GERRIT KOMRIJ
«Uma migalha na saia do universo»
As palavras dos poetas parecem, às vezes, servir só para serem citadas pelos parvos. O dito de Pessoa «A minha pátria é a língua portuguesa», que políticos e oradores de copo de água repetem até à exaustão em actos oficiais, é disso exemplo. Assim parece ter Goethe afirmado «O homem só se reconhece no homem», e também perante isso nos calamos reverentes. Receio que muitos dos políticos e oradores de copo de água pretendam sugerir que Pessoa tinha coisa de género nacionalista em mente, como se nessa asserção algo luzisse duma identidade patriótica ou dum sentimento colectivo. Tenho muita pena deles, mas Pessoa não falava a língua dos parvos. Estou convencido de que esse dito significa exactamente o contrário do que os oradores de copo de água no seu enlevo suporiam. Aí se afirma que o poeta vive no idioma e não num sistema político. É a língua a estabelecer as suas fronteiras, não o Estado. Poetas e poesia — eles vivem numa mesma pátria, seja o texto em swaíli, em português ou em neerlandês.
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A poesia é maneável e fugidia, ela oferece delírio e ilusão. Oferece emoções por medida e de encomenda. É só o poeta dizer o que quer. Um poema é capaz de tudo. A poesia tem uma paciência infinita. Esse dado parece-me em todos os países o mesmo. Para tal não são precisas pátrias.
O idioma, esse, sim, é preciso. O idioma todos os dias é contaminado. Em qualquer país. Com o idioma atrai a si o vendedor da praça os clientes, com o idioma alivia um adolescente o coração a transbordar, com o idioma o político dá ao seu público a impressão de possuir um cérebro. É esse o idioma que o poeta usa. Imagine-se o seu infindável martírio.
Quanto mais o idioma é contaminado, com tanto maior firmeza tem o âmago da poesia de opor resistência. À medida que as palavras práticas ganham terreno, cresce a necessidade do poeta de «lavar» as suas palavras, tirar-lhes a sujidade, desinfectá-las. A poesia é o último reduto num mundo «inimigo da palavra». A verdadeira pátria dos poetas é a lavandaria. Sem a possibilidade de, num poema, guardar a carga original das palavras, ou de exactamente modificá-la, colocando-as numa zona de tensão fechada, o pensamento deixaria de existir.
A esta luz, qualquer preocupação com o que fosse «uma» poesia portuguesa ou «uma» poesia neerlandesa seria ociosa.
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Países pequenos como Portugal, a Bélgica e a Holanda sabem pouco uns dos outros — e isso apesar das semelhanças da sua história e do seu desenvolvimento. No terreno da cultura, põem os olhos de preferência nos países grandes. Até os poetas não parecem desejar outra coisa. Tal vaidade não deve ser-lhes levada a mal. É evidentemente mais interessante ser traduzido para francês, alemão ou inglês do que para neerlandês, sueco ou português. No entanto, não seria insensato de vez em quando empreenderem juntos qualquer coisa contra a hegemonia de línguas mais poderosas. Mostrando uma vez ou outra mais interesse pela cultura uns dos outros. A sobrevivência da pátria do poeta depende disso. Depende disso a sobrevivência das diferentes línguas que lhes servem de veículos da arte.
A indiferença política e as leis do mercado arruinam (e por fim destroem) uma língua. Os países mais pequenos não devem ter sempre tantos receios quando da sua língua se trata. Não é acomodando-se e como que eliminando-se culturalmente que os países pequenos alcançam o seu objectivo, mas apresentando-se uns aos outros com mais clareza e mais energia. Os países grandes, não tenhamos medo, hão-de compreender o nosso brio. A nossa luta é também a deles. Veja-se a guerra que a valente prima, a França, dá à invasão linguística pelo grande tio, os Estados Unidos.
Um purismo à francesa é coisa que também não precisamos de exibir, claro. Uma osmose entre os idiomas pode ser frutífera. Quer dizer — até às exactas fronteiras da poluição linguística de que a poesia é guardiã.
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(excertos da introdução a Uma Migalha na Saia do Universo, tradução de Fernando Venâncio [e outros], Assírio & Alvim, 1997 - documenta poetica)