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Universidade Estadual Paulista (UNESP) – câmpus de Assis

Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa (CEDAP)


ISSN: 1808–1967
http://pem.assis.unessp.br Assis, SP, v. 15, n. 1, p. 28-46, janeiro-junho de 2019

Sabores, saberes e o “pão dos trópicos”:


contatos interétnicos entre indígenas e colonizadores
a partir da circulação e uso da mandioca

Juciene Ricarte Apolinário


Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), Campina Grande, PB, Brasil
Orcid ID: https://orcid.org/0000-0003-1142-7133
E-mail: [email protected]

Resumo: O presente artigo é um mergulhar nos sabores e saberes indígenas no trato


milenar com a mandioca e sua ressignificação na culinária dos colonizadores portugueses
até os dias atuais. Nesse contexto, propomos uma análise acerca de diversos usos da
mandioca e de seus derivados como diferentes farinhas, beijus, bebidas fermentadas seja
como alimento, remédio ou até como veneno, no cotidiano alimentar de povos indígenas e
colonizadores na América portuguesa, escravos africanos reveladas nas práticas culturais e
relações interétnicas, registradas pelos cronistas e viajantes europeus do primeiro século de
efetiva colonização lusa nos trópicos americanos.

Palavras-chave: Povos indígenas; Mandioca; Relações interétnicas; Farinhas; Culinária.

Flavors, knowledge and the “bread of the tropics”: interethnic contacts


between indigenous and colonizers from the circulation and use of cassava 28

Abstract: This article is an immersion of the flavors and indigenous knowledge in the
ancient treatment with cassava and its resignification in the cuisine of the Portuguese
colonizers until the present day. In this context, we propose an analysis of various uses of
cassava and its derivatives as different flours, beijus and fermented beverages, whether as
food, medicine, or even as poison, in chronicles and European travelers in the first century
of effective Portuguese colonization in the American tropics recorded cassava as the dialy
food of indigenous peoples, Portuguese Brazilian setters, and African slaves, as revealed in
cultural practices and interethnic relations.

Keywords: Indigenous peoples; Cassava; Interethnic relations; Flour; Cooking.

Texto recebido em: 23/04/2018


Texto aprovado em: 31/05/2019

Introdução

A chamada “cozinha à brasileira” foi amalgamada nas relações interetnicas e


também consequência dos grandes deslocamentos populacionais e das trocas daí
decorrente entre nossos povos originários e os colonizadores portugueses,
flamengos, africanos e outros povos que mantiveram trocas de plantas em nosso

Sabores, saberes e o “pão dos trópicos”: contatos interétnicos entre indígenas e colonizadores
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território a partir dos seiscentos. Sem embargo, estes contatos interétnicos


permitiram as confluências de técnicas, ingredientes, valores, preferências,
prescrições, sabores e saberes na mesa brasileira que se configurava nos primeiros
tempos (MACIEL, 2004, p. 38).
Através de múltiplos aspectos, sejam eles sociológicos, culturais, históricos,
biológicos e rituais, partindo dos sabores e saberes indígenas, há um processo de
mestiçagem alimentar que permitem a construção de práticas identitárias e
sentimentos de pertença (CASCUDO, 1983, p. 414).
Trabalhamos o conceito de “mestiçagem” nos baseando em Serge Gruzinski
que amalgamou as discussões acerca das mestiçagens culturais no processo de
mundialização ibérica da era moderna (GRUZINSKI, 2001, p. 91). Essa
mundialização promoveu o intenso movimento de pessoas, de objetos, de plantas,
sabores e saberes. Movimento esse que implicou em misturas, releituras, usos e
apropriações pelos sujeitos históricos que nele se envolveram de alguma forma.
Gruzinski recuperou sob a perspectiva cultural, ideias vindas de estudos alargados
sobre a “primeira economia-mundo” decorrente do processo da expansão marítima
e comercial europeia. Para este estudioso no período das grandes navegações
europeias e sob o mesmo enquadramento político-administrativo, a Europa, a Ásia 29

e a América foram postas em contato enos novos processos simbólicos de


territorialização culturas e alteridades se tocaram e muitos de seus elementos se
misturaram (LIMA; FONSECA, 2013, p. 64). Como é o caso das plantas,
alimentação e culinárias advindas de diferentes práticas culturais e relações
interetnicas entre colonizadores europeus e povos indígenas americanos.
Ao tempo da chegada dos europeus na América, os milhares de povos
indígenas tinham seus alimentos baseados em uma variedade de plantas, as quais,
mais tarde, por uma série de motivos, predominariam como base da alimentação na
América portuguesa como um todo.
Os olhares e discursos europeus no uso, sabores e saberes indígenas
inicialmente causavam-lhes estranhamento, mas paulatinamente, após a escassez
de víveres os hábitos alimentares dos naturais da terra vão sendo aprendidos,
degustados, tocados e ressignificados em contatos interetnicos cotidianos.
Muitas vezes os alimentos dos trópicos eram degustados com reticências,
sobretudo por sua qualidade simbólica, que encerrava identidades étnicas
indígenas reveladas nas práticas rituais como parte das suas cosmologias. E, não
obstante, os tabus católicos ressignificavam muitos dos alimentos indígenas como

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as beberagens através de discursos antropocêntricos e demonizadores como foi às


representações dos cronistas e viajantes ao discorrerem sobre a bebida alcoólica
como o cauim.
A partir das primeiras descrições dos europeus do século XVI até o presente
têm sido contínua as menções a respeito das funções sociais e dos aspectos
simbólicos do consumo destas bebidas fermentadas alcoólicas. Devido ao seu efeito
embriagador, as bebidas fermentadas alcoólicas dos Guarani e Tupinambá já no
período seiscentista foram frequentemente traduzidas e registradas por cronistas
como “vinho”. Assim, cauim em Tupinambá e caguy em Guarani, definem
genericamente qualquer tipo de bebida fermentada embriagante, não considerando
nem os ingredientes nem a forma de produção (NOELLI; BROCHADO, 1998, p.
117).
As bebidas embriagantes podiam ser feitas a partir de um único vegetal ou
da mistura de duas ou mais plantas. Frutas e/ou mel eram adicionados às bebidas
que tinham como base cereais, raízes e/ou tubérculos amiláceos, para aumentar o
teor de açúcares (frutose / glicose) e, pela fermentação, o alcoólico. Fungos também
poderiam ter sido acrescentados para diminuir o tempo gasto no processo de
fermentação. Os ingredientes mais usuais parecem ter sido os cultivares de 30

mandioca, que aparece com maior freqüência nas descrições, principalmente das
bebidas consumidas nos rituais antropofágicos (NOELLI; BROCHADO, 1998, p.
118).
O cauim dos cultivares de mandioca – Manihot esculenta – “amarga” ou
tóxica era denominado de caracu. O cauim feito com as variedades não-tóxicas ou
“doces” era chamado de caui macaxera e aipigig, sendo apenas fervidas e,
posteriormente, mastigadas pelas mulhetes Tupi. A mandioca “amarga” tinha que
passar antes pelo processo de extração do ácido cianídrico, através da prensagem e
do cozimento a seco ou torragem, como na preparação da farinha e do beiju. Esse
tipo de mandioca podia ou pode ser misturada com milho ou com batata doce.
Entre as plantas americanas, a mandioca, batata e o milho foram os
principais alimentos descritos nas primeiras narrativas ocidentais sobre o Novo
Mundo e que em pouco tempo foi sendo adaptada a cozinha dos colonizadores e
através de um processo elástico de circulação de plantas além-mar, os novos
sabores e saberes americanos foi compondo os hábitos alimentares de homens e
mulheres em quase toda a Europa, mas também entre algumas regiões africanas

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pelo processo de colonização europeia e expansão do tráfico negreiro (NOELLI;


BROCHADO, 1998, p. 120).
Nessa perspectiva, podemos ressaltar que a cozinha dos colonizadores não
erradicou a cozinha dos povos colonizados. Pelo contrário, houve um processo de
mestiçagens processuais dos hábitos alimentares entre “mundos distintos”. No caso
dos hábitos alimentares que se constituíram em processos interétnicos do mundo
colonial, além das contribuições indígenas e europeias, tivemos também a forte
influência dos alimentos de origem africana, que enriqueceram os prazeres do
hábito cotidiano de comer enquanto ricas práticas culturais.
Nesses “mundos distintos” foram construídas relações, ora negociáveis, ora
conflituosas, em que hábitos alimentares cotidianos se chocavam e se
entrelaçavam, permitindo a criação de novas sociabilidades na América portuguesa
em processos de ressignificações culturais entre indígenas e não-indígenas.
(APOLINÁRIO, 2013, p. 194).
A vida cotidiana, nesse cenário de contatos interetnicos nas terras brasílicas
dos primeiros séculos, aparece repleta de desafios, já que, tendo em vista a
necessidade de sobrevivência em novos territórios sócio-ambientais, os colonos na
América portuguesa precisaram readaptar seus hábitos e práticas alimentares, 31

através de táticas e estratégias de subsistência.


Para tanto, tiveram que aprender com os povos indígenas se apropriando dos
conhecimentos ancestrais dos grupos étnicos, a respeito dos saberes-fazeres nos
processos dos usos de plantas, frutas e vegetais, tanto para sanar a fome, quanto
para cura de doenças (APOLINÁRIO, 2013, p. 196).
Entre os alimentos que destacaremos para esta pesquisa destacam-se a
mandioca em que traremos antigas e novas descrições documentais entre discursos
dos primeiros cronistas e viajantes dos séculos VI ao I e documentos de arquivos
europeus.
A alusão que fazemos ao termo “pão dos trópicos”, diz respeito a grande
importância que a mandioca desempenhou no cenário alimentar colonial nos
territórios americanos, que sabidamente, já fazia parte dos hábitos alimentares
indígenas muito antes da chegada do colonizador europeu, a quem incorporou a
sua dieta alimentar, como forma também de subsistência no Novo Mundo.

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A mandioca alimento indígena provocando relações interetnicas nos primeiros


contatos e pós-contatos com os europeus na América portuguesa

Os portugueses ao chegarem no continente americano, no século XVI, os


povos indígenas já haviam domesticado um tubérculo que se destacava no regime
alimentar que era a mandioca ou a Manihot esculenta krantze (nome científico dado
a mandioqueira). Este tubérculo é considerado uma planta originaria da América do
Sul, sendo a mesma muito utilizada desde tempos remotos pelos povos indígenas
há pelo menos 8.000 anos. No decorrer desses milênios, ela foi expandida por uma
grande extensão territorial que ia da América Central, as Antilhas e quase todo o
litoral da América do Sul, tornando-se um elemento central da subsistência
ameríndia (SILVA; MURRIETA, 2014, p. 38).
Citando Ana Maria Azevedo nas suas preciosas notas da publicação na
integra da obra do Padre Fernão Cardim, Tratados da terra e gente do Brasil (1997),
a mandioca é um arbusto de raízes tuberosas folhas palmiformes de cor verde-
azulada e flores de cálice amarelo, dispostas em panículas, com uma altura que
varia entre 1,50 e 2,40m. Os tubérculos são ricos em amido, comestíveis depois de
cozidos ou utilizados na fabricação do polvilho e da farinha de mandioca alimento 32

básico para as regiões brasileiras no passado e no presente.


Afirma-se entre outras teses, que a mandioca teria tido sua origem mais
remota no oeste do Brasil (sudoeste da Amazônia) e que, antes da chegada dos
europeus à América, já estaria disseminado, como cultivo alimentar, até a
Mesoamérica (Guatemala, México). Espalhada para diversas partes do mundo tem
hoje a Nigéria como seu maior produtor (ABRANTES, 2010, p. 20).
Através de suas crônicas e textos informativos, importantes descrições dos
períodos seiscentista ao oitocentista foram sendo produzidos sobre os
conhecimentos indígenas acerca do plantio, da colheita e dos usos da mandioca em
forma de alimento, de bebida, de remédio e até de “veneno” (come veremos mais
adiante), no cotidiano alimentar quinhentista.
No Brasil, a mandioca possui muitos sinônimos, usados em diferentes
regiões, tais como aipi, aipim, castelinha, macaxeira, mandioca-doce, mandioca-
mansa, maniva, maniveira, pão-de-pobre, e variedades como aiapuã e caiabana, ou
nomes que designam apenas a raiz, como caarina. O cultivo da mandioca é de
grande relevância econômica como principal fonte de carboidratos para milhões de
pessoas no continente americano (ALBERTO, 2019, p 63).

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Fonte: Gravura de Frei Cristovão de Lisboa. Biblioteca Nacional, Portugal.

FIGURA 1
Mandioca

É interessante também conhecermos a (as) origem (ns) mítica (s) da


mandioca. Em épocas remotas da história do que hoje conhecemos como Brasil, a
33
mandioca teria ocupado e dominado todo o litoral brasileiro, acompanhando a
constante migração dos povos de origem Tupi, quando se constituiu o chamado
“complexo da mandioca”, composto por bens de cultura material tais como
roladores, peneiras, prensas e fornos de barro.
Na maioria dos estudos etnológicos sul-americanos, especialmente
brasileiros, a origem mítica da mandioca é narrada por diferentes povos indígenas
de língua Tupi.
Logicamente, existem versões distintas, no que diz respeito ao mito da
mandioca, mas que se resume, basicamente, a figura de um herói com poderes
sobrenaturais, que age como transformador do grupo étnico, oferecendo a ela o
meio necessário à mudança (SILVA, 2005, p. 82).
Tomando como exemplo o mito de origem Tupi sobre como surgiu a
mandioca, a figura do herói entrega ao grupo a raiz de mandioca, conferindo, assim,
ao seu povo a oportunidade de conhecer a agricultura e, por extensão, instituir um
novo estágio em sua história. Mas, o herói explica ainda que, se plantada num dia,
pode ser colhida no outro, porém, irritado com a desconfiança e incredulidade dos
homens diante da rapidez do crescimento da planta, ele condena-os a ter que
esperar “todo o inverno” até que a mandioca cresça (SILVA, 2005, p. 83).

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Portanto, esse mito carrega, entre outras possibilidades de análise, a ideia de


que é através da chegada de um alimento desconhecido, trazido por um ser
sobrenatural, que se dará a passagem do estado de natureza para o da cultura,
conforme Silva (2005).
Ou seja, instaura a ideia de que a transformação da sociedade é feita com a
introdução de uma espécie – nesse caso a mandioca - que precisa ser domesticada,
plantada e colhida em tempo e modos corretos.
Desde essa época a mandioca tornou-se um alimento para os indígenas
(mandi = Mani, nome da criança; oca = casa). Podemos ver na história de Mani a
relação com a antropofagia, pois, ao comer o fruto da terra, os outros membros da
sociedade estariam comendo a si mesmos, numa evidente forma de preservar as
identidades (ALBERTO, 2019, p. 64).
Nas representações simbólicas dos povos originários Tupi, a mandioca
desempenhou e desempenha importante papel cosmológico e na reelaboração das
práticas culturais e identidades étnicas. Os mitos de origem a partir da mandioca
apresentam algumas variações, como as que já citamos, já que cada grupo étnico os
constrói de acordo com suas próprias tradições e concepções de mundo. Mas o que
é possível perceber o que têm em comum é a origem sagrada, nascida do corpo 34

humano, feminino e em sacrifício (PINTO, 2000, p. 20).


O mito citado e que pode dá origem ao nome mandioca, é assim narrada por
Couto de Magalhães (1876):

Em tempos idos apareceu grávida a filha de um chefe selvagem,


que residia nas imediações do lugar em que está hoje a cidade de
Santarém. O chefe quis punir no autor da desonra de sua filha a
ofensa que sofrera seu orgulho e, para saber quem ele era,
empregou debalde rogos, ameaças e por fim castigos severos.
Tanto diante dos rogos como diante dos castigos a moça
permaneceu inflexível, dizendo que nunca tinha tido relação com
homem algum. O chefe tinha deliberado matá-la, quando lhe
apareceu em sonho um homem branco, que lhe disse que não
matasse a moça, porque ela era efetivamente inocente, não tinha
tido relação com homem. Passados os nove meses ela deu à luz
uma menina lindíssima, e branca, causando este último fato a
surpresa, não só da tribo, como das nações vizinhas, que vieram
visitar a criança, para ver aquela nova e desconhecida raça. A
criança que teria o nome de Mani, e que andava e falava
precocemente, morreu ao cabo de um ano, sem ter adoecido, e
sem dar mostras de dor. Foi ela enterrada dentro da própria casa,
descobrindo-se e regando-se diariamente a sepultura, segundo o
costume do povo. Ao cabo de algum tempo brotou da cova uma
planta que, por ser inteiramente desconhecida, deixaram de
arrancar. Cresceu, floresceu e deu frutos. Os pássaros que

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comeram os frutos se embriagaram, e este fenômeno,


desconhecido dos índios aumentou-lhes a superstição pela planta.
A terra afinal fendeu-se; cavaram-na e julgaram reconhecer no
fruto que encontraram o corpo de Mani. Comeram-no e assim
aprenderam a usar a mandioca. O fruto recebeu o nome de Mani
oca, que quer dizer: casa ou transformação de Mani (Apud.
SOUTO MAIOR, 1988, p. 134-135)

Outra lenda, que já expressa à influência do cristianismo dos colonizadores


sobre o pensamento indígena, diz que foi o apóstolo São Tomé, em suas prováveis
andanças por estas terras, que teria ensinado aos índios o cultivo da mandioca e a
preparação da farinha. O trabalho das mulheres na produção da farinha tem
também uma explicação mítica. Uma das lendas diz que os Tenetehara, índios do
Maranhão,

fabricavam cestos de carregar que mandavam às roças para colher


e trazer mandioca para a aldeia. Era proibido às mulheres ver essas
operações. Como isso lhe despertasse irrefreável curiosidade, várias
mulheres combinaram esconder-se um dia na mata para assistir à
passagem dos cestos de carregar. Quando os cestos passaram junto
onde elas se escondiam, a mandioca derramou-se pelo chão. Tupã
lhes apareceu muito zangado e disse-lhes que doravante as
mulheres teriam que carregar a mandioca, deitar as raízes n’água,
preparar a massa e torrá-la para fazer a farinha. Foi assim que as 35
mulheres aprenderam e foram obrigadas, desde então, a fabricar
farinha para suas famílias (SALES, 1973, p. 30).

Não importa a nomenclatura, aipim, candinga, castelinha, macamba,


macaxeira, mandioca-brava, mandioca-doce, mandioca-mansa, maniva, maniveira,
moogo, mucamba, pão-da-américa, pão-de-pobre, pau-de-farinha, pau-farinha,
tipioca e uaipi (alguns desses nomes já foram citados anteriormente), seja qual for o
nome, a mandioca é o tubérculo mais antigo consumido no Brasil (ALBERTO, 2019,
p. 64).
Ao manterem os primeiros contatos com os povos indígenas de língua Tupi
os portugueses encontraram a mandioca profundamente difundida e utilizada nas
terras litorâneas do Brasil e deram-lhe enorme atenção, como provam as
numerosas e por vezes extensas referências que denominaram de “pão-dos-
trópicos”.
A partir do século XVI na literatura de cronistas estrangeiros em terras que
pertenciam aos diferentes povos indígenas, especialmente da faixa litorânea, foram
registradas narrativas descrevendo os usos e costumes indígenas, sua alimentação

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e técnicas cotidianas de lhe dar com a mandioca, na sua grande maioria sob os
cuidados femininos a partir de rituais específicos.
O primeiro registro feito pelos colonizadores portugueses está na carta de
Pero Vaz de Caminha, em 1500, e assim ele narra: “Dizem que em cada casa se
recolhiam trinta ou quarenta pessoas, e que assim os achavam; e que lhes davam
de comer daquela vianda, que eles tinham, a saber, muito inhame e outras
sementes que na terra há e eles comem” (Apud. LODY, 2000).
Notoriamente o que Caminha denominou de inhame, trazido posteriormente
da África para o Brasil, era na realidade a mandioca, confundida pelo português
devido à semelhança entre as duas raízes.
O francês Jean de Léry, em 1557, no seu livro, História de uma viagem feita à
terra do Brasil, descreve diversos costumes indígenas sobre a alimentação e modo
de preparar a comida destacando a mandioca e seus derivados como exemplo:

os indígenas americanos têm nas suas terras duas espécies de


raízes, a que chamam aipim e mandioca, as quais em três ou
quatro meses crescem no solo e ficam tão grossas como a coxa de
um homem, com o comprimento de pé e meio, mais ou menos:
quando as arrancam, as mulheres (pois os homens não se
ocupam disso) secando-as ao fogo no moquém, tal como logo 36
descreverei, ou tomando-as ainda frescas, as ralam à força em
pontas de pedras miúdas fixadas e arranjadas em uma peça chata
de madeira (como ralamos e raspamos o queijo e a noz moscada),
e as reduzem a farinha alva como a neve. (LÉRY, 1889, p. 194).

Lery através do seu olhar europeu continua descrevendo com curiosidade


sobre o tubérculo tão importante aos povos indígenas Tupi:

a raiz do aipim não só é boa transformada em farinha, mas


também pode comer-se assada inteira no borralho ou no fogo;
pois assim fica tenra, abre-se, e torna-se farinácea como a
castanha nas brasas, cujo gosto é quase igual. Entretanto, o
mesmo não acontece com a raiz da mandioca, pois serve somente
para fazer farinha, e é venenosa se a comermos de outro modo
(LÉRY, 1889, p. 196).

Referindo-se a uma das várias espécies da mandioca, o aipim, Gabriel Soares


de Souza, em Tratado descritivo do Brasil (1587), diz que:

Dá na nossa terra outra casta de mandioca, que o gentio chama


aipins, cujas raízes são da feição da mesma mandioca, e para se
recolherem estas raízes as conhecem os índios pela cor dos
ramos, no que atinam poucos portugueses. E estas raízes dos

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aipins são alvíssimas (...) Destes aipins se aproveitam nas


povoações novas, porque como são de cinco meses, se começam a
comer assadas, e como passam de seis meses fazem-se duros, e
não se assam bem, mas servem então para beijus e para farinha
fresca, que é mais doce que a da mandioca, as quais raízes duram
pouco debaixo da terra, e como passam de oito meses, apodrecem
muito. Os índios se valem dos aipins para nas suas festas fazerem
deles cozidos seus vinhos, para o que os plantam mais que para
os comerem assados, como fazem os portugueses (Apud.
CASCUDO, 1988).

Assim como nos dias atuais, povos indígenas como os Ticuna, da região
amazônica, se valem do aipim até os dias atuais como alimento simbólico e
cosmológico dos seus rituais celebrativos comendo, assados, cozidos e ainda
produzindo as suas beberagens (heteógenas) a partir da mandioca.
Pero Magalhães Gandavo, em 1858, também se refere ao Aipim “da qual se
fazem uns bolos que parece pão fresco deste Reino e também esta raiz se come
assada como batata de toda a maneira se acha nela muito gosto”. Os cronistas do
século XVI consideravam aipim e mandioca como se fossem tubérculos diferentes.
No entanto, são da mesma espécie, distinguindo formas cujas raízes são isentas do
princípio tóxico as “mandiocas-doces” e outras conhecidas por “mandiocas-bravas”
que contêm o princípio tóxico em quantidades muito variáveis consoantes as 37

inúmeras variedades que se foram formado, dada a extensão que a cultura desta
planta assumiu em quase todas as regiões brasileiras, especialmente na região
amazônica.
Os produtos derivados da mandioca brava constituíam, efetivamente, uma
parte central da dieta indígena do período colonial brasileiro aos dias atuais. As
técnicas de transformação eram e são complexas, e implicam processos rituais.
Muito antes da presença dos europeus os povos indígenas do litoral ao sertão
cultivavam mais de setenta variedades dessa planta e os produtos derivados eram e
são diversos e ricos em sabores e saberes étnicos no trato alimentar (EMPERAIRE et
al, 2008). Existem diferentes tipos de farinha, mas também beiju, mingau, caxiri
(bebida alcólica), cauim (bebida heteógena) além de tapioca, maniçoba (folhas de
maniva), bolos assados em folhas e outros como trataremos de forma
pormenorizada mais a frente.
Como um curioso dos hábitos alimentares dos colonos na América
portuguesa no século XVI, destacamos o Padre Fernão Cardim que partiu para o
Brasil em 1583. Permaneceu nas terras brasílicas por cinquenta anos. Percorreu o

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território brasileiro descrevendo os hábitos alimentares especialmente indígenas


produzindo importante obra, Tratados da terra e gentes do Brasil.
Os seus escritos mantiveram-se desconhecidos durante séculos, só vindo, em
parte, a serem divulgados em língua portuguesa e atribuídos a este jesuíta, mais
precisamente em 1847. No capítulo “Das ervas que são fruto e se comem”, ele
descreve a mandioca como um mantimento ordinário que era servido como se fosse
o “pão nativo” entre os colonos portugueses em diferentes capitanias.
Cardim descreve o citado tubérculo como os comparando as cenouras
colhidas na Europa, “ainda que mais grossas e compridas”.
Assim narra Fernão Cardim suas impressões sobre a mandioca e os saberes
indígenas no trato com o tubérculo:

Contem muitas espécies e todas se comem destas raízes


exprimidas e se faz a farinha, e um certos beijus como filhós,
muito alvos e mimosos. Esta mesma raiz depois de curtida na
água feita com as mãos em pilouros se põe em caniços ao fumo,
onde se enxuga e seca de maneira que se guarda sem corrupção
(...) piladas em uns pilões grandes, fica uma farinha tão alva, e
mais que de trigo, da qual misturada em certa têmpera com a
crua se faz uma farinha biscoitada que chama de guerra, que
serve aos índios e portugueses pelo mar, e quando vão a guerra 38
como biscoito. Desta mandioca curada ao fumo se fazem muitas
maneiras de caldos que chamam ‘mingaus’, tão sadios, e
delicados que se dão aos doentes de febres em lugar de amido, e
tisanas, e da mesma se fazem muitas maneiras de bolos,
coscorões, tartes, empenadilhas, queijadinha de açúcar, etc.

É perceptível na descrição da Cardim que a culinária indígena foi sendo


amalgamada pelos saberes e sabores portugueses, surgindo da farinha da
mandioca diferentes receitas de bolos, incluindo queijadinhas que levava açúcar
ingrediente que não fazia parte do hábito alimentar indígena.
Ainda destacando a narrativa de Pedro Cardim ele informa que:

Desta mandioca há uma que chamam Aipim que contem também


debaixo de si muitas espécies. Esta não mata crua, e cozida, ou
assada, que é de bom gosto, e dela se faz farinha, e beijus, etc. Os
índios fazem vinho dela, e tão fresco e medicinal para o fígado que
a ele se atribui não haver entre eles doentes do fígado. Certo
gênero de Tapuias come a mandioca peçonhenta crua sem lhe
fazer mal por serem criados nisso.

A curiosidade e o interesse dos europeus pela natureza de suas conquistas


ultramarinas, especialmente em relação à flora, se manifestou desde os primeiros

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contatos interétnicos com grupos étnicos Tupi e os do sertão denominados de


Tapuia como citados pelo Cardim, estes últimos especialmente da região amazônica
e dos sertões das capitanias do norte como eram os povos Tarairiú da capitania da
Paraíba.
Desde os primeiros contatos entre colonizadores e povos indígenas, os grupos
étnicos conhecidos como Tapuia, exemplo os Tarairiú, foram vistos como uma
unidade histórica e cultural, em oposição tanto ao mundo cristão europeu, quanto
aos povos Tupi do litoral, como exemplo os Potiguara e Tabajara.
A tentativa de representar os povos ditos Tapuia esteve sempre interligada à
compreensão de sertão, espaço além do litoral, desconhecido, inóspito para o
imaginário colonial. Era um lugar mítico não só para os colonizadores portugueses
e holandeses, mas para os povos Tupi que representavam, depreciativamente, os
grupos étnicos que consideravam diferentes, como eram apontados os Tarairiú e
Kariri, considerados Tapuia na capitania da Paraíba. É perceptível o discurso
depreciativo no final da descrição acima do Padre Fernando Cardim ao afirmar
“Certo gênero de Tapuias come a mandioca peçonhenta crua sem lhe fazer mal por
serem criados nisso” (APOLINÁRIO, 2018, p. 107).
Colonizadores portugueses necessitavam sobreviver em espaço sócio-etnico- 39

ambiental repleto de alteridades e, muitas vezes, inóspitos, aprendendo com os


povos indígenas a distinguir não só as várias espécies comestíveis e suas diversas
propriedades, mas, sobretudo saber como utilizá-las na alimentação e/ou na cura
das doenças tropicais (ALGRANTI, 2012, p. 26).
Como relata o Padre Fernando Cardim, mesmo o Aipim sendo considerado
um alimento saboroso, também era utilizado na farmacopeia indígena, pois faziam
“vinho dela, e tão fresco e medicinal para o fígado que a ele se atribui não haver
entre eles doentes do fígado” (CARDIM, 1997, p. 220).

Juciene Ricarte Apolinário


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Alguns alimentos derivados da mandioca: uma rica herança de sabores e


saberes indígenas que passou as mesas da sociedade colonial até os dias atuais

Como já foi abordado, os alimentos derivados da mandioca (braba ou mansa)


constituíam os pratos, beberagens e farmacopeias dos povos indígenas, mas que no
processo de colonização a partir do período seiscentista, em contínuas relações
interetnicas os derivados desse tubérculos em forma de receitas e alimentos
elaborados e reelaborados com empreendimentos portugueses e africanos foram
criando novos sabores e saberes.
A partir de então iremos citar ordenadamente alguns dos alimentos tendo na
receita a mandioca e que são de origens indígenas a partir do estudo de Mario
Ypiranga Monteiro no seu artigo “Elementos Preparados à base de mandioca”,
publicado em 1963 na Revista Brasileira de Folclore. Destacamos entre centenas de
alimentos de matriz indígenas, a saber:

• Beijú espécie de bôlo chato, com a forma mais comum de disco, e depois da
farinha o alimento mais descrito pelos primeiros cronistas. Produzido com a
40
massa da mondioca-puba e que foi ralado.

• A Tapioca que é pisada depois de ralada a mandioca (que não é puba e


peneirada). Até no torrar se exigem cuidados especiais para que não
tostelafica uma massa alvíssima.

• Caçumã (bebida fermentada, temulenta). Despojada a raiz da mandioca da


casca, é cozinhada em cornetins de barro, depois amassada ou socada com
Tocori. Preparada a massa vai para o processo de fermentação por tempo
nunca inferior a uma semana.

• Cauim (bebida fermentada). É a bebida clássica do indígena brasileiro, de


referência obrigatória e extensa bibliografia. Aparece citada em todos os
cronistas e viajantes, inclusive com gravuras.·E feita de beiju apropriado,
daquele famoso beijuaçu deixado de môlho durante dias seguidos; ou de
mandioca cortada em discos, segundo a mais antiga receita fornecido pelos
cronistas em que mulheres Tupi mastigavam o tubérculo para provocar o

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processo de fermentação do suco da mandioca que se transformava em uma


cerveja utilizado em importantes rituais como a Antropofagia.

• Farinha d’água amarela. Até os dias atuais é considerada a melhor farinha


indicada para acompanhamento de certos pratos especiais como cozido de
Tartaruga, de Tracajá. Após o amolecimento da mandioca por tempo que
varia entre três ou quatro dias conforme água seja respectivamente parada
ou corrente, a casca se torna mais fácil de remover. O processo seguinte para
se obter êsse tipo de farinha é o mesmo: depois de bem ralado e escorrido o
Tucupi, passa-se na Arupema, para então ser torraca. O local onde se
deposita a raiz de môlho pode variar: ou uma ubá (casco monóxilo) ou
buracos abertos à beira dágua.

• Farinha de guerra (uiuari niçáua). Essa é a famosa farinha a que aludem os


cronistas freqüentemente e que tanto servia ·às guarnições de navios
portuguêses e franceses como a soldados e índios, bandeirantes e escravos.
Foi a principal e necessária fonte alimentícia a que se recorria em tempos
difíceis. O nome que recebeu dos povos Tupi se explica porque usavam dela 41

nas suas práticas políticas de guerra, pois não se estragava facilmente. O


processo de fazer-se é o mesmo que os outros tipos de farinha, porém a
fécula é mais aglutinada, formando pequenos bolos.

• Farinha de tapioca. O processo de fabricação é idêntico ao da farinha branca,


porém a mandioca é lavada várias vezes e deixada granular
propositadamente no forno pouco aquecido. Obtém-se uma farinha é
utilizada para doces.

• Goma repete-se o mesmo tratamento dado às outras farinhas, com a


condição de não ir ao Iapuna (forno) em hipótese alguma, curando-se a
massa ao calor do sol, bem espalhada em tendais de zinco ou de fôlha de
pacova-sororoca (banarira). Pela sua consistência e leveza é utilizada na
confecção de biscoitos, bolos e constitui parte essencial do Tacacá, para
tanto· devendo ser conservada sempre fresca em água mudada diariamente.
Para o Tacacá é cozida, ficando gelatinosa. Neste ponto, com temperos, é
também chamada goma ou grude.

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• Macaxeira cozida (prato). Corta-se a macaxeira em pedaços, descasca-se e


cozinha-se nágua e sal. Come-se fria.

• Paçoca misturado de farinha seca, e Tocarí (castanha), como o processo de


mestiçagem entre indígenas e portugueses foi acrescentado o açúcar. Pila-se
a castanha com a farinha ao mesmo tempo e vai-se adicionando açúcar.
Também invés da castanha e do açúcar pode-se pilar carne desfiada, cozida
ou assada.

Temos aqui dos variados produtos alimentícios advindos dos povos


indígenas, especialmente os povos de língua Tupí. Mas também os usos e a
importância que os colonizadores portugueses deram a mandioca e seus derivados,
haja vista que, na maioria dos relatos informativos acerca dos alimentos do Novo
Mundo, tanto de cronistas lusitanos, quanto de outros europeus, a mandioca,
assim como a farinha, produzida a partir dela, e seus derivados como descrevemos
acima, tiveram destaque e aceitação, justamente devido a questão de substituir um
42
dos alimentos dos mais consumidos na Europa e que era extremamente escasso
nos trópicos americanos: o trigo.
Mais do que isso, a mandioca, juntamente com o milho, foi base da
alimentação colonial, uma verdadeira fonte de subsistência para os colonos na
América portuguesas, principalmente no limiar da colonização.
A importância da mandioca é tão grande no cotidiano alimentar da América
portuguesa que Gabriel Soares de Sousa enfatiza que “as raízes da mandioca
comem-nas as vacas, éguas, ovelhas, cabras, porcos e a caça do mato e todos
engordam com elas” (SOUSA, 1971, p. 174). Percebemos, dessa forma, que, até
mesmo os animais, que também serviam de alimentação para os colonos, eram
alimentados a partir da mandioca, ou seja, de fato este tuberculo possuía diversos
usos no tocante a alimentação colonial.
Além da transformação em farinha, outros produtos também foram derivados
da mandioca e também não passaram despercebidos nem do olhar nem do paladar
dos nossos cronistas, posto que: “Desta mesma mandioca, fazem outra maneira
mantimentos que se chamam beijus, os quais são de feição de obreas, mas mais
grossos e alvos, e alguns deles estendidos da feição de filhós” (GANDAVO, 1964, p.
36).

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Pode-se até parecer um verdadeiro paradoxo o fato de que, mesmo sendo um


“alimento” e por vezes transformado em remédio para alguns povos indígenas e, a
mandioca também podia ser um “veneno” dos mais perigosos, isto porque, há várias
espécies de mandioca, e todas contêm veneno, posto que: “Muito é para notar que
de uma mesma coisa saia peçonha e contrapeçonha, como a mandioca, cuja água é
cruelíssima peçonha, e a mesma raiz seca é contrapeçonha, a qual se chama
carimã” (SOUSA, 1971, p. 177).
Há muito tempo os povos indígenas já tinham desenvolvido uma eficaz
técnica para transformar uma planta venenosa, como a mandioca, num alimento de
longa durabilidade, fácil digestão e de fácil armazenamento, pois através de
sucessivos cozimentos e secagens da mandioca, o ácido cianídrico é eliminado pela
evaporação, tornando em seguida em farinha.
Usada como alimento, remédio ou até mesmo como “veneno”, não se há de
negar o papel central que a mandioca tem na base alimentar do Brasil colônia, pois
esta era o alimento essencial que acompanhava todas as coisas, da carne às frutas,
e foi de extrema importância para a subsistência dos colonos nos trópicos
americanos.
Assim sendo, percebemos que os alimentos usados como remédio são 43

significativos exemplos de circularidade cultural, haja vista que, na América


portuguesa, a medicina indígena também partilhava de princípios semelhantes,
pois nesta, não apenas certos alimentos serviam como remédios ou mesmo
“veneno”, incluída aqui as bebidas, mas também a própria maneira de se alimentar
poderia, ou não, induzir uma vida saudável para os colonos na América
Portuguesas (ALBUQUERQUE, 2014, p. 7).

Considerações finais

Ao realizarmos um revisitar das práticas alimentares indígenas e sua


ressignificação nos processos interetnicos com os colonizadores europeus,
destacamos a mandioca precisamente por sua resistência e formas de consumo,
que um vegetal se impôs como uma das opções de cultivo mais bem sucedidas, pois
a utilização do tubérculo é tributaria de centenas de grupos étnicos e sua
importância na alimentação dos colonos é sublinhada nas obras de diferentes
cronistas e viajantes dos primeiros tempos da estruturação da América portuguesa.

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Nesse sentido, observamos que a mandioca, como principal alimento de


inúmeros grupos indígenas americanos, os mesmo se empenharam no cultivo dessa
raiz, se beneficiaram principalmente pela grande resistência desse tubérculo ao
meio biótico tropical, e com a empresa colonial, colonizadores europeus passaram
também a usar a mandioca e seus derivados como alimento para subsistir nos
trópicos americanos (AMARAL, 1998, p. 179). Como nos dizeres de Gabriel Soares
de Sousa: “E porque tudo é mandioca, concluamos que o mantimento dela é o
melhor que se sabe (...) e ainda digo que a mandioca é mais sadia e proveitosa que o
bom trigo, por se dar melhor digestão” (SOUSA, 1971, p. 180).
A mandioca é o produto mais popular da alimentação brasileira desde o
início da colonização. Preparada de diferentes formas como descrevemos acima, a
farinha, seu principal produto, era e é usada por todas as camadas da população.
Presente tanto nos pratos cotidianos mais simples quanto em outros mais finos e
elaborados, ocupa lugar de destaque no sistema culinário nacional e regional
desempenhando em algumas regiões do país relevante papel na construção de
identidades culturais e etnicas. Os múltiplos e variados aspectos que envolvem o
seu cultivo e transformação em alimento conferem-lhe considerável importância
histórica, econômica e social. 44

Da produção ao consumo final, a mandioca carrega um conjunto de práticas,


relações sociais, cosmologias e representações simbólicas de heranças indígenas e
processos seculares de relações alimentares interetnicas.

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Juciene Ricarte Apolinário


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Juciene Ricarte Apolinário é Professora do Curso e do Programa de Pós-


Graduação em História da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), na
Paraíba, Brasil. Pós-Doutora em História pela Universidade Nova de Lisboa, em
Portugal, Doutora e Mestra em História pela Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE) e Graduada em História pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).

Como citar:
APOLINÁRIO, Juciene Ricarte. Sabores, saberes e o “pão dos trópicos”: contatos
interétnicos entre indígenas e colonizadores a partir da circulação e uso da
mandioca. Patrimônio e Memória, Assis, SP, v. 15, n. 1, p. 28-46, jan./jun. 2019.
Disponível em: <pem.assis.unesp.br>.

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