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terça-feira, maio 15, 2012

A NOSSA FALADURA - CLXXX - BIQUEBORNATO

Se havia cozinheira de boda afamada em toda a Raia, a Ti Maria Rainha levava a palma. Mulher cheia, de barruma na testa, braços mais que compridos, mãos lhanas e enormes, sapato para aí nº 40, tudo para mais, voz tonitroante, andar calmo, mas constante. Nunca se cansava e era capaz de trabalhar três dias e três noites sem ir à cama. Não sabia ler nem escrever e nunca precisou de contar ou pesar o que quer que fosse de ingrediente. Dizia que os ovos não eram todos iguais e que a proporção nunca era a mesma, porque era diferente se fosse de compra ou fosse de capoeira, se era de galinha pedrez ou castanha ou preta, pelada ou não, com galo ou solteira, sei lá! Muitas vezes lhe pedi receitas de iguarias ímpares e a resposta era sempre a mesma: " tu num vês que eu faço tudo a olho!?. E era mesmo. Até a têmpera do forno era medida metendo o braço na porta e dando indicações: "mete lenha de azinho", "mete esteva", "tira borralho", "passa o vassouro". Ela lá sabia. O facto é que caçola, bolo ou assadura saíam sempre na perfeição. Nem relógio usava, mas ela lá sabia quando virar, pôr à porta, afundar, tapar borralho, tudo.
Não usava artefactos de cozinha, salvo faca quando necessária.
Onde mais eu gostava de a ver trabalhar era na confecção dos bolos: sentava num tropesso de cortiça diante de um alguidar enorme, arremangava as mangas, lavava as mãos e queria uma pessoa a seu mando ali perto e todos os ingredientes que ela colocava à mão.
« Escarcha praqui ovos, bota mais, bota, bota», e o braço tocava a mão que ia batendo os ovos; quando via que já chegavam: bonda!, bota agora farinha, bota, bota, bonda! Agora bota açucre, bota, bota, bota, bonda! O braço esse andava sempre num vai-vem semelhante aos dos alcatruzes de uma nora ... De vez em quando os dedos procuravam algum cogulho, esborrachava e voltava ao mesmo movimento. «Vai-me por um cochito de biquebornato e desmancha-mo aí num chá de cidreira, mexe-te!» E a mesma lenga- lenga: "bota, bota, bota, bonda!".
Com a mão livre metia um dedo na massa, provava e logo: bota mai açucre, mai um pacote de farinha  e traz-me agurdente: bota, bota, bonda! Sempre assim foi, e ainda nunca provei nem bolos de leite, nem esquecidos, nem borrachões, nem biscoitos, nem arroz doce, nem bolo de noz ou amêndoa, pão de ló ou chocolate como aquele braço e mão faziam...
Fazia panelões de caldo, tudo a olho e no pino do Verão, quando as couves têm menos viço e são ásperas, lá vinha ela com o biquinho da faca transportando o indispensável biquebornato, as couves ganhavam um verde intenso e ficavam macias que era um regalo.
As bodas eram refeições monumentais: as famílias dele e dela começavam separadas e por volta das 10 lá se começava o enchimento com pastéís de toda a ordem, panados, bolos secos, branco e tinto com fartura e sumos para a canalha e para as mulheres. Ele chegava primeiro à porta da igreja e esperava que ela aparecesse. Só aqui é que ele podia ver o vestido dela. O pai entregava-a à madrinha e lá subiam a coxia e ficavam lado a lado. Recebiam-se, o oficiante dava as bençãos e saíam já casados. O almoço dos noivos era na casa dela e o jantar na casa dele. Os convidados duma e do outro iam para espaços separados. Só muito mais tarde é que se começaram a fundir os adjuntos.
As mesas já estavam compostas com mais bolos e com os frios assados avícolas: galos e perus.
Havia sempre duas sopas, uma das quais invariavelmente era canja e a outra variava entre o grão com massa e couve grossa, caldo verde, feijão grande com nabo. O prato de peixe era na maioria da vezes, bacalhau à Brás e depois vinham as carnes: arroz de sarrabulho, coelho com esparregado, galo de cabidela, borrego ou cabra guizados, carne de caçola, bifes de porco com batata frita, muita alface, e ao fim um número interminável de sobremesas, desde bolos a pudins e até, nas bodas mais finas, gelado que mais parecia um creme.
Havia gente que comia o prato cheio de todas as variedades. Duma vez vi comer catorze pratos diferentes a um Labouxa.
A situação mais aberrante, no entanto, aconteceu com o Balecas que me diz: « Se não fosse cá por coisas agarrava-me a este galo e vindimava-o. ! » E vindimou. Comeu o galo inteirinho com duas travessas de esparregado.
Durante a tarde havia bailarico, tá claro e à noite tornava-se a encher a blusa. Havia gente cujo estômago não devia ter fundo, tal a quantidade que ingeriam.
Os noivos na manhã seguinte tinham direito a pequeno almoço servido com todos os requintes.
Não raras vezes, ele pedia um pouco de biquebornato por mor da azia!
XXXXXXXIIIIIIIIIIIIIIGGGGGGGGGGGRRRRRRRAAAAAAAANNNNNNNNNDDEEE

quinta-feira, outubro 01, 2009

A NOSSA FALADURA - CXLI - BO(U)RNAL

A sinonímia sempre acarretou problemas à comunicação. Na verdade, as palavras são como as pessoas: todas têm uma história. Não é por acaso que cada uma delas existe. Mesmo entre os grandes teóricos da linguagem e da comunicação não há unanimidade interpretativa. Desde logo porque a disciplina que faz a crítica da linguagem, podemos dizer que uma espécie de epistemologia da linguagem, tal como há uma epsitemologia científica, refiro-me, está bem de ver, à HERMENÊUTICA, traz consigo o deus dos ladrões e dos comerciantes. Hermes, esse veloz deus helénico, de asas nos pés, mensageiro dos mais hierárquicos, e que os romanos traduziram por Mercúrio, acumulava esta dupla protecção: ladrões e comerciantes... Sem nos determos muito neste acopulamento (comerciantes e ladrões), que, seja como seja, não deixa de ser interessante, avancemos para outro pormenor da linguagem/fala/comunicação.
É claro que não se pode meter tudo no mesmo saco e não é aqui que isso vai acontecer. O Baságueda pode brincar mas não ofende: tem humor mas não ironiza, brinca mas não faz mangação, ousa mas não violenta, serve mas não se escraviza, MAINADA!
Interseccionemos esta cangalhada toda a ver se chegamos ao bornal:
Sirva de exemplo o histórico facto de a língua latina ser o meio de difusão privilegiado inter centífico no mundo ocidental. Foi já tardio o aparecimento das primeiras universidades laicas, que a maioria dos locais de ensinança eram os mosteiros e as suas escolas monacais. Os burgueses aos poucos foram-se intrometendo entre os nobres e o clero, que o povo, esse, limitava-se a ser servo de gleba e, vá lá, às vezes, vilão franco, o povo, quanto menos soubesse, melhor - assim não recalcitrava... -. Dizia eu que os burgueses lá se foram, aos poucos, libertando das peias eclesiais e, ao mesmo tempo que fundavam cidades nas encruzilhadas das grandes vias, também construiram escolas para os seus filhos. Com a colaboração dos goliardos, cárpatos e outros proscritos pela santa madre igreja católica apostólica romana, conseguiram escolas de tão grande renome quanto as herméticas oficinas do saber bibliotecárias, manuscritas e dogmáticas escolas monacais. A abertura a novas formas de pensar incipientes e a natural rebeldia de quem, com o sangue na guelra, eivado da novidade e garantido e avalizado por um novo riquismo que competia com o clero e os nobres suseranos latifundiários, ousava PROVOCAR o stablishment, aos poucos, foi conseguindo romper com a afogo e o sufoco que o severo dogmatismo impunha. O latim deixou de ser a exclusiva língua e algum do saber já se difundia na língua original, tanto mais que, após Guttenberg, nada ficou como era: a bíblia, claro, sempre como ex libris, mas também romances e novelas de cavalaria que deram azo a demandas do graal e a códigos da vinci e por aí fora. O latim, inacessível como era e ainda é, agora mais ainda que já há muito pouca gente que o domine, o latim era um obstáculo comunicacional... Não admira que os detentores do saber, conhecedores como eram desse fenómeno, comunicassem com a populaça, através de símbolos: lá vem a cruz, a bandeira, a sigla, a marca, o distintivo, a patente, tudo o que servisse para indicar ao maior universo possível, a mensagem que se pretendia transmitir, o jargão, a oração comunitária, as rezas,... Ainda havia aquilo a que nós chamamos slogan e o famoso AMÈN que indicava um ASSIM SEJA subserviente.
O bornal do povo era repleto com dogmas, mandamentos, imperativos negativos, virtudes, obras de misericórdia, normas de conduta, que sei eu,...
As festas populares tinham os seus tempos: o povo não podia fazer festas a seu bel-prazer: tinha que festejar quando as autoridades eclesiásticas o autorizassem - nem sequer era senhor de gerir a sua, já de si, parca ementa: os ricos que tinham dinheiro para bulas papais enchiam o fato a bel-prazer, o galego, sem dinheiro sequer para uns tamancos, esse, tinha que roer botelha a ver se se sustentava: isto sim foi o que o Cristo pregou... Adiante...
O bornal propriamente dito não era aquele alforge de Júpiter que nos pôs às costas uma bolsinha com os nossos defeitos e à frente uma enorme com os defeitos dos outros... O próprio Cristo se fez eco desta fábula de Esopo, depois transcrita por Fedro e mais tarde actualizada por La Fontaine: vês o algueiro no olho do outro e não tropeças na tranca que tens nos teus olhos.
Antes, era uma espécie de saca , regra geral em pele macia, tipo odre, mas com boca de ajuste com ataca do mesmo material e uma tomba para fecho definitivo e servia para levar merenda para festa, ou para monda, vindima, sacha de milho, quintos na ceifa, enfim, alturas em que se juntava a família e era preciso muito entulho ou se ficavam dias sem reabastecimento. Não raro ia nas angarelas, bem acomodado, que as iguarias não se podiam estragar nem sequer amelancar: bacalhau de horta e pataniscas do mesmo, algum coelho macho já substituído, um galo assim comédado, ovos verdes, chouriço de azeite, orelha de porco e tromba do mesmo animal de salgadeira, algum naco de de presunto, tora de toucinho, cunca de queijo, corno de azeitonas, casqueiro roda de moinho, grande quanto bastasse, e o mais que houvesse e desse jeito para botar na manta estendida:o bornal levava todo o farnel.
Bornal era ainda aquela pessoa que tudo atamancava e misturava os pés pelas mão: "és mesmo um bornal" ou aquele outro que arcava com tudo e de tanta serventia aos outros era chamado de bornal.
As casas meãs não tinham terrenos nem gado para feitor ou maioral, mas, em regra, sustentavam uma espécie de criado que tirava esterco a porco, guardava e ordenhava cabras e/ou ovelhas, fazia a horta, recolhia o feno, tomava conta da alguitarra no tempo da aguardente, ia à agua para as necessidade domésticas, apanhava vides, queimava lenha de limpeza de árvores, e o mais que aparecesse. Era um bornal: no outro cabia tudo a este cabia-lhe tudo. Dois Bo(u)rnais.
Era assim a vida...
XXXXXXXXXXXXXXXXXIIIIIIIIIIIIIIII GGGGRRRRAAANNNNNDDDDDEEEEEE!

terça-feira, julho 21, 2009

A NOSSA FALADURA - CXXXVII - PI(E)RRÓNI(E)CO

Ora digam lá que o povo não é erudito! Quando ouvi pela vez primeira a velha Libra a chamar isto ao seu neto Farnando, ali mesmo em frente da casa do Pirolas , fiquei assim como os tarantas que ouvem mas não entendem.
Só muito mais tarde, já com algumas letras aprendidas é que vim a saber quem fora Pirro de Élis, fundador da escola céptica, defensor acérrimo da tese que propugnava que a verdade nunca seria atingível e que o homem nunca dela teria consciência. A razão para a assumpção de tal posição radicava na constatação de que não havia um critério único de verdade e que só um relativismo seria aconselhável. Ora, tal posição inviabiliza uma verdade universal e assim nunca se podem formular leis. Era aquilo que os gregos chamavam a acatalepsia (impossibilidade de se conhecer a natureza própria das coisas) pelo que o melhor era um certo desprendimento da própria realidade e não nos preocuparmos muito (ataraxia).
Contemporaneamente podemos sentir influências desta forma de pensar em Karl Popper, o homem do falsificacionismo que propõe o inverso do normalmente crido: as teorias científicas só o são se puderem ser empiricamente falsificadas. O que há, são doutrinas aceites como verdadeiras, mas que o não são. Basta que ver que caminhamos sempre para novas formas de abordagem da realidade e que aquilo que hoje é a verdade é amanhã duvidoso e para a semana já é historicamente falso. É isto que justifica o progresso e que, consequentemente nos contentemos com probabilidades que se aproximam da verdade mas que a não têm, sob pena de liquidarmos a evolução do conhecimento humano.
É por causa disto que nunca se conclui grande coisa de um debate sobre um qualquer assunto: cada um dos participantes agarra-se com unhas e dentes aos seus pontos de vista, que considera os melhores, e fecha a porta a qualquer outro ponto de vista diferente porque será sempre inferior ao seu e assim não vale a pena ligar-lhe. É o que se chama o mito do contexto, que se pode expressar na afirmação popular de que " nunca há só um teimoso". Podeis chamar-lhe o que quiserdes: arrogância, pedantismo, mania, surdez, casmurrice, autoritarismo, sobranceria, narcisismo, umbilicalismo, ensimesmamento, misantropia, Socretinismo, ... o que quiserdes, mas vai sempre dar ao mesmo: eu é que sei e o outro é uma besta. Mainada.
O Farnando da Libra também assim era: teimosinho que nem galinha a tentar bicar o grão de milho pelo buraco da rede, quando lhe bastavam quatro passadas para o engolir se passasse pela porta ali ao lado. Pior ainda se o pombo por ali passasse e o engolisse...
Vamos lá então à estória: A velha Libra tinha um chão para o caminho das águas. Semeava milho para a burra e fazia uma horta pequena onde colhia no cedo alguns tomatitos e pepinos juntos com uns gatchos de Santa Maria numas videiras que tinha junto à parede do caminho e que « eram mai doces có mel». Tinha era um problema grave: o poço, a meio do Verão secava e podiam assar-se sardinhas lá no fundo. O remédio era acartar água em bidons que o Farnando tinha que encher no poço novo e levar na carroça para o chão. O Farnando era Perrónico mas não era parvo de todo: andava sempre à coca a ver quando é que alguém com motor ia ao poço a fazer o mesmo e pedia que lhe enchessem os bidons, que encher aquilo ao caldeirinho matava o corpo.
Além disso, o Farnando, se visse uma bola, esquecia-se do mais e era sempre o último a abandonar o jogo. A velha Libra rançava-o mas ele não ligava.
Quando apanhava os bidons cheios tocava a burra e lá ia direitinho ao chão e para não perder tempo despejava os bidons para o poço para poder vir jogar a bola outra vez. Quando a velha Libra ia para regar a hortinha, a água tinha-se sumido. O Zé Chornico que pegava com ela no chão:" diz ao teu cachopo que continue a acartar água que o meu poço agradece..." A Libra ficava preada e vinha sempre com alma para arrear nas fúcias ao Farnando: rais todos ta partam, garoto dum raio. Tou farta de te dizer que num botes a água dos bidons para o poço do chão. Vale mai lá deixares a carroça e trazeres a burranca, mê teimoso!
Farnando praguejava de igual modo - a falta que um pai faz na primeira infância!- ( os pais eram emigrantes em França e a Libra estava viúva)" velha dum corno não me desampara a braguilha...» Perdoe-se-me esta descida de nível mas o vernáculo assim o exige...
A questão era grave: Farnando dava-se mal com a besta e só a controlava entre os varais da carroça. Se a soltasse e a montasse para chegar à aldeia era certo e sabido que malharia com os costelados no chão que a burra não esquecia quem lhe punha carapetos de silva por debaixo da albarda... Cá se fazem cá se pagam... Depois chamem-lhe burra!... Antes JUSTICEIRA!
Aí está a razão por que Farnado despejava a água por gravidade e vinha com burra e carroça até à Lameira e ao poço novo... «Vai lá vai» dizia, «a puta da burra malhava comigo no chão e assim vem mansa que as patas batem-lhe nas guardas da carroça e só consegue trote, nunca galope.»
A pobre da Libra bem tentava domesticar aquele potro mas ele chegou a entrar pelo telhado às tantas da noite e a pobre desistiu de lhe trancar a porta.
Foi para a Alemanha como padeiro, tornou-se pasteleiro, comprou um ford capri, andei nele, uma bomba.
Também era perrónico: de vez em quando não obedecia ao dono e dava de rabo. Ainda lá apanhei uns cagaços...
XXXXXXXXXXXXXXXXXIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII GGGRRRRRRRRRAAAAANNDDDDEE

quarta-feira, julho 13, 2005

A NOSSA FALA - XV - AMELANCADO

Zé pantelhão era latoeiro. Botava pingo de solda em caldeiro, pote ou cântaro. Fazia a mistura do chumbo e do estanho num rego de cimento. Aquecia o ferro numa pequena forja onde a hulha era afogueada com uma pinha e uma ventoinha que se rodava manualmente como uma manivela e que ele mantinha impecavelmente oleada. Numa latinha ao lado, pendurada dum prego retorcido, tinha o ácido que permitia a ligação dos elementos e, assim, unia o que estava desunido e permitia coalescência de materiais.
Percorria a parte sul do concelho em passo certo e no seu andar meneante fazia lembrar a banda da música naquele bamboleio sempre certo a partir do abaixamento do braço do mestre que indicava o início da marcha.
Tonho de aldeia, vizinho de pantelhão, sozinho quase conseguia reproduzir o som da banda. Só ele foi mais caminheiro andante do que pantelhão. Nem contrabandista ou comerciante de figo seco e outra marouva, que subiam a marvana e a serra da raposa e malcata até ao sabugal caminharam o que tonho de aldeia calcorreou. Foi visto muitas vezes em Lamego, a norte, e em Portalegre a sul e todo o distrito o conhecia. Figura ímpar nas suas calças pelo tornozelo, santo de ocasião pendurado em tabuinha segura à camisa por um alfinete já enferrujado, pé encardido metido em sapato avantajado, almotolia à frente e alforge atrás, navalinha atada à presilha da calça por baraço tão encardido como os pés, marreca acentuada e, claro, a mão direita sem três dedos, fruto de um rebentamento de uma bomba de foguete no S. Bartolomeu. O pai, o ti mnel ceguinho já trôpego acompanhava o tonho e de vez em quando tocava uns acordes numa guitarra com um som único. Deles se conta que uma vez o tonho foi pedir esmola a uma casa de campo e lhe deram pão com chouriça. Ele encheu o papinho com ela e ao velho deu só o pão seco. O velho, cego, mas de olfacto apurado, chamou-o à atenção: ó tonho cheira-me a chouriça! O tonho para além de lhe chamar mal agradecido esperou a oportunidade e ao passar dum regato junto a um sobreiro diz para o pai: salte que é rego! O velho saltou e bateu de caras com o sobreiro: rais ta parta tonho! porque não me disseste que estava aqui o sobreiro? E o tonho: então cheirou-lhe o pão a chouriça e não lhe cheirou o sobreiro a cortiça? Eu não acredito que o tonho tal tenha feito tanto mais que era ainda ele que mais ajudava a Maria da Luz que ainda anda por aí e as filhas do Zé Ambrósio.
Então onde é que está o AMELANCADO?
Aí vem ele: o tonho amelancou a almotolia que ficou a verter no fundo. Foi-se ao pantelhão e pediu-lhe: ó zéi, bota-me lá aqui um pingo no fundo da armetria e desamelanca-ma lá! O pantelhão olhou e disse: «ó tonho, não vês que não pode ser… o pingo não pega na gordura do azeite e o bico da almetelia não entra na ponta da bigorna.
- Então e agora? - pergunta o tonho.
- Arranjas uma botelha das do vinho e assim já não se amelanca nem precisas de pingo.
Lembrou-se o tonho da cabaça onde em garoto metia as agúdias e não foi de modas: mais um baraço no pescoço da cabaça e pronto! Aí estava o tonho armado com a nova almotolia.
Arrancou o tonho todo contente em passo de banda de música: tá,tá,tá,tárátáta, pópopó tchim,tátata,pópoótchim…e encontro-o eu ao fundo da lagariça : ó tonho, então que dizem os jornais? O tonho espirra a pregar um susto e invariavelmente: “a guerra vai acabar! Espetaram um prego no cu do Salazar”!