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Apontamentos Sobre O Conceito De Etnojornalismo

2019, Comunicação e Jornalismo: Conceitos e Tendências 3

Revisão: Os Autores O conteúdo dos artigos e seus dados em sua forma, correção e confiabilidade são de responsabilidade exclusiva dos autores. Permitido o download da obra e o compartilhamento desde que sejam atribuídos créditos aos autores, mas sem a possibilidade de alterá-la de nenhuma forma ou utilizá-la para fins comerciais. Conselho Editorial Ciências Humanas e Sociais Aplicadas APRESENTAÇÃO Este e-book apresenta uma série de pesquisas sobre o papel do jornalismo na sociedade e as mudanças que ocorreram na comunicação ao longo da história a partir do ambiente virtual e das novas ferramentas tecnológicas. Neste volume, o leitor poderá compreender as características dos textos publicados nos jornais no início do século XX, época em que o ofício se dividia entre o jornalismo e a literatura. Dentre os estudos, autores discutem a dimensão crítica, especificamente a jornalística, na formação de cidadãos mais conscientes em relação às mídias e trazem a diferenciação entre os termos alfabetização midiática, mídia-educação e educomunicação. Ao encontro deste tema, outa pesquisa analisa a contribuição do ombudsman na elucidação de um fato socialmente relevante. Artigos abordam a prática jornalística contemporânea neste momento de pósverdade e a sua adaptação às novas plataformas, assim como, revelam a transformação nos modos de produção impulsionada pela internet e o uso de big data. Além disso, também é possível compreender como o jornalismo se apropria de conversações, interações e mensagens que circulam em sites de redes sociais para a construção da notícia. Esta obra reúne reflexões teóricas importantes para aqueles que são pesquisadores,profissionais e estudantes da área.

Vanessa Cristina de Abreu Torres Hrenechen (Organizadora) Comunicação e Jornalismo: Conceitos e Tendências 3 Atena Editora 2019 2019 by Atena Editora Copyright © Atena Editora Copyright do Texto © 2019 Os Autores Copyright da Edição © 2019 Atena Editora Editora Executiva: Profª Drª Antonella Carvalho de Oliveira Diagramação: Rafael Sandrini Filho Edição de Arte: Lorena Prestes Revisão: Os Autores O conteúdo dos artigos e seus dados em sua forma, correção e confiabilidade são de responsabilidade exclusiva dos autores. Permitido o download da obra e o compartilhamento desde que sejam atribuídos créditos aos autores, mas sem a possibilidade de alterá-la de nenhuma forma ou utilizá-la para fins comerciais. Conselho Editorial Ciências Humanas e Sociais Aplicadas Prof. Dr. Álvaro Augusto de Borba Barreto – Universidade Federal de Pelotas Prof. Dr. Antonio Carlos Frasson – Universidade Tecnológica Federal do Paraná Prof. Dr. Antonio Isidro-Filho – Universidade de Brasília Prof. Dr. Constantino Ribeiro de Oliveira Junior – Universidade Estadual de Ponta Grossa Profª Drª Cristina Gaio – Universidade de Lisboa Prof. Dr. Deyvison de Lima Oliveira – Universidade Federal de Rondônia Prof. Dr. Gilmei Fleck – Universidade Estadual do Oeste do Paraná Profª Drª Ivone Goulart Lopes – Istituto Internazionele delle Figlie de Maria Ausiliatrice Prof. Dr. Julio Candido de Meirelles Junior – Universidade Federal Fluminense Profª Drª Lina Maria Gonçalves – Universidade Federal do Tocantins Profª Drª Natiéli Piovesan – Instituto Federal do Rio Grande do Norte Profª Drª Paola Andressa Scortegagna – Universidade Estadual de Ponta Grossa Prof. Dr. Urandi João Rodrigues Junior – Universidade Federal do Oeste do Pará Profª Drª Vanessa Bordin Viera – Universidade Federal de Campina Grande Prof. Dr. Willian Douglas Guilherme – Universidade Federal do Tocantins Ciências Agrárias e Multidisciplinar Prof. Dr. Alan Mario Zuffo – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul Prof. Dr. Alexandre Igor Azevedo Pereira – Instituto Federal Goiano Profª Drª Daiane Garabeli Trojan – Universidade Norte do Paraná Prof. Dr. Darllan Collins da Cunha e Silva – Universidade Estadual Paulista Prof. Dr. Fábio Steiner – Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul Profª Drª Girlene Santos de Souza – Universidade Federal do Recôncavo da Bahia Prof. Dr. Jorge González Aguilera – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul Prof. Dr. Ronilson Freitas de Souza – Universidade do Estado do Pará Prof. Dr. Valdemar Antonio Paffaro Junior – Universidade Federal de Alfenas Ciências Biológicas e da Saúde Prof. Dr. Benedito Rodrigues da Silva Neto – Universidade Federal de Goiás Prof.ª Dr.ª Elane Schwinden Prudêncio – Universidade Federal de Santa Catarina Prof. Dr. Gianfábio Pimentel Franco – Universidade Federal de Santa Maria Prof. Dr. José Max Barbosa de Oliveira Junior – Universidade Federal do Oeste do Pará Profª Drª Natiéli Piovesan – Instituto Federal do Rio Grande do Norte Profª Drª Raissa Rachel Salustriano da Silva Matos – Universidade Federal do Maranhão Profª Drª Vanessa Lima Gonçalves – Universidade Estadual de Ponta Grossa Profª Drª Vanessa Bordin Viera – Universidade Federal de Campina Grande Ciências Exatas e da Terra e Engenharias Prof. Dr. Adélio Alcino Sampaio Castro Machado – Universidade do Porto Prof. Dr. Eloi Rufato Junior – Universidade Tecnológica Federal do Paraná Prof. Dr. Fabrício Menezes Ramos – Instituto Federal do Pará Profª Drª Natiéli Piovesan – Instituto Federal do Rio Grande do Norte Prof. Dr. Takeshy Tachizawa – Faculdade de Campo Limpo Paulista Conselho Técnico Científico Prof. Msc. Abrãao Carvalho Nogueira – Universidade Federal do Espírito Santo Prof. Dr. Adaylson Wagner Sousa de Vasconcelos – Ordem dos Advogados do Brasil/Seccional Paraíba Prof. Msc. André Flávio Gonçalves Silva – Universidade Federal do Maranhão Prof.ª Drª Andreza Lopes – Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento Acadêmico Prof. Msc. Carlos Antônio dos Santos – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro Prof. Msc. Daniel da Silva Miranda – Universidade Federal do Pará Prof. Msc. Eliel Constantino da Silva – Universidade Estadual Paulista Prof.ª Msc. Jaqueline Oliveira Rezende – Universidade Federal de Uberlândia Prof. Msc. Leonardo Tullio – Universidade Estadual de Ponta Grossa Prof.ª Msc. Renata Luciane Polsaque Young Blood – UniSecal Prof. Dr. Welleson Feitosa Gazel – Universidade Paulista C741 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG) Comunicação e jornalismo: conceitos e tendências 3 [recurso eletrônico] / Organizadora Vanessa Cristina de Abreu Torres Hrenechen. – Ponta Grossa (PR): Atena Editora, 2019. – (Comunicação e Jornalismo: Conceitos e Tendências; v. 3) Formato: PDF Requisitos de sistemas: Adobe Acrobat Reader Modo de acesso: World Wide Web Inclui bibliografia ISBN 978-85-7247-388-0 DOI 10.22533/at.ed.880191206 1. Comunicação social. 2. Democratização da mídia. 3.Jornalismo. I. Hrenechen, Vanessa Cristina de Abreu Torres. II.Série. CDD 303.4833 Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422 Atena Editora Ponta Grossa – Paraná - Brasil www.atenaeditora.com.br [email protected] APRESENTAÇÃO Este e-book apresenta uma série de pesquisas sobre o papel do jornalismo na sociedade e as mudanças que ocorreram na comunicação ao longo da história a partir do ambiente virtual e das novas ferramentas tecnológicas. Neste volume, o leitor poderá compreender as características dos textos publicados nos jornais no início do século XX, época em que o ofício se dividia entre o jornalismo e a literatura. Dentre os estudos, autores discutem a dimensão crítica, especificamente a jornalística, na formação de cidadãos mais conscientes em relação às mídias e trazem a diferenciação entre os termos alfabetização midiática, mídia-educação e educomunicação. Ao encontro deste tema, outa pesquisa analisa a contribuição do ombudsman na elucidação de um fato socialmente relevante. Artigos abordam a prática jornalística contemporânea neste momento de pósverdade e a sua adaptação às novas plataformas, assim como, revelam a transformação nos modos de produção impulsionada pela internet e o uso de big data. Além disso, também é possível compreender como o jornalismo se apropria de conversações, interações e mensagens que circulam em sites de redes sociais para a construção da notícia. Esta obra reúne reflexões teóricas importantes para aqueles que são pesquisadores,profissionais e estudantes da área. Vanessa Cristina de Abreu Torres Hrenechen SUMÁRIO CAPÍTULO 1 ................................................................................................................ 1 A CONTRIBUIÇÃO DA COLUNA DE OMBUDSMAN PARA A COMPREENSÃO DO ACONTECIMENTO NO CASO DA MORTE DO REITOR CANCELLIER Diana de Azeredo DOI 10.22533/at.ed.8801912061 CAPÍTULO 2 .............................................................................................................. 12 A CRÍTICA DA MÍDIA ATRAVÉS DAS PRÁTICAS JORNALÍSTICAS Cristine Rahmeier Marquetto DOI 10.22533/at.ed.8801912062 CAPÍTULO 3 .............................................................................................................. 24 AGÊNCIAS INDEPENDENTES DE JORNALISMO E A PRÁTICA DO BIG DATA: CREDIBILIDADE E REVITALIZAÇÃO DO ETHOS PROFISSIONAL Leonel Azevedo de Aguiar Claudia Miranda Rodrigues DOI 10.22533/at.ed.8801912063 CAPÍTULO 4 .............................................................................................................. 36 APONTAMENTOS SOBRE O CONCEITO DE ETNOJORNALISMO Mônica Panis Kaseker DOI 10.22533/at.ed.8801912064 CAPÍTULO 5 .............................................................................................................. 46 ENGAJAMENTO E CIDADANIA NA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA: UM ESTUDO DE CASO SOBRE A PRODUÇÃO NARRATIVA DO SOS IMPRENSA Ana Carolina Kalume Maranhão Marcos Amorozo Rafiza Varão DOI 10.22533/at.ed.8801912065 CAPÍTULO 6 .............................................................................................................. 57 JORNALISMO E LITERATURA NO INÍCIO DO SÉCULO XX: UMA LEITURA COMPARATIVA ENTRE LIVROS E REPORTAGENS DE JOÃO DO RIO Aline da Silva Novaes DOI 10.22533/at.ed.8801912066 CAPÍTULO 7 .............................................................................................................. 69 NOTÍCIAS ELABORADAS A PARTIR DE SITES DE REDES SOCIAIS NO CASO MARIELLE FRANCO Ingrid Cristina dos Santos DOI 10.22533/at.ed.8801912067 CAPÍTULO 8 .............................................................................................................. 80 PÓS-VERDADE E FAKE NEWS: O JORNALISMO NA CONTEMPORANEIDADE João Marcos Maia de Santana da França Mayara Souza Suzart Daniela Costa Ribeiro DOI 10.22533/at.ed.8801912068 SUMÁRIO CAPÍTULO 9 .............................................................................................................. 88 PROCESSOS DE CONVERGÊNCIA E REORGANIZAÇÃO EM REDAÇÕES JORNALÍSTICAS: UM OLHAR SOBRE A ESTRUTURA E A PRODUÇÃO DE NOTÍCIAS EM CIBERMEIOS BRASILEIROS Jonas Gonçalves DOI 10.22533/at.ed.8801912069 CAPÍTULO 10 .......................................................................................................... 100 SOBRE AS CAPAS: NOTÍCIAS E PRODUTOS À VENDA NA PRIMEIRA PÁGINA Karenine Miracelly Rocha da Cunha DOI 10.22533/at.ed.88019120610 CAPÍTULO 11 .......................................................................................................... 113 VISÕES MÍTICAS NA POÉTICA DE SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN E O EFEITO CASSANDRA EM DISCURSOS MIDIÁTICOS Gisele Centenaro DOI 10.22533/at.ed.88019120611 SOBRE A ORGANIZADORA................................................................................... 134 SUMÁRIO CAPÍTULO 1 A CONTRIBUIÇÃO DA COLUNA DE OMBUDSMAN PARA A COMPREENSÃO DO ACONTECIMENTO NO CASO DA MORTE DO REITOR CANCELLIER Diana de Azeredo Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Florianópolis (SC) RESUMO: Com este artigo, a proposta é refletir acerca da contribuição da coluna de ombudsman para a compreensão do acontecimento, entendido a partir da perspectiva de Quéré (2005; 2013). Não se trata de defender o papel da mídia na construção do acontecimento, mas de pensar sobre o potencial desse texto opinativo assinado por um jornalista na função de crítico e ouvidor. Como esse fragmento da publicação maior (o jornal) ajuda a proporcionar a elucidação de um fato socialmente marcante? Além dessa aproximação entre o conceito de acontecimento e crítica, é feita a análise da repercussão do suicídio do reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo na coluna da ombudsman Paula Cesarino Costa, do jornal Folha de S. Paulo. PALAVRAS-CHAVE: jornalismo; acontecimento; ombudsman; crítica; Cancellier. CASE OF RECTOR CANCELLIER’S DEATH ABSTRACT: With this article, the proposal is to reflect about the contribution of the news ombudsman column to the understanding of the event, conceptualized from the perspective of Quéré (2005; 2013). It is not a matter of defending the role of the media in the construction of the event, but to think about the potential of this opinionated text signed by a journalist in the role of critic and ombudsman. How does this fragment of the larger publication (the newspaper) help elucidate a socially striking fact? In addition to this approximation between the concept of event and media criticism, the analysis of the repercussion of the suicide of the rector Luiz Carlos Cancellier de Olivo is made in the news ombudsman Paula Cesarino Costa’s column of the newspaper Folha de S. Paulo. KEYWORDS: journalism; event; news ombudsman, media criticism, Cancellier. 1 | PERSPECTIVAS CONCEITUAIS SOBRE ACONTECIMENTO Como THE CONTRIBUTION OF THE NEWS OMBUDSMAN COLUMN TO THE UNDERSTANDING OF THE EVENT IN THE Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 já publicado anteriormente (AZEREDO, 2018), o que se pretende é utilizar, neste artigo, o conceito de Quéré (2005; 2013), compreendido e aplicado por França (2012; 2013), Silva (2014) e Silva e Simões (2014). Capítulo 1 1 São essas ideias que, melhor explicitadas a seguir, vão nortear a linha de raciocínio na tentativa de dialogar com outros conceitos como “ombudsman” e “crítica de mídia”. Busca-se averiguar o potencial dos textos publicados na coluna de ouvidoria quando se trata de auxiliar na compreensão do acontecimento que, na cobertura midiática, emerge em sua segunda vida. Mas, o que seria, primeiramente, acontecimento? O acontecimento é um tipo de entidade, não havendo qualquer problema em considerá-lo como um indivíduo observável (ainda que ele não tenha substância). Com efeito, um acontecimento é uma unidade temporal relativamente bem delimitada (pelo menos quando é considerado de um certo ponto de vista), não sendo difícil separá-lo de outras unidades similares. (QUÉRÉ, 2013, p. 23). França (2012, p. 12) explica que são “os fatos e as ocorrências que se destacam ou merecem maior destaque”. Seguindo a mesma perspectiva do sociólogo francês, ela propõe entender o acontecimento em seu poder hermenêutico e de afetação, que rompe com uma linearidade. São esses elementos, aprofundados na sequência, que constituem o acontecimento. São fatos que ocorrem a alguém; que provocam a ruptura e desorganização, que introduzem uma diferença. Eles fazem pensar, suscitam sentidos, e fazem agir (têm uma dimensão pragmática). E tais ocorrências curto-circuitam o tempo linear; ocorrendo no nosso presente, eles convocam um passado e re-posicionam o futuro. (FRANÇA, 2012, p. 14). A ordem hermenêutica do fenômeno ocorre porque, segundo Quéré (2005, p. 60-61), “por um lado, ele pede para ser compreendido (...) por causas; por outro, ele faz compreender as coisas. (...) a principal origem da compreensão do acontecimento está no próprio acontecimento”. A explicação das causas e o poder de esclarecimento do acontecimento intervêm, conforme o autor, na organização da conduta. Ao ser apreendido sob diferentes pontos de vista, o “acontecimento passará a projetar um sentido novo sobre o mundo. Sentido do qual ele será a origem” (QUÉRÉ, 2005, p. 67). Por tratar-se de um fenômeno hermenêutico, “pode ser palco de encontro, interação, confrontação, determinação recíproca” (QUÉRÉ, 2005, p. 68). Quéré (2005, p. 69) segue definindo que o acontecimento “abre um horizonte de sentido, em particular introduzindo novas possibilidades interpretativas, relativas tanto ao passado como ao presente e ao futuro”. Essa atribuição de sentido ocorre a partir de um processo identificado como individualização. Em relação ao fenômeno, Quéré (2013, p. 15) afirma que a individualização “o separa, circunscreve, estrutura, totaliza dando-lhe uma unidade e uma coerência internas, dota-o de uma identidade e de uma significação”. “O acontecimento não tem uma individualidade intrínseca: esta emerge de um processo de individualização” (QUERÉ, 2013, p. 23). França (2013) esclarece que a identidade de um acontecimento não é estabelecida de dentro para fora, já que ele não possui uma natureza que o particularize intrinsecamente, não apresenta uma essência própria capaz de estabelecê-lo. A singularidade do acontecimento é fornecida pelas práticas que o configuram e pelos Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 1 2 discursos que o nomeiam. “Ele é individualizado quando se determina aquilo que o especifica, quando ganha uma significação – e aí, sim, uma identidade – como acontecimento particular” (FRANÇA, 2013, p. 66). De acordo com a autora, o processo de individualização (ou individuação) pode ser dividido em cinco etapas: descrição, narrativização, dimensão pragmática, problema público e normalização. A primeira refere-se à inscrição do acontecimento em quadros de sentido, a segunda está relacionada à intriga e à temporalidade, a terceira tem a ver com os efeitos e as ações, a quarta remete ao interesse público e às questões problemáticas de uma sociedade e a quinta diz respeito à possibilidade de inscrever o acontecimento dentro de uma normalidade. a) uma descrição, que promove uma categorização do acontecimento: ele é nomeado, filiado a um gênero (...) b) a narrativização (mise en intrigue), que é a articulação de seus vários momentos, a estruturação de sua temporalidade. (...) c) um pano de fundo pragmático, ou seja, a composição do acontecimento com práticas e ações que lhe seriam adequadas. (...) As maneiras como percebemos e nos comportamos face a uma situação ou acontecimento se incorporam na individuação deste acontecimento. (...) d) a caracterização como um problema público, ou seja, alguns acontecimentos são revistos sob um registro específico, que lhes atribui um alcance societal. (...) e) por último, sua normalização, que é a redução de sua contingência e indeterminação, através de sua inscrição num contexto causal e social, tornando manifesto seu caráter típico. (...) Trata-se da redução do estranhamento e de seu entranhamento na estrutura do vivido (campo da experiência)”. (FRANÇA, 2013, p. 67-68). Silva e Simões (2014, p. 36) mantêm a divisão em cinco etapas, mas enfatizam a “recepção pública” como um momento constitutivo do acontecimento. Individualização é um processo e, como tal, pode ser decomposta em etapas, estreitamente ligadas umas às outras: a descrição (nomeação, enquadramento); a narração (as temporalidades e ações que constroem a intriga); a recepção pública (a constituição de públicos cujas práticas e discursos contribuem para constituir e nomear o acontecimento); a dimensão pragmática (ações e reações próprias daquele tipo de acontecimento); a configuração de problemas públicos (potencial de certos acontecimentos para criar, revelar ou modificar problemas coletivos); e a normalização (a redução da indeterminação do acontecimento, o tratamento da ruptura provocada, a recomposição do fluxo normal da experiência). “A individualização do acontecimento assim apreendido excede o momento da sua ocorrência: o acontecimento continua, de fato, a ocorrer e a singularizar-se enquanto produzir efeitos sobre aqueles que afeta” (QUÉRÉ, 2005, p. 67). Os afetados vão seguir atribuindo sentido (s) ao fenômeno, descrevendo-o, narrando-o, agindo em relação a ele, debatendo acerca dos problemas públicos que ele faz emergir e, por fim, tentando reduzir as possibilidades de que um acontecimento semelhante venha, novamente, a provocar uma ruptura. Sobre o poder de afetação, França (2012, p. 13) sintetiza: “um acontecimento acontece a alguém; ele não é independente nem autoexplicativo, não são suas características intrínsecas que fazem o seu destaque, mas o poder que ele tem de afetar um sujeito – uma pessoa, uma coletividade”. Para Quéré (2013), o acontecimento produz um conflito entre ele próprio e o sujeito. Esse processo tem continuidade com Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 1 3 a descoberta de implicações imediatas e de médio prazo, ambas geradas pelo que aconteceu. O acontecimento proporciona uma transação e, a partir daí, dá lugar a uma experiência. Experiência ‘tida’ (para falar como Dewey), que é fonte de identidade, ao mesmo tempo para o acontecimento e para quem, por ele, é atingido. A experiência é, pois, aquilo pelo que um sujeito e um mundo se constituem, confrontando-se com acontecimentos, na articulação mais ou menos equilibrada de um saber e de um agir. (...) Acontecimento e sujeito surgem, assim, em conjunto, ligados inextrincavelmente: a singularidade do acontecimento e a ipseidade daqueles que o sentem são tecidas em conjunto, até porque é através da sua apropriação por indivíduos ou por coletivos que o acontecimento adquire a sua identidade e a sua significação próprias. (QUÉRÉ, 2005, p. 70). Além dessas duas possibilidades de articulação de identidade (tanto do acontecimento quanto do sujeito afetado pelo acontecimento), é importante apresentar aspectos relacionados à ruptura provocada por este fenômeno. Ele “introduz uma descontinuidade, só perceptível num fundo de continuidade” (QUÉRÉ, 2005, p. 61), fazendo emergir um passado que não existia até então. Silva e Simões (2014, p. 36) reforçam que o “acontecimento é algo que provoca uma ruptura na experiência de indivíduos ou coletividades; que interpela os atores a agir para recompor o fluxo normal da experiência; que revela situações problemáticas da vida coletiva”. Ao romper com essa linearidade e impelir os afetados à recomposição da normalidade, o acontecimento tem sua dimensão temporal e espacial definidas e ampliadas. Ele “tem um início, um fim e uma certa duração. Pode ser situado e datado com precisão (...). Poderá ter sido esperado e, quando produzido, satisfazer ou desfazer as esperanças, validar ou contrariar as previsões, preencher ou desiludir as expectativas” (QUÉRÉ, 2005, p. 67). Mas, extravasa esse presente, “porque se alonga para o futuro e para o passado” (QUÉRÉ, 2005, p. 69). É necessário dizer ainda que o acontecimento, na concepção do sociólogo francês, possui duas vidas, profundamente interligadas, separadas apenas para efeitos de compreensão. A primeira, conforme França (2012, p. 14), “é da ordem do existencial – trata-se do acontecimento que percebemos, que nos toca, que congestiona o nosso cérebro, dificulta nossa respiração, acelera o nosso coração. A segunda vida é o acontecimento tornado narrativa, tornado um objeto simbólico”. Nesse aspecto, Quéré (2005, p. 72-73) defende que “o papel dos media é, sem dúvida, decisivo enquanto suportes, por um lado, da identificação e da exploração dos acontecimentos, por outro, do debate público através do qual as soluções são elaboradas ou experimentadas”. Além de colaborar para trazer à luz essa segunda vida do acontecimento, a mídia proporciona um espaço onde o processo de individualização também pode ocorrer. Nos veículos de comunicação circulam versões, opiniões e dúvidas acerca do fenômeno. Esses comentários constituem uma das formas de desenvolvimento do inquérito que explora o potencial de esclarecimento e discriminação dos acontecimentos, já Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 1 4 que problematizam as situações discordantes por estes criadas ou reveladas com vista a uma resolução. (QUÉRÉ, 2005, p. 74). O objetivo, por meio deste artigo, é refletir acerca da contribuição da coluna de ombudsman para a compreensão do acontecimento, sendo ela um dos locais onde essa problematização (por meio da narração) é feita. Trata-se de uma publicação que reúne questionamentos, diferentes pontos de vista e esclarecimentos acerca de algo que afeta a coletividade, a partir de uma crítica à cobertura midiática. Importante dizer que é nessa cobertura que o acontecimento emerge em sua segunda vida, ou seja, recebe uma dimensão simbólica. Ao criticar essa veiculação, a coluna traz novos elementos e contribui para dar significado ao fenômeno. 2 | OMBUDSMAN E CRÍTICA DE MÍDIA Conforme conceituação aprofundada em trabalho anterior (AZEREDO, 2016), cabe ressaltar neste artigo que o cargo de Ricksdagens Justitieombudsman (nome original, posteriormente abreviado para ombudsman) surge na Suécia, em 1809, para indicar as atribuições do representante do povo perante a monarquia. Com o passar do tempo, a função passou a ser exercida em outros países e em outras áreas. Na imprensa dos Estados Unidos, o primeiro jornal a tornar públicas as reivindicações recebidas dos leitores foi o The Washington Post em 1970. Serviu de inspiração para que, em 1989, a Folha de S. Paulo instituísse o primeiro ombudsman na mídia latino-americana. Atualmente, a jornalista Paula Cesarino Costa é a 12ª ouvidora da empresa. Em suas colunas, publicadas aos domingos, no jornal impresso e no site, ela, a exemplo de seus antecessores, realiza a crítica da cobertura jornalística semanal. Apresenta, no texto, dúvidas, elogios e reclamações dos leitores, explicações de colegas (quando questionados ou reprovados), posicionamentos institucionais e análises próprias acerca do tema. Para além das conceituações (LOURES, 2008; CHRISTOFOLETTI, 2008) e das problematizações possíveis acerca da função de ombudsman (BRAGA, 2006; FAUSTO NETO, 2008), importa frisar que se trata de um jornalista fazendo, a partir de informações coletadas por meio de observação, entrevista e pesquisa documental, a crítica da empresa e dos colegas de profissão. Também seria possível chamar de autocrítica, pois o ouvidor é funcionário do veículo e compartilha os valores profissionais do jornalismo, ainda que nem sempre esse veículo ou os colegas de profissão concordem com a crítica publicada. Mas a abordagem da coluna não se restringe à crítica da prática jornalística, quanto ao trabalho de apuração, edição e publicação de informações, nem ao resultado da interação com os leitores. Ao fazer a autocrítica, o ouvidor, apresenta, no seu texto, dados informativos acerca do acontecimento narrado pela mídia. Em sua análise, reconstitui determinados aspectos do acontecimento a fim de criticar a Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 1 5 cobertura desse fenômeno. 3 | A CRÍTICA NA COMPREENSÃO DO ACONTECIMENTO E O CASO DO SUICÍDIO DO REITOR Exemplo dessa reconstituição, que vai além da crítica da cobertura e das interações com o público, trazendo novos dados informativos sobre o acontecimento, ocorre na coluna de Costa (2017). Na publicação veiculada no site da Folha de S. Paulo, abaixo do título, está uma galeria com nove fotos, acompanhadas de legenda. Esses pequenos textos, em formato de retrospectiva, contêm data, nome de envolvidos e outras informações sobre a operação Ouvidos Moucos e o suicídio do então reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Luiz Carlos Cancellier de Olivo, ocorrido em 02 de outubro de 2017. A análise, de 70 linhas, reconta a história a partir do que foi narrado anteriormente pelo próprio jornal, nomeando personagens e momentos principais. “É preciso reconstituir o episódio”, reconhece Costa (2017, s/n). E é por meio dessa reconstituição que ela realiza a crítica da cobertura e contribui com outros elementos que ajudam a compreender e interpretar o acontecimento. Executada pela Polícia Federal, a operação Ouvidos Moucos investigava desvios de verbas de um programa de bolsas na modalidade Educação a Distância (EaD). A iniciativa havia recebido, no total, R$ 80 milhões da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), fundação vinculada ao Governo Federal. O valor desviado teria sido de R$ 3 milhões e o crime teria ocorrido entre os anos de 2011 e 2015, antes da gestão de Cancellier. O ex-reitor foi preso, em 14 de setembro de 2017, acusado de tentar prejudicar as investigações. Negou que tenha agido com essa finalidade, mas, apesar de solto, foi proibido de ter acesso à UFSC. Em 02 de outubro de 2017, cometeu suicídio, deixando um bilhete com a seguinte frase: “A minha morte foi decretada quando fui banido da universidade!!!”. Nesses 17 dias entre sua prisão e sua morte, Cancellier foi citado, em matérias jornalísticas, como participante e/ou líder do grupo que desviou R$ 80 milhões. Ou seja, foi um erro triplo: nenhuma investigação havia sido concluída (portanto, nenhuma acusação havia sido oficializada), o desvio não era de R$ 80 milhões e o ex-reitor nem sequer esteve entre os suspeitos de ter desviado a quantia (que teria sido de R$ 3 milhões, em episódio ocorrido em duas gestões anteriores). Na Folha de S. Paulo, duas matérias foram publicadas cometendo erros nesse sentido. A primeira (Imagem 1) está no site, datada de 14 de setembro de 2017, e a outra foi veiculada na edição impressa do dia 15 (Imagem 2). Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 1 6 Imagem 1 – Matéria publicada na versão online da Folha de S. Paulo Fonte: Imagem captada pela autora a partir do site da Folha de S. Paulo Imagem 2 – Matéria publicada na versão impressa da Folha de S. Paulo Fonte: Imagem captada pela autora a partir do site da Folha de S. Paulo Como é possível perceber, já a partir do título da matéria publicada em versão impressa, a compreensão do acontecimento fica comprometida com essas duas versões. O engano prossegue mesmo após o suicídio do reitor, na edição impressa de 03 de outubro de 2017, quando novamente Cancellier é anunciado como suspeito de desviar R$ 80 milhões (Imagem 3). Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 1 7 Fonte: Imagem captada pela autora a partir do site da Folha de S. Paulo Imagem 3 – Matéria publicada na versão impressa da Folha de S. Paulo A coluna de Costa (2017) foi publicada cinco dias depois, em versão impressa e online (Imagem 4). Nela, o erro é denunciado e o acontecimento recebe nova tentativa de compreensão. Dessa vez, não se trata mais de um reitor sendo investigado por desviar R$ 80 milhões, nem de um suicídio cometido por uma figura notória. Ao descrever e narrar o que aconteceu, trazendo outras informações, a ombudsman demonstra as falhas da cobertura jornalística e oferece novos elementos para compreender o fenômeno. Imagem 4 – Coluna publicada na versão online da Folha de S. Paulo Fonte: Imagem captada pela autora a partir do site da Folha de S. Paulo Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 1 8 Considerando o processo de individualização do acontecimento (exposto anteriormente), é possível afirmar que a nova descrição (realizada pela ombudsman) é feita pela perspectiva da tragédia. “O corpo no chão do shopping tornou-se trágico sinal de alerta”, começa Costa (2017, s/n). A injustiça descrita na coluna da ouvidora teria sido resultado da postura errada dos jornalistas (que não apuraram, nem publicaram corretamente as informações) e exagerada dos agentes públicos responsáveis pela operação. Cancellier é descrito como vítima. Na etapa de narrativização, a ombudsman apresenta, na sequência, os momentos que marcaram o acontecimento, a partir da própria narrativa que foi construída pela imprensa em geral e pela Folha em particular. Relata trechos da matéria publicada quando a prisão ocorreu, o artigo em que o ex-reitor se defende e se diz amedrontado com a suspeita, o suicídio, a nota de quatro linhas em que a Folha admite o erro de informação e a reportagem com a publicação de uma carta do então corregedor da UFSC (denunciando pressões oriundas da reitoria, na intenção de impedir as investigações). Menciona outros envolvidos no caso: a delegada da Polícia Federal, a juíza que decretou a prisão, os ex-reitores (que estavam na gestão da UFSC quando teria ocorrido o desvio e que não foram investigados), o advogado do reitor e os colegas responsáveis pela cobertura (editor de Cidades, Eduardo Scolese, e secretário de Redação, Vinícius Mota). As outras três etapas do processo de individualização (dimensão pragmática, caracterização como problema público e normalização) requerem uma análise mais aprofundada para serem percebidas (o que nem seria possível, tendo em vista as limitações do objeto empírico selecionado para este artigo). Importa dizer que, ao descrever e narrar o fenômeno e ao fazer a crítica do modo como a imprensa o descreveu e narrou, a ombudsman contribui para constituir a segunda vida do acontecimento, atribuindo sentido a ele. “O que interessa é refletir sobre a maneira como a mídia tem lidado com operações policiais que buscam holofotes em investigações ainda em andamento”, argumenta Costa (2017, s/n). Segundo ela, a publicação da nota de quatro linhas foi uma reação insuficiente diante desse acontecimento. A ouvidora explicita problemas coletivos que emergem do fenômeno: a espetacularização de ações da Polícia Federal, a postura precipitada do jornalismo e o ambiente de condenação e punição instaurado na sociedade. A ombudsman também associa esse acontecimento a outros anteriores. “Esse comportamento não é exclusivo desse caso. Tem sido rotineiro diante de tantas investigações”, alerta Costa (2017, s/n). Por fim, emite opiniões e sugere correções na postura de colegas, chamando a atenção para valores sociais como coragem, autovigilância e responsabilidade e expectativas em relação à profissão como precisão e pluralidade. Entende-se que a ouvidora participa do processo de individualização, junto com os demais agentes jornalísticos (profissionais, veículos etc.), tendo em vista que ajudou a Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 1 9 separar, estruturar e dotar o acontecimento de identidade e significação. Ao contrariar as expectativas e os valores da comunidade acadêmica, jornalística e social, o suicídio de Cancellier fez pensar e fez agir, provocando uma ruptura e gerando possibilidades interpretativas. Essas tentativas de compreensão aparecem na publicação da ombudsman quando menciona a tragédia, a incorreção da cobertura jornalística, a falha da operação policial e a admissão de erro ineficiente. Nesse espaço, ela cobra da mídia a revisão de procedimentos para uma colaboração mais efetiva no trabalho de identificação do(s)acontecimento(s) e de discussão pública sobre eles. 4 | CONSIDERAÇÕES FINAIS Importante frisar que esse acontecimento (suicídio do ex-reitor) não pode ser entendido unicamente por meio da coluna analisada neste artigo (nem só a partir das matérias publicadas pelo jornal Folha de S. Paulo – como demonstrado). A compreensão do fenômeno, em sua totalidade, requer outros pontos de vista (não apenas de veículos de comunicação, mas da versão de outros atores como comunidade acadêmica, membros do Poder Judiciário, Executivo e Legislativo, que se manifestaram sobre o caso). O objetivo, por ora, foi apenas verificar como o texto de ombudsman pode auxiliar na compreensão do que aconteceu. Por meio do relato apresentado, Costa (2017) ajudou a compor a interpretação do ocorrido. No texto da coluna, pode-se perceber que o acontecimento tem um presente localizável (suicídio no dia 02 de outubro de 2017), porém extravasa esse presente, fazendo emergir um passado (prisão, erros na divulgação das informações) e propondo um futuro (correções de postura por parte de jornalistas, atenção a valores sociais e profissionais). Nessa publicação da ouvidora, a segunda vida do acontecimento segue sendo constituída, colaborando para a narrativa do fenômeno. Cumpre-se, portanto, o objetivo do artigo de propor um diálogo entre esses dois conceitos (ombudsman e acontecimento). São, novamente, reconhecidas as limitações dessa análise, mas aponta-se a possibilidade de aprofundar a pesquisa dando continuidade a esse raciocínio. É reconhecida a importância da concepção de acontecimento para refletir sobre valores sociais e da crítica de mídia para pensar a respeito de valores profissionais. A aproximação de ambas ideias, em trabalhos futuros, tende a contribuir para aprimorar o entendimento que se tem acerca de suas potencialidades e limitações como teorias no jornalismo e na comunicação, dialogando com a sociedade. REFERÊNCIAS AZEREDO, Diana. Ética e narratologia: significados que emergem da coluna da ombudsman Vera Guimarães Martins. 2016. 97 f. Monografia (Curso de Comunicação Social – Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 1 10 Jornalismo) – Universidade de Santa Cruz do Sul, Santa Cruz do Sul, 2016. 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Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 1 11 CAPÍTULO 2 A CRÍTICA DA MÍDIA ATRAVÉS DAS PRÁTICAS JORNALÍSTICAS Cristine Rahmeier Marquetto MEDIA CRITICISM THROUGH Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos JOURNALISTIC PRACTICES São Leopoldo – RS RESUMO: Este artigo apresenta as colocações iniciais da pesquisa de doutorado em andamento que tem como tema a crítica da mídia, especificamente a jornalística, e o seu relacionamento com sujeitos sociais. A intenção é ofertar maneiras de os sujeitos interpretarem os conteúdos jornalísticos com discernimento e autonomia. Existem estratégias para formar cidadãos mais conscientes em relação à mídia e que são voltadas para educação para mídia – alfabetização midiática, mídia-educação e educomunicação. Trazemos uma diferenciação entre esses termos e evidenciamos a dimensão crítica como essencial. Mas não se faz crítica sobre o que não se conhece. A prática jornalística é composta por procedimentos de controle que determinam sua forma de agir, e os sujeitos precisam conhecer essas práticas para poder fazer inferências críticas sobre elas. PALAVRAS-CHAVE: Crítica da mídia; Educação para mídia; Autonomia Interpretativa; Práticas Jornalísticas; Procedimentos de Controle. ABSTRACT: This article presents the initial settings of the doctoral research in progress that has the theme of media criticism, specifically journalism, and its relationship with social subjects. The intention is to offer ways for the subjects to interpret the journalistic contents with discernment and autonomy. There are strategies for building more media-conscious citizens who are focused on media education media literacy, media education, and educational communication (“educomunicação”). We draw a distinction between these terms and point out the critical dimension as essential. Journalistic practice is composed of control procedures that determine how they act, and subjects need to know these practices in order to make critical inferences about them. KEYWORDS: Media criticism; Media education; Interpretive Autonomy; Journalistic Practices; Control Procedures. 1 | INTRODUÇÃO Este artigo apresenta as colocações iniciais da pesquisa de doutorado em andamento que tem como tema a crítica da mídia, especificamente a jornalística, e o Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 2 12 relacionamento dos sujeitos sociais com a mídia. A intenção é ofertar maneiras de os sujeitos interpretarem os conteúdos jornalísticos com discernimento e autonomia, favorecendo as democracias modernas. Nesse cenário de sobrecarga de informações, fake news e desinformação, o assunto da educação para mídia começa a ser debatido com mais frequência, utilizando-se ultimamente o termo da alfabetização midiática. Existem estratégias para formar cidadãos mais conscientes em relação à mídia e que são voltadas para educação para mídia – além da alfabetização midiática, mídia-educação e educomunicação mais regularmente. Esses conceitos não estavam suficientemente esclarecidos para que fosse possível dar sequência à pesquisa, o que ocasionou uma busca exploratórias dos termos, que será apresentada. O que encontramos de mais essencial nas iniciativas observadas foi a questão da crítica: sem ela, as abordagens ficam superficiais ou meramente didáticas de uma maneira linear de se relacionar com a mídia jornalística e seus conteúdos. Não seria possível pensar em autonomia interpretativa dos sujeitos. Mas para que seja viável fazer crítica, é preciso conhecer o objeto a ser criticado. Não se faz crítica sobre o que não se conhece, sobre um assunto cujo qual não se está familiarizado. A prática jornalística é composta por procedimentos de controle (e de resistência) que determinam sua atuação, sua forma de agir. Os sujeitos precisam conhecer essas práticas para poder fazer inferências críticas sobre elas. Este artigo vai apresentar essa trajetória, buscando construir pilares para a pesquisa em desenvolvimento e também contribuir para uma melhoria do relacionamento da sociedade com a mídia jornalística, aprimorando os dois lados da questão. 2 | A DESINFORMAÇÃO Em entrevista à David Letterman, o ex-presidente dos Estado Unidos, Barack Obama, discutiu, entre uma série de outras questões, as últimas eleições americanas e o escândalo da influência russa na manipulação da eleição de Donald Trump. Os russos teriam auxiliado a influenciar os votos através da mídia, de fake news, e monitoramentos online (coletando informações sobre os adversários, invadindo e-mails e contas em redes sociais, usando informações de grandes páginas de relacionamento, etc.). Obama disse que a Rússia, na verdade, se usou de algo que já fazia parte da rotina americana. Para ele, vivemos em “universos de informações completamente diferentes”, ou seja, dependendo de onde o cidadão busca as informações, ele vai entender as situações de um jeito ou de outro. “ If you watch Fox News, you are living on a diferent planet than you are if you listen to NPR1”, disse o ex-presidente. A preocupação com as notícias falsas vem aumentando cada vez mais, mas teve um alerta maior devido a esse caso da eleição americana. A eleição francesa em 2017, que levou Macron a criar uma lei de combate a fake news em disputas 1 “Se você assiste à Fox News, você está vivendo em um planeta diferente de quem escuta à NPR (Rádio Pública Nacional). Tradução livre da autora. Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 2 13 eleitorais, também atentou para a manipulações de notícias, bem como o referendo da Catalunha pela independência, no mesmo ano. Esses casos levaram a Comissão Europeia a criar o High Level Group, em janeiro de 2018, com 39 membros entre jornalistas, pesquisadores de comunicação, escritores e organizações. O objetivo foi elaborar um documento para combater as notícias falsas, por entenderem o risco que representam para as democracias. Além de estabelecer três frentes de atuação e apresentar 10 princípios fundamentais para as plataformas de jornalismo seguirem, o documento se baseia em cinco pilares principais: melhorar a transparência das notícias online; promover a alfabetização de mídia e de informação; capacitar usuários e jornalistas; salvaguardar a diversidade e a sustentabilidade dos meios de comunicação europeus; e promover pesquisas contínuas sobre o impacto da desinformação. Essa onda de notícias falsas tem preocupado estudiosos de comunicação e outras áreas. Mas essa situação pode ser vista como uma oportunidade para ampliar as discussões sobre o relacionamento das pessoas com as mídias, mais especificamente, das sociedades com o jornalismo. A pesquisadora em jornalismo Nuria Fernández afirma que é preciso empoderar os cidadãos para que tenham as competências necessárias para se relacionar com a mídia, e, assim, “a democracia sairá reforçada de todo esse processo, ao contribuir para uma cidadania informada, que possa tomar decisões livremente” (FERNÁNDEZ, 2018). A pesquisa que Fernández realiza relaciona-se às fake news e a como ser crítico para diferenciar notícias falsas de verdadeiras, mas, para ela, trata-se de um movimento que pode resultar em um aprimoramento da alfabetização midiática. Reforçando a importância da cidadania informada, o instituto de pesquisa social britânico Ipsos Mori investigou os níveis de desinformação sobre a realidade em que vivem os habitantes de 38 países, totalizando quase 30 mil entrevistados. Neste estudo, divulgado pelo jornal Zero Hora, o pesquisador questionava a percepção dos indivíduos sobre alguma situação específica, como por exemplo: qual a cidade mais violenta do país? Qual o percentual de mulheres entre 15 e 19 anos que dão à luz a cada ano? E assim, os pesquisadores comparavam as respostas com as estatísticas. No resultado final, o Brasil teve desempenho espantoso: ocupamos o segundo lugar em pior percepção da realidade, ficamos atrás apenas da África do Sul. No intuito de tentar apontar caminhos para a solução desse impasse, a reportagem entrevista o líder do grupo de pesquisa do instituto de Londres, Bobby Duffy, que afirma que a mídia tem um papel muito importante na distorção das percepções. “O que precisamos é ensinar as pessoas a selecionar a informação certa – o que torna uma espécie de alfabetização em mídia e em notícias mais importante do que uma educação geral” (ZERO HORA, 2018, p. 12). Nos parece importante, visto a situação de desinformação em que se encontra o país, discutir maneiras de empoderar os sujeitos, de muni-los das ferramentas necessárias para se relacionarem com a mídia jornalística com discernimento e Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 2 14 autonomia nas interpretações. Em um primeiro movimento exploratório, investigamos as alternativas de educação para mídia que tratam da alfabetização midiática e encontramos outros termos correlacionados, como mídia-educação e educomunicação. Esses conceitos ainda se misturam e se confundem, o que torna o trabalho de pesquisa difuso. Identificamos a necessidade de compreende-los melhor no intuito de selecionar uma abordagem metodológica para tratar do tema. Serão apresentados a seguir as tentativas de discernir os termos apresentados com o intuito de perceber suas nuances e diferenças, visando avançar nas questões do relacionamento entre mídia jornalística e os sujeitos sociais. 3 | EDUCAÇÃO PARA A MÍDIA A educação para mídia é alvo da atenção de educadores e comunicadores desde os anos 60 e muitos trabalhos e convenções voltados para o tema já foram realizados. Entretanto, as mudanças desejadas quanto às políticas públicas, currículos pedagógicos e práticas midiáticas não ocorreram de forma tão contundente quanto a esperada (BÉVORT; BELLONI, 2009; ZANCHETTA, 2009). Ainda há dificuldades em delimitar termos e processos de trabalho que se voltam para essas práticas, como os mais recorrentes educomunicação, mídia-educação e alfabetização midiática. Buscando compreender as circunstâncias do conceito de educomunicação, identificamos que a preocupação gira em torno das melhorias e aperfeiçoamentos dos processos pedagógicos, no sentido de integrar as mídias dentro da sala de aula, auxiliando a educação. Para Soares (2011), a comunicação é vista como um componente do processo educativo, onde a comunicação se torne um eixo central na educação para educar através dela. A ideia é capacitar os estudantes da educação básica, fazê-los compreender como a mídia funciona e poderem atuar com mais propriedade nas mídias. Mas fica claro em alguns textos de pesquisadores da área (BACCEGA 2011; FIGARO 2011; TODA y TERRERO 2011) que o foco está em uma metodologia da educação, voltada aos meios, na ideia de repensar práticas de sala de aula que contemplem a mídia e sua utilização por professores e alunos. Em outra oportunidade, Soares (2014) também evidencia que os objetivos da educomunicação, em sua visão, direcionam o olhar para os educadores e para a forma como lidam com os impactos da mídia, relacionando diretamente esses estudos com os de recepção. A meta da educomunicação seria de “transformar a comunidade educativa em um ecossistema comunicativo aberto” (SOARES, 2014, p. 22), e identificar novas formas de ensinar e aprender. “Interessa-nos a comunicação no trabalho do educador, no trabalho do estudante e nos meios materiais utilizados” (APARICI, 2014, p. 38). Kaplún (2014) também é um estudioso da educomunicação e costuma refletir sobre a educação formal, muito mais do que sobre os aspectos da comunicação, voltando suas pesquisas para as maneiras de ensinar através da Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 2 15 comunicação, concluindo sobre a importância da expressão e da produção nos meios de comunicação para a construção dos sujeitos e da cidadania. A preocupação dos aspectos teórico-metodológicos de mídia-educação, segundo Fantin (2011), é com as mediações escolares também. A ideia é trazer a temática das mídias para ser problematizada na escola, potencializando as práticas escolares. Essas mediações pedagógicas visam capacitar crianças e professores para uma recepção ativa e uma produção responsável que auxilie na construção de uma atitude mais crítica em relação ao que assistem, acessam, interagem, produzem e compartilham, visto que a precariedade da reflexão sobre linguagens, conteúdos, meios e interesses econômicos impede uma compreensão mais rica (FANTIN, 2011, p. 28). A autora afirma que ainda não há um consenso acerca do termo mídiaeducação, mas que os objetivos da educação para as mídias se aproximam da ideia de formar usuários ativos, críticos e criativos de todas as tecnologias de comunicação e informação. Apesar de referir-se às tecnologias, não se reduz a esses aspectos instrumentais, configurando-se como a adoção de uma postura crítica e criadora, e de avaliar eticamente e esteticamente o que está sendo oferecido pelas mídias. Também não se trata, conforme foi abordado no início das pesquisas sobre mídia-educação na década de 1960, de proteger as crianças dos meios, mas capacitá-las a analisar e refletir sobre suas interações com a mídia e participar de forma ativa e consciente. A busca é a formação de espectadores críticos através de um fazer educativo. Fantin (2005) situa a mídia-educação no âmbito das ciências da educação e do trabalho educativo, considerando as mídias como um recurso para a formação. Também afirma, em outra oportunidade, que a mídia-educação “constitui um espaço de reflexão teórica sobre as práticas culturais e se configura como um fazer educativo numa perspectiva transformadora [...]” (FANTIN, 2011, p. 30). As mídias seriam, então, um recurso para a educação formar melhor seus alunos, formar cidadãos. É como se a comunicação fosse um objeto do campo mídia-educação, que pode aparecer como metodologia de trabalho, análise de texto, análise do consumo, entrevistas, etnografia, etc. A ideia de transformar a escola está muito presente, reconduzindo-a para a centralidade da problemática. A importância da mídia-educação pode ser conferida nas razões apontadas por Silveira (2011, p. 798): É uma área chave no que toca à formação de cidadãos melhor informados e mais esclarecidos, trata-se de um dos terrenos centrais dos direitos dos cidadãos, não se esgota na investigação, já que pretende atuar na promoção de uma cidadania interveniente; e a proliferação das novas redes, plataformas e ferramentas digitais coloca em evidência necessidades básicas ao nível da alfabetização e formação de todos os cidadãos [...]. Muito significativas, as ações de mídia-educação refletem um cuidado com os currículos educativos e com um aprimoramento pedagógico. Esse não é, entretanto, o cerne da questão desta pesquisa. Outro termo, mais usado no século XXI devido Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 2 16 em grande parte à adoção pela UNESCO, é alfabetização midiática. O termo se refere às capacidades e habilidades de encontrar, selecionar, analisar, avaliar e armazenar informações, independente dos códigos e técnicas envolvidas. A pesquisadora suíça Feilitzen (2014, p. 15) descreve: Alfabetização midiática, ou o termo mais em voga, alfabetização midiática e informacional, refere-se a conhecimentos, habilidades ou competências que nós devemos adquirir em relação à mídia. Já a educação midiática – ou educação para mídia, educação para comunicação, etc. – refere-se a um dos processos para obter alfabetização midiática. Assim, enquanto alfabetização midiática é o objetivo, educação midiática é um meio para atingir esse objetivo. No entanto, a pesquisadora enfatiza que os significados entre estes termos são comuns em âmbito internacional, pois tanto um quanto outro “sugerem que todas as pessoas devem ter acesso à mídia, entender como a mídia atua e opera na sociedade, devem ter condições de analisar e refletir criticamente sobre os conteúdos presentes na mídia, e participar da produção midiática ou comunicar-se numa série de contextos” (FEILITZEN, 2014, p. 15). O entendimento de Media Literacy, ou alfabetização midiática como é traduzido, é tido como “understanding how mass media work, how they construct reality and produce meaning, how the media are organized, and knowing how to use them wisely2” (JACQUINOT-DELAUNAY et al., 2008, p. 21). O autor afirma que a alfabetização midiática parece empoderar as pessoas criticamente e criativamente, pois “the meadialized symbolic environment we live in today largely shapes the choices, values and knowledge that determine our everyday lives3” (Ibid., p. 22), e que a “Media Literacy helps to strengthen the critical abilities and communicative skills that give human meaning and enables the individual to use communication for change4”. Os termos apresentados têm em comum a relação entre educação e comunicação e a intenção de promover ações de educação para mídia. As mídias são os meios para a informação, para a cultura, para cidadania e, mais do que nunca, é preciso aprender a questionar suas mensagens, mas não apenas isso: para garantir uma democracia representativa, é preciso munir os sujeitos das ferramentas para que se expressem e participem socialmente. O mundo globalizado e tecnológico implica mudanças, e entre elas estão as múltiplas alfabetizações, principalmente a voltada para mídia. Dentre as abordagens que Kellner e Share (2008) apresentam como pertencentes ao campo da pedagogia midiática nos Estados Unidos, muito principiante na visão dos autores, existe um aspecto que deve ser evidenciado. Existe a abordagem protecionista, que vê as audiências como passivas e a mídia como perigosa; outra que sugere uma educação para a “arte midiática”, voltada para as questões estéticas da arte criativa e 2 “ Entender como a mídia de massa trabalha, como ela constrói a realidade e produz significado, como a mídia é organizada e saber como usá-la sabiamente” tradução livre da autora. 3“ O ambiente simbólico midiatizado em que vivemos hoje molda em grande parte as escolhas, valores e conhecimentos que determinam nossas vidas cotidianas”, tradução livre da autora. 4 “A Alfabetização Midiática ajuda a fortalecer as habilidades críticas e as capacidades comunicativas que dão significado humano e permitem o indivíduo usar a comunicação para a mudança”, tradução livre da autora. Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 2 17 da mídia; a alfabetização midiática é uma das abordagens que consiste em uma série de competências comunicativas, como as habilidades de acessar, analisar, avaliar e comunicar. Apesar de terem seus prós e contras, todas contribuem para avanços na questão da educação para a mídia. Os autores utilizam a metáfora do iceberg para explicar a alfabetização midiática, que, segundo eles, costuma analisar apenas a ponta óbvia dos processos midiáticos. O que é intelectual, histórico e analítico não é contemplado, e a análise da mídia, sem abordar a parte “submersa”, seria superficial e mecânica. O componente crítico da alfabetização midiática deve transformar a alfabetização em uma exploração do papel da linguagem e da comunicação para definir relações de poder e dominação, pois abaixo da superfície da água, naquele iceberg, vivem noções ideológicas profundamente embutidas, de supremacia branca, patriarcalismo capitalista, classicismo, homofobia e outros mitos opressivos (KELLNER; SHARE, 2018, p. 701). Rejeitar a ideia de informações neutras ou livres de valores é parte essencial para o questionamento crítico que pode intervir na injustiça social e na desigualdade a qual somos submetidos. Sem a parte crítica, as iniciativas de educação para mídia correm o risco, segundo os autores, de se tornar um manual de ideias convencionais. Por isso eles propõem uma “alfabetização crítica da mídia”, com foco na crítica ideológica e análise política das representações de dimensões essenciais, como gênero, raça, classe, sexualidade, economia, entre outros. Interessa a crítica aos modelos hegemônicos e tendências atuais de abordagem da alfabetização, constituindo então um projeto político para a mudança social democrática. 4 | ALFABETIZAÇÃO EM JORNALISMO: CONHECENDO OS PROCEDISMENTOS DE CONTROLE Diante do debate acima, é preciso questionar quais seriam os processos que os sujeitos podem se envolver para adquirir as competências para ter um bom relacionamento com a mídia, para que usem as informações em favor de seus próprios interesses. Para Braga (2002, p. 36), um sistema crítico oferece uma diversidade de vozes capaz de “estimular uma cultura de opções pessoais e de grupos que qualifique os usuários a fazerem a própria crítica por sua conta e risco”. Defendendo uma sociedade culturalmente desenvolvida, e um melhor relacionamento dos sujeitos sociais com a mídia, o autor afirma que é preciso “dispor de critérios e procedimentos de interação de modo que seja possível selecionar, criticar e interpretar – sempre com diversidade e autonomia – de modo a criar espaços de interatividade exigente e qualificadora” (BRAGA, 2002, p. 39). A crítica se apresenta como um fator chave para pensar os processos que envolvem a educação para mídia, mas também os de enfrentamento ao jornalismo. A dedicação desta pesquisa é em compreender as maneiras possíveis de aprimorar Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 2 18 a crítica social, desenvolver o pensamento crítico, prover discernimento. Parece ser essa a tentativa das ações descritas que se voltam para o ensino de mídia. Mas é fato que, pelo menos nacionalmente, não experimentamos mudanças significativas neste setor (BÉVORT; BELLONI, 2009; ZANCHETTA, 2009). Talvez um dos motivos seja o fato de que pretendemos ensinar a crítica sobre um assunto o qual os sujeitos não dominam. É difícil pensar, por exemplo, em fazer crítica jurídica sem compreender a prática jurídica. Como é possível fazer uma crítica a um procedimento médico sem conhecer a prática da medicina? Da mesma forma, estamos tentando ensinar uma postura crítica frente a mídia jornalística sem oferecer uma base sobre o que está sendo criticado. Talvez resida aí uma das dificuldades da educação para mídia, e também um caminho norteador dos processos de crítica à mídia. A prática jornalística, segundo contextualiza Marocco (2015) apropriando-se de conceitos foucaultianos, pode ser compreendida/analisada a partir dos procedimentos de controle. Segundo a autora, podemos percebe-los como externos, internos e não totalmente externos nem internos. Os externos se referem aquilo que se pode dizer e o que é interditado na sociedade, em uma determinada época, e suas táticas discursivas para tanto. Esses procedimentos refletem uma vontade de verdade, ou seja, tudo aquilo que torna o jornalismo “neutro”, “objetivo”, “imparcial”, e então, fiel à verdade. Os procedimentos internos se referem ao comentário, o autor e a disciplina. O comentário incide sobre os textos primeiros e caracteriza, no jornalismo, o Ombudsman. A autor é diluído no coletivo do jornal, enquanto a disciplina abrange as regras que dão uniformidade à produção. Já os procedimentos nem externos nem internos se referem às hierarquias estabelecidas dentro de uma redação, onde as várias vozes do jornal (repórteres, colunistas, editores) estabelecem um jogo de poder em que determinada pessoa pode abordar determinado assunto e outra não. São procedimentos de controle relativos a distribuição de prestigio e privilégios no ambiente de trabalho, que são, de certa forma, externos e internos. Faz parte da prática jornalística alguns movimentos de resistência a esses controles, dentre eles a questão de assumir a autoralidade no trabalho jornalístico, através dos livros de repórter, por exemplo, e também optar por uma abordagem com princípios de alteridade, que não impõe uma verdade sobre o outro e busca escutar os sujeitos mais do que fazê-los falar sobre o que interessa para a matéria. Mas talvez a essa resistência do sujeito jornalista se possa somar a uma ação crítica do público a quem se destina o jornalismo. A leitura crítica proposta pelas investigações de educação para a mídia seria potencializada, ao nosso ver, a partir da abordagem não só do texto, mas das práticas jornalísticas – e seus procedimentos de controle. A crítica das práticas jornalísticas é exercida por acadêmicos e profissionais da área, mas que poderiam ganhar um aliado poderoso. Como resultado de uma sociedade bem informada e crítica, seria possível até mesmo modificar a produção dos conteúdos midiáticos, pluralizando as vozes a serem ouvidas e debatendo outros temas, Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 2 19 avançando democraticamente. Não se trata de fazer com que os sujeitos resistam à mídia, pois isso não garante, segundo Braga (2006) as melhores interpretações ou melhores usos. A necessidade de “ensinar o usuário” é sentida, mas isso pode levar a conclusões prontas, e não a uma autonomia interpretativa. “O desenvolvimento de competências do usuário parece exigir processo sociais mais complexos do que apenas ‘ensinar uma postura crítica’ em perspectiva didática” (BRAGA, 2006, p. 62). Para o autor, são três questões principais a serem observadas: como as pessoas selecionam os produtos de mídia; como e em que condições os sujeitos adquirem competências interpretativas; e o que é necessário para o desenvolvimento da autonomia interpretativa. Como seria possível oferecer, para o sujeito submerso na exposição e acesso à mídia, um ponto de apoio para uma interpretação independente e consciente? Não se trataria, portanto, de “ensinar o usuário a se defender da mídia”, ou dizerlhe como deve interpretar (com o risco consequente de levar ao usuário em geral interpretações prontas, assumidas como verdadeiras, elaboradas pelos setores intelectuais e políticos “críticos”); mas sim [...] estimular uma cultura de opções pessoais e de grupos que qualifique os usuários a fazerem sua própria crítica, por sua conta e risco. Esse trabalho crítico, difuso e variado, desenvolvido pela sociedade, seria o componente mais relevante e o indicador mais precioso de um bom e sólido sistema de interações sociais. (BRAGA, 2006, p.63). Para além de fazer julgamento simplista acerca dos conteúdos veiculados e de apresentar uma didática de postura crítica aos sujeitos, precisamos oferecer maneiras de qualificar os sujeitos a fazerem a crítica autonomamente. As perguntas que possibilitam um movimento heurístico na pesquisa se direcionam para as estratégias voltadas para uma alfabetização para uma leitura do jornalismo. Como que se debatem os procedimentos de controle com os não jornalistas? Para que a população tenha consciência da matéria a ser criticada é preciso desnudar as práticas jornalísticas e torna-las acessíveis. Alfabetizar para o jornalismo implica fazer conhecer o sistema em que opera o jornalismo e assim tornar a crítica possível. 5 | HEURÍSTICAS EM ANDAMENTO A proposta de fazer uma alfabetização em jornalismo ainda é incipiente, mas diverge em certa medida das propostas de alfabetização midiática, mídia-educação e educomunicação. Vimos que a educomunicação e a mídia-educação, apesar de representarem um escopo de atividades relevantes e aprimoradas, não convergem exatamente com os objetivos desta pesquisa. Quando voltamos a atenção para a alfabetização midiática, vimos que ela por si só não representaria os avanços necessários para um melhor relacionamento com a mídia sem o componente crítico do processo. A alfabetização crítica da mídia seria uma alternativa mais aproximada com o objetivo das interpretações autônomas. Entretanto, não se trata tanto de ensinar a ser crítico de forma didática quanto Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 2 20 de lançar luz sobre as lógicas internas dos sistemas operantes para que, aí sim, as interpretações sejam únicas e personalizadas, de acordo com as vivências e experiências de cada sujeito, que, a partir do conhecimento da prática, podem estabelecer seus critérios de observação. Isso seria uma autonomia interpretativa, na visão desta pesquisa. O objetivo principal da alfabetização em jornalismo seria o de fazer conhecer as práticas jornalísticas, principalmente os procedimentos de controle, para que assim os sujeitos tivessem as condições necessárias para realizar a crítica. Os caminhos da pesquisa ainda não foram selados. Existem propostas de educação para mídia em vários grupos de pesquisa acadêmicos e ações escolares. Alguns chamam a atenção devido ao seu caráter crítico com o jornalismo. Outras práticas podem ser identificadas em contextos internacionais com esse viés de crítica à mídia ou alfabetização crítica da mídia. Uma das intenções seria a de observar as práticas desses grupos e identificar de que maneiras explicitam as práticas jornalísticas, se abordam (e de que forma) questões dos procedimentos de controle, buscando fazer inferências sobre as maneiras de fazê-lo. Seria possível identificar se existe a falta dessa contextualização ou se ela se faz de fato presente, e de que forma. Outra intenção seria uma aproximação com dispositivos críticos midiáticos que estabeleçam uma crítica das práticas jornalísticas, voltadas para os procedimentos de controle, e entender como poderiam, em determinada medida, servir como alfabetização dessas práticas para o público leigo. Se dentro da situação atual de fake news, desinformação, crise do jornalismo, novas tecnologias, ameaças às democracias, à representatividade, participação e acesso, vem se falando cada vez mais em educação para mídia, vem se dando cada vez mais valor para a alfabetização midiática. Mas sem a crítica, todas as iniciativas voltadas para esse propósito parecem se enfraquecer. Para fazer crítica é preciso, então, conhecer o objeto da crítica. Por isso propomos que, antes de buscar o ensino de uma postura crítica, devemos oferecer o material a ser criticado: o jornalismo, e não somente os seus produtos. Se isso pode representar um avanço no relacionamento dos sujeitos com a mídia jornalística, pode também representar um avanço para as democracias modernas, midiatizadas e interpretativas. REFERÊNCIAS APARICI, Roberto. Introdução: a educomunicação para além do 2.0. In: APARICI, Roberto (org.). Educomunicação: para além do 2.0. São Paulo: Paulinas, 2014. BACCEGA, Maria Aparecida. 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Rio de Janeiro - RJ Claudia Miranda Rodrigues PUC-Rio, Programa de Pós-graduação em Comunicação Rio de Janeiro - RJ INDEPENDENT JOURNALISM AGENCIES AND THE BIG DATA PRACTICE: CREDIBILITY AND RENEWAL OF THE PROFESSIONAL ETHOS RESUMO: A transformação nos modos de produção impulsionada pela internet favoreceu arranjos que impactam a centralidade das organizações midiáticas (ANDERSON et al., 2013). Amparadas no uso de big data, expandem seu território, nas plataformas virtuais, agências de jornalismo independente sem fins lucrativos e com a política de compartilhamento de notícias. Pautadas pelos valores intrínsecos do campo jornalístico (TRAQUINA, 2013), organizações como ProPublica, The Bureau of Investigative Journalism e Agência Pública reforçam o paradigma de bem público, exatidão e transparência, a partir do recurso do jornalismo de dados (LEWIS; WESTLUND, 2014). Nomenclaturas como data journalist e programador-jornalista compõem equipes multimídias e apontam a emergência de um novo ciclo que resgata a importância da objetividade (SCHUDSON, 2010) a partir da precisão na apuração respaldada no big data. Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 ABSTRACT: The transition in the production manner boosted by the internet favored arrangements that impact the centrality of the media organizations (ANDERSON et al., 2013). Sustained by the use of big data, independent non-profit journalism agencies expand their territory on virtual platforms under news sharing policy. Guided by the values of the journalistic field (TRAQUINA, 2013), organizations such as ProPublica, The Bureau of Investigative Journalism and Agência Pública reinforce the paradigm of public interest, accuracy and transparency, adopting the data journalism as a tool (LEWIS; WESTLUND, 2014). Nomenclatures such as data journalist and programmer-journalist are part of multimedia teams and indicate the emergence of a new cycle that rescues the importance of objectivity (SCHUDSON, 2010) with the precision assured by the big data. KEYWORDS: Internet; digital journalism; Capítulo 3 24 objectivity; big data; ethos. 1 | INTRODUÇÃO O advento da web 2.0 desencadeou uma mudança de paradigma nas formas de produção e circulação de notícias na esfera digital que facilitou novos arranjos interacionais e profissionais (AGUIAR, 2009; CASTELL, 1999; GILLMOR, 2006, MEIKLE, 2003 JENKIS et al., 2013; DEUZE, 2014, MORAES, 2013). Por outro lado, as TCIs (Tecnologias de Informação e Comunicação) impactaram a centralidade das grandes organizações midiáticas (ANDERSON et al.) com reflexos no modelo de negócios da indústria jornalística e, consequentemente, aumento nas demissões, encolhimento dos postos de trabalho e precarização do exercício da profissão (DEUZE, 2009; MOSCO, 2009; ADGUIRNI; RIBEIRO, 2001; KONIECZNA, 2014, MORETZSOHN, 2014). O jornalismo das grandes redações vive “uma crise de valores, uma crise de identidade e crise financeira (PEREIRA, 2011, p. 40). Relatório do Pew Research Center, informa que, nos Estados Unidos, houve uma queda de 4% na circulação domiciliar e de 7% na circulação semanal. A queda nas receitas de publicidade chegou a 8%, a maior taxa desde 2009. Os últimos 20 anos registraram uma redução em 20 mil profissionais de jornais – um patamar de 39% – e menos 126 periódicos entre 2014 e 2004. Redações foram incorporadas às empresas corporativas transnacionais, com cortes orçamentários e diminuição no entusiasmo da direção pelo jornalismo investigativo (CHOMSKY; HERMAN, 2002, p.27). A realidade americana é uma tendência mundial. No Brasil, de 2012 a 2017, foram demitidos 2123 jornalistas, dos quais 51% trabalhavam em jornais, 24% em radio e TV e 15% em revistas e 10% em meios online, conforme dados da agência independente Data Volt em “A Conta dos Passaralhos”, em abril de 2017. O maior número de demissões ocorreu no Infoglobo, subsidiária do Grupo Globo, que demitiu 30 profissionais em função da fusão entre os jornais O Globo e Extra; também aconteceram demissões na Rede Bandeirantes, na Editora Abril e no portal Terra. Levantamento da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) contabiliza 15 veículos fechados, incluindo jornais impressos, rádios, TVs, sites de notícias e blogs. Com 189 anos de existência, o Jornal do Commércio deixou de circular em 2016. A Editora Abril anunciou, no mesmo ano, o encerramento das atividades de revistas longevas como Capricho e Playboy (LASERI et al., 2017). As transformações estruturais enfrentadas pela profissão afetam a credibilidade da mídia e provocam o empobrecimento da notícia (ADGHIRNI, 2005; NEVEU, 2010; PEREIRA et al., 2008). Em 2002, o ex-editor do New York Times, Max Frankel já observava a predominância de pautas acerca de violência, esportes, sexo e entretenimento na proporção direta em que os veículos buscam atrair audiência na Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 3 25 internet (CHOMSKY; HERMAN, 2002). Atualmente, a cultura do clique prioriza matérias que resultem em compartilhamento por parte da audiência com ajuda de softwares como google analytics que contabiliza, em tempo real, o consumo do público. Se a tecnologia pode resultar em uma outra perspectiva para os profissionais da área de Comunicação, é evidente um aumento exponencial de organizações de notícias nas plataformas digitais que apontam possíveis reformulações nos modos de fazer jornalismo. Diante deste cenário, evoca-se a pergunta sobre qual o futuro do jornalismo e dos jornalistas em um cenário onde o acesso profissional é altamente limitado (DEUZE, 2015, 22). Anderson (2011) chega a falar em explosão das redações que não pressupõe total extinção, mas uma redefinição de centralidade. Deuze (2015) aponta, neste sentido, outra questão. O pertencimento, no jornalismo, não é apenas determinado por estar em uma sala de redação ou ficar fora dela (…). Há um alto grau de fluxo, o que borra os limites do dentro e do fora da redação e do seu ambiente. Nós precisamos rever a nossa compreensão das redações e, mais do que isso, nós precisamos entender o seu papel para além do trabalho que é feito dentro de seus limites (DEUZE, 2015, p. 16). As plataformas digitais se constituem espaço aberto. Jornais, revistas, TVs e até agências internacionais tem seus portais. Dados do Instituto Verificador de Comunicação (IVC Brasil) apontam, em 2013, crescimento de 7,5% das assinaturas digitais de jornais – com um salto de 118%, de 228.944 para 500.370 – contra uma queda de 7,6% nas vendas avulsas. Entretanto, a editora-chefe do britânico The Guardian, Katharine Viner, assinala a falência do modelo de negócios dos periódicos, uma vez que Facebook e Google estão “engolindo a publicidade digital”, enquanto editores publicam histórias mais “estridentes, sem verificar os fatos, para aumentar os cliques em busca de qualquer público”. Viner assume que é urgente responder à pergunta: “qual nosso papel, jornalistas, na sociedade?”. Tanto no exterior quanto no Brasil, observa-se a multiplicação no número de agências de jornalismo independente nas plataformas digitais. Deuze (2016) percebe um “contramovimento” na direção de um jornalismo mais interessado na qualidade e profundidade que na velocidade do breaking news (DEUZE, 2016, p.12). Algumas organizações jornalísticas seguem tendências comuns na indústria de software com equipes menores que incluem profissionais multimídia com adoção do modelo sem fins lucrativos – uma resposta à falta de empregos que, ao mesmo tempo, aponta vitalidade no campo do jornalismo (DEUZE, 2016, p.207). Levantamento do PEW Research Center (2013) confirma a tendência de crescimento da produção digital neste segmento. Dos 50 estados americanos, apenas nove não tem pelo menos uma organização sem fins lucrativos. Neste universo, a maioria investe em nichos de agenda, com prioridade para o jornalismo investigativo (21%) e assuntos relacionados ao governo (17%) em detrimento da agenda da mídia mainstream. De acordo com o centro de pesquisa, ao contrário da realidade da grande imprensa, 40% manifestaram intenção de aumentar a equipe e 81% mantinham a Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 3 26 confiança em sua sustentabilidade. Entretanto, relatório da Knight Foundation demonstra como é forte a dependência em financiamentos por parte de fundações – em 2013, correspondiam a 58% do total de fundos que amealhados por estas organizações. Entre as iniciativas que pululam, destacamos agências com conteúdo segmentado, dedicadas ao jornalismo de interesse público com foco no trabalho investigativo. Fundadas por jornalistas egressos de grandes veículos, encaixam-se neste caso a agência americana ProPublica e a britânica The Investigative Bureau of Journalism que adotam news sharing, compartilhamento de reportagens em veículos da grande mídia. No Brasil, a Agência Pública, a Gênero e Número e a Data Volt coadunam-se dentro do mesmo perfil. Lançam mão do recurso do jornalismo de dados que reforça a exatidão e a credibilidade (ANDERSON et al., 2014; HOWARD, 2014; PARASIE, 2013). Este tipo de organização quer revelar estórias que importam e fomentar ações efetivas – uma noção recorrente na seção em que a “missão” destes veículos é explicitada. Em comum, foram fundadas por jornalistas – egressos de veículos da chamada “grande imprensa” –, contam com a participação crescente de programadores, designers e empregam formatos multimídia em boa parte das reportagens (CANAVILHAS et al., 2016). Com uma equipe de 75 jornalistas, a ProPublica investe na investigação e em denúncias por entender que assuntos de “força moral” são negligenciados em função da restrição imposta pelo modelo de negócios dos meios de comunicação. Do volume total de investimento global na mídia, apenas 2% se destina ao jornalismo investigativo (KAPLAN, 2013). Fundada em 2008, a agência coleciona prêmios de jornalismo – inclusive o Pulitzer, conquistado em 2010 pela reportagem The Deadly Choices at Memorial sobre mortes induzidas de vítimas do furacão Katrina no Memorial Medical Center, em Nova Orleans. –, tem como meta provocar mudanças sociais e incentiva outras publicações a “roubarem” ou republicarem seu material. Ao redor do mundo, um número crescente de jornalistas de dados faz mais do que publicar visualizações de dados e mapas interativos. Eles usam estas ferramentas para revelar esquemas de corrupção e responsabilizar poderosos. Talentosos membros da tribo do jornalismo estão engajados em longas investigações buscando evidências e repostas para a pergunta mais fundamental que um jornalista pode fazer: “por que isso está acontecendo?” (HOWARD, 2014, p.14). A agência brasileira Gênero e Número se define como uma organização de mídia que recorre aos dados para qualificar o debate sobre equidade de gênero. Com dez editorias, publicou extensa reportagem em parceria com a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI) sobre assédios e violência contra mulheres jornalistas no exercício da profissão. Com o slogan “fuja das fakes news”, a agência oferece uma newsletter política, ao custo de R$ 11,99 por mês, e disponibiliza dados de bolso com a provocação: “leve dados de bolso para sua rede”. Com 30 prêmios amealhados, a Agência Pública – uma das organizações pioneiras neste segmento – realiza concursos para fornecer bolsas para produção de Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 3 27 reportagens investigativas com apoio de entidades como a Conectas Direitos Humanos. A Data Volt – “data driven news agency” – produz sob encomenda, levantamentos, banco de dados e análises para organizações de mídia – a partir do cruzamento de dados no Data Rio com o Fogo Cruzado, o Data Volt inferiu que 50% das escolas do Rio já foram alvo de tiroteios – e entidades. Usar dados como fonte de informação não é uma novidade no jornalismo. Gray, Chambers e Bounegru (2012) assinalam que o jornal The Guardian recorreu, pela primeira vez, aos dados em reportagem publicada em 1821 que levantou quantos alunos eram beneficiados pela educação gratuita e a dimensão dos desfavorecidos nas cidades de Manchester e Salford, na Inglaterra. O acesso às informações governamentais com a criação de portais de transparência favoreceu a cultura big data. A reportagem Panamá Papers – denúncia sobre envolvimento de figuras públicas e empresas no esquema de paraísos fiscais no exterior conduzido pelo ICIJ (Consórcio Internacional de Jornalismo Investigativo, em português) – foi um marco que mostrou o potencial da combinação entre dados abertos e investigação. A precisão na apuração – base do jornalismo de dados – tangencia o ideal das agências digitais de mídia independente: produzir, com autonomia, jornalismo de qualidade que aborda agenda de interesse público e serve de antídoto contra notícias mal produzidas. A metodologia que se apoia no big data teve sua origem na RAC (Reportagem Assistida por Computador, em português) e ampara o princípio de rigor e de exatidão – no que tange à veracidade – no relato dos fatos. Se pensarmos nas formas tradicionais do fazer jornalístico, é evidente que o campo passa por uma grande transformação nos modos de fazer com o respaldo de novos dispositivos e ferramentas tecnológicas. Deuze (2016) pontua, entretanto, que é valioso entender que os valores fundamentais que orientam o jornalismo e com os quais os jornalistas se identificam ao definir seu trabalho – e, para muitos, aquilo que dá sentido à profissão – não são diferentes dos valores compartilhados há mais de cem anos (DEUZE, 2016, p 207). 2 | JORNALISMO DE DADOS COMO VALOR PROFISSIONAL Diante de um campo fragmentado pela internet, o jornalismo adquire múltiplas facetas espraiado nas plataformas digitais. Entretanto, mesmo antes do advento das redes sociais, nunca foi possível dizer que existe um jornalismo. Este não é um conceito estático, único e determinista. As práticas jornalísticas inscrevem-se em um percurso histórico desde os seus primórdios no século XVII, com padrões que não se manifestam necessariamente, de forma cronológica, mas estão vinculados a parâmetros de finalidade. Em última análise, o papel do jornalismo está imbricado a um marco imaginário, que extrapola fronteiras de tempo e espaço, determinado por valores profissionais (NEVEU, 2010; SCHUDSON, 2010). Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 3 28 Uma mudança de paradigma impõe ao jornalismo, no século XIX, a função de fornecer fatos. Com “autonomia relativa”, jornalistas desenvolvem técnicas específicas, um saber especializado e também uma identidade profissional – um ethos que constitui uma “comunidade interpretativa”. Entre dois polos dominantes no campo jornalístico – o comercial e o ideológico – emerge a identificação da imprensa como elemento fundamental da teoria democrática. Dentro desta lógica, a imprensa – nomenclatura que então abarcava o campo jornalístico – deve atuar como veículo de informação que faculta ao cidadão ferramenta para exercer seu direito e expressar suas preocupações. Cabe ao membro daquela comunidade – comprometido com os valores da profissão – buscar a notícia de forma desinteressada promovendo a vigilância constante e a defesa dos ideais democráticos (TRAQUINA, 2012, p. 127-131). Sob a égide do Positivismo, o jornalista deve agir como uma máquina fotográfica “apesar de uma orientação editorial” e cumprir seu dever de “fornecer a verdade exata” (TRAQUINA, 2012, p.52). Essa visão reforça a importância do profissional da imprensa para a democracia e do jornalismo como “Quarto Poder” ou contrapoder. Como assinalam Silveirinha e Camponez, Lippman enxerga as limitações da função ao mesmo tempo em que pontua “honra peculiar”. A observação tem de preceder qualquer atividade e o observador público (o repórter) é um homem de valor crítico. Qualquer dinheiro ou o esforço que se gaste para colocar o homem certo neste trabalho nunca será mal gasto, pois a saúde da sociedade depende da qualidade da informação que recebe (SILVERINHA & CAMPONEZ, 2012, p. 51). Nos Estados Unidos, as últimas décadas do século XIX foram marcadas pela “era do repórter” (SCHUDSON, 2010, p.80). Socialmente, o repórter – aquele que corre atrás da notícia – surgiu nos anos 1880 e 1890. Os penny papers foram os primeiros a contratar repórteres. A guerra civil americana fomentou o crescimento do mercado – os jornais de Nova York gastaram de 60 a 100 mil dólares anuais em reportagens sobre o front; o Herald tinha mais de 40 correspondentes. Mas o status social e o prestígio profissional só vieram perto da virada do século XIX para o XX (SCHUDSON, 2010, p.83-85). A busca pela notícia unia a classe que se atribuía importância e compartilhava de ideias comuns sobre como realizar o trabalho de reportagem (SCHUDSON, 2010, 85-88). O jornalismo é uma invenção do século XIX e as práticas e estratégias que o caracterizam foram inventadas nos Estados Unidos e, em menor grau, na Inglaterra (CHALABY, 2003, p.30). “Progressivamente, o discurso jornalístico tornou-se um gênero distinto de textos cujos métodos foram adotados por outros países” (ibidem). Neste sentido, Schudson (2010) radiografa a formação do ethos e a forma como o contexto social daquela época exalta a ciência a partir do domínio do interesse positivista. O jornalismo se contaminou e, nesta atmosfera, jornalistas se consideravam cientistas. O historiador Robert Brenner ressalta que havia uma demanda pública pelos fatos: “fatos acumulados até o ponto da certeza nua e crua, era o que realmente Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 3 29 desejava o povo norte-americano” (SCHUDSON, 2010, p. 89). Lippman, por sua vez, (1965) sustenta que a adoção de um método cientifico é o meio mais eficaz para a prática de um jornalismo profissional baseado nos fatos. Contudo, nas décadas de 20 e 30, as estratégias e ingerências de um novo ofício – o profissional de relações públicas – interferem na produção jornalística que se tornou imprecisa e manipulada. A disseminação desta cultura da propaganda – que envolveu campanhas políticas relacionadas à Primeira Guerra Mundial – redundou na impossibilidade do repórter, em sua rotina diária, moldar os fatos (LIPPMAN, 1965, p. 218), um dos fatores que minou a confiança na mídia e a crença na objetividade jornalística naquele momento. Os conceitos de Lippman sobre a propaganda nos fornecem argumentação que sustenta a lógica da objetividade como um ideal do jornalismo. Evoca hábitos do realismo objetivo do cientista – o desapego, o altruísmo e a maturidade – e a capacidade de não se pautar pelos próprios gostos e desejos na compreensão do mundo. Schudson (2010), entretanto, percebe que, se os jornalistas, em 1890, acreditavam nos relatos realísticos, nos anos 30 já existe, mesmo entre aqueles comprometidos com a objetividade, a consciência dos perigos da subjetividade. Embora vulnerável a questionamentos – da mesma forma que a neutralidade e a imparcialidade – a ideologia da objetividade persiste como um dos valores profissionais. No lugar de uma simples “fé cega” aos fatos, os jornalistas lançam mão de regras e procedimentos para assegurar a credibilidade da informação. E também produziram um “ritual estratégico”, como estabelece Gaye Tuchman (1999), que consiste em um conjunto de convenções concretas já consolidadas a fim de responder às críticas e fortalecer a credibilidade das notícias produzidas. O uso de aspas, a apresentação de provas auxiliares e de vários lados da questão – ao ouvir mais de uma fonte – fazem parte do método objetivo. Para além da objetividade, associar a notícia à revelação dos fatos tornou-se um mote, especialmente com a percepção da imprensa sobre a manipulação das notícias por parte dos profissionais de relações públicas e de fontes do governo. Essa consciência fez brotar uma cultura crítica nos Estados Unidos, na década de 60, alimentada por uma crise de representatividade que só fazia aumentar a desconfiança da população a respeito da política e do governo que para 67% dos americanos beneficiava pequena parcela privilegiada (SCHUDSON, 2010, p.207). Nas grandes redações, jornalistas e editores foram influenciados pela tradição muckraking, o que motivou o crescimento de reportagens investigativas nos principais jornais e, consequentemente, maior concorrência entre eles. Cabe ressaltar que o movimento muckraker – que se originou antes da Primeira Guerra Mundial – marcou a veiculação de relatos jornalísticos precisos que denunciavam corrupção e efeitos sociais danosos do processo de industrialização. A tradição muckraking – de forma conotativa – denomina a atuação de jornalistas progressistas com postura crítica ao governo que denunciam a corrupção política. Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 3 30 A busca por uma apuração acurada e confiável foi a fonte de inspiração, na década de 70, para o repórter e professor Philip Meyer – autor do manual Jornalismo de Precisão – sistematizar uma metodologia quantitativa conhecida como CAR (Reportagem Assistida por Computador), conceito-chave precursor do big data (HOWARD, 2014). Meyer (2017) salienta que, diante de fontes menos confiáveis, os jornalistas devem apreciar os benefícios do jornalismo de dados. Mas destaca que, como método científico, constitui-se de uma ferramenta que requer hipótese, análise de correlação e apuração in loco. Autores como Parasie (2015) e Howard (2015) destacam a ideia estabelecida que os dados, sem o manuseio, não tem valor em si, e que as normas jornalísticas se mantêm válidas a partir da verificação da exatidão dos dados e da comparação cruzada da apuração junto a várias fontes. Na transição da RAC para o big data, há uma percepção que os próprios dados podem guiar o repórter (data-driven) e revelar uma história inesperada, ou seja, o profissional não teria, necessariamente, uma liderança compulsória no processo da reportagem (PARASIE, 2015, p.13). No cruzamento entre jornalismo tradicional e jornalismo de dados, Bradshaw (2012) observa a união entre o tradicional “faro jornalístico” e a capacidade de narrar uma estória de forma envolvente com fornecimento de muitos dados e acesso aos mesmos. Como exemplo, Canavilhas cita a reportagem “Bicho de Sete Cabeças”, da Agência Pública publicada em 16 de abril de 2014, que denuncia divergências nos dados sobre transferências de recursos federais para a educação nas cidades-sede da Copa do Mundo a partir de dados coletados no portal do Ministério do Esporte e no Portal da Transparência, sobre a Controladoria-Geral da União (CGU). As bases de dados contribuem para estruturar a narrativa e demonstram a dificuldade de encontrar dados fidedignos para elucidar o “bicho de sete cabeças”. Para compor esta nova tessitura textual, as organizações recorrem às equipes multimídias, a exemplo do que ocorre em grandes redações. Pesquisa realizada nas redações de O Globo, Zero Hora e Diário do Nordeste, no Brasil, e Correio da Manhã, Expresso e Público, em Portugal, sobre a crescente influência de “tecnoatores” nas redações online apontam para hibridismo profissional com a manutenção da primazia de repórteres e editores na condução das principais diretrizes de trabalho. Charbonneaux e Gkouskou-Giannnakou argumentam que a fragmentação no campo profissional não impede o processo de extensão do domínio da profissionalização (CHARBONNEAUX; GKOUSKOU-GIANNAKOU, 2015). Mais do um simples método, Marchetti (2000) propõe que o jornalismo de dados se constitui um novo “objetivo de lutas simbólicas em torno da própria definição da atividade jornalística” (MARCHETTI, 2000, p.37). Ao abordar o JD como uma prática investigativa na Grécia e Alemanha, Juliette Charbonneaux e Pergia GkouskouGiannakou (2015) formulam que, nos dois países, as primeiras experimentações de jornalistas de dados se destacaram em um contexto de crise econômica e desconfiança dos gregos em relação às instituições públicas e tentativas de dar visibilidade a temas Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 3 31 como ação de grupos neonazistas e a ineficácia dos serviços públicos alemães (CHARBONNEAUX; GKOUSKOU-CHIANNAKOU, 2015, p. 268). Como base para normas e valores, padrões éticos desempenham um papel fundamental na orientação dos jornalistas especialmente para buscar promover precisão, transparência e serviço público, entre outros ideais. (…) a ética está associada ao profissionalismo e seu poder em delimitar fronteiras, delineando insiders e outsiders e incentivando jornalistas a se distanciar de práticas consideradas inferiores ou pouco familiares à profissão (LEWIS, 2015 p.13). Se a delimitação do campo jornalístico se encontra evidentemente impactada, Traquina pressupõe que os profissionais da mídia conseguiram demarcar uma identidade profissional vinculada a papéis sociais definidos. Entre os atributos desta cultura profissional estão a liberdade, a autonomia, e competência profissional – um monopólio de saberes (BORDIEU, 1998). Estudo realizado, na década de 1990, em cinco diferentes comunidades (Estados Unidos, Itália, Alemanha, Reino Unido e Suécia) por Paterson e Donsbach apontou, como função consensual, dar a conhecer e publicitar problemas (PATTERSON; DONSBACH, 1998). 3 | CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir da premissa de Chalaby (2003), assinalamos que o jornalismo angloamericano modula estratégias e práticas jornalísticas e nos amparamos em Schudson (2010) para expor uma hipótese de quatro ciclos em que as rotinas produtivas são guiadas pelo rigor na metodologia como forma de legitimar a produção jornalística e, consequentemente, ampliar a credibilidade da notícia. O primeiro ciclo, no século XIX, é marcado pela invenção do repórter e o fortalecimento de um jornalismo calcado na precisão, na apuração com rigor científico, influência do positivismo e da ciência. É quando começa a se delinear o ethos profissional e valores de uma comunidade interpretativa (SCHUDSON, 2010). O segundo ciclo ocorre nas décadas de 1920 e 30 – com a ascensão da ingerência da propaganda – quando Lippman, em seu clássico livro lançado em 1922, percebe a objetividade como ideal do jornalismo. O método científico nas rotinas jornalísticas é visto como meio de atingir a credibilidade arranhada pela manipulação das notícias (SCHUDSON, 2010). Um terceiro ciclo se estabelece na década de 1960 com a cultura crítica que se espraia nas redações e reforça a necessidade de desconfiar das fontes e dá combustão ao jornalismo investigativo. Há uma revitalização do movimento muckraker pautado pela preocupação social e empenho em denunciar corrupções e desgovernos. A função do profissional de relações públicas está consolidada e, entre repórteres, cresce o questionamento sobre linha editorial, autonomia e imparcialidade. Reconhecemos um quarto ciclo que se delineia nas plataformas digitais a partir da atuação das agências de jornalismo independente – que se enquadram no polo ideológico do jornalismo. Buscam autonomia – dentro do modelo sem fins lucrativos Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 3 32 – qualidade e exatidão – apoiadas na apuração com rigor e no rigor metodológico do big data. Ao investir em pautas investigativas, promovem a revitalização do repórter transmutado em jornalista de dados. A metodologia do jornalismo de dados serve de antídoto contra a produção jornalística de qualidade duvidosa. A “objetividade” é garantida pela abundância de informações na web (CHARBONNEAUX; GKOUSKOU-GIANNAKOU, 2015, p.275). Cabe uma pergunta: as equipes multimídias que se constituem neste cenário estão conseguindo revigorar o papel social da mídia? Qual o alcance destas agências no cenário de produção digital? REFERÊNCIAS ADGHIRNI, Zélia Leal. O Jornalista: do mito ao Mercado. 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Partese de algumas definições clássicas sobre o que caracteriza o jornalismo como: atualidade, periodicidade, universalidade, difusão, credibilidade e imparcialidade, passando pela discussão sobre como a internet impulsionou novos fazeres jornalísticos que colocam em xeque esses pressupostos. Encontrase aproximações do etnojornalismo com outros conceitos como jornalismo alternativo, comunitário e cidadão. PALAVRAS-CHAVE: Etnojornalismo; indígenas; interculturalidade; jornalismo. NOTES ON THE CONCEPT OF ETHNOJOURNALISM ABSTRACT: This article proposes a discussion on the concept of ethnojournalism, a term that has been used by indigenous movements to characterize their own production and dissemination of news and information by indigenous people. There is still little theoretical reflection regarding this term in the journalistic field. Some characteristics of journalism such as actuality, periodicity, universality, diffusion, credibility and impartiality are discussed, reflecting on how the internet stimulated new practices that challenge these standards. Ethnojournalism approaches other concepts such as alternative, communitarian and citizen journalism. KEYWORDS: Ethnojournalism; indigenous: interculturality; journalism. 1 | INTRODUÇÃO O termo etnojornalismo vem sendo utilizado pelos movimentos indígenas para caracterizar a produção e veiculação de notícias e informações pelos povos originários, fenômeno que se expandiu com a popularização da Internet e dos dispositivos móveis. Considerando que este conceito ainda carece de reflexão teórica Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 4 36 no campo jornalístico, este artigo parte da discussão sobre algumas definições clássicas do jornalismo como: atualidade, periodicidade, universalidade, difusão, credibilidade e imparcialidade para, em seguida, revisitar as definições apresentadas pelos comunicadores indígenas sobre o etnojornalismo. Ao final reflete-se sobre as aproximações do termo com os conceitos de jornalismo alternativo, comunitário e cidadão. O objetivo é contribuir para uma definição conceitual sobre o etnojornalismo e promover reflexão sobre a prática jornalística a respeito dos povos indígenas. 2 | O QUE É MESMO O (ETNO)JORNALISMO? Podemos pensar no jornalismo como a mera produção de notícias para jornais, revistas, meios eletrônicos e digitais. A retratação objetiva da realidade, difundida em escala industrial, a partir do uso de tecnologias de reprodutibilidade técnica. Como problematiza Ana CarolinaTemer (2015, p.21-34), passando pelas definições de autores cânones como Beltrão (1960), Belau (1966), Lage (1992), Marques de Melo (1991), Marcondes Filho ( 2000) e Otto Groth (2011) entre outros, trata-se de um conceito complexo que vai além do papel de mero transmissor de informações, pois a imprensa é “um elemento ativo na sociedade, que pode atuar tanto para reproduzir outros saberes quanto para degradá-los” (TEMER, 2015, p.23). Nas definições clássicas do jornalismo alguns pressupostos são destacados como a atualidade, periodicidade, universalidade e publicidade/difusão. No entanto, no modelo capitalista/industrial, que se desenvolveu ao longo do Século XX, os constantes esforços pela audiência e por anunciantes colocaram em xeque a credibilidade do jornalismo, o próprio capital simbólico desse campo. Ana Carolina Temer enumera várias estratégias utilizadas pelas empresas jornalísticas para legitimar sua credibilidade, como rapidez na cobertura, qualidade visual dos materiais, celebrização dos profissionais e, especialmente o discurso da objetividade. No entanto, o princípio de objetividade/imparcialidade também mascara os limites do jornalismo e reafirma a importância da técnica (no caso, a técnica da redação jornalística), consequentemente reforçando a importância do jornalismo como espaço privilegiado para a exposição dos fatos efetivamente importantes para os receptores. (TEMER, 2015, p.29) A autora também ressalta que, como o jornalismo e a sociedade estão em constante transformação, novos tipos de conteúdo, veículos e práticas jornalísticas vão surgindo. Um exemplo disso tem sido o protagonismo de organizações sem fins lucrativos ou canais alternativos no jornalismo investigativo, como foi o caso da Mídia Ninja, que ganhou repercussão após as manifestações de 2013 no Brasil. Indígenas On Line, Rádio Yandê (webrádio), Povos Indígenas do Brasil são algumas referências a serem mencionadas no caso do midiativismo indígena, mas há também blogs, canais no You Tube e perfis nas redes sociais produzidos por indígenas das mais variadas etnias. Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 4 37 São exatamente essas transformações impulsionadas pela internet que fizeram surgir o que vem sendo chamado de etnojornalismo. O termo vem sendo utilizado especialmente pelos movimentos indígenas em seus sites, blogs e redes sociais: “Etnojornalismo é a atividade que consiste em lidar com notícias, dados factuais e divulgação de informações. Também define-se o etnojornalismo como a prática de coletar, redigir, editar, publicar informações sobre eventos atuais”, explica o blog de comunicação elaborado pelo grupo Indígenas On Line que existe desde 2006 (PETEI XE RAJY, 2018). Essa definição se estabelece a partir de pontos em comum com o jornalismo tradicional. Mas então qual seria o diferencial do etnojornalismo? A jornalista indígena Renata Tupinambá explica: A grande mídia serve a interesses dos grupos empresariais e políticos que a mantém, o que impossibilita certas pautas importantes dentro da questão indígena. Infelizmente a falta de informação sobre os povos faz reproduzir muitos estereótipos, imagens associadas a conflitos apenas, exploração do exótico, equívocos sobre as culturas e realidade indígena contemporânea (in NONADA, 2018) A jornalista ressalta que ainda falta o reconhecimento da comunicação como um direito dos povos originários. Como coordenadora da Rádio Yandê, uma webrádio produzida colaborativamente pelos povos indígenas, Renata tem se destacado no combate ao que ela chama de colonização da mídia. No Brasil, o Ministério da Cultura tem pelo menos 70 iniciativas desse perfil cadastradas em editais de incentivo. (NONADA, 2018) Nessa linha, Renata Tupinambá define: “o etnojornalismo traz para os conteúdos produzidos visões de mundo dos comunicadores, suas etnias e culturas, contribuindo para a descolonização dos meios de comunicação” (in NONADA, 2018). Ela conta que no Brasil um o pioneiro em protagonizar uma comunicação indígena foi Ailton Krenak com o Programa de Índio. De 1985 a 1990 ele foi apresentador do programa produzido pela UNI – União das Nações Indígenas e apresentado pela Rádio USP (JORNALUSP, 2018). O acervo de quase 200 programas de rádio está disponível no site Programa de Índio. Em todo o mundo coletivos e projetos de diferentes etnias vem trabalhando essa questão. A maioria dos projetos brasileiros, segundo Renata, ainda são realizados junto com não indígenas, mas cada vez mais indígenas buscam autonomia e real protagonismo em suas iniciativas. No campo acadêmico ainda pouco se abordou a temática da comunicação indígena, ainda mais especificamente sob a perspectiva do etnojornalismo. Como ainda temos proporcionalmente poucos indígenas graduados e ainda menor número de pós-graduados, tomaremos aqui a liberdade de mencionar jovens pesquisadores que começaram a discutir essa definição. Na Universidade Estadual de Londrina, o primeiro jornalista indígena formado no Paraná, Osias Sampaio, em seu Trabalho de Conclusão de Curso, em 2010, discutiu as diferentes abordagens do jornalismo indígena e jornalismo indigenista, ambos voltados a dar voz aos povos originários, porém somente o primeiro com o protagonismo e autonomia dos indígenas. O jornalismo indígena e indigenista é desconhecido de setores da sociedade ocidental, mas é de importância fundamental para os povos ameríndios, Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 4 38 considerando a necessidade de refutação às notícias distorcidas e improcedentes da mídia corporativa; considerando também o princípio da liberdade de expressão e os direitos indígenas nacionais e internacionais ratificados em várias instâncias, conquanto muitas vezes ignorados nas políticas e nos setores anti-indígenas das sociedades ocidentais. (SAMPAIO, 2010, p. 19) Sampaio destaca que o jornalismo indígena está focado na defesa, denúncia e também na divulgação da cultura, não tendo por objetivo o lucro e, portanto, independente da publicidade. Ele constata que no Brasil essas práticas ainda estão em fase de expansão e capacitação, a produção é “feita por iniciantes, com redação incipiente, desajustada aos padrões da escrita noticiosa. Neste trabalho está sendo legitimada como jornalística toda atividade informativa praticada pelos indígenas, ainda que seja amadora e local.” (2010, p.65) Já Mayra Wapichana, em seu Trabalho de Conclusão do Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Roraima (UFRR), retoma a discussão em 2015, já utilizando o termo desde o título Etnojornalismo, estratégias de comunicação e o protagonismo indígena: um estudo de caso no Conselho Indígena de Roraima. Para Wapichana, “o etnojornalismo tende a ser um agente dinâmico na busca pelo reconhecimento das nossas reivindicações, principalmente, aqui no Brasil, onde não encontramos a ressonância necessária na grande mídia” (2016, p.60). Ela coloca a formação superior e profissional como um desafio aos indígenas: na medida em que nós indígenas nos desafiamos a atuar nesse campo do jornalismo, estamos dando respostas de que é possível, sim, exercer a função em prol de uma coletividade étnica. Ou seja, hoje, não só eu enquanto indígena que busca a formação superior na área do jornalismo, como muitos indígenas em diversas Universidades do Brasil também se desafiam a concluir ou já concluíram a formação e exercem a função como jornalistas indígenas (2016, p.19) No artigo Comunicar mais para ser mais: O Etnodesenvolvimento como uma perspectiva para o Etnojornalismo, Cristina Oliveira, pesquisadora não indígena, já havia abordado o termo como um tipo específico de comunicação, cuja definição envolve “agente, processo, produto ou meio de comunicação” (2014, p.19). Nessa definição, podemos entender que o etnojornalismo seria um jornalismo produzido por indígenas, em um processo de construção de sentido que se insere nas formas de se relacionar e narrar histórias de cada etnia, mas também de produtos e meios de comunicação que têm características específicas em relação à seleção de temas, critérios de relevância, fontes pertinentes e até mesmo estéticas e linguagens próprias. Outra menção ao termo etnojornalismo é feita por Vizeu (2010, p.234) em uma abordagem bastante diferente, ao tratar sobre métodos de pesquisa do newsmaking. O autor se refere ao uso da etnografia para observar as práticas de produção de notícias nos veículos noticiosos. Neste caso, com observação participante no dia a dia das redações, entrevistas não diretivas e outras técnicas, a metodologia visa compreender os processos produtivos de notícias, o que o autor chama provisioriamente de etnojornalismo. Porém, não é nessa perspectiva que estamos considerando o conceito. Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 4 39 3 | ALTERNATIVO, POPULAR, COMUNITÁRIO E CIDADÃO O uso do termo etnojornalismo pelos movimentos indígenas se refere a práticas que apresentam pontos em comum com outras modalidades, como o jornalismo alternativo, independente, popular, comunitário e cidadão. Passamos então a problematizar essas interfaces em busca de estabelecer o que se agrega de novidade a esse termo. No Brasil, identifica-se a presença da imprensa alternativa nos pasquins irreverentes e panfletários que já existiam no período da Regência, com seu apogeu por volta de 1830, assim como nos jornais anarquistas na virada dos Séculos XIX e XX. Mas, segundo Kucinski, o jornalismo alternativo ganha força no país durante a ditadura militar, como forma de resistência. No período de 1964 a 1980, havia cerca de 150 periódicos com este perfil, considerando jornais políticos, satíricos, feministas, ecológicos e culturais. Ele distingue quatro características desse tipo de jornalismo: não está ligado à política dominante, se posiciona antagonicamente, representa uma saída para uma situação difícil e o desejo de protagonizar transformações sociais. (KUCINSKI, 1991, p.5) Peruzzo também problematiza sobre as semelhanças entre os conceitos de comunicação alternativa, popular e comunitária. O alternativo se dá em relação ao estabelecido, ao comercial, diferenciando-se pelos conteúdos de abordagem crítica e pelos modos de organização e de produção. Houve um tempo em que produzir e difundir boletins, panfletos, jornais etc., significava grande risco de prisão e condenação política. Assim, no contexto do regime militar, produzia-se comunicação alternativa clandestinamente, pois havia controle estatal e censura. (PERUZZO, 2009, p.132) Em sua definição, trata-se de uma contracomunicação, feita pelos movimentos populares e comunidades, com os seguintes objetivos: exercitar a liberdade de expressão, oferecer conteúdos diferenciados, conscientizar e democratizar a informação, assim como contribuir para a transformação social. No entanto, a autora conclui que com o tempo, o uso do termo “alternativo” tornou-se insuficiente para definir um conjunto de práticas muito diversas. Há para Peruzzo uma distinção entre comunicação popular e comunitária, comunicação alternativa e imprensa alternativa. A comunicação popular e comunitária seria aquela produzida pelos movimentos sociais populares e comunidades, sem fins lucrativos, educativa, cultural e mobilizadora, com a participação ativa horizontal do cidadão, para atender suas demandas. Já a comunicação popular alternativa é feita com a participação de segmentos populares. Em geral, motivada ou viabilizada por organizações não governamentais (ONGs) e outras instituições, como universidades. Já a imprensa alternativa refere-se a processos de comunicação basicamente jornalísticos, destoantes dos padrões dos meios de comunicação convencionais e dos setores dominantes. Neste caso, outras diferenciações específicas são propostas Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 4 40 por Peruzzo como: jornalismo popular alternativo, jornalismo alternativo colaborativo, jornalismo alternativo autônomo (produzido por indivíduos isoladamente ou por microempresários), jornalismo político-partidário e ainda jornalismo sindical. (2009, p.140-143) De qualquer forma, nas chamadas mídias alternativas, o público exerce o papel de audiência ativa, ou seja, pessoas que mantém uma relação dinâmica com os movimentos sociais participam da construção de uma esfera pública alternativa, superando os interesses, operam e recriam os meios e os agentes sociais, retirando da mídia sua caracterização meramente mercadológica (DOWNING, 2002) Atton lamenta o fato de que os cursos de jornalismo “ignoram a ética e as práticas do jornalismo alternativo, ou então os apresentam como estudos de caso “extremos””. Ele propõe métodos de educação em jornalismo que questionem a epistemologia dos valores notícia e objetividade, enfatizando a construção social dos “fatos” e do conhecimento e desenvolvendo o pensamento crítico e a reflexividade. O jornalismo alternativo seria uma via de ação fora da divisão corporativa do trabalho e do capital. Atton sugere incorporar o estudo do jornalismo alternativo nos currículos, com os seguintes propósitos: “1) funcionar como uma crítica através da práxis de formas de jornalismo institucionalizadas e rotineiras; 2) sugerir “outras formas” de fazer jornalismo; e (3) oferecer habilidades - e abrir possibilidades - para aqueles que possam querer trabalhar em “mídias de cidadãos”. (ATTON, 2003, p. 271) Podemos estabelecer também uma conexão do termo etnojornalismo com o que Traquina e Mesquita chamam de jornalismo cívico ou público (2003, p. 9-27), um movimento surgido nos Estados Unidos no final dos Anos 80 em resposta à insatisfação dos leitores. Há muita discussão sobre a nomenclatura, pois outros autores abordando a mesma temática se referem a essa prática como jornalismo público, comunitário e até mesmo cidadão. O termo cívico remeteria ao período da ditadura militar, assim como o público poderia dar a conotação de que é produzido por uma instância pública de comunicação (ligada ao Estado), assim como o jornalismo comunitário teria a conotação de ser totalmente produzido pela comunidade. (BARCELLOS; ALVETTI, 2007). Sobre o jornalismo cívico, conforme a nomenclatura utilizada por Traquina, a experiência inicial se deu no Columbus Ledger Enquirer que “abandonou o seu papel tradicional de observador desligado e assumiu um papel de activista na tentativa de melhorar a qualidade de vida na comunidade” (TRAQUINA in TRAQUINA e MESQUITA, 2003, p.11). Na prática, o periódico passou a promover encontros e pesquisas com seus leitores numa tentativa de aproximar sua cobertura dos interesses da comunidade. Outros jornais passaram a aderir a essa ideia de maior proximidade com as demandas do público. Merritt define as linhas condutoras do jornalismo cívico: 1) ir para além da missão de dar as notícias para uma missão mais ampla de ajudar a melhorar a vida pública; 2) deixar para trás a noção do “observador desprendido” e assumir o papel de “participante justo”; 3) preocupar-se menos com as separações adequadas e mais com as ligações adequadas; 4) conceber o público não como consumidores, mas como actores na vida democrática, tornando assim prioritário Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 4 41 para o jornalismo estabelecer ligações com os cidadãos. (cit por TRAQUINA in TRAQUINA; MESQUITA, 2003, p.13) Para Mesquita, o jornalismo cívico se contrapõe às práticas fragmentárias do jornalismo tradicional que pula de um acontecimento a outro com superficialidade. Profundidade e voz ativa do cidadão para deliberar sobre o que é relevante à vida comunitária caracterizariam esse jornalismo. O aspecto comunitário dessa abordagem poderia ser um antídoto à apatia política e ao desinteresse pela participação política (in TRAQUINA; MESQUITA, 2003, p. 21-22). Já Rosen critica a noção fundamental de objetividade que caracteriza o jornalismo dos Estados Unidos, que por sua vez influenciou a prática jornalística no mundo todo. Nessa perspectiva, em nome da objetividade, o jornalista perdeu sua independência e sua voz. Em nome do equilíbrio, passou a expor os argumentos de uma verdade, para em seguida ouvir o outro lado, cuja verdade que discordará completamente da primeira. E sugere que a objetividade seja substituída por algo melhor (in TRAQUINA; MESQUITA, 2003, p. 75-77). Embora encontrem algum valor na abordagem crítica desse jornalismo, o fato deste ser exercido dentro do mercado “impede que ele ensaie qualquer desafio rigoroso ao profundo estrutural, institucionalizado e relações de poder profissionalizadas dos meios de comunicação de massa” (ATTON, 2003, p.273). Outro termo que vem sendo utilizado no Brasil é o de jornalismo cidadão para as participações do público nos noticiários, enviando imagens de acidentes, informações sobre o trânsito e denúncias sobre problemas de infraestrutura nos bairros. Moretzsohn discute esse jornalismo “cidadão” ou “participativo”, considerando um “equívoco de se apontar um confronto entre “nós” (os cidadãos ansiosos por comunicar livremente) e “eles” (os jornalistas empenhados em preservar discricionariamente seus “privilégios” sobre o poder de informar)” (2014, p. 249). A autora considera que a responsabilidade na apuração e divulgação das notícias exige uma qualificação, sem negar o direito constitucional à liberdade de expressão e de comunicação que se amplia com o acesso às novas tecnologias. Reitera o caráter profissional do jornalismo como um mediador e aponta para os riscos em adotar o senso comum como fonte de “verdade”. Além disso, constata que as empresas de comunicação têm utilizado a fórmula do “repórter cidadão” como uma simulação de que o “povo” fala, embora não edite. Com esses quadros, “obtém matéria-prima a partir de uma mão de obra informal, que ao mesmo tempo se comove com a súbita valorização e retribui com sua audiência fiel.” (MORETZSOHN, 2014, p. 263) Numa análise mais otimista, Renó e Dankosky consideram que o jornalismo cidadão significa diversidade de opinião e equilíbrio entre dois olhares: o dos meios e o do povo. Além disso, representa divergência cultural e tecnológica em relação às práticas tradicionais. Para os autores, ambos são importantes: “o jornalismo cidadão é, em diversos casos, um agente regulador dos meios tradicionais” (in BRONOSKY; CARVALHO, 2014, p.181), já o jornalismo tradicional pode cumprir a função de legitimar as informações difundidas pelos grupos cidadãos. Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 4 42 4 | CONSIDERAÇÕES Com base nas experiências relatadas como práticas de etnojornalismo, surgidas com o acesso às tecnologias digitais e à internet, e nas discussões sobre a epistemologia do jornalismo e os conceitos de jornalismo alternativo, popular, comunitário, público e cidadão, é possível propor uma definição ao termo. O etnojornalismo é um jornalismo alternativo na medida em que adota modos de produção, expressão e distribuição diferentes dos padrões dos meios de comunicação convencionais e dos setores dominantes. É popular e comunitário por ser elaborado de forma participativa e democrática dando voz diretamente aos membros de determinada comunidade. Há também aproximações com algumas características do jornalismo cívico ou público como ir para além da missão de dar as notícias para ajudar a melhorar a vida pública, assumir o papel de participante e conceber o público não como consumidores, mas como atores na vida democrática. Também tem semelhanças com o chamado jornalismo cidadão, na medida em que o público pode “falar” nas produções. No entanto, o etnojornalismo se afasta tanto do jornalismo cívico/público como do cidadão pelo fato destes serem praticados dentro das estruturas do mercado midiático. Em síntese, consideramos o etnojornalismo como um jornalismo alternativo, com vocação popular e comunitária, engajado e independente, trazendo como especificidade a questão étnica. Nesse sentido, pressupõe-se que é produzido com o protagonismo de indígenas, com a adoção de valores próprios na seleção de temas, fontes e enquadramentos, resultando em produções que traduzam traços culturais e étnicos em sua técnica, ética e estética, que serão veiculados em mídias livres, engajadas e ativistas em suas causas e, quem sabe, possam também ser divulgadas por meios de comunicação que promovam essa abertura em sua linha editorial. A partir dessas delimitações conceituais iniciais, vislumbra-se a necessidade de novas pesquisas que possam se aprofundar nas reflexões sobre a interculturalidade nas práticas jornalísticas, as particularidades das mídias que se propõem o processo de descolonização, assim como sobre o papel do jornalista não índio na intersecção com essa problemática e esses saberes. REFERÊNCIAS ATTON, C.. What is ‘alternative’ journalism? Journalism 4 (3):267-272. University, Edinburgh, 2003. BARCELLOS, Z.; ALVETTI, C.. 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Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Design da Universidade de Brasília. Email: [email protected]. PALAVRAS-CHAVE: Cidadania, Jornalismo, SOS Imprensa, Universidade de Brasília, Tecnologias da Informação e Comunicação. 1 | INTRODUÇÃO Marcos Amorozo Vive-se, hoje, um rápido aumento no uso Graduando em Jornalismo, pela Faculdade de Comunicação, da Universidade de Brasília (UnB). Email: [email protected]. das Tecnologias de Informação e Comunicação Rafiza Varão computadores pessoais, internet e televisão Professora da Faculdade de Comunicação, Universidade de Brasília (UnB). Doutora em Comunicação. E-mail: [email protected]. RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo analisar a produção narrativa online empreendida pelo projeto de extensão SOS Imprensa, realizado por alunos da Faculdade de Comunicação, da Universidade de Brasília, como forma de identificação e análise da construção do papel cidadão. A pesquisa busca identificar quais temas provocam mais engajamento no SOS Imprensa. Para isso, foram perscrutados os temas empreendidos pelo projeto e a participação cidadã na construção dos textos produzidos pela equipe de extensão. (TICs) na sociedade. Este fato pode ser atribuído, segundo Selwyn (2003), à emergência dos digital. A convergência desses meios faz com que estejamos vivendo em uma “sociedade em rede”. Castells esclarece que: É claro que a tecnologia não determina a sociedade. Nem a sociedade escreve o curso da transformação tecnológica, uma vez que muitos fatores, inclusive criatividade e iniciativa empreendedora, intervêm no processo de descoberta científica, inovação tecnológica e aplicações sociais, de forma que o resultado final depende de um complexo padrão interativo (CASTELLS, 1999 p. 43). A influência dos meios é capaz de promover um processo de transformação além da transmissão de informações dos media para a população, ou da construção majoritária da sociedade por estes. Com as TICs e as novas linguagens narrativas proporcionadas pela web, foi possível à população uma participação Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 5 46 cidadã além das eleições e cumprimento das leis; as mídias alternativas surgidas com essas tecnologias deram margem para que os indivíduos pudessem ter mais voz e interagir com a informação como nunca antes. As novas formas de construir narrativas propiciadas pelas TICs passaram a influenciar a vida humana, o tempo e o espaço. Entre as transformações causadas, podemos observar as relações do cidadão com a imprensa e com a mídia, destacando as relações da cidadania frente aos meios de comunicação. Os media são cada vez mais influentes na maneira com que adquirimos, interpretamos e transmitimos informações. Dessa maneira, é necessário que se analise as suas produções, de modo a entender seus impactos e desenvolver, junto aos cidadãos, uma relação mais crítica e consciente dos meios de comunicação. Como exemplo, podemos utilizar a falta de arrojos de regulação, ou autogestão dos veículos, de iniciativa estatal ou da sociedade no jornalismo brasileiro; mesmo que haja instituições como a Associação Nacional dos Jornais (ANJ) e a Associação Brasileira de Emissora de Rádio e Televisão (Abert), que zelam, de certa forma, pela qualidade da produção jornalística (SILVA, L. M. & PAULINO, F., 2016). Nesse contexto de observação da imprensa e de mídia alternativa, destacase o SOS Imprensa, projeto de extensão da Faculdade de Comunicação (FAC) da Universidade de Brasília (UnB) que pode ser tratado como participante destas duas categorias. Com produção realizada por graduandos em Comunicação Social e Jornalismo, o SOS exerce o papel de oferecer a sociedade, representada pelo seus leitores, um olhar mais profundo das produções veiculadas nos meios de comunicação, que podem ajudar na formação de cidadãos capazes de consumir criticamente as informações que recebem e reproduzi-las com maior qualidade. Essa influência é exercida através de produções textuais realizadas pelos extensionistas cujo objetivo é analisar criticamente as produções mediáticas, apontando os conflitos éticos e suas possíveis influências na construção social de quem as consome. Além deste serviço de fiscalização e conscientização, são produzidos conteúdos de cobertura jornalística de eventos relevantes para a comunidade da UnB, chamado de #SOSNews, que dificilmente seria realizada pela grande mídia. Verifica-se, então, que o SOS Imprensa exerce um papel motivador na construção da cidadania na comunicação no mundo digital, sendo utilizado como objeto de estudo neste trabalho para análise da relação entre o engajamento e interação do público conforme o conteúdo presente nelas. A partir disso, o presente trabalho tem como objetivo verificar como as interações e audiência das produções no Blog e no Facebook, varia conforme o conteúdo de suas pautas. Busca-se também destacar, através dos números, a importância deste trabalho frente à comunidade da UnB, que se identifica com a proximidade dos conteúdos apresentados. Estes fatores juntos são responsáveis por garantir engajamento às publicações do projeto no blog e Facebook do projeto. Ao final desta investigação,verifica-se o vínculo estreito entre a repercussão das produções e o potencial de transformações cidadãs contidos nelas. Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 5 47 Centrados numa análise de conteúdo simples dos textos blog do SOS Imprensa, foi definido, primeiramente, o período a ser observado: agosto a dezembro de 2017, período em que o projeto retomou as análises críticas da mídia como foco principal. Posteriormente, foram selecionadas as três publicações mais acessadas no blog e no Facebook em cada mês para análise. Em seguida, com base no que se espera de uma cobertura cidadã, classificamos os textos em três gêneros de conteúdo: entretenimento, cidadania e #SOSNews. A partir destes vértices, procuramos compreender se quanto mais cidadão se caracterizar o assunto tratados no texto, maior o engajamento e interação do público com eles. 2 | CIDADANIA E ENGAJAMENTO Voltar-se ao passado é o modo mais comum quando se busca entender as abstrações conceituais na evolução humana, conforme suas épocas e sociedades. Com a cidadania não é diferente. A fim de entender melhor o conceito de cidadania e tecer um fio condutor do pensamento, a busca pode ser centrada na autoconstrução humano, no que é o ser humano. Este ser humano, como ser histórico e social, não é imutável; ou seja, ele se molda conforme as condições e percepções ao seu redor. A totalidade deste indivíduo é sempre o resultado das atividades humanas, como trabalho, sociabilidade, consciência, liberdade e universalidades, características próprias e essenciais do ser social. Essas determinações também surgem dos atos humanos, mas se diferem das demais não por sua imutabilidade, mas sim pela maior unidade e continuidade. O trabalho, por sua vez, tem por natureza a possibilidade de produzir de forma cada vez mais ampla, mais complexa; criando outros tipos de problemas e necessidades que complexificam o ser social e suas relações (TONET, 2005). Para tentar garantir liberdade e igualdade dentre os dentre os partícipes do corpo social, foram criados conceitos de cidadania que evoluíram conforme o contexto histórico, desde a antiguidade até o encontrado na sociedade ocidental contemporânea. Em suma, a cidadania é a expressão do conjunto de direitos que dá à pessoa a possibilidade de participar ativamente da vida e do governo de seu povo. Quem não tem cidadania está marginalizado ou excluído da vida social e da tomada de decisões, ficando numa posição de inferioridade dentro do grupo social (DALLARI, 1998). Este valor é construído constantemente e não pode ser considerado permanente. A relação estreita de ideais e temporalidade com os direitos humanos, causa algumas interpretações errôneas de seu significado. Essa confusão pode causar deturpação do termo e de seus derivados: cidadão é utilizado comumente como substantivo a qualquer indivíduo desconhecido, e cidadania como sinônimo de direitos humanos, do consumidor, etc. Deve-se entender que a cidadania é fruto de lutas por direitos, liberdade, garantias individuais e coletivas sobre o Estado ou outras instituições dominantes. A cidadania pressupõe também certos deveres para os intervenientes, a Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 5 48 fim da manutenção de uma vida em comum agradável à todos. O cidadão só assim o é quando participa com efetividade das atividades políticas e sociais de sua comunidade, exigindo direitos e cumprindo os deveres cuja responsabilidade lhe cai. Quando todos os elementos apresentam-se em equilíbrio, é possível o bem comum. Os estudos em Comunicação constatam que os media influem e são influenciados pelas mudanças da sociedade. A cidadania como conceito mutável, participa desta interposta dinâmica mediática. Segundo KELLNER (2001), A cultura de mídia também fornece o material com que muitas pessoas constroem o seu senso de classe, de etnia e raça, de nacionalidade, de sexualidade, de “nós” e “eles. [...] A cultura veiculado pela mídia fornece o material que cria as indentidade pelas quais os indivíduos se inserem nas sociedades tecnocapitalistas contemporâneas, produzindo uma nova forma de cultura global (p. 9-10). A partir disso, o acesso aos canais de comunicação é fundamental para perpetuar o exercício da cidadania e pressupõe-se que, a partir disto, os indivíduos acessem diferentes informações, construa suas ideias e participe ativamente do debate, de maneira a protagonizar suas ações e ser capaz de desenvolver integralmente e participativamente a incubencia de cidadão. A atuação ativa da audiência, pela internet e novas linguagens narrativas, possibilita aos adeptos das mídias sociais uma nova maneira de interação e participação, onde os indivíduos podem se apropriar desses meios para produzir conteúdos de transformação social, além dos meios tradicionais, engajando uma audiência mais alinhada e interessada em seus conteúdos. Segundo REZ (2016), engajamento no contexto das mídias sociais é a interação, relacionamento e envolvimento de pessoas e perfis com a página. Este vínculo vai além do número de seguidores ou likes em uma postagem. Brian Haven, da consultoria Forrester, definiu alguns dos medidores de sentimentos entre os apreciadores e as contas produtoras de conteúdo. São eles: 1) Envolvimento, medido pelo número de visitas, tempo gasto por página e número de páginas vistas; 2) Interação, através de pedidos de informações, discussões em fóruns e outras ações que caracterizam iniciativa do usuário em entrar em contato com a página; 3) Intimidade, visão, opinião e sentimentos dirigidos à página através das mídias sociais; e, por fim, 4) Influência, probabilidade da pessoa influenciar o seu grupo de contato a consumir o conteúdo oferecido. Estes critérios podem ser aplicados também quando se analisa o desempenho de uma marca, produto ou artista frente aos usuários das redes sociais. A utilização das mídias sociais para alcançar diferentes públicos é uma possibilidades para mídias alternativas que desenvolvem trabalhos importantes para a sociedade, como o SOS Imprensa, observatório da mídia e projeto de extensão da Universidade de Brasília, que publica pequenos posts teasers1 de seus conteúdos na plataforma com links para a produção completa em seu blog. 1 Publicações com poucos caracteres que buscam atrair o público com uma pequena amostra do que é o produto final Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 5 49 3 | REDES SOCIAIS E DIVULGAÇÃO DE CONTEÚDO As Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) correspondem a todas as tecnologias que interferem e medeiam os processos informacionais e comunicativos dos seres. Ainda, podem ser entendidas como um conjunto de recursos tecnológicos integrados entre si, que proporcionam, por meio das funções de hardware, software e telecomunicações, a automação e comunicação dos processos de negócios, da pesquisa científica e de ensino e aprendizagem. As TICs, em especial os softwares colaborativos disponibilizados por meio da internet fazem parte da rotina da sociedade da informação, que, para MATTELART e VITALLIS (2015), era sinônimo de Sociedade Pós-Industrial. Segundo GOUVEIA e GAIO (2004), esta sociedade recorre predominantemente às TICs a fim de trocar informações e interagir com outros indivíduos e instituições em formato digital, cuja prática e métodos são construídos de maneira permanente. Nas últimas décadas, o uso destas tecnologias tem apresentado um rápido aumento, atribuído à disseminação dos aparelhos que permitem conexão com a web. Este universo é capaz de dar visibilidade e possibilidades maiores às mídias alternativas, devido a variabilidade de ferramentas disponíveis para o uso (vídeo, texto, imagem, transmissões ao vivo, etc.) e a possibilidade de alcance além das fronteiras regionais. O conceito de Mídia Alternativa surgiu para dar nome aos canais ou veículos de comunicação que não fossem os tradicionais, ou seja, toda comunicação que não fosse veiculada em jornal, revista, rádio ou televisão seria veiculada em uma mídia alternativa. A necessidade de inovação aliada à criatividade fez com que as mídias alternativas conquistassem mais espaço e se tornasse mais uma opção de veiculação e não apenas uma “alternativa” caso não houvesse verba. A web 2.0 - considerada como 2ª geração da internet - caracteriza-se por fortalecer as diversas formas de publicação, de divulgação e organização das informações, além de possuir capacidade de ampliar locais de interatividade entre o processo e os participantes. Ela tem reverberações sociais importantes, como potencializadora de processos de trabalho coletivo, de produção, troca afetiva e circulação de dados, de construção social de conhecimento apoiada pela informática (PRIMO, 2007). A utilização desse tipo de tecnologia tem permitido a construção de novos espaços de construção de conhecimentos e tem permitido alargar o tempo em que as aprendizagens podem ocorrer (COUTINHO; BOTTENTUIT apud RAUPP & EICHLER, 2012). Se comparados, blogs e redes sociais possuem laços estreitos para a expansão da área de influência dos conteúdos independentes, uma vez que a sua relação está cada vez mais próxima. Essa associação permite que os blogs utilizem das redes sociais para divulgar e difundir os conhecimentos e informações produzidos em pequenos posts, que levam o interlocutor por um link ao conteúdo completo. Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 5 50 4 | O SOS IMPRENSA O SOS Imprensa nasceu em 1996, na Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (FAC/UnB) como projeto de pesquisa intitulado “Formas de apoio às vítimas da Imprensa”, onde era dado suporte a pessoas que tiveram prejuízos morais, mesmo que sem má fé, de jornalistas e organizações de comunicação. Devido a uma visão pejorativa advinda deste foco, pouco tempo depois mudou-se a ideia de ajuda para “Formas de apoio aos usuários da Imprensa”, na qual a mídia era vista como serviço público que deveria ser lido de maneira crítica mas não como vilão. Inspirado nos ideais de O Direito Achado na Rua2, de Roberto Lyra Filho, e do projeto coordenado por José Geraldo de Souza Júnior, na Faculdade de Direito, o SOS criou uma espécie de “disque-denúncia”, em que os interessado ligavam e esclareciam suas dúvidas com os extensionistas de cada área. Por razões desconhecidas, o “DisqueImprensa” não teve longa duração. A partir de 2000, passou a ser um projeto de extensão na modalidade de “ação continuada” e mantém este caráter até os dias atuais. Em seus trabalhos, destacase uma leitura crítica da mídia, questionando os abusos, falta de representatividade, antieticidade, esclarecimento sobre a mídia, entre outros diagnósticos sobre a produção comunicacional do país. Os debates sobre os impasses éticos e profissionais dos media são voltados mais aos estudantes do que à comunidade externa, contrariando, de certa forma, o conceito de participação comunitária dos projetos de extensão. Essa particularidade pode ser vista de maneira benéfica se contarmos as participações em congressos e o desenvolvimento de pesquisas pelos participantes (PARENTE & PINTO, 2016). Além disso, com a utilização das mídias sociais, em especial o Facebook, existe a possibilidade de atingir a comunidade externa de maneira mais ampla que em programas televisivos locais, como realizado anteriormente pelo projeto. Rafiza Varão, professora da Faculdade de Comunicação, assumiu a coordenação do SOS Imprensa após a aposentadoria de seu fundador, Luiz Martins, no primeiro semestre de 2017. Segundo ela, é um “trabalho mais alinhado à produção de crítica da mídia, no sentido de fornecer uma literacia capaz de fazer com que a comunidade seja instruída acerca da linguagem dos meios de comunicação e de suas estratégias”3. Frente à realidade nacional de poucos espaços para debate sobre os meios de comunicação e a conscientização do direito e função social por trás deles, o SOS Imprensa exerce papel fundamental de fomento crítico para discussões, mesmo que ainda de maneira restrita e pouco participativa com a sociedade. Na tentativa de alcançar maiores públicos e atingir mais efetivamente a população, o projeto utiliza as redes sociais, em especial o Facebook, para conquistar e engajar público. 2 O Direito, nesta concepção, pode ser entendido como uma liberdade militante que se constrói dentro da justiça histórica e da convivência social dos indivíduos e coletivos, num processo e modelo de liberdade conscientizada. Os Direitos humanos tem centralidade neste pensamento lyriano que possui conexão com outros movimentos jurídicos, como o Pluralismo Jurídico, Direito Insurgente e o Direito Alternativo. 3 Entrevista concedida em 18 de março de 2018, na Universidade de Brasília. Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 5 51 5 | CIDADANIA E ENGAJAMENTO: O CASO DO SOS IMPRENSA Os conteúdos do SOS Imprensa são disponibilizados, hoje, no blog do projeto4, no Twitter5 e no Facebook6 com uso e repercussão maior deste último –, e buscam contemplar, como especificado no tópico anterior, temas como representatividade e dilemas éticos. Entre agosto e dezembro de 2017, quando o projeto retomou o foco quase que totalmente à criticidade da produção mediática, foram publicados 42 textos - uma média de oito por mês - com mais de 1230 visitantes mensais. Dentre os textos publicados neste período, destacam-se as produções do SOS News7 (cobertura de eventos factuais) e as análises que envolvem conteúdos de entretenimento e cidadania. Lorena Fraga, aluna do 4º semestre de jornalismo, assumiu como extensionista bolsista neste mesmo período de mudança de análises do projeto, após dois semestres como extensionista. Sobre o projeto, a aluna afirma: “Meu sonho é que o projeto cresça de tal modo que as pessoas venham até nós com pautas porque sabem que ali, elas podem confiar. A mídia, em um país com os índices educacionais como o Brasil, acaba sendo a principal responsável por educar os cidadãos e é por isso que aqui nós, jornalistas/ comunicação, temos que ter tanto cuidado com o conteúdo que produzimos”.8 Em agosto, quando o projeto iniciou a produção depois das férias, sete textos foram produzidos, cujo maior foco foram as pautas de cidadania (4), seguidos pelo SOS News (2) e entretenimento (1). #SOSNews Ficção dentro da realidade: websérie Arena estreia na UnB, de Melissa Duarte, teve 253 visualizações no blog; 5.539 pessoas alcançadas, 147 cliques e 201 reações, comentários e compartilhamentos no Facebook. A redação centra-se na apresentação do projeto Arena9 e na cobertura do evento de lançamento, o que a configura como uma pauta factual e não análise da mídia. Não que isso desmereça a importância da postagem, uma vez que dá voz a um assunto de destaque para os alunos e seguidores que dificilmente apareceria nos meios tradicionais. Em segundo lugar, aparece o #SOSNews: O bom filho à FAC torna, de Marcos Miranda, com 119 visualizações no blog; 132 interações, 51 cliques e 2.243 pessoas alcançadas. Em oposição ao mês anterior, setembro possuiu oito textos de análise do entretenimento e mais que o dobro de produções no total (15) no mesmo período. Apesar do aumento de trabalhos, o número total de visualizações do blog subiu apenas apenas 1,56%, de 1.922 para 1.952. O texto de João Miguel Bastos, Jeitosinha e o cinema na contramão, foi o de maior engajamento do SOS Imprensa neste mês, com Plataforma wordpress. Disponível em: <sosimprensa.wordpress.com> Disponível em: <twitter.com/sosimprensa> Disponível em: <facebook.com/sosimprensa> Coberturas de eventos ultralocais com critério de noticiabilidade pouco definido. Podem acontecer através de textos ou transmissões ao vivo no Facebook. 8 Entrevista concedida em 26 mai 2018. 9 Arena é uma WebSérie feita por alunos da Universidade de Brasília (UnB) que cursam Comunicação, Artes Plásticas e Artes Cênicas. O projeto possui apoio da FAC (Faculdade de Comunicação) e retrata situações do dia a dia de personagens inspirados na realidade da UnB. 4 5 6 7 Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 5 52 alcance de 7.191 pessoas e 289 interações no Facebook; e 264 visualizações no blog. A publicação chama a atenção para o conteúdo raso e preconceituoso de Jeitosinha, longa-metragem exibido na 50ª edição do Festival de Cinema de Brasília. Com 91 visualizações, o texto #SOSNews: Assembléia sobre a crise orçamentária na UnB chama atenção de alunos, de Pollyana Fonseca e Isabella Machado movimentaram 61 interações e alcançou 3.355 pessoas na rede de Mark Zuckerberg. Com apenas duas visualizações a menos no blog, mas com números mais expressivos no Facebook - 4.374 pessoas alcançadas e 139 interações -, aparece a análise sobre o caso do Queermuseu10, em Porto Alegre, intitulado Arte como ferramenta da moral e dos bons costumes, de Lorena Fraga e Marcos Miranda. Neste caso é possível perceber que, apesar de muito próximas, as relações entre o engajamento das redes sociais e o acesso ao blog podem ser diferentes quanto aos números totais. Diferentemente dos meses anteriores, em outubro de 2017, o texto do #SOSNews:Festival Piauí de Jornalismo, de Victor Barbosa, não teve grande repercussão, nem ficou entre os mais lidos, contabilizando apenas 15 visualizações, 36 interações e 2.424 pessoas alcançadas. Esta situação pode ser justificada devido à cobertura ser centrada no Festival GloboNews de Jornalismo e não a um assunto próximo a comunidade da UnB, majoritária entre os seguidores do projeto, presentes nos trabalhos deste gênero nos meses anteriores. O destaque de audiência deste mês fica por parte do texto de Bruna Yamaguti e Giulia Soares, Agro é tech?, com título em referência à propaganda veiculada exaustivamente na Rede Globo à época, cuja crítica foca nas contradições entre os benefícios e malefícios do agronegócio e a maneira com que são abordados na mídia. Entre reações a favor e contrárias, 14.378 pessoas foram alcançadas com a publicação no Facebook, com 329 interações e 299 visualizações no Blog. Outro destaque deste mês é que das 13 postagens, apenas uma não aborda diretamente o exercício da cidadania, O que a blogueira tem?, de Ana Luísa Araújo, com 51 visualizações no blog e alcance de 4.674 pessoas. Novembro e dezembro, por coincidirem com o período de provas e fim do semestre, respectivamente, apresentaram uma produção modesta. Mesmo assim, o 11º mês do ano apresentou 2.425 visualizações, crescimento de 31% em relação a setembro e maior audiência do blog no período estudado. Melissa Duarte, instigada pela massificação do caso do romance, iniciado aos 13 anos, de Paula Lavigne com Caetano Veloso, levantado pelo Movimento Brasil Livre (MBL) grupo ideológico e político escreveu o texto Amor ou pedofilia? A polêmica relação de Caetano Veloso e Paula Lavigne. Foram 1.553 visualizações apenas no site e no Facebook os números foram ainda mais expressivos. 34.243 pessoas alcançadas e 484 interações, com destaque para os 172 comentários e 228 curtidas. Segundo a autora, “eu escrevi 10 Exposição composta por um total de 263 obras de 85 artistas brasileiros, desde meados do século XX, que abordavam a cultura LGBT e, principalmente, o movimento queer. Devido à reação de parte da população e de grupos de influência conservadores, foi rechaçada em redes sociais e, por pressão, o Banco Santander, patrocinador da mostra, decidiu encerrá-la antes do tempo, o que causou grande repercussão em todo o país. Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 5 53 esse texto pela necessidade de falar sobre esse assunto, de maneira a abordar a repercussões, principalmente as divulgadas pelo MBL quando havia poucas produções com essa análise. O debate é o saudável e esse texto causou grandes discussões. E a principal mensagem que queria passar era: os veículos de comunicação querem mesmo debater a pedofilia ou apenas usar ela para cliques e vendas?”. 11 Apenas dois textos foram publicados em dezembro: Infância sob os holofotes, de Fernanda Araújo, e Longe de Momo, de Rafiza Varão. Este último, apesar de pouca repercussão - 17 visualizações e 435 pessoas alcançadas -, devido ao esvaziamento do final de semestre, talvez seja o que mais possa definir o que foi a retomada da observação da mídia e do papel do SOS Imprensa no fortalecimento da cidadania. Segundo Rafiza Varão, no segundo semestre de 2017, foram 32 textos publicados entre setembro e dezembro, uma média de oito por mês. Desses, apenas um foi escrito por um profissional formado em Comunicação/Jornalismo. “Todo o restante nasceu das mentes, corações e mãos ágeis de estudantes, extensionistas do SOS, que cumprem uma função formativa que não é menos relevante que a publicação e circulação dos escritos que produzimos.12 Comparados apenas os 10 textos mais acessados no blog, em seus respectivos meses de publicação, temos os seguintes destaques: Título Acessos no blog Alcance Facebook Mês de publicação #SOSNews Ficção dentro da realidade: websérie Arena estreia na UnB 253 5.539 Agosto #SOSNews: O bom filho à FAC torna 119 2.243 Agosto Jeitosinha e o cinema na contramão 264 7.191 Setembro Arte como ferramenta da moral e dos bons costumes 89 4.374 Setembro #SOSNews: Assembléia sobre a crise orçamentária na UnB chama atenção de alunos 91 3.355 Setembro Agro é tech? 299 14.378 Outubro O que a blogueira tem? 51 4.674 Outubro Há alguma novidade na ideia de fake news? 139 5.850 Outubro Somália existia ou acabamos de inventá-la 104 12.520 Outubro Amor ou pedofilia? A polêmica relação de Caetano Veloso e Paula Lavigne 1.553 34.243 Novembro Tabela 1. Textos e repercussão Fonte: Elaboração dos autores. 6 | CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir dos dados empíricos apresentados anteriormente, é observável que uso 11 Entrevista concedida em 25 mai 2018. 12 Disponível em: <https://sosimprensa.wordpress.com/2017/12/24/longe-de-momo/#more-14586>. Acessado em: 28 mai 2018. Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 5 54 das TICs como plataformas de divulgação e produção de conteúdos, no caso do SOS Imprensa, é responsável pela relevância de consumo de seus trabalhos, já que as informações têm potencial de alcance de público muito grande, principalmente de jovens universitários, público alvo do projeto de extensão. As questões levantadas por esta análise do SOS Imprensa demonstram também que blog e demais mídias sociais, juntamente com as produções por eles veiculados, podem classificar o projeto de extensão como mídia alternativa. Somente por veicular conteúdos que fogem do viés e características de um meio tradicional (jornal, revista, rádio, televisão) já poderia ser encaixado nesta categoria. Mas a inovação e criatividade do uso das ferramentas digitais, além da proximidade e comprometimento com o interesse público, para a fiscalização dos médias e conscientização crítica do público, o caracterizam como mediador de uma cidadania digital; consolidando a natureza em comparação. Como apresentado no corpo deste trabalho, os textos mais acessados do SOS Imprensa - que, consequentemente, possuem maior engajamento nas mídias sociais -, entre agosto e dezembro de 2017, período em que a produção de análises críticas da mídia foram intensificadas, apresentam pautas cujo interesse público está voltado à: proximidade, como nas coberturas ultralocais realizadas pelo #SOSNews; ou à apreciação da influência midiática na construção social, classificadas neste artigo como pautas cidadãs. Os pareceres que tratam de música e entretenimento - parcela menor da produção dos extensionistas - representaram números modestos de interações, visualizações e comentários se comparados aos relatados anteriormente. Desta maneira, pode-se concluir que as pautas que abordam cidadania e as do #SOSNews acarretam mais engajamento e audiência que as demais, localizando-se estas duas quase que no mesmo patamar. As tecnologias e mídias sociais além de baratear as produções, aumentam as oportunidades de interação do público através de comentários, likes, reações e compartilhamentos, possibilitando a pluralidade de assuntos e número de publicações. Estas ações em conjunto são as responsáveis pelo aumento do engajamento e do alcance total das publicações, além de possibilitar maneiras de interação bilateral deste processo comunicacional. Neste contexto, a interação dos utentes com o projeto acontece através dos diálogos proporcionados pelas novas linguagens narrativas presentes nos meios digitais. Com base nisso, o engajamento online no SOS imprensa está estritamente ligado à temática das produções realizadas pelos alunos, nas quais a proximidade e a cidadania encabeçam a preferência de leitura. Esta afirmação confirma a hipótese proposta no início deste artigo, comprovando que o projeto deve investir nestes conteúdos para alcançar cada vez mais públicos e engajá-los com os propósitos do projeto de extensão. Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 5 55 REFERÊNCIAS CASTELLS, M. A Era da Informação: o Poder da Identidade. São Paulo: Paz e Terra, 2002. CASTELLS, M. A era da intercomunicação. Le Monde Diplomatique, agosto de 2006. DALLARI, D. A. Direitos Humanos e Cidadania. 1.ed. São Paulo: Moderna, 1998. GOUVEIA, Luís Borges; GAIO, Sofia (Orgs.). Sociedade da informação: balanço e implicações. Porto: Universidade Fernando Pessoa, 2004. KELLNER, D. A Cultura da Mídia - Estudos culturais: Identidade e política entre o moderno e pós-moderno. Bauru: Editora da Universidade do Sagrado Coração - EDUSC, 2001. PARENTE, C. & PINTO, M. SOS Imprensa: 20 anos de exercício de cidadania e educação. Braga: Universidade do Minho, 2016. Disponível em: http://www.lasics.uminho.pt/ojs/index.php/cecs_ebooks/ article/view/2691. Acessado em: 20 mai. 2018. PRIMO, A. Interação mediada por computador: comunicação, cibercultura, cognição. Porto Alegre: Sulina, 2007. REZ, R. Marketing de Conteúdo: A Moeda do Século XXI. São Paulo: DVS Editora, 2016. RAUPP, D. & EICHLER, M.L. A rede social Facebook e suas aplicações no ensino de química. In: RENOTE - Revista Novas Tecnologias na Educação, v. 10 Nº 1. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande Do Sul, 2012. Disponível em: https://goo.gl/yN5gjA. Acessado em 19 mai 2018. SILVA, L. M. & PAULINO, F. SOS-Imprensa: da vitimologia à literacia, 20 anos de experiências de ética e comunicação. In: Memórias XIII Congreso Latinoamericano de Investigadores de la Comunicación - Grupo Temático 18 - Ética, Libertad de Expresión y Derecho a la Comunicación (pp. 141-150). Ciudad de México: Universidad Autónoma Metropolitana, Unidad Cuajimalpa, División de Ciencias de la Comunicación y Diseño, 2016 TONET, I. Cidadania ou emancipação humana. In: Revista Espaço Acadêmico - Nº 44. Maceió: Universidade Federal de Alagoas, 2005. Disponível em: https://goo.gl/nZVJYk. Acessado em: 19 mai 2018. VITALIS, André; MATTELART, Armand. De Orwell al Cibercontrol. Espanha: Gedisa, 2015. Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 5 56 CAPÍTULO 6 JORNALISMO E LITERATURA NO INÍCIO DO SÉCULO XX: UMA LEITURA COMPARATIVA ENTRE LIVROS E REPORTAGENS DE JOÃO DO RIO Aline da Silva Novaes JOURNALISM AND LITERATURE AT THE Centro Universitário Ibmec-RJ/ Universidade Estácio de Sá BEGINNING OF THE TWENTIETH CENTURY: Rio de Janeiro A COMPARATIVE STUDY BETWEEN BOOKS AND REPORTS BY JOÃO DO RIO RESUMO: Este artigo volta-se para o início do século XX, época em que os textos publicados em jornais eram escritos pelos “homens das letras”, cujo ofício se dividia entre o jornalismo e a literatura. Busca-se, portanto, destacar a relevância do jornalismo, que construía sua própria linguagem, e do escritor, que se travestia de repórter para narrar os acontecimentos de uma época caracterizada por mudanças, tensões e contradições. A partir disso, nosso foco será realizar um estudo comparativo de reportagens e livros publicados por João do Rio, pseudônimo utilizado por Paulo Barreto. Ao não se limitar a transferir seus textos – ainda que homônimos – de um suporte para outro, acredita-se que João do Rio marcou sua posição como homem de imprensa e como escritor. PALAVRAS-CHAVE: Jornalismo; Jornalismo e Literatura; João do Rio; livro-reportagem; jornalista-escritor. ABSTRACT: This article focuses on the early twentieth century, a period in which texts published in newspapers were written by the “men of letters,” whose office was divided between journalism and literature. It seeks, therefore, to highlight the relevance of journalism, which constructed its own language, and the writer, who transforms himself as a reporter to narrate the events of an era characterized by changes, tensions and contradictions. From this, our focus will be on a comparative study of articles and books published by João do Rio, a pseudonym used by Paulo Barreto. Since João do Rio did not simply transfer his texts – though homonyms – from one support to another, it is believed that he marked his position as a press man and as a writer. KEYWORDS: Journalism; Journalism and Literature; João do Rio; report book; journalistwriter. 1 | INTRODUÇÃO Este artigo apresenta algumas reflexões suscitadas durante meu pós-doutoramento, Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 6 57 realizado no Departamento de Letras da PUC-Rio, com financiamento do CNPq. É importante salientar que se trata de uma pesquisa interdisciplinar dos campos de conhecimento Jornalismo e Literatura. Essa relação está presente, também, em minha formação acadêmica: sou bacharel em Jornalismo e licenciada em Letras, com mestrado em Comunicação Social e doutorado em Literatura, Cultura e Contemporaneidade. Essa formação me estimula a trabalhar com questões que conectam os dois campos. E assim será neste artigo ao analisar a série As religiões no Rio e as colunas PallMall Rio e Os dias passam..., publicadas em jornais, comparando-as com os livros homônimos, produções de Paulo Barreto. É inegável que, em um primeiro momento, os livros do autor parecem ser simplesmente a reunião de textos publicados nas colunas e série de títulos semelhantes, o que estimula a investigação. No entanto, um estudo aprofundado revela distanciamento entre as publicações. Nesse sentido, surgem alguns questionamentos: quais as diferenças entre as produções jornalísticas e literárias? Quais os critérios adotados pelo escritor para a não inserção (e inserção) de textos de jornais em livros homônimos? O que Paulo Barreto entende por jornalismo e por ser jornalista? E em relação à literatura e ao ofício de escritor? Com a intenção de investigar as questões levantadas nesta breve apresentação, a proposta é, inicialmente, compreender o marco temporal deste estudo e a importância de João do Rio nesse contexto, bem como de seu exercício enquanto jornalista e escritor. Em seguida, realizaremos uma análise dos corpora selecionados. O objetivo é perceber as aproximações e distanciamentos entre o jornalismo e a literatura no início do século XX a partir de um estudo comparativo entre os textos jornalísticos publicados em jornais da época e livros-reportagem de títulos semelhantes. 2 | O RIO E PAULO BARRETO OU O RIO DE PAULO BARRETO O final do século XIX e início do XX, denominado pelo historiador Eric Hobsbawm de período finissecular, foi um momento de profundas mudanças urbanas, sociais, culturais e políticas em diversas partes no mundo. No que se refere ao Brasil, o Rio de Janeiro, a então Capital Federal, passava pelo “bota-abaixo”, uma tentativa de fazer da cidade uma Paris. Essas operações que visavam à transformação de uma cidade colonial em uma urbe moderna foram idealizadas pelo antigo prefeito Pereira Passos. A intenção era adequar o Rio de Janeiro a uma nova organização do próprio espaço, mas também social. No tocante à literatura e ao jornalismo, pode-se afirmar que a cidade já se revelava um lugar fértil para os escritores, Machado de Assis acabara de fundar a Academia Brasileira de Letras, em 1896. Foi grande também o número de produções presente nos periódicos da época. Nesse sentido, vale ressaltar que eram os “homens das letras” que escreviam nos jornais (Machado de Assis, José de Alencar, apenas para citar alguns nomes). João do Rio, atento às questões de seu tempo, indaga em Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 6 58 sua série O momento literário, publicada na Gazeta de Notícias, de 13 de março a 28 de maio de 1905: “O jornalismo, especialmente no Brasil, é bom ou mau para a arte literária?”. A partir dessa enquete, derivam outras questões como, por exemplo, o exercício da escrita, a influência de autores em produções da época e o próprio momento literário. João Paulo Alberto Coelho Barreto, nome de batismo do escritor, nasceu no Rio de Janeiro em cinco de agosto de 1881 e estreou na imprensa antes de completar seus 18 anos. Durante a carreira profissional, além dos 26 livros publicados, colaborou em diversos jornais e revistas da época. Em seus textos, abordava diversos assuntos. A peculiaridade, no entanto, deu-se em virtude dos relatos que fazia da cidade incorporada na denominação que o eternizou: João do Rio. Esse pseudônimo, João do Rio, aparece pela primeira vez em 26 de novembro de 1903 na página da Gazeta de Notícias com a publicação do texto intitulado “O Brasil lê”. Estudiosos da obra do escritor apontam que a inspiração seria Jean Lorrain, do francês Paul Duval. A certeza é a de que “Daí por diante, o nome que fixa a identidade literária engole Paulo Barreto. Sob essa máscara publicará todos os seus livros e é como granjeia fama. Junta ao nome o nome da cidade” (GOMES, 2005, p. 17). É o espaço urbano, “campo da própria significação”, como refletiu Julio Ramos em Desencontros da Modernidade na América Latina (2008), que Paulo Barreto trazia em seu pseudônimo, que acabou por o eternizar. A cidade seduzia o escritor, que era também repórter, e o convidava para vagar sem destino pelas ruas. Eis aqui o motivo da sedução e a razão dos textos já marcados pelo que, anos depois, a Teoria do Jornalismo concebeu como critérios de noticiabilidade. O fato é que, para assinar suas publicações, Paulo Barreto pouco usou seu nome de batismo, optava pelos fictícios. Essa adoção de pseudônimos marca com veemência a multiplicidade do escritor, que: “Disperso em seus duplos, multiplicou-se em nomes falsos para ver as facetas também múltiplas duma cidade que se impostava de moderna e escondia seus escombros” (GOMES, 1996, p. 109). Nesse sentido, vale registrar algumas observações a respeito de sua produção. A coluna Cinematographo era assinada por Joe e a obra homônima por João do Rio. Com o último, publicou todos os seus livros, além de algumas séries e colunas, por exemplo, As religiões no Rio e O Momento Literário. Para escrever a coluna Pall-Mall Rio, usava o nome José Antônio José. Em A profissão de Jacques Pedreira (1911), Godofredo de Alencar é personagem da narrativa e, anos depois, marca presença no título de Crônicas e frases de Godofredo de Alencar (1916). Neste momento, não é pretensão deste texto esgotar os exemplos tampouco analisá-los, mas sim iniciar a discussão a respeito de um assunto que os permeia: a autoria. Surgem, então, questões fundamentais para serem pensadas: o escritor João do Rio destruiu a voz do jornalista Paulo Barreto?; quais são os diferentes “eus” que lhe servem como máscaras?; de quem falamos quando falamos de João do Rio?; do repórter ou do escritor? Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 6 59 Roland Barthes no ensaio intitulado “A morte do autor” (1984) parte da novela Sarrasine escrita por Balzac para dar início à discussão a respeito do papel daquele que escreve. Pergunta, então, quem estaria falando sobre o “castrado disfarçado de mulher” (BARTHES, 1984, p. 65) e logo aponta: “Jamais será possível saber, pela simples razão que a escritura é a destruição de toda voz, de toda origem. A escritura é esse neutro, esse composto, esse oblíquo aonde foge o nosso sujeito, o brancoe-preto onde vem se perder toda identidade, a começar pela do corpo que escreve” (Ibidem, p. 65). Compreende-se, a respeito do pensamento de Barthes, que a escritura só se inicia quando a voz perde a sua própria origem, ocorre assim o que ele denomina “morte do autor”. É dessa forma que o filósofo francês questiona a importância dada à autoria. Nessa mesma perspectiva, Michel Foucault, em 1969, apresenta sua comunicação na Société Française de Philosophie, publicada no mesmo ano no Bulletin de La Société Française de Philosophie sob o título “Qu’est-ce qu’un auteur?”. Primeiramente, compete ressaltar que o filósofo discorre acerca do autor em um sentido restrito, “entendido como autor de um texto, de um livro ou de uma obra a quem se pode legitimamente atribuir a produção” (FOUCAULT, 1992, p. 33). As questões iniciais se fundamentam na individualização do autor na cultura, no estatuto que lhe foi atribuído, na relação homem e obra, texto e autor que, por inúmeras vezes, transcende o momento da escrita. Assim como Barthes, Foucault defende a ideia de que o ato de escrever não requer uma exaltação e encara esse processo de forma natural, do qual o sujeito da escrita deve, sim, desaparecer. Sobre isso, afirma: “A obra que tinha o dever de conferir a imortalidade passou a ter o direito de matar, de ser a assassina do seu autor” (Ibidem, p. 36), a marca do escritor se torna, portanto, sua própria ausência. Trata-se do desaparecimento, da morte do autor. Os textos, acrescenta o teórico, quaisquer que sejam, comportam uma pluralidade de “eus” e a função do autor não se fundamenta sequer em um destes. O exercício do autor se dá no deslocamento desses “eus” simultâneos. Em Ladrões de palavras: ensaio sobre o plágio, a psicanálise e o pensamento, Michel Schneider questiona: “De que é feita uma pessoa?”. E conclui: “Migalhas de identificação, imagens incorporadas, traços assimilados, tudo (se é que se pode dizer assim) formando uma ficção que se chama eu”. No caso do nosso jornalista-escritor ou escritor-jornalista, como coloca Carlos Drummond de Andrade em crônica intitulada João do Rio na vitrina, publicada em 13 de agosto de 1981, em sua coluna no “Caderno B”, no Jornal do Brasil, a ficção se chama João do Rio e se desdobra em muitas outras. São elas: P. B.; Claude; José Antônio José; Joe; Godofredo de Alencar; X.; X. de J.; P.; Paulo Alberto; José; Paulo José; Simeão; Máscara Negra; João Coelho; Caran D’Ache; Z.; Flaming. Alguns nomes existiram por anos, outros por pouco tempo, como por exemplo, Simeão, que assinou textos publicados na Gazeta de Notícias de outubro de 1909 a fevereiro de Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 6 60 1910, e Máscara Negra, autor da coluna “Notas de Teatro”, publicada em 1918 no Rio-Jornal. É com Máscara Negra, em quatro de abril de 1918, que Paulo Barreto se despede da multiplicidade de máscaras. Depois, opta por assumir exclusivamente a identidade que criou para si: João do Rio, pseudônimo com o qual assina todos os textos e livros até o falecimento, ocorrido em 1921. 3 | AS REPORTAGENS E OS LIVROS HOMÔNIMOS: APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS A série As religiões no Rio foi publicada na Gazeta de Notícias, de 22 de fevereiro a 21 de abril de 1904. Os 22 textos assinados por João do Rio versam sobre as diferentes religiões que marcavam presença no Rio de Janeiro da época. Os relatos levam a crer que, durante quase dois meses, o cronista-repórter ou, para usar o conceito de Julio Ramos (2008), cronista-transeunte caminhou pelas ruas da cidade para desvendar os mistérios dos rituais e da fé. Na mesma toada, ainda em 1904, organizou o livro de mesmo nome. Composta por 23 reportagens, das quais 21 foram recolhidas da série da Gazeta, além do prefácio e do texto intitulado “Irmãos e Adventistas”, ambos inéditos, a obra aborda o movimento evangélico, espírita, o judaísmo, entre outros. Publicada de 25 de junho a 12 de novembro de 1911, em sua maioria, na quinta página da Gazeta de Notícias, a coluna Os dias passam... era assinada por Joe. Os 19 textos que a compõem tratam de assuntos da época, como a vida social, literária e artística do Rio de Janeiro; comentam produções literárias; trazem questões da cidade e do país, além de abordar acontecimentos internacionais. Parece mesmo, como já indica o próprio título da coluna, que a proposta de Paulo Barreto é retratar o cotidiano da sociedade carioca, reportar fatos do dia a dia. Após um ano, João do Rio lança o livro homônimo, composto pelas seções “Dias de fantasia”; “Dias de milagre”; “Dias de burla”; “Dias de observação”; “O fim do ano”, além do prefácio. Um dado interessante a respeito da relação (ou ausência de relação) entre a coluna e o livro Os dias passam... é que, apesar de terem o mesmo título, nenhum texto da coluna foi publicado no livro. Para compor a obra, João do Rio selecionou textos da Gazeta de Notícias e de A Notícia publicados entre os anos 1904 e 1911 (há também crônicas de 1912, mas, certamente, nesses casos, as publicações do jornal foram inspiradas no livro. Sendo, então, o processo inverso). Alguns foram recolhidos das séries “Para o milagre/O jubileu de Congonhas” e “O balanço do milagre/O falso espiritismo”, ambas da Gazeta. Outros eram publicações aleatórias dos periódicos mencionados. Compuseram Pall-Mall Rio, de José Antônio José, 216 textos, veiculados em O Paiz, de 23 de setembro de 1915 a quatro de janeiro de 1917. A grande quantidade de escritos sobre a vida na Frívola-City serviu a Paulo Barreto como matéria-prima para a elaboração do livro de mesmo título, que, além de 99 textos da coluna, contém Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 6 61 crônicas da Revista da Semana, de A Notícia e O Paiz (que não fizeram parte da coluna). No volume, constam, ainda, oito textos inéditos, redigidos exclusivamente para a nova obra. Tal constatação foi, primeiramente, apresentada por Gomes em João do Rio: vielas do vício, ruas da graça: “Nem todo material da coluna entra no volume. A seleção vai compor o que indica o subtítulo: ‘Inverno mundano de 1916’” (1996, p. 80). Diante do exposto, torna-se importante, para esta pesquisa, o estudo desse deslizamento de textos – das páginas de jornal para as do livro. Nesse sentido, cabe lembrar que, ao se deparar com livros que receberam títulos homônimos a colunas e séries publicadas em jornais é, no mínimo, natural pensar que existe uma grande relação entre essas produções. A analogia acaba, de certa forma, colaborando para o pensamento de que o livro é a coletânea de textos publicados em jornal. Raimundo Magalhães Jr. consegue ser ainda mais radical ao considerar que João do Rio utilizava esse artifício para produzir grande parte de suas obras. Com base, inicialmente, em João do Rio: Catálogo Bibliográfico (1994), de João Carlos Rodrigues, tonou-se possível observar quais textos publicados nos jornais foram deslocados para o suporte livro. A constatação, no entanto, deu-se a partir da leitura, fichamento e análise minuciosa de todos os textos. O estudo dos objetos confirma a hipótese de que o escritor não se limita a essa prática para produzir suas obras. Ao contrário da afirmação de Raimundo Magalhães Jr., as observações comprovam que o critério de João do Rio não se restringia à transferência de seus escritos de um suporte para outro. A proposta do autor, é importante pontuar, não era fazer de suas obras apenas uma transposição das colunas e séries homônimas, pois demonstra ter concepção do que é literatura e do que é jornalismo ao deixar fora de suas obras textos publicados nas colunas e série de mesmo título. E, mesmo em casos de deslizamentos de textos, há algumas questões que merecem ser colocadas. Os trechos autônomos dos jornais que são deslocados para os livros, ao mudarem de suporte, não estão vulneráveis ao consumo imediato e tampouco apresentam a efemeridade dos textos jornalísticos. Apresentam-se de uma forma diferente; são frações que vão ajudar a construir o significado de um todo, no caso, do livro. No novo suporte, submete-se à linha condutora da obra, à organicidade interna do volume, ganha autonomia para ser o que autor desejar. Os fragmentos, outrora possuidores de significados distintos, agora se articulam construindo novos significados, são livrosreportagem. No caso de Os dias passam..., fica ainda mais evidente o processo de construção de narrativa e a consciência por parte do autor da distinção dos suportes jornal e livro. Essas observações comprovam o que já foi sinalizado em As religiões no Rio e reiterado em Pall-Mall Rio. Com a mudança de suporte material – do jornal para o livro –, há, portanto, uma alteração de significados. Trata-se da tentativa explícita de elaboração de uma obra que transcende a matéria jornalística e a cultura de massa. A não inserção de textos da coluna Os dias passam... no livro de título semelhante revela Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 6 62 que as obras de João do Rio não são simplesmente reuniões de textos publicados em colunas e séries, como acreditavam alguns de seus biógrafos, já questionados Gomes (1996). Nessa articulação de fragmentos, nesse tecer de trechos no processo de construção da narrativa, o prefácio dos livros do autor assume papel fundamental. No caso de As religiões no Rio, não é diferente. Logo, nas primeiras palavras, Paulo Barreto apresenta seu conceito de religião: “Um misterioso sentimento, misto de terror e de esperança, a simbolização lúgubre ou alegre de um poder que não temos e almejamos ter, o desconhecido avassalador, o equívoco, o medo, a perversidade...” (RIO, 1904, s/n). Ao se deparar com essa definição nada comum, o leitor consegue compreender o que motivou o escritor a penetrar nesse universo, na época, marcado pela vastidão. Em cada esquina da cidade, segundo o escritor, é possível se deparar com um templo. Há “swendeborgeanos, pagãos literários, physiolatras, defensores de dogmas exóticos, autores de reformas da Vida, reveladores do Futuro, amantes do diabo, bebedores de sangue, descendentes da rainha Sabá, judeus, schimaticos, espíritas, babalaôs de Lagos, mulheres que respeitam o oceano” (Ibidem). A diversidade de religiões revela o árduo trabalho do repórter, que fuçou lugares da cidade para dar conta das crenças dos cariocas e dos que no Rio de Janeiro viviam. Os dias passam... inicia com o texto “O que ensinam os dias...”, uma reflexão sobre o passar das horas, que se apresenta de diferentes maneiras. A retórica de Paulo Barreto, nesse prefácio, se assemelha à realizada em A alma encantadora das ruas. Se antes a rua tinha alma, agora são os dias que a possuem: “há dias esplendorosos que parecem viúvas quarentonas a caminho do cemitério, e dias de nuvens pardacentas com os quais temos vontade de valsar e tomar champagne, quer seja no campo, quer seja nas cidades” (1911, p. 13). E não para por aí, há os dias políticos, dias financeiros, dias burgueses, dias maritais, dias poéticos, dia do amor, dia paraíso e muitos outros. São os relatos do dia a dia da belle époque carioca que Paulo Barreto apresenta no volume. O texto do autor se coloca à disposição dos acontecimentos, uma espécie de crônica-reportagem que passa em revista os principais fatos da semana. Em Pall-Mall Rio (1917), essa marca pode, também, ser observada: João do Rio faz uma revista da estação, mais especificamente, do inverno de 1916, conforme indica o próprio subtítulo “Inverno mundano de 1916”. No prefácio, utiliza como estratégia discursiva o diálogo entre dois cavalheiros à porta de um chá elegante. O inverno, percebemos, é a estação das festas, dos eventos sociais marcados pela elegância, frequentados pela elite da época. Para alguns, apenas futilidade, como parece acreditar Humberto de Campos ao escrever Pelle-Molle em O imparcial. Para Paulo Barreto, algo muito importante para quem vive no Rio de Janeiro: “Se tu não és totalmente frívolo, toma o paquete ou suicida-te. Quem não resolver perder o tempo todo com tudo quanto é inútil, não viverá nesta cidade, dentro de muito pouco tempo” (1917, p. 7). Assim, explica que a motivação do volume é narrar o cotidiano do inverno carioca de 1916. Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 6 63 A bem da verdade, são raras as reportagens deslocadas do suporte jornal para o livro que não sofrem alterações. Em As religiões no Rio, verificamos que isso ocorre apenas em “Os Batistas” e “A A. C. M.”. Em Os dias passam..., só acontece no caso de “O leão do mercado”, publicado com o mesmo título em A Notícia no dia oito de agosto de 1909. Pall-Mall segue a mesma linha em “Um chá tango no Jockey” e “O teatro em sociedade”, eventos sociais frequentados pela elite da época. No que diz respeito às diferenças observadas no deslizamento dos textos do jornal para o livro, destacamos que o processo de edição se assemelha nas três obras analisadas. Ao deslocar de suporte, há acréscimo, retirada e reescrita de trechos, colocação ou troca de pontuação, mudança na divisão de parágrafos, entre outras alterações, como veremos em alguns exemplos a seguir. Ao ser transferida para o livro As religiões no Rio, a reportagem “Feiticeiros” apresenta mais informações sobre o eubá, uma língua falada pelos africanos que tem a mesma representação do inglês para os civilizados, e o fato dos cambindas ignorarem a referida língua: “Só os cambindas ignoram o eubá, mas esses ignoram até a própria língua, que é muito difícil. Quando os cambindas falam, misturam todas as línguas... Agora os orixás e os alufás só falam o eubá” (RIO, 1904, p.2). O mesmo acontece na reportagem “As Iauô” publicada no livro, que dedica a página 16 e parte da 17 aos negros cambindas, trazendo detalhes que não têm no jornal, como os seus santos e algumas cantigas. Nesse mesmo texto, vemos a mudança na pontuação. O escritor, por duas vezes, substitui reticências pelo ponto final. É nessa reportagem que ele narra como acontece a sessão de iniciação, com rezas, corte de cabelo e danças. Alterações também são observadas em “A casa das almas”; “Os novos feitiços de Sanin”; “A igreja positivista”; “Os maronitas”; “A Igreja Metodista” e “O culto ao mar”. Percebemos, nessas reportagens, parágrafos divididos de forma diferente. O trecho, que está em um parágrafo no livro, aparece em dois no jornal. Ou o contrário. No que se refere à pontuação, como já mencionado na análise de “As Iauô”, também há distinção. Apresentam alterações as reportagens: “O espiritismo – entre os sinceros”; “Os exploradores”; “As sacerdotisas do futuro” e “A missa negra”. Na maioria dos casos, o ponto final do jornal é substituído pelas reticências no livro. Há também, em “A missa negra”, a troca de ponto de interrogação por exclamação e de ponto final por interrogação. Ao tomar conhecimento das hóstias vendidas a dez tostões por um homem que as rouba na igreja, pergunta: “É boa?”. No livro, exclama: “É boa!”. No deslocamento para o jornal, trechos das reportagens “Os exploradores” e “Os satanistas”, por exemplo, são retirados. No caso de “Os exploradores”, publicada na Gazeta como “O espiritismo falso”, a epígrafe “Estude antes o espiritismo falso” (RIO, 24 de fevereiro de 1904), presente no jornal, não é mencionada no livro. Em relação ao acréscimo, temos no livro as seguintes palavras, que não constam no jornal, e encerram a reportagem “Os novos feitiços de Sanin”: “Dinheiro, mortes, e infâmia as bases desse templo formidável do feitiço!” (RIO, 1904, p. 57). Tal Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 6 64 estratégia de construção de narrativa é também notada em “A igreja positivista”; “Os physiolatras”; “O espiritismo – entre os sinceros”; “As sinagogas”; “Os exploradores” e “As sacerdotisas do futuro”. Na reportagem “O espiritismo – entre os sinceros” as palavras acrescentadas revelam características do espiritismo e mencionam a doutrina de Allan Kardec. Em “Os physiolatras”, temos o maior exemplo desse caso. No livro, o escritor acrescenta mais de quatro páginas para explicar, detalhadamente, a aplicação da orthologia (ou lógica universal) aos fatos da linguagem. Em Os dias passam..., também é possível observar as estratégias de composição utilizadas em As religiões no Rio. No texto de abertura O que ensinam os dias..., publicado inicialmente na Gazeta de Notícias em dois de agosto de 1909, há colocação de vírgulas e revisão de trechos. Em relação à troca de pontuação, o ponto final é trocado pela exclamação: “a palestra!”. O trecho: “o homem não pensa que é apenas um inconveniente, reflexo da fisionomia”, ao ser deslocado para o livro, aparece da seguinte forma: “o homem não pensa que é apenas um inconsciente, reflexo da fisionomia”. Há uma alteração da palavra “inconveniente” por “inconsciente”. Acredita- se que, no jornal, ocorreu algum problema de revisão, já que o vocábulo utilizado no livro parece fazer mais sentido. A construção da narrativa dos livros se apresenta, portanto, como uma possibilidade de rever os escritos e lapidá-los. É importante frisar o cuidado com a organização da edição final. A cronologia do livro não obedece à do jornal. “Uma porção de mediuns”, por exemplo, assinado por João do Rio, foi veiculado na Gazeta de Notícias em 12 de janeiro de 1908, enquanto “Curandeiros” aparece em 30 de janeiro de 1908. No entanto, no novo suporte, “Uma porção de mediuns” sucede “Curandeiros”, fato que acontece, também, com os demais textos. Os três últimos textos do livro seguem a cronologia do jornal, como se pode observar: “As pilhérias dos médiuns” foi publicado em 22 de janeiro; “Os médiuns repetem-se” em 10 de fevereiro, por fim, “Fala o dr. Afrânio Coutinho”, encerrando a série em 13 de fevereiro de 1908 e, também, a seção “Dias de burla”. Ao recolher os textos da série no livro, Paulo Barreto, como vimos em outros casos, prepara um novo material. Esse cuidado é evidenciado em diversos escritos do livro em discussão. No texto “Os exploradores do espiritismo”, troca “em que” por “sob a qual”. Em “Visita à fábrica de gás”, o escritor narra uma saída com M.mme Córa Assumpção, M.lle Argemira da Costa e Barão Belfort. O objetivo da tarde era ver como se faz o gás da iluminação. “Visita à fábrica de gás” é, claramente, inspirado em “Os fornos da iluminação”, publicado no “Suplemento Ilustrado” da Gazeta de Notícias em sete de agosto de 1904. Ao ocupar as páginas do livro, ganha outro título, sofre alterações de ordens e acréscimo de trechos, além da mudança de parágrafos no processo de deslizamento de suporte. O texto, que foi publicado em 1904, é um dos que encerram o livro. Ao acrescentar fechamento ao texto, João do Rio aumenta o tom crítico, uma de suas marcas, na fala de Belfort: “Minhas senhoras, não queiram nunca ver o quanto custa o nosso conforto ao resto da humanidade. As senhoras vieram com medo. A verdade apavora. Eu vim com o desejo de queimar a iluminação... Nunca Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 6 65 mais!” (RIO, 1912, p. 370). Na mesma toada, vale tratar também de “Gente às janelas”, originalmente veiculado em A Notícia no dia 19 de junho de 1910. Na crônica, por meio de um diálogo com um estrangeiro, fala sobre a mania do carioca de ficar à janela. O estrangeiro acredita que as pessoas estão esperando algo acontecer, João do Rio explica a razão da mania: “a janela é a escápula do lar sem dele sair, é o conduto da rua sem os seus perigos, é o óculos de alcance para a vida alheia, é a facilidade, a economia, o namoro, o amor, o relaxamento, o fundamental relaxamento...” (Ibidem, p. 349-350). No que se refere às alterações ao transferir a crônica para livro, notamos retirada de trecho, troca de vírgula por ponto e vírgula e a oportunidade de consertar o que às vezes não é possível no jornal. A última seção do livro “O Fim do Ano” é composta por um único texto, de mesmo título da seção. Inicialmente, parece tratar do tempo, mas logo notamos que, na verdade, a intenção é discutir como nós, sujeitos de nossa vida e existência, lidamos com o avanço das horas. Como mote, ele usou a expectativa em função da virada de ano. O texto publicado na coluna Cinematographo da Gazeta de Notícias em dois de janeiro de 1910 fala sobre a espera do ano 1910. Ao ser levado para o livro, o escritor prefere não datar e a opção é a espera do “Novo Ano” (Ibidem, p. 421). A análise de Pall-Mall Rio, publicado em 1917, reitera o que foi pontuado a respeito do processo de construção dos outros corpora. Em “Na legação da Argentina”, texto sobre recepção organizada para o ministro Sr. Dr. Leitão da Cunha, na rua Senador Vergueiro, observamos a troca de “senhorita” por “senhorinha”, ao se referir a Vera Barbosa e Astréa Palm. Na mesma linha, “Público de conferências”, quando publicado no livro, não apresenta o seguinte trecho que consta em O Paiz, 27 de setembro de 1915: “ela que aliás tanto brilha pela inteligência cultivada nos nossos salões”. A correção do original também é realizada neste volume: “Arte da pupula” é substituído por “arde na pupila”; o vocábulo “palavras” alterado por “palmas”: “Ao terminar a conferência, entre as palavras a Cyro Costa, um amigo trava-me do braço” (jornal)/ “Ao terminar a conferência, entre as palmas a Cyro Costa, um amigo trava-me do braço” (livro, p. 124). “Hora do chá”, publicado no jornal em 20 de maio de 1916, trata do costume de tomar chá às cinco da tarde. Ao percorrer as casas de chá, João do Rio observa a elegância dos frequentadores: “Hoje, o chá é a hora do chá, é uma hora dilatável em todos os relógios, é a hora especial em que as belezas se acentuam mais, em que o internacionalismo dos costumes aquece de uma quase sinceridade urbana, é a hora para as senhoras serem admiradas.” (1917, p. 169). Neste texto, “ou no tempestuoso Rumlinos do Alvear” (Ibidem, p. 167) era na página de O Paiz: “ou no tempestuoso Rumpelmeyer. E depois, para concluir, o chá com violinos do Alvear”. Para apresentar nova versão de relato de uma sessão da Academia Brasileira de Letras, também recorre aos recursos gramaticais. A vírgula do jornal é retirada no livro em: “Quanto menos eleições melhor” (Ibidem, p. 267) e “Fora a noite era de veludo” Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 6 66 (Ibidem, p. 268). O mesmo acontece em “A festa do patronato”, sobre a estreia da peça “Um chá das cinco” no Teatro Municipal. No livro, há acréscimo do adjetivo amável para caracterizar a senhorinha Odette Gasparoni e alteração da palavra “mesmo” por “momento”: “Mas é o mesmo chá das cinco” (jornal)/ “Mas é o momento do chá das cinco” (livro, p. 297). 4 | CONCLUSÃO A partir do levantamento realizado, é interessante notar que a prática de adoção de pseudônimos por parte de Paulo Barreto se faz presente nas produções para os veículos de imprensa. Em seus livros, o autor não é Paulo Barreto, nome de batismo, tampouco um dos demais pseudônimos. É João do Rio, identidade construída a partir da relação com o espaço urbano. A cidade do Rio de Janeiro, em transformação, apresenta-se como matéria-prima para o cronista e – por que não dizer – também como palco de representação para um artista que surge travestido de jornalista. Dessa forma, ao produzir como um homem de imprensa, protege o homem de letras. Ou melhor, nas palavras de Renato Cordeiro Gomes, “o pseudônimo-eu é um produtor de textos, um operário discursivo, que não se confunde com o sujeito da obra. Assim, o cronista preserva o Artista” (2005, p. 16). Para preservar João do Rio, surgem os “eus”, sobre os quais nos fala Foucault. E, aqui, os “eus” têm nomes. E são muitos: Paulo Barreto; P. B.; Claude; José Antônio José; Joe; Godofredo de Alencar; X.; X. de J.; P.; Paulo Alberto; José; Paulo José; Simeão; Máscara Negra; João Coelho; Caran D’Ache; Z.; Flaming. Ao analisarmos o processo de deslizamento de suporte dos textos escritos por Paulo Barreto para jornais, além da questão da autoria, foi possível dimensionar e observar a utilização de outros recursos na organização, especificamente, de seus livros As religiões no Rio, Os dias passam... e Pall-Mall Rio. Assim, é possível perceber a consciência crítica do autor em relação ao fazer jornalístico e literário. Percebemos, mais uma vez, o trabalho criterioso de João do Rio ao deslocar textos de um suporte para o outro. Antes de estarem na nova materialidade, as palavras são analisadas e apenas permanecem se o escritor acreditar que assim deve ser. Caso contrário, como vimos algumas vezes neste estudo, são modificadas, acrescentadas, suprimidas em função da nova narrativa. Dessa maneira, evidencia o que entende por jornalismo e por literatura. E, por fim, se revela homem de imprensa e escritor. REFERÊNCIAS BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1984. FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Vega, 1992. Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 6 67 GOMES, Renato Cordeiro. João do Rio: vielas do vício, ruas da graça. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996. GOMES, Renato Cordeiro. João do Rio / por Renato Cordeiro Gomes. Rio de Janeiro: Agir, 2005. JOE. Cinematographo. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 1907-1910. Semanal. JOSÉ, Antônio José. Pall-Mall Rio. O Paiz, Rio de Janeiro, 1915-1917. RAMOS, Julio. Desencontros da modernidade na América Latina: literatura e política no século 19. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. RIO, João do. As religiões no Rio, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 1904. RIO, João do. As religiões no Rio. Paris: Garnier, 1904. RIO, João do. O momento literário. Paris: Garnier, 1905. RIO, João do. Cinematographo: crônicas cariocas. Porto: Chardron de Lello & Irmão, 1909. RIO, João do. Os dias passam.... Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 1911. RIO, João do. A profissão de Jacques Pedreira. Paris: Garnier, 1911. RIO, João do. Os dias passam. Porto: Lello & Irmão, 1912. RIO, João do. Crônicas e frases de Godofredo de Alencar. Lisboa: Bertrand, 1916. RIO, João do. Pall-Mall Rio: o inverno carioca de 1916. Rio de Janeiro: Villas Boas, 1917. RIO, João do. A alma encantadora das ruas: crônicas; organização Raúl Antelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. RODRIGUES, João Carlos. João do Rio: catálogo bibliográfico. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Dep. Geral de Doc. e Inf. Cultural, Divisão de Editoração, 1994. SCHNEIDER, Michel. Ladrões de palavras: ensaio sobre o plágio, a psicanálise e o pensamento. Tradução de Luiz Fernando P. N. Franco. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990. Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 6 68 CAPÍTULO 7 NOTÍCIAS ELABORADAS A PARTIR DE SITES DE REDES SOCIAIS NO CASO MARIELLE FRANCO Ingrid Cristina dos Santos Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Florianópolis - SC RESUMO: Este artigo busca compreender como o jornalismo se apropria de conversações, interações e mensagens que circulam em sites de redes sociais para a construção da notícia. De caráter descritivo-analítico, o estudo combina técnicas qualitativas e quantitativas. A partir da análise de publicações do website GaúchaZH a respeito do assassinato da vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco, são identificadas três categorias de postagens em mídias sociais que deram origem a pautas jornalísticas. Considerase que tais classificações podem ser embriões de valores-notícia incorporados ao jornalismo a partir das redes sociais na internet. PALAVRAS-CHAVE: Jornalismo; site de rede social; valor-notícia; Marielle Franco; GaúchaZH. interactions and messages that circulate in social networking sites for the production of news. The study is descriptive-analytical and combines qualitative and quantitative techniques. Based on the analysis of news from the GaúchaZH website regarding the murder of Rio de Janeiro city councilor Marielle Franco, three categories of posts in social media that have given rise to journalistic agenda have been identified. It is considered that such classifications may be embryos of news-values incorporated into journalism from social networks on the internet. KEYWORDS: Journalism; social networking site; value-news; Marielle Franco; GaúchaZH. 1 | A RELAÇÃO ENTRE JORNALISMO E SITES DE REDES SOCIAIS Os sites de redes sociais mudaram diversos aspectos do jornalismo, como sua relação com o público, os processos de apuração da informação e até mesmo os critérios para a escolha dos fatos que merecem tornar-se NEWS ELABORATED FROM SOCIAL notícia. Surgidas no início dos anos 2000 nos Estados Unidos, essas plataformas digitais NETWORKING SITES IN MARIELLE converteram-se em canais de distribuição FRANCO CASE de conteúdo jornalístico. De acordo com o ABSTRACT: This article intends to understand how journalism appropriates conversations, Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 relatório do Instituto Reuters de 2018, 45% dos americanos entrevistados para o estudo afirmaram consumir notícias por mídias sociais. Capítulo 7 69 No Brasil, a porcentagem dos usuários que disse acessar notícias por esses canais foi de 66%. Nos últimos anos, tornou-se frequente a publicação de fatos em primeira mão nos sites de redes sociais, como a morte de Osama Bin Laden, divulgada primeiro por um usuário do Twitter (SCOLARI, 2013) e depois noticiada por veículos de comunicação de todo o mundo. Também tem sido comum a disseminação de informações falsas – as chamadas fake news – em mídias sociais, interferindo em diferentes episódios, como os rumos das eleições dos EUA e do plebiscito do Brexit, no Reino Unido. Diversas são as situações em que a relação entre jornalismo e mídias sociais se mostra conflituosa e, em outras tantas, benéfica para ambas as partes.Um dos pontos de tensão é a existência do algoritmo, que determina o que deve ser exibido para cada usuário nos diferentes sites de redes sociais. A existência desse filtro gera críticas em relação à restrição das informações, que ocasionaria a formação de bolhas ideológicas. Além disso, o algoritmo das mídias sociais, especialmente o do Facebook – maior site de rede social do mundo – muda com frequência, e recentemente passou a diminuir o alcance de publicações de marcas e de veículos de comunicação. Por outro lado, mesmo com a redução do alcance de algumas postagens, é inegável o potencial de disseminação global das informações publicadas em mídias sociais digitais, seja por veículos jornalísticos, seja por indivíduos comuns. Foi com o surgimento da internet e dos sites de redes sociais que os cidadãos passaram a também produzir conteúdo, tornando-se “prosumers” ou “prosumidores” – termo cunhado ainda em 1980 por Alvin Toflfer com a junção dos termos “produtor” e “consumidor”, ou seja, um consumidor que produz conteúdos – e propiciando o surgimento da cultura participativa descrita por Henry Jenkins: A expressão cultura participativa contrasta com noções mais antigas sobre a passividade dos espectadores dos meios de comunicação. Em vez de falar sobre produtores e consumidores de mídia como ocupantes de papéis separados, podemos agora considerá-los como participantes interagindo de acordo com um novo conjunto de regras, que nenhum de nós entende por completo. Nem todos os participantes são criados iguais. Corporações - e mesmo indivíduos dentro das corporações da mídia - ainda exercem maior poder do que qualquer consumidor individual, ou mesmo um conjunto de consumidores. E alguns consumidores têm mais habilidades para participar dessa cultura emergente do que outros (JENKINS, 2009, p. 30). No ambiente das redes sociais digitais, as notícias disputam a atenção dos leitores com os conteúdos produzidos por cidadãos comuns, os “prosumers”. Para se destacar na infinidade de informações disseminadas nesses espaços, o jornalismo se apropria das conversações, interações e trocas de mensagens que ali ocorrem, redefinindo a rotina produtiva na escolha das pautas. Este artigo – cujo tema tem relação com a dissertação de mestrado da autora, ainda em processo de elaboração – busca compreender de que maneira os sites de redes sociais são utilizados pelo jornalismo na definição de fatos e temas noticiáveis, possibilitando o surgimento de novos valores-notícia. Para isso, foram analisadas Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 7 70 publicações do site GaúchaZH a respeito do assassinato da vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco. Buscou-se identificar marcas que demonstrassem o papel determinante das mídias sociais digitais para a construção das notícias. Trata-se de uma pesquisa de caráter descritivo-analítico que combina técnicas qualitativas e quantitativas. 2 | PLATAFORMAS DIGITAIS DE CONVERSAÇÃO Diversos autores fazem uso de diferentes denominações como “redes sociais online”, “redes sociais digitais”, “redes sociais conectadas”, “mídias sociais”, entre outras. Para fins deste trabalho, utiliza-se as definições de Raquel Recuero, Lucia Santaella e Renata Lemos. Primeiramente, é importante distinguir “redes sociais” de “sites de redes sociais”: Enquanto a rede social é uma metáfora utilizada para o estudo do grupo que se apropria de um determinado sistema, o sistema, em si, não é uma rede social, embora possa compreender várias delas. Os sites que suportam redes sociais são conhecidos como “sites de redes sociais”. Embora quase todas as ferramentas de comunicação mediada pelo computador sejam capazes de suportar redes sociais, Boyd e Ellison (2007) definem esses sistemas como aqueles que permitem a publicização da rede social, como característica diferencial. Esses sites permitem, assim, uma nova geração de “espaço públicos mediados” (Boyd e Ellison, 2007). O conceito refere-se a “ambientes onde as pessoas podem reunir-se publicamente através da mediação da tecnologia”. (RECUERO, 2009, p. 41). Esses ambientes tiveram origem após a massificação da World Wide Web (WWW) – aplicação de compartilhamento de informação que possibilitou à internet abarcar o mundo todo, segundo Manuel Castells (2003). O pesquisador espanhol explica que “a Internet é um meio de comunicação que permite, pela primeira vez, a comunicação de muitos com muitos, num momento escolhido, em escala global” (CASTELLS, 2003, p. 8). Com a popularização da Web para a sociedade, a partir de 1995, surgem os sites de redes sociais. A evolução dessas plataformas, com as modalidades diferenciais de interação, é analisada por Lúcia Santaella e Renata Lemos, que as denominam “redes sociais na internet”. As autoras caracterizam as redes em monomodais 1.0, monomodais múltiplas 2.0 e multimodais 3.0: Primeiramente, no início da segunda parte dessa década, realizou-se a possibilidade pioneira de interatividade em tempo real para redes socialmente configuradas (ICQ). Essa realização caracteriza as RSIs 1.0. Em seguida, o salto em direção às redes sociais 2.0 foi dado a partir do compartilhamento em rede social de arquivos, interesses etc. Entrávamos na era do Orkut, MySpace, LinkdIn etc. A partir de 2004, com a criação do Facebook, entramos na era das RSIs 3.0, caracterizadas pela integração com as outras redes e pelo uso generalizado de jogos sociais como o Farmville e Mafiawars, assim como aplicativos para a mobilidades (SANTAELLA; LEMOS, 2010, p. 58). Neste artigo, utiliza-se os termos “sites de redes sociais”, “redes sociais na internet” e “mídias sociais” como sinônimos, considerando-os espaços de conversação, que Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 7 71 permitem a apropriação para a sociabilidade. Assim, toma-se como exemplos de sites de redes sociais, para fins deste estudo, Facebook, Twitter, Instagram e YouTube. Raquel Recuero (2009) classifica a relação entre redes sociais e jornalismo em três categorias: redes sociais como fontes produtoras de informação; redes sociais como filtros de informações e redes sociais como espaços de reverberação dessas informações. A primeira classificação ocorre quando a informação é divulgada em primeira mão na rede social, podendo posteriormente ser abordada por veículos de comunicação. Também contempla situações em que jornalistas identificam, nos sites de redes sociais, possíveis entrevistados para a realização de reportagens No segundo caso, “as redes sociais vão atuar de forma a coletar e republicar as informações obtidas através de veículos informativos ou mesmo de forma a coletar e a republicar informações observadas dentro da própria rede” (Recuero, 2009, p. 47). A autora cita como exemplos dessa categoria os compartilhamentos no Facebook e retweets no Twitter. A terceira categoria está relacionada ao debate a respeito das informações difundidas, como nos Trending Topics do Twitter, possibilitando que as informações jornalísticas sejam reverberadas e passem a integrar as conversas nos sites de redes sociais. Com formas de relação cada vez mais diversificadas, as mídias sociais digitais passaram a fazer parte da rotina dos jornalistas, interferindo inclusive nos critérios de noticiabilidade e valores-notícia. 3 | O QUE TORNA UM FATO NOTICIÁVEL Diante da infinidade de acontecimentos do dia a dia, é preciso ter parâmetros para distinguir quais deles devem ocupar o espaço e o tempo dos noticiários em diferentes plataformas. Na busca por definir o que torna um fato ou tema noticiável, vários teóricos estudam os conceitos de noticiabilidade e valores-notícia. Wolf conceitua a noticiabilidade como o “conjunto de elementos através dos quais o órgão informativo controla e gere a quantidade e o tipo de acontecimentos, de entre os quais há que selecionar as notícias” (2001, p. 195). Nesse contexto, para o autor os valores-notícia são uma componente da noticiabilidade e “constituem a resposta à pergunta seguinte: quais os acontecimentos que são considerados suficientemente interessantes, significativos e relevantes para serem transformados em notícias? ” O teórico defende que os valores-notícia funcionam de maneira complementar, combinando-se e relacionando-se no momento da seleção dos fatos. Além disso, devem ser práticos e de fácil entendimento, a ponto de permitir a rotinização do trabalho jornalístico, pois seria impossível aos profissionais ter que decidir a cada momento como os eventos devem ser selecionados para se converterem em notícia. O estabelecimento de determinados padrões também minimiza a ação subjetiva, Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 7 72 possibilitando a repetitividade dos procedimentos e a tomada rápida de decisões. Os critérios devem ser fácil e rapidamente aplicáveis, de forma que as escolhas possam ser feitas sem demasiada reflexão. Para além disso, a simplicidade do raciocínio ajuda os jornalistas a evitarem incertezas excessivas quanto ao fato de terem ou não efetuado a escolha apropriada. Por outro lado, os critérios devem ser flexíveis para poderem adaptar-se à infinita variedade de acontecimentos disponíveis; além disso, devem ser relacionáveis e comparáveis, dado que a oportunidade de uma notícia depende sempre das outras notícias igualmente disponíveis. (...). Finalmente, mas não menos importante, os critérios são orientados para a eficiência, de forma a garantirem o necessário reabastecimento de notícias adequadas, com o mínimo dispêndio de tempo, esforço e dinheiro. O resultado é um vasto número de critérios e cada notícia pode ser avaliada com base em muitos deles, alguns se opondo entre si. Para evitar o caos, a aplicação dos critérios relativos às notícias exige consenso entre os jornalistas e, mais ainda, exige uma organização hierárquica dentro da qual aqueles que possuem mais poder possam impor a sua opinião acerca dos critérios relevantes para uma determinada notícia (GANS, 1979, p. 82 apud WOLF, 2001, p. 197). Traquina dialoga com Wolf ao defender que a noticiabilidade envolve diversos fatores que tornam um acontecimento noticiável: “Podemos definir o conceito de noticiabilidade como o conjunto de critérios e operações que fornecem a aptidão de merecer um tratamento jornalístico, isto é, possuir valor como notícia” (TRAQUINA, 2005, p. 63). Ele define os critérios de noticiabilidade como o conjunto dos valoresnotícia que “determinam se um acontecimento, ou assunto, é susceptível de se tornar notícia, isto é, de ser julgado como merecedor de ser transformado em matéria noticiável e, por isso, possuindo “valor-notícia (newsworthiness)”. (TRAQUINA, 2005, p. 63). Tanto Wolf como Traquina consideram os valores-notícia componentes da noticiabilidade, sem no entanto distinguirem claramente as definições de valoresnotícia e de critérios de noticiabilidade, empregando-os, por vezes, como sinônimos. Ampliando o conceito de noticiabilidade, a teórica brasileira Gislene Silva abarca em sua definição “todo e qualquer fator potencialmente capaz de agir no processo da produção da notícia” (SILVA, 2005, p. 96), sejam relacionados ao controle e administração das empresas jornalísticas ou às características intrínsecas aos acontecimentos. A autora defende que os critérios de noticiabilidade sejam divididos em três instâncias, que atuam de maneira concomitante na prática da produção noticiosa: (a) na origem dos fatos (seleção primária dos fatos / valores-notícia), considerando atributos próprios ou características típicas, que são reconhecidos por diferentes profissionais e veículos da imprensa; (b) no tratamento dos fatos, centrandose na seleção hierárquica dos fatos e levando-se em conta, para além dos valores-notícia dos fatos escolhidos, fatores inseridos dentro da organização, como formato do produto, qualidade do material jornalístico apurado (texto e imagem), prazo de fechamento, infra-estrutura, tecnologia etc, como também fatores extra-organizacionais direta e intrinsecamente vinculados ao exercício da atividade jornalística, como relações do repórter com fontes e públicos; (c) na visão dos fatos, a partir de fundamentos éticos, filosóficos e epistemológicos do jornalismo, compreendendo conceitos de verdade, objetividade, interesse público, imparcialidade que orientam inclusive as ações e intenções das instâncias ou eixos anteriores. (SILVA, 2005, p. 96). Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 7 73 Silva concorda com Wolf quando este afirma que os valores-notícia agem em todo o processo de produção da informação jornalística (WOLF, 2001, p. 196), mas enfatiza que a seleção engloba tanto a etapa primária quanto a fase de tratamento do fato, definida por ela como a segunda instância dos critérios de noticiabilidade. Para a pesquisadora, os valores-notícia são fruto de uma construção social e cultural, definidos como um grupo de critérios que “cerca a noticiabilidade do acontecimento considerando origem do fato, fato em si, acontecimento isolado, características intrínsecas, características essenciais, atributos inerentes ou aspectos substantivos do acontecimento”. (SILVA, 2005, p. 98). Embora o cerne de muitos valores-notícia permaneça o mesmo ao longo dos anos, Wolf ressalta o caráter dinâmico desses atributos noticiosos. Para o autor, apesar de revelarem uma forte homogeneidade no interior da cultura profissional, os valoresnotícia não permanecem sempre os mesmos (WOLF, 2001). Traquina compartilha a mesma reflexão: Mas os valores-notícia não são imutáveis, com mudanças de uma época histórica para outra, com destaques diversos de uma empresa jornalística para outra, tendo em conta as políticas editoriais. As definições do que é notícia estão inseridas historicamente e a definição da noticiabilidade de um acontecimento ou de um assunto implica um esboço da compreensão contemporânea do significado dos acontecimentos como regras do comportamento humano e institucional. (TRAQUINA, 2005, p. 95). A chegada da internet, a reconfiguração do jornalismo – atrelada ao surgimento de diferentes modelos de negócio – e a presença de sites de redes sociais como grandes responsáveis pela distribuição do conteúdo jornalístico influenciam os fatores que consideram os acontecimentos noticiáveis e provocam mudanças nos valoresnotícia. 4 | FAKE NEWS E OUTROS ELEMENTOS NO CASO MARIELLE O objeto empírico desta pesquisa é o website GaúchaZH, lançado no dia 21 de setembro de 2017 com o intuito de integrar na internet as marcas de dois veículos de comunicação do Grupo RBS: o jornal Zero Hora e a Rádio Gaúcha. Fundada em 1927, a Gaúcha tornou-se o embrião do Grupo RBS ao ser adquirida em 1957 por Maurício Sirotsky Sobrinho e Arnaldo Ballvé. Já Zero Hora, maior jornal do Rio Grande do Sul, foi fundado em 1964 e estreou sua presença digital no ano de 2007, com ZeroHora. com. A junção das duas marcas fez com que os seus perfis em sites de redes sociais – Facebook, Twitter e Instagram – também fossem unificados. A escolha de GaúchaZH como objeto empírico deste estudo se deu em razão de sua forte atuação em sites de redes sociais, com a conquista por Zero Hora do prêmio de Melhor Uso de Redes Sociais no Global Media Awards da International News Media Association (INMA) em maio de 2017. O jornal também foi apontado como líder em engajamento nas redes sociais pelo índice Torabit. Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 7 74 Como corpus deste estudo, foram selecionadas inicialmente notícias publicadas em GaúchaZH, classificadas com a tag “Marielle Franco”, no período de 14 de março a 21 de abril de 2018. A opção por delimitar as publicações a temas relacionados ao assassinato da vereadora Marielle Franco – morta a tiros no centro do Rio de Janeiro no dia 14 de março – foi estabelecer um recorte no noticiário e debruçar-se sobre uma cobertura específica. Do total de 114 notícias publicadas com a classificação mencionada e no período especificado, foram selecionadas as publicações que contivessem – nos campos da cartola, título, linha de apoio, primeiro ou segundo parágrafo – pelo menos uma das seguintes palavras-chave: “redes sociais”, “mídias sociais”, “fake news”, “internet”, “Facebook”, “Twitter”, “Instagram”, “YouTube”. Essa opção foi feita pelo entendimento de que, se determinada pauta foi elaborada a partir de informações que circularam em sites de redes sociais, a notícia em questão provavelmente conteria algum dos termos selecionados. Assim, chegou-se a uma quantidade de 29 notícias. Entre as 29 notícias escolhidas, identificou-se que apenas três delas poderiam ter sido produzidas sem informações extraídas de sites de redes sociais, ou seja, os sites de redes sociais atuaram como complemento da pauta nesses três casos. Foram eles: um perfil da vereadora, uma homenagem feita pela cantora Katy Perry à Marielle durante um show e um texto de opinião sobre o assassinato. Já as outras 26 notícias tiveram como fator determinante para sua existência conversações, interações e circulação de mensagens que se deram em redes sociais na internet. A partir desse levantamento, com o intuito de entender por que os fatos, acontecimentos e temas abordados tornaram-se noticiáveis, essas 26 publicações foram classificadas em três diferentes categorias, conforme o tipo de publicação em sites de redes sociais que deu origem à pauta jornalística: 1. Um post feito por uma pessoa famosa, celebridade, autoridade, órgão oficial, entidade ou pessoa comum que ocupe um lugar de destaque no momento e contexto, como um familiar de Marielle Franco, por exemplo. Nessas situações, a notícia é o conteúdo da publicação e por quem foi publicada. 2. Um post de uma pessoa comum que ganhou grande alcance, que “viralizou”, teve muitos compartilhamentos. O foco é a mensagem disseminada. 3. Um post mentiroso, que contenha fake news, sobre um tema atual no momento. Nesses casos, o veículo de comunicação busca desmentir, denunciar, apontar os boatos em questão. Dessa forma, encaixaram-se na primeira categoria 9 notícias: Título da notícia Relação com sites de redes sociais Temer sobre morte de vereadora: ato de Manifestação do presidente feita no Twitter. extrema covardia que não ficará impune Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 7 75 Nathalia Dill lamenta morte de Marielle Franco: Publicação da atriz feita no Instagram. “Meu coração e minha esperança estão dilacerados” Após fake news, irmã de Marielle implora: Post feito por irmã de Marille em um site de “Respeitem nossa dor” rede social (notícia não especifica qual). Sobrinha da vereadora assassinada no Rio faz Texto publicado pela sobrinha de Marielle no apelo em rede social: “Não inventem mentiras” Facebook. Marielle Franco: Anitta critica “ódio gratuito” de Publicação da cantora no Instagram. fãs em caso de vereadora assassinada Após desembargadora divulgar informações Post do CNJ em sua página no Facebook. falsas sobre Marielle, CNJ faz alerta para fake news Além de boato sobre Marielle, desembargadora Postagem no Facebook feita pela é criticada por post contra professores com desembargadora que disseminou mentiras Down sobre Marielle. MC Carol lança música em homenagem a A música da cantora foi divulgada no YouTube. Marielle Franco FOTO: filha de Marielle faz tatuagem com o Foto da tatuagem de filha da vereadora foi rosto da mãe publicada no Instagram. (Tabela 1 – Notícias classificadas na categoria 1 proposta neste estudo). Fonte: Elaborada pela autora com informações das notícias disponíveis em < https://gauchazh.clicrbs.com.br/ ultimas-noticias/tag/marielle-franco/>. Na segunda categoria, foi identificada uma única notícia, cujo título era: “Globo exibe vídeo de internauta em homenagem à Marielle”. Tratava-se da repercussão de uma notícia veiculada pelo Jornal Nacional que mostrava um vídeo, feito em homenagem à Marielle, por uma influenciadora digital, que teve mais de 1,6 mil compartilhamentos em sites de redes sociais. Embora na amostra escolhida tenha sido identificada apenas uma notícia nessa categoria, optou-se por mantê-la pelo entendimento de que é bastante frequente encontrar notícias baseadas em publicações de pessoas comuns em mídias sociais que tiveram elevadas quantidades de compartilhamentos. Por fim, na terceira categoria, foram encontradas 16 notícias: Título da notícia Relação com sites de redes sociais Depois de assassinato de Marielle, PSOL é Os ataques foram publicados como comentários alvo de ataques na internet na página do partido no Facebook. “Não temos bandidos de estimação”, diz Os ataques foram publicados como comentários presidente do PSOL após ataques na internet na página do partido no Facebook. PSOL vai ao CNJ contra desembargadora A acusação da desembargadora contra a que acusou Marielle de ser “engajada com vereadora foi feita no Facebook. bandidos” Casada com traficante? Eleita pelo tráfico? As Publicações de boatos sobre a vereadora mentiras sobre Marielle nas redes sociais foram feitas em sites de redes sociais, como Facebook, Twitter e YouTube. Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 7 76 Desembargadora que acusou Marielle de ser Para se retratar sobre as mentiras que havia “engajada com bandidos” diz que se precipitou publicado no Facebook, a desembargadora usa novamente o próprio Facebook. Equipe de Marielle Franco cria site para Publicações de boatos sobre Marielle foram desmentir boatos sobre a vereadora feitas em sites de redes sociais, como Facebook, Twitter e YouTube. CNJ investigará publicações desembargadora sobre Marielle Franco de Publicações feitas pela desembargadora, que disseminavam fake news, foram publicados no Facebook Justiça manda YouTube retirar vídeos com Vídeos com mentiras sobre a vereadora haviam mentiras sobre Marielle sido publicados no YouTube Jornal revela como fake news sobre Marielle se Publicações de fake news sobre Marielle espalharam na internet foram feitas em sites de redes sociais, como Facebook, Twitter e YouTube Facebook apaga página e perfis relacionados à Posts com fake news haviam sido publicados onda de fake news sobre Marielle no Facebook. Justiça determina que Facebook retire do ar As fake news foram propagadas no Facebook. fake news contra Marielle Franco Facebook diz que vai remover posts com fake As fake news foram propagadas no Facebook. news sobre Marielle Franco Facebook terá que informar se MBL patrocinou Posts com fake news haviam sido publicados posts com fake news sobre Marielle Franco no Facebook. Pesquisa inédita identifica grupos de família Embora o Whatsapp fosse o canal onde como principal vetor de notícias falsas no originalmente os boatos circulavam, era nos WhatsApp sites de redes sociais que se tornavam públicos e ganhavam ainda mais alcance. Fake news sobre Marielle seguem circulando Postagens contendo fake news nas redes sociais um mês após sua morte disseminadas no Facebook e Twitter. eram Como uma página no Facebook usou uma As fake news foram espalhadas em sites de notícia real para espalhar fake news sobre redes sociais. Marielle (Tabela 2 – Notícias classificadas na categoria 3 proposta neste estudo). Fonte: Elaborada pela autora com informações das notícias disponíveis em < https://gauchazh.clicrbs.com.br/ ultimas-noticias/tag/marielle-franco/>. Ressalta-se que as três classificações estabelecidas não são isoladas e podem estar relacionadas. Optou-se, neste estudo, por enquadrar cada notícia na categoria mais adequada a ela, mesmo tendo a compreensão de que uma mesma publicação poderia estar dentro de mais de uma classificação. 5 | CONSIDERAÇÕES FINAIS Os sites de redes sociais têm sido cada vez mais acionados em diferentes momentos dos processos jornalísticos. Hoje, é quase impossível que em uma amostra de publicações de um website jornalístico ou ao longo da duração de um noticiário televisivo não seja mencionado o termo “redes sociais”. Essas plataformas estão cada Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 7 77 vez mais integradas ao dia a dia das pessoas, e não é diferente com o jornalismo. Por essa razão, é natural que sejam apropriadas em diferentes instâncias do processo noticioso. Neste artigo, analisou-se uma cobertura jornalística de grande relevância pública – o assassinato de uma vereadora eleita democraticamente, com indícios de execução motivada por suas atividades políticas. Das 114 publicações do período selecionado, 29 delas faziam algum tipo de referência a mídias sociais digitais, o que representa mais de 25% do total. Tal proporção mostra que, ao contrário do que se poderia supor, os sites de redes sociais não são utilizados exclusivamente em fait-divers ou soft news, mas também nas hard news. Na maioria dos exemplos analisados neste estudo, as mídias sociais foram determinantes para existência da pauta. O maior número de casos encontrados foi o de “fake news” reveladas, apontadas, desmentidas pelo veículo de comunicação. Se os boatos sempre existiram, foi com a internet e, especialmente, com as redes sociais digitais que eles ganharam potencial de alcance global. Nesse contexto, é papel do jornalismo ser o certificador, confirmar ou rechaçar um boato, reafirmando assim um valor tão caro para a profissão, que é a credibilidade. Também foram constatadas situações em que os sites de redes sociais foram essenciais na elaboração da notícia por serem usados como canais para pronunciamentos de autoridades – como no caso do presidente Temer – e divulgação de mensagens por famosos - como Anitta, Nathalia Dill e MC Carol. Nesses casos, os comunicados poderiam ter sido emitidos de outra forma, mas ao serem feitos em mídias sociais digitais eles tornam-se públicos e disponíveis a qualquer cidadão com acesso à internet, o que também aumenta o potencial de se converterem em notícia. Essa prática de fazer pronunciamentos em sites de redes sociais já se tornou comum em alguns casos, como no de Trump, presidente dos Estados Unidos, que com frequência torna-se notícia por suas postagens no Twitter. A terceira categoria identificada neste artigo foi a de uma publicação feita por uma pessoa comum que “viraliza”, ou seja, gera muitos compartilhamentos em sites de redes sociais. Embora tenha sido encontrada apenas uma situação desse tipo nas notícias analisadas, é comum identificar, em notícias publicadas nas mais diversas plataformas, fatos ou assuntos que só se converteram em notícia por terem sido muito compartilhados na internet. Por diversas vezes, essas notícias não têm relevância jornalística, mas buscam apenas entreter, apresentar um fato curioso e despertar a atenção da audiência. A classificação feita neste estudo buscou identificar diferentes tipos de publicações em mídias sociais que deram origem a pautas jornalísticas. Considera-se, assim, que as três categorias encontradas podem ser embriões de valores-notícia incorporados ao jornalismo a partir de sites de redes sociais, tema que será explorado em maior profundidade na dissertação de mestrado da autora. Seja qual for o intuito dos jornalistas ao utilizarem-se dos sites de redes sociais Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 7 78 na rotina produtiva noticiosa, essas plataformas digitais modificam a maneira como se faz jornalismo, trazem novas perspectivas para as pesquisas sobre noticiabilidade e impõem grandes desafios aos estudos a respeito do assunto. REFERÊNCIAS CASTELLS, M. A Galáxia da Internet: reflexões sobre a Internet, negócios e a sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. FACEBOOK NEWSROOM. Bringing People Closer Together. Facebook Newsroom, Menlo Park, 11 jan. 2018. Disponível em < http://newsroom.fb.com/news/2016/06/building-a-better-news-feed-foryou>. Acesso em: 22 jul 2018. GAÚCHAZH. Marielle Franco. GaúchaZH. Porto Alegre. Disponível em: <https://gauchazh.clicrbs. com.br/ultimas-noticias/tag/marielle-franco/>. Acesso em: 18 jul 2018. GAÚCHAZH. Redes sociais de Zero Hora lideram ranking nacional de engajamento. GaúchaZH. Porto Alegre, 3 ago. 2017. Disponível em <https://gauchazh.clicrbs.com.br/tecnologia/noticia/2017/08/ redes-sociais-de-zero-hora-lideram-ranking-nacional-de-engajamento-9860104.html>. Acesso em: 23 jul 2018. JENKINS, H. Cultura da Convergência. 2 ed. São Paulo: Aleph, 2009. RECUERO, R. Redes sociais na internet, difusão de informação e jornalismo: elementos para discussão. In: SOSTER, Demétrio de Azeredo; FIRMINO, F. (Org.). Metamorfoses jornalísticas 2: a reconfiguração da forma. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2009, p. 39-55 REUTERS INSTITUTE. University of Oxford. Digital News Report 2018. Oxford: Reuters Institute, 2018. Disponível em <http://www.digitalnewsreport.org/>. Acesso em: 20 jul 2018. SANTAELLA, L.; LEMOS, R. Redes sociais digitais: a cognição conectiva do Twitter. São Paulo: Paulus, 2010 SILVA, G. Para pensar critérios de noticiabilidade. In: Estudos em Jornalismo e Mídia, v. 2, no 1. Florianópolis, SC. 2005. Disponível em https://periodicos.ufsc.br/index.php/jornalismo/article/ view/2091/1830. Acesso em 01 jul. 2018. TRAQUINA, N. Teorias do jornalismo: a tribo jornalística – uma comunidade interpretativa transnacional. Florianópolis: Insular, 2005. WOLF, M. Teorias da comunicação. 6. ed. Lisboa: Presença, 2001. Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 7 79 CAPÍTULO 8 PÓS-VERDADE E FAKE NEWS: O JORNALISMO NA CONTEMPORANEIDADE João Marcos Maia de Santana da França Faculdade Anísio Teixeira Feira de Santana - BA primordial é confundir e não apurar e informar. PALAVRAS-CHAVE: Pós-verdade; Fake news; Jornalismo; Democracia. Mayara Souza Suzart Faculdade Anísio Teixeira Feira de Santana - BA Daniela Costa Ribeiro Faculdade Anísio Teixeira Feira de Santana - BA RESUMO: Com a popularização das redes sociais digitais, nos deparamos com uma nova realidade no jornalismo: a necessidade de adaptar-se às novas plataformas e consequentemente às modificações no jeito de se comunicar. O indivíduo que antes consumia notícia apenas por meios tradicionais (rádio, TV, jornal, revista), agora participa deste contexto digital assumindo demandas de consumo, produção e reprodução. Este artigo discute a prática jornalística contemporânea neste momento de pós-verdade: fenômeno social em que apelos emocionais têm mais importância na formação da opinião pública do que fatos objetivos, apurados jornalisticamente, mas que, em alguns casos, não expressam a vontade de uma “massa social”. Relaciona-se a tudo isso as Fake News como modo de operacionalização dessa “nova cadeia informativa”, cujo aspecto Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 POST-TRUTH AND FAKE NEWS: THE JOURNALISM IN CONTEMPORANEITY ABSTRACT: Due to the popularization of digital social networks, journalism has come up against a new reality: the need to adapt to new platforms and, consequently, changes in the way of communicating. Those who previously used news only through the traditional media (radio, TV, newspaper, magazine) participate in this new context, digital, as a consumer, producer and multiply content. This article discusses journalistic professional practice in this post-truth moment: a social phenomenon in which objective facts have less influence on the formation of public opinion than appeals to emotion. KEYWORDS: Post-truth; Fake News; Journalism; Democracy; 1 | INTRODUÇÃO A realidade é fonte de inspiração para uma série de representações. O jornalismo é um campo profissional em que isso também acontece. O presente artigo Capítulo 8 discute a 80 potencialização da pós-verdade e das fake news por meio das mídias sociais digitais e seus impactos no jornalismo contemporâneo. Para isso, relacionou-se as narrativas literárias da pós-ficção com a narrativa jornalística atual, e foi apresentado o conceito e diferenças entre pós-verdade e fake news e de que maneira se revelam, principalmente através da influência das mídias sociais digitais. O objetivo deste artigo é discutir a prática jornalística contemporânea neste momento de pós-verdade, trazendo à tona o fenômeno das Fake News como modus operandi de todo esse sistema informativo da pós-verdade: vivenciamos um cenário noticioso em que os apelos emocionais têm mais importância na formação da opinião pública do que fatos objetivos, apurados jornalisticamente, mas que, em alguns casos, não expressam a vontade de uma “massa social”. Este artigo inicia com a caracterização do conceito de pós-verdade, seguido por uma contextualização das Teorias do Jornalismo neste cenário. As narrativas literárias e os discursos jornalísticos são também caracterizados e analisados como modos de construção pós-ficcional do mundo. E por fim, constextualiza-se as Fake News como instrumentos das narrativas ficcionais contemporâneas, buscando nos alicerces da prática jornalística os modos de defesa e garantia da qualidade do conteúdo noticioso do que se produz e reproduz. 2 | PÓS-VERDADE O conceito de pós-verdade foi usado pela primeira vez no ano de 1992 em um ensaio do escritor e dramaturgo sérvio-americano Steve Tesich. O termo, eleito pelo Dicionário Oxford como palavra do ano de 2016, é um termo que diz respeito a situações em que a subjetividade (ideologia, opinião, crença pessoal) vale mais que fatos objetivos. Neste sentido, analisar os efeitos da pós-verdade, observando os processos pelo qual ela se apresenta, é entender a dinâmica da sociedade contemporânea em que, a partir do florescimento das mídias sociais digitais, se tornou possível que o indivíduo produza e compartilhe qualquer informação a partir da rede mundial de computadores, transformou a forma de nos comunicarmos e consequentemente perceber o mundo. A Oxford Dictionaries é uma organização que faz parte da Oxford University Press (OUP), um departamento da Universidade de Oxford, na cidade de Oxford, situada no Reino Unido. É essa organização que elabora dicionários há mais de 150 anos e é responsável por publicar o Oxford English Dictionary (OED). Importante repositório de informações sobre o idioma inglês que demonstra como as palavras foram usadas ao longo do tempo e como elas se relacionam umas com as outras. Segundo a instituição, há evidências de que o termo “pós-verdade” tenha sido usada antes do artigo de Tesich, mas aparentemente com outro sentido, significando “depois que a verdade era conhecida”, e não se referindo a situações em que a verdade se tornou sem importância. Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 8 81 Dessa forma, este contexto social interfere intensamente na prática jornalística contemporânea. Pois, a matéria-prima do trabalho do jornalista é o acontecimento, o fato. Mas, se o fato passa a ser desconsiderado pelo público para julgar o que é verdadeiro ou não, o jornalismo se depara com um novo dilema: reafirmar-se enquanto atividade profissional digna de credibilidade, por ser comprometida com a verdade dos fatos, pautada pela precisa apuração dos acontecimentos e sua correta divulgação, conforme estabelece o código de ética do jornalista. Ao longo de um ano, o termo pós-verdade ganhou crescente usabilidade e espaço nas manchetes de grandes jornais dos Estados Unidos, principalmente após as campanhas do plebiscito do Brexit e da eleição presidencial do mesmo país, ambas marcadas pela disseminação de notícias falsas através das mídias digitais sociais. Também por isso, conforme realiza anualmente, a Oxford Dictionaries elegeu o termo pós-verdade como palavra do ano de 2016. A expressão significa aquilo que se “relaciona ou denota circunstâncias em que fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que apelos à emoção e à crença pessoal”. 2.1 As Teorias do Jornalismo à luz da pós-verdade A prática jornalística da atualidade é caracterizada por uma ampla liberdade produtiva. Um estudo realizado pela Columbia University, intitulado Jornalismo PósIndustrial, retrata esse panorama na perspectiva de que o cidadão comum tem agora, à sua disposição, um banco de informações infinitas e não processadas. Com um cenário digital que exige cada vez mais urgência e velocidade no trato e divulgação das informações noticiosas, aliado a um cenário em que os indivíduos tem cada vez mais dificuldade em discernir entre informação e opinião, chegamos ao que muitos autores caracterizam como “crise de confiabilidade do jornalismo”. Kovach e Rosenstiel (2003) ressaltam que o jornalismo sofre modificações com o passar dos tempos e das gerações, mas que sua essência permanece a mesma. Para os autores, o objetivo central da atividade jornalística é “contar a verdade de forma que as pessoas disponham de informação para a sua própria independência” (KOVACH; ROSENTIEL, 2003, p. 36). Sendo assim, analisar o jornalismo na era da pós-verdade pressupõe, portanto, adentrarmos aos estudos relativos às Teorias do Jornalismo, como forma de compreendermos as forças simbólicas que permeiam os meios midiáticos e os fatores específicos que fazem com que a mídia, sobretudo no cenário contemporâneo, ainda tenha tanta influência e poder sobre o fortalecimento de discursos sociais em uma agenda dita pública. Trata-se aqui como agenda um conjunto temático sobre os quais se discorre. Essa agenda afeta a mídia e os públicos. Chamamos assim de agenda midiática uma reunião de temas abordados pelos meios de comunicação e de agenda pública os temas discutidos pelos agentes sociais fora do escopo midiático. Essas agendas estão permeadas de critérios, nuances e características que terão um impacto direto no que Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 8 82 é noticiado jornalisticamente e no que é amplamente disseminado pelos indivíduos. Outros agentes somam-se a esse cenário dos estudos da Agenda Setting e que impactam diretamente na produção e disseminação das notícias. São eles o veículo por onde a mensagem é transmitida e o seu conteúdo, propriamente dito. Neste ponto, relacionamos diretamente o cenário jornalístico na era da pósverdade, fortemente influenciado pelo digital, à teoria da Agenda Setting: como transmitir credibilidade na produção de notícias se a agenda midiática dialoga diretamente com os interesses e viés editorial dos veículos midiáticos? E mais: como depositar no receptor a responsabilidade pela checagem de informações quando este, já bombardeado pelo excesso noticioso, não é criticamente instrumentalizado no seu percurso formativo, a ler as mídias de um modo crítico, não conseguindo portanto, como mostram pesquisas na área, diferenciar uma opinião de uma informação jornalística? Trazendo a hipótese da Espiral do Silêncio, algumas considerações podem ser levantadas, do ponto de vista científico, para tentarmos caminhar na direção de possíveis respostas dessas questões. A pós-verdade, portanto, ganha força em um contexto no qual indivíduos não estão preocupados em credibilizar a prática jornalística, mas fazer dela a sua voz em meio a um cenário midiático de discursos heterogêneos. Os que falam, o fazem através dos discursos majoritários repetidos pelas mídias e os que se calam o fazem por medo de se sentirem isolados. Para a Espiral do Silêncio, a nossa sobrevivência no cenário social público, que podemos relacionar aqui ao digital e às mídias massivas, está diretamente relacionada à capacidade do indivíduo de adotar estratégias de aproximação, reforçando uma das características mais latentes do ser humano: o desejo de pertencimento. Para Filho, Lopes e Peres, no cenário da prática midiática contemporânea “não cabe mais perguntar se, de fato, cada um de nós pensa o que diz pensar” (2017, p. 44). Adotamos discursos compatíveis com o que desejamos expressar/ parecer/ vender, sem nos preocuparmos, no entanto, se esses discursos, jornalísticos ou não, expressam de fato a verdade de uma realidade concreta em que estamos inseridos. Seja por desconhecimento da estrutura de um texto noticioso, por medo do isolamento, pela necessidade de pertencimento ou mesmo por má-fé, práticas que disseminam discursos falsos cresceram muito nos últimos anos em função do amplo acesso dos indivíduos a mídias massivas de comunicação, a partir da popularização dos smartphones, por exemplo. Para enriquecer a abordagem aqui proposta, podemos também trazer para o diálogo teórico as ideias disseminadas pela teoria do espelho. Essa teoria diz que o jornalista é como um mediador despretensioso, com função de observar e relatar a realidade fielmente, como um retrato fotográfico, sempre com cuidado para que suas impressões pessoais não influenciem ou interfiram no seu papel de informar, buscando a verdade acima de qualquer coisa. Então começa o trabalho primordial do jornalista, de separar o joio do trigo, ou seja, separar fatos de opiniões. Neste sentido, a teoria do espelho emerge para Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 8 83 contrapor o jornalismo literário, ideológico, partidário, sensacionalista, evitando todas as formas existentes de subjetividade. A teoria do newsmaking rebate a teoria do espelho e acredita que o jornalismo “está longe de ser o espelho do real. É antes, a construção de uma suposta realidade.” (Pena, 2010: 128) e mesmo reconhecendo que as notícias retratam a realidade, afirma que também contribuem na construção dessa mesma realidade. A explicação para a teoria do newsmaking, é que o processo de produção jornalístico acompanha uma demanda industrial e passa por diversas etapas entre pauteiros, repórteres, redatores, editores, diretores, até chegar ao resultado, assim construindo uma nova realidade. Embora haja um padrão para os critérios de noticiabilidade, eles variam de profissionais para profissionais, este poder é atribuído à Teoria do Gatekeeper. 3 | PÓS-FICÇÃO: NARRATIVAS LITERÁRIAS E O JORNALISMO O jornalista, no exercício da profissão, é um agente produtor e reprodutor de realidades. Há muito se discute sobre a parcialidade deste profissional no relato que faz dos acontecimentos. Conforme afirma Felipe Pena, não é possível transmitir, através da linguagem, o significado direto, sem mediação, dos acontecimentos. A forma como se constrói a notícia, o filtro da seleção de informações, o olhar de quem reproduz o fato, a palavra empregada, todos esses elementos subjetivos contribuem para a criação/representação de uma realidade com teor de ficção e assim criam suas próprias verdades, sem a necessidade de ter que inventar ou deixar de transmitir fatos. Neste sentido, é importante ressaltar o que chama-se de pós-ficção: momento em que os romances literários ganham uma nova perspectiva, pondo à prova as noções convencionais de realidade e representatividade, agora não mais percebidas como elementos separados. Desta forma, o fenômeno da pós-ficção aborda as narrativas de forma mais próxima da objetividade. A ficção sempre esteve presente, assim como está nos ensaios, na reportagem, na autobiografia, e no relato historiográfico, a diferença é que o romance nunca se assemelhou e pertenceu tanto a essas formas como na era da pós-ficção. Na era da pós-verdade o jornalismo se aproxima da ficção e na era da pós-ficção os romances se aproximam da realidade e embora tenham mudado o rumo da sua história, não houve o abandono total da sua essência. “Narrativas, por fim, em que o narrar avança sobre outros limites, o narrar testemunha, o narrar disserta, o narrar critica, o narrar opina” (FUKS, 2017, p. 78). Romance e testemunho do mundo se fundem ou se confundem como poucas outras vezes. O romance se faz um gênero híbrido, se aproxima do ensaio, da reportagem, da autobiografia, do relato historiográfico, dessas outras formas que já lhe pertenciam, mas assemelhando-se a elas como em nenhum outro tempo (FUKS, 2016, p. 82). Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 8 84 A mídia possui o poder doutrinador de estabelecer verdades absolutas, a partir da representação/criação de realidades, por meio da ficção. Sendo assim, o que está fora do espaço da mídia, passa a não existir no ambiente social. Em suma, só é real e verdadeiro aquilo que a mídia expõe. E para perceber de que forma a ficção atua na pós-modernidade dentro da área comunicacional, é importante compreender que quase tudo – ou tudo – produzido pela mídia é ficção ou usa elementos ficcionais (SCHABBACH, 2009). Uma ficção produtora de verdade se torna, pois, algo de extrema relevância. A partir do momento em que os indivíduos recorrem ao ficcional com o intuito de encontrar as certezas que não possuem na “vida real”, eles passam a absorver as verdades inerentes àquelas ficções com as quais estão envolvidos, de modo que as suas concepções de mundo e até mesmo a sua maneira de lidar com outras pessoas será influenciada por elas. Assim, nota-se que a ficção se torna uma “entidade” capaz de produzir suas próprias verdades e de influenciar a vida em sociedade (SCHABBACH, 2009). 4 | PÓS-VERDADE E FAKE NEWS É inevitável discutir a pós-verdade sem adentrar nas problemáticas que podem advir da divulgação de informações mentirosas com estética de notícia. Pós-verdade e fake news apesar de se relacionarem intensamente possuem características que as diferenciam. Segundo Chiara Spadaccini de Teffé, compreende-se por fake news conteúdos inverídicos, distorcidos ou fora de contexto que são espalhados como se fossem notícias com a intenção de promover desinformação ao público de forma proposital. Interferindo assim na percepção do público em relação à realidade. Fake news é um elemento que se ambienta no fenômeno da pós-verdade. Ambos não emergem da contemporaneidade, mas se reconfiguraram neste contexto de conectividade digital. A história registra casos em que, através dos meios de comunicação tradicionais, informações falsas eram utilizadas para tentar interferir na formação da opinião pública. Durante a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, o Reino Unido criou uma série de rádios que se passavam por estações alemãs, para transmitir, além de músicas e resultados de futebol, notícias falsas e comentários contra Adolf Hitler. No livro “Padrões de Manipulação da Grande Imprensa”, o jornalista Perseu Abramo relacionou cinco estratégias para distorcer as notícias e acreditava que os órgãos de imprensa não refletiam a realidade. A partir da leitura de cada um dessas estratégias, fica perceptível que as fake news, que hoje circulam também no ciberespaço, seguem a mesma lógica das apresentadas pelo autor. Em sua obra, Abramo apresenta as seguintes definições: Padrão de Ocultação: refere-se à ausência de fatos reais na produção da imprensa; Padrão de Fragmentação: O real é estilhaçado e dividido em milhões de fatos desconhecidos entre si, desligados Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 8 85 de seus antecedentes e das consequências, evitando assim a consciência crítica do contexto; Padrão de inversão: Após a descontextualização, há troca de lugares e de importância dos fatos. São quatro as formas de inversão: Da relevância dos aspectos, da forma pelo conteúdo, da versão pelo fato e da opinião pela informação; Padrão de indução: Combinação de graus de distorção para induzir a população a enxergar uma realidade artificialmente inventada; Padrão Global: Refere-se à ilusão de apresentar a realidade de forma completa, total, global, definida e acabada. Com o boom da conectividade digital, a partir da década de 1990, antigas práticas, como a divulgação de mentiras, também sofreram transformações devido ao novo contexto tecnológico de comunicação que se desenvolveu, no qual a propagação de discursos ganham proporções potencialmente maiores e que se legitima à medida em que é circulado. Nesse sentido, o jornalismo se depara com mais um desafio que compromete a credibilidade da profissão, em um contexto que a produção de conteúdo descentralizada e em larga escala possibilita que inúmeros internautas criem seu canal de produção de conteúdo, sem necessariamente estarem comprometidos com a verdade e com a deontologia a qual deve estar submetido o jornalista. Em resposta, começam a surgir novas empresas jornalísticas especializadas em checagem de informações, agências e projetos de fact-checking, os quais utilizam métodos de checagem para certificar o grau de confiabilidade das informações disponibilizadas em sites, blogs, discursos de autoridades, e se esses dados apresentados foram apurados e obtidos através de fontes confiáveis. Levantamento do Duke Reporter’s Lab mapeou 149 iniciativas de checagem de informações em todo mundo. Mais de 70% deles estão n Europa e América do Norte e apenas os Estados Unidos contam com boa parcela deste montante: 47 projetos. Ainda segundo o estudo, o Brasil ocupa o segundo lugar entre os países com mais checadores. São 8 iniciativas entre as 15 identificadas na América do Sul. Essa posição pode ser resultado de diversos fatores que vão do senso de oportunidade comercial à preocupação genuína sobre a crescente influência ilegítima de bots espalhadores de notícias falsas no debate público. 5 | CONSIDERAÇÕES FINAIS Este artigo propôs a compreensão da pós-verdade no jornalismo a partir dos efeitos produzidos pelo uso das mídias sociais digitais, no contexto atual. O trabalho tem como recorte o ano de 2016, em que a expressão foi escolhida como palavra do ano pelo dicionário Oxford. Em uma época que fatos objetivos são menos influentes na opinião pública do que as crenças pessoais, o campo se torna fértil para a disseminação de fake news. O momento é decisivo para que o jornalismo se consolide como agente de combate Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 8 86 às notícias falsas usando como base um trabalho rigoroso de apuração de fatos e defesa da credibilidade pautado na ética e compromisso com a objetividade, pilares para a prática da profissão. Nesse cenário, as agências de fact-checking ganham espaço ao investigar, repassando ao público e aos próprios veículos jornalísticos o que foi checado sobre determinadas informações. A importância deste estudo repousa sobre a ascensão do tema pós-verdade, fenômeno que afeta diretamente a prática jornalística em sua atuação social, comprometendo a credibilidade do exercício profissional do jornalista neste contexto de conectividade digital. Por outro lado, também destaca-se o florescimento de negócios em jornalismo, voltados especialmente à apuração de informações, diante da precarização das redações e demissões em massa. 6 | REFERÊNCIAS Abramo, Perseu. Padrões de Manipulação da Grande Imprensa. São paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2016. FEDERAÇÃO Nacional dos Jornalistas. Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros. Disponível em: https://fenaj.org.br/wp-content/uploads/2014/06/04-codigo_de_etica_dos_jornalistas_brasileiros. pdf. Acesso em 02 mai. 2018. FUKS, Julián. Ética e Pós-Verdade. Porto Alegre e São Paulo: Dublinense, 2017. KOVACH, Bill; ROSENSTIEL, Tom. Os elementos do jornalismo: o que os jornalistas devem saber e o público exigir. São Paulo: Geração editorial, 2003. OXFORD Dictionaries . Word of the Year 2016 is... Disponíivel em: https://en.oxforddictionaries.com/ word-of-the-year/word-of-the-year-2016. Acesso em: 21 mai. 2018. PENA, Felipe. Teorias do Jornalismo. São Paulo: Contexto, 2010. SILVA, Nayane Maria Rodrigues da. Fake News: A revitalização do jornal e os efeitos FactChecking e CrossCheck no noticiário digital. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XIX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste – Fortaleza - CE – 29/06 a 01/07/2017. Disponível em: http://www.portalintercom.org.br/anais/ nordeste2017/resumos/R57-0191-1.pdf Acesso em: 21 mai. 2018. SOUZA, Carlos Afonso e PADRÃO, Vinícius. Quem lê tanta notícia (falsa)? Entendendo o combate contra as “fake news”. Disponível em: https://feed.itsrio.org/quem-l%C3%AA-tanta-not%C3%ADciafalsa-entendendo-o-combate-contra-as-fake-news-70fa0db05aa5. Acesso em: 21 Mai. 2018. STENCEL, Mark; GRIFFIN, Riley. Fact-checking triples over four years. Disponível em: https:// reporterslab.org/fact-checking-triples-over-four-years/. Acesso em: 16 mai. 2018. TEFFÉ, Chiara. Fake news: como proteger a liberdade de expressão. Disponível em https://feed. itsrio.org/fake-news-como-proteger-a-liberdade-de-express%C3%A3o-e-inibir-not%C3%ADcias-falsas8058aedd9f5c. Acesso em: 20 Mai. 2018. Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 8 87 CAPÍTULO 9 PROCESSOS DE CONVERGÊNCIA E REORGANIZAÇÃO EM REDAÇÕES JORNALÍSTICAS: UM OLHAR SOBRE A ESTRUTURA E A PRODUÇÃO DE NOTÍCIAS EM CIBERMEIOS BRASILEIROS Jonas Gonçalves Escola Superior de Propaganda e Marketing São Paulo – SP RESUMO: O presente trabalho foi originalmente apresentado na Sessão Temática “Ciberjornalismo, Mobilidade e Convergência” durante o 16º Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo, promovido pela Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor) de 7 a 9 de novembro de 2018 no Centro Universitário FIAM-FAAM e na Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo. O objetivo foi oferecer uma síntese dos resultados obtidos com a pesquisa desenvolvida pelo autor no âmbito do programa de Mestrado Profissional em Produção Jornalística e Mercado da ESPM-SP, no período de 2016 a 2018. A dissertação resultante visou elucidar os constantes ciclos de transformação das redações jornalísticas contemporâneas, convertidas em ecossistemas adaptáveis com fluxos de trabalho tecnológicos (“cibermeios”). Tais mudanças, diretamente influenciadas pelo fenômeno da convergência, demandam uma sistematização que viabilize estudos mais aprofundados. A referida pesquisa estudou os casos vivenciados pelos sites Estadão e HuffPost (um analógico digital e outro nativo digital) e propôs uma metodologia para classificar, por Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 meio de indicadores, os diferentes modelos de redação em termos de características estruturais (tipo de ecossistema, etapas de reconfiguração e contexto organizacional) e produtivas (procedimentos de pauta, apuração, edição e publicação de notícias). PALAVRAS-CHAVE: redações; reorganização; convergência; Estadão; HuffPost. ABSTRACT: This work was originally presented in the Thematic Session “Cyberjournalism, Mobility and Convergence” during the 16th National Meeting of Journalism Researchers, promoted by the Journalism Researchers Brazilian Association (SBPJor) from November 7th until November 9th of 2018, at the FIAMFAAM University Center and Anhembi Morumbi University, in São Paulo. The objective was to offer a synthesis of the results obtained with the research developed by the author in the scope of the Professional Master in Journalistic Production and Market program from ESPM-SP, in the period from 2016 to 2018. The resulting dissertation aimed to clarify the constant transformation cycles of the contemporary journalistic newsrooms, converted into adaptable ecosystems with technological workflows (“cybermedia”). Such changes, directly influenced by the convergence phenomenon, demand a systematization that allow in-depth studies. The referred research investigated the Capítulo 9 88 cases experienced by Estadão and HuffPost websites (a digital analogic and a digital native) and proposed a methodology to classify, by means of indicators, the different newsroom models in terms of structural (ecosystem type, reconfiguration phases and organizational context) and productive (schedule, investigation, edition and publication procedures) characteristics. KEYWORDS: newsrooms; reorganization; convergence; Estadão; HuffPost. 1 | INTRODUÇÃO O aumento da incidência de processos de integração e convergência nos ambientes de trabalho jornalístico (as “redações”) torna necessário tanto o debate acadêmico sobre o assunto quanto o desenvolvimento de uma metodologia que ampare a investigação científica desses ciclos de reorganização e se configure em um possível eixo sistemático de estudos comparados sobre a estrutura e a produção noticiosa dos veículos de mídia, pertencentes ou não a um mesmo tipo de modelo de negócio. A dissertação intitulada Reorganização de redações no Brasil: análise dos processos de produção do Estadão e do HuffPost (GONÇALVES, 2018) procurou contribuir para o atendimento dessa demanda ao apresentar os resultados obtidos pela pesquisa, desenvolvida no âmbito do programa de Mestrado Profissional em Produção Jornalística e Mercado da ESPM-SP no período de 2016 a 2018. O Estadão serviu como parâmetro de uma Redação Analógica Digital (RAD) por conciliar os fluxos de trabalho tecnológicos do site Estadão.com.br com os de plataformas jornalísticas mais tradicionais: um diário impresso (O Estado de S. Paulo), uma emissora de rádio (Eldorado) e uma agência de conteúdo (Estado/Broadcast). O trabalho constatou que esse movimento que integrou as rotinas produtivas de diferentes meios permitiu a consolidação de uma Unidade Produtora de Conteúdo (UPC) na ambiência do Grupo Estado. Já a sucursal brasileira do norte-americano HuffPost foi adotada como modelo para caracterizar uma Redação Nativa Digital (RND), conformação que designa os novos competidores do mercado jornalístico, criados e impulsionados pela expansão da internet a partir dos anos 2000. No trabalho de Gonçalves (2018), é delineado o processo que modificou a estrutura do site, inicialmente concebido como um Laboratório Nativo Digital (LND) inserido no contexto do tradicional Grupo Abril, que viabilizou a inserção da marca no mercado nacional. A aliança formada por Abril e AOL Inc. (controladora do HuffPost), mantida de 2014 a 2016, foi encerrada por iniciativa da empresa brasileira, o que permitiu à AOL assumir a gestão e transferir o HuffPost Brasil para um novo ambiente, o de um grupo de empresas de Tecnologia da Informação (denominado “Oath”), configurando-se no contexto organizacional como um hub de conteúdo por suas características de curadoria e distribuição de notícias. A relevância e a atualidade do tema da pesquisa podem ser comprovadas pela Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 9 89 profusão, nos últimos anos, de anúncios de mudanças estruturais em diversos veículos, tanto no Brasil quanto em outros países. Nesse contexto, Pereira e Adghirni (2011), ao definirem o jornalismo como “uma prática social marcada por um processo de reinvenção permanente”, salientam que, para uma mudança ser considerada “estrutural”, esta deve alterar de forma radical a forma como determinada atividade é praticada, visto que “uma mudança estrutural se contrapõe a um grupo de mudanças conjunturais e também às microinovações que normalmente afetam aspectos específicos de uma prática social” (PE-REIRA e ADGHIRNI, 2011, p. 42). Ao se referir especificamente à estrutura de produção jornalística, Franciscato (2014) infere que, na contemporaneidade, “novas rotinas de trabalho são desenhadas para as organizações jornalísticas, tendo como foco a concepção de integração e convergência dos ambientes de trabalho”. Essa tendência se confirma quando se observam recentes movimentações de importantes empresas do cenário jornalístico brasileiro. Em janeiro de 2017, os jornais O Globo, Extra e Expresso, todos do Rio de Janeiro, tiveram a unificação de suas redações oficializada pelo Grupo Globo. Em reportagem publicada sobre o assunto, o primeiro veículo assinalou: A mudança na estrutura e nos processos de trabalho amplia o foco nos ambientes digitais, especialmente por meio de smartphones. Durante todo o dia, as principais notícias serão aprofundadas e enriquecidas com análises, vídeos e infográficos em tempo real. O objetivo é conquistar uma audiência cada vez mais qualificada e acompanhar as transformações que uma sociedade conectada impõe ao jornalismo. (O GLOBO, 2017) Como é possível observar nas Figuras 1 e 2, a estrutura e a produção foram as duas esferas diretamente impactadas pelas referidas mudanças. Ao mesmo tempo, ficou evidenciada a ligação intrínseca entre ambas. Na Figura 1, é mostrada a alocação das equipes de profissionais, feita por meio da ocupação de dois andares das novas dependências. Já a Figura 2 mostra o fluxo de trabalho decorrente dessa conformação estruturante. Constata-se que as chamadas “macroeditorias” (País e Economia, por exemplo) interagem diretamente com a mesa central. Essa interação é alimentada pelo processo de “enriquecimento” da produção de conteúdo, caracterizada pela elaboração de infográficos, vídeos e outros recursos complementares ao trabalho de reportagem. Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 9 90 Fonte: O Globo Figura 1 (acima) – No primeiro piso (3º andar), a equipe dedicada às publicações impressas compartilha a proximidade da mesa central de coordenação (destacada em vermelho) com a produção multimídia. No entanto, o núcleo de inovação digital e algumas das editorias tiveram que ser apartadas fisicamente do restante, tendo sido acomodadas no segundo pavimento (4º andar) Fonte: O Globo Figura 2 (à esquerda) – O mapa do fluxo de trabalho mostra que as plataformas permanecem importantes na esfera da distribuição, mas a produção é “agnóstica”, não sendo atrelada de forma exclusiva a nenhuma delas Em abril do mesmo ano, a Gazeta do Povo, do Paraná, apresentou um novo e amplo projeto editorial, que transformou o jornal diário em uma plataforma mobile first, passando a publicar somente uma edição impressa nos finais de semana. Logo em seguida, no mês de junho, o Jornal Nacional, da TV Globo, apresentou o seu novo Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 9 91 cenário, em formato convergente e que integra as equipes de televisão e internet (ver Figura 3). Em 2018, mais veículos iniciaram novos ciclos estruturais e produtivos: a revista Época e a rádio CBN, ambas também pertencentes ao Grupo Globo; os jornais Folha de S.Paulo e Agora São Paulo, do Grupo Folha, que tiveram as redações integradas; e os veículos Zero Hora, Diário Gaúcho e Rádio Gaúcha, todos do Grupo RBS, do Rio Grande do Sul. Todos os mencionados compartilham as características de veículos tradicionais que promoveram adaptações a tendências atuais, sendo, portanto, Redações Analógicas Digitais (RADs) assim como o Estadão, objeto escolhido por Gonçalves (2018) como parâmetro para a pesquisa deste modelo de ambiente de trabalho. O cenário de transformações intensificou a exacerbação das marcas das empresas de mídia em detrimento das plataformas utilizadas para a distribuição das notícias. A prioridade para os veículos passou a ser o conteúdo, não mais o produto por meio do qual este é publicado. Essa nova diretriz impactou diretamente os processos, gerando fluxos de trabalho mais dinâmicos. Figura 3 – Nova redação da Globo integra jornalistas de TV e internet (Crédito: João Cotta/ Globo) Segundo Gandour (2017 apud GONÇALVES, 2018), o desenvolvimento de uma RAD como a do Estadão pode ser dividido em quatro fases: Na primeira, os editores replicavam o conteúdo produzido offline para a web. Na segunda, surgiu o conteúdo já voltado para a internet, mas somente na terceira (a de convergência) a plataforma passou a ter maior relevância. Na quarta fase, o impresso passou a ser um subproduto da operação, que se tornou “digitaldriven”. O jornal, na prática, se consolidou como um arrazoado das 24 horas, com a função de organizar o noticiário de um dia (dentro do que se pode chamar de um “biorritmo”). As principais alterações se deram no que tange ao processo-mestre de trabalho. A redação, que era organizada em torno do produto de papel, tratava o digital como um subproduto do jornal. Posteriormente, ocorre uma adaptação, seguida de uma convergência que possibilitou a inversão dessa lógica, ou seja, o impresso é que passou a ser o subproduto. (GANDOUR, 2017 apud GONÇALVES, 2018, p. 39) Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 9 92 Nesse sentido, também cabe mencionar Barbosa (2013), que consolida as características de uma RAD ao citar a eliminação de fronteiras entre as plataformas jornalísticas no contexto dos fluxos de trabalho: As atuais rotinas de produção pressupõem o emprego de softwares, de bases de dados, algoritmos, linguagens de programação e de publicação, sistemas de gerenciamento de informações, técnicas de visualização, metadados semânticos etc. Com isso, já não se tem uma oposição entre meios antigos/tradicionais e os new media. Sendo assim, medialidade explica melhor esse panorama, quebrando a retórica do ‘novo’ e, acrescentamos, dissipando a equivocada ideia de concorrência entre meios que compõem um mesmo grupo jornalístico multimídia. (BARBOSA, 2013, p. 34). No entanto, é válido trazer para a presente reflexão o fato de que a problematização em torno dos processos que procuram aglutinar diferentes equipes em um mesmo espaço de trabalho não se restringe a questões organizacionais: se, pelo lado das empresas, exalta-se a adaptabilidade destas aos “novos tempos” marcados pelas tecnologias digitais, entre os pesquisadores do campo jornalístico as preocupações variam entre a redução de postos de trabalho na quase totalidade dos casos até a uma questionável “otimização” do trabalho jornalístico. Castilho (2013), por exemplo, acredita que “o maior dilema de quase todos os jornais ainda não foi resolvido, apesar de a maioria ter optado pela coexistência numa mesma redação de profissionais das versões online e impressa”. O dilema citado consiste, em linhas gerais, na dificuldade em se resolver o paradoxo da sustentabilidade financeira, pois as marcas tradicionais ainda se ancoram sensivelmente no faturamento gerado a partir da publicação do jornal impresso, em que pese a circulação deste produto estar em queda constante nos últimos anos. Cabe aqui novamente uma referência ao trabalho desenvolvido por Gonçalves (2018), que constatou tal panorama no Estadão. Apesar de as dimensões do site Estadão.com.br terem adquirido proporções muito superiores às do jornal O Estado de S. Paulo em termos de abrangência (conforme ilustra a Figura 4), ainda é o meio impresso o responsável pela maior parte do faturamento do grupo de mídia. Figura 4 – Mapeamento do alcance das plataformas que formam a Unidade Produtora de Conteúdo do Grupo Estado (Fonte: Estadão Media Lab) Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 9 93 2 | CONCEITOS Em termos de fundamentação teórica, a metodologia proposta por Gonçalves (2018) está ancorada em três conceitos: convergência, ecossistema midiático e jornalismo integrado. O primeiro é o “macrofenômeno que se sobrepõe a todos os demais” apontado por Salaverría e Negredo (2008). Entendida por Jenkins (2008) como um “processo, não um ponto final”, a convergência pode ser visualizada no âmbito do trabalho jornalístico como a formatação de um sistema que permite a interação dinâmica de unidades produtivas relativamente autônomas (“editorias”) com a mesa central de edição, que coordena a publicação e distribuição das notícias. O grau de aproximação física depende diretamente de fatores organizacionais (estruturais, orçamentários, entre outros). Nesse contexto, o layout da redação não possui um padrão, pois atende às especificidades de cada veículo, mas em alguns casos é possível encontrar similitudes. Frise-se, no entanto, que o formato em círculos concêntricos não se impõe como uma obrigatoriedade, podendo sofrer adaptações conforme as possibilidades físicas oferecidas pelo espaço de trabalho. Já o ecossistema midiático é definido por Canavilhas (2010) como o “complexo sistema de relações entre os velhos e os novos meios”. A ecologia dos meios de comunicação aborda os meios enquanto ambientes, procurando estudar a sua estrutura, conteúdo e impactos nas pessoas. Envolvendo as esferas da estrutura e do conteúdo em uma análise, é possível entender uma redação como um ecossistema que se modifica e se adapta ao longo do tempo aos ajustes provocados pela tecnologia, por esta ser uma dimensão estruturante (conforme FRANCISCATO, 2014), e pelo formato convergente, que aproxima as unidades produtivas de um núcleo central de edição. Os estudos de Salaverría, Avilés e Masip (2010) apontam para a consolidação nas redações contemporâneas de uma “convergência jornalística”, fenômeno que fundamenta o conceito de jornalismo integrado, sendo um “processo de integração de modos de comunicação tradicionalmente separados que afeta a empresas, tecnologias, profissionais e audiências em todas as fases de produção, distribuição e consumo de conteúdos de qualquer tipo” (SALAVERRÍA, AVILÉS e MASIP, 2010, p. 58). Para Salaverría e Negredo (2008, p. 51), a integração em si “alude sobretudo a fusão de duas ou mais equipes de redação em uma só, de modo que [...] a redação resultante trabalha reunida em um mesmo entorno físico, sob um comando editorial único e com uma infraestrutura tecnológica comum”. 3 | METODOLOGIA E RESULTADOS A pesquisa de campo realizada por Gonçalves (2018) nas redações do Estadão e do HuffPost foi precedida por uma revisão bibliográfica da literatura até então produzida para identificar o estado da arte consolidado sobre o tema. Nos ambientes supracitados, foi desenvolvida uma observação sistematizada, conforme o entendimento de Moura e Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 9 94 Lopes (2016, p. 84), que correspondem o método “à investigação propriamente dita, à defrontação com a realidade, em que o pesquisador, munido de sua problematização e de suas bases teóricas, vai procurar elucidar suas questões através de um exame pertinente das coisas e situações”. Trata-se de uma modalidade da pesquisa empírica, a qual as pesquisadoras apontam como a que “oferece a possibilidade de um tensionamento entre três elementos diferenciados que se apoiam e se cobram mutuamente: problematização do objeto; elaboração teórica; e ida à realidade para sua observação sistemática” (MOURA e LOPES, 2016, pp. 81-82). Com as informações obtidas, foi possível consolidar um estudo comparado com base em estudos de caso, combinação que, segundo Bulgacov (1998), facilita a compreensão do funcionamento de organizações através da investigação empírica. Enquanto que, para o referido autor, o estudo comparativo possibilita constatações sobre similaridades e diferenças entre as organizações, o estudo de caso “não faz comparações genéricas e procura verificar as relações e comportamentos internos qualitativamente” (BULGACOV, 1998, p. 62). Em termos de resultados obtidos, a análise comparativa das redações do Estadão e do HuffPost evidenciou diferenças significativas e algumas semelhanças. No que tange à primeira grandeza avaliada (estrutura), o tipo de ecossistema RAD do Estadão passou por seis etapas de reconfiguração entre 1995 e 2017, sendo que as quatro primeiras tiveram uma longa duração e as duas últimas (ocorridas de 2014 a 2017) foram mais curtas, um reflexo decorrente da prevalência do modo de produção digital, consolidado a partir de 2014 com a mudança do layout da redação, que foi planejada e executada em um período de dois anos. O resultado desse processo foi a manutenção de um contexto organizacional mais estável, com mudanças controladas e graduais, e que tem atualmente no site Estadão.com.br o ponto focal de uma Unidade Produtora de Conteúdo (UPC) formada pelo Grupo Estado, composta ainda por outras mídias que atuam de forma progressivamente sinérgica. Diferentemente de outros veículos da mídia tradicional, como O Globo (citado na introdução deste artigo), o Estadão se manteve em apenas um piso, o que Gandour (2017 apud GONÇALVES, 2018) entende como uma vantagem por ter sido consolidado um “news floor”, ou seja, toda a estrutura jornalística ficou instalada em apenas um pavimento, elevando assim o grau de aproximação das principais editorias em relação ao núcleo central de edição, onde são tomadas as decisões sobre o que será publicado (ver Figura 5). Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 9 95 Figura 5 – Embora tenha passado por um processo de convergência, o Estadão foi obrigado a realizar alguns ajustes em seu ambiente: a editoria de Economia não está anexa ao núcleo central por ter sido integrada com a equipe da Agência Estado/Broadcast; e a equipe “Now”, que enriquece o conteúdo do site, não teve a possibilidade de ser instalada junto ao mesão do digital, como planejado inicialmente (GONÇALVES, 2018) Já o HuffPost, com seu ecossistema do tipo RND, em que pese ter passado por somente três etapas de transformação no período de 2014 a 2017, teve um processo que se tornou particularmente relevante para a pesquisa por ter sido drasticamente modificado. Os dois primeiros ciclos se deram sob a gestão do Grupo Abril, quando este era o parceiro que forneceu recursos estruturais e humanos para ter um Laboratório Nativo Digital (LND) com o qual poderia ter uma experiência jornalística diferenciada no comparativo com os veículos que já possuía, como as tradicionais revistas Veja e Exame. Lançado como Brasil Post em janeiro de 2014, a sucursal do então The Huffington Post teve o nome alterado para HuffPost Brasil em novembro de 2015. Foi um dos desdobramentos de mudanças internas na estrutura da redação que marcaram a segunda etapa. O terceiro ciclo foi desencadeado em janeiro de 2017, quando a administração passou a ser exercida pela representação brasileira da empresa controladora, a norteamericana AOL Inc., que optou por um enxugamento da equipe visando diminuir o custo de manutenção da estrutura em um primeiro momento. A consolidação do processo de mudanças organizacionais veio com a fusão, no mesmo ano, da AOL com outra empresa da área de Tecnologia da Informação, o Yahoo (também dos EUA). A proprietária das duas companhias, a Verizon, criou assim uma nova empresa, a Oath. Em suma, o HuffPost Brasil adquiriu uma singularidade por ter sido transferido de uma empresa jornalística (onde integrava a UPC do Grupo Abril) para uma tecnológica. Nesse novo contexto organizacional, tornou-se um hub de conteúdo autônomo, já que uma de suas diretrizes é a distribuição, em especial via plataformas de mídias sociais (ver Figura 6). Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 9 96 Figura 6 – A condição de único veículo jornalístico do conglomerado tecnológico Oath (ou seja, fora de uma Unidade Produtora de Conteúdo jornalística, como a do Grupo Abril, que controla outros veículos) conferiu ao HuffPost Brasil a configuração de um hub autônomo, que distribui conteúdos próprios e de outras fontes (GONÇALVES, 2018) A segunda grandeza (a da produção) foi dividida em quatro indicadores principais: pauta, apuração, edição e publicação de notícias. Delineando as rotinas do Estadão e do HuffPost em cada uma dessas fases do processo produtivo, constatou-se maior proximidade entre os modelos RAD e RND nas esferas da pauta e da publicação e uma distinção mais evidente quando se observam os procedimentos de apuração e edição. A cadeia produtiva do Estadão ainda mantém características transpostas do jornalismo tradicional, com uma hierarquia composta por repórteres, editores de seções e editores executivos, o que pode ser compreendido como uma decorrência natural pela dimensão de seu quadro profissional. Há equipes específicas para diferentes finalidades (como as que monitoram as redes sociais) e cada editoria possui um fluxo próprio de trabalho. Em contrapartida, por ter uma equipe fixa reduzida e também pela própria linha editorial que mantém, o HuffPost fomenta a horizontalidade, com os editores concedendo expressivo grau de autonomia ao trabalho dos repórteres. 4 | CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente artigo apontou diversos aspectos que compõem o levantamento das características e da evolução de alguns dos ecossistemas jornalísticos presentes no mercado brasileiro. As diferenças mais significativas entre os modelos de Redação Analógica Digital (RAD) e Nativa Digital (RND) residem, em um primeiro plano, no nível de complexidade de suas estruturas e nas demandas a serem atendidas para que as respectivas transformações e adaptações a novas rotinas ocorram ao longo do tempo. Observou-se que cada etapa de reconfiguração tende a ser mais curta que a anterior. Trata-se de uma tendência potencializada pelo modo de produção do Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 9 97 jornalismo online, que transformou os ambientes de trabalho mediante a imposição de uma diretriz convergente, que atrai os fluxos de produção da reportagem para uma coordenação central com ênfase na aproximação física. O método ora proposto pela dissertação de Gonçalves (2018) busca sistematizar a compreensão desses ciclos, viabilizando o entendimento de seus propósitos e os impactos decorrentes sobre a disposição estrutural das equipes e a produção noticiosa. Considera-se que, quanto ao primeiro indicador estrutural (tipo de ecossistema), os modelos RAD e RND aplicados ao Estadão e ao HuffPost podem servir como parâmetros para análises sobre outros sites de notícias, embora seja pertinente salientar que, devido a particularidades históricas organizacionais, cada empresa de mídia irá apresentar diferenças mesmo em relação aos seus concorrentes diretos, especialmente no que tange às etapas de reconfiguração (o segundo indicador estrutural). O Estadão, por exemplo, teve a singularidade de ter o seu processo de adaptação ao jornalismo online iniciado, ainda nos anos 1990, pela Agência Estado, produtora de conteúdo noticioso tanto para as plataformas do grupo quanto para veículos externos. O pioneirismo da agência na internet fez com que o principal veículo da empresa, o jornal impresso O Estado de S. Paulo, passasse a ter o conteúdo publicado no ambiente web a partir de 1995. E desde o ano 2000, com o lançamento do Estadão.com.br, iniciou-se de facto a estratégia multiplataforma do grupo, atualmente consolidada. Quanto ao HuffPost, é possível afirmar que a mudança de controlador no Brasil foi decisiva para que o caso atendesse aos requisitos necessários visando a utilização como objeto de pesquisa, visto que o seu curto período de existência inviabilizaria, ao menos inicialmente, o enquadramento na metodologia de investigação elaborada. Quando ocorreu a transição do Grupo Abril para a AOL, em janeiro de 2017, o site foi instalado provisoriamente em duas sedes (na própria AOL e depois na Verizon) até se estabelecer em definitivo na recém-criada Oath. A instabilidade estrutural demonstrada pela RND em poucos meses serviu como um contraponto à RAD escolhida, pois o Estadão empreendeu uma remodelação com ajustes menos drásticos, visando diminuir eventuais riscos de inadaptação às novas rotinas. Por outro lado, não se pode desconsiderar que o modelo RND responde muito mais rapidamente às transformações. Trata-se de um ecossistema que, por inerência, é mais flexível e adaptável, com ciclos breves entre as etapas de reconfiguração. O modelo RAD também pode atingir esse nível de dinamismo, mas os investimentos necessários para isso exigem uma filosofia que nem sempre é a prevalente nesse tipo de organização. Ainda há muito a ser apurado sobre os propósitos, as diretrizes e as consequências das reestruturações dos diferentes modelos de redação existentes no Brasil. Com a continuidade das pesquisas em torno do tema, pretende-se compreender integrações ou reestruturações de um ponto de vista científico, agregando novos indicadores com o objetivo de aprimorar o arcabouço analítico, contribuindo dessa forma para um entendimento holístico a respeito desse tipo de processo, que envolve todos Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 9 98 os setores de uma empresa de mídia em um esforço conjunto para a adequação à contemporaneidade do jornalismo. REFERÊNCIAS BARBOSA, S. Jornalismo convergente e continuum multimídia na quinta geração do jornalismo nas redes digitais. In: CANAVILHAS, J. (Org). Notícias e Mobilidade: O Jornalismo na Era dos Dispositivos Móveis. LabCom Books, 2013, p. 33-54. BULGACOV, S. Estudos comparativo e de caso de organizações de estratégias. Organizações e Sociedade, v. 5, n. 11, jan./abr. 1998. Disponível em: <https://bit.ly/2Kb9LGO>. Acesso em: 25 jul. 2018. CANAVILHAS, J. O novo ecossistema mediático. Biblioteca On-line de Ciências da Comunicação, 2010. Disponível em: <http://bit.ly/1N2z9iS>. Acesso em: 25 jul. 2018. CASTILHO, C. A terceira via na integração das redações. Observatório da Imprensa, v. 19, ed. 990, 30 abr. 2013. Disponível em: <http://observatoriodaimprensa.com.br/codigo-aberto/a-terceira-via-naintegracao-das-redacoes/>. Acesso em: 12 jun. 2018 FRANCISCATO, C. Inovações tecnológicas e transformações no jornalismo com as redes digitais. Geintec, v. 4, n. 4, p. 1329-1339, 2014. GONÇALVES, J. Reorganização de redações no Brasil: análise dos processos de produção do Estadão e do HuffPost. São Paulo: ESPM, 2018. JENKINS, H. Cultura da Convergência. São Paulo: Aleph, 2008. MOURA, C. P.; LOPES, M. I. V. (Orgs.). Pesquisa em comunicação: metodologias e práticas acadêmicas. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2016. O GLOBO. O Globo, Extra e Expresso se integram em uma redação multimídia. Rio de Janeiro: 29 jan. 2017. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/o-globo-extra-expresso-se-integram-emuma-redacao-multimidia-20840004#ixzz5I97wOoVB>. Acesso em: 16 jul. 2018. SALAVERRÍA, R.; GARCÍA AVILÉS, J. A.; MASIP, P. Concepto de convergência periodística. In: X. López García y X. Pereira (Ed.), Convergencia Digital. Reconfiguración de los medios de comunicación en España. Santiago, Universidad de Santiago, Servicio de Publicaciones, 2010, pp. 4164. SALAVERRÍA, R.; NEGREDO, S. Periodismo Integrado - Convergencia de medios y reorganización de redacciones. Barcelona: Editorial Sol90, 2008. Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 9 99 CAPÍTULO 10 SOBRE AS CAPAS: NOTÍCIAS E PRODUTOS À VENDA NA PRIMEIRA PÁGINA Karenine Miracelly Rocha da Cunha Centro de Estudos de Pessoal e Forte Duque de Caxias (CEP/FDC) Rio de Janeiro - RJ Esta pesquisa faz uma crítica à introdução de publicidade nas capas de jornais e revistas. Para tanto, são criadas três categorias de análise: 1) sobrecapas compostas por anúncio que encobre a capa totalmente; 2) sobrecapas parciais, compostas por anúncios que encobrem a metade esquerda das capas; 3) capa mimética com informe publicitário que copia o projeto gráfico do jornal. Dentro de um corpus de análise, são classificadas capas de jornais e revistas nessas três categorias e, a partir dessa classificação, tecida uma análise interpretativa que aponta crítica nessa relação entre jornalismo e publicidade. Como resultado, destaca-se a necessidade de se pensar formas de utilizar a publicidade nas capas sem prejudicar a atenção do leitor e o percurso da leitura, ressaltando o valor da independência financeira do jornalismo. PALAVRAS-CHAVE: jornalismo impresso; publicidade; capa; independência; consumo. RESUMO: PRODUCTS FOR SALE AT FIRST PAGE ABSTRACT: This research criticizes the introduction of advertising on the covers of newspapers and magazines. To do so, three categories of analysis are created: 1) overlays composed by advertisement that completely covers the cover; 2) partial overlays, consisting of advertisements that cover the left half of the covers; 3) mimetic layer with publicity report that copies graphic newspaper design. Within a corpus of analysis, newspaper and magazine covers are classified in these three categories and, from this classification, an interpretative analysis is woven that points critically at this relationship between journalism and advertising. As a result, the need to think of ways to use the advertising on the covers is emphasized without undermining the reader’s attention and the reading course, emphasizing the value of the financial independence of journalism KEYWORDS: printed journalism; publicity; cover; independence; consumption. 1 | INTRODUÇÃO Capas de jornais e revistas constituem o primeiro contato desses meios de comunicação com o leitor. Não é demais dizer que é a primeira ABOUT THE COVERS:NEWS AND impressão que o leitor tem da mídia impressa e a primeira leitura que faz, servindo como um Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 10 100 atrativo ou até mesmo um menu de informações, com as principais notícias daquela edição dispostas em chamadas, fotos, títulos, legendas e manchete. O presente trabalho faz uma reflexão de situações em que a publicidade toma conta das capas, espaço privilegiado e nobre, em detrimento ao que, em tese, deveria ser o produto a ser comercializado pelo jornalismo impresso: a notícia. Esta pesquisa atualiza e complementa trabalho publicado (CUNHA, 2007), em que o objeto de estudo eram capas de jornais e a função de atrair os leitores, incluindo assinantes ou consumidores de banca, utilizando, para isso, várias estratégias criativas. De espaço nobre, onde se destacam as notícias mais importantes da edição, as capas desta pesquisa mostram uma relação entre jornalismo e publicidade nem sempre favorável ao primeiro. A partir disso, são feitos apontamentos críticos sobre a relação entre Redação e setor Comercial nos veículos impressos, bem como a dependência do jornalismo de fontes de renda que não sejam a publicidade convencional, materializada em anúncios, e as receitas com assinaturas ou vendas em banca. O corpus da pesquisa é composto por edições dos jornais Folha de S. Paulo e O Globo e das revistas Boa Forma e Saúde. São edições publicadas entre 2016 e 2018. O corpus foi composto durante o estudo, a partir de acompanhamento de publicações impressas que apresentavam estratégias publicitárias nas capas condizentes com o problema de pesquisa aqui exposto. A metodologia utilizada é a análise de conteúdo. A partir da fundamentação teórica pertinente ao estudo, montou-se três categorias para classificação do fenômeno observado nas edições, sobre as quais é feita uma análise descritiva e interpretativa. 2 | CAPAS: DA EDITORAÇÃO À FUNÇÃO SENSACIONALISTA Capas são elementos impressos que compõem jornais, revistas, livros, discos etc. Nos produtos jornalísticos, as capas têm mais que a função de embalagem, porque são consideradas partes noticiosas dos mesmos, com alto grau de nobreza: a primeira página de um jornal é a mais importante em qualquer edição, o que confere peso editorial às notícias nela presentes. Da mesma forma, a capa de uma revista é o espaço, por excelência, que apresenta o assunto mais importante da semana, no caso de revistas semanais de informação; ou uma mulher de destaque, como ocorre nas revistas femininas; ou um alimento, nas revistas do segmento saúde. Portanto, matéria de primeira página, no caso dos jornais, ou capa de revista, significa um peso maior na importância da notícia dentre os vários assuntos abordados na edição. Assim, as capas de jornais e revistas reservam espaço para o cabeçalho com o nome do veículo e títulos e chamadas redigidos em letras garrafais justamente para conferir destaque aos assuntos ali tratados (NEIVA, 2013). Ainda que definam o termo dentro da editoração e das artes gráficas, Rabaça e Barbosa (2001) destacam essa função mais nobre da capa de jornal e revista, ao indicar que ela Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 10 101 […] propicia o primeiro contato visual do consumidor com o produto, motivo pelo qual é promocionalmente utilizada para atrair a atenção sobre o produto, informando sobre seu conteúdo e distinguindo-o dos demais nas estantes e prateleiras. A capa assume, inclusive, função de display ou cartazete, por si mesma, e tem todos os compromissos inerentes a essas peças promocionais. (RABAÇA; BARBOSA, 2001, p. 103). Neiva (2013) explica que a capa em revistas e livros exige um material mais encorpado e rijo que o miolo justamente para protegê-lo e manter as folhas que o compõem juntas. Em livros, há inclusive a orelha, a extremidade lateral da capa ou sobrecapa que se dobra para dentro da mesma. Sobrecapas, aliás, têm por função envolver e proteger as capas de livros e, por isso, são conhecidas no meio editorial pelo jargão de jaquetas. Para Rabaça e Barbosa (2001, p. 687), a sobrecapa é a cobertura de papel móvel, em mesmo formato do livro, que funciona como elemento publicitário ao divulgar um “apelo visual”. Em relação aos livros, Rabaça e Barbosa (2001, p. 611) lembram que a quarta capa, que é a traseira, é “utilizada para fins publicitários ou institucionais”. Os autores chamam de contracapa cada um dos lados internos da capa de livros ou revistas, que também podem ser denominados de terceira e quarta capas. No entanto, eles ressaltam ser errôneo o emprego do termo para designar a quarta capa. Para além da função editorial, a capa é o primeiro contato do leitor com revistas e jornais. Ainda que a leitura dos mesmos, em tese, já esteja garantida para o leitor assinante, é importante lembrar que ele pode se interessar mais ou menos pela leitura dependendo do que for destacado na capa. Ali (2009) resume bem a função de uma capa de revista para o leitor que a compra em banca: “Uma revista tem cinco segundos para atrair a atenção do leitor na banca. Nessa fração de tempo, a capa tem de transmitir a identidade, o conteúdo da publicação, deter o leitor, levá-lo a pegar o exemplar, abri-lo e comprá-lo.” (ALI, 2009, p. 67). 3 | JORNALISMO, PUBLICIDADE E INDEPENDÊNCIA FINANCEIRA A Teoria Organizacional, de acordo com Pena (2005), explica que os meios de comunicação estabelecem a cadeia de trabalho como uma organização e que isso influencia os resultados, ou seja, as notícias e a forma como elas são apresentadas ao público. Também indica que a forma como um jornal ou revista elabora seu organograma vai definir a postura editorial do mesmo. Um jornal que demonstre mais importância ao setor comercial em detrimento da Redação pode, inevitavelmente, submeter o valornotícia à dependência financeira de setores da sociedade que sejam anunciantes. Pena é categórico ao afirmar a existência dessa dependência: o jornalismo é um negócio. E, como tal, busca o lucro. Por isso, a organização está fundamentalmente voltada para o balanço contábil. As receitas devem superar as despesas. [...]. Então, qual será o setor mais importante da empresa jornalística? Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 10 102 Fácil: é o comercial [...] responsável pela captação de anúncios para sustentar o jornal. E eles interferem diretamente na produção de notícias. (PENA, 2005, p. 135-6) Essa submissão do jornalismo aos valores da publicidade também é criticada por Kunczik (2001, p. 83): “Onde existe a concorrência do capital, a única coisa que tem importância na produção de notícias é a maximização do lucro.” Dines (2009, p. 124) lembra que é necessário haver um equilíbrio entre os interesses do capital, impostos pelo negócio empresarial, e o jornalismo, como “órgão de interesse público”. Porém, questiona: “como combinar o incombinável?” E logo responde: pode-se montar uma empresa economicamente lucrativa sob um jornal independente e vigoroso. [...] Graças, justamente, à sua independência e determinação é que o jornal se torna respeitado e influente.” (DINES, 2009, p. 126). [...] A pendência empresa versus imprensa existe apenas para quem não sabe valorizar o jornalismo. A empresa deve servir de base à instituição pública que é a atuação jornalística. Quanto mais benfeita, mais independente e influente, melhor servirá à empresa.” (DINES, 2009, p. 134) O que é “incombinável” na crítica de Dines (2009) deve ser compreendido como o capital do jornalismo ou da notícia, termos usados por Marcondes Filho (2009). O jornalismo, ou melhor, os meios de comunicação que produzem e veiculam jornalismo, são os comerciantes da informação e têm, de acordo com Marcondes Filho, dupla clientela: anunciantes e leitores. Ou seja, um jornal ou uma revista tem ao mesmo tempo um valor de uso e um valor de troca. Bahia (2009, p. 115) também critica essa dupla clientela: O jornal é uma mercadoria sui generis, pois é simultaneamente vendida a dois públicos diferentes: a empresa jornalística fabrica uma mercadoria chamada jornal e a vende a um público genérico de pessoas que o adquirem nas bancas ou por assinatura. Esse público torna-se, por sua vez, uma segunda mercadoria que a mesma empresa jornalística vende a outro cliente, o anunciante. Da mesma forma que Marcondes Filho faz, Bahia também associa notícia e mercadoria (2009, p. 210): Um jornal não é diferente do café solúvel, do sabão em pó ou da máquina de lavar pelo que contém de mercadoria. Mais perecível até do que frutas e legumes, reúne, no entanto, fins e valores ético-sociais – qualidade essencial, significação particular e mérito próprio que, às vezes, o conduzem à história. É justamente a dependência e a supressão da separação entre publicidade e jornalismo que reduz este último a uma atividade submetida ao capital. “[...] quando enfraquece a mercadoria ‘jornal’, a mercadoria ‘público’ enfraquece junto, prejudicando os negócios com o anunciante. Logo, a empresa precisa investir pesadamente na primeira mercadoria, pois é dela que a outra sobrevive” (BAHIA, 2009, p. 116) O estudioso (2009) reconhece que um veículo exclusivamente feito de notícias é incompatível com a sociedade do consumo. Por isso, além de notícias, jornais e revistas têm, obrigatoriamente, publicidade. “Publicidade e notícia participam de um veículo como partes vitais de um todo.” (BAHIA, 2009, p. 214). No entanto, o autor esclarece que isso não significa dependência do jornalismo à publicidade e essa última Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 10 103 precisa ser “suficiente para que, em nome de princípios éticos, por exemplo, a direção ou a redação resista a pressões ou simplesmente rejeite anunciantes.” Assim, é importante diferenciar a necessidade – a publicidade – do jornalismo – a prioridade. “[...] é a condição sem a qual o veículo não sobreviverá livremente, isto é, sem ter que submeter a sua opinião a qualquer poder econômico ou político” (BAHIA, 2009, p. 214). E vai além: “Eticamente, o meio é tão responsável pela publicidade quanto pela notícia” (p. 214). Também enfatiza que a associação entre publicidade e jornalismo não cria a permissão para que os anúncios possam ser apresentados como notícia, “o que configura uma fraude”, diz o autor (BAHIA, 2009, p. 214-215). Como uma empresa qualquer, um jornal ou uma revista precisam de receitas para se sustentar e lucro para justificar sua existência. Essa é a relação entre o jornalismo e a publicidade nesses meios de comunicação, pelo menos em tese. Há casos em que essas empresas submetem-se às regras de mercado de tal forma a vincular o jornalismo à publicidade, o que interfere desde a disposição das notícias e linha editorial, com interferências na organização e ganchos de pautas, apuração, escolha de fontes, vieses, enquadramentos e prática da imparcialidade. Nem sempre esse domínio da publicidade sobre o jornalismo é explícito, mas pode sê-lo e incomodar o leitor, prejudicar a apresentação do jornal e da revista ou até confundir a leitura. 4 | JORNALISMO E PUBLICIDADE NAS CAPAS (OU SOBRE ELAS) Marshall (2003) elencou 25 formas disfarçadas da publicidade no jornalismo, empregadas muitas vezes em nome da saúde financeira das empresas, para não dizer a busca incansável pelo lucro. Em um estudo crítico sobre a presença de anúncios nas capas na era da publicidade de Marshall, Coan (2012) refere-se ao discurso publijornalístico para nomear esse fenômeno. O autor destaca a diferença dessa prática e do merchandising editorial, que consiste na evocação intencional das marcas no espaço editorial, bem como a mimese descrita por Marshall, que é a publicidade paga, disfarçada, sem identificação que a mesma é um informe publicitário. Em 2011, um levantamento quantitativo de Singer (2011) identificou que, a cada três dias, um anúncio de automóvel, supermercado ou banco cobria total ou parcialmente a primeira página da Folha de S. Paulo, o jornal de maior circulação no Brasil atualmente. O estudo apontava uma mimese de anúncios, que imitavam os tipos gráficos, o projeto gráfico e a diagramação do jornal e questionava quais os limites de ação do departamento comercial sobre o jornalismo. Como conclusão, indicava que se a situação levava a empresa a lograr êxito financeiro, o leitor ficava no prejuízo, visto que os tais anúncios prejudicavam o manuseio e ludibriavam o leitor com a mimese estabelecida. Ou seja, a mesma crítica levantada por Coan (2012): a credibilidade do jornalismo posta à prova pela publicidade disfarçada ou audaciosa na primeira página. Em estudo mais recente do que chama “avanço da publicidade sobre o editorial Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 10 104 na área mais nobre dos jornais”, Rabinovici (2016, p. 48) ressalta que a questão atual não é mais discutir a mistura entre jornalismo e publicidade, diante da inexorável dependência do capital, mas qual a melhor forma de fazê-lo. “Sem dinheiro, não tem jornal. A regra agora é reunir jornalistas e publicitários na busca conjunta de produtos que rendam lucro” (RABINOVICI, 2016, p. 50). Para a presente pesquisa, são determinadas três categorias de publicidade nas capas de jornais ou revistas que prejudicam – ou pelo menos tumultuam - as finalidades das primeiras páginas: apresentação dos assuntos mais importantes da edição e a função estética e sensacionalista de atrair o leitor. São elas: 1) sobrecapas compostas por anúncio que encobre a capa totalmente; 2) sobrecapas parciais, compostas por anúncios que encobrem a metade esquerda das capas; 3) capa mimética com informe publicitário que copia o projeto gráfico do jornal. Além dessas categorias e antes de aprofundarmos as classificações do corpus, uma edição estudada foge à questão das capas, mas não a da subordinação do jornalismo à publicidade. Nesse caso, não é a capa que foi objeto de subversão, mas o formato do jornal Folha de S. Paulo (Figura 1). Figura 1: Folha de S. Paulo – 10 jul. 2017 Na edição de 10 de julho de 2017, o primeiro caderno do jornal foi diagramado em sete colunas, em detrimento das seis tradicionais. A sétima coluna à direita foi destinada à publicidade vertical de uma empresa aérea, que se estendeu da capa até a página 20, a última do caderno. O jornal tem uma largura de 31,75 centímetros, praticamente padrão entre os jornais do formato standard no Brasil, com altura de 56 centímetros – a largura da área impressa é de 29,7 centímetros. Na edição citada, a largura do papel usado é de 37 centímetros. Além da alteração da largura do papel e inserção da “coluna-publicidade” nas 20 páginas do caderno, a campanha da empresa aérea também usou o espaço da editoria de opinião, tradicional na página 2, e com o qual os leitores já estão acostumados. As notícias só começam de fato na página 6 do referido caderno, depois de muita publicidade. A julgar pelo posicionamento da Folha de S. Paulo (2018) sobre a publicidade, a Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 10 105 campanha não traria prejuízos editoriais: [A Folha] Acredita que uma publicidade livre e diversificada é essencial para manter a independência do jornalismo. Julga legítima a comercialização de conteúdos patrocinados, financiados por anunciantes ou parceiros, desde que a natureza publicitária do produto seja transparente para o leitor e não haja envolvimento da Redação na sua confecção. (FOLHA DE S. PAULO, 2018, p. 22) No entanto, dentre os princípios editoriais do jornal, o nono é justamente a independência editorial a partir da dependência financeira: Preservar o vigor financeiro da empresa como esteio da independência editorial e garantir que a produção jornalística tenha autonomia em relação a interesses de anunciantes; assegurar, na publicação, características que permitam discernir entre conteúdo jornalístico e publicitário (FOLHA DE S. PAULO, 2018, p. 14) As edições de setembro e outubro de 2016 da revista Boa Forma, e de setembro da revista Saúde, ambas publicações da editora Abril, apresentaram uma sobrecapa classificada na primeira categoria de análise deste estudo (Figuras 2a e 2b). No caso de Saúde, a sobrecapa envolve completamente a revista (incluindo a quarta capa). Figuras 2a e 2b: Sobrecapas nas revistas Boa Forma e Saúde Nas sobrecapas da revista Boa Forma, a cobertura extra é apenas na primeira página. A sobrecapa é feita com papel com gramatura e textura igual à da capa das revistas. O produto anunciado é o mesmo: uma marca de pães integrais. Como a lombada da revista Boa Forma é do tipo quadrada, a sobrecapa apresenta uma linha picotada para ser retirada. O mesmo recurso não aparece na sobrecapa da revista Saúde, cuja lombada é do tipo canoa, presa com grampos. Nas três edições, o que há de mais importante em uma capa de revista – o nome, associado à logotipia, a foto principal e as chamadas – ficam totalmente encobertas pela sobrecapa publicitária. Para ter acesso a esses elementos, o leitor precisa ou retirar a sobrecapa e exclui-la, ou lidar com ela, como se fosse a página zero das revistas. A mesma classificação recebe a sobrecapa que encobre a capa da edição de 22 de agosto de 2016 do jornal O Globo (Figuras 3a e 3b). Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 10 106 Figuras 3a e 3b: Sobrecapa e capa de O Globo 22 ago. 2016 Mais do que classificações ou levantamentos quantitativos de quantas edições desses veículos são tomadas pela sobrecapa, o objetivo deste trabalho é discutir os efeitos destes recursos na leitura e nível de subserviência do jornalismo à publicidade. Essa edição foi escolhida para compor o corpus deste trabalho justamente porque é a que noticiaria, nos veículos impressos, o encerramento dos Jogos Olímpicos de 2016. O Globo é o principal jornal do Rio de Janeiro e está entre os três periódicos de circulação nacional com maior tiragem e longevidade. Seria muito natural esperar por uma primeira página em que o encerramento dos jogos fosse a manchete e, acima de tudo, foto ou fotos de grande impacto plástico, visto que no dia anterior havia ocorrido a cerimônia de encerramento das competições. Os Jogos Olímpicos são o tema da publicidade da sobrecapa, de um banco que patrocinou o evento. Para ler a capa histórica, o leitor precisa retirar ou manusear a sobrecapa como se ela fosse a página zero, assim como nas revistas mencionadas anteriormente. As próximas classificações deste estudo entram na segunda categoria criada nesta pesquisa, ou seja, são edições dos jornais O Globo ou Folha de S. Paulo que possuem sobrecapas parciais, compostas por anúncios de redes de supermercados, papelarias, telefonia etc., que encobrem a metade esquerda de suas capas. Não há padrão para o verso da sobrecapa: em algumas edições estudadas, ela tem a largura do jornal; em outras, a terceira e quarta partes da sobrecapa têm a largura da metade da página, assim como a primeira e a segunda. A primeira capa classificada é a da Folha de S. Paulo, edição de 1º de setembro de 2016 (Figuras 4a e 4b): Figuras 4a e 4b: Cabeçalho da sobrecapa reproduz o da capa Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 10 107 Trata-se de uma capa histórica, pois é a edição que noticia o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, decidido no dia anterior por votação no Senado. Daí subtende-se a importância da manchete do dia e da foto principal, bem como de outros elementos dispostos em chamadas com títulos subordinados. A capa em questão é coberta por uma sobrecapa com anúncio de smartphone. No entanto, semelhante aos informes publicitários, o cabeçalho da sobrecapa reproduz o cabeçalho das capas da Folha de S. Paulo, com o logotipo do jornal e parte da data. As próximas três capas classificadas nesta categoria - edições de O Globo de 7 de agosto de 2016 e de 28 de agosto de 2016, e edição da Folha de S. Paulo de 24 de abril de 2016 - apresentaram uma diagramação que organizou a manchete e chamadas do lado direito da capa, fora da área de cobertura da sobrecapa (Figura 5). Por isso, mesmo com a sobrecapa, o leitor consegue visualizar manchete e outros elementos. É importante ressaltar que a edição da Folha, além de diagramar a manchete do lado direito, também usa o mesmo cabeçalho tradicional do jornal na sobrecapa, conforme já relatado no exemplo classificado anteriormente. Figura 5: Diagramação verticalizada da manchete ao lado da sobrecapa A diagramação verticalizada aponta uma saída para a relação conflituosa entre publicidade e jornalismo nas sobrecapas: permite organizar o menu de informações das chamadas de maneira mais racional, sem confundir o leitor, e possibilitar o acesso à manchete sem nem manusear a sobrecapa. Isso é importante para a exposição do jornal em banca, ou para o primeiro contato do leitor assinante com o jornal. Isso não ocorre nas quatro edições de O Globo analisadas a seguir: 6 de agosto de 2016, 21 de agosto de 2016, 1º de setembro de 2016 e 8 de abril de 2018. Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 10 108 Figura 6: Sobrecapa encobre elementos atrativos das capas As edições de 1º de setembro e de 8 de abril apresentam manchetes historicamente importantes para a política nacional: respectivamente, o anúncio do impeachment da ex-presidente Dilma e a prisão do ex-presidente Lula. No entanto, a sobrecapa encobre a parte esquerda das capas em questão e de suas respectivas manchetes, diagramadas em tipologia maior que a convencional. Perde-se, pelo menos em parte, o efeito de impacto das manchetes, redigidas bem objetivamente. As outras duas edições foram escolhidas por apresentarem fotos muito atraentes, característica essencial para o fotojornalismo de primeira página. A edição de 6 de agosto traz uma imagem da cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos, que ocupa toda a dobra de cima do jornal e metade da dobra debaixo. Mas a sobrecapa neutraliza o efeito estético sobre o leitor. Já a capa de 21 de agosto tem duas manchetes: uma na dobra de cima e outra na dobra debaixo. Manchete não costuma privilegiar esporte e sim as chamadas hard news, destacando política e economia. A manchete de cima enfatiza a medalha de ouro do futebol masculino, conquistada sobre a Alemanha, o algoz do Brasil na Copa do Mundo de 2014. A manchete debaixo é sobre política. A foto expressiva do craque Neymar, copiando a pose do atleta Usain Bolt, ocupa metade da página. Mas ninguém vê. A sobrecapa impede. A terceira e última categoria refere-se às capas miméticas, ou seja, aquelas cujos anúncios imitam o jornalismo no texto e na disposição das notícias. Figura 7: Capas miméticas Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 10 109 Nos três exemplos apresentados, há o destaque de que se trata de um informe publicitário. Na Folha de S. Paulo, este tipo de material, embora muito parecido com o jornalístico, não é de responsabilidade da redação, porque é produzido por um núcleo de negócios independente, especialista em conteúdo patrocinado, também conhecido como branded content ou publicidade nativa. Apesar da mimese, a Folha de S. Paulo afirma categoricamente que esse tipo de publicidade não interfere no jornalismo e que “Redação e o Comercial são autônomos, sem relação de subordinação.” (FOLHA DE S. PAULO, 2018, p. 34). Ao salientar a expressão “informe publicitário”, o jornal “deixa clara para o leitor essa condição”. (FOLHA DE S. PAULO, 2018, p. 35) Nas edições de 5 de outubro de 2017 e de 3 de dezembro de 2017, a Folha de S. Paulo apresenta o informe publicitário na capa mimética, que encobre a capa verdadeira das publicações. Diferentemente da sobrecapa, que envolve o caderno, a capa mimética é solta, com anúncio na frente e no verso e com diagramação e tipologia muito próximas da usada pelo jornal, inclusive com cópia praticamente total do cabeçalho que compõe a logotipia do periódico. A mimese da edição de 25 de março de 2018 do jornal O Globo só não é igual porque a capa falsa apresenta grifos e setas que destacam o texto em vermelho. Trata-se de anúncio publicitário da série televisiva O mecanismo, cujo tema é a corrupção política no Brasil. A capa falsa os elementos de corrupção do enredo da série na manchete e nas chamadas, tudo diagramado de forma mimética ao projeto gráfico usado pelo jornal O Globo diariamente. 5 | CONSIDERAÇÕES FINAIS A pesquisa mostra como é tênue a fronteira entre jornalismo e publicidade. Ao mesmo tempo que reconhecemos que é impossível a prática do jornalismo sem a intervenção da publicidade, enaltecemos que é importante pensar as melhores formas para isso ocorrer. É fato que uma empresa jornalística precisa da publicidade, muitas vezes como fonte de renda responsável por mais da metade dos custos de produção de um jornal – as outras fontes seriam o comércio de assinaturas e a venda avulsa em bancas. Também é notório que a dependência da publicidade não deve significar dependência editorial. “Acuado, o jornalismo em curvando-se ao sistema”, ressaltou Marshall (2003, p. 24), que diz que o jornalismo na era da publicidade fala a linguagem do capital. Falar a linguagem do capital deve significar receitas para manter a empresa, remunerar bem os jornalistas nela empregados, oferecer subsídios para a produção de notícia de qualidade para o leitor. Ao mesmo tempo, deve ser o sinal para a reflexão de como é possível ter espaço para a publicidade de uma forma mais inteligente. Exemplo que isso é possível é o investimento em uma diagramação verticalizada, em que a manchete continue em destaque nas edições que por ventura contem com sobrecapas que encobrem a metade esquerda das primeiras páginas. A mimese da Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 10 110 capa também apresenta riscos. Afinal, espaço tão nobre em uma mídia impressa como é o caso da primeira página precisa mesmo submeter-se ao capital? Em meio a essa relação por vezes conturbada entre jornalismo e publicidade nas capas de jornais e revistas, é importante pensar que o leitor pode abandonar o contrato fiduciário de leitura dessas mídias impressas, uma vez que a capa, onde a negociação para a leitura começa, não é visualizada em sua integridade. A pesquisa denota que o leitor perdeu espaço, atenção, mesmo que a Folha de S. Paulo diga que isso seja essencial: “O leitor é o principal interlocutor do jornalista e quem sustenta o jornal. Dispõe de tempo cada vez mais escasso e disputado por fontes informativas abundantes. Para assegurar sua fidelidade, é preciso oferecer conteúdo de qualidade, esforçar-se para que ele o receba e manter com ele comunicação atenciosa.” (FOLHA DE S. PAULO, 2018, p. 55). Será? REFERÊNCIAS ALI, Fátima. A arte de editar revistas. São Paulo: Cia Editora Nacional, 2009. BAHIA, Juarez. Jornal, história e técnica: as técnicas do jornalismo. v. 2. 5. ed. Rio de Janeiro: Mauad X, 2009. COAN, Emerson Ike. O jornalismo da Folha de S. Paulo na era da publicidade: a realização do discurso publijornalístico. Revista Eletrônica de Linguística. v. 6 n. 1 2012 p. 130-147. CUNHA, Karenine Miracelly Rocha da. Capas na mídia impressa: a primeira impressão é a que fica. CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 30., 2007, Santos/SP. Anais... São Paulo: Intercom, 2007. Disponível em: <http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2007/resumos/ R0787-1.pdf>. Acesso em: 6 abr. 2018. DINES, Alberto. O papel do jornal e a profissão de jornalista. 9. ed. rev. Atual. São Paulo: Summus, 2009. FOLHA DE S. PAULO. Manual da Redação. 21. ed. São Paulo: Publifolha, 2018. KUNCZIK, Michael. Conceitos de jornalismo Norte e Sul: Manual de comunicação. 2. ed. São Paulo: Edusp, 2001. MARCONDES FILHO, Ciro. O capital da notícia. In: ______. Ser jornalista: a língua como barbárie e a notícia como mercadoria. São Paulo: Paulus, 2009, p. 71-268. MARSHALL, Leandro. 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Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 10 112 CAPÍTULO 11 VISÕES MÍTICAS NA POÉTICA DE SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN E O EFEITO CASSANDRA EM DISCURSOS MIDIÁTICOS Gisele Centenaro Centro Universitário Senac São Paulo – SP RESUMO: Este artigo apresenta um estudo do divino mítico feminino na poesia lírica de Sophia de Mello Breyner Andresen e na poesia épica de Homero, induzindo reflexões sobre o caráter pedagógico dos mitos e sobre a cultura do sacrifício feminino da antiguidade clássica grega à contemporaneidade, concentrandose no mito de Cassandra e nos efeitos que ele exerce nas sociedades brasileira e norteamericana por meio de discursos midiáticos. Teorias de pensadores como Bakthin, Barthes, Cassirer, Campbell, Eliade, Jaeger e Harari fundamentaram o desenvolvimento deste trabalho científico, que, para além da literatura, identifica criticamente a construção e a desconstrução de mitos femininos no campo da política baseado em textos publicados em jornais e revistas sobre Dilma Rousseff e Hillary Clinton. Os resultados das análises temáticas, formais e estruturais dos discursos poéticos e midiáticos investigados sinalizam a importância de se intensificar os debates democráticos sobre conservadorismo e questões de gênero, bem como sobre a orientação masculina ainda fortemente enraizada nos sistemas educativos e de comunicação da sociedade brasileira do Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 século XXI. PALAVRAS-CHAVE: Sophia de Mello Breyner Andresen; Cassandra; Dilma Rousseff; Hillary Clinton; mitos femininos; discursos midiáticos. MYTHICAL VISIONS IN SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN LYRIC POETRY AND THE CASSANDRA EFFECT IN THE MEDIA DISCOURSES ABSTRACT: This paper presents a study of the feminine mythical divine in Sophia de Mello Breyner Andresen’s lyric poetry and in Homer’s epic poetry, inducing reflections about the pedagogical character of the myths and about the culture of female sacrifice from classical Greek antiquity to contemporaneity, focusing the myth of Cassandra and the effects that this myth exerts in Brazilian and American societies through media discourses. Theories of thinkers such as Bakthin, Barthes, Cassirer, Campbell, Eliade, Jaeger and Harari substantiated the development of this scientific work, which, in addition to literature, critically identifies the construction and the deconstruction of feminine myths in the field of politics based on texts published in newspapers and magazines about Dilma Rousseff and Hillary Clinton. The results of the thematic, formal and structural analyzes of the literary and media discourses investigated Capítulo 11 113 signaled the importance of intensifying democratic debates about conservatism and gender issues, as well as about the masculine orientation still strongly rooted in the education and communication systems of Brazilian society of the 21st century. KEYWORDS: Sophia de Mello Breyner Andresen; Cassandra; Dilma Rousseff; Hillary Clinton; feminine myths; media discourses. 1 | INTRODUÇÃO O tema de investigação e análise deste artigo concentra-se não somente na presença de mitos femininos na poesia épica de Homero e na poesia lírica de Sophia de Mello Breyner Andresen, mas também na forma de transposição de narrativas mitológicas para discursos midiáticos contemporâneos que tem a finalidade de influenciar comportamentos sociais pelo espelhamento entre indivíduos transformados em mitos na atualidade e figuras mitológicas da antiguidade clássica grega, em ambos os casos pela propagação de juízo de valor no que concerne a comportamentos exemplares e reprováveis. Para atingir esse objetivo, foram buscados, primeiramente, pressupostos teóricos sobre o conceito de intertextualidade sob enfoque de caráter didático-explícito, como posto na definição de Barthes reproduzida a seguir. Todo texto é um intertexto; outros textos estão presentes nele, em níveis variáveis, sob formas mais ou menos reconhecíveis. A intertextualidade é a maneira real de construção do texo. Entretanto, quando buscamos localizar e examinar mecanismos intertextuais de constituição do sentido da literatura, considerando determinadas fronteiras de linguagem no universo da cultura para estudar as relações entre diferentes linguagens e estilos literários, averiguamos que o termo intertextualidade pode limitar nossos procedimentos de análises (BARTHES apud BRAIT, 2006, pp. 163-164). Hutcheon propõe uma alternatia de enfoque mais abrangente para contrapor a limitação citada por Barthes, sugerindo o termo interdiscursividade como “mais preciso para as formas coletivas de discurso” (HUTCHEON, 1991, p. 169). Estudos de Hutcheon caminham em consonância às teorias de Bakhtin, para quem “a questão do interdiscursivo aparece sob o nome de dialogismo (FIORIN apud BRAIT, 2006, p. 164), sendo que “as relações dialógias tanto podem ser contratuais ou polêmicas, de aceitação ou de recusa, de concerto ou de desconcerto” (BAKHTIN apud FIORIN, 2016, p.28). Com esta fundamentação teórica sobre intertextualidade e dialogismo, passamos a refletir sobre o diálogo intertextual e dialógico estabelecido por Homero com a mitologia grega nos poemas épicos Ilíada e Odisseia, como veremos na primeira parte do desenvolvimento deste artigo. Repetimos o mesmo método de análise ao estudar, na sequência, o dialogismo como uma das formas composicionais da poetisa portuguesa Andresen e ao escrutinar o modo pela qual ela insere os discursos de outos em seus enunciados poéticos, assim como o fizemos também ao investigar Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 11 114 as estratégias adotadas pelos discursos midiáticos para inserirem, em entrelinhas de textos e em outros tipos de mensagens da imprensa (fotos, charges...), juízos de valor sobre as falas e o comportamento de indivíduos do gênero feminino que alçaram seu protagonismo histórico à condição de mitos contemporâneos, conforme apresentado na última parte do desenvolvimento deste trabalho. Para a análise da associação entre a visão de mundo de Homero e Andresen, os ritmos das narrativas mitológicas e da poesia épica e lírica e a trajetória do divino feminino como fio condutor da criação poética pelo fio condutor da linguagem até chegarmos no estudo semiológico e semiótico dos mitos nos discursos midiáticos, recorremos às definições de mito propostas por Barthes (2006), Cassirer (1972), Eliade (2016), Campbell (2015) e Harari (2017), as quais se complementam no desenvolvimento deste artigo. A presença das figuras míticas feminas nas obras poéticas analisadas tem conexões explícitas e implícitas com o amor que tenta vencer os antagonismos ao almejar a unidade espiritual, isto é, buscar a substituição do caos provocado por pulsões psicológicas desenfreadas dos seres humanos pela ordem resultante de uma síntese dinâmica de suas virtudes. A capacidade de aceitação das mulheres de amar pelas vias do sacifício ao se identificarem emocionalmente com os seres amados, mesmo quando essa devoção contenha em si a expressão da agressividade necessária para destruir inimigos (etéreos e carnais) dos seres amados e, ainda, conviver com a violência física e psicológica masculina, conforme apreendemos das narrativas mitológicas gregas e dos poemas estudados – com mais ênfase em Homero, cuja obra tem um caráter pedagógico de orientação masculina –, nos impulsionou também a investigar o conteúdo literário das obras propostas pela perspectiva de Barthes (2006), para quem “o mito é uma fala escolhida pela história [...] E essa fala é uma mensagem” (BARTHES, 2006, p.132). Uma mensagem que requer um suporte ou um veículo de comunicação para se propagar e até se fortalecer, como demonstramos em nossa análise sobre os discursos midiáticos contemporâneos, nos quais questões de gênero ainda não são levadas em consideração como instrumento de construção de conhecimento sobre a harmonia entre os seres humanos, muito pelo contrário, haja vista a predominância nesses meios da violência psicológica de orientação masculina, o que demonstra uma continuidade dos valores do patriarcalismo advindos de um passado conservador que tende a manter a mulher em posição de submissão aos homens, reafirmando em essência, ou seja, pelo fio condutor da linguagem, uma prática social instaurada pelas superestruturas nas infraestruturas de produção econômica e cultural – práxis que está presente na história da humanidade desde a Revolução Cognitiva dos Homo sapiens. Afirma Barthes: Neste mundo de essências, a própria mulher tem como essência o estar-ameaçada; por vezes pelos pais, mais frequentemente pelo homem; em qualquer dos casos, o casamento jurídico constitui a salvação, a solução da crise [...] (BARTHES, 2006, p. 75) Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 11 115 Uma “solução” impingida ao universo feminino pela práxis social de manutenção de aparências, a qual oculta conflitos em vez de tentar realmente solucioná-los, reprimindo a manifestação de ideias e a luta pela mudança de um statos quo, enquanto aumentam as taxas de feminicídio nas sociedades menos avançadas economicamente e se mantém as mulheres cerceadas de sua liberdade plena em boa parte do mundo oriental. 2 | DEUSES HOMÉRICOS, AS MULHERES E O BUTIM Na Grécia Antiga, o contar histórias e a difusão dos mitos compunham a essência da educação em associação com outras atividades disciplinares, como retórica, dança, religião, música, matemática, filosofia, geografia e ginástica, sob o conceito de paideia (de paidos, em grego, que significa criança, isto é, criação de meninos). O objetivo do sistema educativo dos gregos sob o conceito de paideia era a transmissão dos costumes de geração em geração, entretanto, é importante atentar para as considerações de Jaeger sobre o fundamento de suas práticas pedagógicas e didáticas: Os antigos estavam convencidos de que a educação e a cultura não constituem uma arte formal ou uma teoria abstrata, distintas da estrutura histórica objetiva da vida espiritual de uma nação; para eles, tais valores concretizavam-se na literatura, que é a expressão real de toda cultura superior. (JAEGER, 1995, pp. 1-2). Além de contarem histórias, entretendo receptores e sacralizando as histórias que contam, os mitos podem ser considerados sinônimo de sabedoria e recurso educacional. Vem dessa convergência de funções dos mitos a sua qualidade de patrimônio da humanidade, o que os torna eternamente presentes na história das civilizações, tanto em sua forma narrativa original quanto por meio de adaptações orais e escritas, intersecções ficcionais, reinterpretações, interposições, intertextualidade e dialogismo. Retornando à Grécia Antiga e considerando lícito afirmar que, sob o conceito da paideia, foi Homero o maior educador do povo grego em seu período clássico na opinião de Platão e de pensadores do mundo moderno, também podemos concluir que mito e poesia foram e são instrumentos pedagógicos de valor incomensurável quando o objetivo do sistema e dos planos educacionais de uma sociedade é a formação da cidadania sob o escopo da democracia alicerçada no conceito de justiça. Autor dos poemas épicos Ilíada e Odisseia, Homero tem sua biografia confundida com sua própria obra, em razão da falta de dados precisos sobre suas datas de nascimento e falecimento – supõem-se que ele tenha vivido por volta dos séculos VII e VIII antes de Cristo. Dentre outras produções artísticas de Homero, destacam-se a Ilíada e a Odisseia, as quais entrelaçam, em suas narrativas poéticas, as vidas dos deuses da mitologia grega com as vidas dos seres humanos mortais – pessoas comuns, vítimas, vilões e heróis. Assim, do encontro entre a tradição do passado representada por protagonistas e antagonistas da mitologia grega e o protagonismo histórico de Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 11 116 homens e mulheres gregos que enfrentam dissabores alusivos a acontecimentos supostamente reais, como a Guerra de Troia, os poemas épicos de Homero, além de celebrarem a glória, celebram o conhecimento, a sabedoria e induzem à formação de cidadãos. A transposição de narrativas míticas para o contexto da poesia épica nas obras de Homero compõe um universo literário que reatualiza a grandeza heróica e sagrada de figuras masculinas e femininas da mitologia grega com o empuxo de representar o transcendente, porém, não unicamente sob a perspectiva do tempo primordial ou dos deuses do Olimpo, haja vista que a história de caráter objetivo é também uma das colunas da narrativa poética que podemos acompanhar na Ilíada, pelo desvelar nas relações sociais e políticas na Guerra de Troia, assim como a história ficcional vivida por Ulisses em Odisseia tece redes com os papeis sociais desempenhados na vida real do tempo da narrativa sob a influência de personagens da mitologia. Deuses, seres humanos divinizados, entes sobrenaturais são personagens de poemas de Homero que podem ser identificados como metáforas da transcendência de um sujeito lírico que empreende trajetórias discursivas do presente dele para o passado, de lá retornando ao tempo da produção dos enunciados pela presentificação de episódios míticos buscados no panteão grego e pela adoção de uma forma estética que se consagrou como cânone literário. Para além das fronteiras da literatura, todavia, e sob o olhar orientado e orientador da paideia, o discurso poético de Homero nessas duas obras que aqui contemplamos tem finalidades que não se restringem ao entretenimento porque ele idealiza, sob princípios pedagógicos gregos, educar cidadãos, formar e manter conceitos sobre os mais diversos temas, unificar e fortalecer o mundo grego, mantendo os laços que o conecta com seu passado histórico e mitológico. Com essa amplitude, a transcendência do sujeiro lírico à qual nos referíamos anteriormente em relação aos seus pensamentos e emoções – os quais galgam pela poesia um limiar superior em contraposição à sua condição terrestre ao dialogar com deuses da mitologia grega, em espiral dialógica e polifônica – transcende novamente por outros caminhos e estágios, alcançando a transdisciplinaridade no tempo da antiguidade clássica e no tempo presente dos leitores atuais, pois ainda hoje suas obras, que servem de inspiração e modelo como canône literário, também dialogam com outros campos da cultura moderna, como por exemplo a filosofia do Direito. Em análise de Campbell (2015, pp. 179-196), a Ilíada é associada a um mundo de orientação masculina que abarca os povos indo-europeus, isto é, as figuras de deuses como Zeus e Apolo predominam ao lado das figuras masculinas de heróis gregos, tanto como protagonistas da ação da narrativa poética épica, quanto como possuidores da sabedoria divina e humana que se presta à condução social e religiosa do mundo grego. Recordando brevemente o cerne da narrativa, Helena, esposa do espartano Menelau, é raptada pelos troianos; Menelau e seu irmão Agamenon reúnem um exército de heróis, dentre eles Odisseu (Ulisses), e uma frota de navios para lutar Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 11 117 contra Troia, vencer Heitor e recuperar Helena; Odisseu, durante a batalha, será o autor de uma das mais conclamadas estratégias de guerra da história da humanidade pela construção e uso tático do indelével Cavalo de Troia, por meio do qual os gregos destroem Troia. Ao apontar o caráter de orientação masculina da narrativa épica Ilíada, Campbell ressalta o trecho de um diálogo entre Agamenon e seu irmão Menelau, conforme reproduzimos a seguir: De modo que Helena é raptada e Menelau vai até seu irmão Agamenon e diz: “Aquele troiano! Ele fugiu com a minha mulher!” E Agamenon responde: “Hummm! Isso não está certo. Temos de pegá-la de volta”. Essa resposta mostra a mulher como propriedade (CAMPBELL, 2015, p. 189). Helena é reduzida, portanto, à condição de butim, prisioneira tomada pelo inimigo que deve ser recuperada por meio de batalhas que configuram a guerra entre gregos e troianos. Mortal, sem poderes divinos e sem os “poderes” da masculinidade, Helena encarna, na narrativa, a personificação de um roubo ou de uma pilhagem, ou seja, mesmo sendo uma representante da nobreza, como personagem feminina Helena é coisificada. Não se vê em situação mais digna, na narrativa, Ifigênia, filha de Clitemnestra, esposa de Agamenon, que, a pedido dele mesmo, é morta em sacrifício à deusa Ártemis para que ela fizesse soprar ventos a favor da frota dos gregos a caminho da batalha com Troia. Embora morta em Ilíada, Ifigênia foi poupada, segundo a mitologia grega, pela deusa Ártemis no instante final do sacrifício e transformada em sacerdotisa do templo da deusa Diana. De qualquer modo, Ifigênia foi retirada do seu convívio social e, assim como Helena, é coisificada na narrativa, na qual, como a musa de Menelau, é tratada como butim em negociação entre os homens e a deusa Ártemis. Esses dois exemplos – Helena e Ifigênia –, dentre outros que poderíamos extrair da Ilíada, confirmam o direito patriarcal, concernente ao sistema patriarcal, que se contrapõe nessa narrativa épica às bases do sistema matriarcal que imperava entre os povos pagãos, denotando a preocupação do sistema paideia da Grécia Clássica em educar pelas vias contrárias do paganismo e do matriarcalismo. As mulheres são, de modo geral, na visão de Homero, mesmo quando incorporam em sua narrativa figuras da divindade, submissas à orientação de caráter masculino, servindo, tanto aos homens mortais como aos deuses, como elementos de ligação destes com as forças da natureza, terrestres e divinas, acentuadamente pelo capacidade de reprodução, ou seja, pelas habilidades maternas. O diálogo entre os gêneros, segundo nossa percepção, tanto na Ilíada, como na Odisseia, é preponderantemente tendencioso ao enaltecer a masculinidade de deuses e homens mortais. Mulheres mortais e deusas são, por princípios difundidos pelos valores gregos, coadjuvantes, sendo faceta de seus poderes sociais e divinos promover a conexão entre a força masculina, as forças divinas e as forças da natureza, mas não mais como a principal força criadora do universo conforme apreendemos da mitologia mais antiga na comparação com a mitologia revisitada por Homero em Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 11 118 suas criações. Campbell confirma nossas observações ao analisar o papel das deusas femininas na Odisseia, em que Penélope espera pelo retorno de Odisseu tecendo o dia inteiro a parte que lhe cabe de um butim dos poderes tomados por homens da Grande Deusa, o que leva a própria Penélope a ser transformada também em butim, enquanto desmancha durante a noite o que às custas de muito sacrifício feminino consegue produzir durante o dia para se defender de forças masculinas predadoras – o destino de orientação masculina grega lhe ordena que simplesmeste espere pelo seu heroi, seu homem-deus, para que ele a salve das crueldades do mundo. 2.1 Visões Míticas de Cassandra na Poesia de Andresen A transposição de narrativas míticas para contexto da poesia moderna portuguesa é temática recorrente na obra poética de Sophia de Mello Breyner Andresen. Os discursos mitopoéticos da poetisa compõem, assim como acontece nas obras de Homero, um universo literário que reatualiza a grandeza heróica e sagrada de figuras femininas e masculinas da antiguidade clássica grega com poder de representar o transcendente. Todavia, ao ressacralizar, pela poesia mítica, memórias importantes do consciente coletivo das civilizações, Andresen cria, pela linguagem poética, jogos de percepções objetivas e subjetivas que promovem o tecer de imagens e melodias expressadas, com intenso lirismo, sob ótica feminina, e singulariza a transposição de mitos para a poesia moderna portuguesa pelo espelhar da cultura de sacrifício feminino. Da natureza (mar, terra, água, flores, sol, lua...), a autora seleciona elementos para transitar entre o real e o mundo subjetivo da poesia, onde os significados dos signos que representam os objetos de seu foco lírico são moldados ou tonificados em graus diversos para servir de estrutura às suas composições que, em muitos momentos, além de reviver a mitologia grega, aludem reflexivamente à filosofia cristã, aos valores e aos amores portugueses (triunfos pela busca, as navegações, as amizades exemplares), havendo ainda espaço literário em suas obras para críticas sociais – na poesia e na prosa. O lirismo de Andresen também evoca o amor no sentido etérico, isto é, o amor como centro unificador que permite a reingração dos seres humanos com universos simbólicos da Unidade, do equilíbrio primordial, por meio dos discursos poéticos. O amor cultivado por diferentes formas de sublimação – como o amor glorioso dos clássicos, o ágape grego, o amor como princípio cosmogônico, o amor divino, o amor confessional, o amor sem ambição, o amor da renúncia ao império dos sentidos – é contraposto, em muitos dos seus poemas, às vontades e paixões humanas que iludem a razão. O poema Kassandra, da coletânea Dia do Mar, livro publicado em 1947, é uma das composições da poetisa que se destaca pela transposição para a era moderna da literatura de uma narrativa protagonizada por uma figura mítica do gênero feminino e pelo deus grego Apolo, “maestro” das musas do canto e da poesia, ele mesmo Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 11 119 considerado, em associação com o sol e a beleza da harmonia, o deus protetor e incentivador da música e da poesia. O título revela em si o tema mítico, mas há na obra de Andresen outras composições que remetem o leitor à antiguidade clássica grega sem anunciar denotativamente à identidade das personagens míticas revisitadas – em alguns casos, mesmo sem dar nomes de seres, entes e lugares, as “pistas” da autora são evidentes; em outros, os leitores têm de ser aprofundar na interpretação para estabelecer relações intertextuais com os episódios míticos reatualizados. Kassandra, em grego, é um nome formado pela união dos elementos kekasmai e kad, cuja tradução é “brilhar”, e aner, que significa “homem”, resultando no significado “a que brilha sobre os homens” ou “a que protege os homens”. Na mitologia grega, ela é filha de Príamo e Hécuba. Príamo foi aprisionado na infância, ainda com o nome de Podarces, juntamente com sua irmã Hesíone, durante a tomada de Troia pelo herói Héracles (Hércules), uma geração antes da Guerra de Troia. A menina Hesíone foi dada como esposa a Télamon, pelo amigo Hesíone. Nas núpcias, Hesíone pediu como presente o próprio irmão aprisionado, recebendo direitos sobre ele por compra, motivo pelo qual o menino, ao deixar de ser prisioneiro, passou a ser chamado Príamo, cujo significado é “o que foi vendido”. Ao se transformar num jovem guerreiro, Príamo conquistou o trono de Troia e teve muitos filhos com sua segunda esposa, Hécuba (famosa por seu poder de fecundidade), dentre eles Cassandra, Heitor, Páris, Heleno, Troilo. Na lista de Apolodoro (intitulada Biblioteca), que reúne, em grego, todas as narrativas da mitologia grega e cuja autoria é outorgada a Pseudo-Apolodoro, Príamo teve 47 filhos homens. Na Guerra de Troia, Príamo já era homem velho, por isso não mais combatia, e sim presidia os conselhos de guerreiros. Filha, portanto, de um grande rei, Cassandra costumava visitar templos com irmãos ainda pequena. Numa das vezes, ela foi esquecida pelos pais juntamente com seu irmão gêmeo Heleno no templo de Apolo Timbriano. As crianças passaram ali a noite, sendo encontradas, ao amanhecer, entre duas serpentes. A partir desse episódio, ambas as crianças desenvolveram o dom de ouvir as vozes dos deuses do Olimpo. Cassandra cresceu e transformou-se numa jovem bela, servidora de Apolo, atraindo os olhares do deus que por ela se enamorou. O dom de profetizar de Cassandra foi enriquecido por Apolo, que lhe ensinou os segredos da profecia e fez dela uma de suas pitonisas (sacerdotisas de Apolo, recolhidas ao templo, onde permaneciam isoladas e proferiam oráculos). Entretanto, assim como Dafne, conta o mito que Cassandra se recusou a ter relações sexuais com Apolo, motivo pelo qual ele a castigou, retirando-lhe o dom da persuasão, isto é, ninguém mais no mundo, após a ira concretizada do deus (ele cuspiu na boca dela), acreditaria nas suas profecias, ainda que elas dissessem a verdade. Desacreditada em tudo que dizia por ter se recusado ao amor de Apolo, Cassandra profetizou inutilmente, por exemplo, que o rapto de Helena traria destruição e morte a Troia; que os gregos invadiriam a cidade Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 11 120 dentro do cavalo de madeira (ela implorou ao pai, Príamo, que destruísse o cavalo que Troia ganhou de presente, porém, ele não lhe deu ouvidos); que Heitor, um de seus irmãos, morreria em combate. Ninguém confiou nos seus presságios, sendo Cassandra tratada como louca. Perseguida por Ájax de Lócris, que lutou contra Heitor e o venceu na Guerra de Troia, a virgem Cassandra foi capturada e violada por ele num templo enquanto se escondia atrás de uma estátua de Atena, a qual foi partida em pedaços. Na partilha do butim, fruto da batalha da guerra vencida, Cassandra foi dada de presente, por Ájax, a Agamenon, que a leva para Micenas. O destino, contudo, fez com que Agamenon fosse assassinado em Micenas por Egisto, amante de sua esposa, Clitemnestra. Assim, Cassandra acabou sendo levada por outro guerreiro, Zakíntio, para Cólquida, onde ele fundou uma nova cidade na companhia da sacerdotisa, missão que ele alegava ter recebido dos deuses (ambos teriam constituído a descendência de 30 novas gerações). De acordo com algumas narrativas, Cassandra teria sido morta em Troia ou Micenas. Presente na Biblioteca de Pseudo-Apolodoro, a tragédia de Cassandra decorrente do embate que travou com Apolo em defesa de sua castidade e pureza de sacerdotisa, cuja consequência foi o mergulho da sua mente em delírios proféticos – que, ao serem por ela proferidos como profecias, causavam repugnância nas pessoas, inclusive nas vítimas identificadas em suas vidências, como seu próprio pai, Príamo, e seu irmão Heitor –, exerceu e exerce grande fascínio sobre homens e mulheres das mais diversas culturas, sendo reatualizada literariamente por muitos autores. Cassandra está no Canto XXIII da Ilíada, de Homero; na peça de teatro Trólio e Cressida, escrita por Shakespeare; no Auto da Sibila Cassandra, do poeta português Gil Vicente; nos Triunfos, de Francesco Petrarca; na novela Kassandra, da alemã Christa Wolf, de 1983; no filme para cinema Cassandra’s Dream, escrito e dirigido por Woody Allen, com exibição em circuito nacional em 2007; em peças de teatro, como a encenada pelo Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, com Claudia Schapira, em 2016, em São Paulo. Em cada uma das obras citadas, determinados aspectos do mito são focados com mais ou menos relevância, de acordo com a proposta de intertextualidade do autor. Gil Vicente, por exemplo, estabelece uma relação de paródia com o mito pela função de ironia em harmonia com os traços da comédia de comportamento exemplar que compôs. Em Trólio e Cressida, Cassandra previne aos troianos, sem ser ouvida, sobre os ataques vitoriosos dos gregos; em Petrarca, também fala a voz da vidente desacreditada; na novela alemã, o mito é tema para um discurso crítico sobre relações de patriarcado e submissão feminina; em Woody Allen, a transposição do mito fundamenta uma crítica social alusiva aos comportamentos humanos que se excedem moralmente em razão da ambição desmedida, aos sacrifícios impingidos pelos mais poderosos aos mais frágeis, ao abandono dos valores éticos que deveriam reger o convívio social. Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 11 121 Na transposição do mito de Cassandra feita por Andresen, o passado literário ressurge como a Idade de Ouro que pode ser recuperada pela poesia, a qualquer tempo. No instante poético recriado pela poetisa, a forma clássica petrarquiana é também recuperada, tendo a função de expressar harmonia entre forma e conteúdo do soneto – coerência formal e temática. O poema Kassandra tem a forma de composição clássica do soneto chamado petrarquiano ou soneto italiano, cuja criação primeira é creditada ao poeta italiano Francesco Petrarca (1304-1374), autor de Il Canzioniere (O Cancioneiro), também considerado pai do Humanismo, portanto, um dos inspiradores da Renascença. Ele é composto de rimas perfeitas, com 14 versos decassílabos heróicos e enunciados que refletem a individualidade dos sujeitos líricos e seus elos com enunciados de outros sujeitos por meio da apropriação do mito de Cassandra. O destinatário não é um interlocutor direto do diálogo, selecionado com exclusividade, mas sim toda uma coletividade apreciadora de poesia. Todavia, as funções da comunicação discursiva do soneto podem ser avaliadas em seus elementos estilísticos, temáticos e composicionais, o que significa que há um raciocínio intelectual estratégico em sua composição que compreende uma série de saberes, dentre eles um profundo conhecimento da língua portuguesa; os conceitos de composição da poesia clássica; a origem, a história e as reatualizações do mito grego de Cassandra; conhecimentos sobre a cultura de sacrifício feminino. Embora os enunciadores do soneto não tenham eleito um determinado perfil de leitor como destinatário, as funções da comunicação discursiva demonstram que a leitura do soneto possui diferentes graus de compreensão, dependendo da bagagem cultural do leitor e de suas condições de compartilhamento dos saberes interrelacionados pelos enunciadores (ou sujeitos líricos) em sua expressão poética. Também induzem a uma experiência de leitura em nível emocional, centrada no Amor idealizado e impossível, simbolizado por um mito de princípios cosmogônicos que incita a compaixão por uma mulher devota que se sacrifica em nome da castidade – seja por intuito religioso, seja por crença na predestinação ao serviço humanitário –, concedendo proteção aos seres mais frágeis, assim como induzindo ao comportamento exemplar em meio a relações sociais e até no universo das concepções artísticas (pintura, teatro, poesia, prosa, música etc). Reproduzimos, a seguir, a segunda estrofe do soneto. Ó dia de oiro sobre as coisas quentes, Os rostos tinham almas que mudavam, E as aves estrangeiras trespassavam As minhas mãos abertas e presentes. (ANDRESEN, 2015, p. 159) O mito de Cassandra conta uma história sagrada, um acontecimento ocorrido Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 11 122 no tempo primordial, protagonizado por uma figura feminina humana e um deus do gênero masculino. Cassandra, devotada a Apolo, já vivia em sacrifício (virgem adoradora do deus), porém, por veleidade, o deus do canto e da poesia torna o sacrifício dela ainda mais intenso, fazendo-a desacreditada. Em todas as reatualizações do mito há uma transposição da narrativa para um novo contexto, nas quais identifica-se a prática literária da intertextualidade e, em alguns casos, a prática da interdiscursividade, visto que temos, em alguns casos, a transposição do mito para gêneros discursivos diferentes, como o cinema e o teatro. Na transposição do mito de Cassandra feita por Andresen, o passado literário ressurge, conforme já explicitado, como a Idade de Ouro recuperada pela poesia, a qualquer tempo, sob a forma clássica petrarquiana. Ao transpor o mito de Cassandra do illo tempore para o tempo da poesia, a autora do soneto, além de retornar ao passado por meio da apropriação do mito, também mescla presente e passado nas estrofes ao introjetar, uma na outra, vozes de dois sujeitos líricos manifestados em primeira pessoa. O sacrifício feminino de Cassandra – ter visões, profetizar e não ser acreditada, o que a exclui do viver em harmonia com outros seres (deuses e humanos) – desumaniza sua condição de vida terrena, mas sacraliza sua existência mítica por meio da oralidade, cuja essência verdadeira, no caso dela, é invisível aos homens e mulheres in illo tempore. Mas a descrença em suas profecias não torna sua existência mítica desimportante, muito pelo contrário, pois quem atenta para a lição exemplar contida no mito compreende que: um “deus” pode agir por veleidade, sacrificando um ser humano; há profecias que se realizam, mesmo que mulheres e homens não tenham fé nas palavras do profeta ou da profetisa. Cassandra está viva no mito e, segundo sugere a poesia de Andresen, também está viva como musa poética, ganhando voz de sujeiro lírico em primeira pessoa no soneto. Mas, a Cassandra do poema de Andresen, desprendida da orientação masculina da paideia grega, tem consciência da coisificação à qual foi submetida no tempo primordial da mitologia grega, assim como na reatualização do mito sob a visão homérica, propondo subliminarmente aos leitores/ouvintes do poema que juntamente com ela reflitam sobre a sua condição e o confronto do diálogo entre gêneros, no qual prevalecem os direitos do patriarcalismo. Verifica-se, portanto, que o soneto revela um sujeito lírico (talvez alterego da autora) que também faz uma autoreflexão sobre o percurso histórico, literário poético e estilístico que realiza ao revisitar o passado mítico e o passado clássico da poesia, em busca de inspiração (temas e formas) para expressar sentimentos experimentados no seu tempo presente, a década de 1940. Em síntese, a permanência no soneto do rigor estético e da submissão da sacerdotisa e musa Cassandra ao deus da poesia, Apolo, nos leva a concluir que o sacrifício feminino, sob a visão de mundo de Andresen, não tem fim, sejam quais forem o tempo, linear ou mitológico, e o contexto histórico. Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 11 123 2.2 Do Mito ao Ponto de Mutação A civilização humana tem feito fantásticos progressos científicos, embora nem sempre um sistema educativo tenha tido (ou tenha) como meta principal combater a ignorância, construindo e compartilhando conhecimentos, mas sim manter o status quo de grupos que compõem uma determinada sociedade em determinado tempo e espaço, confirmando a centralização de poderes conquistada pelo modo de produção dominante a ela inerente. Harari (2017, p. 257) relata que aproximadamente 500 milhões de Homo sapiens habitavam o mundo por volta de 1500 e, hoje, a população da Terra é estimada em 7 bilhões, dentre os quais cerca de 3,3 bilhões têm acesso à internet, segundo estatísticas da International Telecommunications Union, agência da ONU especializada em tecnologias de informação e comunicação (ITU, 2017). Apesar das terríveis desigualdades sociais que assolam todos os continentes do planeta e da fome que ainda nos assombra, a máxima “conhecimento é poder”, cunhada por Francis Bacon em 1620 (HARARI, 2017, p. 270), é praticamente unanimidade nos dias de hoje – com ou sem ética, infelizmente. Na ânsia pela conquista de poder, os Sapiens da atualidade anseiam mais do que nunca pelo conhecimento, buscando ter acesso a ele pelos mais diversos canais de comunicação, a ponto de muitos de nós repersonificarmos Homero pela pedagogia da paideia quando nos vemos admiradamente inclusos nos quadros de renomadas instituições de ensino públicas e privadas (inclusive as corporativas), nacionais e internacionais. Todavia, confundir informação com conhecimento é similar a confundir entidades imaginárias (deuses, nações e corporações) com entidades reais, empregando aqui os conceitos de Harari, 2016) sobre as redes de troca de informações, construções de conhecimento e cooperação humana. Ao se examinar a história de qualquer rede humana, é recomendável parar de vez em quando e olhar as coisas da perspectiva de alguma entidade real. Como se sabe se uma entidade é real? Muito simples – apenas pergunte a si mesmo: “Ela é capaz de sofrer?”. Quando pessoas derrubam e incendeiam o templo de Zeus, Zeus não sofre. Quando o euro se desvaloriza, o euro não sofre. [...] Quando um camponês faminto não tem o que comer, ele sofre (Harari, 2017, p. 184). Imaginar e realizar não são atividades humanas necessariamente antagônicas e representantes, respectivamente, do mal e do bem. Não se trata disso. Trata-se de questionar como, quando, onde, por quem e por quê mitos são construídos e destruídos, seja por meio da informação disponibilizada, da ficcção ofertada ou do processo de ensino-aprendizagem que, pressupomos, tem a missão de construir conhecimento. “Por exemplo, a crença em mitos nacionais e religiosos pode provocar a eclosão de uma guerra na qual milhões de pessoas perderão suas casas, seus membros e até suas vidas”, salienta Harari (2016, p. 184). Os sapiens avessos às chamadas “teorias conspiratórias” ou que duvidam da capacidade manipulatória atribuída a grupos e instituições (entidades ora reais, ora imaginárias) de exercer influência sobre as comunidades, costumam afirmar categoricamente “eu não acredito Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 11 124 em mitos”, independentemente da qualidade do conhecimento que possuem sobre a criação e a existência dos mitos desde a história antiga da humanidade até os dias de hoje. Por outro lado, estudiosos do assunto afirmam que o mito está presente no nosso dia a dia, sim, também no século XXI. A mitologia está presente na existência cotidiana, no dia a dia. Muitas vezes, por falta de conhecimento, de tempo ou mesmo de interesse, o fenômeno passa despercebido. [...] O pensamento mítico faz parte do patrimônio da humanidade e frequenta a vida mental, espiritual e comportamental de cada indivíduo, grupo social ou povo, somando-se a outas tentativas humanas, racionais e não racionais, de compreensão do mundo, da realidade, da vida (LAGE NETO, 2010, p. 29). Cinema, televisão, internet, livros, jornais, revistas... meios de comunicação são, de modo geral, veículos usados para construção, propagação, manutenção e destruição de mitos, fundamentalmente nas sociedades das civilizações ocidentais. Mitos que reencarnam o ânimus das divindades da mitologia greco-romana em heróis da ficção pós-moderna, como o Super Homem e a Mulher Maravilha, por exemplo; e mitos que incorporam o ânimus divino greco-romano não como entidades imaginárias, mas sim como entidades reais que personificam formas mitológicas graças aos feitos que os fazem ser reconhecidos globalmente, com sentido positivo ou negativo, como, respectivamente, Mahatma Gandhi e Hitler. “A sociedade de hoje ainda se espelha em herois”, sintetiza Lage Neto (2010, p.36). Herois que, dependendo do grau de informação adquirida e da qualidade do conhecimento construído pelos Sapiens do século XXI, podem ganhar espaço midiático em nível mundial ao serem eleitos à fama pelo número de acessos aos seus vídeos no YouTube; eleitos pelo status de celebridade efêmeras por determinado período de cativação; eleitos pelo desempenho acima da média – invejado – em determinadas atividades e campos culturais, como o esporte e a música; eleitos pela esperança que inspiram naqueles que com eles comugam ideais de transformações sociais em benefício dos seus próprios eleitores e da sociedade como um todo. Discursos midiáticos atuais, em todos os meios de comunicação, estão impregnados de enunciados elaborados sob estética similar dos contadores de histórias mitológicas, buscando empatia e terreno fértil para germinar nos seus receptores a imitação de comportamentos propagados como exemplares – são as falas carregadas de poder de influência mitológico de caráter hegemônico, em consonância com dimensões da cultura político-intelectual contemporâneas. Saïd, ao discorrer sobre o Oriente como uma invenção do Ocidente, ressalta: Em qualquer sociedade não-totalitária, certas formas culturais predominam sobre outras, do mesmo modo que certas ideias são mais influentes que outras; a forma dessa liderança cultural é o que Gramsci identificou como hegemonia, um conceito indispensável para qualquer entendimento no Ocidente industrial (SAÏD, pp 18-19). Entendemos que, sob a difusão de uma consciência geopolítica e de uma série de interesses de fundo sociológico, cultural e econômico, há uma hegemonia vigente em discursos midiáticos dos continentes americanos dos tempos atuais no que Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 11 125 concerne à orientação masculina com o intuito de sacralizar comportamentos femininos considerados exemplares e, simultaneamente, endemonizar comportamentos femininos considerados indesejados – práticas discursivas estas que podem assumir (oralmente, visualmente e por escrito) as formas de narrativas ficcionais (novelas televisivas, filmes de cinema, vídeos de internet, livros de romances, contos, propaganda etc) e de não ficção (reportagens jornalísticas, editoriais, crônicas, artigos, biografias, propaganda testemunhal etc.), cabendo muitas vezes aos textos de não ficção, além da função de informar sobre fatos dados como verídicos e historicamente relevantes sob perspectivas local ou global para serem amplamente divulgados, a função de os analisar, mas sob qual prisma? Nas Américas, citando somente alguns expoentes literários com poder de influência sobre nós que abordaram o tema, quando refletimos sobre o gênero feminino cultural, educativa, social e economicamente ainda somos homéricos, shakespearinos, andresenianos, woodyallenianos...? Afunilando a questão, se espelharmos a superestrutura ocidental atual com a superestrutura da Grécia clássica, como definiríamos a orientação dos nossos sistemas educativos, culturais e de comunicação nos dias de hoje com a relação à questão dos gêneros também enfocada na mitologia clássica? Permanecemos sob orientação masculina, caminhamos 360º para a orientação feminina, estamos desorientados, em ponto de mutação ou em ponto de equilíbrio? Em razão de inúmeros fatores influenciadores, como modos de produção socioecômicos, costumes religiosos e produções culturais das intelligentsias dominantes, as respostas para essas perguntas não são exatas, isto é, não configuram um padrão que possa retratar com fidelidade a realidade, pois há graus de diferenciação pela análise do tema de acordo com o contexto social observado, não somente quando o foco de investigação diverge geograficamente, entre, por exemplo, New York (EUA) e Alexânia, cidade do entorno do Distrito Federal em Goiás (Brasil), mas também quando o foco de observação concentra-se em grupos comunitários que, embora pertencentes a uma mesma sociedade geopolítica, possuem características distintas decorrentes do acesso à educação formal, aos meios de comunicação, aos bens de consumo, à diversidade cultural etc. De qualquer modo, da coisificação e mitificação da atriz Marilyn Monroe, insufladas por Hollywood (EUA) e transformada em butim na esfera política pelos irmãos Kennedy, morta em 1962, e da coisificação e mitificação da socialite brasileira Angela Diniz, assassinada por Doca Street, em 1976, no Rio de Janeiro (Brasil), passando pelo mito “a mulher de Ipanema” vivido em sua jornada pela quebra de tabus pela atriz Leila Diniz, morta em 1972, chegamos a novembro de 1917 acompanhando relatos nas mídias do assassinato da adolescente Raphaella Novinski (RESENDE, 2017), de 16 anos, no Colégio Estadual 13 de Maio, em Alexânia (Goiás, Brasil), cometido pelo maior de 19 anos Misael Olair, que, assim como Apolo, odiava esta pequena Cassandra, simplesmente por ter sido rejeitado por ela amorosa e sexualmente. Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 11 126 É um estudo doloroso, delicado e de desmistificação, como podemos concluir, inclusive porque as respostas das perguntas feitas anteriormente têm como ponto de partida as relações de troca de informações e construção de conhecimentos que se estabelecem entre os diversos meios de comunicação disponíveis ao público e os diversos canais que lhe facultam acesso à educação formal, não formal e informal, dentre eles as escolas, as universidades, as instituições de cursos livres, os museus, as ONGs etc. Comparando, se a paideia no classicismo grego previa o encontro entre mitologia e as diversas disciplinas do conhecimento para promover a educação dos cidadãos, atualmente, a sociedade ocidental prevê em seus sistemas educativos o encontro, bem como o confronto, entre os meios de comunicação (com todos os mitos em construção e desconstrução que fazem parte de seus discursos) e as instituições de ensino formais e não formais para, pedagogicamente, fomentar a cidadania e preparar cidadãos para o mundo em constante transformação que, mais do que nunca, requer análises críticas. Essse estudo nos impulsionou também a incursões sobre mitos femininos em processo de construção e desconstrução no campo político, tomando como exemplos a ex-presidente do Brasil Dilma Rousseff e a ex-candidata à Presidência dos EUA Hillary Clinton. Para esta investigação, recorremos à Hemeroteca da Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, onde consultamos os jornais O Estado de S.Paulo, O Globo e Folha de S Paulo, de janeiro de 2010 a julho de 2017, incluso neles notícias e artigos traduzidos de publicações internacionais como o jornal estadunidense The New York Times, a revista estadunidense Time, o jornal estadunidense Washington Post, o jornal inglês Financial Times e a revista inglesa The Economist, mais as revistas brasileiras Carta Capital, Veja, Claudia e Marie Claire, de janeiro de 2014 a julho de 2017. Antes, porém, de continuarmos a discorrer sobre a presença do efeito Cassandra pela ridicularização de falas e comportamentos de mitos femininos em discursos midiáticos, reflitamos sobre o conceito de mito como sistema semiológico (Barthes, 2006), ampliando a definição de Eliade (2000) com a qual trabalhamos nas análises das obras poéticas de Homero e Andresen. Eis a proposição de Barthes para o final da década de 1950: O que é um mito hoje? [...] o mito é uma fala. [...]São necessárias condições especiais para que a linguagem se transforme em mito [...] Mas o que se deve estabelecer solidamente desde o início é que o mito é um sistema de comunicação, é uma mensagem. [...] Ele é um modo de significação, uma forma. [...] Já que o mito é uma fala, tudo pode constituir um mito, desde que seja sucetível de ser julgado por um discurso. [...] o discurso escrito, assim como a fotografia, o cinema, a reportagem, o esporte, os espetáculos, a publicidade, tudo isso pode servir de suporte à fala mítica (BARTHES, 2006, pp. 131-132). Quando investigamos os enunciados dos editores, redatores, repórteres, comentaristas e articulistas, bem como o material fotográfico e as imagens produzidas por chargistas dos jornais e revistas citados em nossa pesquisa na Hemeroteca Mário de Andrade, concentramo-nos na construção e destruição dos mitos políticos Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 11 127 femininos Dilma Rousseff e Hillary Clinton sob a ótica de Barthes, ou seja, imputamos às duas mulheres e seus discursos o caráter de significante (aspecto material dado) e ao trabalho jornalístico de reproduzir e analisar fatos por elas protagonizados e a elas associados o caráter de significado (aspecto conceitual tecido pela mídia). Da análise do vínculo estabelecido em ambos os casos entre significante e significado, elaboramos nossa síntese dialética, permitindo-nos, sem entrar no mérito dos discursos dessas duas grandes representantes da atuação política das mulheres nesta segunda década do século XXI (portanto, mantendo-nos sob postura apartidária como pesquisadores), perscrutar os graus de orientação masculina da mídia contemporânea e o empobrecimento do debate em torno das questões de gênero, isto é, dos comportamentos construídos socialmente, do apreço pela liberdade e pela tolerância. Essa análise nos levou a listar as seguintes constatações: A - Durante as campanhas partidárias em período anterior às eleições presidenciais, ambas as candidatas contaram com amplo apoio da mídia de modo geral, a qual, metaforicamente, comportou-se como Apolo em face de Cassandra, ao enaltecer os discursos das duas mulheres e os avanços que elas significavam para a representação feminina na política mundial. A revista Carta Capital, por exemplo, publicou uma matéria sob o título “Hillary Clinton, a mãe da América” (GRAÇA, 2015), em abril de 2015. Por sua vez, um dia após a posse do primeiro mandato de Dilma Rousseff, em 2 de janeiro de 2014, o jornal O Globo publicou uma matéria favorável ao seu governo, com uma foto de poder ostentador da presidente, ao lado de sua filha, sendo saudada pela Guarda Nacional em Brasília, abaixo do título “Defesa do legado com promessa de mudanças” (EQUIPE DE REPORTAGEM BRASÍLIA, 2014). Todavia, passada a fase de euforia pela celebração da construção desses mitos femininos vitoriosos, fatos negativos começaram a receber amplo destaque nas coberturas jornalísticas das vidas privadas e das carreiras políticas de ambas, inúmeras vezes acompanhados de comentários maldosos que desmerecem a importância feminina na política, a ponto de o jornal O Estado de S.Paulo intitular uma matéria sobre Hillary de “Conspiração genital: com ajuda do FBI, falocracia americana faz o que pode para derrubar Hillary” (AUGUSTO, 2016). A revista Veja não deixou por menos em matérias alusivas ao processo de impeachment de Dilma, publicando em maio de 2016 uma foto emblemática (COPPOLA, 2016), clicada por Jefferson Coppola e especialmente editada para ilustrar o texto de Thaís Oyama, intitulado “Os últimos dias de Dilma Rousseff”, na qual ela parece arder no fogo (era a tocha olímpica), similarmente a uma divindade mítica num momento de sacrifício aos deuses do Olimpo. B - Mesmo na fase de comentários positivos sobre os discursos e fatos relativos a Dilma e a Hillary, foram incontáveis as piadas jocosas, por meio de textos, fotos e imagens, que desrespeitavam questões de gênero, buscando inspiração na dualidade macho X fêmea para atrair leitores. No caso de Hilary, por exemplo, o jornal O Estado de S.Paulo a denominou como “a noiva deixada no altar em 2008” (GUIMARÃES, 2014), enquanto outros veículos, ao se referirem a ela, insistiram em destacar, inúmeras Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 11 128 vezes, o “cargo” de ex-primeira-dama dos EUA, como esposa do ex-presidente Bill Clinton, em detrimento do cargo de senadora anteriormente por ela ocupado, bem como o de secretária de Estado do Governo Obama. De “noiva” deixada no altar nas disputas internas do Partido Democrático norte-americano, Hillary passou, segundo a imprensa, a ter um “flerte” (BARBOSA, 2015) com a Casa Branca, de onde o expresidente Barack Obama comandava a nação durante a disputa eleitoral enfrentada por ela com o atual presidente dos EUA, Donald Trump. C – Quando Trump é eleito 45º presidente dos Estados Unidos, em uma vitória considerada inesperada pela mídia internacionalmente, após sinalizados problemas de comportamento ético na campanha de Hillary Clinton pelo FBI, o mito político feminino norte-americano começou a ser descontruído com mais veemência. Os elogios anteriores foram transformados em novos ataques discursivos que reforçaram o tom jocoso dirigido à personalidade feminina, novamente com desrespeito a questões de gênero e à diversidade, dessa vez propagando-se que os enunciados de seus discursos não estavam fundamentados na realidade norte-americana, ou seja, que o insucesso do seu programa de governo se deveu, entre outros fatores, ao efeito Cassandra, entendido como previsões não realizáveis e desacreditadas pelos cidadãos eleitores. D – No caso de Dilma Rousseff, do início do seu governo como primeira mulher eleita presidente do Brasil, em 2011, até o final do processo de impeachment durante seu segundo mandato, em agosto de 2016 (iniciado em dezembro de 2015), o ataque dos discursos midiáticos a ela, assim como ao gênero feminino, por meio da desconstrução do mito, foi avassalador, por meio de textos e imagens, em todos os meios de comunicação. Não foram poupadas denominações desrespeitosas na mídia, reproduzidas em redes sociais, como “jararaca” e “louca”. Visando o desacreditar da população nas falas políticas e administrativas da comandante da Nação, bem como nas falas heróicas e mitológicas de Dilma Rousseff como combatente da Ditadura Militar e militante do Partido dos Trabalhadores, difundiu-se o descrédito em seus discursos até mesmo pela criação do termo “dilmês” em referência aos seus enunciados considerados desconectados da realidade brasileira. Assim como Hillary, a ex-presidente Dilma sofreu na mídia as consequências do efeito Cassandra: foi ridicularizada em textos e imagens. Desamada por Apolo (metaforicamente, os representantes do poder econômico brasileiro e os próprios eleitores, além de companheiros partidários, como o vice-presidente Michel Temer), Dilma, igual a Cassandra, foi “condenada” a se retirar do posto para o qual foi eleita sendo acusada de proferir inverdades com relação ao destino da Nação. E – Simultaneamente, enquanto iam sendo descontruídos os mitos políticos Dilma Rousseff e Hillary Clinton, outros mitos femininos continuaram sendo construídos pela mídia de massa, em continuidade à orientação masculina das superustruturas dos Estados Unidos e Brasil. No caso norte-americano, o mito Michelle Obama foi um dos destaques da mídia nesse período, endeusada pelos dons de sua oratória e empatia popular, embora seu apoio à candidata Hillary não tenha surtido o efeito desejado pelos Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 11 129 seus eleitores. No Brasil, a esposa do juiz Sérgio Mouro, a advogada Rosangela Mouro, por exemplo, foi entrevistada nas páginas amarelas de Veja, em dezembro de 2016, e foi capa de Claudia, lugar de destaque também ocupado por outras personalidades femininas, como as apresentadoras de televisão Ana Hickman (janeiro de 2016) e Fátima Bernardes (maio de 2016), assim como as jornalistas Renata Vasconcelos e Patrícia Poeta ocuparam as capas de Marie Claire, respectivamente, em fevereiro de 2014 e fevereiro de 2017. Michelle Obama não sofreu, nem sofre ainda, em sua carreira política como exprimeira-dama dos Estados Unidos e atual militante pelos Direitos Humanos, os efeitos Cassandra provocados pelos discursos midiáticos. Já no Brasil, a senadora pelo PT Gleise Hoffmann enfrenta os mesmos dissabores que a presidente Dilma, com ataques discursivos violentos contra ela, os quais empobrecem debates sobre questões de gênero e insuflam as redes sociais à violência verbal contra as mulheres, tendo ao seu lado nessa luta “homérica” e “hercúlea” pela defesa dos direitos democráticos à fala como cidadã uma personalidade feminina defendida pela maior rede de televisão do País (Rede Globo), a jornalista Fátima Bernardes, em razão de seus posicionamentos diante de temas polêmicos discutidos em seu programa de TV. A que ponto chegamos? Longe do equilíbrio, cremos que este estudo aponta que crises morais, econômicas, políticas e culturais, por mais doloridas que sejam, não deixam as águas estagnarem, ou seja, os enfrentamentos sociais criados por essas crises dificultam as relações humanas no dia a dia, todavia, também propiciam a quebra de paradigmas, estimulando um olhar mais atento e reflexivo sobre o nosso passado com o objetivo de construirmos um presente e um futuro com base nos conhecimentos adquiridos pelos erros cometidos, sob visão mais crítica e alicerçada nos princípios da democracia que defendem, assim como o direito de ir e vir, o direito de ser e existir em liberdade e com liberdade de opções e manifestações. Chegamos, portanto, a um ponto de mutação em sociedades americanas (no norte e o sul), o qual nos conduz ao autoconhecimento para prosseguirmos rumo a ideais de harmonia social com respeito às diversidades, ideais que não podemos antever como utópicos, assim como a paideia grega não renegou sua mitologia, ao contrário, pois dela se valeu para ampliar o acesso ao Olimpo dos seus cidadãos pelas vias da educação que, como afirma o professor Leandro Karnal “é a única grande revolução para este país” (KARNAL, 2016). 3 | CONSIDERAÇÕES FINAIS “O primeiro tema da reflexão grega é justiça” (ANDRESEN, 2015, p. 644). Esta afirmação é do sujeito lírico do poema Catarina Eufémia, de autoria de Andresen, no qual a autora faz uma homenagem em versos de quatro estrofes irregulares e um monóstico, no tom terno e triste da elegia, a um mito feminino que não pertence ao Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 11 130 panteão da antiguidade clássica grega, mas sim ao Partido Comunista Português. Trata-se de Catarina Efigénia Sabino Eufêmia, uma ceifeira portuguesa assassinada a tiros, em maio de 1954, no fim de uma greve de mulheres assalariadas rurais, por um tenente da Guarda Nacional Republicana. Mãe de três filhos, analfabeta – também quase homônima da Ifigênia, filha de Agamenon, por ele entregue em sacrifício à deusa Ártemis em troca de ventos favoráveis para suas embarcações, como narramos no primeiro capítulo deste estudo –, Catarina Efigénia Sabino Eufêmia teve sua vida e a do ser que gestava ceifadas aos 26 anos de idade, por ter atuado na resistência contra o regime salazarista ao se fazer porta-voz do grupo de assalariados que se manifestava por pão e trabalho. Rememorando palavras de Harari já citadas neste estudo, “ao se examinar a história de qualquer rede humana, é recomendável parar de vez em quando e olhar as coisas de uma perspectiva de alguma entidade real” (Harari, 2017, p. 184). Catarina Eufêmia foi transformada num mito, mas ela era capaz de sofrer? Sim. A Cassandra da mitologia grega não sofreu de verdade nas mãos de Apolo, sofreu? Mas, “quando um camponês faminto não tem o que comer, ele sofre” (Idem, ibidem). Sim, ele sofre, como sofrem todas as mulheres vilipendiadas pelo machismo, pelo sexismo, pela coisificação. Como sofrem todos os seres humanos que têm amor pelas mulheres perdidas como vítimas assassinadas por companheiros, ocorrências diárias no Brasil, cuja taxa de feminicídios é a quinta maior do mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde (MARTINS, 2017). A Lei do feminicídio e a Lei Maria da Penha são, no Brasil, pontos de mutação para modificarmos esse quadro associado às características negativas de uma sociedade patriarcal, de orientação masculina, que em atitudes cínicas justifica o machismo sob véus do humorismo, da piada popular e das figuras de linguagem nos discursos midiáticos, como a ironia e o sarcasmo, cujo conteúdo cruel nada tem de engraçado, pois não somente provoca ofenças, mágoas e destrói autoestimas, como também pode alimentar ainda mais a violência numa sociedade já violenta. Com este estudo, esperamos estimular mais debates sobre questões de gênero, a leitura crítica do mundo ao nosso redor e as reflexões sobre a cultura de sacrifício feminino em sociedades sob orientação masculina, presas a um passado conservador que, mesmo sendo poeticamente belo e epifânico como nas obras de Homero, precisa ser revisitado sob um olhar de hoje que não confunda submissão feminina com elementos divinos que ligam a força da mulher às forças da natureza; um olhar tomado pela consciência sobre o quanto é inaceitável o comportamento social alheio à dores do outro. Segundo José Luiz Fiorin, “o discurso crítico se constitui a partir dos conflitos e das contradições existentes na realidade” (1997, p. 74), enquanto a linguagem pode ser instrumento de libertação ou de opressão, de mudança ou de conservação. Se os deuses da mitologia grega são a imagem do retorno, da coerência advinda do caos, do desfalecimento e do eterno renascer, o discurso filosófico, político e crítico unido às Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Capítulo 11 131 narrativas e às falas míticas podem abrir caminho para a refutação do comportamento de resignação humana às vozes anteriores que conformam uma tradição na qual não há respeito à diversidade. Simultaneamente, sob a configuração de discurso literário, seja pela prosa, seja pela poesia, as discussões assim tematizadas podem adquirir função social, apontando erros que ameaçam a harmonia entre os seres humanos e impedem a existência de uma militância em busca e a favor dessa harmonia. Os discursos poéticos narrativos em Homero e Andresen, bem como os discursos midiáticos que analisamos, abrangem a realidade objetiva e a subjetividade dos seres humanos, provocando reflexões que não deveriam atingir, pelo caminho do entretenimento, somente os sentimentos dos leitores relacionados ao culto das emoções e do gosto estético. Ao mesmo tempo, supomos que esses discursos poderiam, pela conscientização de caráter humanista, democrático, alinhada com princípios éticos e a justiça, provocar em nós e nos meios sociais nos quais vivemos mutações comportamentais de fundo altruísta em sintonia com a razão e os valores humanos que contribuem para o bem-estar coletivo, e não apenas individual ou de grupos de minoria eletista e conservadora. REFERÊNCIAS ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Obra Poética. Lisboa: Assírio & Alvim, 2015. AUGUSTO, Sérgio. Conspiração genital: com ajuda do FBI, falocracia americana faz o que pode para derrubar Hillary. 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Atualmente é proprietária de agência de publicidade que presta serviços na área de marketing e comunicação empresarial. Comunicação e Jornalismo : Conceitos e Tendências 3 Sobre a Organizadora 134