A nossa vida, embora ininterrupta na sua sequência: - um dia segue-se ao outro, até que um dia a nossa cadeira fica vazia para sempre - a nossa vida, esse intervalo de tempo em que passamos no mesmo tempo e espaço com outros -é efémera. As efémeras, já agora, são uns insectos que no espaço de duas horas, nascem, crescem, reproduzem-se e morrem...Reparai só: duas horas... Não têm tempo para discutir heranças; nunca se zangam. Para quê? Passado pouco tempo, morrem... de nada vale invocar direitos...Só os humanos não aprendem que são efémeros e que tudo passa.. e gabam-se de ser inteligentes...! o paradoxo é evidente.
Quando me ponho a pensar nesta estultícia humana as ideias atafegam-se-me e fico comprimido e limitado na minha soltura pensante. Vamos a saber: a morte nunca é um problema. Não tem solução, logo não é questionável. A vida, essa sim. Essa tem problemas e então o que há a fazer é tentar, até ao limite, vivê-la bem. Se a vivermos bem, a morte, venha ela quando vier, cai na sequência. Curiosa era a posição de Epicuro, pensador da chamada época helenística: enquanto eu for vivo a morte não tem que me afligir porque a vida vence a morte e ela, portanto, não é, e quando morrer ela também já não mete medo porque nessa altura já não sou e, em consequência, ela também já não me aflige... Já antes Platão em o Fédon dizia que "a vida é um treino para a morte". O que há a fazer, então, é tão só sabermos viver e aprender a morrer. Tão simples! E isto pensava-se há já 2.500 anos. Isto já não me atafega o juízo, de tão claro e correcto que é. Se o meu amigo Zé Lameiras ainda por cá andasse, era espingarda para dizer: "os gregos tinham lá porras". E digo eu:" se tinham!" A morte é inelutável. Não há que atafegar o tino com ela. Mainada!
O velho Garcia era pastor lá para os lados da Arrancada, ali quando se vira para a carreira de tiro de Penamacor, na estrada do Meimão, perto da ribeira da Ceife. A Rouca, companheira fiel, tratava da horta e era, com ele, ordenhadora das ovelhas, quando, já Sol posto, Garcia chegava com o rebanho ao aprisco. Aí eram os dois a dar ao dedo e ordenhar as ovelhas depressa para os baldes que a janta apetecia e a cama estava aberta para os corpos lassos. Mas... só depois da espremedela do leite coalhado com a flor do cardo. A Rouca tratava dos cardos como se fossem bebés: estrume da burrica, bem fermentado, ao toro, monda manual de corriol ou língua de passarinho, bolsa de pastor, veredo ou outra erva maligna. Ali só havia lugar para o cardo. E para as empas, claro: cada um deles, e eram aí obra duns 15, tinha uma estaca que impedia que o vento os vergasse. Tinha um escadote em madeira que Garcia lhe fizera - era habilidoso o Garcia, até acendia as barbas do milho que lhe serviam de tabaco, amortalhadas em papel de cartuxo, com a fricção da cabeça de um prego sobre o fundo de um vidro de garrafa de pirolito e, uma vez, até o vi deitar um foguete utilizando a mesma técnica- «tinha lá porras» o Garcia.
Por esta altura do ano, era vê-la, à Rouca, montada no escadéu e com a tesoura numa das mãos e uma malga na outra, a cortar a flor do cardeiro, com todo o cuidado, mais que Malagueta, Maroco, Patanisca ou Pombo tinham acortar o cabelo aos velhos, cada Sábado. Por cima do arcaz tinha umas folhas de jornal onde o punha a secar e, à medida que ia secando, guardava-o numa bolsa de pano aos quadrados que ela própria cosera com esmero.Depois da ordenha, leite coado por paninho alvo para uma bilha inox, todos os dias areada até parecer um espelho e colocada estrategicamente perto do lume para se manter quentinha, comiam o caldo . Rouca ajeitava a francela e os achinchos, Garcia batia com cacheira de torga, que ele próprio aprimorara, num almofariz de bronze, que mais parecia um sino, a flor cardeira com umas areias de sal grosso, até ficar bem moída. Levava sempre à inspecção superior de Rouca que aprovava ou pedia mais miúda ainda. Quando achasse que já estava, juntava-lhe um copinho de água morna, esperava que o suco se desfizesse, fazia uma espécie de balão dum paninho impecavelmente branco, Garcia deitava o conteúdo da malga com cuidado e Rouca atafegava com toda a força para dentro da bilha com o leite já amornado. O último aperto, ou atafega, era dado sempre por Garcia que até gemia de tanta força aplicar. Enquanto o leite coalhava, roíam um pouco de pão e conduto, Garcia arrefinfava-lhe um esmalte de tinto, Rouca ia ao asado. O leite coalhou...
Sentava-se num tropesso, punha uma touca e Garcia ia deitando o coalho aos poucos com um coucho para dentro do achincho. Rouca ia espremendo o soro, apertava com as mãos, ajustava o achincho, e, ao fim, espalhava sal grosso para fazer aqueles queijos únicos que ainda agora me sabem... Outros tempos, sem ASAE, mas com uma garantia de qualidade que hoje só raramente se encontra.
Todos comiam e se algum morreu de brucela nunca se soube nem se deixou de comer aquele divino leite coalhado espremido.
Vamos lá então viver a vida comédado que esta sabemos que existe e a outra nunca ninguém deu dela testemunho. Mainada!
XXXXXXXXXXXXXIIIIIIIIIIIIIIGGGGGGGGGGGGRRRRRRRRRAAAAAAADDDDDEEEEE
CHANGOTO