[«O José Sebag também, o que escreveu O Planeta Precário a que ninguém liga bóia, também já lá vai.» - Mário Cesariny, in verso de autografia, edição de Miguel Gonçalves Mendes, Assírio & Alvim, 2004]
JOSÉ SEBAG
O PLANETA PRECÁRIOa noite cerrou todas as janelas
alastrou um império de improviso para os
cães sem nome sem dono e atirou
longamente o seu queixo de toneladas até
à mancha espalmada do rio
é a sua maneira de nos insultar
a tristonha envergadura da sua queixa
as palavras
que usamos
têm a idade que aparentam
atingidas pela velhice ou pelo descrédito
num alvoroço se oferecem ao abismo
despenhadas rolam
e se confundem com a lava
com a espuma tensa do tempo ainda intacto
para de novo nascerem noutra pátria
mais respirável
ternamente povoar o indómito e triste
hálito
do mais apavorado e generoso bicho
À hora de morrer vai ser necessário
imitar a navegação tumultuosa e resignada
das palavras.
Entre elas e o poeta
um segredo brinca
religioso
trémulo
e imprudente
um segredo amoroso e repugnante
Tu, que de há tanto e tão bem o conheces
melhor te será conservá-lo escondido
até ao momento da surpresa
que a morte branca do medo exige
Cada um de nós, deve ser, não a lei, mas
o galho inopinado e ímpar
o plano imediato da evasão
alucinado e lúcido
Cada um de nós deve ser o momento
de recusar férias à ferida
e de mandar matar todos os parafusos
destronar todas as molas reais
ou irreais
da
respiração artificial
pendurada do tecto
a tua ausência informa: é madrugada
bela notícia confirmada
o céu está menos preto
busto ou explanada
mas só de sombra
a solidão redonda
desta vida parada
não é flor nem bomba
nem página virada
nem a hecatombe
fria e feriai
da charada final
e indesejada!
Falta o indulto especial da tua mão
e tu a dizeres-me, aguda e de assalto:
«A solidão
é nada.»
a cabeça começa por fazer dueto com o teu relógio
crepita sobre a almofada
parece mesmo um gatilho em desuso
uma flecha detida por um hábito lívido
são já os primeiros rumores estremunhados
no tablado das coisas
para onde a luz, como tu, atira os braços
como tu um beijo
enorme e distraída oficina conjugal
é agora a infalível
serpente inofensiva e doméstica do sol
monstro diluviano de capoeira
a farejar
com um aspecto acabrunhado de enfermeiro despedido
a fresta que permita o carnaval
está então na hora?
a cabotagem entre portos diminuídos
tenazmente em circuito cinzento
o tráfego livre dos gestos, enrugado apenas
pelo milagre de um ou outro vizinho mais mumificado
a levar pela mão o cara de brinquedo do filho
a quem acabam por perdoar por não ter ainda convite
e é só entrar
no solfejo nauseante
no cerimonial mercantilista do braço ao peito
(de
O Planeta Precário, «editado e destruído pelo autor à saída da tipografia, Açores, 1959. Um exemplar foi enviado para João Gaspar Simões» / in
Surrealismo/Abjeccionismo, antologia organizada por Mário Cesariny de Vasconcelos, editorial Minotauro, 1963; edição fac-similada: Salamandra, 1992)