Saude Mental Nos Ciclos Da Vida

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Saúde Mental nos Ciclos da Vida

Brasília-DF.
Elaboração

Kelen Santana da Costa


Joana Pantoja Scharinger

Produção

Equipe Técnica de Avaliação, Revisão Linguística e Editoração


Sumário

APRESENTAÇÃO................................................................................................................................... 4

ORGANIZAÇÃO DO CADERNO DE ESTUDOS E PESQUISA...................................................................... 5

INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 7

UNIDADE I
A SAÚDE MENTAL.................................................................................................................................. 9

CAPÍTULO 1
SAÚDE MENTAL ONTEM E HOJE................................................................................................ 9

UNIDADE II
A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA................................................................................... 15

CAPÍTULO 1
SAÚDE MENTAL DO BEBÊ E DA CRIANÇA PEQUENA.................................................................. 15

CAPÍTULO 2
SAÚDE MENTAL DO ADOLESCENTE.......................................................................................... 26

CAPÍTULO 3
SAÚDE MENTAL NA TERCEIRA IDADE........................................................................................ 34

UNIDADE III
SAÚDE MENTAL NO ADULTO................................................................................................................. 38

CAPÍTULO 1
DESAFIOS DA SAÚDE MENTAL NA VIDA ADULTA........................................................................ 38

PARA (NÃO) FINALIZAR....................................................................................................................... 48

REFERÊNCIAS..................................................................................................................................... 49
Apresentação
Caro aluno

A proposta editorial deste Caderno de Estudos e Pesquisa reúne elementos que se entendem
necessários para o desenvolvimento do estudo com segurança e qualidade. Caracteriza-se pela
atualidade, dinâmica e pertinência de seu conteúdo, bem como pela interatividade e modernidade
de sua estrutura formal, adequadas à metodologia da Educação a Distância – EaD.

Pretende-se, com este material, levá-lo à reflexão e à compreensão da pluralidade dos conhecimentos
a serem oferecidos, possibilitando-lhe ampliar conceitos específicos da área e atuar de forma
competente e conscienciosa, como convém ao profissional que busca a formação continuada para
vencer os desafios que a evolução científico-tecnológica impõe ao mundo contemporâneo.

Elaborou-se a presente publicação com a intenção de torná-la subsídio valioso, de modo a facilitar
sua caminhada na trajetória a ser percorrida tanto na vida pessoal quanto na profissional. Utilize-a
como instrumento para seu sucesso na carreira.

Conselho Editorial

4
Organização do Caderno
de Estudos e Pesquisa
Para facilitar seu estudo, os conteúdos são organizados em unidades, subdivididas em capítulos, de
forma didática, objetiva e coerente. Eles serão abordados por meio de textos básicos, com questões
para reflexão, entre outros recursos editoriais que visam a tornar sua leitura mais agradável. Ao
final, serão indicadas, também, fontes de consulta, para aprofundar os estudos com leituras e
pesquisas complementares.

A seguir, uma breve descrição dos ícones utilizados na organização dos Cadernos de Estudos
e Pesquisa.

Provocação

Textos que buscam instigar o aluno a refletir sobre determinado assunto antes
mesmo de iniciar sua leitura ou após algum trecho pertinente para o autor
conteudista.

Para refletir

Questões inseridas no decorrer do estudo a fim de que o aluno faça uma pausa e reflita
sobre o conteúdo estudado ou temas que o ajudem em seu raciocínio. É importante
que ele verifique seus conhecimentos, suas experiências e seus sentimentos. As
reflexões são o ponto de partida para a construção de suas conclusões.

Sugestão de estudo complementar

Sugestões de leituras adicionais, filmes e sites para aprofundamento do estudo,


discussões em fóruns ou encontros presenciais quando for o caso.

Praticando

Sugestão de atividades, no decorrer das leituras, com o objetivo didático de fortalecer


o processo de aprendizagem do aluno.

Atenção

Chamadas para alertar detalhes/tópicos importantes que contribuam para a


síntese/conclusão do assunto abordado.

5
Saiba mais

Informações complementares para elucidar a construção das sínteses/conclusões


sobre o assunto abordado.

Sintetizando

Trecho que busca resumir informações relevantes do conteúdo, facilitando o


entendimento pelo aluno sobre trechos mais complexos.

Exercício de fixação

Atividades que buscam reforçar a assimilação e fixação dos períodos que o autor/
conteudista achar mais relevante em relação a aprendizagem de seu módulo (não
há registro de menção).

Avaliação Final

Questionário com 10 questões objetivas, baseadas nos objetivos do curso,


que visam verificar a aprendizagem do curso (há registro de menção). É a única
atividade do curso que vale nota, ou seja, é a atividade que o aluno fará para saber
se pode ou não receber a certificação.

Para (não) finalizar

Texto integrador, ao final do módulo, que motiva o aluno a continuar a aprendizagem


ou estimula ponderações complementares sobre o módulo estudado.

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Introdução
Não se pode falar de Saúde da Família sem se abordar o campo de Saúde Mental. Esta disciplina visa
fornecer aos profissionais que atuam em saúde da família noções básicas e alguns aprofundamentos
acerca da saúde mental, fornecendo, ainda, um amplo material suplementar, com o objetivo de
instigar os alunos a buscarem mais informações.

Nosso percurso está dividido em três unidades. Na primeira, estudaremos o panorama histórico
que nos mostrará a evolução das noções e das abordagens que a loucura teve no decorrer dos
séculos. Também abordaremos alguns dos conceitos e das práticas mais importantes em saúde
mental na atualidade. Desse modo, obteremos instrumentos para conhecer, contextualizar, refletir
e questionar conceitos e abordagens da nossa prática diária atual, como é o caso das noções de
“normal” e “patológico”.

A segunda parte do nosso curso aborda a saúde mental em fases decisivas da vida: infância,
adolescência e terceira idade. Estas se configuram em momentos fundamentais, em que ocorrem
transformações psíquicas que refletem no bem-estar mental dos indivíduos. É imprescindível
que os profissionais em saúde mental compreendam as vicissitudes de cada uma dessas fases do
desenvolvimento humano que trazem inúmeros desafios ao nosso entendimento e atuação.

A terceira unidade está voltada para o estudo dos desafios relacionados à Saúde Mental no Adulto.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde, mais de 450 milhões de pessoas em todo o
mundo sofrem de transtornos mentais. A Saúde Mental é parte integral da saúde de qualquer
pessoa. No entanto, ao longo da história, em todo o mundo, pessoas acometidas por transtornos
mentais sofreram grandes violações de seus direitos, e passaram por longos anos de isolamento,
discriminação e exclusão social. No Brasil não foi diferente. Por isso, com base no movimento da
Reforma Psiquiátrica, o governo brasileiro desenvolveu uma Política Nacional de Atenção à Saúde
Mental. Seu objetivo é superar um passado de muitos desafios e desrespeito a esta população
específica, para promover a atenção psicossocial que ela necessita.

No decorrer de todo o material, haverá sugestões de pesquisas complementares (por meio de leitura
de textos, artigos, livros etc.) que visam enriquecer e aprofundar os temas trabalhados.

Desejamos a todos um trabalho bastante proveitoso, permeado não só pela aquisição de


conhecimentos, mas também pelo levantamento de reflexões, inquietações e questionamentos, pois
toda grande teoria começa com grandes perguntas.

Objetivos
» Conhecer a evolução histórica dos conceitos e das abordagens em saúde mental.

» Conhecer noções e abordagens atuais em saúde mental.

7
» Compreender as especificidades da saúde mental em etapas decisivas da vida.

» Compreender a importância de considerar a singularidade de cada paciente e


família.

» Compreender a importância da atuação interdisciplinar em saúde mental.

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A SAÚDE MENTAL UNIDADE I

CAPÍTULO 1
Saúde Mental Ontem e Hoje

A saúde mental é um campo relativamente novo nos estudos da saúde humana. Para melhor
compreendê-la, é necessário conhecer sua evolução histórica, bem como as noções de “normalidade”
e “anormalidade”, ao longo dos séculos.

Desde a Antiguidade, as pessoas que apresentavam desvios de comportamento ou de conduta eram


segregadas do convívio coletivo, de modo a não perturbar a ordem social vigente. Na Idade Média,
os loucos eram mantidos em asilos, juntamente com outras classes que deveriam ser excluídas da
sociedade, como os ladrões, as prostitutas, os leprosos. Por não conseguir uma explicação plausível
para as causas e as consequências da loucura, a sociedade costumava atribuí-la a crenças religiosas,
ao sobre-humano. Cabia à Igreja tratar os loucos.

Com o fortalecimento das ideias iluministas, no século XVIII, a loucura passou


a atrair o interesse da ciência e do empirismo emergente. Segundo o novo
paradigma, somente o conhecimento resultante do uso da razão seria capaz de
“libertar” o homem das trevas do saber tradicional advindo das crenças míticas
e religiosas. Surgiram assim os primeiros hospícios, locais de abrigamento
exclusivo para os loucos, que passaram a ser assunto da medicina. Philippe
Pinel (ilustração) é tido como o pioneiro que retirou os loucos das prisões e
aplicou-lhes um tratamento médico, lançando as bases da Psiquiatria, que
surgiria no século XIX. A loucura torna-se doença mental. Tem início a era manicomial.

Com o reinado da Psiquiatria no tratamento da loucura, vieram as classificações das enfermidades e


a medicalização, práticas herdadas do paradigma médico. Surgiram os manuais de classificação das
doenças de acordo com a sintomatologia. Já no século V a.C., na Grécia Antiga, Hipócrates tentou
criar um sistema de classificação das enfermidades mentais. Nomes como mania, histeria, melancolia,
catatonia, incorporadas ao longo dos séculos ao jargão médico, têm origem nessa época. Mas foi
Kraepelin (1856–1926) que desenvolveu o primeiro sistema de classificação considerado científico.

Consultar a obra História da loucura na idade clássica, de Michel Foucault. Neste


livro, o autor traça a evolução histórica da concepção de loucura, apontando a
influência da conjuntura social, histórica e cultural. A noção de loucura sofreu
grandes transformações ao longo dos séculos, tendo sido considerada manifestação

9
UNIDADE I │ A SAÚDE MENTAL

de sabedoria, possessão demoníaca, bruxaria, subversão da ordem social e


doença, o que levou igualmente a diferentes abordagens: exorcismo, fogueira,
confinamento, eletrochoque, tratamento moral, medicalização. Foucault também
discute as relações de poder que constituem e são constituídas com o surgimento
da Psiquiatria como novo campo de saber acerca da loucura.

A partir da segunda metade do século passado, surge na Europa um movimento conhecido


como Reforma Psiquiatra, que questiona as práticas psiquiátricas clássicas em relação tanto à
compreensão da loucura quanto ao seu tratamento (eletrochoque, psicofármacos, confinamento,
restrição de direitos e liberdades etc.). Dentre as ideias apregoadas estão o fim dos manicômios
e do regime asilar, a reinserção social do doente mental, o reconhecimento da sua cidadania, o
questionamento das noções psiquiátricas de doença X sanidade e a interdisciplinariedade e
horizontalização das equipes cuidadoras.

Este movimento teve fortes correntes em países como Inglaterra, França e Itália e grande repercussão
no Brasil e, ainda que não se tenham eliminado definitivamente os hospícios, a Reforma Psiquiátrica
deixou, como legado, a conscientização da necessidade premente de se pensar alternativas de
compreensão e prática no cuidado da loucura.

Para saber mais a respeito da Reforma Psiquiátrica no Brasil, consultar:

<http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/relatorio_15_anos_caracas.pdf>

A Lei Federal no 10.216, de abril de 2001, conhecida como Lei Paulo Delgado, trata
da extinção progressiva dos manicômios e da criação de serviços comunitários para
o tratamento da doença mental. Confira o texto integral em: <http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/Leis/LEIS_2001/L10216.htm>.

O trabalho da psiquiatra Nise da Silveira foi pioneiro na Reforma Psiquiátrica no


Brasil e revolucionou o atendimento aos portadores de transtornos mentais, em
especial dos esquizofrênicos. Dentre suas ações, destaca-se a criação de oficinas de
terapia ocupacional, em que os pacientes expressavam suas emoções por meio das
artes plásticas. Em 1952, Nise da Silveira montou, no Rio de Janeiro, o Museu de
Imagens do Inconsciente para abrigar as peças produzidas nos ateliês de pintura
e modelagem, que se mostraram de grande interesse científico e utilidade na
compreensão e no tratamento da doença mental.

<http://www.ccs.saude.gov.br/nise_da_silveira/homepage.html> e <http://www.
ccs.saude.gov.br/nise_da_silveira/homepage.html>

Até hoje os profissionais de saúde continuam utilizando predominantemente manuais de


classificação nosográficos, com destaque ao Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais – DSM, da American Psychiatric Association, que se encontra em sua quinta versão,
e ao CID ou Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da
Organização Mundial de Saúde, hoje na 11ª revisão.

É fundamental ao profissional de saúde instrumentalizar-se com noções e conceitos científicos e


sistemáticos que forneçam elementos de guia para uma ação terapêutica e para a transmissão do

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A SAÚDE MENTAL │ UNIDADE I

conhecimento. Entretanto, é preciso ter uma visão crítica a respeito de práticas que visam classificar
o comportamento humano e rotular o sujeito em categorias, a partir de um conjunto de sinais e
sintomas psiquiátricos. Até porque o profissional de saúde mental não é um mero observador de
sinais corporais alterados. Ele lida com fenômenos mais complexos, nos quais também se encontra
inserido, a saber, a linguagem e as produções simbólicas humanas, que podem ter infinitos
significados (MARTINS, 2003).

A nomenclatura dos quadros mentais vem sofrendo modificações e ampliações ao longo dos anos.
Abordaremos brevemente a nomenclatura utilizada pela Psiquiatria até os anos 1960, da qual
derivaram as classificações contemporâneas e que é adotada por algumas linhas de pensamento em
Psicologia. Sua relevância se situa no fato de se buscar a compreensão dos quadros de adoecimento
não apenas pela descrição de sinais e sintomas, mas pelos processos psíquicos subjacentes, que
remetem a uma estrutura psíquica. Assim, a doença mental se divide em dois grandes grupos1.

» Neurose – perturbação emocional resultante de conflitos psíquicos internos,


originalmente sem causa orgânica definida, que se manifesta através de conversão
em manifestações físicas (somatização) ou psíquica (dissociação), de fobias ou
ainda de comportamentos compulsivos, rigidez emocional, perfeccionismo e
egocentrismo. Neste grupo figuram os transtornos obsessivo-compulsivo, fóbico e
dissociativo ou de conversão (antigamente denominado de histeria).

» Psicose – quadro marcado por uma falha no desenvolvimento psíquico, cuja origem
remonta às primeiras experiências de vida e que pode levar, nas crises, a uma
desintegração psíquica, que, por sua vez, causa alterações no estado de consciência,
perda do contato com o mundo, desorganização da personalidade e incapacidade de
julgamento (teste de realidade). Pode haver ruptura das relações sociais, delírios,
alucinações e demência ou degradação das capacidades cognitivas. As esquizofrenias
e os quadros paranoicos figuram neste grupo.

Enriqueça seus conhecimentos com as seguintes leituras complementares sobre os


manuais de classificação de doenças mais utilizados.

Consultar o CID-10 em <http://www.datasus.gov.br/cid10/v2008/cid10.htm> (cap.


V, referente ao transtornos mentais e comportamentais – F00-F99) e o DSM-IV.

A drogadicção e o alcoolismo são hoje considerados problemas de saúde mental, e não mais apenas
de segurança pública, merecendo um agrupamento à parte no CID-10, referente aos transtornos
mentais e comportamentais devido ao uso de substância psicoativa (F10 – F19). Segundo dados
da Organização Mundial de Saúde (OMS), cerca de 10% das populações dos centros urbanos de
todo o mundo consomem de modo abusivo alguma substância psicoativa. E essa problemática
atinge todas as camadas populacionais, independente de sexo, idade, nível de instrução e
poder aquisitivo.

1
Há ainda uma terceira divisão utilizada sobretudo pelos psicanalistas, a Perversão, para designar um quadro estrutural de
desvios de conduta ou comportamento, em que há subversão de normas sociais, adoção de condutas não aceitáveis socialmente,
falta de empatia em relação ao outro, o que pode levar o sujeito a infligir sofrimento ao outro (ou a si mesmo), sem sentimento
de culpa. Neste grupo, estão os pedófilos, os sadomasoquistas, alguns drogadictos, dentre outros.

11
UNIDADE I │ A SAÚDE MENTAL

A drogadicção ou dependência química designa o uso abusivo e a dependência física e/ou


psicológica de um sujeito em relação a uma substância psicoativa, que pode ser psicofármacos
(benzodiazepínicos, anfetaminas), produtos comerciais (anabolizantes, solventes) ou substância
ilícitas (cocaína, maconha, LSD).

Elas são classificadas em três grupos, de acordo com o efeito que produzem no Sistema Nervoso
Central.

» Depressoras: ópio, morfina, benzodiazepínicos, solventes e inalantes.

» Estimulantes: cocaína, anfetamina, ecstasy.

» Alucinógenas: LSD, maconha, haxixe, cogumelo.

Ainda dentro da questão da dependência química, o alcoolismo e o tabagismo vêm recebendo uma
atenção específica, tendo em vista serem substâncias lícitas, cujo consumo é até encorajado em
determinadas manifestações sociais e culturais, além de terem maior prevalência em relação às
outras substâncias psicoativas.

Sobre a política governamental de atenção integral aos usuários de álcool e


outras drogas:

<http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/A%20politica.pdf>

Sobre a política de redução de danos no alcoolismo:

<http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/alcool_reducao_danos.pdf>

O que o profissional de saúde deve ter em mente é que qualquer que seja o diagnóstico ou a causa,
o adoecimento mental acomete um sujeito que sofre e o foco deve ser a melhoria das condições da
saúde global da pessoa e da família, visando a sua autonomia, a partir da melhora ou, se possível,
da eliminação do sofrimento, com redução das limitações e consequências negativas para sua vida
em geral. Para isso, o atendimento comunitário e interdisciplinar em redes de atenção vem se
mostrando uma abordagem eficaz, em substituição ao modelo hospitalocêntrico.

Sobre a nova política de saúde mental no Brasil, que destaca, dentre outras
coisas, a construção de uma rede de cuidados comunitária:

<http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/relatorio_15_anos_caracas.pdf>

Sobre a situação da saúde mental na América Latina, novas estratégias,


iniciativas e os grandes desafios da área:

<http://www.paho.org/portuguese/gov/ce/ce128_18-p.pdf>

Hoje há um consenso cada vez maior de que a saúde mental, pela sua complexidade, não deve ser
objeto de apenas um olhar, uma disciplina, qualquer que seja ela. A complexidade e a multiplicidade
dos fatores envolvidos no adoecimento mental requerem um acompanhamento interdisciplinar, o
que não significa a mera soma de vários saberes isolados, mas a existência de um diálogo e a troca
entre eles.

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A SAÚDE MENTAL │ UNIDADE I

A identificação de um quadro de adoecimento mental não se dá por parâmetros objetivos, tais como
nível de glicemia ou colesterol, como ocorre com outras doenças de origem orgânica. Os sintomas
possuem as mais variadas naturezas e manifestações: depressão, irritabilidade, alcoolismo,
mudanças de humor, insônia, medos exagerados, dentre outras, que podem inclusive coexistir e se
modificarem numa mesma pessoa em diferentes momentos da vida. Ainda, uma manifestação que
ocasiona grande sofrimento para um indivíduo não necessariamente representará adoecimento para
outra. Desse modo, tanto o diagnóstico quanto o tratamento devem ser feitos de forma cuidadosa e
respeitando, mais do que nunca, a famosa máxima de que “cada caso é um caso”.

O que você entende por interdisciplinaridade? Qual a importância da atuação


interdisciplinar no trabalho com a saúde da família?

Como é organizada a atuação dos profissionais das diversas áreas no serviço em que
você atua? Quais os resultados dessa organização? Há o que melhorar? Como? Em
que você pode contribuir para a implantação da interdisciplinaridade no seu serviço?

Outra questão que permeia o trabalho em saúde mental para qual o profissional deve estar atento é
a delimitação entre o que é saúde e doença. Vale ressaltar que a linha entre o normal e o patológico
é muito difícil de ser traçada e sua delimitação pode variar de acordo com fatores socioculturais e
históricos. Isso quer dizer que fenômenos considerados patológicos numa certa sociedade ou época
podem ser aceitáveis, cotidianos ou até mesmo valorizados em outra e vice-versa.

O livro A Louca e o Santo, escrito pela filósofa francesa Catherine Clément, em parceria
com o psicanalista indiano Sudhir Kakar (Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1997)
traz uma interessante discussão sobre esta questão. Os autores traçam um paralelo
entre as histórias de duas personalidade que apresentavam “sintomas” semelhantes,
mas tiveram destinos bastante distintos. A primeira é de Madeleine, moça pobre,
católica, que viveu na França do século XIX, e foi internada e tratada por 22 anos pelo
ilustre médico Pierre Janet, tendo sido considerada louca. A outra história refere-se à
trajetória de Ramakrishna, um hindu analfabeto de Calcutá, também do século XIX,
que se tornou uma figura importante e reconhecida do misticismo da Índia. Ambos
apresentavam manifestações parecidas: visões alucinatórias ou místicas, prolongados
jejuns e paradas respiratórias, êxtases, dentre outras. No entanto, à Madeleine, inserida
em uma sociedade dominada pelo racionalismo e positivismo francês, não coube
outro destino senão a loucura, a internação, o tratamento médico. Já Ramakrishna,
imerso em um ambiente que valorizava o misticismo em detrimento da razão, tornou-
se reconhecido e amado como santo e guru.

O fundador da Psicanálise, Sigmund Freud, rompeu em definitivo a fronteira entre o normal e o


patológico ao mostrar a ocorrência, na vida cotidiana de todos nós, de fenômenos cuja estrutura é a
mesma de sintomas graves, como, por exemplo, os sonhos, os lapsos, os esquecimentos, dentre outros.

Sigmund Freud promoveu uma grande revolução nos estudos do psiquismo humano
e na forma de se conceber o homem ao postular o conceito de inconsciente, esfera
psíquica à qual nossa consciência não tem acesso direto, onde ficam guardadas
as impressões da infância, que vão mover grande parte de nossa forma de ser no

13
UNIDADE I │ A SAÚDE MENTAL

mundo e marcar para sempre nossa personalidade. Até então, a ciência e a filosofia
abordavam o homem como um ser consciente: “Penso, logo existo”. No entanto,
Freud demonstra que o ser humano é dividido em sua essência e precisa lidar
com conflitos internos entre seus desejos inconscientes e as exigências (advindas
da cultura) de seu psiquismo, dos quais, muitas vezes, não tem conhecimento
consciente. “O homem não é senhor em sua própria morada”, afirmou em um das
suas célebres frases.

Para aprofundar as investigações sobre o conceito de inconsciente e a repercussão


no psiquismo humano, três livros de Freud são fundamentais: A Interpretação
dos Sonhos, de 1900, Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana, de 1901, e
Três Ensaios sobre a Sexualidade, de 1905 (este último enfocando a sexualidade
humana).

Machado de Assis, em sua célebre obra O Alienista, faz uma crítica ao cientificismo
predominante da sua época (fim do século XIX), retrata, de forma irônica e cruel, a
mentalidade de internação vigente e questiona as noções de sanidade e doença
mental. Vale a pena enriquecer seus estudos com a leitura deste clássico da
literatura brasileira.

<http://machado.mec.gov.br/arquivos/pdf/contos/macn003.pdf>

14
A SAÚDE MENTAL
EM FASES DECISIVAS UNIDADE II
DA VIDA

CAPÍTULO 1
Saúde Mental do Bebê e da
Criança Pequena

Desenvolvimento Psíquico do Bebê


É possível realizar um trabalho em saúde mental com bebês e crianças pequenas?
Como um profissional pode intervir com seres em idade tão inicial de seu
desenvolvimento, que não falam e aparentemente não conseguem expressar suas
necessidades?

Até os anos 1950, a ciência considerava o bebê um ser passivo, cuja atividade primordial se resumia
à função da alimentação (lactente). A concepção reinante era que bastava fornecer os cuidados
básicos de alimentação e higiene, até que a criança crescesse e, a partir dos 6 ou 7 anos, entrasse, de
fato, em uma fase de desenvolvimento e aprendizagem.

Entretanto, a partir da segunda metade do século XX, houve uma mudança gradual mas decisiva na
forma de conceber o bebê, quando se passou a reconhecer que a criança, mesmo no início da vida,
era muito mais que um mero “tubo digestivo” (GOLSE, em Aragão, 2004).

Um fator primordial para essa mudança conceitual deu-se durante a Segunda Guerra Mundial. O alto
índice de patologias mentais e mortes em crianças abrigadas em orfanatos do pós-guerra começou
a chamar a atenção dos estudiosos. Percebeu-se que, apesar de receberem cuidados de alimentação
e higiene, as crianças apresentavam comportamentos estereotipados, apatia, desinteresse, dentre
outros sintomas, sugerindo a existência de um sofrimento que extrapolava as condições materiais
e os cuidados físicos a elas oferecidos. A partir daí, deu-se início a um período de grande pesquisa
acerca da vida mental da criança nos primeiros anos de vida.

Dentre os estudos, destacaram-se as pesquisas de René Spitz, que cunhou o termo “síndrome do
hospitalismo” para designar um quadro que acometia crianças abrigadas que, mesmo sendo bem-
alimentadas, vestidas, aquecidas, passavam a apresentar graves prejuízos no seu desenvolvimento,
com falta de apetite, baixo peso, hipotonia, apatia e gradual desinteresse pelo ambiente e pelas
pessoas, vindo, muitas vezes, a óbito. Spitz percebeu que a privação de afeto e atenção individualizada
e constante gerava efeitos nefastos para a saúde mental das crianças.

15
UNIDADE II │ A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA

Outro teórico que merece menção é Bowlby (1969/2002, 1976/2001), que desenvolveu a Teoria
do Apego, segundo a qual um vínculo seguro entre o bebê e sua mãe (ou cuidador) proporciona à
criança um posterior sentimento positivo de segurança em relação ao mundo. Segundo Bowlby, o
comportamento de apego, ou de vincular-se, é um mecanismo básico do ser humano. Esse vínculo
afetivo vai se formando a partir das capacidades cognitivas e emocionais do bebê, e da responsividade
e sensibilidade dos cuidadores (a mãe, o pai ou outra pessoa que cuide dele). Assim, as primeiras
relações de apego que a criança estabelece em tenra infância afetam o estilo de apego do sujeito ao
longo de sua vida, influenciando, consequentemente, na formação de sua personalidade.

Donald Winnicott, em sua prática como pediatra e psicanalista na Inglaterra, percebeu que grande
parte dos problemas emocionais tinha origem nas vivências dos primeiros anos de vida da criança. A
partir disso, dedicou seus estudos à investigação das fases mais iniciais do desenvolvimento mental
humano. Assim, tornou-se um dos grandes nomes da pesquisa da relação mãe e bebê, que, para ele,
fornece as bases do desenvolvimento da saúde mental do ser humano.

Segundo Winnicott (1965/2005), o bebê, no início da vida, compõe-se de uma série de percepções
sensoriais dispersas, desorganizadas, que o colocam em um estado de não integração, com sensações
de despedaçamento, aniquilamento, tal qual a de cair num fosso sem fundo. É a partir da ação
materna (ou de um cuidador privilegiado), manifestada nos cuidados diários dirigidos ao bebê, que
vai se criando para ele um sentimento de continuidade, segurança e a percepção de ser uma pessoa
inteira, integrada.
Mas a integração não é algo automático; é algo que deve desenvolver-se pouco
a pouco em cada criança individual. Não é mera questão de neurofisiologia,
pois, para que seu processo se desenrole, há a necessidade da presença de
certas condições ambientais, a saber: aquelas cujo melhor provisor é a própria
mãe da criança. (pág. 7).

Winnicott (1958/2000) postula a existência de um estado psicológico especial que a mulher desenvolve,
principalmente ao final da gravidez e semanas depois do nascimento do seu filho, que a torna mais
sensível às necessidades de seu bebê. Esse estado de sensibilidade exacerbada, que ele denonimou de
Preocupação Materna Primária, poderia ser comparado a um quadro psiquiátrico patológico, caso
não houvesse o bebê. Winnicott chega a descrevê-lo como uma “doença normal” e enfatiza que tal
condição fornece o contexto necessário para o início da constituição psíquica da criança.

Com sua célebre frase “um bebê sozinho não existe”, Winnicott ressaltou a importância de a mãe
(ou o cuidador) ser “suficientemente boa”, isto é, nem tão perfeita a ponto de responder a todas as
demandas do bebê, tampouco indiferente a elas. Isso significa que a mãe, aos poucos, deve deixar
de responder de imediato às demandas do filho, à medida que vai percebendo nele uma capacidade
de suportar sua falta e satisfazer-se sozinho.

A mãe (e o ambiente) será, portanto, “suficientemente boa”, ainda segundo Winnicott, caso ofereça à
criança três funções fundamentais, a saber: o holding, a forma como o cuidador sustenta, tanto física
quando psiquicamente o bebê, capacidade de a mãe se identificar com seu bebê e assim reconhecer
suas necessidades; o handling, a forma como o bebê é cuidado, manipulado, fornecendo à criança
a noção do seu próprio corpo; e a apresentação de objetos ou elementos substitutivos ao
corpo materno, o que auxiliará a criança na tomada de consciência do mundo externo (1971/1975).

16
A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA │ UNIDADE II

Aqui cabe abordar, ainda, que, brevemente, os quadros mentais do puerpério,


que podem acometer a mãe após o nascimento do seu bebê e, a depender das
características dos sintomas e do grau, requerer intervenção profissional:

» Baby blues (tristeza materna ou post-partum blues) – trata-se de um estado


de humor depressivo, que costuma ocorrer alguns dias após o parto, em
que a mãe sente-se incapaz diante da responsabilidade de cuidar do seu
filho. A mulher pode apresentar crises de choro, irritabilidade, mudança
brusca de humor, dentre outros. Este estado, que costuma ser temporário,
acomete mais de 50% das puérperas. Alguns estudos chegam a falar de
80 ou 90%. As discrepâncias se dão em virtude da dificuldade em se
identificar este estado, tendo em vista que muitas mães escondem sua
tristeza. Também as pessoas próximas costumam não reconhecê-los em
virtude da idealização que nossa sociedade faz em torno da maternidade.
Dessa forma, os sentimentos negativos da mãe, “justamente quando
deveria estar radiante”, são peremptoriamente negados.

Este estado reflete o trabalho psíquico que a mãe deve efetuar em relação às várias
transformações que a vinda de um filho promove, tais como o encontro com o bebê
real, sempre diferente do bebê imaginado; a modificação de sua posição na estrutura
familiar – de filho para mãe; e mudança na imagem corporal – não é mais grávida,
tampouco recuperou o corpo de mulher. Ainda que seja passageiro e reversível e
não acarrete prejuízos à saúde mental do bebê, o sofrimento pode ser atenuado
quando há para a mãe a possibilidade de compartilhar seus sentimentos sem que
se sinta julgada.

» Depressão pós-parto – este quadro se distingue do baby-blues pela


maior gravidade, duração e possíveis consequências negativas para o
estabelecimento da relação mãe e bebê. Acomete cerca de 10 a 20% das
puérperas e pode se iniciar logo após o nascimento do bebê ou até dois anos
depois. Os sintomas mais frequentes são: tristeza profunda, irritabilidade,
grande alteração de humor, sentimentos negativos em relação ao filho.
Nesses casos, é necessário um acompanhamento psicológico e psiquiátrico
com medicação. Mulheres com episódios depressivos ou transtornos
afetivos anteriores, que tiveram uma gravidez com complicações, com
história de perdas de entes queridos ou de abortos têm maior probabilidade
de desenvolver uma depressão pós-parto.

» Psicose puerperal – quadro que se caracteriza por desorganização


psíquica proveniente do nascimento do filho, em que pode haver delírios,
alucinações, quebra do contato com a realidade. Em muitos casos, é
preciso separar a mãe do bebê em virtude do risco de vida de ambos. A
prevalência é de menos de 1% das puérperas. Mulheres com antecedentes
de crises psicóticas estão no grupo de risco. O tratamento deve incluir
acompanhamento multidisciplinar nas áreas de psicologia, psiquiatria,
assistência social e, muitas vezes, trabalho de apoio junto à família.

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UNIDADE II │ A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA

LACONELLI, V. Depressão pós-parto, psicose pós-parto e tristeza materna. In: Revista


Pediatria Moderna, jul-ago, v. 41, n. 4, 2005.

A partir desses estudos, constata-se o papel fundamental, ou mesmo fundante, que o adulto
cuidador desempenha na constituição física e psíquica da criança. O bebê humano nasce sob uma
dependência radical daquele(s) que dele se ocupa(m) e, dessa forma, as vivências dos primeiros anos
terão grande influência na construção das bases do desenvolvimento físico, cognitivo, emocional e
social do futuro sujeito. Assim, um trabalho em saúde mental com bebês deve incluir a díade mãe-
bebê (e/ou as pessoas que estabelecem uma relação próxima e significativa com o bebê).

As descobertas não pararam por aí. A partir da década de 1970 e 1980, com o avanço tecnológico
dos métodos de ultrassonografia e monitoramento fetal, foi possível demonstrar que os bebês
desenvolvem capacidades e habilidades impressionantes desde o período pré-natal. Pesquisas acerca
da sensorialidade do feto, por exemplo, mostraram que o recém-nascido prefere cheiros e gostos aos
quais teve contato enquanto estava no ventre materno, o que prova a existência de um desenvolvimento
sensorial e de memória já no período intrauterino (BUSNEL, 2002). Quanto à audição, os estudos
indicam que o feto já responde a estímulos sonoros, desde a 24ª semana de gestação.

Experimentos sobre a visão dos recém-nascidos revelaram que, logo já nas primeiras horas após o
nascimento, as crianças preferem o rosto materno ao de qualquer outra mulher (idem). Também
foram descobertas nos bebês uma capacidade de imitar os gestos do adulto. Desse modo, constatou-
se que o bebê, antes mesmo de nascer, já dispõe de uma gama de habilidades que o tornam
extremamente ativo e apto para a interação e vinculação afetiva com o outro.

O pediatra americano Thomas Brazelton criou a NBAS (Neonatal Behavioral


Assessment Scale), conhecida por Escala de Brazelton. Seu objetivo é avaliar o
desenvolvimento comportamental e neurológico do bebê, por meio da observação
de sua capacidade em controlar e organizar os sistemas autonômico, motor, social
e os estados de consciência. A escala permite conhecer o perfil de funcionamento
do bebê, a qualidade de sua interação com os pais e cuidadores, possibilitando a
identificação de aspectos que não vão bem e a intervenção precoce (PAULA, SILVA
e ALMEIDA, 2002).

BRAZELTON, T. B.; NUGENT, K. J. Neonatal Behavioral Assessment Scale. London:


Mackeith Press, 1995.

A partir das pesquisas sobre a constituição psíquica na primeira infância, foi possível constatar que
as vivências dos primeiros meses e anos de vida são fundamentais e estruturantes para a saúde
mental do indivíduo. E os efeitos de tais vivências poderão ser positivos e/ou negativos a depender
da qualidade e intensidade delas. Assim, desmistifica-se a ideia segundo a qual pouco ou nada se
pode fazer em termos de saúde mental do bebê ou da criança pequena. Ao contrário, cada vez mais
os profissionais que lidam com a primeira infância – enfermeiros e auxiliares de enfermagem de

18
A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA │ UNIDADE II

UTI neonatal, neonatologistas, pediatras, educadores de creche, psicólogos infantis, entre outros –
tornam-se conscientes da importância do cuidado da saúde psíquica da criança em seus primeiros
anos, meses, dias e até mesmo já no ventre materno.

Em vista disso, é crescente o número de experiências e práticas nessa área, como, por exemplo, o
incentivo ao parto humanizado, cujo objetivo é não só a redução dos partos cirúrgicos e a mudança
de uma visão meramente biológica e médica do processo, como também a conscientização dos
profissionais e dos usuários de que a mulher (e o bebê) é a protagonista do parto e, dessa forma,
deve ter necessidades, valores, dignidade e individualidade respeitados (BRASIL, 2001). Outro
exemplo é a crescente preocupação de implementar nas UTIs neonatais rotinas adequadas para as
necessidades psíquicas do recém-nascido, muitas vezes prematuro, como diminuição de estímulos
excessivos (iluminação, barulho) (SILVA, 2002), e a implementação de um trabalho de apoio na
formação dos laços afetivos entre mãe (pais) e bebê (ANDRADE, 2002 e SZEJER, 1999).

Que práticas e atitudes um profissional que atua no âmbito da família pode adotar
visando a contribuir para o desenvolvimento da saúde mental da criança pequena?

Como é possível detectar dificuldades psíquicas e emocionais em um estágio tão


precoce do desenvolvimento?

O ser humano não nasce falando. A palavra “infância” vem do latim infans e significa “aquele que
não fala”. A introdução na linguagem, que antecede o sujeito, dá-se aos poucos. Dessa forma, o
bebê expressa que algo não vai bem no seu psiquismo por meio de sintomas no seu corpo, como,
por exemplo, dificuldades de alimentação ou de sono sem causas orgânicas, choros frequentes sem
motivo aparente, evitação do olhar, entre outros. A forma como a mãe “concebe” e cuida de seu
filho, o que pode ser percebido por sinais não verbais e pelo seu discurso, também fornece indícios
de como está caminhando o desenvolvimento da relação entre aquela mãe e seu bebê. Assim, um
trabalho em saúde mental com bebês e crianças pequenas deve considerar o que se passa na díade
mãe-bebê, abrangendo desde a observação dos sinais não verbais até a escuta do discurso da mãe
em relação ao seu filho.

Quanto mais cedo melhor


Para especialistas na área de saúde mental, a intervenção precoce pode diminuir ou mesmo eliminar o risco de
instalação de distúrbios psíquicos. Abaixo alguns marcadores psíquicos importantes, dignos de observação pelos
profissionais e cuidadores que acompanham o bebê de 0 a 6 meses.
A mãe é capaz de transformar as necessidades fisiológicas do bebê em demanda dirigida a ela, supondo um sujeito?
Ela consegue afastar-se do bebê, alternando presença e ausência?
A mãe é capaz de diferenciar tipos de choro de seu filho?
Ela espera a reação da criança depois de realizar uma ação? Há ligação entre os olhares dela e do bebê?
O bebê apresenta indícios de comunicação: olhar, sorriso social, balbucios, experiências orais não alimentares como
chupar o dedo, por exemplo?
Ele faz movimento em direção aos objetos?
A mãe fala com o bebê de um jeito particular? E ele, responde com vocalizações?
O bebê tem alterações de sono e vigília, de alimentação ou distúrbios intestinais?

Fonte: Degenszajn, R. D. “Sinais preditivos de risco psíquico”. Em: Revista A mente do Bebê.
(2006).

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UNIDADE II │ A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA

Caso sejam constatadas dificuldades em alguns desses itens, é necessária uma investigação mais
aprofundada por parte de um profissional especializado em saúde mental infantil.

Ainda assim, é preciso cautela a fim de evitar correlações advindas de um raciocíonio de causalidade
linear, do tipo: mães deprimidas geram filhos hiperativos, por exemplo. Sabemos que tal lógica pode
funcionar bem para problemas matemáticos ou físicos. Mas quando se trata de saúde mental, as coisas
não são tão simples assim, tendo em vista a multiplicidade de fatores envolvidos, aos quais não se tem
acesso integralmente. Diante disso, é fundamental ao profissional considerar cada caso como único,
singular. E isso só é possível por meio de um olhar e escuta atentos, sem “pré-conceitos”.

Graças aos avanços nos estudos e nas pesquisas, não é mais possível pensar a primeira infância
apenas como uma fase anterior à infância propriamente dita ou de preparação para a vida adulta.
Torna-se mister pensar o bebê como um sujeito em constituição, que, em sua especificidade, já
conta com uma singularidade, com uma história, vivências, cujos primórdios se encontram nas
fantasias de sua mãe a respeito do filho imaginado, na experiência da gravidez e no encontro e no
estabelecimento das primeiras relações com o bebê real.

É preciso estarmos atentos ainda ao outro lado da moeda, ou seja, ao fato de que as impressionantes
descobertas acerca das capacidades dos recém-nascidos podem gerar uma euforia desmedida, levando
profissionais a desenvolverem práticas que buscam o desenvolvimento precoce da criança, no furor de
produzir superbebês, alinhando-os aos valores de competividade e alta produtividade apregoados pela
sociedade moderna. Aqui fica a pergunta: não corremos o risco de negar às crianças o direito a uma
infância digna, que respeite seu tempo, seus limites e sua singularidade como sujeito em formação?

Desenvolvimento Psíquico da Criança

Aquarela
(Toquinho)

Numa folha qualquer Pequim ou Istambul E o futuro é uma astronave


Eu desenho um sol amarelo Pinto um barco a vela Que tentamos pilotar
E com cinco ou seis retas Branco navegando Não tem tempo, nem piedade
É fácil fazer um castelo... É tanto céu e mar Nem tem hora de chegar
Num beijo azul... Sem pedir licença
Corro o lápis em torno Muda a nossa vida
Da mão e me dou uma luva Entre as nuvens E depois convida
E se faço chover Vem surgindo um lindo A rir ou chorar...
Com dois riscos Avião rosa e grená
Tenho um guarda-chuva... Tudo em volta colorindo Nessa estrada não nos cabe
Com suas luzes a piscar... Conhecer ou ver o que virá
Se um pinguinho de tinta O fim dela ninguém sabe
Cai num pedacinho Basta imaginar e ele está Bem ao certo onde vai dar
Azul do papel Partindo, sereno e lindo Vamos todos
Num instante imagino Se a gente quiser Numa linda passarela
Uma linda gaivota Ele vai pousar... De uma aquarela
A voar no céu... Que um dia enfim
Um menino caminha Descolorirá...
Vai voando E caminhando chega no muro
Contornando a imensa E ali logo em frente
Curva Norte e Sul A esperar pela gente
Vou com ela O futuro está...
Viajando Havaí

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A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA │ UNIDADE II

Como nos fala este trecho da música de Toquinho, ser criança é descobrir o mundo, por meio da
fantasia. Coisas simples, como “uma folha qualquer”, podem virar seres e objetos fantásticos. É
a idade do faz de conta, das fadas e bruxas, dos mocinhos e bandidos. É a idade do brincar, das
descobertas, mas também do aconchego do colo. Que, um dia, findará. Mas marcará para sempre
nosso futuro, nossa forma de ser no mundo.

Como vimos no item anterior, o trabalho com a primeira infância possui um grande caráter
preventivo. A prática clínica mostra que, quando as dificuldades psíquicas que apontam nesses
primeiros anos não são devidamente cuidadas, elas podem surgir de forma mais grave nas etapas
seguintes do desenvolvimento, como dificuldades de aprendizagem, de relacionamento interpessoal,
entre outros. Partiremos agora ao estudo da saúde mental das crianças maiores.

Nem sempre a criança e a infância gozaram do estatuto e do interesse dos dias atuais.
Conforme nos mostra Ariès (1981), durante a Idade Média, havia um sentimento de
indiferença em relação à essa fase da vida, tendo em vista a alta mortalidade infantil.
As crianças permaneciam no anonimato até uma certa idade – em torno dos 7 anos
– quando, então, passavam a frequentar o mundo adulto, inserindo-se no trabalho e
nos jogos coletivos, como miniaturas de adulto.

Assim, o sentimento e a concepção moderna da infância, segundo a qual a criança


é um ser precioso, que necessita de amor e cuidado, foi algo construído ao longo
dos séculos. Da mesma forma, a noção de família dos dias de hoje, de instituição
nuclear e privada, formada e mantida a partir de laços afetivos, é uma conquista
relativamente recente.

ARIÈS, P. A História Social da Criança e da Família, 1981. BADINTER, E. Um amor


conquistado: o mito do amor materno, 1985.

Freud, já postulava, no início do séc. XX, que a criança (moderna) ocupa um lugar privilegiado
no narcisismo, ou amor-próprio inconsciente, dos pais, ou seja, ela recebe todo o tipo de aposta e
esperança no sentido de realizar os desejos frustrados dos pais:

[Os pais] se inclinam a reivindicar para a criança o direito a privilégios


aos quais eles, os pais, há muito tiveram que renunciar. A criança deve ter
melhor sorte que seus pais, não deve ser submetida aos mesmos imperativos
que eles tiveram de acatar ao longo da vida. Doença, morte, renúncia à
fruição, restrições à própria vontade não devem valer para a criança; as leis
da natureza, assim como as da sociedade, devem se deter diante dela, e ela
deve realmente se tornar de novo o centro e a essência da criação do mundo.
His majesty, the Baby, tal como nós mesmos nos imaginamos um dia.
(1914, p; 110)

Após o período da primeira infância, a criança entra em uma fase de gradual abertura para o mundo.
O núcleo familiar deixa de ser suficiente para as crescentes capacidades da criança e ela passa a

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UNIDADE II │ A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA

frequentar outros ambientes, engajar-se em diversas atividades: visita a casa de parentes, brinca
com coleguinhas, vai à escola etc.

Uma aquisição importante desta fase é a apropriação da linguagem. Seria errôneo dizer que a
criança adquire linguagem quando começa a falar. A criança encontra-se, desde sempre, inserida na
linguagem. Desde quando seus pais já lhe antecipavam os primeiros traços: vai ser levado igual ao
pai, tranquila tal qual a irmã… Estudos comprovam que os balbucios que as crianças desenvolvem
em torno dos 6 meses já apresentam características da língua materna. O que ocorre é que a criança
se apropria da linguagem e passa a se utilizar dela. Ou seja, a criança deixa de ser falada pelos pais
(“ela) deve estar com fome”) para ela própria falar (“estou com fome”).

Esta é uma virada importante e dificuldades nessa área devem ser diagnosticadas, investigadas e
tratadas, pois entre outras coisas, o uso da linguagem diz da capacidade de simbolização da criança,
imprescindível para um bom desenvolvimento de sua saúde mental. A capacidade de simbolizar
permite à criança prescindir dos objetos concretos. Daí é que derivará a capacidade de apreender
operações lógicas cada vez mais complexas, além do pensamento abstrato.

O pesquisador suíço, Jean Piaget, interessou-se pelo desenvolvimento da linguagem


e do pensamento infantil e realizou experimentos sistemáticos com crianças das mais
variadas idades que visavam a investigar a percepção e a lógica infantis. Segundo
ele, o desenvolvimento da inteligência ou cognitivo dá-se por etapas sucessivas de
crescente complexidade:

» Sensório-Motor: do nascimento aos 2 anos – a criança adquire


conhecimento acerca do mundo por meio de suas ações (motoras) e
percepções (sensoriais). Tal conhecimento é prático, direto e imediato,
sem representação.

» Pré-Operatório: dos 2 aos 7 anos – desenvolvimento de uma inteligência


simbólica, ou seja, intermediada por símbolos. Surge o faz de conta, o jogo
simbólico, em que um objeto qualquer pode se transformar em outro (um
pedaço de pau vira uma espada). A criança continua egocêntrica, ou seja,
centrada em si mesma, não conseguindo se colocar no lugar do outro.
É também a fase dos “por quês”, tendo em vista o desejo de encontrar
relações entre os fenômenos.

» Operatório-Concreto: dos 7 aos 11 anos – a criança adquire noções


de tempo, velocidade, espaço, desenvolvendo a capacidade de efetuar
correlações entre diferentes fatores e de abstrair dados da realidade,
ainda que necessite de suporte no concreto.

» Operatório-Formal: dos 11 anos em diante – o adolescente atinge


o último estágio do desenvolvimento da inteligência, adquirindo
pensamento hipotético-dedutivo ou lógico-matemático, que lhe permite
efetuar relações hipotéticas entre fatores totalmente abstratos, sem apoio
em dados concretos.

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A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA │ UNIDADE II

PIAGET, J. O Nascimento da inteligência na criança. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.

Outro aspecto importante do desenvolvimento infantil relaciona-se à sexualidade. Quando


mencionamos esse assunto, a primeira coisa que costuma vir à mente das pessoas é a sexualidade
adulta, cuja manifestação máxima é a relação sexual, sob a primazia dos órgãos genitais. Sob tal modelo,
realmente fica estranho falar de uma sexualidade infantil. Entretanto, sabemos que, desde os estudos
de Freud, a sexualidade humana é muito mais do que isso. Refere-se aos desejos, à busca de prazer e
satisfação que, no ser humano, dá-se por diferentes modos e que ultrapassam a necessidade fisiológica
e o instinto. Assim, o homem encontra prazer em várias atividades como comer, trabalhar, estar com
amigos, nas conquistas pessoais etc. Um exemplo de como o homem subverte o instinto e o biológico
se encontra na alimentação. O homem não come só por conta da fome (necessidade biológica), mas
também pelo prazer que ele daí retira. Como explicar então os transtornos alimentares?

As mães já constatam, desde muito cedo, que seus bebês buscam não apenas o leite quando
amamentam, mas o aconchego, o olhar, as palavras, o toque, os carinhos maternos. Freud nos fala de
uma manifestação da sexualidade infantil já presente aí, e a amamentação seria seu primeiro protótipo.

Dessa forma, a sexualidade humana, contrariamente ao que a corrente moralista gostaria de


acreditar(!), não nasce na puberdade, mas está presente desde o início da vida. E mais, ela é
constitutiva do desenvolvimento psíquico do sujeito.

Freud postulou que o desenvolvimento da sexualidade infantil segue fases de


organização da libido (energia sexual). Em cada uma dessas fases, a fonte de excitação
vinda do organismo (pulsão) volta-se predominantemente a uma região ou função
do corpo que adquire o status de zona erógena. Cada criança vai passar de forma
única por cada uma das etapas, que não são necessariamente sucessivas. A forma
como se dará essa(s) passagem(ns) deixará marcas no desenvolvimento posterior
do adulto. Assim, crianças que permaneceram, de certa forma, “fixadas” na fase
oral tenderão a buscar prazer em atividades relacionadas à oralidade: alimentação,
tabagismo, alcoolismo, por exemplo.

No quadro abaixo, podemos ver as etapas da organização sexual infantil:

Idade 0 a 18 meses 18 meses a 3 anos 3 a 6 anos


Fase Oral Anal Fálica
Objeto Boca, seio Fezes, urina Órgãos genitais
Tipo de Autoerótico, toma todos os Narcísico, Investe os objeto Fantasístico, atualiza os desejos
prazer objetos de incorporação como destacáveis do corpo com orais e anais nas fantasias de
partes do próprio corpo. valor simbólico de troca. sedução e castração.
O que ocorre Há equivalência sujeito-meio; Reter ou expulsar as fezes Há um interesse pelas zonas
saciedade oral e afeto equiparam-se: equivale à passividade ou genitais e, simultaneamente,
ser alimentado é ter o amor materno e atividade com relação a dar ou um investimento afetivo (de
ser privado de alimento é sucumbir à receber objetos: é a medida amor e ódio) dirigido às figuras
angústia de aniquilamento. de troca de afeto com os pais. parentais (complexo de Édipo).

Fonte: Zornig, S. A-J. (2006). Pelo viés do corpo. Revista A mente do bebê. (com adaptações).

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UNIDADE II │ A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA

A partir dos 6 anos, a criança entra num período que Freud denominou de latência, em que a
energia sexual é direcionada para a aprendizagem, o desejo de saber e de descobrir o mundo. Esta
fase coincide com a idade escolar e o período de alfabetização.

Na puberdade, o sujeito entra na fase genital, marcada por uma sexualidade que se aproxima à
adulta, havendo o predomínio das pulsões em torno da zona genital. O prazer se encontra dividido
entre a ternura (amor) e a paixão (desejo), dirigido às relações sociais, aos parceiros sexuais, que
podem ser do mesmo ou outro sexo.

Existem alguns quadros que são descritos com mais frequência no campo da saúde mental infantil.
Porém, antes de abordá-los, vale ressaltar que não devemos utilizá-los para rotular os pequenos
pacientes, o que pode ter efeitos nefastos para o seu futuro. Sabemos que a palavra de um especialista
tem um peso muito grande para a criança e sua família. Deste modo, é fundamental adotarmos uma
postura ética no sentido de não influenciarmos negativamente o desenvolvimento da criança, sob
um “pretenso saber”, a partir do que comunicamos, das palavras que utilizamos.

Sabemos que fazer um diagnóstico extremamente cedo, em um tempo em que


não se pode fazer, acaba por fabricar aquilo que se supõe evitar. Se alguém
introduz o diagnóstico, se ministra a medicação precocemente e se trata um
criança como se fosse um “TDAH”, ao final, podemos ter razão. (Jerusalinsky,
2003, em conferência proferida na Fundación para el Estudio de los problemas
de la Infancia, Centro Lidia Coriat, Buenos Aires – link citado abaixo).

Os quadros mais graves descritos são:

» A Psicose infantil é caracterizada por uma desorganização psíquica, que, na


criança, manifesta-se como dificuldade de se separar da mãe e atraso na aquisição do
pensamento abstrato, do faz de conta, podendo gerar prejuízos no desenvolvimento
cognitivo, da linguagem e nos relacionamentos interpessoais. Pode haver ainda
alucinações e/ou delírios, comportamentos estereotipados e ecolalia. Este quadro,
conforme compreendido pela Psicanálise, tem sua origem nas primeiras vivências
da criança e aponta para uma dificuldade de se separar psiquicamente da mãe.

» O Autismo é uma patologia grave que surge até os três anos de idade. A criança
apresenta comprometimento (e às vezes impossibilidade) na interação com o meio.
Os sintomas principais são movimentos estereotipados, respostas inadequadas
a estímulos visuais ou auditivos, grande desorganização em situações que saem
da rotina, dificuldade no desenvolvimento da linguagem e na comunicação,
agressividade, distúrbios no sono e na alimentação. Não existe consenso em relação
à etiologia do autismo. Prefere-se pensar que é uma doença multifatorial, em que
fatores genéticos, hereditários e também psíquicos estejam em jogo.

Psicose Infantil

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-65642000000100012>

Autismo

<http://www.fundamentalpsychopathology.org/art/v08_03/02.pdf>

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A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA │ UNIDADE II

Diagnóstico diferencial da psicose X autismo

<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-65642000000100006&script=sci_
arttext&tlng=es>

Atualmente, os serviços de saúde vêm recebendo um grande número de crianças diagnosticadas


com TDAH ou Transtorno de Deficit de Atenção e Hiperatividade. Os sintomas utilizados
para definir a síndrome são:

Do grupo do Deficit de Atenção.

» Desatenção.

» Dificuldade de concentração.

Do grupo da Hiperatividade.

» Agitação.

» Impulsividade.

Algumas crianças podem apresentar sintomas de um grupo ou combinar ambos. O TDAH pode
levar a dificuldades no relacionamento familiar e social e no desempenho escolar.

Entretanto, é preciso cautela em relação a esse diagnóstico e ao seu tratamento (geralmente


medicamentoso), pois ainda existem muitas lacunas que necessitam de mais investigações. Algumas
questões permanecem sem respostas, tais como: a idade a partir da qual é possível fazer um diagnóstico
seguro, tendo em vista que o psiquismo infantil se encontra em formação e o diferenciamento do
sofrimento neurótico ou ainda traços de personalidade do transtorno. E o que dizer de crianças que
apresentam os sintomas da TDAH em determinados ambientes e em outros não? Até que ponto as
dificuldades de atenção e/ou a agitação não são tentativas de se ajustar a um mundo cada vez mais,
ele próprio, hiperativo? (haja vista a velocidade e quantidade das informações a que se tem acesso
nos meios de comunicação, na internet etc.)

A infância é, portanto, uma fase de formação do psiquismo e, felizmente, com tratamentos


adequados, é possível obter grandes melhoras e até mesmo reverter alguns quadros. Assim, não se
deve trabalhar com “diagnósticos fechados”, nem aí focalizar a intervenção, mas, sim, na criança,
que é única e singular, inclusive no seu sofrimento ou adoecimento.

Este site traz uma conferência proferida pelo psicanalista Alfredo Jerusalinsky, em
2003, na qual ele levanta importantes questionamentos acerca do diagnóstico do
TDAH e o tratamento medicamentoso <http://www.appoa.com.br/noticia_detalhe.
php?noticiaid=35&PHPSESSID=bbea8b84cbb064f37445c2e5eac26344>.

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CAPÍTULO 2
Saúde Mental do Adolescente

Xote das meninas


Luís Gonzaga

Mandacaru O pai leva ao dotô


Quando fulora na seca A filha adoentada
É um siná que a chuva chega Não come, nem estuda
No sertão Não dorme, não quer nada

Toda menina que enjôa Ela só quer


Da boneca Só pensa em namorar
É siná de que o amor Ela só quer
Já chegou no coração Só pensa em namorar

Meia comprida Mas o dotô nem examina


Não quer mais sapato baixo
Chamando o pai do lado
Vestido bem cintado
Lhe diz logo em surdina
Não quer mais vestir chitão
Que o mal é da idade

Ela só quer Que prá tal menina


Só pensa em namorar Não tem um só remédio
Ela só quer Em toda medicina
Só pensa em namorar
Ela só quer
De manhã cedo já tá pintada Só pensa em namorar
Só vive suspirando Ela só quer
Sonhando acordada Só pensa em namorar

A canção Xote das Meninas, de Luís Gonzaga, ilustra uma mudança por que passa a menina
numa determinada fase da vida. Os esforços do pai de curar o “mal” que acomete a filha, ao levá-la
ao médico, são em vão, pois o doutor bem sabe do que se trata e lhe adianta: “o ‘mal’ é da idade” e
acrescenta que para ele “não há um só remédio em toda a medicina.”

Eis que mudanças surgem. O corpo cresce... A voz já não é a mesma. Ora engrossa, ora afina…
Os órgãos sexuais ganham volume e pelos. Não se quer mais saber da boneca... ou do carrinho.
Aquela criança, até então desenvolta com seu corpo, depara-se com uma nova imagem corporal e
novos interesses.

Mas, antes de falar do adolescente, vamos conhecer um pouco sobre como surgiu esse conceito
ou fase.

A palavra “adolescer” deriva do latim e significa “crescer, desenvolver-se” (DICIONÁRIO MICHAELIS).

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A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA │ UNIDADE II

A adolescência nem sempre foi reconhecida como uma etapa do desenvolvimento. Isso se deu
relativamente há pouco tempo, a partir do século XIX, com o surgimento das famílias nucleares
modernas.

Hoje, na nossa sociedade, a adolescência é vista como uma fase específica, ainda que haja divergências
quanto à sua delimitação. Para a Organização Mundial de Saúde (OMS), a adolescência é um período
que vai de 10 a 19 anos. O nosso Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece o período
de 12 a 18 anos.

De qualquer forma, esta é uma fase de grandes transformações. Em poucos anos, um adolescente
pode chegar a engordar 30 kg e crescer 50 cm. E não se trata de um mero aumento do corpo infantil.
Este adquire novas formas, novas características e atributos, às quais é preciso ajustar-se.

Adolescência, Corpo e Sexualidade


Segundo Rassial (1999), o adolescente precisa lidar com uma nova imagem corporal, que é afetada
em quatro modos complementares.

» Pela modificação dos atributos: pelos, silhueta, seios, tamanho etc.

» Pela modificação em seus funcionamentos: menstruação, mudança de voz, marcha,


ereção etc.

» Pela semelhança com o corpo adulto, do genitor do mesmo sexo.

» Pela importância para o olhar do adolescente e do adulto do outro sexo.

Há também o enfraquecimento das referências identificatórias. Se até então, o pai e a mãe eram as
principais figuras das quais a criança retirava suas referências, na adolescência, esses ideais caem
ou se enfraquecem. O jovem começa a perceber que o pai do vizinho é mais rico que o seu, que a
mãe da amiga é mais bonita que a sua etc. Ou seja, as falhas dos pais, como seres humanos que
são, saltam aos olhos antes cegos para elas. O adolescente parte em busca de outras referências. A
adoração e a idealização dos ídolos surgem.

A sexualidade é constitutiva do desenvolvimento psíquico do ser humano. Na adolescência, há uma


espécie de uma “segunda grande onda” da energia sexual que, no período anterior, de latência,
estava deslocada para outras atividades (a aprendizagem, o brincar, o desejo de saber). Com isso, o
adolescente vai deparar-se com questões que se encontravam em suspenso e/ou que não puderam
ser enfrentadas (até pela imaturidade do aparelho psíquico infantil).

O Adolescente e a Loucura
Por ser uma fase que coloca para o jovem uma série de desafios (físicos e psíquicos) aos quais ele
tem que responder sem o até então habitual apoio dos pais, a adolescência é um período propício
para a eclosão de psicopatologias nos sujeitos que possuem alguma fragilidade psíquica. O sujeito

27
UNIDADE II │ A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA

é convocado a realizar escolhas e posicionar-se diante das várias exigências colocadas pela vida,
principalmente no campo do amor e do trabalho. Isso coloca para o adolescente, de forma veemente,
a questão do desamparo, de que todo ser humano padece, mas que, nesta fase, surge em tons mais
intensos. Os jovens conseguirão atravessar esse período de forma mais ou menos turbulenta, a
depender de uma multiciplicidade de fatores como suas vivências infantis, características pessoais,
circunstâncias sociais, ambientais e culturais. Quando há uma fragilidade herdada da infância,
as exigências da vida podem ser maiores que a capacidade do aparelho psíquico de enfrentá-las
e o jovem sucumbe e adoece, seja por meio de um surto psicótico ou do surgimento de sintomas
neuróticos graves. A psicose configura-se num quadro onde há uma desorganização psíquica, com
possibilidade de quebra com a realidade, desenvolvimento de pensamentos delirantes (paranoia) e
deterioração das capacidades cognitivas (esquizofrenia).

O texto a seguir, de autoria de Fernando Cembranelli, psiquiatra e psicanalista,


coordenador médico do hospital-dia A Casa, em São Paulo (Revista O olhar
adolescente, 2006), expõe algumas questões relevantes a respeito do tratamento
da psicose.

Breves notas sobre a psicose


Proposta de tratamento: Animados pela descoberta de novas drogas e pelo
discurso das neurociências, muitos querem fazer crer que há uma chave biológica
para explicar todos os males da alma humana. Porém, a história dos tratamentos
mostra algo bem diferente. Quando a explicação orgânica prevalece, o objetivo do
tratamento passa a ser o de suprimir sintomas e de devolver o indivíduo a um estado
de adaptação e normalidade aparente por meio de fármacos. As narrativas sobre
a própria vida e o próprio sofrimento perdem então qualquer valor; aos poucos,
o paciente acaba renunciando a falar de si, caindo num vazio de sentido que é o
primeiro passo para a cronificação de seu estado.

Mas o medicamento é muito útil em certas situações. Por exemplo, quando se trata
de restaurar o acesso à palavra, nos casos em que a psicose parece impor um estado
de silência, de opacidade e paralisia ante o contato humano. Ele, então, faz ressurgir
a palavra e a torna disponível para esta tarefa de “reconstrução” e a que o psicótico
se dedica.

Um modelo possivelmente eficaz de tratamento é o que se constrói caso a caso,


quando necessário, aliando os benefícios dos fármacos à psicanálise ou psicoterapia.
Modelo que, na prática, não é simples, mas parte do reconhecimento de que a vida
psíquica está sob influência de um duplo determinismo, natural e cultural, que não
a impede de emergir como criação singular.

Depressão na Adolescência
A depressão é um estado patológico em que há perda de vitalidade, falta de estratégias de busca de
prazer, desânimo exagerado a ponto de abandonar atividades que antes proporcionavam grande

28
A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA │ UNIDADE II

prazer. Aqui é necessário estar atento a duas questões: não confundir depressão com tristeza, que é
um sentimento temporário e natural do ser humano, ou com o desinteresse dos jovens por atividades
antes prazerosas, já que o adolescente tende mesmo a abandonar interesses da infância.

Acesse os endereços eletrônicos para mais informações.

<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-166X2006000100003&script=sci_
arttext&tlng=pt>

<http://redalyc.uaemex.mx/redalyc/pdf/307/30701007.pdf>

Transtornos Alimentares
A anorexia e a bulimia são doenças que acometem principalmente jovens do sexo feminino. A
anorexia (do grego an, ausência e órexis, apetite) caracteriza-se por uma perda de peso excessiva
devido à recusa em se alimentar. Há distorção na imagem corporal, com a busca incessante pela
magreza, podendo causar sérias complicações orgânicas, como alterações ou até mesmo interrupção
do ciclo menstrual. Mesmo estando extremamente magras, as jovens se veem gordas e persistem em
dietas muito restritivas. A bulimia (do grego bou, grande quantidade e limos, fome) é caracterizado
por episódios de ingestão exagerada de alimentos, seguidos de atos que visam eliminar o risco de
engordar, como a indução de vômito, o uso de laxantes, jejum e a prática excessiva de exercícios
físicos. Em geral, na bulimia, a imagem corporal não se encontra tão distorcida como na anorexia e
as meninas não atingem uma magreza tão extrema.

É certo que uma baixa autoestima, insatisfação com a imagem corporal e os padrões modernos de
beleza que cultuam a magreza contribuem para o desenvolvimento e o aumento dos transtornos
alimentares nas adolescentes. Entretanto, pesquisas têm demonstrado que a anorexia e a bulimia
estão relacionadas à forma como a jovem vivencia as alterações em seu corpo que adquire
formas femininas, aproximando-o ao de sua mãe. As investigações psicanalíticas têm mostrado
que a origem desses transtornos remonta a relação precoce mãe e filha (primeira infância) e os
processos de identificação (da filha com a mãe), apontando uma dificuldade de separação psíquica
nos primórdios da vida. Assim, a magreza excessiva (e também a obesidade) se configura numa
tentativa de apagamento da feminilidade, da eliminação de qualquer traço que represente uma
indiferenciação com a mãe.

FERNANDES, M. H. Transtornos alimentares: anorexia e bulimia. São Paulo: Casa do


Psicólogo, 2006.

Trecho da dissertação de mestrado de Goulart, M. T. A. Anorexia Nervosa: uma


leitura psicanalítica. Rio de Janeiro: PUC, 2003.

<http://www2.dbd.puc-rio.br/pergamum/tesesabertas/0115556_03_cap_03.pdf>

Vale ressaltar que situações reais adversas, como violência na família, alcoolismo, doenças crônicas,
podem agravar o adoecimento do jovem, mas não são os únicos fatores determinantes. O adoecimento
mental decorre não só de fatores graves, mas também de elementos sutis, os mais diversos a que

29
UNIDADE II │ A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA

talvez jamais se tenha acesso. Assim, o sofrimento de um adolescente que aparentemente “tem
tudo” não pode ser, de forma alguma, desvalorizado e taxado como “frescura”.

Por outro lado, muitas das manifestações dessa fase da vida podem ser confundidas com sintomas
patológicos, tendo em vista que, tal como na psicose, por exemplo, a realidade é modificada: o corpo
muda tanto de imagem quanto de estatuto (RASSIAL, 1999).

Por tudo isso, a melhor conduta de um profissional é ter uma postura cautelosa na hora de
diagnosticar, abordar e tratar o adolescente, considerando a singularidade e especificade de cada
jovem, cada história, cada família.

Gravidez e Adolescência
O texto, a seguir, de Diana Dadoorian, doutora em Psicologia Clínica, levanta uma interessante
questão a respeito da gravidez na adolescência. Mostra que a gestação nesta fase da vida não ocorre
necessariamente por falta de informação, e que um desejo inconsciente de ter um filho pode estar
em jogo, como forma de se afirmar socialmente como mulher.

Desejo de Ser Mãe


A maternidade precoce faz parte de histórias familiares recorrentes e relaciona-se à
afirmação subjetiva e social da feminilidade.

A maioria das abordagens sobre gravidez aponta a desinformação sexual das jovens
como principal causa das preocupantes estatísticas relacionadas ao tema. Mas será
que essa explicação ainda se sustenta? Mesmo com as limitações e as dificuldades
que o nascimento de um filho possa infligir à vida de uma jovem, é bastante comum
ouvir a adolescente dizer que está contente por estar grávida e que quer ter o filho.

A contextualização histórica mostra a influência da cultura na percepção desta


questão. A sociedade do século XIX, por exemplo, relacionava puberdade a
casamento; naquela época, a mulher só era valorizada pela possibilidade de
tornar-se mãe. Com o tempo, o papel social feminino ampliou-se e os estudos e
profissionalização passaram a adiar o casamento e a maternidade. Por que, então, as
adolescentes continuam engravidando?

Este foi o foco da pesquisa que realizei, em 1993, com adolescentes grávidas de
classes populares no Instituto Fernandes Figueira, Rio de Janeiro. Nesse estudo,
publicado no livro Pronta para voar (Rocco, 2002), privilegiei o discurso das jovens
sobre seu estado e as conclusões foram surpreendentes: a gravidez é desejada por
elas. Na investigação do significado da gestação, destacam-se entre os principais
fatores os biológicos e os não biológicos, nos quais se inserem os aspectos culturais
e psicológicos.

Com as transformações orgânicas da puberdade, surge o interesse pelo sexo genital


e o impulso de testar a fertilidade, assim como o risco da gravidez que denomino
“hormonal”. Quando isso ocorre, dois desfechos colocam-se para a jovem: o desejo

30
A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA │ UNIDADE II

de não ter o filho, expresso no aborto, e o de tê-lo, situado na maternidade. O destino


da gestação está relacionado, de forma intrínseca, aos aspectos psicossociais de
cada família.

No Brasil, a gravidez na adolescência não parece ser considerada um problema


tão grande para as garotas de classes populares, como o é, em geral, para a
classe média. No caso das primeiras, o desejo de ter o filho é predominante. A
repetição da maternidade na adolescência é uma constante na história das
famílias das entrevistadas. Para muitas jovens, ser mulher ainda equivale a ser
mãe. Surge, assim, o trinômio adolescente-mãe-mulher, em que a gravidez é via de
acesso à feminilidade. O tornar-se mãe passa a ser uma forma de afirmação social e
psicológica, uma espécie de maternidade social.

Durante a investigação, as jovens mães relataram que o filho representa “tudo” para
elas. A criança é, portanto, depositária de muitas expectativas: terá o que elas, em sua
maioria, não tiveram, como estudo completo, perspectiva de trabalho e até mesmo
uma família. A relação mais intensa, contudo é a estabelecida entre as adolescentes
e a própria mãe. As garotas repetem o modelo feminino, segundo o qual ser mulher
está associado a ser mãe jovem.

Quanto às adolescentes de classe média, observa-se, em geral, maior resistência ao


desejo de ter um filho nesta fase da vida. A pressão social familiar expressa-se de
forma mais enfática do que nas de classes populares, sob os argumentos do estudo,
do ingresso em uma universidade, da garantia de um bom emprego futuro etc. Isso
lhes possibilita viver de modo mais prolongado sua adolescência, ao contrário das
de classes mais baixas em que a maternidade interfere nesse ciclo. Logo, surgem
para elas outros objetos de desejo capazes de suprir a carência afetiva, e o desejo de
ter um filho pode ser adiado para a vida adulta.

Com esta análise, é possível dizer que as causas da gravidez na adolescência não se
referem de maneira exclusiva à desinformação sexual, mas ao desejo inconsciente
de ter um filho, aliado aos valores, às demandas e às fantasias socioculturais. Ele
está inscrito no projeto de vida de cada mulher, com variadas formas de expressão,
sendo o produto da elaboração individual dos modelos e representações próprias
de sua cultura. Bertrand Cramer, no livro Segredos femininos de mãe para filha
(Artes Médicas, 1996), descreve a transmissão subjetiva da feminilidade de modo
universal. As mães transmitem para as filhas, desde o berço, um complexo sistema
de valores e sua forma de ser mulher.

Fonte: Revista O olhar adolescente, 2006.

O Adolescente e as Drogas
A dependência química tem sido tratada como uma questão de saúde mental. Por estar num período
de transição identitária – nem criança, nem adulto –, o adolescente parte em busca de novos lugares
subjetivos e sociais, fora da família. E o álcool e a droga podem configurar-se como uma tentativa de
encontrar um lugar, ainda que temporário e ilusório.

31
UNIDADE II │ A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA

Segundo dados da OMS, cerca de 1,7 milhões de adolescentes morrem anualmente no mundo,
principalmente por causas evitáveis, como, por exemplo, acidentes, suicídio, complicações
decorrente de gravidez, violência, uso de droga e álcool. O consumo do álcool é particularmente
preocupante por se tratar de uma substância lícita que, muitas vezes, representa um “ritual de
passagem” para a vida adulta. Na maioria dos casos, o uso do álcool/droga dá-se por curiosidade,
experimentação, entretanto, muitos jovens acabam desenvolvendo um padrão de consumo abusivo,
que pode chegar a uma dependência.

Às vezes, é difícil distinguir o uso recreativo do abusivo. Em geral, considera-se uso abusivo quando
há algum tipo de prejuízo à saúde física e mental do sujeito, às relações sociais, às atividades e
obrigações do cotidiano. Já a dependência caracteriza-se pela falta de controle em relação ao uso da
substância, ou seja, há o consumo compulsivo mesmo quando os efeitos nocivos são importantes,
com o abandono de atividades e interesses antes valorizados em prol do uso da droga.

O uso crônico de substâncias psicoativas pode causar tolerância: necessidade de consumo de doses
cadas vez maiores, para obter o efeito desejado, e síndrome de abstinência: surgimento de sintomas
físicos e psíquicos quando o uso da droga é reduzido ou interrompido.

Não é possível falar de um padrão de evolução do uso que, supostamente, começaria de um consumo
recreativo, passando pelo uso abusivo até chegar à dependência. Cada pessoa estabelece uma relação
particular com o álcool/droga, que vai ser influenciada por uma série de fatores, como história e
características pessoais, aspectos sociais e propriedades farmacológicas da substância.

O tratamento que tem se mostrado mais eficiente é o ambulatorial realizado por equipe multidisciplinar
em centros especializados, com a adesão do paciente. No caso específico do adolescente, é fundamental
um trabalho de apoio e suporte com as famílias, que muitas vezes, também precisam de tratamento. A
internação só é indicada nos casos de desintoxicação, risco de suicídio, agressividade ou, ainda, para
preservar a vida/saúde quando a pessoa se encontra muito debilitada.

Sobre concepções e práticas atuais em torno da questão do adolescente e


dependência química:

<http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?pid=MSC000000008200500020006
6&script=sci_arttext>

Sobre o adolescência e violência – a importância da canalização da violência e


o papel dos adultos.

<http://www.scielo.br/pdf/agora/v9n1/a09v9n1.pdf>

LEVINSKY, D. L. (org.) Adolescência: pelos caminhos da violência. São Paulo: Casa


do Psicólogo, 1998.

Sugestão de filmes:

» Diário de um adolescente (Direção: Scott Kalvert, 1995, EUA) – aborda a


história de um jovem que abandona o basquete, mergulha no mundo da
droga e, para manter seu vício, comete delitos e se prostitui.

32
A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA │ UNIDADE II

» O bicho de sete cabeças (Direção: Laís Bodansky, 2000, Brasil) – inspirado


numa história real dos anos 1970, mostra a vida de um adolescente e sua
conturbada relação com os pais. O jovem é internado em um manicômio
por conta do uso de maconha e lá testemunha atrocidades cometidas
contra os pacientes, como o uso abusivo de medicamentos, violência e
maus-tratos.

» Traffic (Direção: Steven Soderbergh, 2000, EUA) – retrata a indústria


do tráfico de drogas, da produção ao consumidor final, a partir de três
histórias interligadas.

33
CAPÍTULO 3
Saúde Mental na Terceira Idade

Epitáfio
(Sérgio Brito)

Devia ter amado mais Devia ter complicado menos


Ter chorado mais Trabalhado menos
Ter visto o sol nascer Ter visto o sol se pôr
Devia ter arriscado mais Devia ter me importado menos
E até errado mais Com problemas pequenos
Ter feito o que eu queria fazer... Ter morrido de amor...

Queria ter aceitado Queria ter aceitado


As pessoas como elas são A vida como ela é
Cada um sabe a alegria A cada um cabe alegrias
E a dor que traz no coração... E a tristeza que vier...

O acaso vai me proteger O acaso vai me proteger


Enquanto eu andar distraído Enquanto eu andar distraído
O acaso vai me proteger O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar... Enquanto eu andar...

A canção acima retrata as reflexões de uma pessoa que, ao fazer um balanço de sua vida, chega à
conclusão de que poderia ter vivido mais intensamente. O tempo verbal que predomina é o pretérito
imperfeito (do latim im+per+feito: não feito): “devia ter, queria ter”, no sentido do expressar uma
situação hipotética irreal, não realizada. E quando há um verbo no futuro, este se relaciona ao acaso:
“o acaso vai me proteger”.

A terceira idade, ou velhice, é uma fase da vida geralmente associada com iminência da morte,
improdutividade, adoecimento, falta de sexualidade. Entretanto, com os avanços na medicina, a
informação e a conscientização da importância de se ter bons hábitos (alimentação, atividade física,
combate ao stress), as pessoas estão vivendo cada vez mais e com mais qualidade de vida.

Felizmente a terceira idade não é necessariamente um tempo de epitáfio, de se lamentar pelas


coisas não realizadas, de pretéritos imperfeitos ou de um futuro incerto. Cada vez mais, temos visto
exemplos de pessoas idosas que usufruem de uma satisfatória qualidade de vida.

Como em qualquer período da vida, o envelhecimento implica perdas e ganhos. Perde-se o vigor
corporal, ganha-se em experiência de vida e maturidade. Perde-se a potência sexual, ganha-se na
seletividade dos relacionamentos afetivos e sociais, na ternura. Perde-se a produtividade laboral,
ganha-se tempo para a dedicação a outros interesses: família (netos), autocuidado, voluntariado,
hobbies etc.

34
A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA │ UNIDADE II

Não é fácil delimitar a terceira idade. Quando começa a velhice? O que a define? Segundo Secco
(1999), apesar de haver algumas mudanças biológicas evidentes, o conceito de envelhecimento
também é marcado por determinantes culturais, que variam entre diferentes indivíduos, culturas e
períodos históricos.

A OMS instituiu a idade de 1960 anos para designar o início do envelhecimento, ressaltando que

… é importante reconhecer que a idade cronológica não é um marcador preciso


para as mudanças que acompanham o envelhimento. Existem variações
significativas relacionadas ao estado de saúde, participação e níveis de
independência entre pessoas mais velhas que possuem a mesma idade. Fazer
vigorar políticas sociais abrangentes baseadas somente na idade cronológica
pode ser discriminatório e contraproducente para o bem-estar da terceira
idade. (OMS, 2005, p. 6).

O aumento da população de idosos é um fenômeno que vem ocorrendo principalmente nos países
desenvolvidos e também no Brasil. Segundo a OMS, entre 1980 e 2000, a população de pessoas com
60 ou mais anos cresceu em 7,3 milhões, acompanhado pelo aumento da expectativa de vida que é
atualmente de 72 anos, segundo dados do IBGE. Para 2025, a previsão é que o Brasil ocupe o sexto
lugar dentre os países do mundo em número de idosos e que, pela primeira vez na história, haja mais
idosos do que crianças no planeta. Dessa forma, é fundamental que as autoridades e os serviços de
saúde se preparem para oferecer um atendimento de qualidade e que atenda às necessidade dessa
faixa da população, pois não basta viver muito, é preciso viver bem.

Estudos (NOVAES, 1995) postulam que a velhice não acrescenta aspectos à personalidade da
pessoa, apenas favorece e reforça os mecanismos defensivos já existentes. Assim, a forma como
uma pessoa lida com as limitações advindas com a idade (doenças, aposentadoria, redução ou perda
do vigor físico e sexual, morte de amigos e familiares) vai depender das características pessoais
(orgânicas, psíquicas, sociais). É claro que uma pessoa com idade avançada tende a passar por mais
situações adversas. Ainda assim, isso não leva necessariamente a um quadro patológico. Desse
modo, talvez seja melhor falar de envelhecimentos, ou terceiras idades, tendo em vista que cada
sujeito envelhecerá a seu modo.

De acordo com Novaes, o que diferencia os idosos é a capacidade de manter uma vida em relação,
ou seja, continuar estabelecendo laços sociais e afetivos: “O investimento fora do EU seria a
condição de manutenção de continuidade subjetiva, envolvendo atividades afetivas e cognitivas
que levam à procura de interesses, motivações e de razões para viver.” Quando a manutenção dos
laços encontra-se prejudicada, há o enrijecimento psíquico, com o fortalecimento de mecanismos
defensivos primitivos, que pode levar à dependência afetiva, o recolhimento narcísico (isolamento),
a idealização da infância e do passado, sentimentos de frustração, depressão, dentre outros.

Os principais quadros de adoecimento mental que atingem os idosos são a depressão e a demência.
Em geral, as demais patologias (psicose e transtornos) costumam aparecer na adolescência ou idade
adulta, sendo pouco comuns nessa fase. O que geralmente pode ocorrer é uma piora num quadro já
existente, quando não tratado adequadamente, ou pelo surgimento de dificuldades que surgem ou sou
intensificadas na terceira idade (problemas de saúde, aposentadoria, morte de entes queridos etc.).

35
UNIDADE II │ A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA

O mesmo ocorre em relação à dependência química. Pode haver aumento no uso de álcool (ou
do fumo) mas dificilmente (o que não quer dizer que seja impossível), uma pessoa que não tinha
o costume de ingerir bebidas alcoólicas (ou fumar) iniciará um uso compulsivo nesta fase. De
qualquer forma, os indivíduos que fazem uso abusivo ou que são dependentes de álcool, drogas ou
fumo, costumam ter que lidar com os comprometimentos à saúde que essas substâncias produzem.
Vale lembrar ainda que o alcoolismo, o tabagismo e a drogadicção contribuem para a redução da
expectativa de vida do indivíduo. Assim muitos não atingem a terceira idade.

Com o surgimento de doenças físicas ou psíquicas, muitos idosos passam a tomar medicamentos de
forma abusiva, o que pode desencadear uma dependência química nesta fase da vida.

Envelhecimento e Depressão
Muitas vezes, um quadro de depressão na terceira idade pode ser confundido com preconceitos
ou manifestações tidas como próprias desse período, como, por exemplo: sintomas somáticos,
hipocondria, desinteresse, desânimo, alterações no sono, na alimentação, dentre outros. Assim,
apenas uma equipe especializada, a partir de uma investigação cuidadosa e dirigida, terá condições
de melhor avaliar o quadro daquele paciente.

Envelhecimento e Demência
A demência caracteriza-se por um quadro de perda cognitiva, em geral, gradual e irreversível, cujos
sintomas mais comuns são alterações em funções como memória, linguagem e orientação tempo-
espacial, confusão mental, além de comportamentos inadequados (agressividade, inquietação,
impulsividade, desinibição sexual, dentre outros). Os casos mais graves podem levar a problemas
na fala, na marcha, nas funções motoras, o que pode levar a uma falta de autonomia e a necessidade
de cuidados 24 horas por dia. As pessoas idosas têm mais chances de desenvolver um quadro
demencial, que pode estar relacionado com patologias neurológicas como doenças de Alzheimer, de
Parkinson e esclerose múltipla.

Política de Saúde para a Terceira Idade da OMS:

<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/envelhecimento_ativo.pdf>

Site da Universidade Aberta da Terceira Idade da Universidade do Estado do Rio de


Janeiro (UERJ):

<http://www.unati.uerj.br>

Artigo que aborda o trabalho com encontros transgeracionais como forma de


incrementar a integração social do idoso:

<http://www.unati.uerj.br/tse/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-
59282002000200002&lng=pt&nrm=iso>

36
A SAÚDE MENTAL EM FASES DECISIVAS DA VIDA │ UNIDADE II

Política de Saúde do Idoso (Portaria 1395/GM)

<http://www.ufrgs.br/3idade/portaria1395gm.html>

Livro que fala do impacto na família que cuida de um idoso em processo de demência
– Caldas, C. P. (2002). O idoso em processo demencial: o impacto na família. Em
Minayo, M. C. S. & Coimbra Jr., C. (org.) Antropologia, saúde e envelhecimento, pp.
51-71. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.

37
SAÚDE MENTAL NO UNIDADE III
ADULTO

CAPÍTULO 1
Desafios da Saúde Mental na vida
Adulta

De modo geral, a fase adulta compreende as idades de 18 a 60 anos. Como qualquer outra época
da vida, é uma fase de desafios, problemas e aprendizagem. Entre os principais desafios estão a
construção de vínculos como o casamento e a paternindade/maternidade, e os avanços na vida
profissional. Tudo isso envolto por uma sociedade complexa. As dificuldades para enfrentar tais
desafios podem gerar sofrimento mental dos mais variados.

A seguir, iremos descrever três importantes problemas de saúde mental enfrentados pelos adultos.
A proposta aqui não será discutir a fundo cada questão, mas tomar conhecimento de problemáticas
importantes nessa faixa etária. Obviamente, a lista dos transtornos mentais na vida adulta é
extensa. Aqui abordaremos dois dos transtornos mais frequentes nos serviços de saúde mental
– a esquizofrenia e o uso de substância psicoativa. Além disso, também abordaremos a
problemática do luto e perdas. A vivência das perdas é uma causa de sofrimento recorrente na
vida adulta, visto que é inevitável enfrentar situações como o divórcio, a perda de um emprego, a
morte de um ente querido, por exemplo.

O objetivo deste capítulo é compreender esses três quadros de comum ocorrência na saúde mental
dos adultos.

Luto e perdas
A vida envolve uma série de situações, experiências e desafios que incluem aprender a lidar com
alegrias, ganhos, mas também perdas. Assim, a dinâmica do dia a dia exige um processo contínuo
de mudanças, ajustes e adaptações. A perda de um ente querido em decorrência de falecimento ou
separação, a perda de um objeto valioso ou de um projeto importante são alguns dos tipos de perdas
comuns à nossa vida. Todos nós passamos por isso, porém cada um reage de uma maneira diferente.
Essa reação depende de uma série de fatores, tais como a história de vida individual, a maturidade
emocional e a bagagem cultural. Mas também depende de como a perda se deu, se foi temporária ou
permanente, se foi esperada ou repentina.

38
SAÚDE MENTAL NO ADULTO │ UNIDADE III

Por exemplo, um atleta de 25 anos que enfrentou a perda de uma perna em um acidente de carro
pode lidar com a situação com frequentes rompantes de agressividade, colocando em risco sua
própria vida com tentativas de suicídio. Já uma mulher de 50 anos que sofreu a perda repentina
de seu marido por um ataque cardíaco pode desenvolver um grave quadro depressivo. Reações
semelhantes podem ser decorrentes de situações como o divórcio, a perda de um emprego ou a
falência financeira.

O modo como cada pessoa reage a perdas depende da capacidade individual interna de lidar com
tamanhos desafios. A cultura também tem um papel importante. Por exemplo, em partes da Índia,
onde a maioria da população segue a religião budista, acredita-se que o sofrimento desta vida será
aliviado na próxima encarnação. Dessa forma, nessa cultura as pessoas estão mais preparadas para
lidar com a morte com bem menos sofrimento (MORRISON-VALFRE, 2009).

Assim, a reação de cada sujeito depende de como a perda é percebida, valorizada e suportada. Aqui
definiremos perda como o estado no qual algo valioso, anteriormente presente, é modificado ou
perdido, e não pode mais ser visto, sentido, conhecido ou experienciado. (MORRISON-VALFRE,
2009). O estado de perda pode ser real, potencial ou imaginado. Ou seja, pode ser real como o
caso de uma família que perdeu sua casa e seus pertences em um incêndio, ou potencial como no
caso de um trabalhador que está assistindo seus colegas serem despedidos do emprego e corre o
risco também de perder o dele. E ainda, o caso de uma jovem recém-casada que perdeu o seio em
decorrência de um câncer e teme perder o marido acreditando que ele a irá rejeitar por esse motivo.
Nesse caso, a ameaça de perda do marido é imaginada, mas decorrente de uma perda real. Em todos
esses casos, o estado de perda é vivido com intenso sofrimento.

Portanto, o profissional de saúde mental deve estar atento em considerar o sentido que cada
pessoa dá para sua experiência de perda, entendendo que o sofrimento dessa pessoa precisa ser
compreendido de modo individualizado, para que o cuidado e apoio necessários sejam apropriados
(MORRISON-VALFRE, 2009).

A famosa psiquiatra Kubler-Ross elaborou uma teoria sobre os estágios da perda. Ela descreveu
cinco estágios normalmente vividos por aqueles que passam por uma perda significativa, tais como
a morte de alguém, a falência financeira, a perda do emprego, o divórcio, a perda de liberdade,
incluindo a aceitação da própria morte no caso de pacientes terminais.

A cinco fases do processo de perda/luto são:

Negação → Raiva → Depressão → Negociação e Diálogo → Aceitação

O estágio de Negação
O primeiro estágio no processo de luto é a negação. Muito frequentemente, esse estágio se inicia com
o sentimento de choque, no qual o sujeito rejeita o estado da perda e recusa aceitar que perdeu algo
tão importante em sua vida. Nesse período, a pessoa pode continuar vivendo como se a perda não
tivesse de fato ocorrido. Seu discurso tende a seguir ideias de negação em que se ignora a experiência

39
UNIDADE III │ SAÚDE MENTAL NO ADULTO

de perda vivida, tais como: “Isso não pode estar acontecendo comigo” ou “Eu estou bem”. Muitas
vezes, essa fase tem a função de dar ao indivíduo tempo para que se prepare emocionalmente para
enfrentar a dor que está por vir. A negação é um mecanismo de defesa psicológica do sujeito para
ele lidar com momentos de forte sofrimento.

O estágio de Raiva
O estágio seguinte ocorre quando o mecanismo de defesa da negação não mais se sustenta. O sujeito
reconhece que não há mais como negar o ocorrido. Assim, sentimentos de revolta e raiva podem
aparecer. A raiva pode se manifestar de diferentes modos e ser direcionada a si mesmo ou aos
outros ao seu redor. O discurso, nesse caso, segue as seguintes ideias: “Por que eu?”, “Isso não é
justo!”, “Alguém é culpado por isso!”. Nessa fase, há uma tendência em direcionar a raiva a alguém
enquanto culpado pela perda e pela dor.

O estágio de Negociação
O terceiro estágio envolve a experiência de esperança. O sujeito passa a acreditar que pode mudar
o curso dos fatos e lutar contra o ocorrido, postergando a possibilidade de perda. Por isso, há a
tentativa de barganha, de negociação com a realidade. O discurso passa a ser: “Eu farei qualquer
coisa para mudar o ocorrido” ou “Eu farei tal coisa, se for possível mudar os fatos...”. Nessa fase, em
pacientes terminais há o discurso “Eu sei que vou morrer, mas se eu pudesse fazer algo para viver
um pouco mais”. Ou no caso de uma separação amorosa: “Ok, vamos nos separar, mas podemos
continuar amigos?” Ou seja, nessa fase, em decorrência da esperança, tenta-se fazer uma negociação
para mudar a realidade.

O estágio de Depressão
O estágio da depressão chega após o indivíduo perceber que não adianta negar, nem sentir raiva
ou negociar, pois a realidade é sim de intensa dor e sofrimento. Nesse momento, há a perda de
esperança e se espera pelo pior. O sofrimento é intenso, muitas vezes ocorrendo certa desconexão
afetiva com as pessoas à sua volta. Essa fase é uma aceitação embora acompanhada de profunda
dor e tristeza. Por vezes, também acompanhada de medo, culpa e incertezas. O discurso passa a se
concentrar em: “Vou morrer mesmo, pra que lutar?”, “Já perdi mesmo, pra que continuar vivendo?”
ou ”Desisto, não há mais nada a fazer”. Pode haver tendências ao suicídio nesse período, já que há
descrença e desesperança.

O estágio de Aceitação
Por fim, começam-se a aceitar os trágicos fatos. Nessa fase, se inicia o restabelecimento do equilíbrio
emocional e a força para continuar vivendo e superar as dificuldades. O sujeito passa a compreender

40
SAÚDE MENTAL NO ADULTO │ UNIDADE III

que a perda ocorrida é uma realidade a ser aceita, pois a vida continua. Assim, ele passa a reinvestir
suas energias nas pessoas e nas atividades. E, então, ele muda seu discurso para ideias de aceitação,
tais como: “Tudo vai ficar bem”, “Se não posso mudar os fatos, terei que aprender a lidar com eles”
ou “Não posso lutar contra o que vai acontecer, mas posso me preparar para isso”.

Em todas as fases, é importante que o indivíduo receba apoio emocional e cuidado dos amigos
e familiares. Ressalte-se que essas fases não necessariamente ocorrem nessa ordem e não são
experimentadas por todas as pessoas. A importância desta teoria, porém, nos mostra que a perda é
um processo complexo, que envolve inúmeros elementos e deve ser considerada com cuidado por
profissionais da saúde mental. Destaque-se, também, que muitos outros teóricos desenvolveram
teorias sobre o assunto, mas este ganhou forte destaque internacional.

Desse modo, a teoria de Kubler-Ross ilustra a complexidade desse processo tão natural na vida, que
é o processo de perda. E, assim, nos mostra a importância da perda enquanto causa de sofrimento
na vida de todos nós.

Elizabeth Kubler-Ross foi uma psiquiatra suíça, pioneira nas pesquisas sobre
pacientes terminais. Sua teoria sobre os cinco estágios de luto teve grande impacto
nos estudos da saúde. Ela foi considerada pela Revista Americana Time uma das
maiores pensadoras do século XX.

Para saber mais sobre a teoria de Kubler-Ross, sugerimos a seguinte leitura:

KÜBLER-ROSS, Elisabeth. Sobre a morte e o morrer: o que os doentes têm para


ensinar aos médicos, enfermeiras, religiosos e aos seus próprios parentes. São Paulo,
Martins Fontes, 1996.

Uso de substância psicoativa


A prática de utilizar substâncias psicoativas para buscar sensação de prazer é algo muito antigo
na história da humanidade. Certos animais já foram observados comendo plantas específicas que
mudam seus comportamentos. O álcool, por exemplo, tem tido um papel de destaque em diversas
culturas pelo mundo. Além disso, várias drogas foram desenvolvidas como consequência das
tentativas do homem de criar curas para doenças (MORRISON-VALFRE, 2009).

Para abordar esta temática de saúde mental é necessário compreender a diferenciação fundamental
entre o que é uso e abuso de substâncias psicoativas. O uso de substâncias psicoativas é definido
quando uma pessoa faz uso de drogas com o objetivo de trazer algum tipo de alteração em seu aparelho
sensitivo, porém esse uso não afeta sua habilidade de realizar as atividades do dia a dia. No entanto,
no uso abusivo de substâncias psicoativas ocorre um prejuízo nas atividades diárias do indivíduo
e o uso de drogas transforma-se na sua atividade diária mais importante, trazendo sofrimento,
comprometendo e prejudicando os outros aspectos de sua vida, tal como seu funcionamento social
e profissional. (MORRISON-VALFRE, 2009).

41
UNIDADE III │ SAÚDE MENTAL NO ADULTO

Muitas pessoas fazem uso de álcool, tabaco e outras substâncias sem que ocorra prejuízo nas suas
atividades e responsabilidades do dia a dia. No entanto, outras fazem uso abusivo da droga e entram
em um estado de dependência. A dependência acontece em um processo gradativo no qual se inicia
com o uso e apreciação da substância. O desejo de repetir a sensação de prazer causada pela droga
faz o indivíduo repetidamente utilizá-la. Assim, ele começa a querer usar repetidamente. Mais tarde,
essa pessoa prefere sentir o prazer de utilizar a droga a qualquer outra atividade. Rapidamente,
cria-se um hábito de uso excessivo e passa-se a ignorar as responsabilidades do dia a dia. A pessoa
entra em um ritmo de compulsão, com dificuldades de controlar a quantidade consumida. O
comportamento de negação é comum, no qual se ignora ou se nega a existência do problema, e
não se dá ouvidos aos comentários das pessoas ao seu redor sobre o assunto. Durante esse período,
o indivíduo pode se tornar intoxicado. A intoxicação é um estado de transformação psicológica e
comportamental resultante da exposição a certa substância. Pessoas no estado de intoxicação por
substâncias psicoativas costumam apresentar grandes oscilações emocionais, falta de bom senso,
redução de pensamento crítico. Frequentemente, estão prontos para iniciar uma discussão ou briga
e apresentam agitação. Obviamente, esse quadro varia de pessoa para pessoa, mas, de modo geral,
essas são as características (MORRISON-VALFRE, 2009).

Durante a dependência, os episódios de intoxicação aumentam à medida que o organismo tenta


compensar, adaptando-se à substância ingerida. Desse modo, o estado de tolerância se desenvolve
na medida em que maiores porções da substância são necessárias para produzir o mesmo efeito que
uma única dose produz. A tolerância física ocorre quando o corpo se ajusta para viver e funcionar
com a substância em seu sistema. A tolerância psicológica se desenvolve quando o indivíduo
sente que ele não pode viver sem o uso de tal substância. Conforme o tempo vai passando, e o
grau de dependência se agrava, a tolerância para com a substância pode se tornar extremamente
alta. Com frequência, a necessidade da substância leva a perda de controle sobre seus próprios
comportamentos. O sujeito passa a dedicar todos os seus dias para um único objetivo: conseguir a
substância almejada. E, assim, todo o seu esforço, energia e atividades são focados nesse objetivo
(MORRISON-VALFRE, 2009).

As consequências do abuso de drogas são graves. Enquanto os indivíduos progridem com o uso da
substância, seus vínculos sociais, profissionais e familiares tendem a diminuir consideravelmente.
Há tendência para o isolamento e comportamentos como faltas ao trabalho e até perda do emprego.
Envolvimento com problemas judiciais também podem ocorrer. Algumas pessoas chegam a esgotar
seus recursos financeiros para obter altas quantidades de droga. Acidentes, crimes, violência
doméstica, prostituição, suicídio e doenças são alguns riscos associados ao uso abusivo de drogas
(MORRISON-VALFRE, 2009).

Uma intervenção importante no processo de tratamento é a desintoxicação. Esse processo consiste


na retirada da substância do organismo do usuário, sob acompanhamento médico, e muitas vezes
exige internação devido às potenciais complicações que podem ocorrer pela retirada da substância do
organismo. Muito frequentemente, medicamentos são dados ao indivíduo para aliviar desconfortos
físicos e prevenir complicações. Uma vez que a pessoa está fisicamente livre das substâncias e sem
usar, ou seja, praticando abstinência, o foco do tratamento passa a ser os problemas emocionais e
de saúde mental decorrentes do uso abusivo. A incidência de transtornos psiquiátricos é muito alta
entre usuários de substâncias psicoativas. Ansiedade e depressão são as mais comuns encontradas

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SAÚDE MENTAL NO ADULTO │ UNIDADE III

em pessoas que abusam de drogas. Outro aspecto de extrema importância no tratamento é assistir
os indivíduos em sua mudança de comportamento. Esta, muitas vezes, é a mais difícil etapa.
Psicoterapias individuais e também familiares são extremamente úteis nesta fase. Psicoterapias em
grupo e o uso de medicamentos durante esse processo também têm papel importante. A intenção é
reabilitar o indivíduo para que ele consiga reestabelecer seus vínculos sociais e familiares e retomar
suas atividades do dia a dia, sem que para isso necessite fazer uso de drogas.

Assista a um dos filmes a seguir. Busque identificar nos personagens indicadores


de dependência, intoxicação e tolerância (física e psicológica). Descreva quais
comportamentos são manifestações de tais estados.

» Requiem para um sonho (EUA, 2000). Direção Darren Aronofsky.

» Trainspotting – Sem limites (Reino Unido, 1996). Direção Danny Boyle.

As Psicoses
Entre os transtornos de saúde mental, destacam-se como os mais graves as psicoses. A perda
de contato com a realidade e o comprometimento do funcionamento mental e social são suas
características mais típicas. A mais conhecida e mais comum psicose é a esquizofrenia, a qual afeta
cerca de 1% da população mundial.

A esquizofrenia é uma doença crônica para a qual não existe cura e seu tratamento deve ser
baseado no controle de seus sintomas e na busca de uma melhor qualidade de vida ao portador desse
transtorno. Entre os sintomas da esquizofrenia estão: perda de contato com a realidade, distorção e
desorganização do pensamento, alucinações, delírios, pensamentos paranoicos, afeto inadequado,
falta de pensamento crítico e comportamentos bizarros, ritualísticos e repetitivos.

Os primeiros sintomas da esquizofrenia começam a aparecer quando a pessoa está em torno dos 20
anos de idade. O prognóstico para as pessoas com esquizofrenia é melhor se o tratamento iniciar tão
logo se identifiquem os primeiros sinais da doença. Muitos casos em que o tratamento se iniciou cedo
o sujeito foi capaz de resgatar vínculos importantes como iniciar trabalho, casar e constituir família.
No entanto, inúmeras pessoas apenas começam a receber cuidado após décadas do transtorno se
manifestar, o que, infelizmente, provoca uma cronificação do quadro.

Famílias com um membro com esquizofrenia enfrentam enormes desafios e demandas, pois
necessitam de frequente orientação e suporte para aprender a prestar os cuidados corretos ao seu
integrante em sofrimento. Além disso, ter um integrante com um transtorno tão grave afeta todo o
grupo familiar, que, muitas vezes, também necessita de acompanhamento psicológico.

Os vários tipos de psicoses e esquizofrenia variam de acordo com a combinação dos sintomas
apresentados. Por isso, descrevemos a seguir os principais grupos de sintomas presentes nesse tipo
de transtorno:

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UNIDADE III │ SAÚDE MENTAL NO ADULTO

» Sintomas que afetam a percepção: estão relacionados ao modo como o sujeito


percebe o mundo ao seu redor. A esquizofrenia pode gerar graves distorções da
percepção como, por exemplo, a alucinação. Nesse caso, o sujeito tem percepções
sem estímulos externos, ou seja, percepções não provenientes da realidade. As
alucinações podem estar relacionadas a cheiros, sons, gostos, visões e tato. Por
exemplo, o sujeito pode ouvir vozes ou enxergar pessoas que não existem.

» Sintomas que afetam o funcionamento cognitivo/intelectual: nesse caso,


pode haver comprometimento da atenção, memória e uso da linguagem. Ocorre uma
interpretação errônea dos fatos da realidade. Um exemplo desse tipo de sintoma
são as ideias autorreferentes, nas quais o sujeito acredita que pessoas ou os meios
de comunicação estão falando sobre ele. Em termos de linguagem, podem ocorrer
inúmeros comprometimentos, tais como: mutismo, perda de associação, fala sem
sentido, falta de conexão entre os assuntos, dificuldade de expressar e compreender
ideias abstratas, repetitividade do discurso.

» Sintomas que afetam o pensamento: pobreza de pensamento, repetitividade


das ideias, falta de capacidade de produzir novos pensamentos ou de seguir uma
corrente de ideias, pensamento confuso e desorganizado. Por exemplo, quando
uma pessoa com o pensamento confuso se comunica utiliza fala desconexa e sem
sequência lógica.

» Sintomas que afetam as emoções: pode haver a predominância de emoções


inapropriadas de acordo com o contexto, como, por exemplo, a expressão de apatia
(desinteresse e indiferença). Pode também ocorrer dificuldade para demonstrar o
que se sente.

» Sintomas que afetam os comportamentos: muitas vezes a alucinação auditiva


pode gerar diversos comportamentos bizarros e inapropriados. Por exemplo,
quando o sujeito escuta uma voz que lhe ordena fazer algo, gerando comportamentos
impulsivos. Outra característica pode ser o comportamento errante, no qual o sujeito
sai a caminhar pela rua sem destino específico, muitas vezes apenas seguindo o
comando da voz que escuta. Essas situações tendem a colocar o sujeito em risco,
fazendo-o caminhar no meio da rua, entrar na casa de pessoas desconhecidas etc.
Outros sintomas podem incluir: comportamento agitado, retraído, risco de suicídio,
ato de falar sozinho em voz alta em lugar público e rituais.

» Sintomas que afetam a convivência social: isolamento, identidade de gênero


confusa, comportamentos socialmente inapropriados, como despir-se em público,
sentimentos persecutórios em relação às outras pessoas – sentir que os outros à sua
volta estão falando dele.

Assim, podemos observar que a esquizofrenia afeta de forma grave praticamente todos os aspectos
da vida do sujeito. Suas atividades profissionais, seus vínculos sociais, sua capacidade de realizar
atividades simples do dia a dia, como higiene básica e se alimentar, tudo isso pode ser comprometido
com esse transtorno mental. O tratamento, portanto, é essencial para permitir que muitos pacientes
consigam recuperar várias dessas atividades.

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SAÚDE MENTAL NO ADULTO │ UNIDADE III

Como já abordado neste Caderno, o tratamento de um transtorno mental não pode simplesmente ser
baseado em medicamentos psiquiátricos. Certamente essa é parte importante do cuidado à pessoa
com esquizofrenia, mas seu tratamento deve incluir terapias ocupacionais, orientação aos familiares,
psicoterapia, entre outras ações de promoção da saúde. Além disso, destaca-se a importância de
que o tratamento ocorra dentro da própria comunidade, incentivando-se a preservação dos laços
sociais, familiares e comunitários.

Fique atento para um dos maiores preconceitos em torno da pessoa com


esquizofrenia – de que são violentos. Apenas algumas pessoas com esquizofrenia
ficam violentas em épocas de crise. Quando isso ocorre, normalmente acontece em
decorrência de uma alucinação auditiva ou ideia delirante. Além disso, muitas vezes
a violência ocorrida é contra si mesmo e não contra terceiros.

1. O filme a seguir retrata a história de vida de uma pessoa com esquizofrenia.


Assista-o e descreva alguns dos sintomas desse transtorno mental
apresentados pelo personagem principal.

› Uma Mente Brilhante (EUA, 2001). Direção Ron Howard.

2. Estamos chegando ao final de nossa disciplina. Após abordarmos tantas


questões sobre a saúde mental chegou a hora de fazermos uma reflexão
crítica sobre o que aprendemos. A seguir, foi reproduzida a entrevista
que o poeta Ferreira Gullar deu à Revista Época, no ano de 2009. O poeta
teve dois filhos com esquizofrenia e provocou muita polêmica com suas
opiniões ao dar essa entrevista.

Considerando tudo o que aprendemos nos três capítulos de nossa


disciplina, leia a entrevista e reflita sobre o que o poeta declarou. E, então,
responda: Em sua opinião, por que esta entrevista foi considerada tão
polêmica? Quais opiniões nela contidas indicam isso? No discurso de
Ferreira Gullar, quais ideias estão de acordo com o que estudamos? E
quais ideias se contradizem com o que estudamos?

Fonte: <http://revistaepoca.globo.com/>

O poeta Ferreira Gullar, 78 anos, teve dois filhos com esquizofrenia. Paulo, 50 anos,
vive num sítio, em Pernambuco, há cinco. Marcos, que tinha um quadro mais leve da
doença, morreu em 1992, de cirrose hepática. Recentemente, Gullar escreveu três
artigos no jornal Folha de S. Paulo sobre a falta de vagas para internação psiquiátrica.
A reação dos leitores chamou atenção para uma das maiores controvérsias da
psiquiatria: o que fazer com doentes mentais em estado grave? Gullar concedeu a
seguinte entrevista à ÉPOCA em seu apartamento em Copacabana, no Rio de Janeiro
(confira ao final desta página um vídeo com trechos da conversa):

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UNIDADE III │ SAÚDE MENTAL NO ADULTO

ÉPOCA - A Lei Federal no 10.216, aprovada em 2001, não proíbe a internação de


pacientes em hospitais psiquiátricos, mas estimulou a redução de leitos. Por
que decidiu falar sobre essa lei agora?

Ferreira Gullar - Antes da aprovação da lei, soube do que consistia o primeiro


projeto. Para internar uma pessoa, a família precisaria pedir autorização de um juiz.
Felizmente, isso foi retirado do texto final. Imagine o que é ter em casa um garoto
em estado delirante – às vezes falando sem parar da noite até o dia seguinte. Os
pais tentam dar remédio, tentam conversar e nada funciona. Nessa situação, o único
recurso é internar. Você sente que a pessoa está saindo do controle e pode fazer uma
loucura qualquer. Imagine ter de aguardar autorização de um juiz para internar um
paciente numa situação de emergência. Que juiz? Aquele que nunca encontramos
na justiça eficiente que temos? Imagine o desastre que isso seria.

ÉPOCA - Mas por que decidiu escrever neste momento?

Gullar - Li notícias recentes sobre o aumento de doentes mentais na população de


rua. Eu já previa que isso ia acontecer diante da restrição do número de hospitais e
do período de internação. Como é possível estabelecer um período de internação,
determinar que um paciente psiquiátrico esteja curado dentro de determinado
tempo? Quem não tem dinheiro para colocar o filho numa clínica particular fica com
ele em casa até quando suportar. Muitas vezes o doente foge. Quantas vezes isso
aconteceu comigo... Ele foge, vai para rua sem rumo. Ninguém sabe para onde vai.

ÉPOCA - O doente precisa ficar vigiado dentro de casa?

Gullar - Ninguém aguenta uma pessoa em estado de delírio dentro de casa. Só


se ninguém trabalhar, todo mundo ficar em volta do doente. E se for uma pessoa
agressiva? Tem que internar. Nenhum pai e nenhuma mãe internam seus filhos
contentes da vida, achando que se livraram. Não estou dizendo que a lei foi feita
para perseguir as pessoas. Não vou imaginar uma coisa dessas. Ela foi feita com boa
intenção. Mas de boa intenção o inferno está cheio.

ÉPOCA - O senhor acha que a internação em hospitais psiquiátricos é o melhor


tratamento?

Gullar - Ninguém é a favor de manicômio ou de encerrar uma pessoa pelo resto


da vida. Isso não existe há muito tempo. Mas hoje as famílias sem recursos não têm
onde pôr seus filhos. Eles vão para a rua. São mendigos loucos, mendigos delirantes.
Podem agredir alguém. É imprevisível o que pode acontecer. O Ministério da Saúde
tem de olhar isso. O hospital-dia é uma boa coisa. Mas para o doente ir para o
hospital-dia ele tem que querer ir. Quando entra em surto, é evidente que não vai
querer ir para o hospital-dia. Dizer que os doentes serão encarcerados é terrorismo.

ÉPOCA - Qual a sua opinião sobre a visão do movimento de luta antimanicomial?

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SAÚDE MENTAL NO ADULTO │ UNIDADE III

Gullar - Esse pessoal não diz explicitamente, mas eu sei que para eles não existe
doença mental. Por que falam em psiquiatria democrática? Existe urologia
democrática? A psiquiatria democrática pressupõe que as pessoas internam seus
parentes para cercear a liberdade deles. Segundo essa linha, o cara não é doido. Ele
é um dissidente. Isso vem da época das drogas, da época dos Beatles, da época em
que as pessoas diziam “tu tá pinel”. O que era isso? A classe média cheirava cocaína e
ia parar no Pinel. Não eram doidos. Mas, levada a uma overdose, a pessoa pode entrar
num estado de delírio. Esse pessoal acha que a máfia de branco cerceia a liberdade
das pessoas. Pessoas que são dissidentes da sociedade burguesa. A psiquiatria
democrática considera que a sociedade é que é doente e reprime aqueles que
discordam dela.

ÉPOCA - Por que o senhor diz que isso é um marxismo equivocado?

Gullar - A raiz ideológica da psiquiatria democrática é a ideia de que não existe


doença. A sociedade é que é culpada porque é burguesa. Quando eu estava exilado
em Buenos Aires, nos anos 1970, fui conversar com os médicos no hospital onde
meu filho Paulo (hoje com 50 anos) havia sido internado depois de um surto. Uma
médica veio conversar comigo e disse que o problema não era do meu filho. Era da
família e da sociedade. Disse para ela: então me interna.

ÉPOCA - Paulo estava com você no exílio?

Gullar - Nessa época, sim. Um dia ele teve um surto e sumiu. Foi encontrado em
estado totalmente delirante e foi internado. A médica chamou a mim e a minha
mulher para conversar. Eu disse: coração adoece, rim adoece sem que a sociedade
seja culpada de nada. O cérebro é o único órgão que não adoece por si? A senhora
não acha que uma pessoa pode nascer com uma deficiência fisiológica no cérebro?
O que está por trás de tudo isso é uma visão equivocada.

ÉPOCA - Quando seus filhos receberam o diagnóstico de esquizofrenia?

Gullar - Os dois começaram a falar disparates e a se comportar de maneira anormal.


Isso se manifestou quando tinham 15 ou 16 anos. A doença foi precipitada pela
droga. Era um período que cheirar cocaína, fumar maconha e consumir LSD estavam
na moda. Surgiram anormalidades, mas eu não fiz nada. Atribuía o comportamento
deles às drogas.

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Para (não) Finalizar

Vimos que a saúde mental é um campo muito complexo. Em vista disso, não é possível atuar nessa
área com instrumentos estanques e acreditando em fórmulas milagrosas. Ao contrário, a atuação
em saúde mental é uma eterna construção, reatualizada a cada paciente, a cada família, tendo em
vista que cada ser humano é único e singular.

Aprendemos, também, que uma visão, uma disciplina não dá conta desse vasto campo. Desse modo,
é cada vez mais evidente a importância da atuação de equipes interdisciplinares, cujos membros não
só acrescentem suas visões, mas efetuem trocas de conhecimento, promovendo verdadeiros diálogos.

A disciplina não pretendeu, de forma alguma, esgotar o assunto, mas teve o objetivo de apresentar
um panorama introdutório, com alguns aprofundamentos, no intuito de fornecer algumas noções
essenciais e, ao mesmo tempo, instigar ao aprofundamento das questões abordadas e incentivar
futuras pesquisas, pois o limite do aprendizado é você, aluno, quem traça.

Agradeço pela participação e o empenho de todos.

48
Referências
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Janeiro: FIOTEC/FIOCRUZ, 2003. v.3.

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