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domingo, fevereiro 26, 2012

A NOSSA FALADURA - CLXXVI - EMBALDE/IMBALDE

Claramente, os tempos que correm são tempos em que o domínio do TER sobre o SER é avassalador. Os novos deuses  - o poder, o dinheiro, o sexo, o lucro fácil, a mentira, - substituiram os valores de não há ainda muito tempo.
Faz já uns bons anos participei na elaboração de um inquérito aplicado a púberes (11-13 anos) em que uma das questões exigia que enumerassem as 3 preferênias valorativas na vida futura.
Creio não me enganar na ordem, mas, ainda que me engane, não vem mal ao mundo por isso: Vivenda com piscina, carro desportivo, muito dinheiro para viajar. Quando, depois, foram confrontados com os outros valores: saúde, paz, amizade, trabalho, solidariedade, fim da miséria no mundo,... , alguns lá foram respondendo : pois, também, é verdade,... .
Não há dúvidas que o descartável, o consumismo, o efémero, .. invadiram o globo e a pessoa humana, esse que devia ser o primeiro e maior valor, foi relegada para trás das costas e quando alguém morre é que se recordam alguns dos seus valores humanitários, mas, a breve trecho, logo se esquece.
O humanismo - e logo a humanidade - estão a perder vitalidade e capacidade de mobilizar. Vive-se um individualismo fechado, em que nem os vizinhos do mesmo patamar se conhecem, as portas se trancam , as partilhas e convívio desapareceram, salvo naturalmente honrosas exepções.
Quando muitos dos que nos lêem foram pela primeira vez para a escola, ouviram  a mãe - em regra o pai não se intrometia nestas tarefas - dizer para o senhor professor:" Se ele se portar mal ou não aprender, puxe-lhe as orelhas, a este malandro. Só se perdem as que cairem no chão!"
Entretanto, em casa, o pai já tinha provavelmente dado o seu conselho máximo: vê lá se não me envergonhas a cara... Não te metas com ninguém, mas se algum se meter contigo, não sejas embalde e arreia-lhe logo que é para ele não se tornar a meter contigo..."
Vivia-se, então, neste transe de não nos portarmos mal, senão o senhor professor arrancava-nos as orelhas, dum lado e do outro com a máxima paterna: nunca deixes que te ponham as botas no cachaço, para não sermos imbaldes.
Dum lado a obediência, o respeito, a consideração pelo senhor professor, do outro o auto conceito, o amor próprio e a defesa do nome da família.
Vem a talho de foice que nas aldeias havia seis autoridades cuja importância não se discutia: o senhor prior, o senhor regedor, o senhor professor, o senhor presidente da junta, o senhor patrão e o senhor pai. Ninguém tratava um pai por tu.
Basta reparar, para corroborar o que atrás disse, quem eram as pessoas que pegavam no pálio nas procissões festivas e quem levava as lanternas e os estandartes...
Sabão era um dos bombos da escola. Todos lhe malhavam e ele tudo tolerava. A mãe vociferava com ele quando o inspeccionava e lhe via todos os dias novas nódoas negras. Ralhava com ele, filho único e chamava o pai à pedra dizendo que também ele era um imbalde um bananinha mole que não era capaz de incutir no filho a fibra que ela tinha.
O maior perseguidor de Sabão era o Modas, que lhe fazia a vida negra.
Era costume, quando fazíamos o exame da 4ª classe e íamos à Vila , muitos pela primeira vez com fato e gravata, era costume, dizia, levarmos sumos de litro ao senhor profesor como prova de agradecimento e reconhecimento pelo seu trabalho connosco.
O Modas era maluco por pirolito.
O Sabão levava uma garrafa de pirolito das grandes e o Modas diz para o Sabão: "passa para cá a garrafa que eu tenho sede" .O Sabão tinha sido ensaiado por mim, Coiote Pete e Contra Mestre: "Se o Modas se meter contigo, tu dizes que a garrafa é de nós os quatro e que a tua parte é a do fundo e portanto não lhe podes dar a garrafa para ele beber." O previsto aconteceu. O Modas quer a garrafa e o Sabão: " Eu dava-ta mas isto é de quatro e a minha parte é a do fundo e os outros não te dão e eu não te posso dar a minha parte que é a do fundo"
O Modas ficou a olhar para ele sem entender, mas não se atreveu a gamar a garrafa ao Sabão, com medo de que depois nós lhe chegássemos a roupa ao pêlo.
O Sabão nesse dia deixou de ser embalde e quem vinha por lã acabou por ser tosquiado.
XXXXXXXXXXIIIIIIIIIIIIIGGGGGGGGGGGGGGGGGGGRRRRRRRRRRRRRAANNNNDDEE

sexta-feira, julho 29, 2005

A NOSSA FALA XIX - INGRUMÊNCIO

Surreição da barreira tinha muitas características: a falha dentária que tinha do lado esquerdo da boca permitia-lhe lançar reboludas escarretas a uma distância invejável; (não ganhava, é claro, àquele americano que cuspia um caroço de cereja a vinte e seis metros - os americanos são malucos - ); as alpergatas que calçava, a bem dizer, estavam cosidas aos pés, já que nunca as tirava nem para dormir; as orelhas, essas, com um pouco de feijão branco alimentavam uma família, mas tal volumetria em nada impedia que fosse mouca a valer, e a remela dos olhos, se a desfizéssemos num frasco, dava cola para colar todos os selos das cartas que o ti emídio escrevia durante um ano; as saias eram sempre de flanela e não sei se ia mudando as de baixo para cima se as de cima para baixo, já que o padrão era sempre o mesmo; o mesmo se podia dizer da blusa, sempre de chita da tabela, com um elástico ou fita de nastro, não sei bem, quase ao fundo, de modo a fazer um folhinho arregaçado, tornando-a numa marafona de monsanto; o cabelo era todas as manhãs cofiado após a ligeira lavagem de cara (mais só boca e nariz), depois apanhado e espetado com um gancho daqueles com que se tira a lia das tripas do porco no dia da matança, quando as mulheres vão à ribeira lavá-las e virá-las; mas a mais marcante característica, para além de morar paredes meias com o calça defuntos, era o facto de andar sempre com umas pedras no bolso do avental, também ele de chita da tabela, e que lhe serviam de pesos medida: se comprava arroz o cartucho teria que ser pesado não pelo peso aferido do merceeiro, mas pelo calhau que ela dizia que pesava um quilo. Mas tanto comprava como vendia. A balança eram uns cambos (espécie de fateixa com garrancho dos dois lados e que eu algumas vezes lhe pedi para tirar os caldeiros do fundo do poço com uma corda atada a um dos lados) ; a voz era do mais roufenho que imaginar se possa, teimosinha quanto baste e desconfiada de tudo e de todos; soltava as pitas e nenhuma se escapava sem ela lhe tomar o cu a ver se trazia ovo. Fazia assim: pnina, pnina, pnina, pipipipipi, gacha gacha gacha, pipipipipi ,...,e as pitas agachavam-se, ela metia-lhes o dedo e poisava-as delicadamente no chão. Guardava-as até lhe parecer que já tinham esgaravatado o bastante e papado a areia para a moagem e voltava a chamá-las: pipipipi, pnipniapnina... e elas lá entravam em fila para a loja. Aí esborova-lhes pão ou espalhava-lhes uns bagos de milho. Só quando estivessem todos comidos é que lhes deitava mais.
Duma vez, gastei eu metade do meu latim para lhe provar que com a pedra dela ficava a perder, que o meu peso estava legal e que não podia utilizar o calhau na balança aferida, etc. etc. e vai ela: " olha o ingrumêncio de merda a fazer mangação de mim, deixa-me cá ver a tua mãe que logo te digo...ingrumêncio!
Era madrugadora e à passagem da carreira do chico júlio aí estava ela com a bacia no batorel a cofiar o cabelo, dava conta de tudo o que passava e às vezes partilhava as suas convicções com a vizinha quase de frente, a velha espeta figos, mouca como ela e , então de manhãzinha as vozes das duas ecoavam pelo oiteiro a partir da barreira. Belo quadro: Souza Cardoso é que nunca o presenciou senão tinha-as imortalizado...
Por essas alturas chegava também a mulher do correio... (Para aqueles que agora escrevem por correio electrónico, talvez não seja despiciendo esclarecer que antigamente, a seguir à malaposta, as localidades onde não passava a carreira que saía de Castelo Branco eram servidas pela mulher do correio. Andava de noite , à chuva e ao sol, a pé, às vezes com o auxílio de um burrito e era um dó vê-la às vezes, principalmente na altura do Natal, carregadinha até mais não, com as bolsas tapadas por um plástico . O velho argentino, malino como a pata que o pôs, um dia perguntou-lhe: ó zabel, tu não tens medo de andar de noite,sozinha? e ela:"medo de quê? se vier o lobo está cá o burro, se vier um homem, estou cá eu".
Não era raro que a surreição da barreira viesse até à porta da loja do correio mais para ver o que passava do que para ajudar a montar a carga à cabeça da ti Isabel ou nas angarelas do burro. Eu ajudei-a muitas vezes e ti surreição: " o ingrumêncio do fedelho tem genica; tem ganas, o embalde".
O velho comandante é que não gostava nada dela: tinham um terreno pegado, a velha quase não fazia horta e tinha um poço com uma nascente do lado do sol posto que nunca mais acabava de deitar à gua. O comandante só tinha poço e horta e não tinha água. Quis negociar com ela: " ó surreição eu dou-te daqui batatas,feijão e uma botelha das grandes, uns pimentitos e deixas-me enregueirar a água do teu poço". « Não querias mai nada! a água é minha e não preciso dos teus tomates para nada»" Ó filha do diabo, eu é que também não tos dava; estão aqui bem onde estão e são meus". «Malcriadão, não tens vergonha nenhuma». "havias de apanhar a borreira branca e a pieira como as ovelhas, filha do diabo". Como se vê o diálogo era construtivo. A velha chegava a ir, ainda noite escura, a espreitar se o velho lhe tirava algum caldeirinho de água do poço. O velho um dia deu por ela e, então, foi o bom e o bonito.
Foi por essa altura, já em fim de regas, perto das sementeiras de cereal, Outubro quase a acabar, já alguns mais apressados bebiam vinho novo, foi num desses anos que o comandante teve mais um neto. Era já viúvo e aí vem, manhã cedo, que para ele a cama era sempre curta e tapava-se com mantas de acordar cedo, a ver o netinho: "senão fosse por ser gente aventávamo-lo (ele dizia aventavamzo); parece um ratito, é mesmo um ingrumêncio, isto morre." E não se calava: vai-se embora o ingrumêncio, não chega ao chambaril do natal.""É mesmo um ingrumêncio"
Enganou-se e bem: o ingrumêncio cresceu e fez-se um matulão. Também escreve neste blogue. Para ele o maior abraço do mundo, apesar de ser o ingrumêncio.