - e sem nenhum tipo de apoio da tecnologia ou conforto moderno - Noland se vê obrigado, então, a tratar da própria sobrevivência. Para não morrer de fome ou sede, ele aprende a pescar, caçar, procurar água e construir uma cabana para se proteger das intempéries da natureza. Sua solidão é quebrada apenas pelas lembranças de sua relação com Kelly e por suas longas conversas com uma bola de vôlei - encomenda de um cliente que chega intocada à ilha, junto com ele. Batizando-a de Wilson, o poderoso e controlador executivo passa a perceber de forma diferente sua vida e suas prioridades.


Um Robinson Crusoé pós-moderno, Chuck Nolan recebe, das mãos hábeis e experientes de Tom Hanks, uma interpretação precisa, que dosa com exatidão momentos de economia dramática com outros onde o ator - que começou a carreira em comédias despretensiosas mas via de regra deliciosas - esbanja o carisma que fez dele um dos astros mais poderosos de Hollywood nos anos 90. Só mesmo alguém com todo o alcance histriônico de Hanks seria capaz de segurar, praticamente sozinho, duas horas e meia de um filme que - à exceção da primeira meia-hora e dos vinte minutos finais - trata-se basicamente de uma odisseia solitária e exasperante de um homem em confronto (e diálogo) constante com o mundo natural que o cerca. Se a transformação física do ator é impressionante (mas não inédita em sua trajetória, haja visto as alterações sofridas para "Uma equipe muito especial" e "Filadélfia"), ela não é mais fascinante do que aquela que se passa interiormente, quando o personagem - quase arrogante em sua pretensa superioridade ao mundo - se curva diante de forças maiores e reconhece sua insignificância em relação ao mundo. São em momentos assim - principalmente durante os diálogos de Nolan e um obviamente calado Wilson - que fazem de "Náufrago" mais do que simplesmente uma aventura dramática: é, principalmente, um show particular de um ator no auge de seu vigor técnico.

Porém, mesmo que Hanks domine o espetáculo do princípio ao fim, seria injusto não reconhecer o trabalho impecável de Robert Zemeckis, que teve a coragem de apostar em um filme com ritmo perceptivelmente mais lento do que a maioria das produções comerciais. Mesmo que mostre seu domínio técnico em sequências absolutamente perfeitas - como o acidente de avião - são nos momentos mais humanos que o diretor (acostumado a êxitos incontestes de bilheteria, como "Uma cilada para Roger Rabbit", "De volta para o futuro" e o próprio "Forrest Gump", que deu a ele e Hanks os prêmios da Academia) mostra que, mais do que pirotecnias visuais, ele também entende de contar histórias. Sem deixar que o ritmo de seu filme caia mesmo com apenas um personagem em cena, Zemeckis fez de uma aposta arriscada um sucesso extraordinário, com uma renda superior a 200 milhões de dólares somente no mercado doméstico (EUA e Canadá). Mereceu. "Náufrago" é um dos filmes memoráveis do final do século XX.

sexta-feira

SNATCH - PORCOS E DIAMANTES

SNATCH - PORCOS E DIAMANTES (Snatch., 2000, Columbia Pictures Corporation, 104min) Direção e roteiro: Guy Ritchie. Fotografia: Tim Maurice-Jones. Montagem: Jon Harris. Música: John Murphy. Figurino: Verity Hawkes. Direção de arte/cenários: Hugo Luczyc-Whyhowski. Produção executiva: Stephen Marks, Peter Morton, Angad Paul, Trudie Styler, Steve Tisch. Produção: Matthew Vaughn. Elenco: Benicio Del Toro, Brad Pitt, Dennis Farina, Jason Statham, Vinnie Jones, Rade Serbedzija, Alan Ford, Jason Flemyng, Ewen Bremner, Stephen Graham. Estreia: 23/8/00

À primeira vista, "Snatch - porcos e diamantes", segundo filme do cineasta inglês Guy Ritchie, parece uma espécie de continuação de seu primeiro trabalho, o incensado "Jogos, trapaças e dois canos fumegantes": gângsteres trapalhões, edição acelerada, um roteiro recheado de diálogos sarcásticos e politicamente incorretos e uma variedade insana de subtramas que se atropelam quase ao ponto da incompreensibilidade. Mas não é apenas a inclusão de nomes consagrados internacionalmente como Brad Pitt e Benicio Del Toro no elenco - ao lado dos colaboradores habituais do diretor - que faz dele mais do que isso. Mais experiente e confiante do que em sua estreia, Ritchie manteve todas as qualidades que fizeram dele um dos cineastas mais festejados de sua época e expandiu-as em uma comédia policial quase histérica que mistura humor e violência na medida exata.

Difícil de resumir - assim como acontecia com "Jogos, trapaças" - a trama de "Snatch" é uma miscelânea de histórias paralelas que convergem para um único (a absurdamente climático) desfecho. Jason Statham - um dos atores preferidos de Ritchie, antes de tornar-se astro do cinema de ação - interpreta Turkish, um gângster barato que, ao lado do eterno comparsa Tommy, se envolve no mundo das lutas de boxe comandadas pelo perigoso Brick Top (Alan Ford), que não hesita em comprar resultados para enriquecer ilicitamente. Tentando convencer o cigano Mickey O'Neill (Brad Pitt) a juntar-se a eles em seus esquemas fraudulentos, Turkish acaba no caminho de um grupo de ladrões de diamantes, comandado pelo misterioso Franky "Quatro dedos" (Benicio Del Toro), que, de posse de uma pedra gigantesca de 84 quilates, tenta vendê-la ao ambicioso Primo Avi (Dennis Farina) - até que ela é roubada por um bando de larápios pés-de-chinelo a mando do mafioso russo Boris "The Blade" (Rade Serbedzija). Aos poucos, todos cruzarão uns com os outros, com consequências inesperadas e surreais.


Guy Ritchie - dono de um senso de humor particular e por vezes nos limites do bom-gosto - usa e abusa de recursos estilísticos para sublinhar o tom quase de história em quadrinhos de seu filme, o que ajuda a amenizar a crueldade de algumas sequências (ainda que todas as mortes da trama aconteçam fora de cena). Editado com uma velocidade que deixa o espectador tonto de tanta informação, "Snatch" faz rir graças principalmente ao excesso de acontecimentos bizarros que toma conta da narrativa desde suas primeiras cenas - com direito a um assalto durante uma explicação sobre a tradução da Bíblia, bem ao estilo Quentin Tarantino - e às referências de cultura contemporânea - até mesmo a então esposa do diretor, Madonna, é citada indiretamente, com uma canção tocando no rádio de um carro - mas é inegável que boa parte da graça do filme reside na escalação certeira de Brad Pitt como o cigano boxeador de dicção ininteligível Mickey One Punch.

Dotado de um timing cômico impecável, Pitt - que telefonou para Ritchie se oferecendo para trabalhar com ele depois de uma sessão de "Jogos, trapaças" - rouba cada cena em que aparece como o truculento e esperto lutador que se vinga da morte da mãe passando a perna nos "empresários" do mundo do boxe: deixando de lado qualquer traço de vaidade (apesar do corpo sarado), ele mostra mais uma vez que, por debaixo do galã cobiçado existe um ator disposto a arriscar-se por um bom papel. Suas cenas são, invariavelmente, as mais divertidas do filme, diluindo as cores um tanto quanto machistas e misóginas do roteiro (as mulheres, quando aparecem, não são exatamente em papéis de respeito, servindo apenas como apoio quase figurativo). Esperto e engraçado, "Snatch" é um belo segundo filme, mas que acabou esgotando o estilo de Ritchie, que nunca mais acertou - exceto em projetos de encomenda, como a versão de "Sherlock Holmes" estrelada por Robert Downey Jr. em 2009 e sua continuação. Mesmo assim, fica claro em seus dois primeiros trabalhos, sua energia, criatividade e segurança em contar uma história, por mais complexa que ela seja.

quinta-feira

SHAFT

SHAFT (Shaft, 2000, Paramount Pictures, 99min) Direção: John Singleton. Roteiro: Richard Price, John Singleton, Shane Salerno, estória de John Singleton, Shane Salerno, romance de Ernest Tidyman. Fotografia: Donald E. Thorin. Montagem: John Bloom, Antonia Van Drimmelen. Música: David Arnold. Figurino: Ruth Carter. Direção de arte/cenários: Patrizia Von Brandenstein/George DeTitta Jr.. Produção executiva: Paul Hall, Steve Nicolaides, Adam Schroeder. Produção: Mark Roybal, Scott Rudin, John Singleton. Elenco: Samuel L. Jackson, Vanessa Williams, Christian Bale, Jeffrey Wright, Toni Colette, Busta Rhymes, Dan Hedaya, Richard Roundtree, Philip Bosco. Estreia: 16/6/00

Em 1971, um filme chamado "Shaft" tornou-se o símbolo de um dos subgêneros mais populares do cinema policial norte-americano, a blackexploititon - filmes com atores negros, com temática relativa à comunidade negra e recheados de uma quantidade de sexo e violência quase impensáveis às produções comerciais dos grandes estúdios de Hollywood. Tendo como protagonista um detetive da polícia de Nova York mulherengo, malandro e pouco dado a melindres politicamente corretos interpretado por Richard Roundtree, "Shaft" fez sucesso de bilheteria, rendeu continuações, ganhou um Oscar (melhor canção) e influenciou cineastas do porte de Quentin Tarantino e John Singleton. Quase três décadas depois, como recompensa à sua importância para o gênero em particular e para o cinema em geral, o detetive voltou às telas, sob a direção de Singleton (primeiro afro-americano a concorrer ao Oscar de diretor, por "Os donos da rua", de 1991) e envernizado por um orçamento generoso da Paramount Pictures. Com algumas alterações que o descaracterizam como remake - o protagonista é sobrinho do personagem original, por exemplo - o "Shaft" do final do século é um policial energético, realista e violento que se apropria de todas as características do gênero e as regurgita de forma moderna e empolgante - principalmente por contar com o excepcional Samuel L. Jackson no papel central.

Jackson, um dos maiores atores negros de Hollywood, está à vontade na pele de John Shaft, o policial incorruptível e sedutor que desperta tanto admiração quanto inveja em seus colegas do departamento nova-iorquino, acostumados com casos de corrupção, racismo e impunidade. Todos esses elementos surgem de uma única vez quando Walter Wade Jr. (Christian Bale), filho de um dos mais importantes empresários da cidade, é acusado de matar um jovem negro diante de um restaurante. Liberado depois de pagar fiança, o rapaz foge antes do julgamento, para desespero da família da vitima. Dois anos depois, ao retornar de seu autoexílio, Wade é novamente preso e, para evitar uma condenação, resolve eliminar a única testemunha de seu crime, a garçonete Diane Palmieri (Toni Colette): paga para desaparecer, ela está sendo procurada incansavelmente por Shaft, e não sabe que está na mira também do perigoso traficante Peoples Hernandez (Jeffrey Wright), contratado pelo jovem milionário para matá-la.


Levando-se em consideração a quantidade de problemas em seus bastidores, é um milagre que "Shaft" tenha chegado às telas com tamanha consistência e qualidade. Tudo começou quando a Paramount praticamente exigiu a escalação de Samuel L. Jackson no papel central, contra o desejo original do diretor John Singleton de ter no elenco Don Cheadle e Wesley Snipes (uma escalação, aliás, extremamente acertada, uma vez que Jackson encaixou-se à perfeição no estilo do protagonista). Depois, desavenças constantes entre protagonista e diretor contra o roteiro, considerado sexista e preconceituoso em excesso - e que acabou tendo várias cenas cortadas e/ou modificadas de acordo com as orientações. Para finalizar, exibições-teste mostraram que o público se interessava mais pela história do traficante vivido por Jeffrey Wright do que pela trama do milionário racista interpretado por Christian Bale (que quase recusou o papel por ter acabado de sair dos sets de "Psicopata americano"), o que acabou diminuindo a participação do futuro Batman em cena. Tal acúmulo de situações adversas, somadas à bilheteria decepcionante, não permitiu que as aventuras de Shaft se estendessem nas continuações planejadas, mas é impressionante como, mesmo assim, é um raro prazer acompanhar o tom de malandragem das ruas impresso a cada fotograma.

Ao som da trilha sonora impecável - que usa a canção-título do filme original - e nas mãos de um elenco que dá veracidade e energia a uma trama que não poupa o espectador de sequências dirigidas com garra e realismo, "Shaft" é um filme que tem o soul nas veias e no DNA. Um policial que honra as bases do gênero e do cinema negro americano.

terça-feira

A CELA

A CELA (The cell, 2000, New Line Cinema, 107min) Direção: Tarsem Singh. Roteiro: Mark Protosevich. Fotografia: Paul Laufer. Montagem: Robert Duffy, Paul Rubell. Música: Howard Shore. Figurino: Eiko Ishioka, April Napier. Direção de arte/cenários: Tom Foden/Tessa Posnansky. Produção executiva: Donna Langley, Carolyn Manetti. Produção: Julio Caro, Eric McLeod. Elenco: Jennifer Lopez, Vince Vaughn, Vincent D'Onofrio, Dylan Baker, Marianne Jean-Baptiste, Gerry Becker, Patrick Bauchau, Musetta Vander. Estreia: 17/8/00

Indicado ao Oscar de Maquiagem

Como seria a visão da mente de um psicopata através dos olhos de um diretor de videoclipes que tem como seu trabalho mais conhecido o bizarro e genial "Losing my religion", da banda R.E.M.? A resposta é o filme "A cela", ficção de suspense estrelada por Jennifer Lopez, que a despeito de por vezes descuidar-se do roteiro para concentrar-se em seu visual deslumbrante, é um exemplar dos mais interessantes do gênero a surgir no normalmente engessado mercado hollywoodiano. Angustiante, tenso e fascinante, o filme do indiano Tarsem Singh é uma viagem sensorial que explora a beleza de Lopez em contraste com os cenários surreais e o figurino criativo da premiada Eiko Ishioka (de "Drácula de Bram Stoker"), que refletem o tortuoso raciocínio de uma personalidade doentia. Indicado ao Oscar de maquiagem - merecia também nas categorias de direção de arte e figurino - o filme também é uma mostra da coragem de Lopez em investir em produções que não a explorassem unicamente como símbolo sexual.

Não exatamente uma Meryl Streep, Jennifer Lopez é uma atriz decente e esforçada - além de saber escolher com quem trabalha, haja visto que em seus anos iniciais em Hollywood ela foi dirigida por nomes consagrados como Francis Ford Coppola ("Jack"), Steven Soderbergh ("Irresisível paixão") e Oliver Stone ("Reviravolta"). Revelada pela indicação ao Golden Globe por seu desempenho em "Selena" (a história real da cantora de origem latina que foi assassinada pela presidente do seu fã-clube quando estava começando a fazer sucesso), JLo, também uma cantora pop bem-sucedida, nem precisa se esforçar muito no papel principal de "A cela": como a psicoterapeuta Catherine Deane, adepta de um novo tipo de tratamento que consiste em adentrar a mente dos pacientes para tentar livrá-los de seus traumas, ela acaba se tornando coadjuvante de um filme cujo visual acachapante é a maior virtude. Ainda assim, seu carisma e beleza tornam impossível que ela passe despercebida em meio às acrobacias visuais promovidas pelo diretor.


A psicoterapeuta interpretada por Lopez já começa o filme sofrendo um baque na carreira, quando os pais de um menino em coma de que ela vem cuidando há algum tempo resolvem tentar um tratamento mais ortodoxo. Não é pra menos: com a assistência dos doutores Henry West (Dylan Baker) e Miriam Kent (Marianne Jean-Baptiste), ela vem desenvolvendo uma terapia bastante controversa, onde penetra no subconsciente dos pacientes através de um sistema computadorizado que dá acesso aos mais obscuros cantos da mente. Frustrada com a interrupção do tratamento do garoto, ela é procurada por um grupo de agentes do FBI que lhe pedem ajuda em um caso atípico e assustador: responsável pela morte de várias mulheres, o serial killer Carl Stargher (Vincent D'Onofrio) está nas mãos da polícia, mas, por um golpe do destino, é incapaz de apontar a localização de sua última vítima, já que entrou em um coma irreversível no momento de sua captura. Ainda viva segundo os cálculos da polícia, Julia Dickson (Tara Subkof) ainda pode sobreviver, mas para isso é preciso que seu paradeiro seja descoberto o quanto antes. Sendo assim, Catherine aceita o desafio de entrar no mundo do psicopata Stargher - e o que encontra lá é mais do que sinistro: é um pesadelo em tempo integral.


Prejudicado pela presença sempre anódina e aparvalhada de Vince Vaughn - na pele do detetive Peter Novak - "A cela" brilha sempre que apresenta ao espectador a visão toda particular de Tarsem Singh do apavorante mundo de seu psicopata. Em cores fortes e vibrantes que o aproximam perigosamente do kitsch mas ao mesmo tempo seduzem o espectador de forma quase hipnótica, os cenários criados por Tom Folden e Tessa Posnansky são dos mais extraordinários de seu tempo, mesclando uma atmosfera de sonho intenso com um clima claustrofóbico de deixar qualquer um desconfortável na poltrona. Uma pena, porém, que o roteiro não siga o mesmo tom criativo, apelando para todos os clichês psicanalíticos possíveis e imagináveis para explicar o comportamento violento do vilão - aliás, interpretado com gosto pelo excêntrico Vincent D'Onofrio. Esse senão é o que fragiliza o resultado final, impedindo que o primeiro longa-metragem de Tarsem se torne a pequena obra-prima que poderia ser. Ainda assim, é um filme que merece ser conhecido e aplaudido por suas inúmeras qualidades.

segunda-feira

O HOMEM SEM SOMBRA

O HOMEM SEM SOMBRA (Hollow man, 2000, Columbia Pictures, 112min ) Direção: Paul Verhoeven. Roteiro: Andrew W. Marlowe, estória de Gary Scott Thompson, Andrew W. Marlowe. Fotografia: Jost Vacano. Montagem: Mark Goldblatt. Música: Jerry Goldsmith. Figurino: Ellen Mirojnick. Direção de arte/cenários: Allan Cameron/John M. Dwyer. Produção executiva: Marion Rosenberg. Produção: Alan Marshall, Douglas Wick. Elenco: Kevin Bacon, Elisabeth Shue, Josh Brolin, Kim Dickens, Greg Gunberg, Joey Slotnick, Mary Randle, William Devane. Estreia: 02/8/00

Indicado ao Oscar de Efeitos Visuais

A fascinação do homem - e do cinema - por histórias de cientistas malucos e as consequências desastrosas de suas ambições encontrou na revolução dos efeitos visuais criados a partir de computação gráfica uma aliada das mais generosas. Graças a tais efeitos milagrosos, histórias já contadas diversas vezes ganharam um molho especial, oferecendo a cineastas a chance de chocar a plateia com uma profusão de sangue, explosões e vísceras antes apenas imaginada. Quem muito se beneficiou com tal elevação no nível dos efeitos especiais foi o cineasta holandês Paul Verhoeven, tornado um diretor respeitado em Hollywood graças a "Robocop" (87) e "O vingador do futuro" (90), tramas de ficção científica largamente amparadas na tecnologia - não por acaso, ambos os filmes mereceram refilmagens recentes, onde puderam explorar ainda mais sua tendência à modernidade computadorizada. Saindo de dois fracassos monumentais - o patético e massacrado "Showgirls" e
"Tropas estelares", uma divertida brincadeira com os clichês do gênero que custou uma fortuna e não rendeu quase nada no mercado americano- o diretor se provou a escolha mais acertada para conduzir uma versão aditivada da velha história do cientista que se torna invisível para provar suas teorias: "O homem sem sombra", produzido pela Columbia Pictures a um custo estimado de 95 milhões de dólares, chegou aos cinemas americanos repleto de sangue, violência e sexo - ingredientes essenciais à sua filmografia anterior.


Apesar da trama não acrescentar muito mais à velha história do homem invisível - além dos elementos já citados - "O homem sem sombra" é um entretenimento de primeira qualidade, utilizando a seu favor todas as vantagens de um orçamento milionário e das possibilidades dos efeitos digitais que, apesar dos nomes famosos no elenco, são a verdadeira estrela da festa a ponto de terem sido indicados ao Oscar da categoria (perderam para "Gladiador", uma vitória injusta mas compreensível haja visto o sucesso de bilheteria do filme de Ridley Scott). Sutis em determinados momentos e explicitamente brilhantes em outros, os efeitos são o ápice do filme, dando base a um roteiro que não tem medo de mostrar frequentemente sua alma trash e adolescente. Pouco dado a sutilezas visuais, Verhoeven deita e rola, mostrando sem pudor algum transformações físicas assustadoras e dando a Kevin Bacon a chance de criar um dos vilões mais sensacionais do gênero, o brilhante e desequilibrado Sebastian Caine.


Lìder de um grupo de cientistas que, com o apoio do Pentágono, tenta descobrir a fórmula da invisibilidade, Caine resolve testar em si mesmo o passo final da experiência: um líquido que reverte o processo. As coisas não saem exatamente como o esperado e ele acaba permanecendo invisível por mais tempo do que deveria. Enquanto fica escondido no laboratório, à espera de uma solução para seu problema, ele acaba descobrindo as vantagens de sua situação, o que inclui abusar de sua colega Sarah (Kim Dickens) e estuprar uma vizinha por quem sente atração há tempos. Conforme o tempo vai passando e as coisas continuam na mesma, Caine passa a demonstrar um desequilíbrio cada vez maior, que explode de vez quando ele descobre que sua ex-namorada, Linda McKay (Elisabeth Shue, primeiro nome dos créditos, consequência de sua indicação ao Oscar por "Despedida em Las Vegas") está apaixonada por outro cientista do grupo, Matthew Kesington (Josh Brolin): violento e imprevisível, ele passa a perseguir os amantes.

Mesmo que apele para uma sucessão de clichês em seu terço final - quando Caine se transforma em uma espécie de Jason, assassino e incapturável - "O homem sem sombra" é uma das melhores ficções científicas dos anos 90, com sua mistura exata entre uma boa história, paranoia, bons atores e efeitos visuais de primeira linha. Construído com precisão cirúrgica com o objetivo de ganhar o espectador com violência e ação, o filme não chegou a ser um enorme êxito comercial, mas oferece à plateia muito mais do que a média do gênero. Verhoeven sabe o que faz.

JADE

  JADE (Jade, 1995, Paramount Pictures, 95min) Direção: William Friedkin. Roteiro: Joe Eszterhas. Fotografia: Andrzej Bartkowiak. Montagem...