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6.7.12

GERRIT KOMRIJ

«Uma migalha na saia do universo»

As palavras dos poetas parecem, às vezes, servir só para serem citadas pelos parvos. O dito de Pessoa «A minha pátria é a língua portuguesa», que políticos e oradores de copo de água repetem até à exaustão em actos oficiais, é disso exemplo. Assim parece ter Goethe afirmado «O homem só se reconhece no homem», e também perante isso nos calamos reverentes. Receio que muitos dos políticos e oradores de copo de água pretendam sugerir que Pessoa tinha coisa de género nacionalista em mente, como se nessa asserção algo luzisse duma identidade patriótica ou dum sentimento colectivo. Tenho muita pena deles, mas Pessoa não falava a língua dos parvos. Estou convencido de que esse dito significa exactamente o contrário do que os oradores de copo de água no seu enlevo suporiam. Aí se afirma que o poeta vive no idioma e não num sistema político. É a língua a estabelecer as suas fronteiras, não o Estado. Poetas e poesia — eles vivem numa mesma pátria, seja o texto em swaíli, em português ou em neerlandês.
[...]

A poesia é maneável e fugidia, ela oferece delírio e ilusão. Oferece emoções por medida e de encomenda. É só o poeta dizer o que quer. Um poema é capaz de tudo. A poesia tem uma paciência infinita. Esse dado parece-me em todos os países o mesmo. Para tal não são precisas pátrias.
O idioma, esse, sim, é preciso. O idioma todos os dias é contaminado. Em qualquer país. Com o idioma atrai a si o vendedor da praça os clientes, com o idioma alivia um adolescente o coração a transbordar, com o idioma o político dá ao seu público a impressão de possuir um cérebro. É esse o idioma que o poeta usa. Imagine-se o seu infindável martírio.
Quanto mais o idioma é contaminado, com tanto maior firmeza tem o âmago da poesia de opor resistência. À medida que as palavras práticas ganham terreno, cresce a necessidade do poeta de «lavar» as suas palavras, tirar-lhes a sujidade, desinfectá-las. A poesia é o último reduto num mundo «inimigo da palavra». A verdadeira pátria dos poetas é a lavandaria. Sem a possibilidade de, num poema, guardar a carga original das palavras, ou de exactamente modificá-la, colocando-as numa zona de tensão fechada, o pensamento deixaria de existir.
A esta luz, qualquer preocupação com o que fosse «uma» poesia portuguesa ou «uma» poesia neerlandesa seria ociosa.

[...]
Países pequenos como Portugal, a Bélgica e a Holanda sabem pouco uns dos outros — e isso apesar das semelhanças da sua história e do seu desenvolvimento. No terreno da cultura, põem os olhos de preferência nos países grandes. Até os poetas não parecem desejar outra coisa. Tal vaidade não deve ser-lhes levada a mal. É evidentemente mais interessante ser traduzido para francês, alemão ou inglês do que para neerlandês, sueco ou português. No entanto, não seria insensato de vez em quando empreenderem juntos qualquer coisa contra a hegemonia de línguas mais poderosas. Mostrando uma vez ou outra mais interesse pela cultura uns dos outros. A sobrevivência da pátria do poeta depende disso. Depende disso a sobrevivência das diferentes línguas que lhes servem de veículos da arte.
A indiferença política e as leis do mercado arruinam (e por fim destroem) uma língua. Os países mais pequenos não devem ter sempre tantos receios quando da sua língua se trata. Não é acomodando-se e como que eliminando-se culturalmente que os países pequenos alcançam o seu objectivo, mas apresentando-se uns aos outros com mais clareza e mais energia. Os países grandes, não tenhamos medo, hão-de compreender o nosso brio. A nossa luta é também a deles. Veja-se a guerra que a valente prima, a França, dá à invasão linguística pelo grande tio, os Estados Unidos.
Um purismo à francesa é coisa que também não precisamos de exibir, claro. Uma osmose entre os idiomas pode ser frutífera. Quer dizer — até às exactas fronteiras da poluição linguística de que a poesia é guardiã.
[...]


(excertos da introdução a Uma Migalha na Saia do Universo, tradução de Fernando Venâncio [e outros], Assírio & Alvim, 1997 - documenta poetica)


15.6.11

(Groningen, 22 de Maio de 2011)



JOANA SERRADO


10

Da parede


Raspando
da parede
na minha bedstee bordada
eu ergo


13.5 miljoen m3 klei
1.6 miljoen m3 mattresses
1.5 miljoen m3 basalt
105 sleepschepen
60 sleepboten
60 elevatorbakken
37 onderlossers
35 zolderbakken
11 baggermolens
8 kranen
7 perszuigers
3 steentransporteurs
2 transporteurs



Vou fazer uma casa
de raízes estranhas.

Unhas de granito
já não tenho
apenas dedos de fadas
em barro, areia e basalto.

Recuperei
o meu novo país ao mar

Suo o sul
em retenções assalariadas

Um estilete na lama
para assinar
a aurora boreal.

Divisas
Para uma hipoteca de vinte e nove anos em sangue.

Os dictadores
foram-se embora.
Refugiados holandeses no paraíso incendiado.

(Slauerhoff não quer ficar na Holanda
Van Baaren está com os Deuses
Baladas atlânticas
são apenas tumbas.
E os bobos galhofando
na cidade.

Os mortos procuram a sua casa no Mar do Sul
ou Sidney
enquanto Al Galidi come batatas fritas.)

Enquanto eu
retiro
da parede:


croquetes
fricadelas
kipcornen
bamihapjes
nasíballen
krokanten
bouten


para os meus versos estaladiços.

A corrupção da gordura.
A drenagem do Sal.

E os meus músculos defrontarão a gordura
E as minhas estrias atravessarão o horizonte
E a minha pele flácida será quase vinho puro.



Todavia
Rita, irmã de sangue meu,

irei reclamar a minha nova Língua.


E as gruas, Rita, e as gruas
rangem
rangem bravas gruantes

Rita
sem escamotear
o nosso lugar.


(de Emparedada / Uit de muur Een gedichencyclus, Uitgeverij Passage, 2009)

17.7.09

ARJEN DUINKER

X


As esquinas estão nuas.
As palavras estão nuas.
Em Córdoba há uma esquina onde os homens mijam
Quando têm a barriga a rebentar da cerveja,
Gemendo de alívio,
De olhos semi-cerrados.

Em Lisboa há também uma esquina assim,
Nem o vento a chegar sobre o Tejo
Consegue limpá-la.
Parei para ver,
Surpreendido pela nudez daquela esquina.

De uma varanda alguém me gritou. «Estás à procura de quê?
Oh, rapaz, esta esquina é muito especial.
Cada ano cinco mortos! Olha bem
E volta para casa.
Volta para casa.»
A mulher pigarreou e mandou um escarro valente.
E eu, fugindo a sete pés,
Admirei-me da nudez daquela esquina.

(in A canção sublime de um talvez, selecção e tradução de Arie Pos, editorial Teorema, 2003 – original de Losse gedichen / Poemas soltos, 1990)

19.3.08

[Depois jamais palavra dele]

HUGO CLAUS

IRMÃO


«É um osso duro de roer», disse ele, «duro como o diabo.
E uma injustiça, ando pela primeira vez a emagrecer.»

Ainda Outono lá fora, um campo de milho até ao infinito,
palavra aí está, infinito, finito.
Depois jamais palavra dele.

No esófago o tubo de plástico.
Dão-lhe soluços horas e horas. Não consegue engolir.

Ainda há vida na mão direita
que carrega a esquerda como um espesso lírio.
A mão ergue o polegar no ar.
Ele continua a dar recados até ao limite do declínio.

Ficou com a pele branca de criança.
E aperta a minha mão angustiada.

Ainda estou à procura duma semelhança, a nossa,
a inquietude dela,
a impaciência dele (não dar tempo ao tempo),
de ambos a desconfiança e a ingenuidade
e vou parar ao nosso passado inicial,
o de um mundo como um prado de rãs,
como um fosso de enguias
e mais tarde apostas, ténis de mesa,
leis domésticas, as 52 cartas,
os três dados
e a fome imoderada e fora de horas.
(Eu envelheço em vez de ti.
Alimento-me a faisão e cheira-me a mata.)

Agora o seu alojamento é comedido.
A máquina respira por ele.
Um aspirador chupa-lhe a expectoração.
Um estertor sai do diafragma,
e aí o seu último gesto: um arrastado piscar de olho.

Transmigração de alma. Um arrumar. Uma dose cortada.
O corpo ainda a minguar
e de repente na sua cara que estava morta
um franzido e um espasmo
e depois um olhar esbugalhado, desvairado,
insuportavelmente nítido, a fúria e o susto
de um tirano. Que verá ele? A mim, um homem
que vira a cabeça, com cobarde espanto das suas lágrimas?
Depois é dia e desatam-lhe os cintos.
E ele então para sempre

(tradução de Catherine Barel, in Uma migalha na saia do universo – Antologia da Poesia Neerlandesa do Século Vinte, selecção e introdução de Gerrit Komrij, Assírio & Alvim, 1997 – documenta poetica)

9.2.04

ANNA ENQUIST

MENTIRAS EM TEMPO DE GROSELHAS


Que construção é mais sólida, se aguentou
mais tempo. E quantos mais aí moram, menos se
a consegue abandonar. Para onde. Anseia-se
por uma casa de Verão sem um fogão e sem
história. Estou aqui porque estou aqui.

Esta noite estive acordada, fazia vento, chuvas
fustigavam o castanheiro, enquanto já vinha o dia,
a noite não tinha trazido paz. Eu sabia
como eram as coisas, fui dormir e acordei
numa manhã de silêncio, lívida de tristeza.

Não se pode continuar com lamúrias. As ameixas
baqueiam podres das árvores, no frio
quintal as cores envelhecem velozes. Experi-
mentar tudo sem anestesia, pôr a postos as panelas e
o açucar, gerir os arquivos, guardar os cacos.

(tradução de Catherine Barel in Uma Migalha na Saia do Universo, Antologia da Poesia Neerlandesa do Século Vinte, selecção e introdução de Gerrit Komrij, Assírio & Alvim, 1997 - Documenta poetica)