segunda-feira, 6 de julho de 2009

CATARINA E A PAREDE by Sindri Nathanael


Uma parede nua. Nua e sem vida. Era assim que ela ficava admirada diante de sua capacidade de enxergar o nada em algo tão cheio de vida. Pois bem, a parede tinha vitalidade, mesmo sem uma mera camada de tinta, estava crua, apenas cimento endurecido externamente e entre os tijolos acastelados. Mais é que Catarina, apenas contemplava a superficialidade, e não entendia que a divisória, era muito mais que isso, era inteiramente vital; tinha entre o amontoado de cimento e tijolos, suor humano, tinha dedicação e docilidade estampada na textura por quem a construiu, a parede era inteiramente humanizada, e isso era tão profundo, que ela não conseguia perceber, apenas julgava com a sensação fria que seus olhos vazios podiam lhe proporcionar. Culpa não tinha, seguia seu instinto limitado, pois ainda não descobrira outras formas de vê o mundo... E de vê paredes. De inúmeras formas tentava fazer com que as pessoas os vissem como ela própria considerava: sem sentido. E não é que algumas acreditavam mesmo. Até as crianças que são acostumadas a enxergar as coisas ao redor, com os olhos da alma, todas elas que se aproximaram, foram violentamente contaminadas pela frialdade de suas convicções. Os seres mais fracos, de frágil persuasão, esses eram naturalmente envolvidos com seu ceticismo, o que era um pecado. Não sabia Catarina, que tinha grande força no seu discurso, e que era um sacrilégio impedir crianças de sonhar. Ela mesma não sonhava.
De sua boca apenas manifestava-se o que sentia, e costumava sentir tudo com a dormência de um pós-operatório. Como um deserto castigado pelo sol ininterruptamente, sem a esperança de dias de aguaceiro, porque se chovesse um ínfimo chuviscar que fosse, para sutilmente umedecer-lhe os lábios e a língua branca, talvez experimentasse o espontâneo sentimento de gratidão. Ela não sabia agradecer. Desconhecia tal sentimento, não por nunca a terem ensinado a ser grata, pois isso ela sabia bem: só podia dar o que tinha. E reconhecimentos não havia em seu pálido ser, era puramente ela, a isso sempre fora legítima. Por isso, não era agradecida
à parede, por tê-la simplesmente, aquilo era só tijolo e cimento, nada mais.
Quanto à parede, continuava lá, sendo parede, nua e crua, com todos os desenhos fantásticos que só uma parede desprovida de cores pode ter. É que eles são vivos e autênticos, feitos da substância de que a própria parede fora feita. Uma parede não pede para ser pintada, não necessita de um azul ou vermelho para melhor existir, antes disso, deseja ser virgem, intocável pelas cores. Quando uma parede é pintada, escondem-se sua verdade, suas impressões digitais, seus olhos... Fica toda misteriosa em si mesma, um enigma a ser decifrado. O ato de observar paredes, estando elas em estado bruto, simplesmente com uma vasta camada de cimento seco, o reboco, (os tijolos é o esqueleto) é uma das sensações imaginativas mais fascinantes que se possa viver, é como vê desenhos em nuvens, a diferença é que, as nuvens são efêmeras, as paredes quase imortais. Uma parede só morre quando é pintada. Por vezes, quando uma já pintada, acentua manchas e descascados, ou quando a cor começa a desbotar brandamente, é a essência da parede lutando ferozmente para voltar a existir, é uma ressurreição. É permanente.
Quanto a elas, a parede, e Catarina, continuam convivendo na mesma casa. Juntas no mesmo lugar, trocando olhares... Catarina sempre apática e pretensiosa. A parede sempre desafiadora, na espera por ser descoberta, desejando que nunca Catarina, a cubra de tinta alguma, que nunca a mate, cobiçando humildemente ser tocada com a delicadeza de uma pluma nas pontas dos dedos. Ela, toda simples, conforma-se então, com aranhas, baratas e lagartixas a desvendá-la, já que mãos humanas, as de Catarina, seria o retorno de uma inocência perdida... Que talvez nunca viesse a existir.



22.09.2008

A DOR DE EXISTIR by Sindri Nathanael


Eis que ela encontrava-se no calor violento de uma noite funesta, envolta em quimeras e agouros. Com o corpo quase atenuado, alonga o vidro branco de absinto em suas mãos trêmulas, acreditando que dentro daquele frágil recipiente, haveria de ter, três ou quatro goles do líquido que sem mais demoras lhe ocasionaria o alívio de liberdade que tanto necessitava. Despudoradamente contemplava o pequeno frasco e tocava-o como se fosse à cruz de um terço, com uma fé que já havia morrido... Silenciosamente rezando para seu Deus secreto. Foi então, que deitada em seu leito, atravessou por reflexos de memórias esquecidas, como uma vidente ousada, em puríssimo transe, vendo toda sua miséria diante dos olhos enrugados no semblante paralisado, sentindo em cada marca de expressão, calafrios diante daquelas quatro paredes cinzentas. Suas lamentações terrenas ocuparam-lhe a mente perturbada por agudos amplificados em seus ouvidos, nos dois buracos vagos. Na inquietação do instante, aquele que lhe seria breve, pois já havia despejado na boca empalidecida o líquido mortífero, sofria sem resignação e sem piedade de si mesma, pois fora a decisão que tomara, e já não havia mais ocasião para revogar a sentença, fora algoz de si própria.
A juventude estava perdida no passado. Seu corpo já não era o mesmo, a pele que outrora fora esticada em branco-rosadas, encontrava-se subversiva e sem brilho, suas sobrancelhas claras limitavam-se a poucos pêlos a cima dos olhos, suas pálpebras abrumadas pelo tempo. O contorno de seu corpo, não lhe agradava em nada, pois era volumoso e sem delicadeza nas formas, as unhas amarelecidas e os cabelos branquinhos, quase prateados, tosquiados, eram ralos e enfraquecidos. Não se sentia confortável no próprio corpo, sofria dessa sensibilidade como doença, e isso ela já não podia suportar. Não podia.
Com demasiado esforço, ergueu as costas com sofreguidão arrastando as pernas para a lateral direita da cama, queria fazer seu último passeio pelo quarto que sempre fora seu refúgio seguro. Ao assentar seus fracos pés no chão, pode sentir a umidade proveniente da água de chuva da noite anterior, que escorrera pelas telhas trincadas, atingindo o retrato de seus falecidos pais, retrato este que estava inteiramente transfigurado dentro da moldura pelas goteiras passadas, apenas restavam às silhuetas. Seguiu vagarosamente, contemplado a mobília empoeirada, mais não pode vê com exatidão as coisas, pois sua visão encontrava-se turva, pois o extermínio aproximara-se cada vez mais. Ocorreu-lhe então, a tentativa de apalpamento: com o andar tremeluzindo, foi conduzida pelo instinto que a despedida provocara em seu íntimo, caminhou lentamente até a velha máquina de costura que se encontrava esquecida no canto do quarto, lado à cama. Foi tocando com delicadeza as formas enferrujadas daquela que tinha sido fabricadora de tantos lindos vestidos de cetim e chita, que a mesma havia costurado para enfeitar-se ao longo de sua juventude sem tanta amargura. Continuou a busca por percepções vagarosamente em cada minúcia, experimentou levar nas mãos seus tubos de linhas, foi quando cortou o polegar esquerdo, em um golpe súbito até o cerne da mão; é que havia uma tesoura em meio aos tubos. E foi aí, que descobrira que ainda experimentara a dor, pois um pequeno grito de agonia, quase um soluço manifestou-se de sua boca e ressoou pelo quarto inteiro. O morno sangue escorreu-lhe pelo braço manchando de carmim sua camisola de rendas encardidas, não era uma dor intolerável, esta era quase dormente, apenas sentira para perceber que ainda havia vitalidade em seu envelhecido corpo. Com as mãos ensangüentadas e vacilantes ousou caminhar seus dedos pela face empalidecida, e foi como mágicas visões no espelho de sua alma. Ligeiras brisas noturnas que atravessaram janela à dentro, por um instante resumido, trouxeram-lhe o frescor da juventude. Em sua memória, recordou-se de como fora bonita, e de exultante beleza, sentiu com docilidade cada ruga desvanecer-se junto ao ar que saía ainda quente de seus pulmões, era como se todos aqueles anos pactuados com seu corpo dessem-lhe um último presente; fugindo de sua pessoa por um breve momento.
Que alívio sentira, e como era bom sentir seus seios novamente na altura certa, redondos e empinados, os mamilos rosados e convidativos. Tocou-se com um prazer quase sádico, apertou as pontas dos seios com excitação, escorreu as mãos agora magras pelo corpo liso e torneado, passando pelo umbigo onde percorreu as pontas dos dedos em movimentos circulares, como que brinca-se de descobrir o que era aquele pequeno furo, e não hesitou em descer um pouco mais as mãos até sentir os pêlos que anunciava o lugar onde queria chegar. Enrijeceu os dois dedos posteriores ao polegar, e com urgência penetrou na fenda ali contida, vasculhou o recinto a procura do que seria a saída do labirinto, onde desfrutaria do prazer que não era sólido. Não demorou muito pra que alcançasse a ápice de seu contentamento, assim, como não delongou a perceber que estava toda vermelha em sangue, como se houvesse desenhado a via sacra em seu corpo, desde o busto até os quadris. E que susto ocorreu-lhe ao se deparar com tamanho absurdo que vivera, sentiu os ossos ficarem completamente escuros com a humilhação que se submetera. Não podia crer que ainda estava naquele corpo avelhantado, de mulher humilhada pelo tempo. Era uma ferida seca, agora umedecida de sanguíneo pesar.
Quase sem poder sustentar o próprio peso, arrastou-se com demasiado esforço para a janela, fitou os céus, onde a lua pairava estridente, sem muitas estrelas, e ainda pode divagar pensamentos. Viu-se diante de uma brutal situação, irremediável, como ela mesma era, sabia que havia passado todos os seus dias perseguindo ilusões, gastando todos os instantes que escorriam como areia do tempo por entre os dedos, na inabalável espera por uma segunda chance, por uma breve mudança que resolveria tudo, consecutivamente criara um motivo para não se sentir boa o bastante, ininterruptamente cansada de seguir em frente. E como era difícil no fim do dia, contemplar o crepúsculo, sem carecer de alguma distração, de alguma perfeita libertação e sem peso talvez encontrar uma precária paz para dormir sossegada.
Sem nada para improvisar, sem uma última confissão, sem o conforto esperado e que sempre lhe fora negado, ela volta para cama quase desfalecendo, deita-se com a cabeça no travesseiro mofado. Ciente de que fora derrotada pela vida, entoa uma canção pesarosa, cantado ruidosamente, humildemente despedindo-se da existência que tanto lhe atormentou, até sentir seu sangue agora apressadamente congelar e o coração emudecer. Inevitavelmente nesta noite ela está em sua cama pela última vez, amanhã estarão sem ela; à morte murmurará em seus ouvidos de senhora aniquilada, “Tu foste bela... Em nome do Pai, do Filho, e do Espírito Santo, amém”. Ela morre ao som da real celebração, na solidão de que sempre se habituou e que não pode se esquivar em nenhuma estação, descansa envolta em perfumes noturnos de uma noite que não foi menos triste com sua morte... “Os sinos chamam todos para missa da que em vida chamou-se Dolores Socorro do Pesar”.

22.09.2008