Marchon, L. (2015). Fundamentos filosóficos da Etnomatemática. Revista Latinoamericana de
Etnomatemática, 8(1), 87-107.
Artículo recibido el 26 de noviembre de 2014; Aceptado para publicación el 22 de enero de 2015
Fundamentos filosóficos da Etnomatemática
Philosophical Foundations of Ethnomathematics
Fabio Lennon Marchon1
Resumo
Este trabalho busca melhor compreender a fundamentação filosófica da Etnomatemática no contexto de sua
própria produção sendo um dos objetivos principais indicar possíveis convergências e influências filosóficas
para esta área de pesquisas e estudos. A relevância acadêmica desta empreitada evidencia-se a partir da
observação da escassez de produção do campo neste sentido. A metodologia empregada nesta investigação é
qualitativa e documental. A partir de uma revisão bibliográfica escolhem-se alguns pesquisadores-textos com
intuito de realizar uma análise reflexiva. Neste processo investigativo, as interpretações e reflexões feitas
aproximam os pressupostos filosóficos etnomatemáticos dos pensamentos ditos pós-modernos, sugerindo-se
que o pensamento filosófico nietzschiano seja assumido como uma possibilidade para os fundamentos
filosóficos desta área. Busca-se ainda apontar para o pensamento nietzschiano como potencialmente
promissor para o desenvolvimento filosófico da Etnomatemática.
Palavras–chaves: Nietzsche; fundamentos filosóficos; Etnomatemática; influências filosóficas.
Abstract
This work aims to better understand the philosophical foundation of Ethnomathematics in the context of its
own production, one of the main objectives being to indicate the possible convergences and philosophical
influences of this area of research and studies. The academic relevance of this project is evident as observed
in the lack of field production in this regard. The methodology used in this research is qualitative and
documentary. From a literature review some researchers‟ texts are selected in order to perform a reflective
analysis. In this investigative process, the interpretations and reflections made approach the philosophical
ethnomathematical assumptions of postmodern thought, suggesting that Nietzsche's philosophical thought is a
possible philosophical foundation of this area of studies. This research seeks to highlight Nietzschean thought
as potentially promising for the philosophical development of Ethnomathematics.
Keywords: Nietzsche; philosophical foundations; Ethnomatematics; philosophical influences.
1
Doutorando em Educação e Mestre em Educação na área de Ciências, Sociedade e Educação (CSE);
Especialista em Matemática para professores do Ensino Fundamental e médio. Universidade Federal
Fluminense (UFF). Niterói, Brasil. E-mail:
[email protected]
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Vol. 8, No. 1, febrero-mayo 2015
INTRODUÇÃO
No campo das pesquisas etnomatemáticas muitas são as questões filosóficas que emergem
entre os pesquisadores (iniciantes ou mesmo os mais experientes) desta área. Apenas para
citar alguns exemplos: O que nos une sob a designação de pesquisadores etnomatemáticos?
O que é característico da Etnomatemática? O que caracteriza as pesquisas em
etnomatemática? Minha pesquisa é etnomatemática? O que diferencia uma pesquisa
etnomatemática de qualquer outra pesquisa em outra área do conhecimento? Existe algum
fundamento filosófico compartilhado e não percebido? É possível observar convergências
filosóficas nos discursos etnomatemáticos?
Observa-se que os trabalhos etnomatemáticos apresentam múltiplas possibilidades
(matemática escolar e não escolar; matemática de grupos profissionais; matemática
praticada em comunidades indígenas, etc.) a partir de diferentes abordagens (sociológica,
antropológica, linguística, etc.). O caminho escolhido pelo pesquisador etnomatemático
depende, por exemplo, da percepção e compreensão que tem da matemática, do
conhecimento em geral e do próprio campo de pesquisa em que se encontra. Não se pode
descartar ainda o desejo e interesse pessoal do pesquisador que, a partir de sua investigação,
busca dar relevância a certos aspectos por ele detectados no campo da Educação
Matemática ou da própria Matemática. Esta multiplicidade de interpretações, percepções e
compreensões, tanto da perspectiva do pesquisador etnomatemático quanto das pesquisas
em Etnomatemática, motivam uma investigação sobre os possíveis fundamentos filosóficos
da Etnomatemática. Este trabalho é uma retomada de algumas das principais ideias
abordadas em Marchon (2013).
Refletir sobre os pressupostos filosóficos da Etnomatemática pode servir de parâmetro de
orientação para pesquisadores iniciantes em seus primeiros passos no campo
etnomatemático e, simultaneamente, contribuir para evitar enganos e equívocos com
relação à compreensão que se tem da Etnomatemática. Além disso, alguns estudos
(Fantinato, 2013; Costa, 2012) sugerem que a Etnomatemática tem dedicado pouca atenção
ao debate especificamente filosófico neste campo. Este trabalho se justifica pela
possibilidade da ampliação do debate acerca desta temática ainda pouco recorrente na
literatura específica. Uma questão que servirá de orientação nesta investigação é: Quais as
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principais convergências e influências filosóficas no campo da Etnomatemática [no
Brasil]? Na tentativa de pensar sobre estas questões pode-se tentar delimitar
filosoficamente o campo etnomatemático a partir daquilo que a etnomatemática não é (uma
pesquisa etnomatemática, por exemplo, dificilmente pode ser confundida como uma
pesquisa no campo da medicina ou da física nuclear). Esta delimitação apesar de válida,
não parece contribuir efetivamente para uma caracterização filosófica do campo
etnomatemático. Outra possibilidade é evitar esta reflexão filosófica afirmando-se que a
Etnomatemática não aceita discursos unívocos em seu território e que se mostra como
multiplicidade de multiplicidades no cenário acadêmico. Negar a possibilidade de uma
fundamentação (base) filosófica para Etnomatemática faz parte dos pressupostos filosóficos
desta área? Trata-se, portanto, de olhar para esta área de estudos e pesquisas de forma
crítica e reflexiva em busca de melhor entendimento sobre seus pressupostos filosóficos.
As fronteiras manchadas que cercam este campo de pesquisas, mesmo com múltiplas
intersecções e influências, não pode evitar o olhar do “outro” e negar-se a reconhecer-se em
seus limites. E, por outro lado, habitando uma região específica da produção acadêmica em
que discursos e práticas convergem, não consegue evitar reconhecer que existem “outros”
que lhe são distintos. Existem, de fato, intersecções em todos os campos da produção
científica no contexto acadêmico, sendo o isolamento total de uma área uma ilusão tão
grande quanto o próprio desejo de total pluridisciplinaridade, mas, no entanto, todos os
campos ou são capazes de reconhecer ou buscam reconhecer um núcleo que lhes seja
comum. É neste sentido que se propõe uma investigação que busque apontar para
possibilidades de uma base filosófica para Etnomatemática.
MARCO TEÓRICO: UM OLHAR PARA A ETNOMATEMÁTICA
Reconhecer e valorizar os aspectos socioculturais da produção do conhecimento
matemático foi um dos principais motivadores das pesquisas etnomatemáticas em seus
primeiros momentos e, nesse sentido, este campo se aproximou de algumas questões do
campo da Sociologia e da Antropologia. Além disso, preocupações com a construção do
conhecimento matemático de diferentes indivíduos e grupos, a partir de abordagens
psicossociais, linguísticas ou antropológicas também podem ser observados na produção
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desta área. Em todos os casos, existe algo que une estes trabalhos em torno da denominação
comum “Etnomatemática”, mas o que é este algo em comum? O que é Etnomatemática?
Qual sua principal característica? Tenta-se, a seguir, esclarecer parcialmente tais dúvidas.
Destaca-se primeiramente que tanto o termo “Etnomatemática” quanto o conceito atrelado
a ele foi sendo ampliado e se diversificou no próprio processo de construção das pesquisas.
Barton (1996) nos alerta sobre as dificuldades em se buscar uma definição de
Etnomatemática, assegurando que ela é culturalmente delimitada, ou seja, depende do
grupo social e da cultura onde se observa uma categoria conceitual denominada
“matemática”, podendo inclusive não existir tal denominação ou reconhecimento de
práticas matemáticas em certos grupos. Talvez a mais conhecida caracterização da
Etnomatemática seja aquela feita por D‟Ambrosio (2011). Seu entendimento se apresenta a
partir de uma análise estrutural do termo “Etno + Matema + Tica” como sendo os diferentes
modos, estilos e técnicas de explicar, aprender, conhecer e lidar com o ambiente natural,
social, cultural e imaginário de cada grupo culturalmente determinado. Assim, D‟Ambrósio
(2011) associa Etnomatemática à matemática praticada por grupos culturais identificáveis,
sendo uma das atividades principais desta área buscar pistas sobre a origem, transmissão,
difusão e institucionalização da matemática destes diferentes grupos.
A Etnomatemática, a partir de suas pesquisas (sua produção simbólica), evidencia a
existência das muitas matemáticas culturalmente construídas e que se distanciam da
matemática hegemônica (escolar e/ou acadêmica). O discurso etnomatemático busca adotar
uma postura crítica diante dos discursos de neutralidade e universalidade da produção do
conhecimento matemático. Uma hipótese da Etnomatemática é a de que o conhecimento
matemático, mesmo não sendo reconhecido e denotado como tal, é algo culturalmente
construído. Observa-se que, apesar do que foi exposto, não existe ainda uma resposta
satisfatória a pergunta “o que é Etnomatemática?”. Existem diferentes entendimentos sobre
este campo, seu objeto de estudo e os procedimentos empregados nas pesquisas e, assim,
suas bases filosóficas são igualmente incertas.
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METODOLOGIA
A metodologia empregada nesta investigação é qualitativa e documental. Faz-se uma
revisão bibliográfica a partir do território etnomatemático e, a partir de alguns
pesquisadores-textos realiza-se uma análise investigativa. Escolhem-se alguns sujeitos
atuantes no campo etnomatemático e alguns dos seus textos que tratam de questões
filosóficas para esta área. A análise segue uma perspectiva interpretativa (hermenêutica).
Escolha dos sujeitos e textos etnomatemáticos
Levando-se em conta o papel de influência de certos personagens atuantes na
Etnomatemática, na fundamentação teórica e/ou filosófica deste campo, elegem-se os
seguintes critérios: (i) Pesquisadores que se reconheçam como sujeitos/indivíduos
pertencentes ao campo da Etnomatemática (no Brasil); (ii) Pesquisadores citados como
referências dentro da Etnomatemática quando questões filosóficas deste campo são
suscitadas; (iii) Pesquisadores que tenham participado de algum congresso brasileiro e/ou
internacional de Etnomatemática; (iv) Pesquisadores que tenham abordado diretamente
questões teóricas ou filosóficas da Etnomatemática; (v) Pesquisadores que atuem como
autores de livros e que abordem e questões teóricas e/ou filosóficas diretamente ou
transversalmente. Alguns personagens emergiram do campo etnomatemático a partir da
intersecção destes critérios, destacam-se os seguintes pesquisadores/autores: Ubiratan
D'Ambrosio, Denise Silva Vilela, Sônia Maria Clareto, Gelsa Knijnik e Rogério Ferreira.
Escolheu-se um parâmetro temporal para orientar a busca de material relevante destes
pesquisadores/autores para esta empreitada. O intervalo de tempo que vai do ano de
realização do 1º Congresso Brasileiro de Etnomatemática ao ano que sucede o 4º Congresso
Brasileiro de Etnomatemática, ou seja, de 2000 a 2013, foi tomado como relevante para
escolha dos textos aqui selecionados. Um fator que contribui para a relevância deste
momento histórico
no contexto da
fundamentação
teórica e/ou filosófica da
Etnomatemática é o fato de três dos pesquisadores que abordam questões desta natureza no
campo etnomatemático (Denise Vilela, Sônia Clareto e Rogério Ferreira) terem defendido
suas teses de doutorado neste intervalo de tempo, sendo observado que suas ideias em nível
de doutorado se refletem em seus trabalhos mais recentes. Além disso, Ubiratan
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D‟Ambrosio, Gelsa Knijnik e Denise Vilela publicaram livros relevantes para a área e que
tratam da temática filosófica deste campo, respectivamente em 2001, 2012 e 2013.
Selecionam-se cinco textos principais para a análise que se pretende realizar sobre as
possíveis convergências e influências filosóficas para este campo, sendo, contudo, possível
recorrer a textos complementares sempre que for conveniente para a investigação.
Com base no que foi dito, destacam-se (autor, texto de referência, ano): Rogério Ferreira:
Educação escolar indígena e Etnomatemática: a pluralidade de um encontro na tragédia
pós-moderna; (tese de doutorado); ano de 2005. Gelsa Knijnik: Etnomatemática em
movimento; (Livro); ano de 2012. Denise Vilela: Usos e jogos de linguagem na
Matemática: diálogo entre filosofia e educação matemática; (Livro); ano de 2013. Sônia
Clareto:
Conhecimento,
Inventividade
e
experiência:
Potências
do
pensamento
Etnomatemático; (artigo); ano de 2009. Ubiratan D‟Ambrosio: Etnomatemática: Elo Entre
as Tradições e a Modernidade; (Livro); ano de 2011.
DISCUSSÃO: ALGUNS PRESSUPOSTOS FILOSÓFICOS ETNOMATEMÁTICOS
D’Ambrosio: uma ampliação epistemológica e o reconhecimento de outros sistemas de
explicação.
D‟Ambrosio 2 (2011) situa a Etnomatemática como uma subárea da História da Matemática
e da Educação Matemática com intersecções com a Antropologia e as Ciências da
Cognição. Contudo, em seguida, o pesquisador afirma que Etnomatemática “é a matemática
praticada por grupos culturais” (D‟Ambrosio, 2011, p.9). Ele afirma também que a
Etnomatemática é um programa de pesquisa com caráter interdisciplinar que tem por
objetivo “entender o saber/fazer matemático ao longo da história da humanidade” (p.17) e
que tal programa de pesquisa tem vinculação com “história e filosofia da matemática, com
óbvias implicações pedagógicas” (p.27). D‟Ambrosio enfatiza, no entanto, que com a
Etnomatemática não se trata de criar outra epistemologia e sim de uma tentativa de
“entender a aventura da espécie humana na busca de conhecimento e na adoção de
comportamentos” (p.17). Na perspectiva D‟ambrosiana a Etnomatemática assume
2
O livro de Ubiratan D‟Ambrosio tomado como referência neste trabalho teve sua primeira impressão em
2001, mas, neste caso, será utilizada sua 4ª edição com reimpressão de 2011.
92
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diferentes dimensões: conceitual, histórica, cognitiva, cotidiana, epistemológica, política e
educacional.
O pesquisador sugere que o conceito de globalização remonta ao início do cristianismo e do
islamismo (D‟Ambrosio, 2011, p.73), sendo a universalização da matemática (de origem
europeia) uma etapa deste processo de globalização. Com esta hipótese, caminha em
direção à crítica ao conceito de infalibilidade e rigor que decorrem desta matemática
(universal) da modernidade que tende a excluir outras formas de racionalidade. Para isso o
pesquisador reflete que o sabe/fazer matemático é, em sua perspectiva, contextualizado e
dependente dos fatores naturais e sociais. Contudo, sugere que existe a necessidade no
campo da Educação Matemática de se ensinar a matemática dominante ao mesmo tempo
em que se tenta reconhecer e valorizar a etnomatemática específica dos grupos dominados.
Além disso, para ele, é falsa qualquer dicotomia entre saber e fazer ou teoria e prática e,
portanto, cabe a Etnomatemática superar tais separações ao observar o conhecimento
compartilhado pelos indivíduos nas diferentes culturas. Seu entendimento é que a produção
do conhecimento associado às questões de sobrevivência do homem é eminentemente
caracterizada pela transcendência, pois, “o „aqui e agora‟ é ampliado para „onde e quando‟.
A espécie humana transcende o espaço tempo para além do imediato e do sensível”
(D‟Ambrosio, 2011, p.28). Defende, nesse sentido, o potencial criativo do ser humano, sua
imaginação e o poder do pensamento abstrato. Fala-nos também em uma Educação
Matemática culturalmente contextual e que deve estar direcionada para um propósito de
Paz multidimensional. O pesquisador destaca a dimensão política e ética presente nas
pesquisas etnomatemáticas que, segundo ele, tem por objetivo recuperar a dignidade
cultural do ser humano. E, nessa lógica, afirma que um dos objetivos da Etnomatemática é,
portanto, recuperar as histórias esquecidas pela História oficial e reconhecer outros
sistemas de explicação distinta daqueles que realizam etnocídios legitimados. E, para o
autor, a Etnomatemática busca refletir “sobre a descolonização” (D‟Ambrosio, 2011, p.42)
dos saberes dominados, marginalizados ou excluídos. É uma tentativa de restaurar a
dignidade dos indivíduos reconhecendo e valorizando suas raízes. No entanto, alerta-nos
que isso não implica em ignorar ou rejeitar as raízes dos “outros”.
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D‟Ambrosio assume alguns pressupostos filosóficos seguindo os pensamentos de Imre
Lakatos e Oswald Spengler. Sua perspectiva filosófica é de que a realidade percebida é
uma interação da realidade natural, das experiências humanas (vivência) e de seus
pensamentos (mentefatos) acumulados tanto pelos indivíduos quanto pela sua espécie. Ele
assume que cultura é exatamente este acúmulo (D‟Ambrosio, 2011, p.28), sendo o
conhecimento os mecanismos de informação desta realidade a partir de mecanismos
genéticos, sensoriais e de memória. Contudo, ele também indica que o que caracteriza uma
cultura são as formas de compartilhar o conhecimento e compatibilizar comportamentos.
Em um texto posterior D‟Ambrosio (2009) comenta as dificuldades impostas pelo
dogmatismo científico que criam grades invisíveis e que dificultam “o reconhecimento da
alteridade, do outro, do diferente” (D‟Ambrosio, 2009, p.18) e, com isso, fala sobre a
metáfora das gaiolas epistemológicas que, em sua perspectiva, podem limitar a ação
criadora e inventiva de uma área do conhecimento e, em particular, da própria
Etnomatemática. Ele contesta, portanto, a exigência do estabelecimento de fundamentos
sólidos, métodos rígidos, linguagens próprias, codificações e critérios de validação que
possam aprisionar as pesquisas desta área. Afirma que o desafio do campo etnomatemático
é a ampliação das possibilidades de “entender e explicar o mundo que nos cerca em toda a
sua complexidade” (D‟Ambrosio, 2009, p.18) e, nesse sentido, fala em “fusão e
incorporação de recursos matérias e intelectuais” (p.18) para promover a criatividade do ato
de conhecer e explicar o mundo.
Clareto: Do encontro das diferenças na diversidade ao pluralismo epistêmico, a
cognição como arte criativa.
Observa-se em Clareto (2009) relativo destaque dos termos plural e diferença em seu texto.
Ela direciona suas ideias em torno dos conceitos de diferença e experiência a partir da
diversidade orientada fundamentalmente pelos pensamentos filosóficos de Nietzsche e
Deleuze. A pesquisadora defende a existência de diferentes possibilidades para o pensar
matemático e, nesse cenário, aponta para a necessidade de abertura para novos olhares e
formas de conhecer nas pesquisas em Educação Matemática. Esta pesquisadora indica,
nesse sentido, a Etnomatemática como apropriada para abalar os alicerces das certezas
matemáticas, pois, segundo ela, o foco etnomatemático sobre “a diversidade, a variação, a
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diferença” (Clareto, 2009, p.126) permite pensar de forma plural a questão da produção do
conhecimento matemático, da racionalidade, da cognição e da aprendizagem. Ela concebe a
cognição como arte inventiva que possibilita o múltiplo, o diverso e a criação e, nesse
sentido, foge da linearidade e unicidade presentes na ideia de conhecer o desconhecido pela
reprodução e reconhecimento de padrões preestabelecidos. Sua perspectiva epistêmica é
pluralista, e, nesse sentido, assume que a Etnomatemática evita seguir os padrões da
modernidade, pois, segundo ela, “a Etnomatemática surge numa guinada epistêmica e
cognitiva” (p.126) que pode se apoiar nas “filosofias contemporâneas da diferença” (p.126).
E segundo ela, a Etnomatemática a partir da valorização da produção cultural de grupos
excluídos pela cultura oficial apresenta ressonâncias “com muitos aspectos de discursos
pós-modernos” (Clareto, 2003, p.26), que permitem superar (destruir/ desconstruir) as
barreiras acadêmicas impostas ao campo Matemático e da Educação Matemática. Para ela
este campo de estudos e pesquisas “estaria em melhores condições de dialogar com
discursos pós-modernos/ que a matemática escolar” (Clareto, 2003, p.27) por se predispor a
dialogar com o outro a partir das suas diferenças.
Ela assume, nesse caso, diferença como potencial para criação e para criatividade e apesar
de aceitar como potencialmente promissor para o campo filosófico da Etnomatemática os
pensamentos de Nietzsche e Deleuze, destaca que, no entanto, “não se trata de constituir
uma base sólida de fundamentação teórica” (Clareto, 2009, p.126) para o campo
etnomatemático. Sua intenção é provocar reflexões e permitir abertura para novas
possibilidades teóricas para esta área. Ela refuta a ideia de uma fundamentação teórica
sólida, rígida ou fixa para a etnomatemática. Sua postura etnomatemática é a de questionar
as verdades estabelecidas pela matemática (ocidental, acadêmica, hegemônica), ou melhor,
de retomar o debate iniciado em sua tese de doutorado sobre a “crise do conhecimento
neutro, imparcial e objetivo” (Clareto, 2003, p. 15). Em sua tese de doutorado ela
estabelece uma relação entre a crise contemporânea do conhecimento com a crise das
metanarrativas nos discursos pós-modernos e, em particular, aponta para uma crítica ao
pensamento socrático-platônico feito por Nietzsche. Segundo esta pesquisadora, a
matemática como modelo da racionalidade moderna é contestada pela Etnomatemática,
apoiada em discursos pós-modernos, a partir de algumas ideias como, por exemplo, de
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transformação, transversalidade, dinâmica, permeabilidade de fronteiras, subjetivações,
multiplicidades, espaços híbridos e fluidez. Isto se torna possível pela proximidade com os
pensamentos de Foucault, Deleuze e Nietzche. Ela recorre ainda aos pensamentos de
Frederic Jameson e François Lyotard para dar suporte à sua tese.
A Etnomatemática busca, em sua compreensão, fugir dos processos de identificação (reconhecimento) de verdades como estabelecidas na tradição científica ocidental. Segundo
ela, é no olhar do outro, no encontro da diferença e na diversidade que se constrói o
conhecimento etnomatemático e, nessa perspectiva, a matemática passa a ser entendida
como uma etnomatemática particular. O campo da Etnomatemática, por sua vez, passa a ser
entendido como uma alternativa para enfrentar as críticas ao conhecimento neutro, único,
objetivo e universal emergentes no discurso pós-moderno. Nessa lógica, segundo a
pesquisadora, a Etnomatemática “evidencia as diferenças localizando-as no espaço e no
instante” (Clareto, 2009, p.131) e, com isso, impede a delimitação de um caminho único (a
priori) e absoluto (universal) para qualquer conhecimento. Estabelece-se, portanto, a
multiplicidade de caminhos como regra ao fazer etnomatemático. Essa pluralidade de
caminhos, no entanto, passa pela experiência que, na perspectiva de Clareto (2009), opõese ao sujeito epistêmico (transcendental) da modernidade. Apoiando-se em Nietzsche e
Jorge Larrosa ela aponta para o campo da imanência, da variação, do movimento e da vida
como parâmetros constitutivos do saber da experiência, assumindo que a Etnomatemática
pode auxiliar a “re-inventar racionalidades, saberes, existências e modos de existir, abrindo
possibilidades outras para se pensar o conhecimento” (Clareto, 2009, p.133). Finaliza sua
reflexão indicando que o conhecimento é inventividade e não reconhecimento. O
conhecimento é confronto de ideias que se faz pelo encontro das diferenças, pelo
estranhamento e não pelo espelho “da minha própria cultura e de meus próprios saberes”
(p.133).
Vilela:
filosofia pós-crítica, virada linguística e a perspectiva não-metafísica da
matemática
Em outro extremo do campo etnomatemático pode-se observar as ideias de Denise S. Vilela
(2013). Esta pesquisadora se apropria dos pensamentos filosóficos do segundo
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Wittgenstein3 numa tentativa de colocar a “linguagem como objeto de investigação”
(Vilela, 2013, p.15) no campo da Educação Matemática numa perspectiva Etnomatemática.
Neste contexto de crítica aos pressupostos filosóficos presentes nos discursos e práticas
matemáticas que, de modo geral, decorrem em grande parte, da modernidade, a
pesquisadora defende que uma base teórica para etnomatemática deve ter foco humanístico
e aceitar a existência de matemáticas culturalmente diferentes. E, nesse cenário, a autora
entende que a linguagem assume papel central para tal fundamentação. Ela assume,
portanto, que o conhecimento matemático é relativo e contextual. Nesse caminho, em seu
entendimento e seguindo Wittgenstein, uma base filosófica para Etnomatemática deve se
aproximar das questões da linguagem que expõe o mundo e não busca uma realidade única
e absoluta.
Ela alerta, contudo, que seu trabalho “Não se pretende colocar como solução, tampouco
fazer indicações do que é certo ou errado” (Vilela, 2013, p.16), mas que, por outro lado,
tenta dar visibilidade a outras formas de ver a Matemática na Educação Matemática. Negase, neste texto, a busca por uma fundamentação teórica única, absoluta, universal. Segundo
ela o pensamento filosófico de Wittgenstein é uma base apropriada para Etnomatemática
por seu não dogmatismo. Além disso, tal base filosófica parece se adequar aos discursos
etnomatemáticos ao aceitar a diversidade e pluralidade de sentidos associados aos
significados da linguagem matemática (usos e jogos de linguagem). O posicionamento
filosófico de Vilela (2013) com relação à Etnomatemática é de oposição às filosofias
metafísicas que emergem do campo da Matemática. Ela assume que a Etnomatemática “só
poderia ter nascido atualmente, após essa elaboração filosófica não metafísica” (Vilela,
2013, p.21). A pesquisadora justifica a escolha do caminho etnomatemático a partir da sua
compreensão sobre este território, ou seja, a de que é um campo de pesquisa que se propõe
“a estudar e a resgatar formas de conhecimento dos grupos considerados em sua
especificidade cultural” (p.19) e que, além disso, é um campo de pesquisas acadêmicas que
não adota um posicionamento político de neutralidade quanto ao conhecimento
matemático.
3
Costuma-se falar em “segundo Wittgenstein” para fazer referência aos pensamentos da maturidade deste
filósofo, presentes em sua maioria na obra: Investigações Filosóficas.
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A crítica estabelecida por Vilela (2013), apoiada numa perspectiva etnomatemática, nega o
entendimento (moderno) de que a Matemática representa a rainha das ciências, neutra e
isenta de valores morais. Ela denuncia também, a partir de sua crítica, o discurso
matemático que afirma que sua linguagem é universal e suas verdades são eternas e
inabaláveis. Ela nega, a partir dos pensamentos filosóficos de Wittgenstein, que a
Matemática seja uma espécie de entidade que está em toda a parte, existindo independente
do homem, ou seja, nega que o conhecimento matemático tenha caráter transcendental.
Neste quadro, seguindo os pensamentos pós-modernos, da virada linguística, Vilela (2013)
estabelece a hipótese filosófica de que a Etnomatemática é a perspectiva não metafísica da
Matemática ao negar a possibilidade de verdade “única, independente e neutra” (Vilela,
2013, p.21). Observa-se ainda que a pesquisadora faz suas reflexões com base no campo da
Filosofia Geral e não propriamente dentro do campo da Filosofia da Matemática pois, para
ela, os referenciais epistemológicos da Filosofia Geral são apropriados porque “procuravam
negar a busca de fundamentos últimos, negar a referência a um „realismo metafísico‟”
(p.20). E, além disso, segundo ela, este olhar de fora (p.14) do campo da Matemática
possibilita se desprender dos limites do raciocínio lógico e dedutivo que em geral se atribui
à construção dos conhecimentos matemáticos. O pensamento de Wittgenstein, segundo ela,
possibilita pensar nas matemáticas culturalmente diferentes e, ao mesmo tempo, oferece
recursos para tentar compreender as diferentes concepções de matemática e racionalidade
coexistentes. Ela adota como caminho a chamada filosofia pós-crítica e, em especial, com o
movimento filosófico identificado por virada linguística. Com isso Vilela (2013) pretende
se aproximar de uma ferramenta filosófica que contribua para pensar e refletir sobre as
diferentes compreensões que se tem dos conceitos matemáticos assim como da construção
das verdades matemáticas a partir da linguagem. Nesta perspectiva os conceitos têm seus
significados ampliados “mediante as descrições dos usos de um conceito, a qual possibilita
dissolver a noção essencialista e referencial de significado” (Vilela, 2013, p.21).
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Marchon, L. (2015). Fundamentos filosóficos da Etnomatemática. Revista Latinoamericana de
Etnomatemática, 8(1), 87-107.
Knijnik: pesquisa em etnomatemática, uma postura de “fidelidade infiel” da sua
herança cultural
Seguindo em um caminho próximo, porém distinto ao de Vilela (2013), observa-se o
posicionamento de Knijnik (2012). Colaborando com Knijnik se encontram Wanderer,
Giongo e Duarte. Cabe observar que estas três pesquisadoras foram orientadas por Knijnik,
sendo seus principais referenciais filosóficos Wittgenstein e Foucault a partir de uma
perspectiva etnomatemática no campo da Educação Matemática. Estas pesquisadoras,
ligadas ao GIPEMS- UNISINOS4, tem se aproximado dos referenciais filosóficos adotados
por Knijnik. Assim, caminham em uma direção próxima, entrelaçando suas ideias e
concepções teóricas e filosóficas. Segundo as pesquisadoras, com os referencias filosóficos
tomados como base para seus trabalhos, é possível questionar “a razão moderna, fortemente
vinculada à ciência matemática” (Knijnik, 2012, p.16).
Knijnik (2012) afirma que a partir de uma vertente da Educação Matemática, a saber, a
Etnomatemática, é possível questionar o conhecimento matemático hegemônico e buscar
“outros modelos de racionalidade” (Knijnik, 2012, p.16). A pesquisadora observa que a
Etnomatemática está “interessada em discutir a política do conhecimento dominante
praticada na escola” (p.13) e, nesse sentido, põe em relevo o controle dos espaços e tempos
escolares assim como o “engavetamento” do conhecimento em disciplinas isoladas. Em seu
entendimento, a política do conhecimento dominante esconde ou marginaliza conteúdos e
saberes, impedindo seu acesso aos currículos escolares. A Etnomatemática, em seu
entendimento, tem como centralidade problematizar a “grande narrativa que é a Matemática
acadêmica” (Knijnik, 2012, p.24), mas, no entanto, acrescenta que este campo de pesquisa
assume a Matemática Escolar como responsável por produzir subjetividades para produzir
“sujeitos escolares” (p.25) com base em certa ordenação e regulamentação dos modos de
pensar e agir no contexto escolar. Ela afirma que a perspectiva Etnomatemática, como uma
“caixa de ferramentas teóricas” (Knijnik, 2012, p.28), em associação com a filosofia de
Foucault, “possibilita analisar os discursos que instituem as matemáticas acadêmica e
escolar e seus efeitos de verdade” (p.28). E, ainda segundo a pesquisadora, também é
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Grupo Institucional de Pesquisa em Educação Matemática e Sociedade/ seção Universidade do Vale do Rio
dos Sinos.
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interesse da Etnomatemática examinar as práticas e racionalidades matemáticas de fora da
escola.
Knijnik (2012) aponta, em diferentes momentos, além dos referencias filosóficos já citados,
aproximações com os pensamentos de Gilles Deleuze e, além disso, menciona alguns
personagens como, por exemplo, Derrida e Roudinesco, Bauman e Condé. Ela pondera que
as pesquisas etnomatemáticas devem ser “fiéis e infiéis” (Knijnik, 2012, p.14) à sua
herança cultural, ou seja, não devem se prender a simples repetição de regras já
estabelecidas, pois, na “modernidade fluida” (p.14) em que se fortalece a ideia de
globalização e em que se verificam a fragmentação econômica e social de diferentes grupos
e setores, cabe buscar “múltiplas interpretações dos fatos e fenômenos de nossa sociedade”
(Knijnik, 2012, p.16). Assim, sua perspectiva etnomatemática em articulação com os
diferentes referenciais filosóficos, principalmente Wittgenstein e Foucault, convergem para
as questões da linguagem.
A perspectiva filosófica da pesquisadora considera a relatividade da concepção de certo ou
errado, pois, a linguagem não mais é entendida como “marca de universalidade, perfeição e
ordem” (Knijnik, 2012, p.29). Nessa perspectiva, em que epistemologicamente não se
concebe uma Matemática única, problematiza-se a ideia da existência de uma racionalidade
a priori ou a existência de significados universais. Nesse caminho, a linguagem assume
caráter contingente, arbitrário e particular, sendo seus significados dependentes do seu uso
em diferentes contextos. Cada situação específica entrelaça cultura, forma de vida e
linguagem, criando diferentes regras para a utilização de termos e expressões (jogos de
linguagem) que guardam semelhanças de família. Para ela, reportando-se a Deleuze, é
indissociável a relação entre teoria e prática. Ela assume ainda uma postura de vigilância à
condição de governabilidade do outro e afirma que se deve por sob suspeita as verdades
instituídas atentando-se para a insurreição dos saberes do “outro”. Muitos outros conceitos
filosóficos emergem ao longo do seu texto, como, por exemplo, diferença, exclusão,
identidade, subjetividade, dinâmica cultural, legitimidade do conhecimento e verdade.
Além disso, Knijnik (2012) indica que “é na relevância atribuída à imanência das práticas
sociais” (Knijnik, 2012, p.16) que se pode entender a Etnomatemática e, nesse sentido,
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situa a matemática escolar como marcada pela transcendência e a prática matemática de
fora da escola descrita pela Etnomatemática como marcada pela imanência.
Ferreira: a Etnomatemática como uma manifestação do renascimento trágico
Na perspectiva etnomatemática de Rogério Ferreira (2005), um dos principias pressupostos
aceitos pela Etnomatemática é que o conhecimento é uma construção culturalmente
situada. Em sua tese de doutorado e posteriormente em outros trabalhos, este pesquisador
estabelece uma reflexão de cunho teórico, filosófico e educacional a partir do solo
etomatemático e, em particular, articula suas ideias e interpretações com foco na educação
escolar indígena. Ele se refere ao encontro das diferentes culturas (indígena e não indígena;
pesquisador e não pesquisador; etc.) e, ao pensar sobre o conceito de cultura numa
perspectiva pós-moderna, problematiza a formação das identidades e sua relação com os
comportamentos e práticas dos diferentes grupos. A modernidade e a pós-modernidade, nas
palavras de Ferreira (2005), se apoiando em uma linguagem metafórica, é associada
respectivamente com um período dramático e um período trágico. Suas referências
filosóficas são múltiplas, mas, contudo, percebe-se forte influência dos pensamentos
nietzschianos, deleuzianos e foucaultianos, ao entender a Etnomatemática “como uma
manifestação do renascimento trágico efetivada na paisagem pós-moderna” (Ferreira, 2005,
p.22).
Ele comenta a perspectiva etnomatemática que se apoia nas concepções freirianas de
grupos marginalizados, oprimidos ou excluídos cujas histórias são esmagadas por
diferentes mecanismos de poder. O pesquisador cita ainda a perspectiva etnomatemática
D‟Ambrosiana que problematiza o pensamento europeu como pilar de racionalidade. Ele
assume que o pesquisador etnomatemático deve estar atento às diferenças, respeitando a
alteridade e, nesse sentido, observa que é necessário manter uma postura crítica diante da
crença na superioridade do saber acadêmico hegemônico em relação a outros saberes. Ele
assume a existência de um caráter simbólico na constituição das diferentes culturas de tal
modo que, em seu entendimento, os símbolos são dependentes dos contextos (históricos,
geográficos, linguísticos, etc.) específicos de cada grupo e, além disso, associam-se à
subjetividade dos indivíduos. E, nesse caso, alerta-nos que as explicações racionais e
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lineares dos pesquisadores são representações simbólicas de sua cultura. Ferreira (2005)
observa que alguns conceitos que atravessam as pesquisas etnomatemáticas merecem maior
destaque, como, por exemplo: cultura, indivíduo, diálogo, desconstrução, transcendência,
liberdade e interpretação. Nesse contexto, enfatiza que a temática cultural, com foco sobre
os conceitos de “identidade” e “Ser” que foram fragmentados e abalados na pósmodernidade merece ser repensada filosoficamente, pois, representa uma matriz
paradigmática-filosófica para este campo. O pesquisador aponta ainda que nos discursos
pós-modernos a ideia de instabilidade, relatividade e irregularidade abalaram os princípios
lógicos que alicerçavam os critérios de reconhecimento identitário dos sujeitos e dos
grupos, e com isso criou-se uma realidade paradoxal que colocava o “eu” e os “outros”
simultaneamente em lados opostos e lados iguais nas vontades trágico-contemporâneas.
Toma força nesse contexto a ideia de viver intensamente o momento (o aqui e agora) a
partir das críticas ao modelo de racionalidade da modernidade que implicam em viver a
promessa do amanhã, ou seja, uma vida voltada para uma expectativa futura de melhora e
de transformação. O pesquisador, no entanto, atesta que seu trabalho está voltado para os
indivíduos transformadores e dialógicos que se voltam para a conquista de seus prazeres e
sonhos (Ferreira, 2005, p.74) e que buscam superar o estado de alienação presente nas
grades simbólicas da tragédia contemporânea. Ferreira (2005) reconhece a possibilidade de
um caráter transcendental no modo de lidar com os saberes matemáticos a partir de outros
parâmetros como, por exemplo, a arte. Em suas palavras, “com um mínimo de fluidez e
sensibilidade nos olhares de quem os elegem, tornar-se-iam entrelaçados, converter-se-iam
em uma expansão transcendental” (Ferreira, 2005, p. 32). Na base de seu estudo está o
pressuposto etnomatemático de que diversas culturas não possuem uma categoria do
conhecimento identificada como matemática e, assim, seguindo D‟Ambrosio, assume que
este campo de pesquisa ultrapassa os limites do universo matemático para caminhar em
busca de compreender a geração, organização e difusão dos modos de compreender o
mundo e, além disso, observar as “técnicas utilizadas pela espécie humana em suas várias
vertentes culturais” (p.72). Algumas das hipóteses desenvolvidas em suas teses são:
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O blefe sobe ao palco da realidade levando a todos a possibilidade de alcançar os
prazeres frutificados na imaginação [...] a paisagem pós-moderna é propícia à
reconstrução da identidade e, como consequência, à construção da diferença. [...] por
meio do diálogo com os símbolos culturais, mesmo sob máscaras, ficam fortificadas
ou, em outros termos, menos dolorosas as atitudes desconstrutivas motivadoras de
ápices de transcendência e liberdade. [...] poder-se-ia dizer: é como se a tragédia
surgisse das entranhas do drama por meio de um modo único de existir. (Ferreira,
2005, p.74-78)
Neste momento contemporâneo trágico de busca pelo prazer e transcendência na qual o
gozo se transforma em principal objetivo e, portanto, em que se nega a submissão, a
castração de desejos e o servilismo. E, nesse caso, torna-se possível distanciar-se das
imposições identitárias impostas pelo discurso unilateral (universal, totalitário, único)
desconstruindo identidades rígidas até então resguardadas na salvação do drama moderno.
Fortalecem-se as diferenças numa busca de superação dos preconceitos e que representam
os resquícios dos modos únicos de existir da modernidade. A fragmentação das limitações e
barreiras de um mundo policiado, na perspectiva do pesquisador, permitiu aos sujeitos
contemporâneos pós-modernos viver o dia (o instante presente), aproveitando o efêmero, o
frívolo e o supérfluo em busca do gozo do agora. O trágico se apresenta para o pesquisador
como uma constante antropológica em que os sentimentos e prazeres superam a razão e a
lógica. Segundo ele “na tragédia pós-moderna, um politeísmo estrutural no qual ficou
estabelecida uma admissão, às vezes sob blefes, de múltiplos pensamentos e modos de ser”
(Ferreira, 2005, p.85). O discurso de globalização de mundos particulares, na interpretação
do pesquisador, faz parte da manipulação do cenário trágico pós-moderno, sugerindo que é
uma tentativa de regresso à ideia de universalização (pilar da modernidade que é negado
pela Etnomatemática).
RESULTADOS: POSSÍVEIS CONVERGÊNCIAS E INFLUÊNCIAS FILOSÓFICAS
Os textos convergiram para alguns conceitos recorrentes quanto à fundamentação teórica
e/ou filosófica da Etnomatemática. Destacam-se alguns deles: valorização da diferença;
aceitação da diversidade e do conhecimento polissêmico; multiculturalismo e diversidade
cultural; outros olhares para o saber matemático; aceitação de múltiplas práticas e usos da
matemática; incorporação das crenças e mitos dos diferentes grupos em seus modelos
explicativos; interpretações contextuais; relativização do conceito de verdade; negação de
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um fundamento último; postura contrária as metanarrativas; descolonização dos saberes
matemáticos dominados ou excluídos; valorização da matemática praticada por diferentes
grupos culturais; usos e jogos de linguagem em diferentes práticas matemáticas; contestar o
pensamento hegemônico; insurreição dos saberes (dominados); crítica à dominação. Estes
princípios direcionam muitos dos trabalhos e pesquisas da área, possibilitando outros
olhares e compreensões para o saber-fazer matemático que, por sua vez, conduzem a
aceitação das múltiplas práticas e usos da Matemática. Além disso, destacam-se as críticas
ao caráter metafísico e de transcendência do conhecimento matemático. Com base na (re)
leitura dos textos, buscando convergências filosóficas, apoiado numa análise interpretativa,
é possível resumir as convergências filosóficas que orientam as pesquisas da
Etnomatemática em alguns poucos princípios: (i) Negação dos pilares da racionalidade
moderna; (ii) Incorporação dos discursos pós-modernos; (iii) Aceitação e valorização da
diversidade/diferença e do conhecimento polissêmico; (iv) Entendimento da epistemologia
como atividade (quase) empírica e não normativa;
Alguns destes conceitos emergiram a partir da aceitação e uso de concepções filosóficas
explícita ou implicitamente expostas nos textos analisados. Destacam-se algumas
influências filosóficas citadas pelos pesquisadores em seus textos e que apontam para a
transição da racionalidade moderna para pós-moderna e, a partir de diferentes personagens
filosóficos (Foucault, Deleuze, Lyotard, Derrida, Lakatos, Spengler), encontram nos
pensamentos de Nietzsche solo fértil de suas ideias. Pode-se considerar que Niezstche foi
um dos primeiros filósofos a direcionar suas críticas às deformidades da razão totalizante
ocidental. Uma interpretação dos pensamentos nietzschianos indica que ele estabeleceu
suas críticas à lógica racional universal da modernidade que foram utilizados como
mecanismos de exclusão social e cultural de modo arbitrário. Nietzsche associa, em muitos
momentos de sua obra, a intrínseca relação entre pensamento, linguagem e vida. E, além
disso, segundo Harvey (2012), o pensamento pós-moderno remonta à Nietzsche, “que
enfatiza o profundo caos da vida moderna e a impossibilidade de lidar com ele com o
pensamento racional” (Harvey, 2012, p.49). Marton (2008) fala das muitas provocações
que surgem a partir da filosofia de Niezsche, como, por exemplo, o combate à metafísica
socrático-platônica, a reavaliação dos pressupostos que estão na base paradigmática do
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campo científico de seu tempo, além do ataque ao pensamento religioso cristão que, na
perspectiva do filósofo, permanecem na racionalidade moderna. Esta citação explicita
alguns pontos de aproximação com os pressupostos filosóficos das pesquisas da
Etnomatemática e os pensamentos nietzschianos. Além disso, “A ciência, considerada pela
primeira vez como problemática, suspeita, questionável, foi o problema novo, “terrível” e
“apavorante” tematizado por Nietzsche” (Machado, 1984, p.8). Nietzsche (2011) assume a
existência de muitas linguagens em um mundo em que “tudo fala” e onde poucos estão
aptos a ouvir as diferentes vozes que emanam da diversidade. Neste caminho, critica o
cogito ergo sum cartesiano e a crença na verdade que provém da gramática. Talvez seja
coerente seguir o conselho nietzschiano, evitando-se as armadilhas das palavras.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta investigação, extensão da pesquisa realizada no mestrado, apresenta alguns dos
pressupostos etnomatemáticos a partir de pesquisadores/autores da área. Alguns
personagens que emergem como possibilidades do pensamento filosófico destes autores,
com relação à fundamentação filosófica/teórica da Etnomatemática são: Nietzsche,
Wittgenstein, Deleuze, Foucault, Lakatos e Spengler. É correto afirmar também que os
pesquisadores etnomatemáticos percebem influências filosóficas com os pensamentos ditos
pós-estruturalistas (pós-modernos). Percebe-se ainda, neste sentido, a existência de relativa
recorrência de certos discursos nesta área, como, por exemplo, aquele que rejeita qualquer
fundamentação filosófica ou teórica “rígida”. Não existe, contudo, uma delimitação que
impeça a proximidade com outros nomes, ideias e concepções. Contudo, evidenciam-se
algumas convergências filosóficas que apontam, na perspectiva desta investigação, para a
filosofia de Nietzsche (crítica; suspeita; superação dos limites epistemológicos impostos
pela modernidade). O pensamento do filósofo alemão pode ser assumido como um possível
fundamento para os discursos filosóficos etnomatemáticos.
Diante desta possibilidade sugere-se que, dentro de uma perspectiva filosófica que assume
a filosofia de Nietzsche como pressuposto, seja prudente relativizar as certezas enraizadas
no campo etnomatemático e que decorrem das crenças compartilhadas pelos diferentes
grupos atuantes nesta área específica. Destaca-se neste trabalho a certeza de que é relevante
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reconhecer-se e identificar-se no cenário acadêmico e delimitar (mesmo que parcialmente)
seu escopo investigativo de modo crítico e reflexivo a partir de um referencial filosófico
convergente dentro do campo. Finalizo este texto com a percepção que o debate filosófico
no campo etnomatemático ainda está aberto para pesquisas e investigações, repleto de
possibilidades e caminhos, mas, seguramente, um caminho que se mostra potente para a
área são os pensamentos nietzschianos.
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