O que é que vive numa linguagem? O que é que ela encobre? O que é que ela capta? Durante aquelas semanas passadas em Marrocos, nunca tentei aprender árabe nem tão pouco os dialectos berberes. Não queria perder nada da força contida nessas estranhas lamentações. Queria ser apanhado em cheio por esses sons e não abrandá-los através de vagos conhecimentos, tão insuficientes como artificiais.
Nada lera sobre essa terra. Os seus costumes eram-me tão desconhecidos como as suas gentes. O pouco que se possa ter aprendido durante toda uma vida acerca de qualquer país e acerca do seu povo, some-se, por inteiro, logo nas primeiras horas.
Por exemplo, a palavra «Allah», na qual nunca consegui penetrar, aproximar-me dela, sequer. E, no entanto, nessa palavra assentava boa parte da minha experiência, sendo como era a mais frequente, a mais eficaz, a mais aguda, a mais permanente das que os cegos iam pronunciando.
Para uma viagem levamos connosco quase tudo, mas a revolta, a indignação, essas foram deliberadamente esquecidas em casa. Vemos, ouvimos, maravilhamo-nos perante o medonho, só porque o medonho é algo de novo. O bom e perfeito viajante não tem coração!
(excerto do capítulo As lamentações dos Cegos, de As Vozes de Marraquexe, tradução de Isabel Ramalho, publicações Dom Quixote, 1991)