À medida que a nossa faladura vai crescendo, começam a escassear novos termos e novos heróis. Este que hoje vos trago saiu-me em conversa com Karraio. Vai daí pus-me a escadabulhar que temática vos traria hoje. Passaram-me várias temáticas, mas acabei por me decidir sobre uma que há já muito tempo não era motivo das minhas lucubrações meditativas naqueles momentos pré hipnagógicos até mergulhar nos braços fofos de Morfeu.
Se há mundo que me fascina, o da mitologia grega e das suas implicações na cultura ocidental, o da mitologia greco - romana é um deles.
Hoje trago-vos Hermes (Mercúrio, para os romanos). Em tempos tinha brincado com este carteiro divino (afinal ele era o mensageiro dos deuses), ou seja, desempenhava o papel que os anjos cumprem na mitologia cristã: encarregados de transmitir avisos divinos. Quando essas missões são especiais, aí já não são os anjos, tout-court, mas os seus superiores hierárquicos - os arcanjos-. Foi assim com a expulsão de Lúcifer, pelo arcanjo S. Miguel (que curiosamente significa que ninguém é como Deus), depois com Rafael (que significa CURA DE DEUS) e a cura da cegueira de Tobias ao passar o fel do fígado de um peixe pelos olhos dele e finalmente Gabriel (que significa Deus é meu protector) que foi encarregado de anunciar a Maria a sua imaculada concepção.
Volvamos, pois, a Hermes (ou Mercúrio). Além de mensageiro fiel dos deuses, era também deus dos ladrões, dos comerciantes, viajantes, diplomatas, pastores e seus rebanhos, da eloquência, para além de ser ele também o encarregado de guiar as almas dos mortos para o mundo do Hades.
Ora, o nosso Hermes - que, recordo, era deus dos ladrões - originou uma ciência interpretativa de importância mais que muita nos tempos que correm, sobretudo para quem se dedica à interpretação das mensagens.
O que se diz, a partir do momento em que é dito, deixa de ser da posse exclusiva de quem o disse. Faz-me lembrar um ensinamento de uma velha raposa do direito, que, não sendo advogado, sabia de leis como poucos: "se o pensas, não o digas, se o disseres, não o escrevas, se o escreveres, não o assines, se o assinares, não te queixes".
Para não perdermos o fio à meada e não nos percamos no meio deste escadabulho, sempre vos digo que encontrei umas larachas que em tempos me entretiveram nas tais meditações. Reaqueci-o e sirvo-lo agora quentinho. Não o roubei a ninguém. Mas depois que vo-lo dou a conhecer, ele deixa de ser meu e passa a ser mais vosso. Entretei-vos e senão entenderdes tudo logo à primeira, escadabulhai até vos aparecer a luz de Mercúrio (Hermes).
Hermes,
o mensageiro fiel e fidedigno dos deuses era também o grande mestre dos
disfarces.
Ser
fiel e ladra, este o terrível paradoxo da hermenêutica. O que ficou dito,
mostrou-se e ao mostrar-se sujeitou-se a interpretações. Pois, lá temos Hermes
outra vez: negoceia, regateia, discute, viola, assassina, aperfeiçoa...Com que
autoridade?
Cada
observador rouba o lugar ao autor e agora é ele o autor e este a pobre da
vítima, quando devia ser o senhor. Oh! Ingrata missão de revelar o que estava
oculto! Se não for manifesto, não vive e se o declaram, matam-no.
Afinal
o texto, ou não importa o quê, que se explore hermeneuticamente, é sempre uma
arma de dois gumes.
Tal
como o cientista ao produzir um invento para o poder instituído deixa de ter
poder sobre a sua própria obra, também aqui se passa de modo análogo, seja
qual for a “escola” hermenêutica em que
se gravite.
A hermenêutica
clássica e a hermenêutica moderna diferem nos seus posicionamentos frente ao
objecto, na sua forma e função. A hermenêutica clássica, tradicionalmente
aplica-se à exegesis bíblica e à interpretação de documentos revelados. A
hermenêutica moderna, pelo contrário avaliza a sua actividade em caracteres,
textos e discursos de diferente categoria (classe, qualidade) e isentos de “a priori”.
A hermenêutica
clássica é analítica, semântica, e a moderna é sintética e sintáctica.
A
hermenêutica moderna deriva da psicanálise, enquanto decifração do
texto inconsciente e seus produtos e procura incorporar significados novos,
(desconhecidos) no âmbito do conhecido, familiar e relativo (perspectivismo subjectivista do eu).
Tudo leva a crer que foi devido ao contacto com os seus primeiros pacientes que
falavam, não raro, uma linguagem desconcertante, que Freud se sentiu motivado
para tentar descobrir as raízes profundas dessa mesma linguagem. Quantas vezes,
sendo a palavra de uso comum, se aplicava a mundos até então ignotos.
Deste modo a psicanálise tem que abandonar
o campo da teoria e dedicar-se em pleno à prática. Muitos vêem aqui exactamente
o ponto de arranque epistemológico de algumas áreas do saber humano, mormente
quando se dedicam à investigação linguística e, logo , à própria hermenêutica.
Tentemos clarificar.
O psicanalista não se preocupa muito com o
que se percebe logo à primeira. Podemos
mesmo dizer que, para um psicanalista, o sentido do que aparece está oculto,
numa falha.
Para além de lhe interessar quem está ali a
falar deitado num divã ele está atento e irá interferir, não para fazer uma
interpretação, mas para se certificar do enunciado primitivo.
Segundo Freud, “o sujeito não sabe o que diz
quando fala, isto é, o sujeito não pode ao mesmo tempo significar-se e
significar eficazmente a própria acção
de significação”.
Quer
isto dizer que o falante ( sujeito ) não tem poder sobre a articulação da
linguagem, mas esta falta de poder não lhe é imposta de fora, bem ao contrário,
vem-lhe de dentro. Dito de outro modo: `Não existe inconsciente porque existe
desejo, mas sim existe desejo porque
existe inconsciente. Existe sempre algo para além da
linguagem ... .
O
texto, seja ele dito ou escrito, uma vez lido ou ouvido, deixou de ser
propriedade do emissor. A questão da Psicanálise e , porque não, da hermenêutica
começa agora.
O
sentido pode ser adulterado e o que se queria dizer foi parar tão longe que o
autor pode nem se ver naquilo que outro autor afirma que ele disse. O autor foi
des - autorizado. O Hermes violou-o, denegriu-o, mesmo até quando
o vangloria e o cita.
Pergunta-se, então :
Até
que ponto o subjectivismo-objectivo
que um sujeito dá a um determinado significado (vale aqui
a definição de F. Saussurre ) lhe é determinante? A língua será em si mesma uma
objectividade baseada em significados pré-existentes ao autor e de que ele se
serve de acordo com o sentido unívoco e julgado como
sempiterno - se me pré existe há-de
seguir-me - ou , ao invés, estará totalmente sujeita às
modificações ,”aos neologismos” de circunstância - e assim , consequentemente
- a novas significações que o tempo sempre se encarrega de lhes colar. Podemos
falar de uma Post- língua? Talvez que Heidegger não rejeitasse esta
possibilidade. O Des - sentido
não está metido já no sentido? O desvelo, o cuidado, a busca do originário não
se completará com a síntese da semanticidade? A Hermenêutica contemporânea - e se levarmos ao extremo esta
contemporaneidade - ela será sempre um constante presente sob pena de não ser
contemporânea, a hermenêutica contemporânea, dizíamos, a da facticidade, com a
“sua” mundaneidade, esse medium contínuo, que sempre me permite relacionar-me
com o outro, ela mesma, poderá ser mais pura do que o próprio autor? Por muito
“honesta “ que seja, ou mesmo procure ser, há-de ser sempre um Hermes. Há-de
sempre passar a mensagem. Damos- -lhe o crédito da fidelidade. Mas não
esqueçamos que pode ser sempre um sósia aquele que defendemos como sendo o
original.
É ou não verdade que que nos servimos de palavras já existentes para expressar
uma ideia, um sentimento, ..., mas que não deixa de ser verdade que o
contexto as pode completamente subverter? Ainda que o significado possa não ser
muito alterado, já não se pode dizer o mesmo do sentido.
Exemplo
disto mesmo é o próprio Freud. . O seu código só após a sua morte começou a ser
entendido e reconhecido. Como dirá Lacan: « O escândalo intolerável em que a
sexualidade freudiana ainda não era santa, era que ela fosse tão “intelectual”.
Safouan diz resumidamente: “O sujeito que fala é outro” . E quem é esse outro? Responde Freud: «È aquele que no plano
das representações não existe, mas que todos os processos psíquicos tendem a encontrar». Então
quando o encontramos já não é um encontro´, é um reencomtro. Se o atinjo é
porque já o conheço. ( É o famoso círculo da hermenêutica, resumido à questão tantas vezes recordada acção: Como estudar filosofia sem saber filosofar e como este sem aquela?)
Facto
é que quando falamos nunca pressupomos o real, apenas a linguagem. Estará aqui
uma das limitações do pressuposto de
Gadamer?
O
real que emerge é sempre um real fictício. Nunca é o real, real. A linguagem é
ou «seria esse instrumento sem o qual nada podia ser dito e quase nada podia
ser feito, embora em si mesmo ela não seja nada.» (Sempè. Op. Cit. ).
“
O desejo é a verdade” , eis a máxima que fecharia esta já longa meditação. Mas, ainda aqui temos que nos deter perante Saussurre: “A língua é intangível ,
mas não inalterável, ela modifica-se sem que os falantes a possam modificar.
(...) A língua foge ao domínio da vontade.
Outra
questão então se nos impõe: estaremos nós pré-determinados a escolher um signo
e não outro. Parafraseando Monod ( Le Hasard e la Necessité ) haverá uma
teleonomia da fala?
È
indesmentível que carregamos connosco uma série de inconscientes colectivos
(económico, social, religioso, moral,... ) e assim porque a vontade não tem
poder sobre a língua, o meu inconsciente
impõe-me um signo e eu uso-o. E digo que assim falo livremente. O desejo é
então a sua interpretação. Se lermos com Freud, podemos até ser mais radicais:
auto-castramo-nos, matamos o pai para ficarmos com a mãe mas mostramo-nos
potentes e assim fingimos que somos senhores do
falo, quando afinal já o tínhamos deitado fora. Sado - masoquismo do mais principiante. E já
agora cabe perguntar : o que temos vindo
a fazer não é uma fuga ao original freudiano. Não estamos a ser Hermes?
A
verdade afinal nunca é nossa Ela está
sempre personalizada no outro. Ela não é o dito. É o interdito. Leia-se que o
interdito é o entre - dito. Expliquemo-nos:
Nunca
somos só dois: eu que emito e o outro que me ouve mediamo-nos por um outro que
é comum aos dois : O Mundo. Mas antes do mundo, a Voz, seja ela a fala, o
gesto, o livro , o texto, ... . Seja o que for é sempre um medium. A relação assim já não é diádica , mas triádica.
Cremos
ser isso que Lacan quer significar: “ Tu não me podes falar do sítio donde eu
te escuto “.
Que
solução: a cómoda seria “ aspar “ todas as palavras, mas isto era substituir o
que estava pelo que não estava, e , logo, o que se queria tão puro, é afinal, de
início deturpado.
Que
sobra: Temos que continuar a ser Hermes. Este é o nosso sortilégio. Pelo menos
vivemos. E se Hermes se juntar a Afrodite então temos reprodução . Que assim
seja.
XXXXXXXXXXXXXXIIIIIIIIIIIIIIIIGGGGGGGRRRRRRRRRRRRAAAAAAAAAANNDDEEEEE