Mostrar mensagens com a etiqueta prosa. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta prosa. Mostrar todas as mensagens

22.5.22

SERGIO SOLMI


5
Na poesia, o corpo está na vanguarda. Por isso o poeta prossegue inerme e cego: mas cego como Homero, não como Tirésias. Por isso a vida da poesia não reside tanto na ideia, e nem na palavra, e nem tanto, diria até, na metáfora quanto na atitude, no modo de surgir e recair do canto, no timbre e no matiz de uma voz e, em geral, nos «imponderáveis» mais intimamente ligados às reacções secretas e irreflectidas da nossa natureza física. E é por isso que a mais sólida arquitectura do canto é construída –sempre – sobre a individualidade mais acidental e única.

6
É também necessária ao pensamento uma certa «idiotia»: uma lentidão desajeitada, a presença de obstáculos que um espírito superficial resolve e supera num abrir e fechar de olhos, A nossa reflexão mais verdadeira nasce quando descobrimos a monstruosidade, o carácter impensável «daquilo que é evidente». Para viver, a inteligência deve forçosamente nutrir-se de estupidez: o que seria uma inteligência sem alimento? Certos espíritos eloquentes e aproximativos, implacáveis dissertadores e sofisticadores, aqueles que procuram, numa discussão, ter sempre «a última palavra», dão-nos um exemplo desta inteligência ágil e vazia, sem sustento nem substância.
O nosso pensamento mais profundo nasce por vezes repentinamente do estagnar passivo da nossa vida, como o nenúfar da lama. No fervilhar infinito de tolices e inutilidades, na poeirada inconsciente a que chamamos «vida interior», é por vezes como um relâmpago momentâneo: as palavras insulsas e mecânicas, as incertas visões corpóreas que a onda limosa trazia consigo agrumulam-se e organizam-se, assumem forma: é o mistério carnal de toda a criação, a luz que irrompe sobre o caos.

(excerto de «Poesia, acordo supremo...», datado de 1925-1930, incluído em Meditações sobre o Escorpião e outras prosas, traduzido por Ana Cláudia Santos, acompanhado de desenhos de Fernando Mesquita e editado pela Barco Bêbado, em 2022)

28.3.19

RUY BELO


Nunca ao indefeso leitor de poesia terá sido fácil discernir o que, na produção contemporânea, é ou não poético e o continuará a ser — ou a não ser —, alguns anos volvidos. Teria para isso de conseguir determinar pouco menos que toda a linha futura da história da poesia. Mas que essas dificuldades são hoje em Portugal quase insuperáveis, ninguém de olhos limpos o poderá negar.
Muitas causas para isso contribuem, desde o mais ou menos larvado desrespeito pela liberdade e isenção da crítica até à conversão da mediocridade em ideal de arte. Dir-se-á que esta questão é secundária, que sempre o poeta surgiu além ou apesar de cenáculos, compadrios e venalidades de configuração mais ou menos típica, com maior ou menor consciência praticados.
Mas, no limiar do exercício da crítica, levanta-se a indeclinável obrigação de procurar ao menos apontar para o mal. Sendo a formação do gosto poético tradicionalmente deixada à livre e desconexa iniciativa de quem lê por ler ou para, lendo, escrever, impõe-se-nos o trabalho preliminar de ao menos levantar a voz para, quanto mais não seja, não colaborarmos nessa obra de perversão do gosto. E a crítica, embora de feição construtiva ou talvez por isso mesmo, não poderá deixar de se impor esse ingrato trabalho, até por uma elementar questão de honestidade.
Ultimamente tem-se abusado dessas técnicas de desnorteamento que, por fraqueza ou ambição desproporcionada, sempre aliás se usaram. A poesia, que outrora se apresentava discretamente, de mãos caídas, aparece agora divulgada, se não até construída, através de métodos mais ou menos jornalísticos, não sabendo ou não querendo os poetas renunciar a um maior alcance no espaço, em favor de uma mais autêntica sobrevivência no tempo. Daí a dificuldade — momentânea apenas, valha-nos isso — em distinguir entre poetas que o são e pessoas — respeitáveis pessoas, vamos lá — que por tal se pretendem fazer passar.
Se outro remédio não houver, resta aos autênticos poetas, àqueles que só a uma norma íntima afinal obedecem, resta — dizíamos nós — aos poetas cultivar a impopularidade, certos de que a poesia é, como toda a arte, essencialmente impopular. Se houverem de prescindir de público, aliás tão necessário na progressiva definição dessa norma íntima, que lhes não faleça a coragem de saber prescindir. Esse público acabará por se formar, não talvez a tempo de influir beneficamente na criação da obra, mas de qualquer forma em condições de delimitar-lhe o espaço de circulação.
Só é pena que, podendo porventura preencher lugares altamente remunerados ou pelo menos granjear uma merecida consideração social, os aventureiros da poesia não saibam eximir-se a perturbar o trabalho daqueles que à poesia sacrificaram pelo menos elevada remuneração e alguma consideração social.


(excerto de «Atentados contra a criação artística», in Na senda da Poesia, 1969)

13.2.19


THEODOR W. ADORNO


Sentis a poesia lírica como um elemento de oposição à sociedade, de natureza totalmente individual. A vossa resposta emocional insiste que assim permaneça, que a expressão lírica, em fuga das coisas materiais, evoque a imagem de uma vida liberta da coacção da prática dominante, do utilitarismo, da pressão obstinada do instinto de conservação. Contudo, esta exigência, em relação à poesia lírica, a reivindicação da palavra inviolada, é, em si mesma, de natureza social. Ela contém em si o protesto contra uma situação social que cada individuo vive como hostil e alheia, fria e opressora, e é pela negativa que essa situação se inscreve na composição poética: quanto mais pesada é a sua carga, maior a intransigência com que o poema lhe resiste, não se vergando a nada que lhe seja heteronómico e constituindo-se inteiramente de acordo com a sua própria norma. O seu distanciamento da pura existência converte-se na medida do que esta tem de falso e nocivo. Em protesto contra essa realidade, o poema exprime o sonho de um mundo onde a vida fosse diferente. A idiossincrasia do espírito livre contra a violência opressiva das coisas é uma forma de reacção contra a reificação do mundo, o domínio das mercadorias sobre as pessoas que se difundiu desde o início da Modernidade e que se desenvolveu a partir da Revolução Industrial, a ponto de se converter na força preponderante da existência. O rilkeano “culto dos objectos” insere-se igualmente no círculo mágico dessa idiossincrasia, enquanto tentativa de atrair e dissolver objectos estranhos no campo da expressão pura e subjectiva, conferindo credenciais metafísicas à sua estranheza; e a debilidade estética deste culto dos objectos, este gesto arremedando o oculto, mescla de religião e artes aplicadas, deixa simultaneamente entrever o peso efectivo da reificação que já não se deixa dourar com uma qualquer aura lírica, nem abranger pelo sentido.
Dizer que esta ideia, que para nós se converteu num dado imediato, praticamente numa segunda natureza, é de teor integralmente moderno, não é senão exprimir de outro modo a essência social da poesia lírica.


(excerto da conferência Poesia lírica e sociedade, proferida em 1957; tradução de Maria Antónia Amarante, Angelus Novus, 2003)

4.2.19

JORGE DE SENA


Antes de mais, reflictamos que, no estado actual da civilização, muita gente há, a esmagadora maioria, para quem a literatura não existe. E só os nossos desejos ou anseios humanísticos nos demonstram que, modificadas as circunstâncias, e tornado geral o hábito da leitura e distribuída imparcialmente a educação do gosto, aquilo a que chamamos as grandes obras literárias encontrará uma igual e equitativa receptitividade. De resto, só por si, o hábito da leitura não significa um conhecimento ou reconhecimento da literatura como tal. Mas, ainda que esse reconhecimento se processe em muitos leitores, daí não resulta que eles sintam necessidade de situar, correlacionar, comparar, historiar o que estimam, que os fira o apetite de o comunicarem a outros as observações que fizeram, ou que a literatura ocupe, em suas vidas, um lugar preponderante, absorvente, que seja ela o que dá sentido e estrutura a essas vidas. Do mesmo modo, estudar literatura não implica também um conhecimento ou reconhecimento dela, em extensão e em profundidade, cada vez mais se observa, no mundo de hoje, a tendência para limitar o âmbito do que se estuda, para isolar do resto o objecto de estudo, para elevar à contemplação satisfeita as últimas minudências de que se é capaz. Cada vez mais se observa, até, o curioso fenómeno de estudar literatura sem conhecê-la, evitando-se mesmo conhecê-la, preferindo-se as considerações críticas e a análise dos métodos críticos às próprias obras a que umas e outros se aplicam ou seriam aplicáveis. E uma atitude dessas de modo algum pressupõe que se pretenda ensinar ou viver o que, afinal, é já um objecto de segunda ordem. Também o ensino da literatura tende, cada vez mais, para o desconhecimento, a desestima, a não-vivência dela. De resto – e decorre da própria essência da literatura – teria de ser necessariamente assim. Porque a literatura não pode ser ensinada. Ensinar seja o que for é apresentar um instrumental adequado e explicar a maneira de uma pessoa tirar o proveito dele. Daí resulta que se ensina a escrever estudos sobre literatura, e estudos sobre os estudos de literatura, indefinidamente; ou se ensina a ensinar literatura. Quando afinal, aquilo que verdadeiramente, e do ponto de vista da literatura como tal, pode ser ensinado, não é uma literatura sem história ou uma história sem literatura, mas a consciência de que, como tal, e como sucede a todas as coisas ante a lucidez harmoniosa do que são e representam, a literatura não se basta a si própria, e só é literatura, verdadeira e autêntica literatura, quando deixa de o ser, isto é, quando ultrapassa, por sua própria essência, os quadros em que se define como autónoma e independente. O único ensino verdadeiro é este: o de que a literatura é um equilíbrio precário entre ser ela mesma e não ser tudo aquilo que se espera ou se pretende que ela seja.


(excerto do ensaio «Amor da literatura», datado de 1961 e incluído em O Reino da Estupidez - I, 3.ª edição: Edições 70, 1984)

7.11.18

MANUEL GUSMÃO


Carlos de Oliveira pertence a uma tradição que na modernidade é a da autoconsciência do trabalho poiético da forma.  Entretanto, esse trabalho não é praticado nem imaginado como um simples labor construtivo, mecânico ou mecanizável, todo método e cálculo. Esse trabalho inclui a preparação paciente de uma «pequenina explosão»; inclui a espera, a passividade disponível, o acontecimento imprevisível. Como o mostrou convincentemente Gustavo Rubim, esse trabalho «desfaz a oposição entre o cálculo e o acontecimento».
Há a este propósito uma longa tradição que pensa de forma dualista a poesia e as poéticas. Haveria num pólo o poeta «voyant», inspirado, possuído ou órfico (a matriz está em Platão) e, num outro pólo, o poeta «artiste», artífice, premeditado ou hermético (a matriz estaria agora em Aristóteles). De um lado, a inspiração, a força, a «chama», a energueia e, do outro, o cálculo, a forma, o «cristal», o ergon. A oposição não é de todo inverosímil, nem inútil, é possível vê-la como um particular sintoma da dificuldade de pensar uma identidade essencial e a-histórica do que seria a poesia. Mas Carlos de Oliveira é precisamente um daqueles que mostra como o dualismo rígido dessa bipolaridade pode deixar de funcionar: a sua obra é a de um artesão afectado pela paixão.


(excerto de «A Arte da Poesia em Carlos de Oliveira», in Neo-Realismo — Uma Poética do Testemunho (alguns exercícios de releitura), Edições Avante​, 2018)

5.8.18

FERNANDO GUIMARÃES


Esquecemo-nos muitas vezes que a realidade é o termo de um diálogo que, inconscientemente, se desenvolveu no tempo através de muitos encontros. Fomos nós e os outros quem o tornou possível até se dar a sua apropriação através de uma linguagem. No contacto que temos com os objectos, estes absorvem uma multiplicidade de sentidos que se depõem como outros tantos limiares de acesso à sua e à nossa presença. 
Vai-se dando, assim, uma significação aos seres que se transformam progressivamente ou adiam uma forma onde, como diria Rilke, o “perder é ainda nosso”. Dizer casa ou árvore equivale por vezes a invocar algo mais do que o indício que nos permita reconhecer ou localizar coisas que entre árvores e casas o são também. Dizê-lo é ou poderá significar o conhecimento radical que cada ser em face do homem suscita e que os diversos modos de o desligar invocam. Só nesse momento saberemos medir a casa pelo seu equilíbrio, pelo espaço que ela nos restitui cheio de significações; e que a árvore se tornará tão autêntica para nós como a realidade das estações que a atravessam ou o fogo futuro em que a sua presença brilha. Ou que, ainda, pode uma casa ser tão completa e solitária como uma árvore.
A acção do poeta consistirá em inventar ou atribuir uma ordem, um equilíbrio, a esses significados, a esses valores. E, pelo caminho das palavras, regressa-se de um mundo que se tornou ausente, embora os múltiplos sentidos que tal caminho nos propõe acabem por preencher totalmente essa ausência


(excerto de «Poesia e Sentido», in Conhecimento e Poesia, Oficina Musical, 1992)

9.7.18


MARÍA ZAMBRANO


A origem da filosofia enraíza-se nessa luta que se trava ainda dentro do sagrado e face a ele. A filosofia nasceu, foi o produto de uma atitude original ocorrida numa rara conjuntura entre o homem e o sagrado. A formação dos deuses, a sua revelação pela poesia, foi indispensável, porque foi ela, a poesia, que primeiro enfrentou esse mundo oculto do sagrado. E assim, em parte, a insuficiência dos deuses, resultante da acção poética, deu lugar à atitude filosófica. Mas, por outro lado, vemos que na atitude que a actividade poética supõe, se encontra já o antecedente necessário que dará origem à filosofia. Como sempre que de uma actividade humana nasce outra diferente, e até contrária, não é só da sua limitação, do que não chegou a alcançar, que ela nasce, mas também daquilo que chegou a ser; do seu aspecto negativo unido ao positivo.
E assim, a filosofia inicia-se do modo mais antipoético, por uma pergunta. A poesia, essa, começa sempre por uma resposta a uma pergunta não formulada. Interrogar-se é próprio do homem, o sinal de que chegou a um momento em que vai separar-se do que o rodeia, qualquer coisa como a ruptura de um amor, como o nascimento.
Toda a pergunta indica a perda de uma intimidade ou a extinção de uma adoração. Nos dois processos actua como fundo último, determinante, o cansaço, talvez a necessidade de um alguém que quer tornar-se independente, viver por sua conta, libertar-se daquilo mesmo que foi o lugar da sua alma. E mais ainda do que a ruptura de um amor, é algo como o nascimento; o processo em que um ser se alimentou e respirou dentro de outro, intrincado com ele, se solta à procura do seu próprio espaço vital. Assim, a pergunta filosófica que Tales formulou outrora [“O que são as coisas?”] significa o desprendimento da alma humana, já não desses deuses criados pela poesia, mas da instância sagrada, do mundo obscuro de onde eles próprios saíram. Pois as imagens poéticas dos deuses eram, por sua vez, uma solução encontrada para essa necessidade de desprendimento, da saída para um espaço livre, para uma relativa solidão.


(excerto de «A Disputa entre a Filosofia e a Poesia sobre os Deuses», in O Homem e o Divino, tradução de Cristina Rodriguez e Artur Guerra, Relógio d’Água, 1995)

13.5.18


SHAHD WADI


Os versos seguintes do fecho do poema de Suheir Hammad cantam justamente esta presença e insistência em narrar a memória palestiniana e em recriá-la. Herdamos a memória de um ramo de uma oliveira palestiniana que está mesmo dentro do nosso corpo, mas tossimos este ramo na forma de um poema. Todas as histórias e símbolos que estão na memória palestiniana estão reconfigurados através da arte e desta vez esta pós-memória vai ficar, pois tornou-se numa memória física: um objeto de arte. A nova memória transformou-se num poema e numa kafye palestiniana, muito bem costurada, e ambos contam as nossas histórias de vida do passado e do presente (HAMMAD, Suheir (2010) Born Palestinian Born Black & The Gaza Suit, Brooklyn: UpSet Press):

agora
eu sou a filha
a cuspir o ramo de oliveira
o filho reconstruindo a nação
o pai a reconstruir-se
eu sou a mãe
a cerzir as nossas histórias em kafiyes
cerzidos à nossa terra
de lágrimas e sangrar
por anos e por amor
cirzo a história
phalesteen
num kafiye
que não se desmancha nunca

Comentando os versos de Suheir Hammad, abu-Lughob & Sa’adi defendem, como vimos atrás, que é através da poesia, dos filmes e de outras formas artísticas que se opera o ato do testemunho de uma história que não é só sua – das gerações nascidas já no exílio – mas também a dos pais e avós, mantendo assim viva a memória coletiva. Suheir Hammad começa o poema com “now”, que é como quem diz: agora somos nós, é a altura desta geração contar a historia palestiniana, à nossa maneira, agora. Através destes versos de RAP cheios de raiva, Suheir Hammad torna-se o filho, a mãe, o pai que construíram a história e construíram a nação, mas sobretudo Suheir Hammad/eu/nós somos “a filha / a cuspir / o ramo de oliveira”. Quando abrimos a boca para contar uma história, qualquer história, tossimos do nosso corpo um ramo de oliveira, tossimos a história palestiniana. Trata-se de uma história bordada, escrita, pintada, cantada e dançada, uma história nossa de vida coletiva e pessoal que sai do nosso corpo, sem esforço, exatamente como respirar.

(excerto do capítulo III de Corpos na Trouxa: Histórias-artísticas-de-vida de mulheres palestinianas no exílio, edições Almedina, 2017; omito aqui o texto original do poema, em inglês)

11.4.18


CHIMAMANDA NGOZI ADICHIE


OITAVA SUGESTÃO

Ensina a tua filha a rejeitar o desejo de agradar. O dever dela não é tornar-se alguém de quem se gosta, o seu dever é ser uma pessoa em pleno, uma pessoa que é honesta e tem consciência da humanidade igual das outras pessoas. Lembras-te de eu te contar como me incomodava que a nossa amiga Chioma me dissesse com frequência que «as pessoas» não «gostariam» de algo que eu queria dizer ou fazer? Senti sempre da parte dela uma pressão implícita para que eu mudasse de modo a me encaixar em algum molde que agradaria a uma entidade amorfa chamada «pessoas». Incomodava-me, porque nós queremos que os que nos são mais próximos nos encorajem a sermos quem somos autenticamente.
Por favor, nunca exerças este tipo de pressão sobre a tua filha. Ensinamos às meninas a agradarem, a serem boazinhas, a serem falsas. E não ensinamos o mesmo aos meninos. Isso é perigoso. Muitos predadores sexuais têm-se aproveitado disso. Muitas raparigas não revelam que foram vítimas de abuso porque querem ser boazinhas. Muitas raparigas passam demasiado tempo a serem «boazinhas» para com as pessoas que lhes fazem mal. Muitas mulheres pensam nos «sentimentos» daqueles que as estão a magoar. Esta é a consequência catastrófica do desejo de agradar. Temos um mundo cheio de mulheres que não são capazes de respirar livremente por serem condicionadas há muito tempo a fazerem tudo por tudo para agradarem.
Por isso, em vez de ensinares à Chizalum a agradar, ensina-a a ser sincera. E bondosa.
E corajosa. Encoraja-a a falar francamente, a dizer o que realmente pensa, a falar com verdade. Elogia-a quando ela o fizer. Elogia-a especialmente quando ela tomar uma posição que seja difícil ou pouco popular porque acontece que é a sua posição sincera. Diz-lhe que a bondade é importante. Elogia-a quando ela se mostrar bondosa com os outros. No entanto, ensina-lhe que a sua bondade nunca deve ser tida como certa. Diz-lhe que também ela merece a bondade dos outros. Ensina-a a defender o que é dela. Se outra criança pegar no brinquedo dela sem a sua autorização, recomenda-lhe que o reclame, porque o seu consentimento é importante. Diz-lhe que se alguma coisa alguma vez lhe causar desconforto deve falar, deve dizê-lo, deve berrar.
Mostra-lhe que não precisa de que toda a gente goste dela. Diz-lhe que se alguém não gostar dela, haverá outras pessoas que gostarão. Ensina-lhe que não é um mero objeto de quem se gosta ou não se gosta, é também uma pessoa que pode gostar ou não gostar. Na adolescência, se voltar para casa a chorar por causa de alguns rapazes que não gostam dela, faz-lhe saber que pode optar por não gostar desses rapazes – sim, é duro, eu sei, basta-me recordar a minha paixoneta pelo Nnamdi na secundária.
De qualquer modo, gostava que alguém me tivesse dito isto.


(in Querida Ijeawele – Como Educar para o Feminismo, tradução de Ana Saldanha, Publicações Dom Quixote, 2018)

18.3.18


VITOR SILVA TAVARES


Incensado, esmiuçado, proposto à circulação, Dubuffet está no papo.
A não ser que não esteja. Vejamos como esperneia: «A arte é por essência repreensível e inútil! e anti-social, subversiva, perigosa! E quando não é isto, não passa de moeda falsa, manequim vazio, saco de batatas.»
Ora há coisas que não se dizem. Pior: que não se pensam. Muito pior: que não se fazem. Ao dizê-las, pensá-las, fazê-las Dubuffet conspurca o território sagrado da Arte e da Cultura, hostiliza os grão-sacerdotes, dá provas de uma perigosa heresia libertária. Então a gente aplaude-o e ele recusa-se a ser dos nossos?
Então a gente divulga-o e ele, em troca, ofende-nos? Então a gente compreende-lhe a bizarria de artista e ele, ainda por cima, ridiculariza-nos? Então a gente cumula-o de análises suculentas e lindos adjectivos e ele desautoriza-nos, enxovalha-nos, agride-nos? Pois bem: vamos amá-lo por isso mesmo, vamos ser masoquistas, vamos digerir-lhe, deliciados as irritações, os furores, as apóstofres. Queira ou não queira, nós, a cultura de massas, vamos digeri-lo.
«A cultura tende a tomar o lugar que foi outrora o da religião. Como esta, ela tem agora os seus sacerdotes, os seus profetas, os seus santos, os seus colégios de dignitários: o conquistador que visa a sagração apresenta-se ao povo já não apoiado de um bispo, mas de um prémio Nobel. Agora, é em nome da cultura que se mobilizam e se pregam as cruzadas. É ela agora o ópio do povo.» (Jean Dubuffet).
Como se vê, o artista é mesmo difícil de tragar. Nega a cultura no momento em que ela serve de arrimo a tanta boa gente.
Mas: que cultura?
A «asfixiante cultura».

[…]

Sendo pois contra os museus, contra os mercados das vaidades e dos valores, contra toda a forma de institucionalização das artes, Dubuffet propõe [no livro Asphyxiante Culture (1968)], por isso mesmo, o que afinal vem praticando: para além das noções impostas, uma arte no seu estado bruto, original primitivo, criação simultaneamente individual, pessoal e feita por todos, livre de toda a ganga intelectualista, descondicionada, descomplexada, em revolta permanente, em permanente amour fou. Utopia? Não: recusa do obscurantismo programado pelos clercs da cultura e seus beneficiários. Porque, di-lo Dubuffet, «os homens de cultura estão afastados do artista como o historiador do homem de acção». Ao artista compete pois fazer da sua arte uma contestação vivificante.


(excertos de «Dubuffet: Contra a Cultura», in textinhos, intróitos & etc, Pianola editores, 2017 / original in Diário de Lisboa – Suplemento Literário, 19 de Setembro de 1968.) 




JEAN DUBUFFET
«Borne au Logos V» (1967)
Colecção Berardo, Lisboa, Janeiro de 2018

7.3.18


ORHAN PAMUK


Há muitas coisas que me incomodam na maneira de viver dos meus confrades, incapazes de conviver sem rivalizarem em boatos, e no ambiente deste lugar, que é de uma alegria suspeita. Para evitar que eles me achem arrogante e me agridam, fiz também um ou dois desenhos para o satírico, mas não penso que isso baste para lhes acalmar a inveja a meu respeito.
Deve dizer-se que eles têm motivos para serem invejosos: para a mistura das tintas, as molduras e as margens traçadas à régua, para a composição da página e para a escolha do tema, para o desenho dos rostos ou o arranjo das cenas de multidão na guerra ou na caça, para a pintura de animais, de reis, de navios e de cavalos, de guerreiros ou apaixonados, para reproduzir numa imagem toda a alma da poesia, e mesmo para as iluminuras, não tenho rival. Não vos digo isto para me gabar, mas só para que me compreendais. Com o tempo, a inveja dos rivais torna-se para um grande pintor um instrumento tão necessário e indispensável como a paleta.


(excerto do 4.º capítulo de O Meu Nome é Vermelho, tradução de Filipe Guerra, Editorial Presença, 2007)

21.2.18

GRUPO KRISIS


Quem, hoje em dia perguntar a si próprio qual o conteúdo, o sentido ou a finalidade do seu trabalho, enlouquece – ou torna-se factor de perturbação do funcionamento autotélico da máquina social. O homo faber, outrora orgulhoso do seu trabalho, e que, ao seu modo limitado, ainda levava a sério o que fazia, está hoje tão fora de moda como uma máquina de escrever. A engrenagem social tem de continuar a funcionar a qualquer preço, e ponto final. Quanto à descoberta do sentido, para isso existem os departamentos de publicidade, exércitos inteiros de animadores e de psicólogas de empresa, os consultores de imagem e os «dealers» da droga. Quando se propagandeia interminavelmente o lema da motivação e da criatividade, é certo e sabido que de uma e da outra já nada sobra…, a não ser enquanto auto-engano. É por isso que hoje as capacidades de auto-sugestão, de autopromoção e de simulação de competências se contam entre as virtudes mais importantes dos gestores e das trabalhadoras especializadas, das estrelas dos media e dos contabilistas, das professoras e dos arrumadores de automóveis.


(excerto de Contra o Trabalho, tradução de José Paulo Vaz, 2.ª ed.: Antígona, 2017)

11.1.18

HELDER GOMES CANCELA


O ICONOCLASTA

Parte dos procedimentos criativos desenvolvidos ao longo do século XX assenta na ideia de que a acção criativa pode operar por um trabalho negativo de profanação dos legados culturais e dos valores artísticos, e de que a subversão pode constituir uma postura artisticamente muito produtiva. Este processo de subversão acompanha o movimento de secularização que inaugurou a modernidade: é a possibilidade de questionar a possibilidade do sagrado que torna possível estender o questionamento à esfera das produções humanas. É a possibilidade de questionamento da lei e da norma de raiz religiosa que torna possível a subversão das regras e das normas artísticas. É o questionamento da sacralidade do passado ou da reverência face às heranças que permite a subversão da tradição.
Mas a arte das últimas décadas é também a demonstração do paradoxo que atravessa quase todas as posições iconoclastas: elas exigem a manutenção da sua pertença à esfera do sagrado como condição da eficácia do gesto de profanação. Implicam, no mínimo, a suposição da natureza culturalmente excepcional da arte, transportando para as relações artísticas os modelos de relação que haviam sido modelados no plano do sagrado. O que daqui resulta é a ressacralização da própria experiência da arte.
Não é inconsciente, nem inocente, a aproximação do profanador à sacralidade do objecto de profanação. Não é inocente, nem inconsciente, a pretensão da sacralidade do gesto de profanação. Num e noutro caso, transportar a arte para o plano do sagrado é supor que é possível fazer dela uma experiência que escapa à racionalidade crítica. E este é o culminar do paradoxo: como pode o iconoclasta pretender que o seu gesto escapa à possibilidade de crítica?



(in O exercício da violência, companhia das ilhas, 2014) 

3.11.17

JOAQUIM MANUEL MAGALHÃES


O poema é sempre o texto de um autor, duma «vida pessoal». Quanta vegetativa elucubração sobre Pessoa teríamos a possibilidade de não ler e ouvir se se conhecesse melhor a situação do problema onde Pessoa o foi buscar como problema: à tradição do modernismo anglo-saxónico. No âmbito da poesia, felizmente, o caso foi rapidamente ultrapassado, a próprio nível dos modernistas, pela qualidade inescapavelmente pessoal da obra desses autores. Mas o mesmo não se verificou na tradição crítica resultante do tipo de leitura que tais posições de tais poetas pareciam exigir para a sua obra. E hoje um paredão terminológico parece erguer-se obrigatoriamente ante quem queira entender a poesia do seu tempo e partir desta questão que nem precisa de ter saída: quem escreve um poema é a problemática dum autor, o sujeito dum poema é sempre o seu autor seja qual for a retorica usada para se expressar, e esse autor é a totalidade desse discurso. O sujeito dum poema é a globalidade do poema que é a pessoa do seu autor.


(excerto de uma nota de rodapé a «Philip Larkin, um poeta da tristeza e da aceitação», posfácio a Uma Antologia, de PHILIP LARKIN, com tradução de Maria Teresa Guerreiro, Fora do Texto, 1989)

30.10.17

GIORGIO AGAMBEN


Temos medo sempre e apenas de uma coisa: da verdade. Ou mais precisamente, da representação que nos fazemos dela. De facto, o medo não é simplesmente uma falta de coragem face a uma verdade que nos representamos de forma mais ou menos consciente: há um outro medo que precede este, e que está implicitamente presente no próprio facto de nós termos fabricado uma imagem da verdade, e, de uma maneira ou de outra, lhe termos sabido o nome e termos experimentado o pressentimento. É este medo arcaico contido em toda a representação que tem no enigma a sua expressão e o seu antídoto.
Isto não significa que a verdade seja qualquer coisa de irrepresentável que nós nos apressamos a assimilar às nossas representações. Pelo contrário, a verdade começa apenas no instante a seguir ao momento em que reconhecemos a verdade ou a falsidade de uma representação (na representação, ela só pode ter uma de duas formas: “Afinal era mesmo assim!”, ou então “Estava enganado!”). Por isso, é importante que a representação pare um instante antes da verdade; por isso, só é verdadeira a representação que representa também a distância que a separa da verdade.


(excerto do capítulo «Ideia do enigma», in Ideia da Prosa, tradução, prefácio e notas de João Barrento, Livros Cotovia, 1999)

23.10.17

GIORGIO AGAMBEN


Quando a poesia era uma prática responsável, pressupunha-se que o poeta estaria sempre em condições de justificar o que havia escrito. Os provençais chamavam razo à exposição desta fonte escondida do canto, e Dante intimava o poeta, sob pena de cair em vergonha, a saber "abri-la em prosa".



(início do capítulo «Ideia do ditado», in Ideia da Prosa, tradução, prefácio e notas de João Barrento, Livros Cotovia, 1999)

14.9.17

ALBERTO PIMENTA


Pode um poema, para além do chamado efeito estético, que não se sabe muito bem o que seja (para especialistas é simplesmente a qualidade que o torna diferente do discurso pragmático, facto quase sempre enigmático também para eles, e quanto ao que isso provoca é questão do leitor), pode, perguntava eu, criar algum alívio no leitor que se encontra em profundo estado de tristeza, ou então refrear a sua alegria efusiva levando-o a reflexões pesadas, dado que isso não se considere em si o tal efeito estético?


(primeiro parágrafo da nota final do tradutor a A Rima do Velho Marinheiro, de S. T. COLERIDGE, Edições do Saguão, 2017)

13.9.17

BEN LERNER


O problema fatal da poesia: poemas. Isto ajuda a explicar o porquê de os próprios poetas celebrarem poetas que renunciaram à escrita. Na faculdade, no fim do milénio passado, os jovens poetas mais fixes que conhecia andavam a ler Rimbaud e [George] Oppen – dois muito grandes e muito diferentes escritores que em comum tinham o facto de terem abandonado a sua arte (ainda que em Oppen fosse apenas temporário). Rimbaud para de escrever aos vinte e poucos e começa a dedicar-se ao tráfico de armas; Oppen fica famosamente calado durante 25 anos enquanto vive no México para escapar a inquéritos do FBI sobre as suas atividades sindicais. Rimbaud é o ‘enfant terrible’ que arde através do dizível; Oppen é o poeta da esquerda cujo silêncio é sinal de compromisso. «Porque não estou calado», escreveu Oppen num poema, «os poemas são maus». Os silêncios de ambos tanto quanto as suas obras – ou os seus silêncios como obras conceptuais – eram o que os tornava os heróis dos meus conhecidos que entretinham aspirações a poetas. Era como se a escrita fosse um nível pelo qual fosse preciso passar, como se os poemas fossem importantes porque poderiam ser sacrificados no altar da poesia, de maneira a carregar o nosso silêncio com virtualidade poética. (E a pretensão à renúncia da poesia está dentro de todos os poemas – deixá-la é uma convenção: lamentamos a insuficiência do nosso canto, destruímos a nossa flauta pastoril. A ficção de que um poema possa ser o último de um determinado poeta outorga a promessa do virtual nas palavras reais. É uma técnica que remonta, pelo menos, a Virgílio). Deste modo, poeta e não-poeta atingem ambos, em última análise, a não-poeticidade, com a diferença de que o primeiro passa pelos poemas, enquanto o último se afasta deles.


(excerto de Ódio à Poesia, tradução de Daniel Jonas, Elsinore, 2017)

14.8.17

MIGUEL TAMEN


As páginas 70-71 do número 9 de 'O Occidente' são o lugar em que quem lesse o poema de Cesário Verde o leria, uma rua por assim dizer de cuja demolição sobreviveu uma única casa. Note-se que não existe indicação de qualquer relevo especial dado ao poema por editores ou contemporâneos. E conceda-se que muitos de nós, pelo simples facto de o ler agora, juraríamos que, caso fôssemos vivos em 1878, não deixaríamos de ter notado o seu fulgor, especialmente dada a baça vizinhança em que ele ocorre. É no entanto vão dar de nós próprios as melhores referências. Tal como não pudemos neste caso ter razão antes de tempo, apelar a qualidades que confirmam aquilo que já sabemos é tão frívolo como alegar que conhecíamos antecipadamente um número premiado da lotaria cujo bilhete inexplicavelmente não comprámos. E além disso o que os apelos ao fulgor apodíctico do poema de Cesário Verde nos oculta é precisamente a vizinhança em que o encontrámos. Tal vizinhança é porém reduzida pela historiografia à função teleológica de preparação, pela crítica estética à função decorativa de contraste, e por ambas à função de ilustração. Quanto mais admiramos o poema embalados por estas alternativas, portanto, menos percebemos como são confusas as explicações normalmente oferecidas para tal admiração.



(excerto de «A Caça à Ovelha», in Artigos Portugueses, Documenta, edição aumentada: 2015)


2.8.17

PAULO VARELA GOMES


Ao sair de Longwood cerca da meia-noite, Anna W. desce para Jamestown ouvindo as quatro últimas canções de Richard Strauss na interpretação daquela que, na sua opinião, é uma das cantoras líricas mais comoventes do século XX, Gundula Janowitz. Canta, ao mesmo tempo que a cantora, a canção 'Ao Adormecer', com letra de Herman Hesse. Eis a adaptação a que o autor se atreve a partir do inglês, sem rima, nem métrica:

«Agora que estou cansado do dia
Desejo ardentemente receber, feliz,
A noite estrelada
Como uma criança que cai no sono.
Mãos, detende a vossa azáfama.
Mente, esquece todo o pensamento.
Agora os meus sentidos
Só querem mergulhar na sonolência
E a minha alma liberta
Voar livremente
Na esfera mágica da noite
para aí viver mil vezes.»


(excerto da penúltima página de Passos Perdidos, Edições tinta-da-china, 2016)