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15.5.11

[para uma antologia de bicicletas – 18]

JOSÉ MIGUEL SILVA


EM LUCCA, AS BICICLETAS


Mimados animais de estimação,
em Portugal os automóveis são felizes,
agradecem, quase incrédulos, a sorte
de lhes terem ofertado em passerelle
o mais honroso dos cenários e desfilam
como príncipes de crómio pelas ruas
desertadas de nocivos habitantes.

Aqui sentir-se-iam humilhados
pela ordem de ceder ao musculoso
bipedismo de pessoas a passagem
ou, pior, à irritante placidez
das bicicletas, traquitanas que lograram,
por estranho que pareça, conquistar
a simpatia dos estúpidos humanos
que povoam (é incrível!) a cidade.

Cruelmente desprezados, racionados
como párias, em Lucca os automóveis
não encontram um passeio onde encostar
a fatigada suspensão, uma sombrinha
de jardim, uma oficina, o refrigério
combustível de um amigo que socorra
a sua sede de viver rapidamente.


(de Erros Individuais, Relógio d'Água, 2010)

6.7.09

[para uma antologia de bicicletas – 16 e 17]

KATIE MELUA





HUGO MILHANAS MACHADO

KATIE MELUA


Nove milhões de bicicletas em Pequim
muitas muitas bicicletas em Pequim e bom
são afinal bicicletas ou todas as bicicletas
e bem vendo aqui triste e aqui assim
tão poucas bicicletas aquelas bicicletas
nove milhões de bicicletas em Pequim
e aqui arrumadas ao pé da letra aqui
tão poucas bicicletas

se Katie Melua oh Katie Melua tantas
bicicletas são nove milhões de bicicletas
nove nove milhões de bicicletas em Pequim.

(de Clave do Mundo, Sombra do Amor edições, 2007)

2.5.09

[para uma antologia de bicicletas - 15]

JOÃO CAMILO

DE BICICLETA


Como se o teu olhar me perseguisse,
eu preocupava-me em executar da maneira mais perfeita
todos os gestos. Via-me de fora como tu me verias
se fosses atrás de mim quando pedalava na bicicleta,
sentada no banco confortável de um automóvel.
O rio à direita da estrada tinha certa beleza
e as árvores, como sempre, faziam do asfalto preto por onde eu ia
um caminho em que apetece passear ao fim da tarde.
Enquanto me olhavas ias conversando para o lado
com os teus companheiros de viagem. O cabelo
loiro sobre os ombros iluminava o teu rosto à janela
e aqueles que te viam passar ficavam a pensar em ti.
eu lá ia, tranquilo e inquieto a pedalar,
convencido de que ao ver-me sem esperar assim ali
descobrias mais duas ou três razões para me amares.
Não olhava para trás para que tu não te escondesses
e em cada pedalada deixava a atenção
com que poderias falar-me e eu escutar-te.



MEMÓRIA DE RUY BELO

Madrid está deserta do teu corpo, só os fantasmas
do desejo se digladiam ainda ao sol das praças.
Era tão curta a distância entre a eternidade
e a luz nas esplanadas dos cafés, na pedra dos edifícios?
O amor, ave desencontrada das estações, acena ainda
nos olhos das raparigas de braços nus. E tu,
morto mais discreto da pátria, adormeceste
sem ter beijado a mulher e os filhos, longe
para sempre das romarias e do mar.

(de A mais nobre das artes, editorial Caminho, 1991)



(…) quando jogava futebol na equipa da Faculdade de Letras de Lisboa nunca joguei a guarda-redes, em geral jogava a defesa direito, às vezes ao lado do Ruy Belo ou do Arnaldo Saraiva, do Moreira, do Madeira, do Carlos Correia, etc.; e gostava muito de arrancar por aí adiante a caminho da baliza adversária. Uma vez, depois de vários passes com o Pissarra, um puto cheio de talento, fui rasteirado na área adversária e tivemos direito a uma grande penalidade. Imagino que o Pissarra a deve ter transformado em golo. Velhos tempos. (…)

(daqui)

3.1.08

[para uma antologia de bicicletas - 14]

SEAMUS HEANEY

GUIÃO PARA UM FILME


Eles pedalam afastando-se do que podia ter sido
em direcção ao que nunca será, num plano aguentado:
Professores em bicicletas, falantes da terra em saudação,
entrando nos anos vinte como se fosse no futuro.

Ainda a pedalar, já lá no fim das lentes,
não indo a parte nenhuma e não desaparecendo.
Mistura fúcsia que 'segue a linguagem'.
Longa sequência sem som. Panorâmica e desfoca.

Então vozes sobrepostas, em diferentes Irlandeses,
discutindo tarefas de tradução e taxas linha a linha;
como os marcos miliários de oitocentos em bermas de relva,
ocorrência de nomes como R. M. Ballantyne.

Grande plano do olho de gato de um botão
seguido de abertura para a capa de uma sotaina,
barrete de padre, colarinho de volta, maçã de Adão.
Parar no rosto inexpressivo. Pôr os créditos

e mesmo quando parece que é o fim -
focar o rasto da longa vaga que vai galgando a margem
e se desfaz no ponto em que uma vara escreve e escreve
palavras no velho guião na areia que se escapa.


(tradução de Vasco Graça Moura, in Antologia Poética, Campo das Letras, 1998 - original de The Haw Lantern, 1987)

3.3.07

[para uma antologia de bicicletas - 13]

CARLOS LEITE

Outra bicicleta mais veloz que a verdade
das cautelas numeradas sobre a qual Sorte
me queres a toda a força montar quisera eu agora
eu que de tudo o que quero é só não ter ou não ser de
pedalar mas estar aqui agora assim
Olha Sorte para melhor me teres ou comigo estares
joguemos um tudo ou nada lotaria simples
a não haver tu nem a verdade nem sequer uma
bicicleta mais leve do que esta com que pedalo
ao longo duma ainda mais aleatória estrada
país ou dia intransitáveis. Se ganhares
dizendo sim sem esforço nenhum me ganhaste
destino cego e eu cumpro monto dócil até ao fim
Mas se não perderes então uma de alumínio quero
marca Altis roda 28.

(de O Brilho do Residual, Gota de Água e Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1985)

22.10.06

[para uma antologia de bicicletas - 12]

ANTON TCHÉKHOV

(...) Vamos então a andar e, de repente, imagine só, passam de bicicleta o Kovalenko e, atrás dele, a Várenka, toda vermelha, ofegante, mas alegre e feliz.
- Nós - grita -, vamos à frente! O tempo está tão bom, tão bom que é um terror!
E desapareceram ambos. O nosso Bélikov passou da cor verde à branca e como que petrificou. Parado, a olhar para mim...
- Desculpe, mas que é isto? - pergunta. - Estarei a ver bem? Será que é decente professores de liceu e mulheres andarem de bicicleta?
- Mas que indecência há nisso? - digo-lhe eu. - Que pedalem, faz-lhes bem.
- Mas como é possível? - grita ele, espantado com a minha calma. - O que está o senhor a dizer?!
(...)
No dia seguinte (...) arrastou-se para casa dos Kovalenko. Várenka não estava, apanhou só o irmão.
(...)
- Tenho mais umas coisas a dizer-lhe. Há muito que estou ao serviço, e o senhor está ainda no princípio, por isso considero meu dever, como colega mais velho, fazer-lhe esta advertência. O senhor anda de bicicleta, mas esse divertimento é de todo indecoroso para um educador da mocidade.
- Por que razão? - perguntou Kovalenko na sua voz de baixo.
- Será que ainda é preciso explicar, Mikhail Sávvitch, será que não compreende? Se o professor vai de bicicleta, o que resta aos alunos fazer? Resta-lhes andar fazendo o pino! Uma vez que tal não foi autorizado por uma circular, está proibido. Ontem fiquei aterrorizado! Então, quando vi a sua irmã, turvou-se-me a vista. Uma mulher ou uma menina de bicicleta é um horror!
- Diga lá, o que deseja concretamente?
- Uma única coisa: adverti-lo Mikhail Sávvitch. É um homem jovem, tem o futuro pela frente, deve portar-se com muita prudência; ora, o senhor falta sempre à suas obrigações, falta sempre! Anda de camisa bordada, passeia-se constantemente na rua com uns livros quaisquer, e agora, para cúmulo, a bicicleta. Se o director souber que o senhor e a sua mana andam de bicicleta, se isso chegar aos ouvidos do inspector... Acha bem?
- Que eu e a minha irmã andemos de bicicleta, ninguém tem nada a ver com isso! - disse Kovalenko e enrubesceu. - E a quem se mete nos assuntos da minha família e da minha casa só tenho que o mandar para o diabo que o carregue.

(excertos do conto Um Homem na Sua Concha, in Contos de Tchékhov - volume II, tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra, Relógio d'Água, 2001)

25.9.06

[para uma antologia de bicicletas - 11]

ERNEST HEMINGWAY

Vestiu-se, ainda húmido da água do mar, enfiou o boné no bolso e subiu o caminho com a bicicleta às costas e depois montou, conduzindo a máquina pela colina acima, sentindo nas pernas a falta de treino enquanto premia as solas dos pés contra os pedais, ganhando uma marcha que o levava estrada acima como se ele e a bicicleta fossem animais de uma carroça. Depois, desceu, as mãos tocando os travões, descrevendo curvas rápidas, passando veloz pelos pinheiros, até às traseiras do hotel, onde o mar brilhava azul para lá das árvores.

(excerto de O Jardim do Éden, tradução de Ana Maria Sampaio)

14.8.06

[para uma antologia de bicicletas - 10]

FERNANDO PINTO DO AMARAL


Onde estás, minha vida em câmara lenta,
janela toda aberta onde procuro
o vento, a luz da noite? Onde estarás,
melodia cantada a soluçar
numa cama de grades? Onde estás,
olhar dessas visões em sobressalto,
Casal da Bela Vista, velho pátio
ao som da bicicleta? Onde ficaste,
infinito terraço da Alameda,
varanda cor-de-rosa da Parede
com o sol a morrer sobre Cascais?
Onde estás, corredor de São FIlipe
praia do Monte Branco onde outro eu
se lançava da prancha? Onde estarão
os risos desses primos transparentes,
as lágrimas acesas transparentes,
as lágrimas acesas que brilhavam
como arco-íris de seda no meu rosto?
Onde ficou a última pergunta
em véspera de viagem? Onde estás
o mapa dessa alma que foi espuma,
o nó dessa garganta submersa?

(de Pena Suspensa, Dom Quixote, 2004)

10.7.06

[para uma antologia de bicicletas - 9]

M. ANTÓNIO

(...) Ele que podia ter comprado uma bicicleta, caso tivesse feito economias (o dinheiro dos cigarros, o dinheiro com que ia ver futebol...). Mas, lembra-se, mesmo que as tivesse feito, inútil lhe teria sido o sacrifício, pois nunca conseguira equilibrar-se em duas rodas. Era mesmo um rapaz de pouca sorte... Desde a escola que tinha pouca sorte - e perante o «écran» das pálpebras corridas passam, iluminadas, imagens probatórias da sua pouca sorte...
Deixa-se estar de olhos fechados. Era um processo de pensar sem dificuldade. Assim, não se cansava. Por imagens, apareciam-lhe os pensamentos, desenvolviam-se e apontavam-lhe soluções. Sem ele se esforçar. Agora, aparecem rodas, a principio paradas e pequenas, que aumentam de tamanho e se põem em movimento. São rodas ágeis, elegantes, que se ligam (agora o vê) aos pares. São bicicletas, com rodas brilhantes, e faíscam. Têm pneus largos, vermelhos. Mas andam sozinhas como se tivessem cérebro e olhos, fazem curvas, contra-curvas, empinam-se como cavalos. Depois vão desaparecendo e só fica uma que aumenta de tamanho e - como nos filmes, quando um comboio, ou carro, ou bicicleta, se aproxima da plateia - sobre a qual se destaca um vulto que inicialmente vê inteiro e não reconhece, de que depois vê só meio-corpo, depois só até o rosto, o rosto em que Beto vê a sua cara, segura, radiante, sorrindo um sorriso igual ao que se desfaz quando abre os olhos, confuso, para os ladrilhos do chão. Levanta-se, faz o gesto de quem procura a pasta inexistente e, imóvel, percorre-lhe o espírito, ou o cérebro, ou o coração, ou o corpo, esta ideia, ou vibração, ou desejo, ou estremecimento: «- Se ao menos soubesse andar de bicicleta...»

(excerto de Crónica da Cidade Estranha, Agência-Geral do Ultramar, 1964 - colecção Unidade)

2.6.06

[para uma antologia de bicicletas - 8]

PAPINIANO CARLOS

OS CICLISTAS


A Vasco de Magalhães-Vilhena

Com um surdo rumor de escavadora
ressoa no subsolo a tua voz.
Muitos tapam os ouvidos delicados.
Outros escondem-se para não ouvir.
E outros estremecem de pavor.
Mas, rápidos, os ciclistas pedalam
na bruma dos subúrbios ao teu encontro.
Rosto baixo, mãos no guiador, pés
bem firmes nos pedais, geram
o movimento, o ritmo alado
das máquinas frágeis que cavalgam
ao amanhecer. Perpassam como espectros
sob a bruma e juntam-se, confluem,
avançam como um rio poderoso
sobre a cidade adormecida.
Os ciclistas. Os que erguem os andaimes
e fazem girar os fusos dos teares.
Os que movem as gruas. Os que transportam
o dinamite nas mãos calosas.
Os que não sabem envelhecer de tédio
à mesa do café nem vivem de mercadejar
preservativos, palavras, casas pré-fabricadas.
Os que não sonham morrer em glória
como jovens deuses trespassados na batalha.
Os que não hão-de apodrecer, como muitos
de nós, roídos de lepra e desespero.

Esses merecem bem a tua voz, Orfeu.

(de Os Ciclistas, in A Ave Sobre a Cidade, livraria Paisagem, 1973)

27.5.06

[para uma antologia de bicicletas - 7]

JORGE LISTOPAD

Teatro e bicicletas


Já se sabe o que vou dizer: os teatros em Praga estão cheios. Porém, alguma coisa nova. A maioria dos espectadores são jovens - excepto nos teatros nacionais e afins, e chegam de mochila às costas. E mais do que isso: de bicicleta. Nos pequenos teatros encontramos um espaço onde as bicicletas se repousam durante o espectáculo.
Aliás, a febre da bicicleta apanhou a cidade. Os meus amigos professores universitários vão de bicicleta para as aulas, e um querido amigo de literatura comparada fez-me um estudo comparado sobre andar de bicicleta em Roma, Paris e Praga.

(Segundo capítulo de Algumas vezes sobre qualquer coisa, in Jornal de Letras n.º 930, de 24 de Maio a 6 de Junho de 2006)

19.5.06

[para uma antologia de bicicletas - 5 e 6]

ALEXANDRE O'NEILL


Os outros pedais da bicicleta


Ninguém toma a sério a bicicleta como eventual substituto do automóvel na crise de energia que atravessamos, que nos atravessa. A bicicleta é resignação, fleuma, ginástica, infância revisitada, revivida (mais como sonho do que como prática), humor, euforia dominical de carolas que vão «pescar» a sua caldeirada a vinte ou trinta quilómetros da cidade. A bicicleta poderá ser a pedalada contestação dos amigos da Natureza. Para nós, os escravos do volante, ela não passa de mais uma ideia que nos faz sorrir. Nada substituirá, no nosso apreço, o automóvel. Nem no trabalho, nem no lazer. Por enquanto...
Mas a bicicleta tem outros pedais que não podemos ver. Movido pela necessidade, esse «tubular engonço», como em jeito barroco uma vez lhe chamei, desenrola quilómetros bem menos alegres do que as tiradas que nele sonhamos fazer.
A bicicleta pode ser o mundo às costas: serra de carpinteiro, caixa de ferramentas, cesto de padeiro. A bicicleta pode ser a cruz às costas. Para um renovado olhar sobre a bicicleta, aqui transcrevo, sem mais oitos, o «Apelo Angustiantes» que há anos, por ocasião das grandes cheias na região de Lisboa, apareceu nos jornais:
«O meu marido saiu de casa no dia 25 de Novembro para procurar trabalho no Carregado ou no Barreiro, levava: uma bicicleta a pedais, caixa de ferramenta de pedreiro, vestia calças azuis de zuarte, camisa verde, blusão cinzento, tipo militar, e calçava botas de borracha e tinha chapéu cinzento e levava na bicicleta um saco com uma manta e uma pele de ovelha, um fogão a petróleo e uma panela de esmalte azul. Como houve as inundações e não tive mais notícias, já estou alarmada e já espero o pior. Estou aflita, eu e os meus dois filhos.»

(in A Capital, 5 de Fevereiro 1974, compilado em Coração Acordeão, O Independente, 2004 - série Inéditos de Imprensa)


ELOGIO BARROCO DA BICICLETA

Redescubro, contigo, o pedalar eufórico
pelo caminho que a seu tempo se desdobra,
reolhando os beirais - eu que era um teórico
do ar livre - e revendo o passarame à obra.

Avivento, contigo, o coração, já lânguido
das quatro soníferas redondas almofadas
sobre as quais me estangui e bocejei, num trânsito
de corpos em corrida, mas de almas paradas.

Ó ágil e frágil bicicleta andarilha,
ó tubular engonço, ó vaca e andorinha,
ó menina travessa da escola fugida,
ó possuída brincadeira, ó querida filha,

dá-me as asas - trrrim! trrrim! - pra que eu possa traçar
no quotidiano asfalto um oito exemplar!

(de A Saca de Orelhas, 1979)

23.3.06

[para uma antologia de bicicletas - 4]

NUNO ARTUR SILVA

SENTIDO


Tschk tschk tschk tschk tschk
o som dos pedais

Aqui vou eu a pedalar sempre a bicicleta
pela estrada a atravessar a floresta a atravessar
o sonho e a luz do sol por entre as árvores

Tschk tschk tschk tschk tschk
o som dos pedais

Estou para além de mim é infindável
o horizonte entra pela memória dentro
o vento é inexplicável o vento

Tschk tschk tschk tschk tschk
o som dos pedais

Pode ser que eu me despiste e fique
imóvel a bicicleta no chão de roda
para o ar a rodar sempre ou pode ser
que eu não pare nunca pode ser que
não fique nada senão a própria velocidade

Tschk tschk tschk tschk tschk
o som dos pedais

Uma borboleta atravessa o olhar
Uma borboleta?

Tschk. . . hiiiii. . . schkSCHKTRAPTPOUGHTTT!!!
tschksssssssssssss

(de Onde o olhar, Indício, 1986)

3.3.06

[para uma antologia de bicicletas - 3]

HEINRICH BÖLL

IX


Sim, também a escola. Apertou o frio, a rigidez, também sob o ponto de vista económico, e vivíamos ao encontro da guerra. Restava muita coisa: a lealdade dos pais e dos irmãos, dos amigos, também dos que há muito estavam integrados em organizações nazis - restava a bicicleta, insubstituível, quase sagrada, esse elegante veiculo de mobilidade, companheiro da fuga, de fácil construção, digno de muitos hinos e - como se verificou o mais tardar em 1945 - o único meio de movimentação mecânico, mas valioso e de confiança. Do que não precisa um automóvel? É pesado, bem vistas as coisas, dependente de mil e uma ninharias, já para não falar da gasolina, das estradas. Onde é que se consegue ir com uma bicicleta - e que ninguém esqueça: a guerra do Vietname foi ganha com bicicletas contra tanques e aviões. Remendos, bomba de ar, luz - bagagem leve, quase nenhuma - e o que é que não se pode pôr em cima de uma bicicleta, carregando-a bem?
[...]

(excerto de O que é que vai ser do rapaz?, tradução de Maria Adélia Silva Melo, Difel, 1987)

5.2.06

[para uma antologia de bicicletas - 2]

JOSÉ MIGUEL SILVA

LADRÕES DE BICICLETAS - VITTORIO DE SICA (1948)


Vinte quilómetros por dia pedalava meu pai
desde a cama junto ao Douro até à próspera
Cerâmica de Valadares. Se qualquer homem recebe,
à nascença, uns sessenta inimigos por hora,
imaginem a jornada de um operário ciclista.
Tudo são despesas para ele: o rosário de geada
nas giestas, o jornal atropelado pelo vento, o verdor
da primavera, a poalha do suor em cada mão.

Meu pai, é claro, não se queixa, ganha um conto
de réis, tem uma casa portuguesa e grandes sonhos
de amanhãs a gasolina. Pelo menos não trabalho
em nenhum matadouro, pensa ele, e com razão,
erguido nos pedais do seu veiculo de sombra, solitário
trepador pela encosta de Avintes. Não trabalha
em nenhum matadouro. E nesse reconforto
passa à Quinta dos Frades, alcança o Freixieiro,
sente já o rumor de fumacentos camiões, na estrada
nacional, onde tudo, depois, será muito mais plano.

(in Telhados de Vidro n.º 4 - Maio de 2005 / de Movimentos no Escuro, Relógio d'Água, 2005)
[para uma antologia de bicicletas - 1]




(imagens de Ladri di Biciclette, de Vittorio de Sica, 1948)