Terá sido a partir de meados da década de 60, postulo eu,
que as festas de Verão, nas aldeias e vilas deste país ganharam a dinâmica e o
figurino que actualmente as caracteriza. Esse novo figurino cresceu e instalou-se às abas da chamada “modernização” do mundo rural, por via da
sedimentação de padrões de vida importados do modo de vida urbano que vêm
operar mudanças significativas nas práticas colectivas e nas referências
simbólico-culturais das comunidades localizadas no dito "mundo rural". Os (e)migrantes terão assumido protagonismo decisivo no
processo.
Invariavelmente, todas as festas nas comunidades rurais têm
na sua origem o fervor religioso e o pretexto da celebração do dia do santo
padroeiro ou de outra qualquer figura do panteão de santos da Santa Madre
Igreja Católica Apostólica Romana. Constata-se, todavia, que a festa tem vindo
progressivamente a dessacralizar-se. Uma das principais características da nova festa de Verão é o seu carácter eminentemente profano, independentemente
de ser realizada sob a auréola do santo padroeiro. Mesmo que não declarado, é
notório o esvaízamento dos tradicionais motivos simbólicos que lhes deram
origem, estejam eles ligados a celebrações religiosas ou aos ciclos agrícolas.
Pese embora o motivo religioso (o padroeiro), a verdade é que, exceptuando a missa e a procissão, tudo o resto é profano.
A nova festa rege-se por novos valores que muito ficam a
dever àqueles padrões de vida importados do espaço urbano, influência essa que
se inscreve, aliás, no processo mais vasto de transformação das comunidades
rurais, observável em praticamente todas as dimensões da vida social local. É a
cultura dominante, a chamada de massas a engolir irreversivelmente as culturas
locais.
Caricaturalmente, a festa tipo realiza-se num recinto quase
exclusivamente reservado para o efeito. No topo do recinto, jaz um palco
coberto, onde actuam os artistas músicos que animam a festa, preferencialmente
da área da designada música pimba cujo espectáculo decorre à maneira do
“concerto” musical citadino, cheio de cor e movimento, habitualmente a cargo de
2 ou 3 bailarinas que se apresentam provocadoramente vestidas (ou será despidas?). A maioria da
plateia assiste quase impávida, uma minoria cede ao impulso de dançar nas cantigas
mais populares, cuja estrutura musical é simples, pontuadas por refrões fáceis
de letras brejeiras. Estrategicamente posicionado funciona um bar corrido, permanente e
maioritariamente ocupado por homens, às
abas do qual existe uma secção com
um conjunto de mesas e bancos para fruição gastronómica. A principal bebida
consumida é a cerveja, servida gelada em copos de plástico, com pouca espuma.
Nas comidas, o frango assado é rei, complementado com bifanas, moelas e pipis. Tudo
conjugado e preparado para alimentar uma atitude eminentemente passiva e
consumista.
Na organização está uma “comissão”, nascida às abas da dinâmica e da vontade de um
grupo de voluntários, motivados, uns pelo fervor religioso, outros por puro
bairrismo, outros prosseguindo uma estratégia de afirmação identitária, na
medida em que a festa permite a apropriação social de determinados momentos e
acções a que atribuem elevado valor simbólico no quadro sócio-cultural da
comunidade de origem.
Dia S. Bartolomeu, 24 de Agosto de 1973. É dia de semana,
dia de trabalho em todo o mundo, excepto na aldeia dos xendros que saem à rua
exibindo as suas mais vistosas indumentárias. A batalha trava-se entre as que
insistem no corte tradicional – inspiradas ainda na matriz cultural que iria em
breve ser mortalmente ferida na madrugada que Sophia esperava, o tal dia
inicial inteiro e limpo – e outras mais arrojadas, viajadas directamente da fresca
e desinibida Gália. A matriz regista a maior afluência do ano, logo aproveitada
pelo pregador convidado para se alongar no sermão. O povo feminino abana-se
freneticamente com coloridos leques timbrados com motivos tauromáquicos.
Manda a tradição que imediatamente a seguir à eucaristia se
leve a estátua de Natanael com a faca na mão direita e o diabo preso na mão
esquerda, a dar um passeio pela aldeia em procissão para ser depositado durante
algum tempo na capela do Espírito Santo. O ambiente cénico, para
além do numeroso povo que preenche completamente a rua, inclui o pálio que cobre
o clero com a sua sombra, os andores, os estandartes e, inevitável, a banda de
Aldeia de João Pires, complementado por um ambiente sonoro onde pontificam os
rebentamentos secos dos foguetes lançados pelo igualmente seco Miguelito e,
indispensável e marcante, o sincopado dlim dlim dlão, dlim dlim dlão, dos sinos
da torre da Igreja.
Naquele tempo, havia forte disputa entre a garotada pelo
direito de dar ao badalo – do sino - durante toda a procissão. Chegava a ser
combinada uma escala para permitir que todos tivessem tamanha honra, dispostos
a aguentar o zumbido que havia de ficar nos ouvidos durante um par de horas por
efeito da prolongada exposição ao desaconselhado volume de decibéis que era
atingido naquela exígua câmara. Naquele ano, o sacristão tinha autorizado João
Feijão, Tonho Mamanaburra, Domingos Albardinhas e, excepcionalmente, o Jorge
Braga - porque este vivia em Lisboa e só lá estava de férias - a revezarem-se na
produção da banda sonora. Iniciada a corrida pela estreita escadaria que
conduzia ao cimo da torre, na ânsia de ganhar o direito a ser o primeiro a
agarrar os ditos badalos, o Braga levou inadvertidamente o pé esquerdo a
embater numa espécie de pedregulho que jazia às abas do complexo sistema do certeiro relógio que marcava o ritmo de vida de toda a aldeia, cuja queda foi bem audível
em toda a nave. Não tardou muito que Xquim Camião aparecesse esbaforido, na sua
qualidade de guardião e afinador do relógio, e se desse conta da tragédia: por entre
o ruido ininterrupto do dlim dlim dlão, dlim dlim dlão e os sons guturais que
caracterizam a sua difícil fala, os garotos conseguiram perceber, ainda
assim, que o dito “pedregulho” era uma peça importantíssima para os equilíbrios
da complexa obra de arte da relojoaria concebida e montada por esse génio e
mestre autodidacta que se chamara Manel Ferreiro. Inconscientes e ignorantes
sobre a calamidade que tinham provocado no relógio, a preocupação dos gaiatos
resultava apenas da ameaça deixada pelo Camião de que iria fazer queixa ao
senhor prior e ao regedor, gesticulando muito e apontando em especial para o
Braga. A antevisão da sova que o esperava notou-se bem no fraco vigor e no
ritmo menos rigoroso com que ele abanou os badalos na sua vez. O receio era bem
fundado, considerando o respeito temeroso que toda a gente naquele tempo votava
à figura do regedor e o padrão de actuação dos pais em qualquer caso de
comportamento desviante dos filhos.
A tarde foi de expectativa. Nem os pirolitos na festa estavam
a saber como habitualmente. O Braga havia de ficar mais aliviado quando o
amigo João Barbosa, filho do Presidente da Junta, chegou ao recinto e contou que o Camião tinha ido
lá a casa a acusá-lo de ter feito o estrago no relógio. Ora, era impossível que
o Barbosa tivesse praticado tal crime, porquanto ele ia na procissão vestido de
anjinho. O Camião, que ia a contar ficar bem visto e com o copinho do famoso
morangueiro produzido na casa, saiu com a garganta mais seca, levou um valente responso
da senhora mãe do Barbosa e a ameaça de queixa por falsos testemunhos. A
confusão do camião tinha uma explicação: eram evidentes algumas parecenças
físicas entre os dois amigos Jorge e João.
Safou-se de boa o Jorge Braga. Às abas disso, foram ambos saborear
calmamente um pirolito. Alguns dias mais tarde soube-se que o Camião tinha
concertado competentemente o relógio da torre.
Ainda hoje ouvi bater o meio dia e me lembrou que eram horas
de almoço.
Notas:
1. A história tem uma pontinha de verdade e devo-a ao meu bom e antigo amigo Jorge Manteigas que às abas disso tem direito a figurar como personagem principal. Um abraço para ele.
2. Com este texto, atingiu-se o post nº 200 da rubrica "A nossa faladura". Eu seja ceguinho se contava chegar tão longe...
Notas:
1. A história tem uma pontinha de verdade e devo-a ao meu bom e antigo amigo Jorge Manteigas que às abas disso tem direito a figurar como personagem principal. Um abraço para ele.
2. Com este texto, atingiu-se o post nº 200 da rubrica "A nossa faladura". Eu seja ceguinho se contava chegar tão longe...