Piano Concerto No 2
(Berlin Philharmoniker, conduzida por Claudio Abbado; Solista: Mikhail Pletnev)*
(continua aqui, aqui e aqui)
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JOÃO CAMILO
NÚMERO DOIS
Beethoven, concerto número dois para piano.
Com um canivete corta-me devagar por dentro
a parte da alma mais encostada à carne.
O prazer que a Camões também doía e as palavras
de depois de inventá-lo. O sol que brilha e ilumina
o verde das primaveras que nesta se repetem. Enu-
merar: como quem coloca cada som depois do outro
e parte para a solidão. Uma lâmina pequena corta-me
por dentro das próprias veias no meu corpo
desconhecido as mais pequenas fibras. E sei que
existem e é delas que se extrai
a revolta com que vou nascendo para
ver-me de pé enquanto reaprendo
a não esquecer que um dia finalmente
tudo terá passado. E esta aventura
de estar aqui hoje há-de perder-se
no tempo que consome tudo e nos consome
a nós no uso de nós mesmos. Afeiçoarei o meu
corpo cada dia mais definitivamente à imagem
da pequena morte que nos chega que toca
os olhos na retina os ouvidos na membrana
do tímpano e passa a circular no sangue com a
embriaguez. Assassínio lento de mim mesmo,
Claudio Arrau pianista chileno vai
pontuando o tactear da lâmina
no meu corpo e eu sentado contemplo as cores
dos objectos à minha volta e vou dando pelo
espanto de assistir à passagem de mim
mesmo pelo que me rodeia.
O CAMPEÃO DE ROLAND GARROS
Esta tarde sou eu o homem da raqueta mágica.
A minha juventude resplandece no terreno central
de Roland Garros. Ergo o braço vigoroso, olho fixamente
o meu adversário ao fundo sobre a linha a saltitar.
Lanço a bola ao ar e bato com força, vejo-a rasar a rede,
quem poderia pará-la e devolver-ma perigosamente?
O público aplaude e eu limpo o suor do rosto com a mão,
tomo posição de novo e vou bater a bola com a mesma convicção.
A minha perna esquerda suporta o peso do corpo, a mão direita
segura na raqueta com energia e o braço corta o ar veloz
enquanto o ruído seco da bola batendo na terra soa no silêncio
como a música da perfeição. Mais quinze pontos. Dentro de pouco
tempo tenho mais um jogo ganho. Para isso passei as manhãs em exercícios,
me privei do álcool e do fumo, das distracções fugazes e inúteis.
Se o olhar das raparigas não me escapa, nem os belos dentes
brancos que elas têm, nem os seus braços nus, os seios redondos,
a minha preocupação maior é respeitar o andamento deste concerto,
responder ao meu adversário com o rigor dos gestos que surpreendem
e causam admiração. Dói-me como o problema do desemprego
nas sociedades modernas escravas do lucro e da vontade de produzir
a bola mal batida que sai fora das linhas brancas deste jogo.
Tem-me atormentado noites inteiras a devolução defeituosa
que fiz de uma bola fácil que me enviara um jogador medíocre.
Às vezes impede-me de comer a sensação que tenho de não poder
colocar todas as bolas no interior do rectângulo. Mas o homem
é um ser imperfeito apesar de todas as horas de aprendizagem,
de todos os minutos passados a aperfeiçoar os gestos mais simples.
Erros de cálculo, a bola que devia passar a rede e não passou,
ou a que vai sair ligeiramente ao lado dos limites fixados.
Esta tarde, porém, a sorte sorri-me. Ou antes: os meus gestos
são de uma perfeição à medida da minha lucidez e energia.
A consciência que eu tenho de dominar os elementos inebria-me
e em cada corrida que dou crescem-me asas e aumenta
a minha confiança nos limites e capacidades humanas. Estou
contente comigo mesmo. Não sou vaidoso, estou apenas satisfeito
com este rigor. O meu adversário é obrigado a deslocar-se
de um canto do terreno para o outro a toda a velocidade. Às vezes,
claro, não chega a tempo. Terá trabalhado tanto como eu, passado tantas horas
a ensinar o corpo a obedecer-lhe, a não traí-lo? A atenção,
a enorme concentração é que explicam em grande parte a minha precisão.
Conheço também as manhas e manias das bolas que batidas
vêm a rodar sobre si mesmas ao encontro da minha raqueta.
O meu jogo de pernas, segundo os entendidos, assemelha-se ao de um
jogador de golfe, ou de hóquei, ou de boxe. A mim parece-me
que sobretudo é idêntico ao gesto do violinista que percorre a corda
e cria o som de um rigor e intensidade que penetram
em todas as fibras do espírito. A minha única vaidade é estar contente.
Bem sei que à margem deste campo desportivo (com gente sentada nas bancadas
a seguir atentamente o mais pequeno dos meus gestos) existem
outras coisas. O desemprego dos jovens, a ameaça atómica, a vida absurda
nas cidades modernas, porém, não me são desconhecidos. Sei também
que a beleza é um pássaro excessivo ao lado da miséria e dos defeitos físicos.
Ao ver-me agir, porém, e ignorando quanto da minha imperfeição se esconde
na facilidade com que executo estes gestos rituais e calorosos,
quantos não terão sentido por momentos que a força secreta
que governa o nosso destino se podia finalmente libertar?
Nunca discuto a decisão do árbitro, mesmo se o público assobia,
mesmo se vi a bola cair dentro ou fora ao contrário do que ele diz:
o jogo é humano e os homens erram, tenho muitas bolas
e toda a tarde para provar o meu talento e a minha força.
É altura de pôr em jogo bolas novas. Vejo-as brancas
a saltitar na terra vermelha e tomo-lhe o peso, sinto
na mão a aspereza nova dos seus pêlos. Ah, ser sempre jovem.
Bato-as com força e o meu adversário do outro lado da rede
não consegue resistir durante muito tempo à pressão que eu exerço.
A dado momento acaba por enervar-se, pensa que vai surpreender-me,
e lança a bola para lá do risco. Paço depressa quarenta pontos.
O jogo está muito perto do fim. Admiro o jogador
que me faz correr a mim e me obriga a ser inteligente,
é ele o instrumento da minha glória e do meu contentamento.
É ele, também, quem me impede de atingir enfim a perfeição divina.
É por isso que não sorrio por fora, que nem sequer deixo o entusiasmo
ganhar-me muito por dentro? Continuo sem perturbar-me
a executar da maneira mais austera esta partição.
(de Na Pista Entre as Linhas, Gota de Água e Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1982 - Plural)
* Aparentemente, o Concerto No 2 é o único de Beethoven que não se encontra no YouTube interpretado por Claudio Arrau, o intérprete referido no poema.