RBA Trab. Completo Melina S. Gomes

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“Eu ainda não tô bebo que não possa trabalhar”:

análises sobre o consumo de bebida alcoólica em terreiro de umbanda1

Melina Sousa Gomes – (UFC/CE)2


Palavras-chave: Álcool. Ritual. Umbanda.

Compreendendo o álcool no Brasil

Embora não seja consenso o que se discute acerca de uma Cultura Brasileira,
sobre se esta existe de forma singular ou plural ou ainda se somos um povo ou uma
nação, arrisco dizer que está presente em nossas diversas formas de representação
identitária nacional o consumo de bebidas, em sua maioria das vezes, alcoólicas.
Câmara Cascudo em seu Dicionário do Folclore Brasileiro (2001) define o verbete
cachaça listando seus sinônimos e afirmando que

Ela está em toda a parte, nas reuniões de toda casa brasileira; está presente
nos rituais dos terreiros, nos despachos, nos candomblés, nas encruzilhadas.
Está presente também nos guardamentos, isto é, nos velórios, quando se diz
“beber o defunto”; costuma-se dizer que sem ela ninguém aguenta “guardar o
defunto”. É tão importante para os apreciadores que, além de remédio para os
pobres, serve também de “cobertor” no inverno e para “esfriar o calor no
verão”. […] A sabedoria popular não concorda que a cachaça faça mal e tenha
“parte com o diabo”, porque “todos bebem, seja homem ou mulher, a solteira
atrás da porta e a casada embaixo da cama”. […] Tornou-se nacional com os
movimentos políticos em prol da independência. Bebida de patriotas,
recusando os vinhos estangeiros, especialmente portugueses. (CASCUDO,
2001, p. 91, elementos destacados com aspas e em itálico pelo autor).

Nossas obras literárias são repletas de alusões a bebedeiras, geralmente por


celebração ou desgosto. Na música, sendo o samba nosso ritmo símbolo, os grandes
compositores de Velha Guarda da Música Popular Brasileira também não deixam este
fato passar silenciado e cantam o álcool louvando as orgias, as mazelas e aproveitando-
se do elemento para, ironicamente, realizar denúncias sociais. Muito antes de tais
criações artísticas, porém, o álcool já era consumido.

1
Trabalho Apresentado na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de
agosto de 2016, João Pessoa/PB.
2
Psicóloga pela Universidade Federal do Ceará, Mestre em Sociologia pela Universidade
Federal do Ceará. Professora substituta do Curso de Psicologia na UFC-Sobral / Professora
do curso de Enfermagem (FATE - Fortaleza). Integrante do Núcleo de Estudos Sobre Drogas
da UFC (NUCED).
1
Há registros de fabricação e consumo de bebidas alcoólicas no período pré-
colonial não somente entre os índios do Brasil, mas entre todos os povos da América
Latina. Sztutman (2008) nos fala que a substância prevalecente é o cauim, bebida
fermentada à base de mandioca brava, milho ou algaroba. Sua forma de preparo varia de
acordo com os grupos tribais, mas é geralmente de longa duração e mastigado por
mulheres, as “senhoras do cauim”.
Esta e outras bebidas presentes na América Latina eram fermentadas. Com a
chegada do europeu, foram introduzidas em nosso território as bebidas destiladas, de
origem árabe e com teor alcoólico bastante superior ao presente no cauim, portanto com
maior potencial embriagador. A aguardente passa a ser um importante aliado de
dominação e aculturação de indígenas e negros, sendo para os dominados uma valiosa
moeda de troca e para os dominadores um excelente agente de controle e submissão,
pois provocava um torpor constante (RIBEIRO, 2006).
O consumo de bebidas alcoólicas neste período colonial assume uma
ambivalência que vai da total dominação à resistência: o estado ébrio, ao mesmo tempo
em que alienava e entorpecia quem deveria estar trabalhando servilmente, incapacita o
sujeito para prestação de serviços e ameniza o sofrimento advindo dos processos
civilizatórios. Ou seja, se a aguardente era dada ao consumo para os escravos com o
intuito de evitar revoltas e fugas, ela era consumida abusivamente para que este trabalho
não fosse realizado de forma satisfatória, o que se configura como uma forma de
resistência. Carneiro (2010) complementa:

Esse papel ambivalente das bebidas alcoólicas na história colonial brasileira


(assim como de outras colônias) reflete uma importância econômica crescente
e uma disseminação cada vez maior do consumo que se tornou uma espécie
de lazer universal de escravos em particular e do povo em geral. O uso das
bebidas tornou-se um dos mecanismos centrais na instauração do espaço
social da festa, pois mesmo as religiosas tinham um consumo conspícuo de
bebidas. (CARNEIRO, 2010, p.248).

Assim, fica claro que desde o princípio da formação de nossas raízes étnicas e
culturais a bebida alcoólica exerceu um papel fundamental do que hoje em dia se
identifica como característica nacional, sendo o Brasil famoso por suas cachaças e festas
marcadas por excessos, como é o nosso carnaval.
Com a chegada da corte no Brasil em 1808 e o advento do Império em 1822,
devemos atentar ao universo nacional no quesito álcool. Diz-se que ao Imperador Dom
Pedro II não apraziam bebidas alcoólicas. Dada sua pouca idade e mal estado de saúde,

2
são poucos os registros que se têm a respeito da ingestão de bebidas alcoólicas, sendo
mais comum em seus escritos alusões à ingestão de café-com-leite e refrescos
(VIANNA, 2008).
O mesmo não se pode dizer do restante da população. Em 1900 conta-se que o
que prevalecia entre os homens da zona urbana do Rio de Janeiro era o consumo diário
e excessivo de bebidas em geral. Edmundo (2008) nos conta:

[...] diga-se de passagem, bebia-se demais, bebia-se como talvez não haja
ideia de se haver bebido no Brasil. Bebia-se pelas comporteiras! No calor,
para refrescar, no frio para aquecer... Num país tropical, como o nosso,
exigindo o uso de bebidas frescas e saudáveis, com dosagem mínima de
álcool, o que se procurava beber, quase sempre, era o corrosido de 14 graus,
ou mais, que malbaratava o fígado, causticava o estômago, pondo em petição
de miséria todo o sistema vascular, os rins, e o coração. Mais que febre
amarela, endêmica, matava o abuso do álcool. A displicência dos poderes
públicos, em questões de saúde, corria, então, parelha com a ignorância do
povo. (EDMUNDO, 2008, p.133).

O autor nos situa em um ambiente de efervescência cultural e artística, período


no qual se almejava a fineza dos entretenimentos europeus (Belle Époque) e
simultaneamente a liberdade concedida pelos excessos em nosso território. Se
lembrarmos que mais ou menos neste período vigorou a Lei Seca nos Estados Unidos,
configura-se como uma regalia o fato de dispormos ao mesmo tempo da possibilidade
de embriagar-nos e desfrutar de eventos culturais, como foi Semana de Arte Moderna
em 1922.
Aqui é posto em pauta somente o prazer causado pela ingestão de bebidas
alcoólicas retratado nas obras citadas, sem considerarmos os possíveis prejuízos por ela
causados. Dadas as variações regionais na oferta de produtos e presença de diferentes
colonizadores, o que se come e o que se bebe nas diferentes regiões do país também traz
valores relacionados ao consumo de bebidas alcoólicas.
Na Bahia, por exemplo, os licores, os vinhos de dendê, laranja e caju, além das
misturas de cachaça são muito apreciados e compõem, junto com os pratos apimentados
e quitutes doces ou salgados, um forte traço da culinária baiana, com marcada influência
da cozinha negra (VIANNA, 2008).
Já no extremo norte, no Pará e Amazonas, o que domina a mesa são peixes de
água doce ou salgada e aves. O comum de se beber é o açaí e o guaraná, ambos não
alcoólicos, porém estimulantes. Dentre as bebidas alcoólicas figuram o afurá, de origem
negra e usada em rituais de religiões afro-brasileiras e o tarubá, de origem indígena

3
comum “quer nas festas, reuniões amigáveis, putiruns e bailes” (MENEZES, 2008, p.
86).
No Rio Grande do Sul e Paraná, região sul do país, o mate parecia ser a bebida
dominante nos idos de 1858. Avé-Lallemant (2008) diz que este era “o símbolo da paz,
da concórdia, do completo entendimento” (p.206) em detrimento de bebidas não
alcoólicas mais tradicionais em outras regiões, como o café e o chá.
Em Minas Gerais e no Nordeste, farinha e cozidos acompanhados de cachaça
assemelham os dois locais. No nordeste, porém, há a ressalva do consumo do mocororó,
vinho de caju comum entre os sertanejos (TORRES, 2008; KOSTER, 2008).
Percebemos que, embora com variações ao longo do território nacional, o
consumo de bebidas alcoólicas ou estimulantes faz-se presente em todas as nossas
regiões. Também o uso de bebidas não alcoólicas apresenta um uso ritualístico, como é
o caso do cafezinho após o almoço ou ceia, bem como no meio ou fim da tarde.
É a cachaça, porém, que irá se tornar a bebida símbolo de nossa identidade
nacional, em companhia do ritmo do samba, do futebol e do carnaval. Câmara Cascudo
(2006) define o brasileiro como “devoto da cachaça, mas não é cachaceiro” (p.35). Com
isso o autor explicita o caráter atual da bebida de relevante em nossa cultura, não sendo
mais apenas desígnio de desordem, pretexto para dominação ou alienação.
Guibernau (1997) ressalta o caráter político da criação de um sentimento de
nacionalismo, definindo este como “o sentimento de pertencer a uma comunidade cujos
membros se identificam com um conjunto de símbolos, crenças e estilos de vida, e têm
vontade de decidir sobre seu destino político comum” (p.56). Com isso, afirma que ao
homogeneizar um povo através de uma língua e de uma cultura, torna-se mais fácil a
efetivação de manobras governamentais. Ao elucidar como é criada uma identidade,
complementa:
Um dos principais aspectos dos seres humanos é sua habilidade de se adaptar
a ambientes distintos. [...] A base biológica dos seres humanos permite-lhes
extraordinária capacidade de aprendizagem social [...] Valores, crenças,
costumes, convenções, hábitos e práticas são transmitidos aos novos
membros que recebem a cultura de uma determinada sociedade. [...] Uma
cultura comum favorece a criação de laços de solidariedade entre os
membros de uma dada comunidade e permite-lhes imaginar a comunidade a
que pertencem como separada e distinta das outras [...]. Os indivíduos que
ingressam numa cultura carregam emocionalmente certos símbolos, valores,
crenças e costumes, interiorizando-os e concebendo-os como parte deles
próprios. [...] A força do nacionalismo procede não do pensamento racional
apenas, mas do poder irracional das emoções que se originam dos
sentimentos de pertencer a um grupo determinado. (GUIBERNAU, 1997,
pp.85-86).

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Dessa forma, podemos compreender o quanto de nossa identidade está atrelada a
uma cultura que traz em seu seio amplas possibilidades de consumo de bebidas
alcoólicas. Basta lembrarmos da figura do Malandro de Chico Buarque, brasileiro típico
que “senta à mesa do café/bebe um gole de cachaça/acha graça/e dá no pé,” ou da
súplica de Adoniran Barbosa por silêncio ao cantar-indagando: “nós viemos aqui pra
beber ou pra conversar?”, ou ainda do samba de partido-alto “a Maria começa a beber
no domingo de manhã”, domínio popular musicado por Clementina de Jesus.
É vasto nosso repertório e literatura louvando nossa “caninha”. É de esperar,
portanto, que de nossas construções religiosas ela não estivesse ausente. Apropriações
de bebidas como o vinho cristão nos rituais afro-brasileiros não é de se espantar, bem
como as referências à Jurema indígena.
Avelar (2009) nos chama a atenção, ao realizar uma arqueologia da embriaguez
na América Portuguesa do século XVIII, de que a cachaça não pode ser encarada
enquanto substância autônoma, como que dotada do poder de instituir-se enquanto
bebida nacional à revelia dos agentes que a consagraram como tal.

Uma „história da aguardente‟ só tem sentido quando ela participa do processo


histórico e dos regimes sociais enquanto produto da atividade humana por meio
do qual as mais diversas relações de afinidade e/ou de conflito se estabeleceram
entre diferentes agentes sociais. Mas não é assim que apresenta nosso objeto
uma parte da literatura contemporânea dedicada a esta história. (AVELAR,
2009, p.3).

Na análise de Marques (2007), é a embriaguez como loucura o alvo de pesquisa.


É sabido que a embriaguez, na ânsia de ser afastada do centro e levada à periferia, é
associada aos transtornos mentais, bem como os desvios de conduta. Em uma sociedade
pautada em poderes médicos, na qual os reclames por sobriedade do capitalismo
condenam os estados alterados de consciência, não é de admirar que os alcoolistas
formassem grande parte do corpo aprisionado em manicômios e instituições de saúde
mental (FOUCAULT, 2008).
Em Minas Gerais, a partir da década de 80 os incentivos governamentais e
apelos da produção ao consumidor chamam a atenção de Silva (2009). Para a autora, a
partir do citado período deve-se atentar não somente à construção/naturalização da
cachaça como bebida símbolo, mas sobretudo ao destaque midiático que esta tem
alcançado, sendo uma das grandes responsáveis por divulgar o Brasil no exterior.
Já nos estudos de Nascimento (2007), é o caráter alimentício do álcool que tem

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destaque. Elemento culinário e gastronômico, possibilita sociabilidades que somente a
comida não contempla em sua plenitude.
O uso ritualístico-religioso, porém, tem sido pouco explorado. Normalmente
citado, mas nunca aprofundado, o álcool na literatura acadêmica sobre umbanda cumpre
papel ilustrativo, embora tenhamos visto que em nossa cultura é relevante e crucial –
assim como a religião em pauta.
Este trabalho propõe-se, portanto, a analisar alguns sentidos do uso ritualístico
de álcool nas giras de umbanda. A ideia surge diante de meu estranhamento para com o
fato de em um terreiro de umbanda, as entidades comumente permearem seus trabalhos
pela ingestão de bebidas alcoólicas. Quais os sentidos deste consumo para a referida
religião?

Compreendendo o álcool na umbanda

A pesquisa realizada teve como objetivos principais perceber os sentidos


atribuídos pelos adeptos a este consumo ritual, analisar as possíveis aproximações entre
entidade espiritual/substância ingerida e procurar compreender as relações entre sagrado
e profano, já que a bebida alcóolica (elemento profano) é sacralizada no espaço e no
tempo do ritual, sendo vetada em outros momentos. É esta relação entre sagrado e
profano, que regulamenta o consumo de álcool pelos filhos de santo.
A pesquisa baseou-se em métodos qualitativos, utilizando a etnografia com
observação participante. A coleta de dados se deu através de registros de imagens em
vídeos e fotografias, bem como registros das falas dos entrevistados e as anotações do
diário de campo.
A etnografia foi realizada em um terreiro situado na periferia da cidade de
Fortaleza-CE, contando com um número aproximado de 30 filhos de santo. As giras
ocorriam aos sábados e o marco organizador destes escritos foi o calendário festivo,
cobrindo o ciclo de um ano do local que vamos chamar de Casa de Zé3.
A escolha pelas festas não se deu meramente pelo fator organizador do tempo.
Em um terreiro de umbanda ou candomblé, todas as sessões – denominadas giras –

3
Casa de Zé é uma alusão ao espírito guardião do terreiro, o caboclo Zé Pelintra. Este não é o nome
oficial do centro, o que não prejudica o entendimento do estudo de caso e resguarda o sigilo dos
frequentadores envolvidos na pesquisa.

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remetem a um ambiente festivo. Mesmo em dias comuns, quando nenhum orixá ou
entidade está sendo homenageado em específico, o ritmo do atabaque, triângulo e
xequerê compassam a alegria que deve estar presente em tais momentos.
Falar de festas é discutir um universo rico, prazeroso e belo tão presente em
nossos dias. A despeito de toda essa delícia, não são numerosos os trabalhos que as
tratam como fenômeno autônomo a ser estudado; o mais comum é que sejam
adjacentes, naturais e contingentes a determinados ambientes, tratadas como mais um
elemento a ser descrito e não como centro da vida social (PEREZ, 2012).
Na umbanda, toda gira tem um caráter festivo. Pela música, cuidado no preparo,
dança e bebidas; tudo parece remeter ao excesso, ainda que o principal valor seja a
humildade. Em um terreiro, tudo é muito. Se as roupas são brancas para traduzir
simplicidade, elas devem ser muito brancas; se às mulheres cabe vestir saias, que sejam
rodadas e bem rodadas. Para uma oferenda, uma cesta com pequenas frutas não basta:
quando se almeja fartura, que as oferendas sejam fartas, um balaio inteiro, largo e
fundo, com frutas grandes, muito bem escolhidas e muito bem lavadas.
Se em alguns terreiros de umbanda as festas são amplamente divulgadas, em
nosso centro elas parecem ser secretas. Acontece que, neste universo religioso, pouco se
faz em segredo. As festas são, assim, ocasiões de prestígio e disputa. Admira-se e
inveja-se as roupas, a sintonia dos filhos de santo e a força do caboclo na festa do
terreiro visitado. Repara-se na comida, na bebida, na limpeza e especialmente nas
disputas.
É por isso que, antes de uma festa, além da mobilização para promover o evento,
é necessário que sejam trabalhadas as quizilas da casa, as desavenças entre filhos de
santo. Para uma festa correr bem, não deve haver intrigas.
Turner (1988) explicita em capítulo dedicado à performance na umbanda
brasileira algumas possibilidades para que se desencadeiem redes de fofocas e intrigas.
Uma delas é a frustração do ritual, agindo de maneiras incongruentes com a doutrina da
religião e, principalmente, em dissonância com a filosofia do centro. Cada centro de
umbanda tem um modo de funcionamento particular, o que confere aos terreiros grande
heterogeneidade.
Uma quebra grave é um médium sair do terreiro bêbado. Por ocasião das festas,
por vezes é preferível que o número mínimo de pessoas incorporem, dados os riscos que
estão correndo: há pessoas de fora e não há como saber, no momento, em que elas estão
concentradas. A sensação que é passada aos filhos de santo é que sempre, de uma forma

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ou outra, elas estão torcendo para algo dar errado, pois assim as festas de seus
respectivos centros seriam consideradas melhores. Beber, portanto, em meio a tanta
observação, torna-se muito perigoso.
Ainda assim, é raro em uma festa somente o Pai de Santo incorporar. Isto por
que, como em todas as relações sociais, o papel de um sujeito só é cumprido a rigor
quando da presença de seus pares e “quando se sabe que o público secretamente é cético
quanto à realidade que lhe está sendo exibida, estamos preparados para apreciar sua
tendência de precipitar-se sobre defeitos insignificantes como sinal de que o espetáculo
inteiro é falso” (GOFFMAN, 2002, p.54).
Da mesma forma que possuímos laços de amor, amizade e parentesco, as
entidades possuem, em suas narrativas biográficas e elaborações mitológicas, laços
semelhantes. Dessa forma, como em uma festa se reúnem os amigos, é necessário que
mais de um médium esteja incorporado para completar a rede social do orixá ou caboclo
homenageado.
Para que tudo corra conforme o planejado em uma festa, as interdições rituais –
denominadas de obrigação – devem ser seguidas, respeitando-se as delimitações entre
sagrado e profano.
Para abertura, firmação de segurança material e espiritual da casa, para saudar e
despedir-se, para confraternizar e identificar-se, as bebidas compõem cenário
indispensável no terreiro. Sua importância e valor rituais são indiscutíveis, o que traz o
questionamento: e fora do momento ritual, qual sua importância? Como o mesmo
elemento é encarado fora da gira, nos ambientes profanos?

Usos ritualísticos: o sagrado é ébrio, o profano é sóbrio

Beber é coisa séria; embriagar-se não é permitido e para isso a concentração é


fundamental. A bebida é sagrada, assim como tudo que adentra o terreiro, inclusive o
corpo dos adeptos, posto que ele abriga o espírito dos seres evoluídos para que
concretizem seus trabalhos. O corpo como santuário deve ser bem cuidado e respeitado,
limpo na matéria e na alma.
Para tanto competem práticas de oração e meditação, banhos de ervas e
exercícios de concentração para comunicação com o sagrado através dos objetos rituais,
tais como a fumaça dos cachimbos ou a chama das velas.
Em primeiro lugar, é importante lembrar que o sagrado e o profano coexistem.

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Eles complementam-se no universo umbandístico, de forma que mediante certos ritos
elementos mundanos passam a ser considerados sacros, mas somente no espaço-tempo
do ritual. As bebidas de um terreiro são invariavelmente sagradas; as de um bar, via de
regra, não.
Para integrar o corpo mediúnico de um terreiro, é necessário distanciar-se do que
caracteriza os espaços profanos. Um bom exemplo desse distanciamento é o
confinamento para feitura de santo (SANTOS, 1975). Este rito diz respeito à inserção
do sujeito naquela comunidade, tendo a partir daquele momento obrigações para com
sua “nação de santo” e seu “orixá de frente”, ou seja, simboliza o distanciamento do
universo profano através da renúncia a outras atividades que agora terão seu lugar
ocupado pelos compromissos assumidos.
Na casa que foi pesquisada, em termos gerais, é esperado que os iniciados que
trabalham com incorporação estejam aptos a beber, mas não a se embriagar. Um
médium que demonstra sinais de embriaguez é tido como desequilibrado, pois ainda não
consegue, através da incorporação, dissipar os efeitos comuns do álcool. Um adepto
seguro é aquele que ingere, em uma mesma gira, substâncias como cerveja, whisky,
vinho, campari, rum e, ao final, não apresenta sinais nítidos de embriaguez. É o que
sabe utilizar-se da bebida sem maiores vexames, que ingere as substâncias condizentes
com o perfil da entidade com a qual trabalha e principalmente seguindo a ordem da
linha de trabalho do terreiro. É aquele que bebe na medida, de acordo com a
necessidade do dia: não em demasia como que por diversão, não por menos como que
de má vontade.
Um iniciado que não entra em estado de transe também pode consumir bebidas
durante a gira, porém em menor quantidade. Ele só bebe quando convidado pela
entidade a fazê-lo e este compartilhamento é sempre prenhe de sentido. O comum é que,
através da bebida, bem como da fumaça, a entidade que lhe faz o agrado efetive o
trabalho que vem sendo desenvolvido.
Como se percebe, o consumo de álcool é marcado por um paradoxo que só é
distinguido pelo uso ritualístico. Edward Macrae, pesquisador do uso ritual-religioso de
substâncias como a Ayahuasca, faz-nos atentar que este tipo de uso ritual não deixa de
ser, também, uma forma de controle e redução de danos, o que não necessariamente
torna todo o processo de consumo regrado ou envolve consciência de tais fatos pelos
participantes. O autor toma de empréstimo os termos “sanção” e “ritual” sociais,
explicando que:

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“Sanções sociais” seriam as normas que definem se e como determinada droga
deve ser usada. Incluiriam tanto os valores e regras de conduta compartilhados
informalmente por grupos (embora frequentemente de maneira não
explicitada) e as leis e políticas formais que regulamentam o uso de drogas. Já
os “rituais sociais” seriam padrões estilizados de comportamento recomendado
em relação ao uso de uma droga. Eles seriam aplicados aos métodos de
aquisição e administração de uma substância, à seleção do meio físico e social
para usá-la, às atividades empreendidas após o uso, e as maneiras de evitar
efeitos indesejados. Dessa forma, esses rituais reforçariam e simbolizariam as
sanções sociais. Os controles sociais para todas as drogas, lícitas ou ilícitas,
atuariam em diferentes contextos sociais, indo desde grupos muito grandes,
representativos de uma cultura como um todo, até pequenos grupos específicos
e sua vigência se aplicaria de maneira variada em diferentes momentos. Assim,
certos tipos de uso, em ocasiões especiais, envolvendo grande número de
pessoas, apesar de sua diversidade cultural, tornariam-se tão aceitáveis que
mesmo uma legislação restritiva poderia ser momentaneamente posta de lado.
(MACRAE, 2001, p.14-15).

O que temos na umbanda é uma forma de controle do uso e abuso do álcool que
parece visar, primordialmente, a aproximação com o sagrado e a consequente evolução
espiritual. Estes elementos combinam-se e são alcançados concomitantemente ao
aprendizado do bom uso do álcool, ao manejo com a bebida alcoólica de forma que esta
possibilite a realização dos trabalhos de caridade aos quais a religião se propõe.
Os rituais que se destinam a sacralizar o álcool são discretos, parecendo
depender somente do fenômeno da incorporação. A entidade que se vale da bebida em
suas magias o faz com segurança, o contrário de um médium fora do estado de transe –
este não possui permissão para beber livremente ou ofertar bebida, passível dos
desgostos próprios da bebedeira caso o faça.
Da mesma forma, quando o médium não incorporado recebe a oferta da bebida
de um caboclo, deve estar concentrado e atento para efetivar o trabalho em trânsito, caso
contrário a “reima” da bebida pode fazer-lhe mal e o erro será invariavelmente atribuído
ao médium e nunca à entidade – quem bebe tem a ciência e o preparo para fazê-lo, daí
as normas e restrições de uso serem tão severas e exaustivamente retomadas.
No terreiro a bebida é sagrada, bem como todo o ritual que a envolve. Fora deste
espaço, sem a mediação espiritual a consagrar-lhe, o álcool é elemento nocivo e
ameaçador. Torna-se vetor de desgraças e mobiliza negatividades difíceis de dissipar
pelo homem comum distanciado do divino.
É possível, entretanto, que se consuma álcool em situações externas ao momento
e ao espaço do ritual de maneira que seus efeitos negativos sejam minimizados.
Instruções passadas pelas entidades e pelo pai de santo podem ser seguidas no sentido
de combater os possíveis males advindos deste consumo, inclusive providências no

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nível da ação.
Embora proibido em quase todas as situações e altamente recomendado o maior
afastamento possível em outras, nem sempre é possível evitar a ingestão de bebidas
alcoólicas fora do espaço do terreiro no momento do ritual. O ato de beber é também
cultural, socializador e quiçá político – quão desagradável não é um sujeito que, em um
almoço de negócios, recusa o vinho fino ofertado pelo patrão ou, no happy-hour da
sexta-feira, é incapaz de tomar pelo menos um chopp para poder brindar ao fim de
semana.
Algumas providências podem ser tomadas com o intuito de não desagradar as
entidades, bem como preservar a “coroa” – cabeça do médium, principal chakra do qual
emanam energias e é o local de “passagem” das “correntes” dos orixás. Elas não devem
ser usadas abusivamente, mas somente de acordo com a necessidade – caso contrário,
perderia o sentido tanta energia investida na sacralização da substância e trabalhos
voltados para o desenvolvimento de seu consumo responsável dentro do ritual.
Uma das providências é sempre “servir o caboclo”: ao sentar à mesa do bar e
pedir uma cerveja, o primeiro copo deve ser consagrado ao seu guardião espiritual,
devendo ficar localizado no centro da mesa ou próximo ao médium, e só depois os
copos das outras pessoas devem ser servidos. A cada nova garrafa pedida, o conteúdo
anterior daquele primeiro copo deve ser “despachado” (jogado fora) com o pensamento
ainda na entidade e o processo se repete.
No caso de bebidas destiladas, que são pedidas em doses, também uma dose
deve ser destinada a alguma entidade. Como são substâncias mais fortes, estão mais
associadas aos exus, então uma dose de cachaça ou whisky dificilmente será ofertada a
um caboclo – para estes, vinho ou cerveja. Bebidas finas e mais associadas ao universo
feminino, como champanhe ou martine, são associadas às pomba giras, os exus
femininos, ligadas ao luxo. Por fim, Campari e Rum fazem parte do universo dos
ciganos.
De acordo com os ensinamentos pertinentes à doutrina da umbanda, a bebida
torna o médium vulnerável a influências malignas, pois o estado alterado de consciência
não permite o controle da coroa, deixando-a aberta e exposta a espíritos baixos.

As forças religiosas são de dois tipos. Umas são benéficas, guardiãs da ordem
física e moral, dispensadoras da vida, da saúde, de todas as qualidades que os
homens estimam. [...] Por outro lado, há as potências más e impuras,
produtoras de desordens, causadoras de morte, de doenças, instigadoras de
sacrilégios. [...] As potências boas e salutares repelem para longe delas as que

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as negam e as contradizem. (DURKHEIM, 1996, pp. 499-500).

O fato de servir o caboclo significa respeito e pedido de proteção. Beber sem


esta reverência e referida proteção implica em estar “descoberto”, ou seja, desprotegido
e consequentemente exposto aos perigos mundanos, como meter-se em uma briga, bater
o carro, discutir com os amigos ou cônjuge, passar mal física e espiritualmente. Os
lapsos de memória podem tornar-se mais comuns, pois você não responde mais pelos
seus atos: são as forças malignas que dominam sua coroa, fazendo do médium
instrumento para realização de eventos negativos, pois estes espíritos supostamente
apresentam desejo de vingança e rancor em alto grau.
Assim sendo, se o evento exige que se beba, como por exemplo um brinde aos
noivos, é necessário fazê-lo com cautela: “tudo o que importa é que o sacrilégio seja
feito com precauções que o atenuem” (DURKHEIM, 1996, p.364). É preciso estar
concentrado, com o pensamento nas entidades e atento à dose destinada ao caboclo.
Nas entrevistas surgiram relatos concernentes a episódios nos quais se bebeu
sem as providências cabíveis. Eles são recorrentes, eu mesma já tendo presenciado
algumas narrativas de como a pessoa passou mal, esqueceu de tudo ou tornou-se
agressiva, eventos que anteriormente a sua iniciação não ocorriam.
Fatos como o citado acima denotam o forte elemento psicológico imbuído na
questão de ser filho de santo, explicitando como a relação com os psicoativos ultrapassa
a dimensão fisiológica ou orgânica e é amplamente perpassada pela psique humana.
Da mesma forma que o estado de transe permite a ingestão de altas quantidades
de álcool sem evidenciar a embriaguez, a impregnação da doutrina nas outras esferas da
vida do adepto o torna também suscetível a contatos por vezes involuntário com o
sobrenatural.
O povo do santo vivencia a religiosidade como um emaranhado de
representações, na medida em que os cultos afro-brasileiros adotam um modelo de
filiação que impõe modos de dançar, vestir, comer, beber, falar etc. e está organizado em
uma hierarquia rígida, que não dispensa nenhum cargo – desde o de menor até o de
maior prestígio – das obrigações para com o santo.
Este modelo de funcionamento ocorre preferencialmente no âmbito do sagrado,
podendo (e devendo) estender-se ao modo profano, contanto que respeitados os
ensinamentos dispensados pelas entidades, mentores espirituais ou figuras de referência
e autoridade, como o pai de santo. Goffman (2007) nos fala do conceito de fachada ao

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discutir sobre representações sociais. Diz que:

Venho usando o termo “representação” para me referir a toda atividade de um


indivíduo que se passa num período caracterizado por sua presença contínua
diante de um grupo particular de observadores e que tem sobre estes alguma
influência. [...] Fachada, portanto, é o equipamento expressivo de tipo
pradronizado intencional ou inconsciente empregado pelo indivíduo durante
sua representação. (GOFFMAN, 2007, p.29).

No caso estudado, esta fachada e seu momento de representação ultrapassam a


atividade ritual e a presença física dos irmãos de santo, pois os orixás e caboclos
manifestam-se também no plano do imaterial, sendo presenças constantes.
Sabendo que os orixás correspondem, costumeiramente, a uma tríade de
características, a saber: a) identificação com elementos naturais, b) aproximação com
uma profissão/atividade e c) um perfil psicológico (LEPINE, 1981), é raro estar em um
local que não haja pelo menos um domínio específico de alguma entidade.
Estas características devem ser bem observadas no ato de presentear o orixá,
bem como no de pedir sua proteção, sob pena de não alcançar a meta em questão devido
ao fato de não estar atento ao domínio da entidade. Não se deve, portanto, ofertar
cerveja a um preto velho ou whisky a uma princesa – cada entidade tem suas
preferências condizentes com suas histórias e demais simbolismos.
Mauss (2003) em seu Ensaio sobre a dádiva analisa algumas sociedades
pautadas em relações de trocas, sobretudo de conotação econômica ligada à manutenção
de status. Em analogia a este pensamento, pode ser feita a metáfora relacionada às
relações de trocas com divindades espirituais: seguindo a linha de raciocínio do dar,
receber e retribuir, as oferendas já citadas neste texto são comumente efetivadas
mediante o ato de presentear entidades espirituais (dar) – no caso os orixás, caboclos e
pretos velhos – para, ao se alcançar o objeto desejado (receber), agradecer-lhe com mais
oferendas, se possível superior quantitativa ou qualitativamente à primeira (retribuir).
Creio que pode ser dito que o ato de presentear, durante o ritual, as entidades
com bebidas alcoólicas representa sinal de respeito e agradecimento, bem como fé no
fato de que aquela substância é de fato responsável por elevações espirituais, soando
como um gesto cortês e ao mesmo tempo possibilitando negociações.
É através da bebida e da negação de seus efeitos mundanos que a força do
caboclo é posta à prova, bem como a fé do filho de santo. É seu distanciamento do
universo profano, embora o simbolize muito bem, que indica o quão sacro é o espaço do

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terreiro; é a quantidade e variedade ingerida que, por fim, indica se os médiuns de
incorporação são dignos de confiança e se de fato estão sob influência espiritual do
caboclo, com forças superiores agindo sobre ele.

Alguns sentidos

Os sentidos que o álcool assume no terreiro vão além de sua posologia inicial.
Confraternizar com os filhos de santo em clima de festa e agradecimento é, sem dúvida,
um significado belo e bastante explorado. É através desse encontro que se trocam
conselhos, que histórias das entidades são despretensiosamente contadas, é em clima de
leveza e bem estar geral que parece haver verdadeiro encontro.
Limpeza e cura recebem destaque por materializar, através da substância, o
trabalho que vem sendo realizado. É como se, ao dar corpo e volume àquela doença ou
mal estar e bebê-la, a visualização da mazela esvaindo-se fosse concreta e imediata:
estava concentrada no copo, na dose ou na cuia e foi bebida, purificada mediante a
ingestão não embriagadora do líquido. Este foi, por sua vez, o vetor de transporte que
retirou do médium o malefício e entregou-o aos responsáveis maiores, entidades e
orixás que possuem contato direto e imediato com os céus e a terra. É como se eles
levassem, finda a incorporação, tudo de ruim quanto foi retirado da gira juntamente com
a bebida – se a bebida permanecer no corpo ou na cabeça, o trabalho não foi bem
sucedido e aí reside uma falta grave.
Confirmar os acordos e reforçar laços também é papel cumprido pelo álcool.
Compartilhar da bebida da entidade é uma forma de demonstrar-se crente nela, de selar
um acordo; o brinde é como um aperto de mãos dado de igual para igual, sem receios
maiores e é um gesto de extrema confiança.
Quando em casa desconhecida, ambiente alheio ou hostil, a recomendação é que
não se aceite bebida, mas jamais sendo descortês; finge que bebe, encosta na boca ou, se
necessário, bebe com o pensamento no corte; esta é só uma das formas de proteger-se
das possíveis quizilas. Em nosso próprio centro, mediante quizilas de médiuns ou
entidades, este artifício por vezes é utilizado e quando percebido se torna alvo de muitas
reprovações.
Se há presença de visitantes no centro ou de pessoas que estão aos poucos
chegando, observar como se comportam diante do oferecimento das bebidas é um
indicador do quanto o sujeito confia nos trabalhos do centro. Quando um filho de santo

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se recusa a beber algo, é indício de algo muito errado no quesito credibilidade na casa,
na entidade incorporada ou no cavalo que ela ocupa.
Faz parte da indumentária dos caboclos a bebida que lhes diz respeito. Ela
compõe sua identidade e forma de encarar o mundo, reflete um modo de vida que se
traduz em gestos e gostos por esta ou aquela substância.
Simultaneamente, as bebidas põem à prova o fenômeno da incorporação, pois
um sujeito comum desprovido da ciência do caboclo não conseguiria, via de regra,
ingeri-las sem sofrer seus efeitos cotidianos – e isso nada tem a ver com adaptações
pessoais fisiológicas, tais como aumentar a tolerância ou controlar a fala e o andar de
modo a passar despercebida uma embriaguez.

Conclusões

Estes sentidos de confraternização, limpeza e cura, confirmação de votos e


identificação empática são ditos comumente nos primeiros discursos, validados e
presentes em todos os adeptos do centro. São públicos.
O que observei que não se traduziu em afirmações assertivas e mostrou-se
sempre através de insinuações e meias palavras, é que o álcool no terreiro simboliza
poder. Só bebe quem sabe, e quem sabe tem o poder da ciência, pois domina magias e
delas se vale para dissipar o álcool após os trabalhos. Quem não sabe, assiste e cuide-se
para não se embriagar, apenas admire e concentre-se para escapar das quizilas.
Uma ressalva com relação às mulheres de umbanda: a bebida para estas torna-se
ainda mais ameaçadora. Além de todos os riscos comuns aos dois gêneros, como
envolver-se em discussões, entrar em contato com espíritos baixos, acidentar-se ou ter
problemas com o emprego, a elas soma-se o risco de apresentar comportamentos
considerados desviantes no que diz respeito à sexualidade.
O corpo feminino sempre foi alvo de grande controle e observação, passível de
intervenções e, paradoxalmente, ao mesmo tempo que por este motivo parece estar mais
exposto, é justo sobre ele que recai todo o mistério e silêncio (FOUCAULT, 1988). A
umbanda não foge a essa regra e coloca, como agravante do mal uso da bebida para as
mulheres, o que considera enquanto reprovável, que seria a vontade desenfreada por
sexo.
Por fim, o álcool no terreiro, por representar as ambiguidades da relação sagrado
x profano, é elemento dúbio e contraditório; é veneno que cura e mata a não depender

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da dose e sim da concentração e disciplina. É subproduto da ascensão hierárquica no
centro, pois a cada deitada de santo, novas bebidas podem unir-se à incorporação do
filho de santo, empoderando-o enquanto médium bem desenvolvido e responsável.
Quando mal utilizado ou interpretado, é o agente que melhor conduz o fio das
discussões, especialmente as que envolvem acusação de falsa incorporação ou
irresponsabilidade do filho de santo em lidar com a mediunidade. O sujeito que se
pretende médium de incorporação e não sabe como lidar com a bebida, seja em seu
modo profano ou sagrado, em definitivo não está apto a exercer grandes funções e
ocupar cargos de destaque no terreiro.

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