Receita Velha É Que Faz Comida Boa - Revista de História PDF

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30/05/2016

ReceitavelhaquefazcomidaboaRevistadeHistria

Receita velha que faz comida boa


Com sua Histria da Alimentao no Brasil, Cmara Cascudo valoriza tradies
populares contra costumes importados e enlatados
Mariana Coro
1/1/2012

Quem no tem saudade de


um sabor da infncia?
Aprendemos a gostar dos
alimentos quando crianas
e, com o passar do tempo,
fixamos determinadas
comidas s rotinas dirias.
Nossos pais nos
acostumaram ao arroz e
feijo de cada dia da
mesma forma que nossos
avs fizeram com eles, e
assim para trs no tempo.
Temos gostos e hbitos
culturalmente
determinados que atuam
como vnculos a unir diferentes geraes pelo estmago.
A cozinha nacional e suas originais combinaes, ao longo do tempo, atraram o interesse do
folclorista Lus da Cmara Cascudo (18981986), o que resultou em um clssico sobre o tema:
Histria da Alimentao no Brasil. Estudioso das tradies populares,ele investigou os caminhos
que fizeram a dieta africana, sobreposta ao cardpio indgena, juntarse culinria portuguesa,
numa sntese que define o que e de que maneira comem os brasileiros. Em suas palavras: A mo
da cozinheira portuguesa deu preo s iguarias humildes, cotidianas, vulgares. Fez o beiju mais
fino, mais seco, do polvilho, goma de mandioca, e molhouo com leite. Primeira pedra na
cozinha nacional. A fora da colonizao na transmisso de ingredientes, tcnicas e hbitos
alimentares vista com otimismo, uma vez que o papel exercido pelos portugueses teria sido
essencial para equilibrar a diversidade de nossa cultura miscigenada e criar a identidade prpria
da cozinha tradicional brasileira.
A primeira edio da obra foi publicada em dois volumes Histria da Alimentao no Brasil
(1967) e Sociologia da Alimentao no Brasil (1968). Em busca das razes dos costumes
alimentares nacionais, Cmara Cascudo demarca o incio de sua anlise justo na chegada da
esquadra de Cabral Bahia, em 1500. Bem curiosamente, o tupiniquim comeu muito mais do
que presenteou ou permutou. Exceto o inhame e o palmito, nenhuma outra iguaria brasileira
mereceu registro para os olhos portugueses no derradeiro ano do sculo XV, comenta a respeito
do famoso relato do escrivo Pero Vaz de Caminha. Embora a princpio esnobada, a culinria
indgena traria inmeras contribuies importantes cozinha brasileira.
Da culinria local, original das novas terras tupiniquins, Cascudo registra a incorporao dos
palmitos; das pacovas mais tarde chamadas pelo nome congols de bananas; dos inhames
incluindo a a mandioca cientificamente denominada Manihot utilissima, por seus usos infinitos;
dos milhos. Fala tambm das tcnicas de cozimento, dos temperos e das bebidas que deixaram
sua marca na cozinha de cada lar brasileiro.
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Com a chegada dos africanos, novos ingredientes e modos de preparo so trazidos. O milho vira
fub para fazer angu; o leo de dend e as pimentas resistem sem esforo mar montante do
universalismo culinrio ou presena da cozinha obstinada dos antigos colonizadores europeus.
Do cardpio portugus ficaram o sal, o acar, o ovo de galinha, o leite e a manteiga, a cebola e
o alho, o coentro e o cominho. E tambm o azeite e a banha de porco, e com eles a fritura. Isso
sem falar nas especiarias, como a canela, a pimentadoreino, a nozmoscada.
Cascudo acompanhou as narrativas gastronmicas de viajantes europeus que vm ao Brasil
explorar a extica cultura do Novo Mundo entre os sculos XVI e XIX. A reao de holandeses,
ingleses, franceses e alemes degustao de pratos desconhecidos um tpico recorrente,
como na impresso do Padre Jos de Anchieta ao provar, pela primeira vez, a carne de
tamandu: saborosssimo; dirias que carne de vaca, sendo todavia mais mole e macia.
Em seu prprio tempo de vida, Cmara Cascudo pde observar importantes transformaes que
influenciaram a culinria no pas. Ao longo dos anos 1930 e 1940, o Estado comea a se
preocupar com a qualidade da alimentao dos trabalhadores, diretamente associada sade e
produtividade. Mdicos especializados passam a estudar o assunto e a intervir para tornar mais
nutritiva a dieta da populao. A partir da dcada de 1950, expandiramse as indstrias
alimentcias estrangeiras e a busca por uma culinria que agradasse a diferentes culturas a
chamada cozinha internacional.
Todos esses fatores abalaram nossos hbitos e fizeram com que a culinria se
descaracterizasse.Histria da Alimentao no Brasil surge como uma reao a esse
contexto,uma lembrana e um manifesto em favor das origens da nossa alimentao tradicional.
A exigncia cientfica est na exata relao da ignorncia dos bons pratos. Excetuo,
naturalmente, os nutricionistas que sabem comer com rendimento e gosto, afirma Cascudo de
modo irnico. Ele questiona a influncia que conselhos mdicos possam ter nos hbitos das
pessoas e condena as prescries que ameaam tradies alimentares, com seus bons pratos e
inigualveis receitas.
Um exemplo das mudanas mesa naqueles anos foi o lanamento do Leite Moa da Nestl,
cuja propaganda incorporou o pudim de leite condensado aos hbitos dos brasileiros. Servir um
pudim desses por volta de 1960 passava a mensagem de que a anfitri estava atenta s
novidades alimentares e ao uso das novas tecnologias domsticas, como o liquidificador. No
difcil imaginar a reao de Cascudo a tais modismos. Para ele, no poderia haver refeio
proveniente de latas.
O folclorista privilegiava a cultura alimentar popular como objeto de estudo. Devido ao baixo
poder de compra, as camadas populares no estariam suscetveis da mesma forma que a classe
mdia ao poder das propagandas. Em sua opinio, no existia para o povo argumento contra o
paladar, fosse dos mdicos, fosse dos anncios. Por isso, Cmara Cascudo acreditava que eram os
mais pobres que manteriamas tradies culinrias aliadas s razes histricas brasileiras.
A pretenso de se constituir uma cozinha internacional tambm seriamente questionada,
classificada por ele como uma frmula pasteurizada, servida nos hotis com o objetivo de
agradar a todos os tipos de paladares, estrangeiros e nacionais. Tratase de uma cozinha que
no tem ptria nem histria consagradora. A presena dos alimentos na histria de um povo
importante porque a predileo por uma comida se associa, em seu ponto de vista, s
experincias vividas ao longo dos anos. Sob sua tica, preciso ter paladar educado para se
apreciar uma feijoada.
Entre as iguarias tipicamente nacionais, o autor defende o consumo da farinha de mandioca e
consagra a predileo pelo doce como uma herana portuguesa no Brasil. Ele localiza em termos
geogrficos alguns consumos considerando a vasta extenso do territrio nacional , como o
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barreado paranaense (a carne cozida de maneira lenta em panela de barro) e o pequi goiano.
Alm disso, cita invenes como a banana com queijo. Algumas das formas de preparo de pratos
citadas por sua Histria da Alimentao no Brasil consagraramse ao ponto de serem
reconhecidas como patrimnios imateriais do Brasil pelo Instituto de Patrimnio Histrico e
Artstico Nacional (Iphan). So exemplos o acaraj, em 2005, e o queijo minasem 2008.
Em muitos pontos, o livro se aproxima de ideais atuais. Como quando afirma que vivemos no
mundo moderno sob signo da Velocidade e a gide da Angstia (de tempo, de espao
residencial, de alimentos, de tranquilidade, de alegria). O argumentobase do movimento
italiano Slow Food, fundado em 1989 como reao expanso dos fast foods, parece aliarse
tese de Cmara Cascudo ao defender a tranquilidade e qualidade das refeies em um espao de
tempo escasso para comer e sociabilizar.
Mesmo sabendo hoje que nossa realidade gastronmica mais ampla que a miscigenao das trs
raas fundadoras afinal, nossos pratos receberam influncias de imigrantes alemes, italianos,
japoneses e rabes, entre outros , a Histria da Alimentao no Brasil ainda importante
referncia para quem quiser explorar aspectos histricos, antropolgicos e sociolgicos da
culinria brasileira.

Mariana Coro autora de Bar palcio, uma histria de comida e sociabilidade em Curitiba
(Mquina de Escrever, 2012).

Box
Pas da feijoada
Uma composio culinria rebelde escrita dos manuais, caracterstica, inconfundvel, incapaz
de se exprimir em quantidade de ingredientes, fraes de tempo, e ao rpida ou lenta (...).
Transmitese por tradio: os estrangeiros no sabem confeccionlo (...). um produto do
gnio coletivo: ningum o inventou e inventaramno todos: vemse ao mundo chorando por ele, e
quando se deixa a ptria, l longe, antes de pai e me, a primeira coisa que se lembra."
Para Cmara Cascudo, nosso primeiro prato nacional seria a hoje internacionalmente
reconhecida feijoada, que costuma ter sua origem associada s senzalas brasileiras. Mas o
folclorista enfatiza a participao dos portugueses na elaborao do prato, descrito como uma
soluo europeia elaborada no Brasil. Tcnica europeia, com material brasileiro. A feijoada
seria herdeira dos populares cozidos europeus. Os feijes, presena de destaque na alimentao
de amerndios e africanos, teriam conquistado o paladar portugus. A feijoada alentejana e os
pastis de feijo so exemplos disso. Contudo, nem na frica nem na Europa, o feijo tem a
indispensabilidade que ganhou no Brasil. Por aqui, para a alegria de Cmara Cascudo, a farinha
de mandioca e o feijo so a base da alimentao nacional. Desde o sculo XVI.

Saiba Mais
BRAGA, Isabel M. R. Drumond. Sabores do Brasil em Portugal. Descobrir e transformar novos
alimentos (sculos XVIXXI). So Paulo: Editora Senac, 2000.
CASCUDO, Lus da Cmara. Preldio da cachaa.So Paulo: Global, 2006.
FREYRE, Gilberto. Acar: uma sociologia do doce, com receitas de doces e bolos do Nordeste.
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So Paulo: Companhia das Letras, 1997.


SILVA, Paula Pinto e. Farinha, feijo e carneseca: um trip culinrio no Brasil colonial. So
Paulo: Editora Senac, 2005.
Annimo. O Cozinheiro Nacional. So Paulo: Editora Senac, 2008.

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