O Vandalismo Da Arte Publica

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REVISTA DE CIÊNCIAS DA ARTE — DEZEMBRO 2015 — Nº1 ARTE PÚBLICA

Ficha Técnica

Convocarte − Plataforma digital de edição e Abreviaturas


Revista de Ciências da Arte contactos FBAUL – Faculdade de Belas Artes
Revista Internacional Digital com www.convocarte.fba.ul.pt da Universidade de Lisboa
Comissão Científica edições da FBAUL: www. CIEBA – Centro de Investigação e
Editorial e Revisão de Pares belasartes.ulisboa.pt/revistas/ Estudos em Belas Artes
e-mail: [email protected] FH – secção Francisco d’Holanda
Nº1, 2015 do CIEBA
Tema do Dossier Temático PVP PD-FCTAS – Programa Doutoral
Arte Pública versão digital gratuita em em Filosofia da Ciência,
www.convocarte.fba.ul.pt Tecnologia, Arte e Sociedade
Ideia e Coordenação Geral Versão impressa: por encomenda FCUL – Faculdade de Ciências da
Fernando Rosa Dias Pedidos de volume em papel: Universidade de Lisboa
Isabel Nunes FCSH-UNL – Faculdade de
Coordenação Científica do Ciências Sociais e Humanas da
Dossier Temático Publicidade, Relações Públicas Universidade Nova de Lisboa
nº1 − Arte Pública da FBAUL
José Pedro Regatão Isabel Nunes Capa
(+351) 213 252 108 Imagem
Periodicidade [email protected]
Anual Capa do Dossier Temático
Design Gráfico Imagem
Edição Caroline F. Torres
FBAUL-CIEBA Joana Bernardo
(Secção Francisco d´Holanda e João Capitolino
Área de Ciências da Arte e do
Património) Apoio à edição digital
Ricardo Vilhena, Paulo Santos e
ISSN Tomás Gouveia (FBAUL)
000000000
ISBN Conselho Científico Editorial e
000000000 Pares Académicos − nº1

Propriedade e Serviços Interno à FBAUL


Faculdade de Belas Artes da Fernando Rosa Dias
Universidade de Lisboa (FBAUL) Cristina Tavares
Centro de Investigação e Estudos Eduardo Duarte
em Belas Artes (CIEBA), secção
Francisco d’Holanda (FH), Área de Externo à FBAUL
Ciências da Arte e do Património José Pedro Regatão
(gabinete 4.23) Javier Maderuelo
Largo da Academia Nacional de Juan Carlos Ramos Guadix
Belas Artes, 1249-058 Lisboa Ângela Ancora da Luz
(+351) 213 252 100 Raquel Henriques da Silva
www.fba.ul.pt Isabel Nogueira
Índice

Pág—006 Pág—090 Pág—176


Editorial A Escultura Pública A arte de José Datrino, o
Portuguesa em 1949, fora da “profeta gentileza”, e suas
Pág—011 Exposição de Belém 56 inscrições nas pilastras do
Dossier Temático — Arte — Joaquim Saial viaduto da Avenida Brasil no
Pública Rio de Janeiro
Pág—107 — Ângela Ancora da Luz
Pág—012 Monumento
Introdução Multiculturalidade — uma Pág—188
— José Pedro Regatão experiência participada A Olhar para as Paredes
— José Francisco Alves — Marta Traquino
Pág—014
As Origens Históricas da Arte Pág—121 Pág—199
Pública Significado de Arte Urbana, Arte Pública e Política
— José Guilherme Abreu Lisboa 2008-2014 — Cristina Cruzeiro
— Pedro Neves
Pág—028 Pág—214
Poéticas da Arte Pública Pág—135 Alguns Factores
Relacional: da Forma ao Escultura e a re-simbolização Determinantes para o Impacto
Agenciamento das Relações do espaço público no pós-25 da Arte Urbana em Lisboa
como motor da Obra de Abril: A evocação de “Os — Sílvia Câmara
— Herbert Rolim Perseguidos” em Almada
— Sérgio Vicente Pág—230
Pág—043 Caçadores da Noite
Deambulações pela Arte Pág—154 — Mauro Trindade
(como coisa) Pública Duas Narrativas para o meu
— Mário Caeiro País nos Painéis de Almada Pág—241
Negreiros Estudos de Historiografia e
Pág—066 — Cristina Tavares Crítica de Arte Portuguesa
Do Monumento Público
Tradicional à Arte Pública Pág—162 Pág—242
Contemporânea Olhar em Movimento: As Historiografia da Arte
— José Pedro Regatão Intervenções Cerâmicas Portuguesa - pioneiros e
de Catarina e Rita Almada precursores
Pág—077 Negreiros no Ascensor da — Margarida Calado
O Vandalismos da Arte Bica e na Estação Sul/Sueste
Pública do Terreiro do Paço
— Victor Correia — Daniela Simões
Pág—253 Pág—317 Pág—344
Três Jornais de Belas-Artes A Galeria Virtual do Post- Do Desenho e do Ordemar
do século XIX em Portugal — Screen Festival 2014 do Tempo: Catarina Patrício e
Eduardo Duarte — Diogo Freitas da Costa Emília Nadal na Galeria São
Mamede
Pág—270 Pág—321 — Cláudia Simenta
Crítica de Arte na Década do 7 Mil Milhões de Outros
Silêncio — Carina Fonseca Pág—349
— Fernando Rosa Dias Guilherme Parente
Pág—325 — Raquel Farelo
Pág—283 Shadow of a Doubt
Exposição “Artistas — Joana Ottone Pág—352
Portuguesas” e o Papel Actividades Convocarte
da Mulher na Arte da Pós- Pág—327
Revolução André Príncipe - Antena 2 Pág—355
— Cláudia Simenta — David Gonçalves Procedimentos e Orientações
de publicação em Convocarte
Pág—303 Pág—330
Crítica de Exposições e Francisco Tropa Pág—361
Eventos Culturais — Cláudia Ramos Apresentação do próximo
número
Pág—305 Pág—333
Fátima Mendonça – Operando Carla Cabanas
(Com) o Medo — Rita Branco
— Cláudia Simenta
Pág—335
Pág—308 Imagerie — Casa de Imagens
José de Guimarães no TMG — Catarina Pinto
— Joana Correia Saraiva
Pág—337
Pág—310 Finok
Viktor Ferrando — Margarida Barros
— Mariana Salgueiro
Pág—340
Pág—313 Modernidades: Fotografia
Salette Tavares Brasileira (1940-1964)
— Margarida Eloy — Lara Neto
Editorial

A
– CONVOCARTE Nº.1 | EDITORIAL

revista digital Convocarte – Revista


de Ciências da Arte visa promover o
debate e edição de questões artís-
ticas no espaço universitário, tendo as se-
guintes coordenadas dominantes: convocar
um número de especialistas em torno de
um tema do mundo das artes, integrar tra-
balhos relevantes desenvolvidos nas fases
curriculares e de projecto dos mestrados e
de doutoramento da FBAUL e publicar tra-
balhos desenvolvidos em linhas de investi-
gação do CIEBA.

O nome Convocarte, sobrevivente entre op-


ções várias que o grupo de trabalho foi lan-
çando, entre membros do Conselho Cien-
tífico Editorial, professores da FBAUL e até
alguns ensaístas, foi preferência assente na
simpatia pelo modo como esta aglutina-
ção linguística apela ao espírito de partilha
e discussão implicada na compreensão da
expressão: Convocar o Outro (para as ques-
tões artísticas). Convoca-se um tema, como
um primeiro plano ou palco que recebe um
segundo, a dos ensaístas, especialistas que
têm investido na problematização desse
tema. Daí a solução da moldura, proposta
pela equipa do design, como definição de
um lugar onde se inscreve no seu interior como abona o mais recente desenvolvi-
um tema de debate. O espírito da convoca- mento de uma noção de Investigação em
ção transporta ainda uma dimensão social e Arte que tem marcado os últimos anos dos
inter-subjectiva privilegiada, útil aos meca- espaços artísticos de formação superior2.
nismos das artes e humanísticas, e que nos
sugere a tradição, tão importante na cultura A estrutura base da Convocarte assenta em
portuguesa dos últimos dois séculos, da ter- três partes ou pastas que conjugam diferen-
túlia artística e literária. A convocação da al- tes intenções:
teridade na constituição de um grupo plural
de discussão em torno de um tema é a nos- 1. O Dossier Temático, central neste projec-
sa proposta capital de Convocarte. to editorial, que caracteriza com um tema
particular cada número na convocação de
Aproveitando os meios digitais, esta revista especialistas. Os ensaios do Dossier Temá-
pretende ser um mecanismo científico ágil tico tiveram, neste primeiro número dedica-
e dinâmico, com uma larga plataforma de do à Arte Pública, o seguinte plano de se-
modos de reflexão sobre as artes (sobre- quência que define a ordem do seu índice
tudo visuais), sendo expressão do modo (uma orientação base para futuros números,
sincrético de funcionamento afecto à área embora passível de ajustamentos particula-
científica de Ciências da Arte e do Patrimó- res, consoante os temas):
nio (aberto a outras especialidades interes-
sadas em contribuir para a reflexão sobre • Textos teóricos ou doutrinais relativos
as artes em geral), incorporando ensaios de ao tema, mais perto do âmbito da filoso-
predomínio teórico enraizado nos mais pre- fia, da estética ou da teoria da arte.
dominantes modos de discurso sobre arte: • Textos históricos, com panoramas ou
História da arte, Crítica de Arte, Estética, abordando tempos históricos.
Teorias da Arte e Curadoria. A revista pre- • Estudos de Caso.
tende ser uma plataforma de recepção de • Extensões ou confluências do tema –
trabalhos realizados no âmbito de linhas de no caso, Novos Géneros ou Fronteiras
investigação do CIEBA, sobretudo da sec- da Arte Pública.
ção Francisco d’Holanda. Nesta sequência
procurará estar perto de trabalhos produzi- 2. Um bloco de Estudos de Historiografia e
dos nos mestrados e doutoramento de es- Crítica de Arte Portuguesa, que inclui traba-
pecialidade das Ciências da Arte. Contudo, lhos desenvolvidos no âmbito das Ciências
o enquadramento na FBAUL fornece a esta da Arte, nos ciclos de formação e em linhas
dominante teórico uma dimensão peculiar, de investigação do CIEBA/Francisco d’Ho-
uma proximidade com a produção artísticas landa. São contributos para o estudo dos
e a convocação dos próprios artistas para discursos sobre a arte, com relevância maior
essa reflexão – esta proximidade não só es- na cultura portuguesa, em torno da historio-
tabelece modos particulares aos modos das grafia da arte, da crítica, da estética, etc.
Ciências da Arte no contexto da FBAUL1,

7
3. A última parte incorpora um conjunto de cia para o sincretismo e para a proximidade
críticas de exposições e eventos artísticos com a produção artística se tornam naturais.
decorridos ao longo do ano anterior, procu- Essa aproximação a dilemas da produção e
rando desenvolver uma plataforma de rela- a sua teorização está patente em vários co-
ção com eventos artísticos concretos. Este laboradores deste número, com formação
espaço crítico e de reflexão, de ligação do artística e alguns com produção regular –
espaço universitário à comunidade cultural e aspecto a que se pretende dar seguimento
artística em geral, procura contribuir com um em futuros números.
espaço dialogante de produção de fortuna
crítica das mais diversas actividades artísticas A constituição de um Conselho Científico
correntes, sobretudo afins às artes visuais. Editorial procura salvaguardar a qualidade
científica da revista, tendo esta as funções
– CONVOCARTE Nº.1 | EDITORIAL

Entre estas partes que a revista compõe, tem de sugestão de autores e de revisão de en-
centralidade o dossier temático que carac- saios com apreciações qualitativas, com
teriza cada número. Sendo mais alargado possíveis sugestões de melhoria. Uma das
e aprofundado, procura abordar um tema suas primeiras funções é essa proposta dos
especial no campo das artes. Para cada nú- ensaístas. O sistema de convites procura
mero há um especialista convidado para a orientar a harmonia e equilíbrio dos conteú-
sua coordenação desse dossier temático e dos, propondo pluralidade de perspectivas,
que vai integrar o Conselho Científico Edi- mas evitando tanto redundâncias como au-
torial. O sistema de solicitação de textos é sências de questões relevantes do tema.
por convite e com base na confiança cien- Em futuros números, o Conselho Científico
tífica de outros especialistas, funcionando Editorial aceitará propostas exterior, não no
o Conselho Científico Editorial não como modelo de call for papers, mas de vontade
modo de escrutínio (não há submissão de de adesão e participar na discussão de um
textos), mas de disposição de um espaço tema no âmbito das artes. Fica assim anun-
de discussão a todos os textos. É com estas ciado, no final, o tema seguinte no final de
coordenadas que convidámos a participar cada Convocarte.
no nosso primeiro número, com coordena-
ção especial do dossier-tema em torno da Relativamente à revisão de pares, não
questão da arte pública (Arte Pública: No- seguimos a generalização recente do mode-
vas Práticas e Fronteiras), o Professor José lo de origem anglo-saxónica e das Faculda-
Pedro Regatão, com recente doutoramento des de tradição mais positivista, declinando
nesta área. que este modelo se apresente como único
nas Ciências em geral. Consideramos que
Se as Ciências das Artes têm afinidades este modelo, que se vem insinuando com
óbvias com o campo universitário das Ar- parca discussão nas artes e humanísticas
tes e Humanidades, elas devem considerar- (ou nas Ciências do Espírito)3, tem dimen-
-se no modo como se desenvolvem numa sões perniciosas nesta área, onde a tradição
Escola de Belas Artes, onde a sua tendên- da discussão e da crítica têm sido, desde há
muito, essenciais nos seus mecanismos de tas orientações únicas têm servido para
funcionamento. Assim, o que pretendemos arrancar às humanísticas as suas tradições.
foi criar um modelo de discussão de pares E, pela nossa experiência universitária nas
(mais do que revisão) insistindo da aprecia- humanísticas, consideramos que os siste-
ção qualitativa (e não quantitativa). A necessi- mas, e até as normas, podem ser escolhidos
dade de certa protecção científica por parte com oportunidade específica consoante as
das ciências do fenómeno ou dos números, características de cada texto. A defesa desta
ou se quisermos, das ciências naturais ou pluralidade produz em nós uma coerência
das exactas, perante interesses particulares, bem mais importante que a uniformidade.
sobretudo de âmbito económico, lançan- Nos textos em português, também optámos
do produtos que invadem o espaço público por deixar à consideração de cada autor
como pseudociência, criaram um necessá- outras decisões de funcionamentos: como
rio modelo de call por papers e peer-review a aceitação ou não do acordo ortográfico
que nas artes e humanidades tem menos (que nos recusamos a impor), e a tradução
pertinência – porque nestas as ameaças do (ou não) de citações noutras línguas utiliza-
mercado são menos; e porque estas não se das nos trabalhos, etc.
desejam exactas, emergindo da discussão e
da crítica, para funcionarem com outra den- Nesta mesma linha de questões, considera-
sidade de planos históricos (que não coinci- mos prejudicial às tradições e fundamentos
de com o plano mais recente de um «estado das artes e humanísticas, o recente domínio
da arte», outra expressão aqui desajustada) do inglês como língua da Universidade Eu-
e de graus de subjectividade. Não procuram ropeia. Defendemos a multiplicidade das
o rigor do fenómeno ou da função, mas es- línguas, onde o inglês é uma língua entre
peculam nos conceitos. O mundo da arte, so- outras, na mesma linha com que Gadamer
bretudo no plano teórico em que aqui mais louvou o projecto Europeu: «Pode, decer-
se manifesta, está bem perto desta tradição to, prever-se uma língua única para o futuro
– afinal, arte não é (apenas) um fenómeno fí- das ciências naturais, mas a questão é dife-
sico, mas (sobretudo) simbólico. rente no caso das ciências do espírito»4. A
revista está aberta a textos noutras línguas
Na mesma ordem de ideias, e contra a ten- que circulam com facilidade no nosso âm-
dência de implementação de normas das bito universitário (espanhol, francês, inglês),
mesmas origens universitárias, a invadirem mas com o princípio de que cada autor pen-
as humanísticas, assumimos a opção edi- se e escreva na sua língua natural.
torial da liberdade de escolha, por parte
de cada autor, de sistemas (autor/citação Agradecemos a todos os colaboradores
ou autor/data) e normas (ISO-690; EP-405; neste arranque de mais um projecto que
APA, MLA, Chicago, etc.) na indicação de procuramos que seja um contributo positi-
bibliografia e documentação. Esta recu- vo para a área das artes e humanidades e
sa de imposição de apenas uma norma, é a FBAUL: ao Conselho Científico Editorial,
também porque consideramos que cer- pelo modo exemplar como trabalhou este

9
diálogo entre pares; aos ensaístas, por nos tacar: Investigação em Artes
cederem o seu trabalho, por vezes de vários – Ironia, Crítica e Assimilação
anos, dispondo-o a este espaço de diálogo dos Métodos (coordenação
com ao Conselho Científico Editorial; aos de Fernando Rosa Dias, José
designers pelo modo como entenderam Quaresma, Alys Longley), Lis-
em modo gráficos, na paginação e na estru- boa: Escola Superior de Tea-
tura, o espírito da revista; aos colegas, pro- tro e Cinema; The University of
fessores e investigadores, de Ciências da Auckland: Creative Arts ans In-
Arte e do Património e da secção Francisco dustries Dance Studies, 2015;
d´Holanda do CIEBA, mesmo aos que não Investigação em Artes – A Osci-
estão neste número, por apoiarem este tra- lação dos Métodos (coordena-
balho; e aos diferentes serviços da Faculda- ção de José Quaresma, Fernan-
– CONVOCARTE Nº.1 | EDITORIAL

de, com destaque às Relações Públicas, que do Rosa Dias), Lisboa: Centro
nos ajudaram na melhor inserção editorial de Filosofia da Faculdade de
desta edição no site da FBAUL e na sua di- Letras, 2015; Investigação em
vulgação pelas plataformas institucionais. Arte e Design: Fendas no Méto-
do e na Criação (Vol.II) (coorde-
A Coordenação Geral nação de Fernando Rosa Dias,
José Quaresma, Juan Carlos
Guadix), Lisboa: Universidade
de Lisboa, Faculdade de Belas
— Notas
Artes, 2011; Investigação em
1
Cf. Fernando Rosa Dias, Fer- Arte – Uma Floresta, muitos ca-
nando António Baptista Perei- minhos (coordenação de Fer-
ra, «Ciências da arte e criação nando Rosa Dias, José Qua-
artística: solidariedades para resma, Juan Carlos Guadix),
uma investigação em arte», in Universidade de Lisboa, Fa-
Investigação em Arte e Design: culdade de Belas Artes, CIEBA,
Fendas no Método e na Cria- 2010.
ção (Vol.II) (coordenação de 3
A que Gadamer chama Ciên-
Fernando Rosa Dias, José Qua- cias do Espírito (Alemanha),
resma, Juan Carlos Guadix), Lis- Lettres (França), Moral Sciences
boa: Universidade de Lisboa, ou Humanities (cultura an-
Faculdade de Belas Artes, 2011, glo-saxónica). Cf. Hans-Georg
pp.215-228. Gadamer, «O Futuro das Ciên-
2
Veja-se a linha editorial, nasci- cias do Espírito Europeias»
da na FBAUL em 2010, de pu- (1983), in Herança e Futuro da
blicação universitária de cola- Europa, Lisboa: Edições 70,
boração internacional sobre a 1998, p.29.
Investigação em Artes, a des- 4
Ibidem, p.29.
José Guilherme Abreu
Herbert Rolim
Mário Caeiro
José Pedro Regatão
Victor Correia
Joaquim Saial
José Francisco Alves
Pedro Neves
Sérgio Vicente
Cristina Tavares
Daniela Simões
Ângela Ancora da Luz
Marta Traquino
Cristina Cruzeiro
Sílvia Câmara
Mauro Trindade
Ar te Pública
Introdução
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

A
o longo de mais de meio século de
produção teórica dirigida ao estu-
do da arte pública, podemos hoje
identificar várias linhas de pensamento que
originaram diferentes perspetivas e abor-
dagens ao tema. À luz dessa investigação
produzida em diversas partes do mundo,
foi possível constituir um quadro teórico
específico para a compreensão e análise
deste fenómeno. Isto permitiu obter algu-
mas respostas para as questões que se co-
locavam sobre o assunto, nomeadamente
a questão de fundo que se prende com a
origem e significado da arte pública, mas
também com a sua função na cidade con-
temporânea. Sabemos hoje que as cidades
enfrentam diversos desafios não só em ter-
mos urbanísticos e arquitetónicos, com a
necessidade de planificar e organizar o es-
paço, mas também no campo da sustenta-
bilidade, da preservação do património e
da sua estética urbana.

Depois de alcançado um relativo consenso


sobre o significado do termo, bem como o
reconhecimento da sua autonomia discipli-
nar, surgiram ao longo das últimas décadas
diversos desafios a esta disciplina. É impor- são evidentes quer do ponto de vista esté-
tante referir o desenvolvimento de determi- tico, quer na sua dimensão social e econó-
nadas vertentes que vieram expandir este mica, como testemunham diversos estudos
campo teórico, como é o caso da street art que avaliaram o seu impacto. A importân-
que nos tem oferecido uma produção artís- cia da implementação destes programas,
tica diversa e estimulante. Para além do for- que em boa parte tiveram na base um sen-
te impacto que gerou no espaço público, tido de valorização do espaço urbano, pro-
as propostas daqui resultantes destacaram- porcionou a criação de obras artísticas que
-se pela sua originalidade e poder subver- constituem hoje referências locais e inter-
sivo. Neste sentido, não só revitalizaram o nacionais. Seja, de natureza permanente ou
lado da contra-cultura da arte, como fizeram efémera, proliferam programas de arte pú-
emergir novos campos de debate que se blica um pouco por todo o mundo, tendo
afiguram profícuos para o desenvolvimento em vista melhorar esteticamente o ambien-
desta disciplina. te urbano e proporcionar uma melhor qua-
lidade de vida ao cidadão.
É estimulante perceber que a arte pública é
uma área de estudo dinâmica, inesgotável Esta primeira edição da Revista Convocarte
e universal, na medida em que é constan- dedicada ao estudo da Arte Pública, cons-
temente alimentada pela produção artísti- titui-se enquanto espaço aberto para a dis-
ca contemporânea e se concretiza no quo- cussão, partilha e reflexão sobre uma das
tidiano das nossas cidades. Por outro lado, problemáticas mais atuais e pertinentes
continua a reinventar-se revelando grandes dos estudos artísticos. Aqui se reúnem um
possibilidades expressivas, através de pro- conjunto de ensaios produzidos por alguns
postas que promovem novas experiências dos principais especialistas e investigado-
estético-percetivas. A popularidade que al- res do tema, que analisam e abordam o fe-
cançou nos nossos dias, derivado de uma nómeno em diferentes perspetivas. Esta
maior atenção por parte de particulares e publicação universitária não só representa
instituições, aparece formalizada no discurso uma oportunidade para incentivar o estu-
público da “sociedade hipermoderna”. Para do e a reflexão sobre a arte pública, como
esse efeito, também se observa a exposição também contribui para a consolidação e o
mediática de algumas obras e artistas, contri- avanço do conhecimento desta área.
buindo em boa parte para o alargamento do
interesse por esta área artística. José Pedro Regatão

Como nunca antes, a arte pública tornou-


-se exemplo de desenvolvimento urbano e
modernidade, um fator de prestígio e noto-
riedade para as cidades, com capacidade
de imprimir uma imagem forte e atrativa no
contexto internacional. Os seus benefícios

13
As Origens Históricas da Arte Pública

por José Guilherme Abreu


Doutor em História da Arte, professor, investigador e conferencista membro
do Centro de Investigação em Ciência e Tecnologia das Artes da UCP-Porto.

Our study states the role that applied arts, as they were
meant by Arts and Crafts movement’s socialistic ideario,
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

have had in the expansion of the concept and use of 1. Introdução


art works, beyond the values of formal and symbolic
representations which have supported the academic A história da Arte Pública é um lugar cego
system of the fine arts since the Renaissance. no âmbito do seu estudo, e se é verdade
By Modern Public Art, we refer to the movement que desde as últimas décadas do século
launched, under the designation of “Public Art”, by a XX a investigação sobre este segmento de
series of “Public Art Societies” which were created both produção artística tem conhecido um de-
in Europe and North-America in the last quarter of the senvolvimento notável na bibliografia an-
19th century, having as first major public appearance the glo-saxónica e mais recentemente, em caste-
cosmopolitan stages of the Great Universal Expositions. lhano e até em português, os trabalhos têm
This international movement came to an end after the incidido essencialmente sobre casos de es-
first decade of the 20th century, due to the growth tudo, desde obras, projetos ou intervenções
of international political, economic and bellicose autorais, para se estender, nos contributos
antagonism, which first lead to the raise of nationalistic mais interessantes, a programas de regene-
ideologies and soon to military confront, blocking the ração urbana ou de participação comunitá-
young international movement in favour of Public Art. ria, onde são analisadas sobretudo as lingua-
gens plásticas, as estratégias de produção
artística e, por vezes, as tensões causadas
pela receção pública das obras, sendo assim
residuais os trabalhos sobre os problemas e
os conceitos de uma teoria da Arte Pública,
que globalmente está por estabelecer.

Finalmente, importa esclarecer um ponto


preliminar de fundo. É problemático locali-
zar a origem da Arte Pública no passado
remoto, como Roma, Atenas, Egipto,  Índia,
Camboja, etc., porque em última análise
essa é uma atribuição nossa. Na época, a O facto da noção de espaço público se ter
produção monumental não se designava tornado difusa e multidimensional, denota a
Arte Pública, porque não existiam coleções revolução pelo que tem vindo a passar o âm-
privadas que dela se diferenciassem, e que bito da sua abrangência, âmbito esse que,
com ela estabelecessem uma coabitação ou como parece óbvio, se encontra em fase de
tensão dialéticas. problemático e inusitado alargamento.

Foi na Bélgica e nos Estados Unidos, em fi- Tentado encontrar uma correspondência
nais do séc. XIX, que pela primeira vez sur- histórica, uma revolução similar, ou pelo
giram sociedades que explicitamente se menos equivalente, ocorreu no século XIX
designavam como promotoras da Arte Pú- com a delimitação das cidades, depois de
blica, devendo por isso situar-se aí as ori- terem sido suprimidas as suas muralhas. De
gens do ciclo da Arte Pública moderna: espaços bem definidos e confinados, as ci-
aquele em que a Arte Pública se opõe ao dades tornaram-se espaços difusos. Abri-
sistema de coleções mercantilizadas e/ou ram-se ao território circundante, perderam
institucionalizadas de obras de arte. o aspeto de estruturas fechadas, mas como
é evidente não desapareceram. Pelo contrá-
2. Complexo conceptual da Arte Pública rio, expandiram-se, tornando-se metrópoles
e agregando-se em extensas conurbações.
Como refere José Bragança de Miranda, a
noção de espaço público presentemente Assim sendo, um primeiro problema surge:
encontra-se em crise, pois se não é contro- sem poder usar a regra da delimitação to-
verso o seu significado, mais problemático pológica, o que poderá em seu lugar servir
se torna proceder à sua delimitação, pois de critério para delimitar o conceito de Arte
como o autor afirma “o que está entrando Pública?
em crise é a noção de um espaço públi-
co bem definido, um espaço entre outros, Para o fazer, a nossa proposta é utilizar um cri-
como seria o sector privado, o governo, ou tério, por assim dizer, programático. Em vez
o estado”1. de um critério único e exclusivo, preferimos
reunir uma série de aspetos e de premissas
Importa tirar desta circunstância as devidas (uma organização sistémica) que permitam
ilações, pois não sendo o conceito de espa- estabelecer um corpus coerente e que resul-
ço público, pelo menos atualmente, um con- tem de um modus operandi comum.
ceito bem delimitado, tornam-se destituídas
de valor epistemológico todas as definições Ou seja, em vez de definir um conceito, es-
que se estabeleçam, tomando como ponto tabelecer um complexo conceptual.
de partida esse critério, facto que serve para
evidenciar desde logo o carácter equívoco E esse complexo conceptual formula-se como
da expressão “Arte no Espaço Público”. corpus e modus operandi de um ideário.

– JOSÉ GUILHERME ABREU 15


E qual seria o ideário da Arte Pública? tística, e obriga a uma negociação que não
é amável para a totalidade dos artistas, ao
Fazendo jus ao sentido etimológico da no- mesmo tempo que provoca comportamen-
ção de coisa pública, o ideário da Arte Pú- tos públicos de rejeição, senão mesmo de
blica traduz-se hoje, porventura, algo utopi- mutilação ou destruição das obras, desde
camente, a partir de duas facetas opostas: logo porque as mesmas não gozam de pro-
teção e ficam expostas a agressões desen-
Por um lado, pelo programa inclusivo de cadeadas por diferentes motivos, como, por
englobar num mesmo corpus, ou seja, num exemplo, por constituírem representações
mesmo conjunto de objetivos e de resulta- de poderes prepotentes ou corruptos, por
dos, a totalidade dos artistas e a totalidade expressarem memórias dolorosas ou trau-
do público. máticas e/ou por manifestarem linguagens
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

plásticas obsoletas ou herméticas.


Por outro lado, pelo modus operandi restri-
tivo, ou seja, pelo seu regime específico de Pelo acima exposto, a nossa tese é que aqui-
produção, distinto do restante segmento lo que melhor caracteriza e diferencia a Arte
das artes plásticas. Pública é a circunstância da mesma ser de-
tentora de um ideário que a diferencia das
Para compreender adequadamente o regi- restantes modalidades de produção artísti-
me de produção da Arte Pública, importa ca, na medida em que visa aproximar a arte
convocar a distinção que Nelson Goodman dos cidadãos, usando meios, linguagens e
estabelece entre artes autográficas e artes formas que sirvam para o seu uso, prazer e/
alográficas2. ou instrução.

Como explica Antoni Remesar, a dimensão Ironicamente, porém, o público é atualmen-


alográfica da Arte Pública, para além do te muito heterogéneo e, por isso, a Arte
sistema de notação que a mesma utiliza, é Pública confronta-se com a dificuldade de
condicionada pelos seguintes fatores: constituir o seu próprio público, o qual em
consonância com o seu ideário não poderá
“En el caso del Arte público la alogenera- ser senão a totalidade do público.
ción proviene de forma sistemática del aná-
lisis del contexto y de las características del 3. A formação da Arte Pública Moderna
emplazamiento. Ambos factores pueden
obligar a la introducción de modificaciones Pareceu-nos útil começar pela ingrata ques-
sustanciales en el modo de relación estética tão da definição da noção de Arte Pública,
entre el escultor y la obra”3. pois sem definir o seu âmbito, dificilmente
se pode avançar no sentido de saber donde
O regime de produção inerente à Arte Pú- a mesma procede historicamente, pois se o
blica impõe, como se sabe, uma limitação critério espacial se apresenta como inade-
fortemente condicionadora da criação ar- quado para servir de fronteira delimitadora,
também os critérios formal ou tipológico se and Crafts possuía características ornamen-
afiguram não mais adequados do que aque- tais e socializantes, na mira do tal ideário.
le, já que no âmbito da Arte Pública contem-
porânea se encontram exercícios formais ou Vamos abordar aqui somente o primeiro
tipologias que não se distinguem dos res- dos dois núcleos, que de resto é o mais re-
tantes segmentos de produção. levante para o conhecimento da origem da
Arte Pública moderna.
De resto, retomando o raciocínio, o ideário
particular que diferencia hoje a Arte Públi- Esse núcleo organizou-se na Bélgica, como
ca não é inédito, e inclusive para melhor o legado e adaptação do movimento Arts and
captar e analisar, convém mesmo remontar Crafs, que irrompeu, na segunda metade
às suas origens, pois é ali que se descobrem do século XIX, na Grã-Bretanha, à volta de
os enunciados e os preceitos que a esse tí- John Ruskin de William Morris.
tulo são mais esclarecedores.
Como o manual de leitura do tradutor e
É que a Arte Pública, contrariamente ao que professor holandês Taco de Beer o demons-
a literatura anglo-saxónica tem sustentado, tra4, o livro “News from Nowhere” de William
não tem origem nos programas Art in Ar- Morris é ali mencionado, comprovando-se
chitecture do após-guerra, nem sequer nos assim a receção do movimento Arts and
programas do New Deal, como o Federal Crafts nos Países Baixos, logo em 1874.
Art Project ou o National Edowement for the
Arts, lançados pela Administração Roose- De citado e conhecido nos Países Baixos
velt, nos Anos 30. em 1874, a partir da década seguinte o
movimento britânico passa a ser adotado
A sua origem é bastante anterior, já que re- e difundido por Henry van de Velde, que
monta à segunda metade do século XIX, na o dissemina pela Bélgica e pela Alemanha,
medida em que o embrião mais antigo da definindo uma estética de caráter ornamen-
Arte Pública se forma na Europa como pro- tal e utilitário, sob a égide e o primado das
longamento natural do movimento Arts and Artes Aplicadas.
Crafts, de onde procede, justamente, o seu
ideário, e onde vem beber os enunciados O segundo núcleo surgiu nos Estados
estéticos e programas artísticos que logo Unidos, depois da Exposição Universal de
adota e proclama. Chicago (1893), influenciado pelo reviva-
lismo neoclássico e pelo ecletismo arqui-
Ligeiramente mais recente do que este, um tetónico da École des Beaux-Arts de Paris,
segundo núcleo com características diver- e teve como principais mentores o arqui-
sas forma-se também nos Estados Unidos, teto norte-americano Daniel Burnham
em torno do movimento City Beautiful, de- e o escultor, também norte-americano,
notando este características monumentais Augustus Saint-Gaudens, mediante uma
e ecléticas, ao passo que o movimento Arts conceção sobretudo monumental, sob a

– JOSÉ GUILHERME ABREU 17


designação de City Beautiful Movement, développer les conséquences, débarrasser
como já vimos. la voie des attaches au passé, trouver les for-
mes nouvelles, et surtout définir nettement
Sobre o movimento belga, num estudo re- dans leurs œuvres les principes auxquels
cente, o professor Lieske Tibbe refere: Morris n’avait fait que préluder”6.

“The first Dutch publication in which William E o historiador, logo a seguir, introduz dois
Morris was mentioned dates from 1874. In novos aspetos que são determinantes para
that year a textbook on English literature for a fundamentação da tese de que a Arte Pú-
secondary education introduces Morris as a blica moderna tem a sua origem nas Artes
lesser known though gifted author. In 1890 Aplicadas:
‘A kings’s lesson’ (‘De les van eenen koning’)
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

appears in the popular weekly De Amster- “Un des artistes venus après Morris, dont le
dammer. This first translation of Morris’s was nom s’identifie le mieux avec le mouvement
followed by translation of News from Nowhe- dont il s’agit, fut Henry Van de Velde. Dans
re, to be published in installments in the so- le vaste domaine de l’art appliqué, aucune
cialist magazine in Recht voor Allen. This pu- branche n’a échappé à son action. Le meuble,
blication was not finished, but a complete l’appareil d’éclairage, le bijou, le papier
translation was published as a book in 1897. de tenture, voire la céramique et la reliure
By then Morris was already a rather well-k- appartiennent à son domaine. Tous ont été
nown figure in socialist and artistic circles. de sa part l’objet de combinaisons non seu-
The bibliography shows that also during the lement ingénieuses, mais d’un goût délicat”7.
20th century a small but constant stream of
publications on his life and work has appea- O pintor e arquiteto belga Henry van de
red in the Netherlands and Flanders”5. Velde foi um recetor atento da literatura
(e do ideário) do movimento Arts and Cra-
Outro testemunho coincidente, e mais anti- fts e, logo em 1894, publicava um artigo
go, encontra-se na obra, por assim dizer clás- na revista La Société Nouvelle com o título
sica, do historiador da arte de nacionalidade “Déblaiement d’Art”8 (Depuração da Arte),
belga Henry Adriaan Hymans, que citando onde anunciava o fim da “pintura de cavale-
um artigo da revista francesa L’Art Décoratif, te”, pois esta havia-se tornado decadente e
publicado em 1 de outubro de 1898, refere: de mau gosto, por se colocar ao serviço da
“corrompida e caduca” sociedade burgue-
“L’Angleterre, qui donne le signal du départ sa, como explica:
dans la voie des transformations, s’est arrê-
tée en chemin successeurs de Morris et de “Ce qui ne profite qu’à un seul est bien près
Crâne s’immobilisent dans l’œuvre de ces d’être inutile et dans la société prochaine, il
premiers apôtres de l’art nouveau. Leurs vrais ne sera considéré que ce qui est utile et pro-
continuateurs sont les Belges qui, reprenant fitable à tous. Et quand les artistes songeront
le mouvement anglais à l’origine, surent en à faire œuvre utile, ce qui ne les déconsidé-
rera aucunement, ce sera la fin du tableau,
de la statue qui sont des expressions épui-
sées et scrofuleuses”9.

Henry van de Velde não estava sozinho


neste ideário a favor de uma nova
arte ornamental e aplicada e dedicou-
se mesmo a projetar e construir obras
públicas, incluindo memorais arquitetóni-
cos e monumentos escultóricos. Henry Van De Velde e Harry Graf Kessler, Memorial a Friedrich
Nietzsche, 1910-14, Weimar (não construído).
Fonte: Hartmut Frank, Architettura, guerra e ricordo, In, La Rivista di
Além de Van de Velde, e mesmo anterior Engramma (online), nº 113.

a este e com consequências práticas notá-


veis, importa referir a figura do arquiteto
belga Charles Buls (1837-1914), o notável
burgomestre de Bruxelas, que foi junta-
mente com Ildefonso Cerda (1815-1876)
e Camillo Sitte (1843-1903) um dos pio-
neiros do urbanismo moderno e um ativo
promotor da Arte Urbana, com destaque
para o restauro da Grand Place de Bruxe-
las, onde se encontra um memorial à sua
pessoa e obra.

Vejamos alguns dados da sua vida e obra:

Em 1837, nasceu em Bruxelas, filho de um


joalheiro.
Em 1862, ingressa na loja maçónica Les
Vrais Amis.
Em 1864, ajuda a fundar a Ligue de l’En-
seignement.
Em 1867, escreve o Cours d’Histoire des
Arts Décoratifs. Victor Horta (arq.) e Victor Rousseau (esc.), Memorial ao
Em 1874, projeta o Musée des Arts Indus- burgomestre Charles Buls, 1899, Bruxelas.
Foto do autor.
triels.
Em 1877, é eleito conselheiro municipal
pelo Partido Liberal.
Em 1879, projeta a École Modèle.
Em 1881, é eleito Burgomestre de Bruxe-

– JOSÉ GUILHERME ABREU 19


las, sucedendo a Jules Anspach. escultor Jef Lambeaux, entre outros no-
Em 1893, publica L’Esthétique des Villes. mes bem conhecidos.
Em 1894, preside à associação L’Œuvre
d’art apliqué à la rue. A partir de abril de 1894, essa sociedade se-
Em 1899, abandona o lugar de Burgomes- ria presidida pelo próprio Charles Buls.
tre de Bruxelas.
Segundo a investigadora Céline Cheron,
Um minucioso estudo da sua vida e obra teria sido esta a história da criação desta
realizado pelo professor Marcel Smets ca- sociedade:
racteriza a sua ação à frente do governo do
Município de Bruxelas, como se segue: “La naissance de l’Œuvre de l’art appliqué
à la rue et aux objets d’utilité publique est
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

Política urbanística de inspiração pragmá- le résultat d’une réflexion s’inscrivant en


tica e realista. plein cœur du parcours artistique de l’ar-
Gestão municipal como uma escola de tiste-peintre et esthète Eugène Broerman
aplicação. (1861-1932). Premier lauréat du prix Go-
Renúncia ao urbanismo de grandes gestos. dercharle en 1881, il obtient une bourse
Revalorização de um passado glorioso. qui lui permet de visiter les plus belles
Reabilitação dos sítios históricos. villes d’Italie: Rome, Naples, Florence, Ra-
Intervenções pontuais: Grand Place, Petit venne, Venise, etc. Il est frappé par la beau-
Sablon, Joseph Stevens… té urbaine et l’harmonie qui règne de ma-
Pioneiro da aglomeração urbana planificada. nière ambiante dans ces villes. De retour
Valorização do décor urbano: concursos en Belgique, il débute son activité d’es-
de arte decorativa. thète en rédigeant un essai intitulé «L’Art
Promoção do turismo: Société Bruxelles-A- régénérateur». Il y dépeint sa volonté d’un
ttractions. art nouveau basé sur une renaissance es-
Criação de um cupão municipal de trans- thétique et sociale et le souhait de réfor-
porte social. mer l’art de la fin du XIXe siècle ainsi que
Criação de uma tarifa única em todos os les institutions qui lui sont consacrées. Il
tramways (elétricos) para os turistas. donne à cet art le nom d’«art public»”10.

Sob a sua inspiração, em 1893 foi cria- No artigo L’Art Régénérateur é utilizada,
da em Bruxelas uma sociedade de artes provavelmente pela primeira vez, a ex-
decorativas com a designação de “L’Œu- pressão Arte Pública para designar um
vre de l’art appliqué à la rue et aux ob- segmento de produção artística destinada
jets d’utilité publique”, que teve como a todos os cidadãos, expressão essa que,
promotor inicial o pintor Eugène Broer- segundo Marcel Smets, surgia como abre-
man, e que logrou obter a colaboração viatura do nome da referida Sociedade,
dos arquitetos Victor Horta e Edmond demasiado longo para ser usado comoda-
de Vigne, do pintor Alfred Cuysenaar, do mente como designação. Por outro lado,
a ideia apresentada no referido artigo de
Broerman11 não era inédita, tendo colhido
a sua origem em Saint-Simon, como já foi
observado por Marguerite Thibert12.

Os objetivos da mencionada Sociedade


de Artes Decorativas bruxelense eram:

“Créer une émulation entre les artistes, en


traçant une voie pratique où leurs travaux
s’inspirent de l’intérêt général ;

Revêtir d’une forme artistique tout ce qui se


rattache à la vie publique contemporaine.

Transformer les rues en musées pitto-


resques constituant des éléments variés
d’éducation pour le peuple;

Rendre à l’Art sa mission sociale d’autrefois,


en l’appliquant à l’Idée moderne dans tous les
domaines régis par les pouvoirs publics”13. Association L’Art appliqué à la Rue et aux Objets d’Utilité
Publique, 1895, Relatório de atividades
O conceito de Arte Pública proclamado por
essa Sociedade enunciava-se como se segue:

“L’Art public, c’est-à-dire, le sublime de


l’utile dans la vie publique, était ancienne-
ment une règle de civilisation à laquelle on
ne dérogeait que sous peine de déchéan-
ce morale, tandis qu’aujourd’hui, il est une
exception, et la vulgarité de l’utile dans la
vie publique est devenue générale!”14

Esta sociedade de Artes Aplicadas tem re-


levância não tanto pelas suas consequên-
cias práticas, uma vez que centrou a sua Société L’Œuvre de l’Art à la Rue et aux Objets d’Utilité
Publique, Sala na Exposição Internacional de Bruxelas,
ação mais na esfera da propaganda do seu
1897, Académie Royale des Beaux-Arts, Bruxelles, p. 172.
ideário, do que na promoção de progra-
mas de intervenção.

– JOSÉ GUILHERME ABREU 21


Ainda que, na sua origem, tivesse organi-
zado alguns concursos para desenho de
“fachadas, reclames, candelabros, fontes,
Quiosques e mesmo selos postais”, o impac-
te efetivo desta Sociedade de Arte Pública
na produção artística não foi de grande al-
cance, tendo mesmo sido criticada pela defi-
ciente qualidade estética dos seus modelos.

Não tendo grande impacte na produção


efetiva, o mérito maior desta Sociedade foi
lograr desencadear um movimento inter-
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

nacional a favor da Arte Pública, que teve


a sua primeira apresentação pública na Ex-
Catálogo do I Congresso Internacional de Arte Pública, 1898, posição Universal de Bruxelas, em 1898,
Bruxelas.
onde ocupou um espaço de exposição das
suas iniciativas.

Esse movimento culminou na organização


de quatro congressos internacionais, entre
os anos de 1898 e 1910, que se realizaram
em Bruxelas, em 1898, em Paris, em 1900,
em Liège, em 1905, e de novo em Bruxelas,
em 1910. Esses Congressos reuniram um
grande número de representações oficiais,
as quais compreenderam destacadas figu-
ras dos governos de países da Europa, da
América do Norte o do Sul, e Ásia, entre os
quais se encontrava uma representação ofi-
cial do Município de Madrid15, assim como
de dezenas de Câmaras Municipais, entre
as quais as de Lisboa e de Coimbra.

Além disso, dois destes congressos produ-


ziram importantes catálogos16, a partir dos
quais é possível traçar as linhas mestras da-
quele que foi o primeiro programa inter-
Revista L’Art Public, nº II, 1908, Bruxelas. nacional de desenvolvimento de uma Arte
para Todos, sendo uma das resoluções do
Congresso de Liège de 1905 fundar um Ór-
gão Internacional permanente a favor da Arte Pública que defendia. Por outro, muito
Arte Pública, órgão esse que teve a desig- conservador pelos seus referenciais estéti-
nação de “Institut Internacional d’Art Public”, cos, sendo o mais relevante a escultura rea-
o qual, a partir de 1907, teve como porta- lista de Constantin Meunier (1831-1905).
-voz a revista L’Art Public, que se editou até
1912, num total de doze números. 4. A condição contemporânea da Arte
Pública
Não cabe aqui esmiuçar os êxitos e os ma-
logros deste movimento pioneiro a favor da Relativamente à situação atual da Arte Públi-
disseminação do ideário da Arte Pública. ca, consideramos que a presente condição é
inversa, comparativamente à original. Hoje,
Em vez disso, que requeria um outro de- o seu conceito é claramente mais limitado.
senvolvimento e fôlego, para a nossa inda-
gação em torno da origem e da natureza Se é certo que os conceitos, as formas, as
da Arte Pública, importa apurar o horizonte linguagens e as problemáticas que ema-
de aplicação do conceito de Arte Pública nam da estética contemporânea têm conta-
enunciado e praticado por este movimen- minado a Arte Pública e, correlativamente,
to internacional. se não é menos verdade que a Arte Pública
tem por seu turno contribuído para introdu-
Sobre este aspeto particular, Marcel Smets zir novas possibilidades e novos meios de
observa: intervenção estética, o que acontece é que
presentemente mau grado toda essa diver-
“Ce qui frappe surtout c’est l’extrême diver- sidade se concentra quase exclusivamente
sité des sujets qu’on y aborde. L’Art Publique no território das artes plásticas, o que não
s’applique aussi bien à l’éducation qu’au sucedia com o referido movimento belga,
théâtre, à la législation, la restauration, les onde o universo de incidência abrangia as
qualités et la profession de l’artiste, la con- áreas que passamos a discriminar:
servation, des sites, le tracé urbain et le l’as-
pect du domaine public. Au cours des douze Educação
années qui séparent le premier congrès du Teatro
dernier, aucun de ces domaines ne s’impo- Legislação
sent, même si le nombre de contributions se Restauro
rapportant à l’aménagement urbain s’accroit Música popular
graduellement”17. Mobiliário urbano
Profissão artística
Refletindo sobre estas palavras, importa ad- Conservação de sítios
vertir para o caráter ao mesmo tempo pro- Traçado urbano
gressista e conservador deste movimen- Aspeto do domínio público
to. Por um lado, muito avançado no que
se relaciona com a amplitude da noção de

– JOSÉ GUILHERME ABREU 23


Pelas áreas listadas, percebemos que o mo-
vimento a favor da Arte Pública se concebia
não apenas como uma dinâmica de produ-
ção artística, mas também, e de forma parti-
cularmente atenta, como um movimento de
defesa patrimonial.

Sem denotar um distanciamento crítico rela-


tivamente aos modos, métodos e resultados
da produção artística de caráter historicista,
Siah Armajani, Star Tribune, 1994. o movimento a favor da Arte Pública de finais
Fonte: Kimberly Smith, Dml - Ajc Staff Star Tribune
do século XIX foi refratário relativamente às
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

teses, às práticas e aos objetivos da moderni-


dade emergente, aspeto que contribui para
a erosão da sua orientação estética.

Contrariamente, a condição atual da Arte Pú-


blica é inversa em relação à das origens. Em
termos estéticos, atualmente prevalece o ex-
perimentalismo e a diversidade dos temas,
das linguagens plásticas e das tendências ar-
tísticas, mas esse experimentalismo e autono-
mia, por sua vez aparece confinado quase ex-
clusivamente ao território das Artes Plásticas.

Se se excetuar esta discrepância de campo de


aplicação, a Arte Pública bruxelense de finais
do século XIX e a Arte Pública de finais do sé-
culo XX apresentam uma continuidade estru-
tural que permite, na teoria e na prática, reco-
nhecer a manutenção do conceito original, e
pensamos que essa continuidade se descobre
no Manifesto da Escultura Pública de Siah Ar-
majani, que abriga um ideário muito similar,
como se percebe pelas seguintes passagens:

7. A escultura pública tenta preencher o fos-


so que se forma entre a arte e o público, para
fazer com que a arte seja pública e com que
o artista seja um cidadão outra vez.
14. A maior parte da dimensão ética das ar- l’Art Public se soit déroulé presque en même
tes perdeu-se e só poderá recuperar-se atra- temps que la Fameuse Town Planning, Con-
vés da redefinição da sua relação com um férence de Londres, sans que ses initiateu-
público não especializado.18 rs à Londres, se soient aperçus qu’ils étaient
dépassés par les évènements”19.
Por isso, consideramos que o significado da
Arte Pública contemporânea se esclarece O movimento a favor da Arte Pública na Bél-
com maior acuidade a partir da compreen- gica fracassou e, notoriamente, não resistiu
são do nascimento e do ocaso do movimen- ao embate da modernidade, que pela mes-
to belga a que nos vimos referindo. ma época começava a apresentar resulta-
dos que Broerman não foi capaz de prever
Assim, se os fatores da formação da Arte Pú- ou assimilar.
blica moderna na Bélgica, hoje, nos parecem
claros, e se os mesmos se podem relacionar Tentando sintetizar, o tema da origem e do
com a afirmação económica e política da significado atual da Arte Pública, parece-nos
Bélgica oitocentista, sob o substrato do seu legítimo retirar as seguintes ilações:
desenvolvimento industrial e sua indepen-
dência política, o impasse (e posterior ocaso) O âmbito da Arte Pública confina-se hoje à
do movimento belga dos Congressos Inter- esfera das artes plásticas, sendo mais limita-
nacionais de Arte Pública, segundo Marcel do do que nos finais do séc. XIX.
Smets, explica-se assim:
A Arte Pública emergiu da modernidade
“Les Congrès de l’Art Public ne donnent pas sob o primado das Artes Aplicadas, mas a
lieu à des tendances affirmées. Ils se distin- modernidade rejeitou o ideário utópico da
guent par l’émulation qu’ils provoquent, et primeira, privilegiando o primado da inova-
par la coexistence en leur sein de tendan- ção estética e da vanguarda.
ces contradictoires qui caractérisent l’avè-
nement d’une discipline en formation. Leu- A modernidade emergente hostilizou qual-
rs apports concernant l’urbanisme sont dus quer a ideia de continuidade, provocou a
à des contributions personnelles et non au blocagem do ideário utópico da Arte Públi-
débat entre participants. À aucune de ces ca e levou à perda da sua identidade.
quatre assemblées, les communications ne
font preuve d’innovation. Elles semblent tout O surto atual de arte pública contemporânea
au moins destinées à vulgariser le savoir resulta do desbloquear do movimento do fi-
professionnel de l’époque et il parait logi- nal do séc. XIX, operado pela pós-moderni-
que que Buls ait réservé à d’autres réunions, dade, reabilitando a função cívica, utilitária e
plus spécialisés, les allocutions qui reflètent lúdica da obra de arte, ligando-se à vida.
le plus étroitement ses conceptions concer-
nant l’aménagement urbain. Il est plus que
symptomatique que le dernier Congrès de

– JOSÉ GUILHERME ABREU 25


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tury), nº 25, Leyden: Nederlandse 14
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7
Idem, ibidem. Académie Royale des Beaux-Arts.,
8
Título de una conferencia pronun- s.d.]  ; AA.VV., IIIe Congrès Interna-
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Velde, durante la exposición anual 12-21 Septembre 1905. [S.l., Aca-
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Libre Esthétique”. 17
SMETS, Marcel – Charles Buls. Les
9
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chitecture Moderne, 1979 (1895), 18
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p. 20. Escultura Pública en el Contexto de
10
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pp. 15-16; 27-29; 39-41; 51-52.
12
Vd. THIBERT, Marguerite – Le
Rôle Social de l’Art d’Après les
Saint-Simonians. Paris: Librairie des
Sciences Économiques et Sociales,
[1920], p. 53.
13
AA.VV., Premier Congrès Interna-
tional de l’Art Public tenu a Bruxelles
du 24 au 29 septembre 1898.

– JOSÉ GUILHERME ABREU 27


Poéticas da Arte Publica Relacional:
Da Forma ao Agenciamento das Relações
como Motor da Obra

por Herbert Rolim


Artista-professor-pesquisador. Mestre em Letras pela Universidade Federal
do Ceará (2003), doutor em Belas Artes pela Universidade de Lisboa.
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

This text discusses the relational aspects of urban art


from a conceptual and historical approach to public art
with relational aesthetics, based in “paradigms” thought Observações preliminares:
by José António Fernandes Dias (2007), “mediation”
theorized by Nicolas Bourriaud (2009) and “variables” Podemos dizer que o aspecto relacional da
summarized by José Teixeira (2009). Thus it points at arte é algo “aderente” ao tempo, aliás como
the presence of a relational phenomenon used by the sempre foi, na medida em que seu campo
post-industrial society to upgrade the modern thought, de conformação (artista/obra/espectador)
under the perspective of the artistic vanguards in the opera enlaces, cuja recepção estética ressig-
1960s, and also since the 1990s, it is understood as nifica e completa seu sentido enquanto tal.
the agent of living space-times, that is, social exchange Sua “singularidade” atual, no entanto, frente
manners, thanks to the participation and inter-subjective ao passado, está no modo com que este en-
collaboration of a collective body, interested in foque se acentuou, além do grau relacional
experiences on inter-human relations. que lhe é próprio. Com efeito, o sinal indica-
tivo mais evidente de sua contemporaneida-
de está na razão de que o mais importante
são os aspectos relacionais (comunicacio-
nais) acima dos formais, sem inquietações
estéticas quanto à composição, equilíbrio,
uso de materiais e suportes restritos ao pla-
no artístico.É o que o crítico de arte e cura-
dor, Nicolas Bourriaud, chama “estética re-
lacional”. Para ele, compartilhar torna-se a
palavra de ordem, pela qual as práticas e
teorias intermedeiam as relações humanas:
“Suas obras lidam com os modos de inter-
câmbio social, a interação com o espectador secções, entrecruzamentos, conjunções e
dentro da experiência estética proposta, os complexidades que a expresão arte públi-
processos de comunicação enquanto instru- ca relacional abriga no seu itinerário históri-
mentos concretos para interligar pessoas e co, com a ressalva de aqui limitar-se a uma
grupos” (BOURRIAUD, 2009, p. 60). síntese, longe de esgotar o assunto. Antes
disto, precisamos fazer notar que cada vez
Neste caso, conforme observa, mais do que mais o conceito de arte pública parece es-
os aspectos formais de um campo simbóli- capar a uma definição circunscrita, em razão
co ou material, como território autônomo e do que achamos pertinente a longa trans-
particular da arte, “atesta uma inversão radi- crição abaixo:
cal dos objetivos estéticos, culturais e polí-
ticos, postulados pela arte moderna” (p. 20) Definir uma arte que seja pública obriga
no sentido de libertar-se da pureza da arte a considerar  as dificuldades que rondam
que não se mistura, o que altera a ideia de a noção deste conceito. Em sentido lite-
progresso histórico (o “novo” e a superação ral, seriam as obras que pertencem aos mu-
do “novo”) de que os manifestos modernis- seus e acervos, ou os monumentos nas ruas
tas do século XX foram reféns. É também o e praças, que são de acesso livre.
que ele chama “obra de arte como inters-
tício social”, numa analogia às relações de (...) O sentido corrente do conceito refere-
escambo sem interesse de lucro, ante à eco- -se à arte realizada fora dos espaços tradi-
nomia capitalista, em que cambialmente se cionalmente dedicados a ela, os museus e
operam as trocas intelectuais, afetivas, críti- galerias. Fala-se de uma arte em espaços
cas, culturais etc., como produtos de sociali- públicos, ainda que o termo possa designar
dade. Do seu ponto de vista, trata-se de per- também interferências artísticas em espaços
ceber as práticas de arte cocntemporânea privados, como hospitais e aeroportos. A
mais pelo ângulo das “formações” do que ideia geral é que se trata de arte fisicamente
das “formas”, em que pesa, no lugar de suas acessível, que modifica a paisagem circun-
especificidades internas, estilo e assinatura, dante, de modo permanente ou temporário.
o valor das forças externas com que dinami-
za “relações entre indivíduos ou grupos, en- (...) A arte pública deve ser pensada  den-
tre o artista e o mundo e, por transitividade, tro da  tendência da  arte contemporâ-
relações entre o espectador e o mundo” (p. nea  de se voltar para o espaço, seja ele o
37) pelo que se potencializa sua capacida- espaço da galeria, o ambiente natural ou
de de diálogo com outras formações, sejam as áreas urbanas. Diante da expansão da
estas do âmbito artístico ou não. obra no espaço, o espectador deixa de ser
observador distanciado e torna-se parte
Dito isto, é o caso de trazer para a arte pú- integrante do trabalho (neste sentido, difícil
blica contemporânea considerações so- parece, algumas vezes, localizar os limites
bre a presença deste fenômeno, ou seja, entre arte pública e arte ambiental).
as bases fundantes das bifurcações, inter-

– HERBERT ROLIM 29
Embora não haja um senso comum quanto Com estas observações iniciais, introduzi-
à sua definição, esta ambivalência de con- mos o relacional na arte pública, ponto de
ceitos não é excludente, pelo contrário, tem partida para uma compreensão da fecundi-
como base a mesma estrutura que se forma dade desse fenômeno, de sua penetração
a partir de um entendimento de espaço pú- vinculada às formas de significação estéti-
blico onde se operam as correlações entre cas com base nas relaçoes convivais.
“lugar”, como espaço compartilhado; “públi-
co”, que são seus agentes interlocutores; e Paradigmas, mediações e variáveis da
“identidade”, pela qual se acionam as rela- arte pública
ções sociais e simbólicas. A crítica de arte Li-
sette Lagnado diante das mais de trinta res- No texto Arte pública: alguns paradigmas,
postas do que é arte pública, lançada pelo o antropólogo e curador José António Fer-
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

site “trópico” aos artistas, críticos, historiado- nandes Dias (2007, pp. 103-111) procu-
res e curados, chega à conclusão que: ra distinguir três paradigmas em torno da
ideia de arte pública que, segundo ele,
trata-se de uma vontade de deselitizar a pro- “têm vindo a acontecer” e que são:
dução artística, abrindo-a para a participa-
ção coletiva, em resposta aos intoleráveis 1 – “arte em espaços públicos”: a preocupa-
processos de exclusão em curso na socieda- ção do artista está em evidenciar as qualida-
de contemporânea. Cresce o tom de defesa des estéticas do objeto artístico, enquanto
da interdisciplinaridade entre as esferas es- obra autônoma, em que a paisagem, na qual
téticas e sociopolíticas, debate que envolve está inserida, funciona mais como uma mol-
artistas e não-artistas. dura, “sem que as características particula-
res do sítio como entidade física, arquitetô-
Em oposição à ideia de espaço privado, pre- nica ou geográfica tenha outra importância
cisamos entender que há no espaço públi- que não os desafios formais de composição
co um sentido de “«lugar comum» de absor- que põem ao escultor” (p. 105).
ção, presentificação, captação e restituição
que comporta a ideia de «domínio público» 2 – “arte como espaço público”: a obra aqui
para a qual, na opinião do investigador José leva em conta as relações entre o ambiente
Guilherme Abreu (2003, pp. 1-2), deve haver e o público, o que tem a ver com a especi-
uma intencionalidade de entrecruzamento ficidade do sítio (site-specific) e o desloca-
dos “níveis de percepção que visam à realida- mento do espectador, recursos inicialmente
de, com os níveis de representação visados explorados pelo minimalismo que podem
pela consciência (...)” com os quais as expe- tanto ser no sentido integrativo e assimilati-
riências e os hábitos culturais específicos são vo como interruptivo e intervencionista.
ativados e compartilhados. Por outro lado, no
espaço privado o comportamento intencio- 3 – “arte no interesse público”: as relações
nal se dá no sentido inverso restringindo seu entre o ambiente e os agentes culturais são
alcance para o âmbito do particular. de outra ordem, para além das questões de
fisicalidade e, normalmente, estão ligados manas sejam proclamados, há referências
a projetos temporários em que o público ao divino nessas crônicas visuais, como se
é componente de sua poética, “neste sen- o poder vigente a ele estivesse associado.
tido, é parte de uma problemática espacio- Este fenômeno, de forma mais ou menos
-política, é um discurso que combina ideias persistente, estendeu-se até o Renascimen-
acerca da arte, da arquitectura e do design to (Séculos XIV-XVI) quando a arte no seu
urbano, com teorias da cidade, do espaço campo mediador de relações passa a vol-
social e do espaço público” (p. 109). tar-se também para os espaços de interli-
gação entre homem e mundo, que dizem
Estamos nos referindo a uma arte que mi- respeito ao lugar do indivíduo diante da ex-
gra do monumental para o conceito, da tensão do universo.
forma para a (form)ação, do lugar especí-
fico para a impermanência da arte desen- Estamos falando do segundo modo de pro-
raizada e efêmera, das relações espaço/ dução de arte quanto ao caráter relacional,
tempo fechadas para as zonas de convi- ou seja, do homem e dele mesmo como
vência sócioespaciais, abertas, próprias da sujeito do mundo, na condição de obser-
arte pública relacional de nossos dias, em vador e de sujeito/objeto observado, isto
que conta as relações inter-humanas. Em graças aos avanços das ciências e das artes
face do modo como as relações são obje- com a perspectiva e o naturalismo anatô-
tivadas, nas palavras de Bourriaud (2009, mico de Leonardo da Vinci (1452-1519). A
p. 38) “seria possível escrever uma história ideia de que a terra não era o centro do uni-
da arte como a história desta produção de verso e se movia num espaço contínuo, de-
relações com o mundo, levantando inge- fendida por Galileu, foi fundamental para
nuamente a questão da natureza das rela- que as concepções de espaço avançassem
ções inventadas pelas obras”, alçando seu em direção ao século XVIII e alcançassem
valor como propriedade singular e origem depois seu sentido moderno, notadamente
de sua razão de ser. Dessa forma é possível no que diz respeito aos aspectos naturais e
delinear um panorama histórico conforme organizacionais da vida em sua abrangên-
o vetor para o qual se incline o foco da arte: cia. Não que a presença do divino se tives-
como mediador entre humanidade e divin- se esvaziado, no entanto sua representação
dade, humanidade e mundo (objeto) e hu- havia se humanizado.
manidade e relações-humanas.
Para o fílósofo francês Michel Foucault
No primeiro caso, a mediação da arte en- (1998) o grande valor desta descober-
tre homem e desígnios divinos se dá nas ta está na passagem da noção de espaço
relações do indivíduo com o que se expan- como “localização”, em forma de fixação e
de para além dos limites ordinários, numa hierarquização quanto às especificidades
ordem do relacional com o divino. Mesmo de natureza moral dos lugares (sagrado/
em se tratando de obras em que os acon- profano, divino/humano, permitido/proi-
tecimentos, o engenho e as conquistas hu- bido etc.) assim pensada na Idade Média

– HERBERT ROLIM 31
(séculos V-XV) para o sentido de “exten- do que, no entanto, o que se altera agora é
são” face a amplitude e abertura do espa- o grau de sentido de “relação”, sofrido pe-
ço descoberto pelo homem, até chegar à los modos de pensamento e produção his-
compreensão de espaço hoje e aí não mais tórica da arte, que, sucessivamente, vão se
como extensão, mas como um conjunto de alterando ao longo do tempo, num deslo-
pontos ou elementos especializados e in- camento contínuo, em que as relações, an-
dividualizados que se conectam em rede, tes almejadas como fim, na atualidade, pas-
site, conforme sua ativação (privado/públi- sam a ser percebidas também como meio
co, doméstico/social, lazer/trabalho, local/ formal, isto é, enquanto forma relacional. É
universal, etc.), pela qual a organização da o que se vê neste terceiro delineamento, a
vida se realimenta. que chamos “humanidade e relações inter-
-humanas” – a socialidade em forma de arte.
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

Se antes os modos de comunicação com


a divindade eram cultivados em concomi- Sabemos que as linhas de mudanças con-
tância com as práticas das relações manti- ceituais e representativas não são assim
das entre o Homem e as coisas do mundo, tão demarcatórias que começam e termi-
agora essa conveniência relacional passaria nam em datas assentadas. No caso do sé-
por questionamentos inadiáveis. Em acor- culo XX, por exemplo, José Teixeira (2009)
do com o mundo físico que privilegiava o sintetiza “a diversidade de registos”, acon-
ser humano, as relações medianeiras da tecidos neste espaço de tempo. Voltando-
arte passa a indicar novos direcionamen- -se para o caso da escultura, ele enumera
tos com o Cubismo (1907), nas formas de um conjunto de três variáveis de acordo
relações visuais do homem com os obje- com os “sistemas de pensamento” (Clássi-
tos de uso cotidiano (mesas, cadeiras, ca- co, Moderno, Contemporâneo) e “modos
chimbos, violões, jornais...) “a partir de um de representação” (“representação”, “pre-
realismo mental que reconstituía os meca- sentação”, “apresentação”) respectivamen-
nismos móveis de nossa apreensão do ob- te. Isto quer dizer que, no decurso deste
jeto” (BOURRIAUD, 2009, p. 39), particulari- século, presenciamos a ascensão, o declí-
zando-os nas relações com a realidade do nio e permanência embaralhada de algu-
mundo físico, antes generalizadas, se não mas destas tendências artísticas. Em algum
na sua totalidade, pelo menos no que se momento, deu-se a passagem do mode-
refere a maioria das obras. lo de “representação” do Clássico (1ª. va-
riável) orientado pelo sentido “mimético”
Tudo o que foi visto anteriormente, desde as da estatuária, para o modelo de “presen-
origens remotas da produção de arte com tação” do Moderno (2ª. variável) voltado
suas objetivações de mediação entre “ho- para o conceito de “autonomia” do objeto,
mem e divindade” até à modernidade com e deste para o modelo de “apresentação”
suas explorações entre “homem e objetos”, do Contemporâneo (3ª. variável) que tem
tudo isto tem, em comum, a natureza rela- a ver com “interpretação/exibição” corres-
cional da arte, como já dissemos. Lembran- pondente ao mixed media dos dias atuais,
em que estamos mergulhados, cujo emer- tões do “movimento” na arte, como pôde
são deve-se às atualizações do pensamen- ser vista na exposição de Arte Cinética Le
to moderno pela sociedade pós-industrial. Mouvement, na Galeria Denise René, em Pa-
ris. Em reexame às teses estéticas do cons-
As vanguardas dos anos sessenta trutivismo russo, os artistas cinéticos pensa-
ram em como suas obras poderiam avançar
A entrada na década de 1960 é marcada no sentido ambiental, na forma como a pro-
por uma agitação que se aproxima da va- blemática do tempo e movimento, antes le-
riável de “apresentação”, mencionada há vantada por Pevsner (1902-1983) e Gabo
pouco. Comecemos apontando seus ante- (1890-1977) no Manifesto Realista de 1920
cedentes, os happenings (acontecimentos) em sua forma mais literal, se resolveria pela
de 1952, tidos como os primeiros, assim experiência sensorial, recorrendo a efeitos
reconhecidos, realizados na Carolina do físicos reais e virtuais, que dependiam de
Norte, Estados Unidos, pelo compositor, uma articulação pró-ativa entre espectador,
escritor e artista, John Cage (1912-1992) obra e ambiente.
cuja teoria musical influenciou fortemen-
te o cenário artístico de então, sobretudo Por sua vez, a ligação da expressão Arte Pop,
no que se refere à participação do público na década de 1950, com o repertório da
e à conjunção poética da música, teatro e cultura de massa, acabou por se constituir
artes plásticas em suas apresentações. Seu em uma corrente que substituia a inflexão
método de composição, que consistia na e o subjetivismo do Expressionismo Abs-
integração do acaso e na posição do es- trato por assuntos ligados ao meio urbano,
pectador em situação de atenção e atitude no qual procurava imiscuir-se. A princípio,
participativa, isto para que a obra atingis- surgiu em Londres e, imediatamente foi as-
se plenamente sua poética, orientou toda similada pela sociedade consumista ameri-
uma geração. O artista Allan Kaprow (1927- cana, bem à vontade com os produtos do
2006) como seu aluno, soube explorar bem capitalismo urbano: períodicos, publicida-
as lições do mestre: seus happenings tor- de, embalagens de produtos alimentícios
naram-se referência para os processos de e de higiene, eletrodomésticos, indústria
assentamento das categorias instalação e da cultura e do entretenimento, imagens
performance, enquanto campos agregado- de ídolos, enfim, tudo aquilo que escapa-
res, desde que a Bienal de Veneza de 1976, ra às vanguardas modernistas em relação à
com o tema Environmental art, trouxe o tradição figurativa e realista da arte. O que
assunto para o centro das discussões, hoje vemos a seguir é a colocação da obra de
largamente praticadas e fundamentais para arte no patamar de identificação com os
o entendimento das intervenções urbanas produtos de consumo, sem o objetivo de
no âmbito da estética relacional. buscar sua institucionalização oficial, mas
de sair dela e comunicar-se com a socieda-
Em 1955, simultâneo aos happenings, sur- de em geral.
giu uma corrente interessada pelas ques-

– HERBERT ROLIM 33
Simultânea à pop art, lembremos que, 1986), levou às últimas consequências, cuja
numa direção oposta a esta, havia também prática tinha por princípio pensar “relações”
uma plena ativação do movimento político, como forma de arte, educação e política, in-
social, artístico e cultural, movida pela Inter- tercambiáveis no sua forma de efetivação,
nacional Situacionista, que, desde 1957, na dialógicas enquanto prática ativista da arte,
Itália, vinha se pronunciando sob a influên- em função de que pautou sua vida/perfor-
cia do marxismo, cujo agitador mais co- mance de artista/professor/pesquisador ao
nhecido foi o teórico libertário, cineasta e fundar a Universidade Livre Internacional
escritor Guy Debord (1931-1994) autor de (F.I.U.) e estruturar um pensamento a que
A sociedade do espetáculo, sua obra mais chamou “escultura social”.
conhecida, escrita em 1967. No âmbito da
arte, ele fala em “superação da arte” para A maneira Fluxus de agir esteve presente
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

falar de arte como consciência crítica da também em Portugal, no dinamismo expe-


vida ordinária, pela qual não caberia “tra- rimental e polémico do artista português
duzi-la”, mas “ampliá-la” (JAPPE, 2008). Os José Ernesto de Sousa (1921- 1988) “ope-
situacionistas estavam interessados numa rador estético” como ele se autodenomi-
arte ativista, cujas linhas, entre arte e vida, nava, dada à liberdade com que transitou
deveriam entrecruzar-se, neste sentido não pela música, cultura popular, fotografia, ci-
haveria artistas, mas cidadãos que, entre nema, vídeo, jornalismo, rádio, educação e
outras atividades, fariam arte. crítica de arte, influenciando toda uma ge-
ração, motivada pelas suas ações, cursos,
O elenco de acontecimentos que carateri- publicações e palestras, entre as décadas
zou o início dessa segunda metade do sé- de 60 e 80, pelos quais videoarte, happe-
culo passado levou o artista plástico, mú- ning e performance foram introduzidos na
sico, teórico e historiador de arte, George cena artística portuguesa.
Maciunas (1931-1978), a entendê-lo como
um estado de “mudança social”, a que cha- Em direção às questões do âmbito relacio-
mou Fluxus, em torno do qual formulou al- nal, o Brasil dá sua contribuição com o mo-
gumas ideias e aproximou vários artistas. vimento chamado Neoconcreto, cujo mani-
Conhecido como um laboratório interna- festo, publicado no Jornal do Brasil, Rio de
cional de experimentações artísticas, Flu- Janeiro, de 21 de março de 1959, assinado
xus não seria um movimento ou um gru- pelo poeta, artista e crítico, Ferreira Gullar,
po fechado, mas, no entender do poeta e trazia a seguinte afirmativa: “É porque a
compositor, Dick Higgins (1938-1998), um obra de arte não se limita a ocupar um lugar
de seus participantes e teóricos: “uma ma- no espaço- mas o transcende ao fundar nele
neira de fazer as coisas, uma tradição e um uma significação nova – que as noções ob-
modo de vida e morte”, como assinalou Ken jetivas de tempo, espaço, forma, estrutura,
Friedman (1949) no famoso ensaio Forty cor etc., não são suficientes para compreen-
years of Fluxus Modo de vida Fluxus este der a obra de arte, para dar conta de sua
que o artista alemão, Joseph Beuys (1921- “realidade” (AMARAL, 1998, p. 273) numa
clara alusão de esgotamento dos princípios todo orgânico por escala” (OITICICA, 1986,
formais de beleza ou de como estes esca- p.78). Trata-se de uma concepção que al-
pariam aos limites da retina. tera todas as anteriores categorias de arte
(pintura, escultura, etc.) baseada na liberda-
A obra de Lygia Clark (1920-1988) é de de meios e na proposição participativa
exemplar desse entendimento desde as do espectador.
pinturas de 1954 quando a artista extrapola
o campo pictórico e avança o espaço da Em paralelo, entre 1965 e 1968, nos Esta-
moldura, rompendo os limites que separam dos Unidos, despontava o Minimalismo, no
a ficção da realidade, e que Ferreira Gullar campo da escultura, particularizado pela fi-
chamou de não-objeto por não ser nem sicalidade, tamanho geralmente de gran-
pintura, nem escultura, nem objeto utilitário. des dimensões, construção simplificada
Segue-se daí um percurso que vai da pintura dos sistemas visuais, utilização de materiais
à escultura, da parede à participação do produzidos industrialmente (chapas de aço,
espectador e desta à extrapolação das lâmpadas tubulares, tijolos...) repetições de
fronteiras entre arte e vida com que chegou unidades independentes e, abstraçãoprin-
à Estruturação do Self (1976-1988) sua últi- cipalmente, distanciamento de qualquer
ma pesquisa de um “possível”, em que os personalismo lírico ou ideológico. Deste
sentidos de alteridade e corporeidade fo- pendor da arte minimalista, interessa abor-
ram trabalhados a título de resultados tera- darmos o que dele se pode observar em
pêuticos, quer dizer, os objetos tornam-se proveito do sentido de construção de lugar
dispositivos relacionais, pelos quais pro- e sua dimensão relacional. Na série Mirro-
positora, coisas e corpos (espectadores) se red Boxes, de 1965, por exemplo, em que o
harmonizam em uma totalidade. artista Robert Morris (1931) se utiliza de um
conjunto de cubos revestidos de espelhos e
De igual importância para o avanço do fa- os leva para a galeria, o “Caminhar em torno
tor de mediação relacional da arte, temos a e por entre as partes separadas desta escul-
pesquisa de Hélio Oiticica (1937-1980) que tura permite ao indivíduo vivenciar o espa-
se amplia da natureza complexa da estrutu- ço da galeria, o próprio corpo e dos outros
ra-cor, em seu estado puro como ação, ao como uma realidade fraturada e disjuntiva”
“projeto ambiental” de uma nova sensibili- (ARCHER, 2012, p. 57).
dade. O aspecto relevante deste projeto de
trabalho é, sem dúvida, o conceito de “ma- Surgidas daí, no final dos anos 1960, estas
nifestação ambiental” que é sua própria ma- questões se afinam com o conceito de site-s-
nifestação criadora, transformada em pro- pecificity (especifidade do sítio) algo como
grama (“programa ambiental”) e que está fisicamente preso às determinações do lu-
enraizada nos “Núcleos, Penetráveis, Bóli- gar, inicialmente ligado à ideia de site-spe-
des e Parangolés, cada qual com sua carac- cific (sítio especifico) no sentido do jargão
terística ambiental definida, mas de tal ma- da arte contemporânea de implicar o ob-
neira relacionados como que formando um jeto/escultura às características do espaço

– HERBERT ROLIM 35
físico e à experiência visual do espectador fatores importantes que iriam caracterizar
em tempo real (aqui-agora), em que o con- as alterações estéticas da década de 1970.
teúdo e significado se completa na prática Um deles é a conjunção de arte, natureza e
relacional do sujeito com o objeto e o lugar. realidade. Disto resulta a penetrabilidade
Para a teórica Miwon Kwon (2008, p. 168): da obra, com implicações diretas na expe-
riência/reação ao praticá-la.
A (nova-vanguardista) aspiração de exce-
der as limitações das linguagens tradicio- Considerando o caráter efêmero desta obra
nais, como pintura e escultura, tal como e sua localização invulgar, havia interesse,
seu cenário institucional; o desafio episte- do artista, “em desenvolver uma teoria da
mológico de realocar o significado interno relação entre um local particular no meio
do objeto artístico para as contingências ambiente (que ele chamava ‘sítio’) e os es-
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

de seu contexto; a reestruturação radical paços anônimos, essencialmente intercam-


do sujeito do antigo modelo cartesiano biáveis, nas galerias em que ele poderia ex-
para um modelo fenomenológico da ex- por (os quais chamava ‘não-sítios’)” como
periência corporal vivenciada; e o desejo nos informa Michael Archer (2012, p. 96).
autoconsciente de resistir às forças da eco- Desta forma, Smithson estruturava o concei-
nomia capitalista de mercado, que faz cir- to de site (sítio) lugar de localização da obra,
cularem os trabalhos de arte como merca- em uma situação fora da galeria, e a ideia
dorias transportáveis e negociáveis – todos de non-site (não-sítio) configurada a partir
estes imperativos juntaram-se no novo ape- da exposição de materiais (neste caso: pe-
go da arte à realidade do site.5 dras, terra, madeira etc.) projetos, esboços,
anotações, mapas, fotografias etc., em es-
“Realidade do site” esta que tanto pode es- paços convencionais da arte (museus e ga-
tar vinculada à arquitetura tangível do cubo lerias) com que o artista perenizava e trans-
branco de uma galeria ou museu como formava em mercadorias suas intervenções
associada às áreas urbanas ou ainda à na- ambientais, expondo-as nestes espaços na
tureza, no que assume características de condição também de arte. Note-se que,
arte ambiente, ou até mesmo nos meios com esta injunção da arte aos museus, ga-
eletrônicos. Vejamos a obra Quebra-mar lerias e colecionadores, dava-se um passo
espiral (1969-1970), de Robert Smithson na compreensão do “processo de criação”
(1938-1973), um trabalho que dificilmente como natureza estética da obra, importan-
poderia ser vendido, colecionável e acessa- te para as mudanças conceituais que iriam
do com facilidade por um público maior, le- ocorrer na década de 1970, alcançando o
vando em conta sua constituição de 6.500 sentido de arte como ideia.
toneladas de basalto, cristais de sal e areia,
construída no Grande Lago Salgado em Nestes termos, a arte conceitual colocou
Utah, Estados Unidos, sujeita às condições em xeque os valores mais caros à autono-
climáticas de toda ordem (vento, tempesta- mia do modernismo: a representação dire-
de, inundações, etc.). Aqui, deparamos com ta das coisas, materializada em obra-objeto
como imagem estética e feita pelo artista, Data desta época um processo de constru-
e sua recepção pela simples contemplação, ção de novos modos de intervenções artís-
as quais, a começar por Duchamp (1887- ticas e crítica de arte, como a reconstitui-
1968), vinham sendo questionadas em ra- ção da secção portuguesa da Associação
zão de uma arte-conceito que não estivesse Internacional de Críticos de Arte (AICA) em
pautada apenas nos sentidos. Com o tem- 1969, e o despontar da arte relacional em
po, a resistência da “arte como questão”, Portugal, a partir, por exemplo, de experiên-
caracterizada pela crítica, tomada de cons- cias como a do Grupo Acre (1974-1977) e
ciência e protesto, investiu cada vez mais, do Grupo Puzzle (1975-1981) sobre as quais
tanto em relação ao sistema institucional, Isabel Nogueira ressalta:
artístico, quanto ao contexto social e políti-
co, operando com as ideias, o corpo, o meio A seu modo, ambos os agrupamentos se as-
ambiente, as minorias e causas sociais. sumiram como portadores de uma lingua-
gem plástico-performativa, inovadora no
Um rápido apanhado do que foi a década contexto português, de vertente concep-
de 70 em Portugal, sob a influência de um tualista, social e artisticamente interventiva.
início de abertura política e social, à luz do Aliás, é justamente pela reconstituição da
movimento revolucionário de 25 de abril, intervenção do Grupo Acre na Rua do Car-
nos faz lembrar o que ela representou em mo (Agosto de 1974) com a pintura de cír-
termos de reformulação estética, sobretu- culos amarelos e rosa no pavimento da rua,
do no que diz respeito à experimentação. A que se acede à entrada principal do Centro
investigadora Isabel Nogueira, cuja tese de de Arte Moderna.  
doutorado versa sobre o pensamento críti-
co da década de 1970 em Portugal, esboça É digna de nota também, no tocante aos
um perfil deste período: aspectos relacionais da arte em Portugal, a
grande festa popular de 10 de junho de 1974,
Foi a época de FESTA, de militância e dos animada pelo Movimento Democrático de
eventos artísticos colectivos “ao serviço do Artistas Plásticos na Galeria Nacional de
Povo”, desde as pinturas murais “da revo- Arte Moderna, que ativou num só ambiente
lução”, até ao incremento de um modo de uma variedade de linguagens, interligando
operar mais ligado à exaltação do artista/ apresentações musicais, teatrais e um painel
criador, na procura de uma identidade ar- de 4,5m x 24m, produzido por quarenta e
tística, estética e mesmo poética. Foi igual- oito artistas. Acionado pela liberdade de
mente a altura da expressão longamente criação, o clima de coletividade se agudizou
contida e dos slogans: “A arte fascista faz e acionou o público em geral. No mesmo
mal à vista” (Marcelino Vespeira), “Contra a local onde fora pintado este painel, em
agressividade, criatividade”, ou “A qualida- 1977, deu-se a exposição, Alternativa zero,
de estética é progressista; a mediocridade tida como um marco de transição do mo-
é reaccionária” (Salette Tavares).   dernismo para o pós-moderno, sob a lide-
rança de Ernesto de Sousa e a participação

– HERBERT ROLIM 37
de vários artistas e colaboradores. O termo o trânsito livre dos pedestres, obrigando-os
“zero” que encabeça o título da exposição a circundá-la. Diante da recusa do artista à
original expressa o zero inicial, como pon- sugestão de sua remoção para outro lugar
to demarcatório da ruptura com o moderno uma vez que, enquanto site-specific, sua es-
e a abertura para uma nova postura crítica, cala, tamanho e localização só tinham sen-
que passa pelo processo de conceituação, tido naquele contexto, como ele mesmo
desmaterialização do objeto artístico, que- disse: “removê-lo é destruí-lo”, o fato é que,
bra dos suportes, desconstrução do sentido depois de uma luta judicial de quatro anos,
de originalidade e autonomia, reformula- o trabalho foi considerado pela General Ser-
ção da experiência estética, abrangendo ar- vices Administration (GSA), sua financiadora,
tista, obra e espectador, num estreitamento como “opressor do espaço”, razão pela qual
da relação “arte-vida”. foi removido e desmontado em 1989.
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

O pensamento do sensível, com o qual Er- A escultura de Serra ocasionou um estado


nesto Sousa pontuou Alternativa zero, trou- de crise quanto ao foco da práxis escultóri-
xe a intervenção artística portuguesa para o ca em relação ao site-specific, centrado ne-
centro do debate, aproximando-a do cená- cessariamente na inseparabilidade física do
rio internacional e dando motivos para no- objeto em função do lugar. Vista numa pers-
vos modelos de exposição como iria acon- pectiva de vinte anos à frente dos primeiros
tecer com Depois do Modernismo, em 1983, passos minimalistas, somada às experiên-
sob organização de Luís Serpa, na Socieda- cias dos situacionistas, do grupo Fluxus e
de Nacional de Belas Artes (Lisboa) em que dos conceitualistas, leva a crer que o sentido
agregou, mesmo sem o experimentalismo site-specific, pelo menos como Serra havia
crítico dos anos 1970, artes plásticas, dan- idealizado, não dava mais conta em razão
ça, música, moda e arquitetura, algo que das instâncias contemporâneas.
não deixava de sugerir o aspecto convival
das formas. Deste ponto de vista, a ideia de site-specific
passou a operar numa dimensão maior do
Na década de 1980, no plano inernacional, que a de aproximação física do espectador
um caso que se tornou emblemático em di- com o objeto inseparável de sua localidade
reção a este novo rumo relacional e contri- específica, indo de encontro a uma concep-
buiu para pôr em questão as orientações ção menos materialista (até mesmo desma-
estéticas de implicações físicas da obra em terializada) e não estetizante (nos termos
relação ao síte, levadas a miúde na década tradicionais) da arte, em que pesam mais
de 1990 em diante, foi a escultura Tilted arc os aspectos políticos, sociais, econômicos e
(Arco inclinado) de Richard Serra. Esta obra culturais, ligados ao cotidiano e aos espaços
minimalista de grande dimensão, instalada públicos onde se dão as relações inter-hu-
na Federal Plaza de Nova York, em 1981, ge- manas como fator de experiência e conteú-
rou certo desconforto, principalmente, por do da (não)arte, do que as aparências espe-
erguer uma cortina de aço que dificultava cializadas da arte:
Indo contra o menor sentido dos hábitos e Deste modo, diferentes debates culturais,
desejos institucionais, e continuando a re- um conceito teórico, uma questão social,
sistir a mercantilização da arte no/para o um problema político, uma estrutura institu-
mercado de arte, a arte site-specific adota cional (não necessariamente uma instituição
estratégias que são ou agressivamente an- de arte), uma comunidade ou evento sazo-
tivisuais – informativas, textuais, expositi- nal, uma condição histórica, mesmo forma-
vas, didáticas – ou imateriais como um todo ções particulares do desejo, são agora con-
– gestos, eventos, performances limitadas siderados sites. (KWON, 2008, p. 172).
pelo tempo. O “trabalho” não quer mais ser
um substantivo/objeto, mas um verbo/pro- Pelo que vemos, o modelo intervencionista
cesso, provocando a acuidade crítica (não de site assume contornos de caráter discur-
somente física) do espectador no que con- sivo de efeito receptivo conceitual, de sen-
cerne às condições ideológicas desta expe- sibilização cultural, relacional, portanto de
riência. Neste contexto, a garantia de uma orientação coletiva e de vivência urbana,
relação específica entre um trabalho de arte enquanto exercício de cidadania, tal como
e o seu “site” não está baseada na perma- as vanguardas da década de 1960 e 1970
nência física desta relação (conforme exigia almejaram, e a que a década de 1990 impri-
Serra, por exemplo), mas antes no reconhe- miu novas questões:
cimento da sua impermanência móvel, para
ser experimentada como uma situação irre- (...) no fato de que esta geração de artistas
petível e evanescente. (KWON, 2008, p. 170) não considera a intersubjetividade e a in-
teração como artifícios teóricos em voga,
Os sites-specific, deste modo, devem ser nem como coadjuvantes (pretextos) para
compreendidos como site-oriented, po- uma prática tradicional da arte: ela as con-
tencializados pela experiência urbana de sidera como ponto de partida e de chega-
natureza social, baseada na referência do da, em suma, como os principais elementos
lugar, pela relação das pessoas entre si, no a dar forma à sua atividade. (BOURRIAUD,
compartilhamento das questões de violên- 2009, p. 62)
cia, saúde, moradia, educação, gênero, re-
ligião, cidadania etc., numa dimensão críti- A década de 1990 acabou por colocar em
ca e conceitual da arte que não cabe num curso a prática artística de modelos de so-
objeto único nem no enraizamento deste cialidade, um sistema de arte pública, cujo
com o lugar físico, podendo tanto acon- agenciamento supera o consumo estéti-
tecer em logradouros, escolas, hospitais, co. Mesmo que este fenômeno não tenha
aeroportos, prisões, igrejas, shoppings..., acontecido em alto grau de intensidade e
quanto penetrar nas redes sociais da in- escala globalizante, nesta década, é possí-
ternet, ondas do rádio, sinais de tv, mídia vel assinalar sua inserção em vários países,
impressa..., como interagir com diferentes pelo menos identificar os caminhos que lhe
áreas do conhecimento: abriram espaço. No caso de Portugal, pode-
mos começar citando as “festas da cidade”,

– HERBERT ROLIM 39
por três anos consecutivos, no começo da em favor da ideia de uma cidadania ativa e
década, como exemplo de intervenção ar- participativa” (CAEIRO, 2001, p. 10).
tística de caráter relacional. Para o pesquisa-
dor Telmo Garção Lopes (2005/2006, p. 19), Chegamos, assim, ao cerne da estética rela-
no entanto foi com o evento Lisboa 94, Ca- cional, vista na perspectiva da dimensão hu-
pital Européia da Cultura que Portugal ini- mana, graças a participação e colaboração
ciou um processo “de dotar de importância intersubjetiva de um corpo coletivo, interes-
significativa os impactos da Arte Pública no sado em produzir espaços-tempos convivais.
Design Urbano e nas tensões da estrutura
da cidade a uma escala territorial”, aconteci- Considerações em continuum
mento que iria refletir, de forma mais proe-
minente, com a Exposição Mundial de 1998 É preciso dizer que, mesmo dando-se a pas-
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

(Expo98) quando a arte pública “monumen- sagem, ascensão e declínio dos modelos de
taliza a periferia urbana a oriente da cidade” produção de relações, na história da arte,
e traz novos contributos para suas transfor- presenciamos a permanência embaralhada
mações no cenário local. destes fatores, na atualidade, o que não in-
valida o grau significativo dos aspectos rela-
Por fim, no contexto português, chegamos cionais, assumidos na contemporaneidade,
ao caso da “arte pública como intervenção com mais ênfase, da década de 1990 para
comunitária”, propriamente dita, cuja mar- cá, cujos conceitos estéticos continuam sen-
ca principal é o caráter colaborativo, parti- do acrescidos e pouco a pouco assentados,
cipativo, com que as formas relacionais tra- mudanças estas que vem chamando mais
tam de temas sociais e questões urbanas. atenção nestas duas últimas décadas.
Encaixa-se nesta vertente, por exemplo,
o projeto Lisboa Capital do Nada – Marvi- Cabe aqui reiterar a participação do públi-
la 2001, entre 1 e 30 de outubro de 2001, co nos desígnios da arte relacional, como
com coordenação de Mário Caeiro, Luiz parte ativa da obra, o que denota envolvi-
Seixas e Daniela Brasil, contando com a co- mento da comunidade nas questões levan-
laboração de vários artistas, profissionais tadas, percursos traçados, mediação e difu-
e a participação comunitária. Chamamos são, já que não depende, necessariamente,
atenção para o valor relacional desta prá- da presença física de objetos artísticos no
xis e para sua dimensão tanto transforma- território acionado, mas das relações que se
cional como discursiva, pelas quais artistas, movem por fatores sociais, políticos, econô-
arquitetos e urbanistas, educadores, desig- micos etc., de interesse comum.
ners, ambientalistas, moradores etc. refleti-
ram e intervieram: “Não é de lugares físicos De sorte que estes breves apontamentos
que falamos, mas desta instância da cria- nos ajudam a pensar a arte pública hoje,
ção em que os limites entre intervenção ar- deslocando o significado da arte do obje-
tística, conhecimento técnico, sentido éti- to para os processos de sociabilidade, da
co e envolvimento afectivo se desvanecem forma puramente estética para a realidade
social, da autoria para o coletivo, da mera — Bibliografia
contemplação para a consciência crítica.
Precisamos ter em mente que ações artís- ABREU, José Guilherme. Um
ticas desta natureza, efetivamente, não ob- modelo fenomenológico para a
jetivam resolver problemas sociais, mas sim escultura pública. Revista Faculdade
problematizar mecanismos de intervenção de Letras Ciências e Técnicas do
e criar meios relacionais de como lidar com Património, Porto, vol. 2, pp. 385-
a realidade e transformá-la. 418, 2003. (I Série).
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– HERBERT ROLIM 41
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– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

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ção urbana: arte e sociedade. Uni- ral.org.br/termo356/arte-publica>.
versidade de Barcelona, 2005/2006. Acesso em: ago 2015.
Disponível em: <http://www.aca- 2
Disponível em:< http://www.revis-
demia.edu/1261628/T_Garcao_ tatropico.com.br/tropico/html/tex-
Lopes_- Lisboa94_A_arte_publica_ tos/956,1.shl>. Acesso em: ago
pelos_registos_de_imprensa>. 2015.
Acesso em: jul 2013. 3
Autor do ensaio Des espaces
NOGUEIRA, Isabel. Anos 70 – autres (Espaços outros) datado de
atravessar fronteiras. Disponível em 1967, citado pela tese de douto-
<http://artecapital.net/opinioes. ramento em poéticas visuais de
php?ref=90>. Acesso em: ago de Ana Maria Tavares (2000, p. 48-53)
2015. Armadilhas para os sentidos: uma
TAVARES, Ana Maria. Armadilhas experiência no espaço-tempo da
para os sentidos: uma experiên- arte, e pela publicação investigativa
cia no espaço-tempo da arte. Tese de Marta Traquino (2010, p. 35-37)
(doutorado em Artes)- Escola de A construção do lugar pela arte
Comunicações e Artes- Uniniversi- contemporânea.
dade de São Paulo, São Paulo, 2000. 4
(FRIEDMAN, Ken. Forty years of
Deambulação pela Arte (como Coisa) Pública

por Mário Caeiro


Professor na ESAD das Caldas da Rainha, Investigador e Curador.

A walk across the city, determined by the idea of


ambulation. One stimulated by the notion that art can
be a public thing. Res publica. Looking around leads to O olhar como saber
the analysis of a sequence of urban moments. A set of
tensions appears, as made visible by each work of art. A partir du moment où l’œuvre est vue, c’est-
What appears by means of this mosaic of impressions à-dire où sa présence s’est fait sentir, si elle
is the idea that the urban form is a territory to be existe vraiment avec ce qui l’entoure, alo-
continuously appropriated. Such is the concept which lies rs l’endroit n’est plus invisible. Dès lors, sa
in the core of an ethically responsible citizenship. réalité est modifiée. Et ceci est plus effectif
lorsque l’œuvre n’est pas reconnue comme
— Key-words: une œuvre d’art, lorsqu’elle n’est pas disso-
Public Art, Urban Art, Street, City, Ambulation. ciée comme une forme sur un fond.

Catherine Grout

O presente texto evoca um percurso pela


cidade. Uma deambulação simula um pas-
seio, constituindo a sua memória ficciona-
lizada, ao mesmo tempo que sintetiza as-
pectos essenciais da minha reflexão dos
últimos anos acerca da relação entre a arte
e a cidade. É por assim dizer uma viagem –
à vol d’oiseau – por conteúdos da obra Arte
na Cidade – História Contemporânea (Círcu-
lo de Leitores/Temas e Debates, 2014), aqui
actualizados por impressões recentes, con-
forme as vou situando no meu quotidiano.

Ao final assumo uma intuição: A arte pública


está na maneira de olhar. Saber olhar a cida-
de e nesta a arte (e vice-versa) é aqui a con-

– MARIO CAEIRO 43
dição sine qua non para poder produzir-se pos, 2011). A partir desta evidência procura
o acontecimento urbano, que vejo como o mostrar como certas ideias ganham corpo
encontro da cidade consigo própria através na forma e no meio urbanos, precisamen-
da arte. Por outras palavras, parto da ideia te porque resultado aferível de um conjunto
fundamental do espectador em Hannah de tensões – identificar vs. agir; imaginar vs.
Arendt e articulo-a com uma abordagem fazer; apreciar vs. reflectir… – que são resol-
potencialmente transformativa1 (Collins e vidas como que por magia na obra de arte
Goto, 2005) da obra-espectáculo que é a ci- – chamemos-lhe pública ou urbana… – que
dade; laboro no seio da ideia lefèbvreana funciona então, enquanto fragmento de/na
do espaço(-tempo) citadino como historica- cidade, como um enunciado ensaístico e,
mente produzido, hipersocializado (Delga- ao limite, como aforismo urbano.3 Nesta óp-
do, 2013), que encaro como a própria ma- tica, a arte é a afirmação poética da cidade
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

triz da vida urbana: a produzir um discurso em aberto sobre si


mesma. Uma prática da representação viva
Neste sentido, a cidade é palavra, fala, é sis- da sua potencialidade.4
tema denotativo. O urbano vai mais além:
é uma linguagem, uma ordem de conota- Os conceitos que sugiro arrumam casos
ções, como Lefèbvre refere, tomando a ana- concretos em que a arte se torna coisa públi-
logia da glossemática e da semiótica de ca, transformando a cidade – palco da arte –
Greimas. O urbano não é um tema, mas sim em res aesthetica. Falo a partir de um modo
uma sucessão infinita de actos e encontros de conhecer, no ambiente que nos rodeia,
realizados ou virtuais. A vida urbana “pro- a arte sobre a qual vale a pena falar. Nesta
cura devolver as mensagens, ordens, pres- retórica tanto da cidade como da arte, e de-
sões vindas do alto contra si próprias. Pro- pois da arte na cidade, o termo Arte Pública
cura  apropriar-se  do tempo e do espaço surge assim ora esvaziado de sentido (ao li-
impondo o seu jogo às dominações destes, mite…) ora plenamente relevante para pen-
afastando-os da sua meta, enganando… O sarmos a cidade e a arte conjugadamente
urbano é assim obra de cidadãos, em vez (no limite oposto). A expressão aparece a
de imposição enquanto sistema a este ci- muitos como um fantasma, mas que los hay,
dadão” (Lefèbvre, 1978: 85). O urbano é a hay… Em todo o caso, é sempre com base
essência da cidade, mas pode dar-se fora em obras e situações específicas, à superfí-
dela, porque qualquer lugar é bom para cie da cidade tangível, que elaboro o meu
que nele se desenvolva uma substância so- discurso; falo por isso a partir do que a arte
cial que por acaso nasceu nas cidades, mas me faz. De como ela me acontece. E nos faz,
agora expande-se onde quer que o seu “fer- e nos acontece, a todos, já que concreção
mento, carregado de actividades suspeitas, de fascinantes complexidades.
de delinquências, é lugar de agitação […].2
Neste passeio, entre obras que já perten-
Este texto assume que a arte pode ser pro- cem ao cânone da arte pública e novas ex-
tagonista do cenário visual urbano (Cam- pressões da cidade criativa que começam a
exigir um olhar mais informado do que ape- Actualmente, as imagens e os dispositivos
nas pela história de arte tradicional ou a es- visuais desempenham funções muito diver-
tética; entre obras que fazem parte da pai- sificadas, sendo apropriados por distintas
sagem do dia-a-dia (quer queiramos quer entidades e grupos sociais como mecanis-
não) e outras que vão delicada- e quase in- mos fundamentais para a acção. A publi-
visivelmente criando uma sensibilidade crí- cidade que toma o espaço público, a vi-
tica abaixo do radar (mas perfeitamente in- deovigilância sob o controlo do Estado, as
tegradas movimento global,) procuro que gramáticas subversivas representadas pelos
a minha e nossa consciência dos lugares e graffiti e pela street art ou os estilos juvenis
das pessoas encontre na criação artística urbanos, são, entre muitos outros exemplos,
um espelho que abra possibilidades à re- fenómenos que nos demonstram a crucial
presentação de mais do que apenas o gos- relevância de um estudo mais detalhado
to (de alguns). Mesmo quando tal espelho das práticas e das estratégias engendradas
parece quebrado, o que vejo são em todo pelos diferentes actores nestas operações
o caso fascinantes impermanências de uma que buscam adquirir visibilidade no espa-
espécie de sentido de totalidade, no âmbi- ço público urbano, intervindo na ecologia
to do qual a arte subsiste como campo de visual urbana.6
encontros vitais.
Mensagens (na garrafa)
Proponho-me em suma, ao evocar o que
vejo por aí (e o que na sombra desse olhar Mostly, I believe an artist doesn’t create so-
me ocorre) revisitar alguns caminhos essen- mething, but is there to sort through, to
ciais da arte contemporânea que manifesta show, to point out what already exists, to put
o seu interesse pela cidade, investigando o into form and sometimes reformulate it.
seu papel comunicacional na actualidade5
urbana. As obras de que falarei são como Annette Messager
que figuras de uma família, senão de uma
genealogia que assim homenageio, mesmo Saldanha. São duas, talvez três da manhã.
sem a querer ou saber nomear. Aqui entre Mas a cena surge-nos a qualquer hora do
nós, reconheceremos os nossos – ou não dia, em muitos lugares de Lisboa. Em cima
fosse função essencial da arte na cidade de um caixote do lixo, uma garrafa de cer-
afirmar-se a si própria e à sua comunidade veja e uma lata de Monster, foram coloca-
sempremergente, até porque só assim con- dos, metodicamente arrumados, como que
tribui para essa outra e maior obra de arte num plinto. Porque é que não foram sim-
que é a própria cidade. plesmente atirados para o chão ou, já ago-
ra, para o interior do caixote do lixo? Que
Ricardo Campos, num quadro de ideias que fenómenos da acção corrente e da comuni-
engloba decisivamente a de um urbanismo cação interpessoal estão ali em causa, nesta
vertical, complementa: espécie de assemblage ou de impromptu?

– MARIO CAEIRO 45
Quando passo, posso fingir que isto não a ver. Nesta metaforologia visual não excluo
me afecta nem ao meu mundo, como se – pelo contrário, incluo – os restantes senti-
não fosse comigo. Ou posso achar que tal dos em toda a sua interrelação, aliás seguin-
espécie de nano-performance é da ordem do um guião de Charles Landry: a paisagem
do puro vandalismo. Mas lá está, como esta- sensorial da cidades. Mas outra coisa é cer-
belecer o nexo crítico para dizer a pequena ta: se a arte na cidade começa pelo saber
distância que vai entre encararmos a cena olhar, ela tem de basear-se numa perspec-
como simples vandalismo (afinal, não tarda, tiva ética de onde partamos para pensar (e
vai haver cacos pelo chão…?!?) ou uma es- depois arriscar) a acção. Em suma e noutros
pécie de natureza morta anónima – ocorre- termos, no discurso de uma obra ou situa-
-me essa obra-prima da ressonância entre o ção o modo de participação para que so-
lixo e a paisagem que é Island Within an Is- mos convocados pode ser ou não propício
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

land (2009), de Gabriel Orozco)… –, um rea- ao próprio fenómeno de a arte aparecer.


dy made cuidadosamente equilibrado no Nomeadamente como coisa pública.
mobiliário urbano? E se tudo isto sou só eu
a delirar, no furor da interpretação? Ora certos fenómenos desta projectualida-
de específica (mas com alcance genérico
Explico. Enquanto espectador da cidade, para os domínios do social, do político, do
investido pela minha ideia sobre a mesma, quotidiano) são iminentemente públicos,
quero adivinhar que o que está ali a acon- enquanto outros nem tanto; e nessas tran-
tecer é uma forma de comunicação inter- sitoriedades – entre o público e o privado,
comunitária e intergeracional, ainda que entre o público e o íntimo, entre o público
porventura inconsciente. É como que se os e o secreto… – a obra de arte vai estabele-
jovens madrugadores que foram para os cendo protocolos com os seus espectado-
copos quisessem deixar um sinal (a messa- res. Precisamente para os criar. No fundo,
ge in the bottle) aos pacatos e ordeiros tra- convoca-os para que o acontecimento seja
balhadores do dia. E portanto, no melhor (em certa medida) comum, definindo es-
dos (meus) cenários, o menor dos factos sencialmente a forma como esse encontro
quotidianos urbanos pode merecer cuida- (em certa medida público) decorrerá. Reco-
da observação e dele tirarmos ilações tácti- dificando – para usar um termo de Flusser –
cas e estratégicas. Este é o papel mais pro- a experiência urbana.
fundo que se pode pedir à programação
artística da cidade que começa no acto de É bom de ver, nenhuma disciplina poderia
engajarmos o olhar. aspirar à hegemonia no âmbito deste sa-
ber. A cidade é infinito. E por isso o acon-
A hipótese de uma arte pública contem- tecimento urbano é sempre o resultado de
porânea passa por esta necessidade de o um poderoso diálogo entre disciplinas, cir-
espectador envolver-se – ou deixar-se en- cunstâncias, oportunidades, consciências,
volver na construção do seu próprio olhar. experiências. Leituras. E portanto também
Saber olhar torna-se sinónimo de aprender performatividades: Num contexto de maior
reflexividade da vida social (Giddens, 1992, sistema ambiental, já que é na paisagem
1994), de monitorização do Eu e de cons- que somos convocados na plenitude dos
tante mediatização das referências simbóli- sentidos: Trata-se de uma peculiar forma de
cas, julgo que teremos hoje uma consciên- apreender as coisas naturais, que, justamen-
cia mais premente das nossas capacidades te, enquanto forma, reside no espírito e não
performativas. (Campos, 2011) nas coisas, não é um dado em-si, mas impli-
ca um para-si. (Serrão, 2011)
Invisível paisagem, monumento invisível
No entanto, se será no fazer colectivo da
But by returning to monuments some me- paisagem que nos podemos realizar so-
mory of their own origins, by drawing back cialmente, nem todas as sensescapes (Lan-
into view the memorial-making process, we dry, 2012) funcionam como um oásis na
invigorate the very idea of the monument, malha urbana. E aí são raras as obras que
thereby reminding all such cultural artifac- empreendem uma notável conquista da ci-
ts of their coming into being, their essential dade para o simples estar; é o caso, ocor-
constructedness. re-me, do Jardim das Ondas8 de Fernanda
Fragateiro, na Lisboa Oriental. Que então,
James E. Young só a uma segunda ou a uma terceira leitu-
ras, para além do mero estar e apreciar, co-
Passo o El Corte Inglês – com sua incontor- meça a dizer mais ao que vem, quando já
nável escala de referência urbana – e subo percepcionada como obra de arte…
ao jardim do Parque Eduardo VII. A sereni-
dade do momento seleciona claramente o Mas eis que na minha deriva paisagística
seu auditório (uma maneira de estar, em se- me deparo com um estranho aglomerado
renidade e silêncio) e, não sendo ‘arte’ em horizontal de pedras brancas e polidas… É
sentido estrito, a visão de Ribeiro Telles7 – o estranha configuração geométrica para a
grande mentor ideológico de toda uma po- qual não vislumbro uma função evidente.
lítica da paisagem (Aurora Carapinha) – de- Ah! É um (‘)monumento(’). Assinala os 25
senrola-se claramente como um assertivo anos da Associação 25 de Abril. Mas a inter-
artifício para criar uma disposição natural venção contraria as mais óbvias caracterís-
para um certo público ficar por ali, em paz. ticas de um monumento: não se ergue nas
alturas para se arvorar em marco (visual),
O pequeno episódio desta estrutura verde, não se reconhece qualquer rosto (de figura
o facto de se constituir como um ambiente histórica), não estabelece sequer uma dis-
público amigável – réplica localizada da vi- tância de veneração (antes pelo contrário,
são sistémica que Ribeiro Telles tem ofereci- funciona como mobiliário urbano, ‘ou coi-
do à Cidade – mostra que a haver uma – ou sa parecida’)… na verdade, a formalização
‘a’ – arte pública, ela assenta um dos seus pi- desta espécie de memorial é quase contra-
lares num participar cidadão na paisagem. -visual (no sentido debordiano). Ora é pre-
Numa co-responsabilização vivenciada do cisamente nessa opção formal que se torna

– MARIO CAEIRO 47
adequada aos seus objectivos (que entre-
tanto pesquisei): uma homenagem sensí-
vel a um processo colectivo extraordinário,
cujos principais protagonistas nunca procu-
raram a glória pessoal.

A obra de arte, aqui, aspira antes de tudo o


mais a dissimular-se na forma urbana, esco-
lhendo o mais discreto e subtil dos registos
comunicacionais, em plena ambivalência. É
por aí um monumento imbuído de um es-
Sérgio Vicente (projecto), Ana Moreira, Bruno Cidra, Edgar pírito contemporâneo, já que a necessida-
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

Pires, Nuno Esteves, Ricardo Mendonça e Sara Padrão


de de uma visão unificada do passado, tal
(escultores), José Aurélio (coordenação), Liberdade –
Monumento à Revolução de Abril, Lisboa, 2009. como a encontramos nos monumentos tra-
Fotografia de Câmara Municipal de Lisboa. dicionais, colide com a convicção moderna
In http://www.cm-lisboa.pt/equipamentos/equipamento/
info/liberdade-monumento-a-revolucao-de-abril de que nem o passado nem os seus signifi-
cados poderão permanecer para sempre os
mesmos. (Young, 2003)

A peça foi realizada em 2009 por estudan-


tes da Faculdade de Belas Artes9 Tê-los-á
levado a interiorizar a hipótese de que tra-
dição minimalista, desde que jamais colo-
cando totalmente de lado a possibilidade
da ironia, pode constituir uma linguagem
para a participação na História, co-enun-
ciando-se uma ética para o futuro comum?
Trata-se em todo o caso de uma peça ‘para
o Povo’, mesmo se a maior parte desse povo
vai passar por ela sem reparar na sua pre-
sença, ou sequer compreender a sua meca-
nicidade enquanto facto urbano (o ‘como
funciona’). Por outras palavras, o invisível
procura ser menos silêncio, ou ruído, que
potência discursiva, precisamente como
acontece, se quisermos dar um salto imagi-
nário a Londres, na recente intervenção de
Hans Haacke no Fourth plinth em Trafalgar
Square, Gift Horse (2013).
Aí está, e já se vai percebendo que vou ope- lavra só conseguirá ser lida do ar, pelo que
rando no âmbito de uma axiomática. Olho o mais provável é que, quem por ali passe,
para este trabalho de Sérgio Vicente (reali- a utilize como zona de estadia.11 É portanto
zado com os seus alunos e a colaboração uma intervenção no tecido urbano perfei-
do escultor José Aurélio) e revejo-o men- tamente capacitada de que, como já dizia
talmente no extremo oposto daquele tipo Lewis Mumford nos anos 30, a noção de um
de monumento com que Charles Chaplin monumento moderno é uma contradição de
abre o filme Luzes da Cidade (1931). A arte termos. Assim supera vários impasses pre-
pública existe sempre em função do que cisamente porque radica a eficácia do seu
cada época lhe exige. Mas noutra dimen- anacronismo numa estratégica (in)visibili-
são ainda, e numa nota muito pessoal, a in- dade, expressão de extrema modéstia de
tervenção de Sérgio Vicente é também uma recursos, adicionalmente impedindo que a
réplica – com luva de calcário – à hubris eróti- memória colectiva seja naturalizada.
co-monumental de José Cutileiro ali tão per-
to, entre as monumentais colinas do Parque Pinturas outras, outras esculturas
Eduardo VII. A sua celebração do 25, com
todas as marcas da autoria (o estilo celebri- É bonita a ideia de uma imagem urbana. Dito
zado pelo escultor), é com efeito uma efer- isto, considero que a imagem não é uma ca-
vescência urbana efusivamente pós-moder- racterística estritamente individual, o que de-
nista.10 Não tão invisível quanto isso (até pela marca uma grande diferença entre a minha
orientação vertical), iluminada por projecto- perspectiva e a de outros sociólogos e antro-
res de luz colorida, a obra consegue até con- pólogos, que permanecem obcecados por
ferir a um passeio nocturno um momento de uma concepção bastante individual, ou até
evasão… uma fantasia erótica que quiçá in- mesmo individualista, da imagem.
terrompe, nos olhos das gerações actuais, o
que parece serem os reflexos de uma total Michel Maffesoli
indiferença perante o passado.
Estar vs. andar. Ficarmo-nos passivos vs. agir.
Em suma, não se tratando ainda de um A cultura do graffiti tem na sua origem e na
contramonumento (à la Jochen Gerz), a sua tradição esta ideia de o gesto artístico
escultura pseudo-minimal de Sérgio Vicen- conquistar território, de ocupar a paisagem.
te, qual discreta mnemónica que nos remete Mas ao contrário do monumento (mais ou
para um aspecto preciso do processo histó- menos tradicional), aceita e promove o efé-
rico, representa um modo de a arte integrar mero, o circunstancial, a comunicação urgen-
a cidade que já é plenamente consciente da te de realidades sociais que de outra forma
fenomenologia dos seus usos quotidianos. seriam desconhecidas da esfera pública. Al-
O trabalho é assumidamente um desenho gumas imagens do graffiti têm aliás um inde-
(do) urbano como totalidade experienciá- lével poder evocativo (que lhes vem na verda-
vel: Sérgio Vicente, escultor e docente que de de mais do que apenas do facto de serem
orientou o projecto, explicou ao JN que a pa- facebookáveis, instagramáveis, ou twittáveis.

– MARIO CAEIRO 49
Quando desço das Amoreiras a caminho do
Rato o que me sobra do mais belo dos gra-
ffitis é não mais que a memória remota des-
te… POOW!! BOOM! Assim rezava a pare-
de, tirando partido de um ‘acidente’ viário
contra um muro para criar uma efémera afir-
mação tautológica que era ao mesmo tem-
po, porque onomatopeica, uma instalação
sonora. Sinestesia incrivelmente oportuna,
deve ter colocado uns milhões de cidadãos
Pantónio, POOW!! BOOM!, Lisboa, 2011. automobilizados a pensar na sua vida.
Fotografia de Target.
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

In http://www.vice.com/pt/read/as-cidades-tambem-podem-ser-
galerias-a-ceu-aberto O que importa então é que a arte urbana
possa rejeitar as grandes mensagens ou os
grandes discursos (o aspecto mais datado
dos cânones), já para não dizer o habitus con-
sumista, e aderir à pura comunicação da sua
própria consistência informacional. No caso
do autor de POOW!! BOOM! (2011) – Pantó-
nio –, a arte funciona como contradispositivo
imaginativo – não confundir imaginação com
fantasia, diria o romântico Schiller! Ela mate-
rializa-se no real do dispositivo urbano (onde
carros vão contra muros, destruindo-os…),
espécie de imagem-resto que deixa transpa-
recer uma dança, a do corpo do writer com
o muro, palco vertical do seu craft. Afinal, du-
rante meses foi virtualmente impossível es-
capar ao humor e à graça anónima da acção
‘vandalizadora’ (recorrendo, cirurgicamente,
ao registo universal da BD para ‘dar luta’ às
imagens high-res dos outdoors publicitários
em volta). Arriscando a perturbação do tráfe-
go, ‘pisando o risco’ e reflectindo a realidade
em toda a sua contingência12 este é o tipo de
arte urbana que vale a pena a todos os níveis
– pelo menos é o que se me oferece dizer
quando, passando de novo aqui, evoco a sua
ausência-presença.
Procuro ir demonstrando que a arte públi-
ca é menos um género que um estado de
consciência. Certamente que sem a pro-
dução pelos artistas de obras, a arte como
coisa pública seria algo de diferente (e por-
ventura não tão instrumental ao nível do de-
senho da cidade), mas o essencial é que, no
âmbito da arte-como-coisa-pública, o artis-
ta e os agentes à sua volta entendam que
a recepção por parte do público é aspecto
essencial do seu trabalho. Com a ‘agravan-
te’ de que se trata na maioria das vezes de
um público que tem mais do que fazer do
que apreciar arte ou aderir ao que poderá
muito bem ser entendido como uma abso-
lutamente supérflua aparição do estético no
seu quotidiano.

Claro que, neste braço de ferro com a dis-


ponibilidade do público, o vernacular pode
ser a ‘gazua’ para estabelecer com esse pú-
blico um diálogo que então nasce, quando
Joana Vasconcelos, Portugal a Banhos, Lisboa, 2010.
a obra é rica de possibilidades interpreta- Fotografia de Miguel Malaquias. In https://www.flickr.com/photos/
tivas. Estou a pensar noutra obra de arte – miguelmalaquias/5176606374

esta existindo inequivocamente ‘enquanto


tal’ –, Portugal a Banhos (2010), de Joana
Vasconcelos, que esteve uma temporada
no Terreiro do Paço13. A peça sintetiza inú-
meras complexidades (e perplexidades)
sobre Portugal, precisamente no contex-
to mais adequado possível (Portugal-feito-
-piscina-à-venda-no-Terreiro-do-Paço, praça
das praças no que diz respeito à identidade
nacional, em condições ideais de visibilida-
de para potenciais compradores…).

Vasconcelos representa uma atitude entre o


lírico e o crítico (entre a cumplicidade e a in-
teractividade) que, se formos além de uma
análise das suas peças meramente como

– MARIO CAEIRO 51
estratégias de apropriação do imaginário No texto de fecho da mais recente edição,
colectivo e de marketing autopromocional, sintetizei o carácter da iniciativa:
funcionam no meio urbano como legítimas
presentificações de debates culturais que VICENTE é um pequeno laboratório de ima-
se resolvem precisamente na participação gens onde cabem paradoxalmente muitos
opinativa do público, desde logo e por ve- pensamentos, um filosofar. À Travessa do
zes espectacularmente, no aceso comen- Marta Pinto aportam artistas, autores e suas
tário que nos últimos se tem generalizado obras, uns vindos de longe outros de perto,
sobre o trabalho. Claro que, em termos de todos de algures, trazendo as mensagens
implantação na forma urbana, decerto que do outro, mensagens do mundo. Assim
Portugal a Banhos ao Terreiro do Paço não como em tempos aportou à capital das che-
tem a mesma amplitude retórica que quan- gadas o corpo de S. Vicente, assim como
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

do reaparece nas Docas de Alcântara, mas essa chegada fundamental definiu um des-
continua a impelir-nos a opinar. tino para a cidade e a enobreceu, hoje uma
arte contemporânea de todos os tempos
Criar espaço público mítico procura explorar dimensões emergentes
de uma sensibilidade: lisboeta, universal,
A criatividade e a cultura são isso mesmo, daqui. Para chegar a algum lado.
ousar desarrumar as ideias e encontrar-lhes
novas caras […] novos caminhos. Podíamos, O VICENTE assume na cidade um papel
por exemplo, pegar num urinol, virá-lo ao próximo do placebranding, desenvolven-
contrário, chamá-lo “fonte”. Não sei se al- do-se como contributo independente para
guém já se lembrou disso. a identidade contemporânea não apenas
da Capital mas de Belém em particular. Os
Afonso Cruz seus conteúdos (esculturas, instalações ur-
banas, instalações vídeo, performances,
O dever chama-me. Tenho artistas em edição…) convidam o público a regular-
Belém à minha espera, precisamente para mente aferir da evolução do conceito face
arrancar com a programação de mais um VI- a cada momento presente. Este tipo de
CENTE. Reinventando o mito, desde 2011 é opção passa por uma lógica de storytelling
a frase com que gosto de fazer o pitch da que tem naturalmente a ver com o facto de
iniciativa, anualmente promovida pelo Pro- o mito de São Vicente ser de uma densida-
jecto Travessa da Ermida. A ideia é abrir um de tal, que seria irresponsável tocar o tema
espaço para o Espaço Público Mítico, con- – uma narrativa fabulosa – sem lhe dar um
ceito que permite que se possa promover o enquadramento suficientemente amplo,
conhecimento perdido acerca de um mito inclusivo, universal.
fundamental da cidade de Lisboa, epitomi-
zado na chegada das relíquias do Mártir em Daqui infiro que a melhor arte pública é
1173 – e ao mesmo tempo promover novas aquela em que percebemos que a mensa-
leituras da Contemporaneidade. gem é para todos – senão em absoluto (o
que destruiria a eficácia de qualquer con- um termo para dizer o que esta arte faz à ci-
ceito como conjunto de opções discretas dade: a batida do desassossego.
no âmbito de um plano de comunicação),
pelo menos como princípio e hipótese de Na oportunidade específica criada pelo VI-
trabalho. A ideia por detrás do VICENTE é o CENTE (o projecto teve a origem no dese-
Todos – não por acaso o nome de outro fes- jo, por parte do seu patrono, de ‘voltar a fa-
tival, esse camarário, com evidentes traços lar-se dos Corvos de Lisboa’…), procuro que
de arte pública. a performatividade de um mártir cristão do
séc. IV pudesse entrar em diálogo com a da
Os eventos de VICENTE são assim quase criação e da cidadania dos nossos dias. O
sempre exemplarmente públicos – decor- resultado mais ‘1:1’ deste desejo – a insta-
rendo ‘na rua’ –, e à escala de uma pequena lação dando lugar ao corpo-a-corpo do tea-
travessa lá vamos fazendo pela posteridade tro – foi a dada altura um conjunto de irreve-
de São Vicente mas também – qual labora- rentes performances – passeios pela cidade
tório para se experimentar o (im)possível – pelo performer polaco Krzysztof ‘Leon’
– elaborando um discurso tangível acer- Dziemaszkiewicz – que levei a atravessar a
ca das possibilidades da cidadania criativa cidade durante três dias sucessivos interpe-
(no caso, antes do mais, a de uma entida- lando todas as suas potenciais ‘vítimas’.
de privada que partilha no espaço públi-
co uma estratégia local de regeneração do Entre senhoras idosas de um bairro popular
tecido e da oferta culturais). Em duas pala- e os alt skaters à Praça da Figueira, o que o
vras, humildade e ambição em doses idên- público viu foi a recodificação (Flusser, 2007)
ticas pode permitir a um conceito, como a dos trajes e dos atributos do Santo (dimen-
uma obra, estabelecer com os cidadãos um são eminentemente visual), constituindo o
acordo: vamos pensar o impossivelmente conjunto dos percursos uma ‘via sacra’ in-
grande através do possivelmente pequeno. dividual capaz de desafiar os vendilhões da
sociedade do espectáculo. Um dos figurinos
Na prática, faço questão que no VICENTE que Leon realizou integralmente em Portu-
– pequeno ‘carrinho de linhas’ no meio das gal, durante uma escassa tarde de corte e
‘rodas dentadas’ gigantes que se encon- costura, foi por exemplo uma dalmática de
tram em volta (património edificado, insti- Vicente, feita de… sacos do Pingo Doce.
tuições e equipamentos culturais) – a arte
apareça como coisa natural da matéria ur- Este tipo de acção urbana é da ordem do
bana, isto é, como uma recodificação do es- que Thierry Davila chama de cineplástica.14
tável e do conhecido, e até do expectável, Isto é, o artista, já não mero performer, tor-
mais ou menos inusitada conforme o âmbi- na-se por essência móvel e as suas pere-
to de cada conceito tratado. A propósito da grinações o fundamento para novas rea-
irreverência deste tipo de projectos, que se lizações, num quadro operativo15. Mais, a
abre a uma performática do urbano, o histo- cidade, vasto processo, conjunto de veloci-
riador José Sarmento de Matos encontrou dades (Davila), como que se pedonaliza.

– MARIO CAEIRO 53
O texto como poética, o rabisco arisco

Text Art is no longer defended as a special


case, nor has it been completely incorpora-
ted into the institutions of art. Rather, its value
and potential is acknowledged by a wide
spectrum of contemporary artists who freely
combine the use of text with performance,
installation, video, photography, drawing,
painting, sculpture and printmaking. 

Krzysztof ‘Leon’ Dziemaszkiewicz, Passeios performativos Dave Beech


– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

(Projecto VICENTE), Lisboa, 2014.


Fotografia de Agata Wiorko, cortesia Projecto Travessa da Ermida.
A inscrição de textos na cidade, resultante
do trabalho de artistas, é sempre um ape-
lo directo à leitura, que se torna inevitável
(aliás como acontece com as mensagens
publicitárias ou políticas, mas de uma forma
porventura mais cognitiva em termos de
uma relação crítica (e potencialmente trans-
formativa) com os leitores do espaço urba-
no. O fenómeno tem sido um importante
factor de contradiscursos que obrigam os
leitores – todos nós – a confrontarmo-nos
com fenómenos como o da nossa própria
alienação face ao mundo que nos rodeia.
Independentemente do registo literário, do
campo semântico ou das ressonâncias es-
pecíficas, esta tendência é ainda um impor-
tante modo de dar (ensinar) a ver a cidade
como superfície e palimpsesto.

Entre todas as expressões mais felizes desta


liberdade da fala artística, vem-me sempre
à memória Everything is going to be alright
[Work n. 203], de Martin Creed, nómada in-
terrupção dadaísta da imagem do edificado
em nome de uma graça social que raramen-
te foi expressa de forma tão luminosamente
linear, exprimindo esperanças e medos uni-
versais…; ou Claire Fontaine, denunciando Esta questão entronca num aspecto do pró-
num misto de desespero e ironia que CA- prio discurso que muitos artistas tomam por
PITALISM KILLS LOVE na fachada da sede adquirido. A língua. Neste aspecto, Januá-
dos mineiros de Durham, um símbolo da re- rio tem sido precioso na inscrição criteriosa
sistência ao Thatcherismo…; ou finalmente dos seus textos, que são verdadeiros diálo-
Miguel Januário16, que é do meu ponto de gos da psique colectiva com a superfície da
vista brilhantemente retórico, aliando uma cidade e, mais globalmente, o momentum
radical economia de meios a uma enorme cultural da sua recepção (em Guimarães,
capacidade de dizer o povo. para a Capital da Cultura, chega a espetar
uma faca nas costas [da estátua] de Afonso
Outra obra absolutamente singular que te- Henriques e a celebrar [o enterro de Por-
nho tido a oportunidade de acompanhar é tugal] com um caixão com a forma do dito
a de Stefan Kornacki. Kornacki tem ‘salva- [limites continentais].) Em Lisboa, é procu-
do’ monumentais letterings da destruição17, rar por aí… mas dou uma ‘dica’: debaixo da
conseguindo nos últimos anos construir ponte, junto à Embaixada dos Estados Uni-
um quase absurdo léxico de palavras que dos da América, a Sete Rios.
outrora encimaram importantes edifícios
(no caso, na Polónia comunista): KOSMOS, A sua continuada relação com o texto ver-
UNIWERSAM, VICTORIA… nacular (língua portuguesa vs. inglesa con-
forme a situação a criar, cartazes impressos
Neste trabalho sobre a ruína (também da ou tinta negra directamente aplicada às su-
ideologia, de qualquer uma) há ao mesmo perfícies, uma tipografia universal) contrasta
tempo um enorme respeito pela história e com a quase ingerência no espaço público
os processos de recontextualização da lei- discursivo que foi a recente intervenção em
tura (já que todas as ‘obras’, autênticos rea- Lisboa de Tim Etchells19, com frases (em in-
dy-mades urbanos – são acompanhadas de glês), evidentemente sobre Arte, numa tipo-
cuidada documentação participativa [en- grafia relativamente requintada: Art Matters.
trevistas, documentários] não apenas sobre Ora ‘Não é tarde nem é cedo’ terá pensa-
o que essas palavras significam [digamos do o/a vândalo/a que rabiscou várias des-
que ‘em absoluto’] mas também para quem sas inscrições com deliciosos (ou pernicio-
e quando). Por outras palavras (!), há uma sos) comentários, do tipo: [Art that hurts] «?
espécie de tradução de um termo urbano DOI? ESTUDASSES!».20
concreto (uma sinalética historicamente si-
tuada) para outras épocas e situações18. A cidade da arte é isto, mais do que a obra
Aliás, podemos hoje literalmente tocar as deste ou o comentário daquele, e indepen-
palavras que outrora estavam lá em cima. dentemente dos graus de violência dos de-
Agora, cá em baixo, num lugar que é que o bates, a cidade é este diálogo, ora públi-
artista escolhe, a sua transparência e poder co ora secreto, que umas vezes se fica pela
são completamente reconfigurados. E a sua mente do colectivo, outras surge no esplen-
fragilidade exposta. dor de incompreensões que revelam por

– MARIO CAEIRO 55
sua vez que, sem retórica – o poder-se e sa-
ber-se falar sobre aquilo que vale a pena – a
arte pública aparece como uma actividade
criativa dolorosamente desprezível.

Resta aqui acrescentar que também um cer-


to gesto pode ser puro texto, como o prova
a rebelde escultura de Maurizio Cattelan em
frente à Bolsa de Milão21, o famoso Il Det-
to (2010). Cattelan usa o poder da grande
arte caucionada pelo seu próprio sistema
Miguel Januário, Vende-se Portugal, Lisboa, 2013.
Fotografia cedida pelo autor. para dar voz ao povo, qual ventríloquo dos
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

excluídos do mundo financeiro. Fá-lo numa


referência evidente à cultura clássica (utili-
zação precisa do plinto, do efeito de ruína
e da monumentalidade típica da estatuária),
ao mesmo tempo que demonstra que, para
certas coisas serem ditas, há que encontrar
formas radicais para que façam sentido no
dado momento.

Entre estas aventuras do texto, como en-


quadrar nas genealogias do político o tex-
Stefan Kornacki, KOSMOS, UNIWERSAM, VICTORIA, to potencial que são os rostos explodidos
Cascais, 2014.
de Alexandre Farto? Que palavras deixaram
Fotografia de Agata Wiorko.
de ser ditas, para que estes rostos começas-
sem a falar? A contar a sua história? Como
conseguiu este artista realizar um tandem
entre as linguagens da street art, da arte
contemporânea e até da arte pública? Certo
é, há uma sensibilidade retórica por detrás
do que parece a tradução para vários cená-
rios de um mesmo olhar (e de uma mesma
técnica), ganhado em cada circuito uma au-
tonomia própria. Clever stuff.

Note-se porém que uma arte unanimemen-


Tim Etchells, Art that hurts (Artista na Cidade), Lisboa, 2014. te aceite – como vai sendo o caso de Farto
Fotografia de Agata Wiorko, cortesia Projecto Travessa da Ermida.
– como que tende a perder o charme de um
certo antagonismo, ou até de um certo mis-
tério. O que as obras dizem pode assim per- déterminisme consécutif à une quelconque
der sentido de oportunidade, como quan- dialectique des rapports de force ou d’in-
do algo muito repetido deixa de ter impacto fluence.
comunicativo. Aliás, não porque o trabalho
em si necessariamente o procure, mas por- François Séguret
que na ânsia de subliminar problemas – o
maior, o do Outro, por exemplo – a socieda- Enquanto agente de interpelações urba-
de ao fim e ao cabo pede à arte que se limi- nas, percorrer a cidade é para mim reco-
te a representar os seus fantasmas, evitando nhecer sítios potenciais para a realização
exigir-lhe essa outra função mais complexa, de intervenções; o que passa por encontrar
que seria a de mudar o mundo (parece que pretextos e oportunidades para criar acon-
estou a ouvir Almada Negreiros, na Estação tecimentos ou aliar-me a dinâmicas de co-
de Metropolitano do Saldanha). -criação ou mudança onde quer que elas
possam aparecer. É preciso estar atento e
Não estou a dizer que seja sequer o mo- estimular a sensibilidade, sobretudo numa
mento – e aqui entre nós, nunca será… – altura em que novas visões do urbanismo
para discutir a questão da arte pela arte vs. começam a ‘fazer das suas’. Por outro lado,
da arte como política; mas que o trabalho é evidente que temos dificuldade em ima-
de Farto(s) e Januário(s) – do lado da co- ginar que o Projecto Urbano possa ser uma
municação urbana – e depois de outros montagem e uma mobilização de recursos
agentes de mudança mais discretos (essa pelos próprios habitantes (Claude, 2000)…
arte comunitária de longa duração que não mais fundamentalmente, esquecemo-nos
encaixa na agenda mediática nem convém de que a forma deveria seguir… a ficção
às narrativas hegemónicas) está a recon- (Séguret, 2000).
figurar a nossa ideia de arte urbana, isso
está. Porque vão tocando nos pontos, fa- Em todo o caso, prospectivas à arte, atra-
zendo ao mesmo tempo arte e a pedago- vessar a cidade é também um exercício de
gia dos possíveis da arte enquanto ligação rememoração; rememorar memoráveis ac-
com o social. Tendem a ser mediação (De- ções que o tempo se vai encarregando de
bray, 1997) ao nível de um superior enten- apagar progressivamente é um exercício
dimento do que é a cidade como palco de fundamental da cidadania e deveria ser um
pessoas e ideias. valor inalienável da experiência do público.
As instalações e a implantação urbanística
Rememorar processos, criar lembranças da Luzboa (2004 e 2006) por exemplo, hão-
-de diluir-se no nada do tempo, mas como
Dans la gestion des signes urbains, qu’ils que ainda ressoam na memória de alguns
s’agissent de signes traduits dans l’espace lisboetas (e até estrangeiros que por cá an-
ou de signes échangés entre les spécialis- daram na altura). O essencial é que a expe-
tes, la logique sociale de la prise de décision riência estética de uma determinada gera-
veut que celle-ci se fasse en dehors de tout ção possa encontrar formas e se traduzir

– MARIO CAEIRO 57
para novos desafios, já que se o contexto rece. Desde que as olhemos através da len-
muda, não muda (pelo menos para já!) algo te da arte pública – um mix de ética comuni-
de essencial, o problema de criamos senti- tária, saber colectivo, literacia projectual e,
do para a nossa vida. já agora, jargão técnico.

A este nível, certos experimentos urbanos Uma escultura monumental de Charters de


são potencialmente alimentadores dos so- Almeida à Alameda da Universidade, ao
nhos de novas gerações de criadores. As- Campo Grande, é, então, formalmente, à su-
sim aconteceu comigo anos atrás, quando perfície, uma coisa: um objecto escultórico
ao fazer a Lisboa Capital do Nada (2001) es- mais ou menos (ir)relevante (terminologia
tava no fundo ainda a reacender as cinzas que ‘roubo’ a Giorgio Agamben), com uma
mornas de experimentos como a Alterna- escala vincadamente arquitectural, evoca-
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

tiva Zero (1977), de Ernesto de Sousa (que ção de traços geometrizantes que funciona
por sua vez trazia para Portugal as inovado- como pórtico e marco urbano num enqua-
ras visões de Harald Szeemann ou Joseph dramento urbanístico e paisagístico muito
Beuys…). É nestes termos que a questão particular – espécie de oblonga ‘praça ver-
da genealogia da arte pública é criticamen- de’. Não seria pouco, até pela clareza com
te essencial, pois há aspectos conceptuais que está implantada no território, conside-
e propriamente metodológicos que impor- rando perspectivas visuais e a significativa
ta conhecer ao longo da história, para hoje circulação viária.
operarmos com maior propriedade.
Mas a peça – de 1995, cuja designação de-
Não deixando de ser verdade que é qua- nuncia a sua localização original, Ribeira
se sempre nos Museus – e não no terreno das Naus – torna-se muito mais significante
– que vamos recarregar baterias (teóricas), se nos informarmos acerca de como apa-
a própria possibilidade da arte como coisa rece ali. Quantos dos transeuntes saberão
pública e urbana obriga-nos a estar atentos que resultou do orçamento participativo da
ao que acontece e à forma como partilhar CML, e que portanto foram cidadãos que
essa atenção. É uma questão de saber reco- determinaram que a obra, que antes havia
nhecer ‘os nossos’ em qualquer época – no estado noutro lugar, haveria de encontrar
meu caso, de Schiller a Lefèbvre, de Wag- o seu poiso permanente aqui, na Alameda
ner a Debray, Nancy, Latour ou Sloterdijk; das Universidades?
uma questão de partilhar olhares (ao limi-
te, como em Chantal Mouffe, agónicos), fa- É esta a via para o comum que a arte pública
zendo de cada oportunidade o acontecer advoga: promover um saber sobre os ob-
de um potencial de informação urbana que jectos e os processos da arte na cidade; im-
ora é deliberadamente intangível, ora uma plicitamente também sobre as paisagens e,
concreção exemplar e retoricamente eficaz nestas, os nossos corpos, tanto individuais
dos possíveis da cidade. Por isso as obras como colectivos; a arte tornando-se assim
dizem quase sempre muito mais do que pa- matriz do nosso próprio olhar. A arte urba-
na mais tradicional torna-se concomitante- a visibilidade do que urge comunicar-se e
mente partenaire da mais radicalmente al- um tabuleiro de xadrez (dispositivo), sobre
ternativa, o nano imiscui-se nas narrativas o qual se joga – supremo ludismo – a nossa
do macro, todas as decisões de projecto im- formação – a Bildung a que se refere Schiller
plicando, num certo grau de transparência nas suas Cartas sobre a educação estética
e escrutínio, possibilidades outras, tal qual do homem (de 1795).
como acontece no discurso – que é de to-
dos, não pertencendo a ninguém. Plano do poder cidadão, cenário de so-
nhos, discurso exploratório da utopia, a
E daí que quando passeio pela cidade há arte pública transforma a cidade num veí-
obras que voltam sempre, como fantasmas culo para todas as sensibilidades se senti-
de um futuro que a arte afirma na singeleza rem mais próximas do seu próprio destino.
dos seus processos (e na frontalidade com A arte pública torna tangível a comunidade
que lida com as modalidades, como diria e, nela, a participação (nomeadamente a
Wagner), mas ao mesmo tempo na capaci- do povo no seu próprio destino). Antes de
dade de dizer o imediato da cidade no aqui tudo mais, ela promove a conversação. Ela
e agora dos seus dispositivos. Regresso é nos seus mais surpreendentes momentos
mais uma vez à Luzboa para dar um par de a orquestração criativa de encontros colabo-
exemplos: tivémos uma empresa de men- rativos e conversações, bem para além dos
digos (Javier Núñes Gasco), a lua na terra confinamentos institucionais da galeria ou
(Bruno Peinado) e até eléctricos – na altura do museu (Kester, 2004) A obra de arte total
bem menos photo-opportunities que hoje que é a arte na cidade – Wagner, I wish you
– iluminados (Yann Kersalé). O que mostra were here – é em suma um factor de produ-
como os artistas trabalham os limites de to- ção de imaginação colectiva e de activação
das as (des)codificações, sobretudo quan- instrumental dos mecanismos urbanos. Ela
do assumem um desígnio: o de manifesta- é por isso sempre… do futuro. Precisamen-
rem a graça social, implícita no idear mais te como Richard Wagner antecipou no seu
nobre e profundo da Cidade. ensaio de 1849.

Cabe à arte pública crítica (aproprio-me do Em suma: a arte da cidade começa num
termo cunhado por Krzysztof Wodiczko), sa- olhar sobre a coisa urbana, a cidade na sua
ber ora diluir-se tacticamente entre o espec- quotidianeidade e na sua multidimensiona-
táculo e a provocação, ora aderir ao belo lidade (conceitos lefebvrianos). Aí, formas,
para celebrar o Social Humano, ou ainda, fi- usos, códigos, imagens, paisagens, quais-
nalmente, procurar um compromisso com o quer pretextos servem para inspirar uma
desconhecido, em total entrega ao impon- consciência que cuida do que na cidade
derável (algo que ‘não dá lá muito jeito’ às queremos preservar, mudar e/ou proble-
indústrias criativas). É esta gramática fun- matizar. Ética portanto, que diz muito da
damental que subjaz ao discurso sempre- maturidade de cada comunidade. E que se
mergente que faz da cidade um palco para realiza – o que é raro, senão raríssimo… –,

– MARIO CAEIRO 59
quando é radicalmente interpretada como tir da problemática da localidade, e porven-
uma fusão da arte com o socius, que é o que tura inspirando-se na noção de que certos
acontece em projectos de estética dialógica lugares estão simplesmente à espera de
(Kester, 2004) como os de Stephen Willats, activação: A cidade pode portanto ser vista
que encara o seu trabalho como a produção como localidade, mas uma localidade defi-
de cultura socialmente interactiva.22 nida pela proximidade, em termos de aces-
sibilidade e interface, não necessariamente
Dito isto, quando o/caro leitor/a passar pela associada à localização espacial. (Nawratek,
Av. Infante Santo (agora não me dá jeito…), 2012)
dê valor aos azulejos de Maria Keil (figura-
ção da maior qualidade…) mas também Uma rua mais criativa, laboratórios de
aos painéis abstractos de Eduardo Nery, ce- invenção
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

lebrando a luz de Lisboa… preste atenção


às últimas da street art mas também à dis- I argue that in order to engage with practi-
cretíssima escultura de Rui Chafes à entrada cal problems of public and private space, we
do Hospital de Santa Maria… mais do signi- must operate at a theoretical level. We must
ficados, que sentidos estão em jogo quan- construct what Julia Kristeva has called “a
do olhamos à nossa volta? E depois sim, po- diagonal axis” between theory and practice,
nha-se a imaginar. O que poderia fazer falta “a place between” the two, where a more in-
aqui, e o que mudaria acolá… com quem tegrative approach to the making and inter-
valeria a pena entabular a conversação? pretation of public spaces can begin.

No séc. XVI, Francisco de Holanda23, ilumi- Jane Rendell


nador, arquiteto e pintor soube contribuir,
enquanto cidadão e criador, para uma crí- No quadro do nomadismo contemporâ-
tica construtiva do ambiente urbano da ca- neo, a programação de arte pública pode
pital24, já que não o considerava à altura do começar por reconhecer que uma das
exigível. Hoje, é responsabilidade de to- principais responsabilidades da arte é par-
dos os que pudermos contribuirmos tam- ticipar na produção ou co-enunciação de
bém nós para novas lembrãças que tornem conceitos. Um conceito urbano é neste
as nossas cidades – e a Cidade no sentido quadro uma ideia motivadora, que tem de
mais lato – mais habitáveis. Se calhar, gran- implantar-se na malha urbana e ao mesmo
de parte da arte pública é isto, reminders tempo oferecer-se como interface cidadão
para todos nos apercebermos de como um (Nawratek, 2012).
pouco de atenção à forma como a arte dia-
loga com a cidade pode ser um contributo O sucesso deste desígnio estará na capaci-
crucial para o futuro de ambas. dade de desenvolverem-se parcerias trans-
nacionais e multidisciplinares para trazer
Como pode isto traduzir-se numa visão ins- para a ordem do dia, a uma escala e numa
trumental? Uma hipótese já a seguir, a par- lógica globais, mas com sensibilidade local,
a diversidade dos espaços públicos como
um factor de criatividade urbana. Por exem-
plo, será que certas ruas, trabalhando em
conjunto, podem constituir um novo mod-
elo de cooperação catalisador de inovação
urbana? O artista, o programador, o cura-
dor, o mediador… o craftsman, o técnico, o
próprio público podem e devem estar ‘em
rede’, e nesse intercâmbio encontrarem
plataformas para tornar o seu trabalho mais
oportuno? Rochus Aust é um exemplo típico
deste artista que domina a cidade enquan- Rochus Aust & DEUTSCHES STROMORCHESTER,
Concerto Móvel na Travessa do Marta Pinto, Lisboa, 2015.
to matéria para as suas formas, transforman-
Fotografia de Agata Wiorko, cortesia Projecto Travessa da Ermida.
do os próprios meio e vida urbanos num in-
strumento musical (fê-lo à Travessa do Marta
Pinto, âmago do Projecto VICENTE).

E podemos aqui renovar os nossos votos


com Lefèbvre precisamente a partir do seu
entendimento da rua como dispositivo co-
mum, público e quotidiano.25

Imaginemos que entramos numa peque-


na rua de Lisboa, animada por uma discre-
ta mas vibrante vida local... sentimo-nos
‘em casa’ porque o espaço é convidativo,
ou uma obra de arte nos chama, ou a fila à
porta de um restaurante denuncia uma boa
cozinha... imaginemos que ao fim dessa rua
entramos diretamente numa calle espanho-
la... tão diferente e, no entanto, transmitindo
um carácter semelhante... imaginemos que
ao final dessa rua espanhola entramos numa
francesa, depois numa italiana, que se bifur-
ca numa alemã e numa turca, desembocan-
do todas numa estónia... Imaginemos uma
rede de ruas assim virtualmente ligadas,
como se existisse entre elas uma passagem
oculta, conectando diferentes lugares onde
a Europa acontece, fervilhando da mesma

– MARIO CAEIRO 61
vida urbana, pessoas, ideias, iniciativas, num Barrento, João; O género intran-
mosaico de culturas locais. Façamos a car- quilo: anatomia do ensaio e do frag-
tografia intangível de todas essas ruas. Voilá mento, Assírio & Alvim, 2010.
uma Europa de pequenos factos urbanos a Caeiro, Mário; «A arte pública está
que acedemos por via de critérios próprios, na maneira de olhar», in Smart Cities
como o genuíno, o vintage, o emergente, o – Cidades Sustentáveis, #8, Set-Out
excecional. Seria uma rota 24/24h com pro- 2015.
tagonistas e figurantes sempre renovados, a Caeiro, Mário; Arte na Cidade –
vivência dos diversos lugares enquanto pal- História Contemporânea, Temas e
cos de atmosferas, estórias, valores.26 Debates/Círculo de Leitores, 2014.
Caeiro, Mário; «Ruas criativas?
Em suma, tem de continuar a abrir-se – Vamos lá! O novo desafio de uma
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

‘sugerir-se’, ‘rasgar-se’… – espaços para uma Europa en route, a caminho de si


cidadania (propriamente) artística (Cam- própria», in Arqa – Arquitetura e
pbell e Martin, 2006). Sendo certo que ela Arte, n. 119, julho-agosto 2015.
é um modo de operar esteticamente, vejo-a Campos, Ricardo; Brighenti, Andrea
acima de tudo como um modelo plástico Mubi; Spinelli, Luciano (Orgs.); Uma
para nos apropriarmos todos – artistas e não Cidade de Imagens. Produções e
só – dos mecanismos de subjectivação na Consumos Visuais em Meio Urbano,
cidade; e portanto também como uma res- Mundos Sociais, 2011.
posta pragmática às distopias da moderni- Collins, Tim; Goto, Reiko; «Eco-art
dade. A arte (pública, urbana…) tem neste Practices», in Miles, Malcolm (Ed.),
âmbito um papel revolucionário (Nawratek, New Practives – New Pedagogies,
2012). A rua continua… Rouledge, 2005.
Claude, Viviane; «Essai de défini-
tion du projet urbain», in Hayot,
Alain; Sauvage, André (dir.), Le Pro-
— Bibliografia jet Urbain. Enjeux, Expérimentations
et Professions, Éditions de la Villette,
Agamben, Giorgio; O que é o 2000.
contemporâneo e outros ensaios, Debray, Régis; Introdução à Medio-
Argos, 2009. logia, Livros Horizonte, 2004.
Arendt, Hannah; A Vida do Espírito – Davila, Thierry; Marcher, Créer.
Pensar [1978], Instituto Piaget, 2007. Déplacements, flâneries, dérives
Argan, Giulio Carlo; História da arte dans l’art de la fin du XXe siècle, Edi-
como história da cidade, Martins tions du Regard, 2002.
Fontes, 2005. Flusser, Vilém; O mundo codifi-
Barrento, João; A palavra transver- cado: por uma filosofia do design e
sal. Literatura e ideias no século XX, da comunicação, Cosac Naify, 2007.
Edições Cotovia, 1996. Grout, Catherine; Pour une réalité
publique de l’art, L’Harmattan, 2000. (Coord.), Filosofia da Paisagem. joao-barrento/#.Vhofm7RViko
Johnstone, Stephen (Ed.); The Eve- Uma Antologia, Centro de Filosofia 4
Donde que neste quadro à arte
ryday, The MIT Press, 2008. da Universidade de Lisboa, 2011. se coloca o desafio de constan-
Kester, Grant H.; Conversation Wagner, Richard; A Obra de Arte do temente aferir as hipóteses de os
Pieces. Community + Communi- Futuro [1849], Antígona, 2003. actores sociais e os agentes artís-
cation in Modern Art, University of Young, James E.; «Memory/Monu- ticos constituírem um e o mesmo
California Press, 2004. ment», in Nelson, Robert S.; Shiff, grupo, ainda que na efemeridade
Landry, Charles; The Sensory Lands- Richard (Eds.); Critical Terms for Art de um conceito ou de um evento.
cape of Cities, Comedia, 2012. History, The University of Chicago Para Alice Semedo: O agente é
Campbell, Mary Schmidt; Martin, Press, 2003. essencialmente um fazedor activo
Randy; Artistic Citizenship, Taylor & Zanatta, Maria Luiza; «Caminhando de significados: no entanto, a consti-
Francis, 2006. com Francisco de Holanda», V tuição do mundo como «signifi-
Nawratek, Krzysztof; Holes in the Encontro de História da Arte, IFCH cante», «relevante» ou «inteligível»
Whole. Introduction to the Urban / UNICAMP, 2009. depende da linguagem compreen-
Revolutions, Zero Books, 2012. dida não como um simples sistema
Nelson, Robert S.; Shiff, Richard — Notas de signos e símbolos, mas como
(Eds.); Critical Terms for Art History, um meio para a atividade prática.
The University of Chicago Press, 1
Para Tim Collins e Reiko Goto Cf. Semedo, Alice; «Introdução», in
2003. (2005), advogados da arte pública Semedo, Alice; Lopes, J. Teixeira
Liggett, Helen; Urban Encounters, como eco-prática, a atitude esté- (Coord.); Museus, discursos e repre-
University of Minnesota Press, 2003. tica dos criadores pode tender para sentações, Afrontamento, 2006.
Rendell, Jane; «Public Art: between uma ou mais das seguintes posi- 5
João Barrento (1996): Actuali-
Public and Private», in Bennett, ções: lírica, crítica e transformativa. dade não é, para Benjamin, a cate-
Sarah; Butler, John (Eds.); Advances 2
Delgado, Manuel; «O Espaço goria mundana que se refere àquilo
in Art & Urban Futures Voume I. Público como Representação. que brilha à superfície, ao aggiorna-
Locality, Regeneration & Divers[c] Espaço urbano e espaço social mento efémero, ao up to date bor-
ities, Intellect Books, 2000. em Henri Lefèbvre». Conferên- bulhante, calculado e imposto. O
Séguret, François; «Les acteurs et cia proferida no âmbito do ciclo conceito tem nele contornos mais
les métiers de la ville et du projet «A Cidade Resgatada» organizado fundos, místicos, e implica uma ilu-
Urbain», in Hayot, Alain; Sauvage, pela OASRN, Museu de Serralves, minaço súbita do passado pelo pre-
André (dir.), Le Projet Urbain. Enjeux, 15 de Maio de 2013. Tradução do sente, motivada por uma afinidade
Expérimentations et Professions, espanhol por Pedro Bismarck e Luís electiva e despoletada por uma
Éditions de la Villette, 2000. Piteira. Cf. http://www.revistapu- explosão de sentidos que põe a nu
Semedo, Alice; «Introdução», in nkto.com/2014/01/o-espaco-publi- secretas e imprevisíveis coincidên-
Semedo, Alice; Lopes, J. Teixeira co-como-representacao_9694.html cias entre presente e passado.
(Coord.); Museus, discursos e repre- 3
Ver a reflexão continuada de João 6
Campos, Ricardo; «Introdução», in
sentações, Afrontamento, 2006. Barrento sobre o ensaio e o frag- Campos, Ricardo; Brighenti, Andrea
Serrão, Adriana Veríssimo; «A pai- mento, sintetizada em entrevista Mubi; Spinelli, Luciano (Orgs.); Uma
sagem como problema da filoso- recente, de 2013. Cf. http://www. Cidade de Imagens. Produções e
fia», in Serrão, Adriana Veríssimo pequenamorte.net/entrevista-com- Consumos Visuais em Meio Urbano,

– MARIO CAEIRO 63
Mundos Sociais, 2011. exemplos que temos em Lisboa é pement d’une sucession, d’une
7
O arquitecto Gonçalo Ribeiro mesmo este de Pantónio, entre as addition d’événements, qui pro-
Telles é autor, entre outros, do Cor- Amoreiras e Campo de Ourique. duise quelque chose comme la mise
redor Verde de Monsanto; da inte- Tão bom que já foi feito em 2011, en forme d’un mouvement.
gração da zona ribeirinha oriental e outros murais vizinhos já chegaram 16
Street-artist que se tem celebri-
ocidental na Estrutura Verde Princi- e saíram, e a parede nunca sequer zando-se pelas suas frases sempre
pal de Lisboa; dos jardins da sede foi arranjada. E tão bom que trans- assinadas ‘+-‘. Cf. http://maismenos.
da Fundação Calouste Gulbenkian formou um acidente – literalmente, net/
(com António Viana Barreto) e dos porque foi uma carrinha que se des- 17
http://inscriptionproject.
projectos do Vale de Alcântara e da pistou e subiu pelo passeio como blogspot.pt/2012/04/objet-trouve.
Radial de Benfica, do Vale de Che- se estivesse para entrar numa gara- html
las, e do Parque Periférico. gem – no nosso próprio momento 18
Em Portugal, Kornacki apresen-
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

8
Directamente inspirada pelo Roy Lichtenstein à beira da estrada. tou-se: na Plataforma Revólver, na
movimento das águas, Fernanda O mais bonito é que muitas vezes exposição colectiva Objet Trouvé
Fragateiro concebeu o projecto de vejo um senhor aproveitar os des- (2012), onde instalou duas letras (I
um jardim totalmente relvado, em troços para se sentar a descansar à e P) da palavra ‘IZBA PRZYJĘĆ’ [Ser-
que a modelação do terreno em sombra, e nem me importo de parar viço de Urgências] (http://inscrip-
rigorosas curvas de nível, simula nos semáforos vermelhos lá ao lado tionproject.blogspot.pt/2012/04/
o ritmo do oceano, com o fazer e todo o santo domingo. Ana Dias objet-trouve.html); em perfor-
desfazer das ondas. In http://www. Ferreira in https://cabecacoracao. mance freestyle em frente à Assem-
portaldasnacoes.pt/item/fernan- wordpress.com/category/olhos/ bleia da República, no mesmo
da-fragateiro-jardim-das-ondas/ arte-urbana/ ano, com a palavra ‘CRISE’ escrita
9
Cf. http://www.cm-lisboa.pt/equi- 13
Foi entretanto ‘trasladada’ para em ossos adquiridos num talho (
pamentos/equipamento/info/ a Doca de Santo Amaro. Cf. http:// https://vimeo.com/89400206); no
liberdade-monumento-a-revolu- joanavasconcelos.com/info. âmbito do ‘combóio artístico’ Cos-
cao-de-abril aspx?oid=511. mic Underground (2013), com uma
10
Pouco depois da inauguração, 14
Davila: Car tel est, dans le domaine reconfiguração teatralizada da pala-
o povo de Lisboa baptizou aliás de l’art, le destin de la déambulation: vra ‘UNIWERSAM’ (https://www.you-
a polémica peça, quase carinho- ele est capable de produire une ati- tube.com/watch?v=gYnpxxvkpi0) e
samente, de mamarracho, mas tude ou une forme, de conduire à mais recentemente no contexto do
é curioso como, com o tempo, o une réalisation plastique à partir du Festival LUMINA, em Cascais (2015),
choque se atenuou. mouvement qu’elle incarne, et cela onde três palavras – ‘KOSMOS’,
11
In http://www.jn.pt/PaginaInicial/ en dehors ou en complément de la ‘UNIWERSAM’ e ‘VICTORIA’ – foram
Interior.aspx?content_id=935682 pure et simple représentation de la apresentadas simultaneamente sob
12
Se pensarmos que a melhor defi- marche (iconographie du déplace- a forma de uma instalação de luz.
nição de arte urbana é algo que ment), ou bien ele est tout simple- 19
Artista na Cidade [de Lisboa]
interage com a rua e que é pen- ment elle-même l’attitude, la forme. 2014, projecto que consistiu na ins-
sado para um espaço em particular 15
Ao limite, ainda com Davila: Défi- crição de dez frases em outros tan-
como os anéis são pensados para nir un cadre, un protocole, un dis- tos locais de Lisboa, realizado em
os dedos, então um dos melhores positif, qui encourage le dévelop- colaboração com o Gabinete de
Arte Urbana (GAU). Cf. http://www. potential self-organizing richness of GRÁFICOS DE ROMA, IV ENCON-
artistanacidade.com/2014/inter- people within a reductive culture of TRO DE HISTÓRIA DA ARTE – IFCH
vencoes-na-cidade-uma-colabora- objects and possessions. In a society / UNICAMP, 2008.
cao-com-a-gau/ which reduces people I’m working 25
Stephen Johnstone: The every-
20
A ideia partiu da Galeria de Arte to celebrate their richness and com- day is human. The earth, the see,
Urbana (GAU) da autarquia, que plexity. […]”. In his projects, Willats forest, light, night, do not every-
convidou Tim Etchells “a escre- shifts the focus of art from the phe- dayness, which belongs first of all to
ver 10 frases para Lisboa, 10 frases nomenological experience of the the dense presence of great urban
que interpelem os lisboetas e tran- creator fabricating an exemplar phy- centres. We need these admirable
seuntes e os convidem a desco- sical object to the phenomenologi- deserts that are the world’s cities for
brir este artista”. […] O certo é que cal experience of his co-participants the experience of the everyday to
alguém terá levado o programa à in the spaces and routines of their begin to overtake us. The everyday is
letra e se deixou interpelar pelas daily lives. not at home in our dwelling-places,
frases, ao ponto de tomar a inicia- 23
Maria Luisa Zanatta: Em Da it is not in offices or churches, any
tiva de sobre elas intervir. Por cima Fabrica que falece à cidade de Lis- more than in libraries or museums.
dos ditos idealizados pelo artista boa (1571) o teórico retoma vel- It is in the street – if it is anywhere.
inglês, sempre com um carácter has questões insistindo nas urgên- Here I find again one of the beautiful
mais ou menos programático sobre cias urbanas. Apresenta uma série moments of Lefèbvre’s books. The
o sentido da arte – “art that hurts”, de imagens, isto é, lembranças de street, he notes, has the paradoxi-
“art that opens eyes” ou “art that melhoramentos para Lisboa: por- cal character of having more impor-
remembers”-, foram feitos riscos tas, pontes, calçadas, igrejas, palá- tance than the places it connects,
em graffiti e, acima ou abaixo delas, cios e fortificações que conferiram more living reality than the things it
apostas inscrições sem aparente a Holanda a condição do arquiteto reflects. The street renders public.
ligação ou outro propósito que o da que pensa a cidade. Analisando sua ‘The street tears from obscurity what
mera sabotagem. In http://ocorvo. obra, encontramos elementos que is hidden, publishes what happens
pt/2014/11/17/murais-de-artis- nos auxiliam a compreender suas elsewhere, in secret; it deforms it,
ta-homenageado-sabado-pela-ca- ideias de Arquitetura e de Cidade. but inserts it in the social text.’ And
mara-de-lisboa-vandalizados/ 24
Cristiane Maria Rebello Nasci- yet, what is published in the street
21
A peça ganhou a sua designação mento: Da Fábrica que falece à is not really divulged; it is said, but
final, ‘L.O.V.E’, durante o processo cidade de Lisboa não é propria- this ‘is said’ is borne by no word ever
da sua realização. O título inicial- mente um tratado de arquitetura, really pronounced, just as rumours
mente previsto havia sido ‘omnia mas uma admoestação ao rei D. are reported without anyone trans-
munda mundis’ – significando lite- Sebastião a propósito da importân- mitting them and because the one
ralmente ‘para os [homens] puros, cia de dar à cidade uma condição who transmits them accepts being
todas as coisas [são] puras’. Cf. à altura do império marítmo por- no one.
http://www.designboom.com/ tuguês. Cf. Nascimento, Cristiane 26
Cf. Caeiro, Mário; «Ruas criativas?
art/maurizio-cattelans-middle-fin- Maria Rebello; DA FÁBRICA QUE Vamos lá! O novo desafio de uma
ger-displayed-in-milan/ FALECE À CIDADE DE LISBOA: Europa en route, a caminho de si
22
Kester: As he [Willats] writes, “My FRANCISCO DE HOLANDA ENTRE própria», in Arqa – Arquitetura e
practice is about representing the OS MIRABILIA E OS GUIAS TOPO- Arte, n. 119, julho-agosto 2015.

– MARIO CAEIRO 65
Do Monumento Público Tradicional à Arte
Pública Contemporânea

por José Pedro Regatão


Professor na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico
de Lisboa, Doutoramento em Ciências da Arte (Àrea específica: Arte
Pública) e Investigador.
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

In this paper we tried to define and discuss the


concept of public art in light of the theoretical
work that justified the creation of this subject, Durante um largo período de tempo a de-
with reference to the main arguments that have signação Arte Pública, entendida enquanto
characterized the discussion on the topic. To that end, categoria artística, suscitou o debate e al-
we present a model based on a set of aesthetic and guma controvérsia nos meios académicos,
conceptual transformation that occurred in art from não apenas por se tratar de um termo rela-
the second half of the twentieth century onwards, tivamente recente no campo historiográfico,
as far as the plastic formulation, and the perspective mas sobretudo pelo facto de este conceito
of a new understanding of the Spectator place are não reunir um consenso generalizado. Antes
concerned. This also implies the recognition of old de mais, é um conceito que veio questionar
values rejection ​​that characterized the traditional as noções tradicionais de monumento es-
public monument and the failure of its own cultórico, a sua forma e função, bem como
compositional structure. Thus it is argued that public o lugar do espetador, convocando novos
art is inseparable from the traditional monument modelos fundados na pesquisa estética de-
crisis, in that it proposes a rupture with this historical senvolvida durante o século XX. Estes mo-
context, promoting a new awareness of its form and delos, para além de terem sido responsáveis
function. For that purpose we present several artistic pela redefinição da obra de arte, introduzi-
projects that illustrate the theoretical and practical ram novas problemáticas na criação artística
implications of this concept. para o espaço público, rejeitando os proces-
sos de representação convencionais.

Acrescente-se ainda a multiplicidade de


perspetivas produzidas no pensamento
teórico nas últimas décadas, onde se con-
frontaram diversas teses e se debateram di-
ferentes casos de estudo1 sobre os requi-
sitos estético-conceptuais da arte pública, algumas das ideias principais para o futu-
propondo diversas perspetivas sobre o seu ro desta disciplina, ao destacar a vertente
papel na sociedade. Se por um lado este social e utilidade pública da arte, em opo-
debate se traduziu no desenvolvimento sição ao que na época consideravam ser a
teórico deste conceito, por outro, suscitou “mediocridade da arte oficial”. Neste con-
alguma confusão e ambiguidade no signifi- texto, foi possível conhecer uma das pri-
cado do termo. Hoje em dia coexistem cor- meiras definições de arte pública de que há
rentes de pensamento que defendem pro- memória, relatada enquanto obra “sublime
pósitos diferentes para a arte pública, uns e útil para a via pública”3, uma noção que
incidem mais na exploração das caracterís- dissipa logo à partida quaisquer dúvidas
ticas físico-percetivas do espaço orientado em relação ao compromisso social presen-
para a experiência do observador, outros te neste conceito.
pelo contrário defendem a sua função so-
cial e educativa, através do estímulo do tra- Cerca de meio século depois encontramos
balho com as comunidades. mais uma referência às denominadas Artes
Públicas pela mão de Gilbert Seldes, desta
Alguns autores consideram que toda a arte vez em alusão a três importantes meios de
é pública, na medida em que as obras per- comunicação de massas em forte expansão
tencentes às coleções dos museus se en- desde os anos 30: a televisão, a rádio e o
contram acessíveis ao grande público, por cinema. Segundo o escritor e crítico ame-
isso a expressão é entendida como pleo- ricano, as Artes Públicas – The Public Arts –
nasmo, visto que a própria noção de arte distinguem-se das outras artes pelo seu ca-
deixa implícita essa ideia. Outros tantos ar- rácter “popular” e “aceitação universal”, por
gumentos críticos questionaram a legitimi- abranger “(…) um vasto número de pessoas
dade da expressão arte pública que, hoje simultaneamente, e o seu efeito não se limi-
em dia, já conquistou a plena aceitação, tar àqueles que as presenciam diretamente”,
tendo afirmado a sua independência en- no sentido de que se converte numa “ma-
quanto disciplina de estudo. téria de preocupação pública”4. Reconhece-
mos, em grande parte, nestas palavras a na-
Embora o conceito de arte pública retrate tureza da arte pública entendida enquanto
uma mudança de paradigma que ocorreu disciplina artística; a par dos meios de infor-
na arte no decurso da segunda metade do mação de massas, também se encontra dis-
século XX, mais concretamente em meados ponível para uma audiência ampla e hetero-
da década de 60, na realidade este termo génea, não se esgotando apenas nos seus
remonta ao final do século XIX, como teste- espectadores diretos, mas, em certos casos,
munha o Primeiro Congresso Internacional “contagiando” toda a comunidade.
de Arte Pública realizado em Bruxelas em
Setembro de 1889 2. Neste encontro, onde Um dos aspetos que melhor caracteriza a
se reuniram diversas entidades governa- arte pública é precisamente o carácter uni-
mentais de vários países, já se perfilavam versal do seu envolvimento com o público,

– JOSÉ PEDRO REGATÃO 67


na medida em que se dirige a toda a so- caráter experimental, em proveito de locais
ciedade e não apenas a um segmento es- que proporcionem maior liberdade artística
pecífico, como geralmente se observa nos e com capacidade para convocar a presen-
lugares institucionais da arte, e por isso ça de novos tipos de público.
participa diretamente no quotidiano social
através dos locais de convívio e lazer que No âmbito dos espaços não convencionais,
integram a própria paisagem urbana. Di- os artistas demonstraram um grande inte-
versos autores reconhecem, também, que resse pelas potencialidades da arte pública
este conceito serviu para distinguir duas enquanto alternativa às galerias e museus,
práticas artísticas distintas, uma dirigida seja pela liberdade e ambição proporciona-
para museus e galerias e outra orientada da pela grande escala capaz de extrapolar o
para os espaços públicos. registo da galeria, seja pela nova importân-
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

cia que conferiam ao espetador, solicitando


Poder-se-á questionar o motivo desta sepa- cada vez mais a sua participação6.
ração formal no quadro da arte contempo-
rânea, onde operam cada vez menos limi- Se, por um lado, o conceito de arte pública é
tes concretos entre as disciplinas artísticas o resultado deste conjunto de posições de-
e se observa uma crescente proliferação sencadeadas pelas vanguardas na viragem
de novas técnicas e processos de trabalho dos anos 60 para os anos 70, por outro, re-
responsáveis pela crescente desmaterializa- flete uma mudança de modelo em relação
ção da obra de arte. Na realidade, isto reve- à conceção tradicional de monumento, pro-
la uma nova consciência sobre as relações pondo a substituição dos padrões clássicos
entre arte e o seu contexto, porque o obje- de representação por novos valores de ca-
to deixou de ser entendido enquanto enti- ráter anti-monumental7. Como refere Arlene
dade autónoma para compreender todo o Raven “a arte pública não é mais um herói
ambiente que o rodeia, colocando o espa- a cavalo”8, na medida em que reclama uma
ço real no centro da criação artística. nova independência do modelo do monu-
mento público tradicional.
Importa não esquecer que este fenómeno
é acompanhando por uma atitude de con- Esta transformação profunda na nature-
testação dos artistas ao carácter sacralizado za conceptual e estética da arte coincidiu
e artificial do denominado “cubo branco”, com importantes mudanças político-sociais
metáfora criada por Brian O’Doherty para no Ocidente, nomeadamente na segunda
caracterizar o espaço idealista de museus e metade do século XX, com a queda de um
galerias de arte, local de pura neutralidade conjunto de ditaduras e regimes autoritá-
onde as obras aparecem isoladas do mun- rios que abriram espaço para o surgimento
do real5. Neste âmbito, também, compreen- da democracia e, por conseguinte, da pró-
de o movimento de oposição ao sistema pria liberdade de expressão. Vale a pena
comercial praticado pelas galerias, em par- recordar, a este propósito, o célebre Con-
te comprometendo a exibição de obras de curso Internacional de Escultura dedicado
à construção do Monumento ao Prisioneiro Na verdade, o conceito de arte pública sur-
Político Desconhecido, promovido pelo Ins- ge inevitavelmente ligado à crise do mo-
titute for Contemporary Art em 1952. Este numento público tradicional, entendido no
concurso contou com mais de uma cente- seu sentido original como uma represen-
na de artistas de várias nacionalidades, en- tação comemorativa destinada a preservar
tre os quais se destacam grandes referên- um determinado acontecimento para a pos-
cias da escultura do século XX, como Naum teridade, como define Alois Riegl:
Gabo, Alexander Calder, Barbara Hepwor-
th, Reg Butler, Max Bill e o artista português “Por monumento, no sentido mais antigo e
Jorge Vieira. Para além de propor novas lin- primordial, se entende uma obra realizada
guagens e soluções formais, este concurso pela mão humana e criada com a finalidade
traduzia uma verdadeira oposição político- específica de manter a proeza ou destinos
-ideológica, ao estilo da “Guerra Fria” contra individuais (ou em conjunto destes) sempre
os países comunistas9. De facto, investiga- vivos e presentes na consciência das gera-
ções subsequentes revelaram que os Esta- ções vindouras. […]”12.
dos Unidos da América financiaram discre-
tamente o respetivo concurso com o intuito Neste sentido, é possível afirmar que os
de denunciar a falta de liberdade humana e monumentos públicos tradicionais estão
a trágica situação dos prisioneiros políticos impregnados de uma série de valores –
vítimas dos regimes não democráticos. morais, ideológicos, educativos, estéticos,
simbólicos – que a nossa memória coletiva
Apesar de o programa estético do concur- pretende preservar como um legado às ge-
so não apresentar restrições estilísticas, na rações futuras. Compreende-se assim que
verdade o júri, constituído por uma dezena esta memória seja um elemento fundamen-
de personalidades de prestígio no campo tal da identidade “individual ou coletiva” da
da história de arte, como Herbert Read e nossa sociedade, geradora de determina-
Giulio Carlo Argan, mostrou preferência por dos modelos sociais e, de certo modo, um
abordagens mais abstratas ao tema pro- poderoso “instrumento” de poder, como se
posto, coincidindo em certa medida com observou ao longo da história pelas ações
as diretivas de uma campanha política sim- ideológicas e propagandísticas dos regi-
bolicamente representada pelo recurso à mes totalitários13.
abstração10. Por ironia do destino, aquele
que certamente ficaria conhecido na histó- A maior parte dos valores personificados
ria da arte como um dos primeiros monu- nos monumentos escultóricos tradicionais
mentos modernos, da autoria do escultor foram rejeitados por diversos artistas no de-
inglês Reg Butler, não chegou a ser erguido curso do século XX, tanto em termos con-
no espaço público, permanecendo apenas ceptuais, com a falência dos antigos ideais
em pequena escala11. comemorativos, como em termos estéticos,
ao reivindicar um novo ideário formal em
sintonia com as pesquisas plásticas da mo-

– JOSÉ PEDRO REGATÃO 69


dernidade. A retórica do monumento escul- Um dos exemplos mais emblemáticos des-
tórico tradicional deixou de corresponder ta atitude é a estátua – landmark – da autoria
às exigências da sociedade moderna. No do escultor australiano Charles Robb, uma
plano estético, verifica-se a oposição às pre- representação invertida que homenageia o
missas convencionais do monumento escul- primeiro governador daquela cidade, Char-
tórico, caracterizado pela sua escala monu- les La Trobe, personagem colonial quase
mental, verticalidade, função comemorativa, desconhecida pelos australianos, apesar do
representação figurativa, carácter alegórico seu precioso contributo para o desenvolvi-
e narrativo, bem como a “hierarquização vi- mento de Melbourne17. A natureza deste tri-
sual e simbólica das personagens”14. Desse buto, instalado temporariamente em frente
modo, veio pôr em causa a lógica estrutu- do Museu da Cidade (2004-2006), não só
ral do monumento clássico, abandonando veio questionar a natureza e significado dos
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

as tradicionais convenções estéticas por um monumentos públicos dominantes, como


novo ideário formal fundado na experiência contestar o rigor dos critérios aplicados na
artística contemporânea. Como denota Mar- seleção histórica do mérito. Ao longo da
garet Robinette na década de 70 ao afirmar: história, outros tantos exemplos contesta-
ram e, até, parodiaram a função do monu-
“Hoje, é evidente a mudança das intenções mento público convencional.
da escultura pública. Raramente comemora
heróis e acontecimentos, nem simboliza de- Outro aspeto importante que marca o sur-
terminadas realizações ou objetivos. Em vez gimento do conceito de arte pública é
disso, a sua tarefa parece ser melhorar esteti- o abandono do pedestal protagonizado
camente um lugar […]”15. pela escultura pública moderna; desde o
final do século XIX, assistimos a um longo
Não cremos, no atual panorama, ser pos- processo de independência da escultura
sível recuperar o conceito de monumento em relação à sua base, primeiro pela mão
escultórico tal como propõe Javier Made- de Rodin, e mais tarde de Brancusi, que re-
ruelo no seu interessante ensaio sobre o fim solveram este desafio ao fundir a escultu-
do uso do pedestal16, porque na realidade ra com o seu suporte. O pedestal tem sido
toda a arte pública se afirma enquanto prá- utilizado durante séculos com o propósi-
tica antimonumental, rejeitando qualquer to de erguer monumentos escultóricos e
afinidade com as propostas comemorati- elementos arquitetónicos, com o intuito
vas precedentes. Não surpreende, portan- de fazer sobressair determinados objetos
to, que muitos artistas tenham adotado uma do ambiente em redor e conferir-lhes uma
postura crítica face ao monumento come- certa monumentalidade.
morativo tradicional, desenvolvendo diver-
sos projetos que ridicularizam a sua função Para além da sua condição de elemento es-
na sociedade contemporânea, ao mesmo trutural de origem arquitetónica, adquiriu
tempo que reivindicam a sua imediata re- uma espécie de carácter sagrado ao per-
formulação estética. mitir que qualquer imagem/objeto – reli-
gioso, militar, civil – adquirisse um sentido ele também é entendido como coprodu-
ascensional. O pedestal comporta assim tor da obra, no sentido de que é convoca-
o culto do profundo respeito, da home- do para participar na realização da mesma,
nagem solene, da veneração pública e da através do seu próprio “ato de perceção”
intangibilidade terrestre. Como refere An- ou expressão individual. Por conseguinte,
drew Causey, “[…] o pedestal foi o sinal do a obra não apresenta uma estrutura defi-
privilégio escultórico, o primeiro sinal da nida e acabada, como é comum encontrar
sua diferença em relação às outras coisas nas formas clássicas, mas abre-se a um vas-
[…]”18; mas também nas palavras de Albert to “campo de possibilidades” de interpreta-
Elsen, foi responsável por conferir à escul- ção remetendo para o próprio espectador a
tura um “aspeto raro e precioso”, assumin- sua realização final21.
do, em certa medida, uma postura “não de-
mocrática ou autoritária”19. A nova relação artística construída com o
espectador tornou-se rapidamente na for-
Se é verdade que a independência da es- ça motriz da arte pública, no sentido de
cultura face ao seu suporte representa uma que os artistas começaram a dirigir as suas
importante conquista da escultura moder- intervenções para a exploração das poten-
na, suscitando novas possibilidades plásti- cialidades físico-percetivas da obra, trans-
cas derivadas da crescente autonomia do formando o espectador no seu principal
objeto artístico, não é menos verdade a protagonista. Em consequência disto, mui-
importante transformação que operou no tas obras se definiram em função do movi-
campo da arte pública, conferindo à peça mento, da descoberta e da interação dire-
uma maior liberdade de ação e proximida- ta com o observador, construindo parte do
de com o público. seu significado a partir desse diálogo parti-
cular entre o sujeito e a obra.
Outro aspeto fundamental para caracterizar
este conceito, surge no seguimento desta Jaume Plensa vai ao encontro desta nova
conquista formal, consiste na proximidade consciência do lugar do espectador com a
entre a arte e o público, em consequência obra The Crown Fountain, inaugurada em Ju-
de um novo posicionamento da obra de lho de 2004 no Millenium Park, em Chicago,
arte perante o espectador, uma vez que nos EUA. Duas torres em tijolo de vidro com
deixa de ser entendida enquanto discur- 15 metros de altura, dispõem-se frontalmen-
so “unilateral” para passar a ser “entendida te sobre uma ampla praça em granito, fun-
como uma forma de diálogo entre o artista cionando como telas onde são projetados
e o público”20. Ao promover esta nova for- diversos rostos de cidadãos anónimos, es-
ma de diálogo, cuja inspiração nos reporta colhidos entre diversas organizações sociais
aos movimentos artísticos dos anos 60 e 70, e étnicas daquela cidade. Em determinado
o espectador abandona a sua posição me- momento específico, os lábios dos rostos
ramente contemplativa para desempenhar contraem-se e simulam o jorrar da água pro-
um papel participativo na obra. Por vezes, duzindo um efeito similar às fontes tradicio-

– JOSÉ PEDRO REGATÃO 71


nais. Após terminada a sequência de vídeos, do diálogo formal entre a obra e o meio
onde cada rosto é projetado durante 5 mi- circundante. Por isso, a apreciação da obra
nutos, surge uma cascata de água que cobre está inevitavelmente associada ao seu con-
a fachadas das torres, criando um forte efei- texto, tornando-se num elemento essencial
to visual. Para além do tributo à diversidade para a sua perceção24, como assinalam as
étnica que caracteriza esta cidade, a escul- palavras do escultor Richard Serra:
tura de Jaume Plensa interage fisicamen-
te com o público através dos seus jogos de “[…] Baseado na interdependência da obra e
água, e convida os espectadores a fruírem do local, os trabalhos site-specific dirigem-se
do espaço de modo recreativo. Este projeto criticamente ao conteúdo e contexto do seu
ilustra bem a transformação originada pela lugar. As propostas site-specific permitem
arte pública contemporânea, ao estimular a observar, simultaneamente, as novas rela-
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

interação recíproca entre a obra e o espec- ções criadas entre a escultura e o seu contex-
tador, de uma forma original e sem prece- to […]”.interdependência da obra e do local,
dentes na história. os trabalhos site-specific dirigem-se critica-
mente ao conteúdo e contexto do seu lugar.
Para que a relação descrita possa ocorrer As propostas site-specific permitem obser-
na sua máxima eficácia, os artistas tiveram var, simultaneamente, as novas relações cria-
que se adaptar a esta nova realidade, alte- das entre a escultura e o seu contexto […]”25.
rando os seus procedimentos na conceção
da obra pública, rompendo, antes de mais, Deste modo a obra torna-se interdependen-
com o “paradigma modernista”22 responsá- te do local para onde se destina, redesenha
vel pela preservação da autonomia da obra e organiza o espaço em seu redor, criando
perante o seu meio envolvente. um novo campo de significados que alte-
ra a perceção do espaço urbano. Para Lucy
Com o advento do minimalismo, durante o Lippard, a arte site-specific deverá “(…) ter
final da década de 60, assistimos à rutura uma ligação orgânica com o seu lugar (…)” e
dos conceitos tradicionais de escultura: a re- ser encarada como um objeto que faz parte
dução formal em contraponto à representa- do quotidiano do espectador26.
ção, a rejeição do processo de modelação
dos materiais, a oposição ao uso do pedestal Esta ligação próxima entre a obra, o espa-
como elemento de suporte da obra, a con- ço e o próprio espectador representa na
quista do espaço em redor da escultura e o realidade um dos principais fundamentos
reposicionamento do lugar do espectador23. do conceito de arte pública, cuja estrutu-
ra se define por este novo conjunto de re-
Outro aspeto importante que define a arte lações intrínsecas entre a obra de arte e o
pública, é a noção de site-specific que de- espaço urbano.
signa as obras concebidas para um lugar
específico tendo como base as qualidades Enquanto no passado o monumento públi-
físicas desse espaço, através de um profun- co nos ofereceu uma estética formal bem
definida, a partir de cânones académicos cados que lhe foram atribuídos ao longo
que privilegiavam, em grande parte dos da história, este conceito designa todo o
casos, a representação mimética da rea- conjunto de intervenções artísticas, da es-
lidade, utilizando para esse efeito deter- cultura à instalação, do graffiti à performan-
minadas tipologias artísticas, a arte públi- ce (entre outras formas de expressão), rea-
ca contemporânea, pelo contrário, não só lizadas no espaço público (ou relacionadas
introduziu profundas alterações formais, com o mesmo), cuja conceção rejeita a for-
como procurou alargar o seu universo de ma e a função comemorativa tradicional,
referências. Tornou-se, assim, cada vez procurando estabelecer uma relação es-
mais multidisciplinar, assimilando os pro- pecífica com o meio ambiente e o público.
cessos de trabalho e as linguagens de dis- Por outras palavras, este conceito marca o
ciplinas, como a arquitetura, o design de fim da era do monumento público tradicio-
equipamento, a publicidade, a sociologia, nal e abre caminho a uma nova conceção
entre outras. estética, onde a participação e a perceção
sensorial do espectador é cada vez mais
O coletivo composto por artistas, desig- solicitada como parte integrante da obra.
ners e arquitetos designado por Atelier Em relação ao espaço envolvente, outro-
Van Lieshout27 será provavelmente um dos ra entendido como mero cenário, ganha
exemplos mais interessantes desta prática protagonismo, não só enquanto material
multidisciplinar, ao reunir no mesmo proje- plástico mas como elemento gerador da
to uma diversidade de meios provenientes própria forma artística. É, por isso, conside-
de várias disciplinas que vieram problema- rado um elemento fundamental para a ex-
tizar uma série de questões entre a arte e periência fruitiva do observador.
as ciências sociais. É o caso das unidades
móveis auto-suficientes criadas para alber- No domínio temático observa-se o aban-
gar um grupo de cidadãos, este work in dono dos temas clássicos de âmbito na-
progress propõe uma sociedade alterna- cional-historicista, por uma incursão por
tiva à existente, com regras mais flexíveis poéticas pessoais e assuntos do quotidia-
e uma filosofia de vida mais participativa, no, abrangendo, em determinados casos,
aberta à criatividade e à responsabilida- questões sociais (new genre public art).
de individual. Neste sentido, para o Atelier Acresce ainda referir, o modo como ultra-
Van Lieshout não existem limites entre as passou as fronteiras tradicionais entre as
disciplinas, e muito menos “(…) fronteiras disciplinas, apropriando-se da linguagem
entre a arte (pública) e a vida”28. formal e dos elementos operativos de dis-
ciplinas tão díspares entre si, como a arqui-
Chegados praticamente ao termo das nos- tetura, o design ou a sociologia.
sas reflexões, cabe agora resumir as nossas
premissas que definem a arte pública: não Para concluir, a arte pública contemporâ-
obstante as interrogações em redor do ter- nea acompanhou as mudanças profundas
mo “arte pública” e dos diferentes signifi- que ocorreram na relação entre a arte e a

– JOSÉ PEDRO REGATÃO 73


sociedade, fundou novos modelos estéti- — Bibliografia
cos decorrentes do encontro entre a obra,
o espectador e o espaço real. Em lugar ABREU, José Guilherme Ribeiro
das convicções ideológicas do passado, Pinto de – Escultura pública e
que fez questão em desmaterializar ao lon- monumentalidade em Portugal
go da história, propôs uma nova estrutura (1948-1988). Lisboa: Faculdade de
dialética entre o artista e o público. Ciências e Humanas da Universi-
dade Nova de Lisboa, 2006. Tese
de doutoramento.
CAUSEY, Andrew – Sculpture since
1945. Oxford, New York: Oxford
University Press, 1998. (Oxford His-
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

tory of Art).
CRIMP, Douglas – Redefining
site specificity. In FOSTER, Hal;
HUGHES, Gordon ed. – Richard
Serra. Cambridge, Mass. [etc.]: The
MIT Press, cop. 2000. (OCTOBER
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ECO, Umberto – A obra aberta. Lis-
boa: Difel, imp. 1989.
ELSEN, Abert E. – Rodin’s thinker
and the dilemas of modern public
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another: site-specific art and loca-
tional identity. Cambridge, Mas-
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ROMANO, Ruggiero. Enciclopé-
dia Einaudi. [S.l.]: Imprensa Nacio-
nal – Casa da Moeda, 1984. Vol. I,
p. 46-47.
HARRISON, Charles ed. lit.;
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1900-1990: an anthology of chan-
ging ideas. Cabridge, Mass.: Blac-
kell Publishing, 1993.
LIESHOUT, Atelier Van – The public Editorial inquérito, 2003. (Coleção Editorial Inquérito, 2003. (Colec-
art of AVL.Ville. In MATZNER, Flo- Ideias Feitas; n.º 7). ção Ideias Feitas). p. 32.
rian, ed. Lit. – Public art: a reader.2.ª SELDES, Gilbert – The public arts. 7
Esta mudança de paradigma já
ed. Rev. Munich: Hatje Cantz Publi- New York: Simon and Schuster, tinha sido, de certa forma, esbo-
shers, 2004. 1956. çada por Auguste Rodin.
LIPPARD, Lucy R. – The lure of the 8
RAVEN, Arlene ed. – Art in public
local: senses of place in a multicen- — Notas interest. New York: Da Capo Press,
tered society. New York: New Press, 1993. p. 1. “public art isn’t a hero on
cop. 197. 1
Uma das polémicas mais discu- a horse anymore”.
MADERUELO, Javier – La pérdida tidas no contexto internacional foi 9
MICHALSKI, Sergiusz – Public
del pedestal. Madrid: Círculo de a obra Tilted Arc de Richard Serra, monuments: art in political bon-
Belas Artes 1994. instalada na Federal Plaza em Nova dage 1870-1997. London: Reak-
MATZNER, Florian, ed. Lit. – Public Iorque, em 1981, e demolida oito tion Books, 1998. (Essays in Art and
art: a reader.2.ª ed. Rev. Munich: anos depois pela entidade que a Culture). p. 156.
Hatje Cantz Publishers, 2004. encomendou. Também em Por- 10
IDEM, Ibidem., p. 157.
MICHALSKI, Sergiusz – Public tugal, e mais concretamente na 11
O escultor inglês Reg Butler
monuments: art in political bon- cidade de Lisboa surgiram obras obteve o primeiro prémio neste
dage 1870-1997. London: Reak- controversas, como por exemplo concurso, com uma proposta
tion Books, 1998. (Essays in Art and a Homenagem ao 25 de Abril, da semi-abstracta constituída por
Culture). autoria de João Cutileiro, insta- uma estrutura metálica evocativa
O’DOHERTY, Brian – Inside the lado em 1989 no alto do Parque de uma torre de vigia e três figu-
white cube: the ideology of gallery Eduardo VII. ras humanas. Cumpre dizer que a
space. Expanded Edition: Berkeley 2
ABREU, José Guilherme Ribeiro obra de Jorge Vieira acabou por
[etc.]: University of California Press, Pinto de – Escultura pública e ser concretizada em Beja quase
1999. monumentalidade em Portugal quarenta anos depois do concurso.
RAVEN, Arlene ed. – Art in public (1948-1988). Lisboa: Faculdade de 12
RIEGL, Alois – El culto moderno
interest. New York: Da Capo Press, Ciências e Humanas da Universi- a los monumentos: caracteres y ori-
1993. dade Nova de Lisboa, 2006. Tese gen. Madrid: Visor, 1987. (La Balsa
REYERO, Carlos – La escultura com- de doutoramento. p. 2. de la Medusa; 7) p. 23.
memorativa en España: la edad 3
IDEM, Ibidem., p. 3. 13
GOFF, Jacques Le – Memória. In
de oro dele monumento público, 4
SELDES, Gilbert – The public arts. ROMANO, Ruggiero. Enciclopé-
1820-1914. Madrid: Ediciones New York: Simon and Schuster, dia Einaudi. [S.l.]: Imprensa Nacio-
Cátedra, cop. 1999. (Cuadernos 1956. p. 298 e 301. nal – Casa da Moeda, 1984. Vol. I,
Arte Cátedra). 5
O’DOHERTY, Brian – Inside the p. 46-47.
ROBINETTE, Margaret A. – Out- white cube: the ideology of gallery 14
REYERO, Carlos – La escultura
door sculpture: object and environ- space. Expanded Edition: Berkeley commemorativa en España: la
ment. New York: Whitney Library of [etc.]: University of California Press, edad de oro dele monumento
Design, 1976. 1999. p. 14. público, 1820-1914. Madrid: Edi-
ROUGE, Isabelle de Maison – A 6
ROUGE, Isabelle de Maison – A ciones Cátedra, cop. 1999. (Cua-
arte contemporânea. Mem Martins: arte contemporânea. Mem Martins: dernos Arte Cátedra). p. 219-220.

– JOSÉ PEDRO REGATÃO 75


15
ROBINETTE, Margaret A. – ROBI- 23
CAUSEY, Andrew – Ob. cit., p. 120-
NETTE, Margaret A. – Outdoor 122.
sculpture: object and environ- 24
CRIMP, Douglas – Redefining
ment. New York: Whitney Library of site specificity. In FOSTER, Hal;
Design, 1976, p. 20. HUGHES, Gordon ed. – Richard
16
Cfr. MADERUELO, Javier – La pér- Serra. Cambridge, Mass. [etc.]: The
dida del pedestal. Madrid: Círculo MIT Press, cop. 2000. (OCTOBER
de Belas Artes 1994. p. 53. Javier files; n.º 1). p. 151.
Maderuelo propõe, baseado na 25
HARRISON, Charles ed. lit.;
produção artística contemporânea, WOOD, Paul, ed. lit. – Art in theory,
quatro direções para recuperar o 1900-1990: an anthology of chan-
conceito de monumento público. ging ideas. Cabridge, Mass.: Blac-
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

17
Cfr. Art Almanac: the essen- kell Publishing, 1993. p. 1098.
tial guide to Australia’s Galleries 26
LIPPARD, Lucy R. – The lure of the
(February 2006). local: senses of place in a multicen-
18
CAUSEY, Andrew – Sculpture tered society. New York: New Press,
since 1945. Oxford, New York: cop. 197. p. 263.
Oxford University Press, 1998. 27
O Atelier Van Lieshout (AVL), foi
(Oxford History of Art). p. 87. fundado pelo artista holandês Joep
19
ELSEN, Abert E. – Rodin’s thinker van Lieshout em 1995, reunindo
and the dilemas of modern public uma vasta equipa de colabora-
sculpture. New Haven and London: dores no campo das artes plásti-
Yale University Press, cop. 1985. p. cas, arquitetura e design.
101. 28
LIESHOUT, Atelier Van – The
20
ROUGE, Isabelle de Maison – Ob. public art of AVL.Ville. In MATZNER,
cit., p. 33. Florian, ed. Lit. – Public art: a rea-
21
ECO, Umberto – A obra aberta. der.2.ª ed. Rev. Munich: Hatje Cantz
Lisboa: Difel, imp. 1989. p. 197- Publishers, 2004. p. 56.
198.
22
Por “paradigma modernista”
referimo-nos à arte auto-referen-
cial colocada em espaços públi-
cos sem reflectir as características
físicas desse lugar. KWON, Miwon
– One place after another: site-spe-
cific art and locational identity.
Cambridge, Massachusetts: Lon-
don, England: The MIT Press, cop.
2002. p. 11.
O Vandalismo da Arte Pública

por Victor Correia


Doutoramento em Filosofia Política e Jurídica na Universidade da Sorbonne
(Paris), Mestre em Estética e Filosofia da Arte, pela Faculdade de Letras da
Universodade de Lisboa.

The goal of this article is to analyze the vandalism of


public art, addressing their meaning, their specificity in
relation to other types of vandalism, his motives, and the O conceito de vandalismo e sua
possible measures of prevention or correction, to solve relação com a arte pública
this problem. More than any other artistic expressions,
the public art is particularly vulnerable and susceptible to As atitudes de hostilidade, assentes na into-
vandalism, because is placed in the public space, and to lerância e na discriminação, tomadas em re-
confront all kinds of public, don’t motivated or touched, lação a determinadas pessoas, têm no que
and is vandalized for political, urban, economic, aesthetic, diz respeito à cultura material a designação
psychological, moral, and religious reasons. We present de vandalismo, que acaba por constituir uma
some measures and possible solutions of technical forma indireta de intolerância e de discrimi-
character, measures of education and information, we nação, destruindo-se os símbolos materiais
advocate greater suitability for location, more accepted de uma religião, como por exemplo uma
places by the public for certain works of art, and also the escultura, ou os vestígios arquitetónicos de
greater involvement of the public around the initiatives uma cultura ou civilização, como sucedeu re-
for the public art, and don’t only institutional initiatives. centemente com a destruição dos templos
romanos da cidade de Palmira, na Síria, ou
— Key-words : com a destruição das estátuas dos Budas de
Public art, vandalism, meaning, reasons, solutions. Bamiyan, pelos Talibã, no Afeganistão.

O conceito de vandalismo é originário da


palavra Vândalos, que se referia a um povo
de origem germânica oriental, que partici-
pou nas invasões bárbaras nos primeiros
séculos da era cristã, na Europa ocidental, e
que se destacou principalmente pelos seus
métodos cruéis de destruição da proprieda-
de alheia e de bens materiais com valor pa-
trimonial e cultural, nomeadamente as obras

– VICTOR CORREIA 77
de arte. O termo vandalismo surgiu no século
XVIII, em França, e foi criado pelo abade Hen-
ri Grégoire, bispo de Blois, como crítica em
relação à atitude destrutiva duma parte da ar-
mada republicana de então, que destruía o
património artístico do Antigo Regime.

Historicamente, houve e tem havido situa-


ções de vandalismo resultantes de grandes
convulsões religiosas, como por exemplo o
ataque dos cristãos em relação aos símbo-
A Pequena Sereia, escultura de Edward Eriksen, los pagãos, ou a Reforma protestante, em
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

Copenhaga, Dinamarca
Foto : AP/BJARNE LUETHCKE
relação ao catolicismo, assim como a guerra
http://www.telegraph.co.uk/culture/art/art-features/9593748/When-art- das imagens, que dividiu em grupos a igreja
gets-vandalised.html
cristã de Bizâncio. Politicamente, temos por
exemplo as destruições de obras de arte, na
sequência da Revolução Francesa, ou mais
recentemente a destruição de esculturas er-
guidas em praças, representando Marx, En-
gels, Lenine, e Estaline, na Europa de Leste,
na sequência da queda do muro de Berlim.

Aqueles que levam a cabo estes comporta-


mentos, veem neles algo de positivo, veem
neles como que uma passagem de uma so-
ciedade antiga para uma sociedade nova,
nomeadamente o vandalismo político, atra-
vés da destruição dos monumentos ergui-
dos por um Governo anterior, e que consti-
tui o símbolo da transição do Poder, e nem
sequer o encaram como vandalismo. No en-
tanto, para quem está de fora, vê-se nessas
atitudes um ato de vandalismo, nomeada-
mente quando se trata de obras de arte de
reconhecido valor estético. O termo vanda-
lismo assume portanto uma conotação pe-
jorativa, como por exemplo a palavra radi-
calismo, ou extremismo, e atualmente é uma
termo que se alargou às diferentes línguas,
e é geralmente aplicado como sinónimo de
destruição, saque, violência, devastação, de- mento pode ser considerado uma contri-
predação, em relação a diferentes tipos de buição necessária, pelo atacante, ou como
objetos, como bancos e canteiros de jardim, uma recusa do que está contemplando, e a
árvores, candeeiros de iluminação pública, necessidade de tapá-lo ou dissimula-lo com
viaturas, monumentos, paredes, vidraças, novos significados. Os cortes e riscos apre-
tudo o que esteja no espaço público, sendo sentam uma intenção de mutilação ou ani-
a arte pública um dos principais alvos. quilação, assim como a substração de mate-
rial, que personificam claramente o carater
Há que distinguir entre vandalismo públi- agressivo e o desejo de transgredir, pura
co e vandalismo anónimo. Dentro do van- e simplesmente, revelando uma intenção
dalismo público, temos o institucional (por destrutiva premeditada, de apropriação,
exemplo a destruição de estátuas mandada contacto físico, e por vezes de furto. Não se
fazer por um novo Governo ou regime po- deve portanto confundir o vandalismo com
lítico), e a destruição pelas multidões (por a destruição acidental (por exemplo a dani-
exemplo a destruição de uma estátua, no ficação de uma escultura ao ser transporta-
âmbito de um motim, ou de uma manifes- da de um local para outro), nem com a sua
tação de rua). Dentro do vandalismo anóni- deterioração pelo clima, nem com o icono-
mo temos a destruição feita por um deter- clasmo (que tem a ver com a destruição de
minado grupo, sem que ninguém tivesse imagens religiosas).
presenciado o facto, como por exemplo um
grupo terrorista organizado, que geralmen- A arte pública tem sido um dos alvos prin-
te costuma reivindicar o atentado, depois cipais do vandalismo, pois é muitas vezes
deste ter sido cometido, ou o vandalismo alvo de contestação, dado encontrar-se no
feito por um ou mais indivíduos, que agiram espaço público. Embora nem toda a con-
em nome próprio. testação da arte pública leve ao vandalis-
mo, os atos de vandalismo têm subjacente
O vandalismo, enquanto ato, consiste em uma contestação, explícita ou implícita. A
destruir, degradar, deteriorar, voluntaria- primeira grande contestação, explícita, em
mente o bem de outrem, seja um bem públi- relação a uma obra de arte colocada no es-
co, ou um bem privado, como por exemplo paço público, uma das contestações que
um determinado edifício, e que é geralmen- suscitou maior polémica, sucedeu com a
te aplicado sobretudo em relação a monu- estátua a Balzac, esculpida por Rodin, co-
mentos e a obras de arte. Em termos práti- locada em Paris, na segunda metade do
cos consiste em pintar, riscar, cortar, partir, século XIX, estátua essa muito contestada,
pôr ácido, incendiar, bombardear, atirar ob- devido à sua linguagem artística inovado-
jetos, roubar partes da obra de arte, ou a ra, e à ausência de pedestal, e que foi por-
obra de arte na sua totalidade. Nuns casos tanto mudada várias vezes de local. A sua
acrescenta-se algo às obras de arte, noutros mudança deveu-se a razões de segurança
casos retira-se, e noutros casos anula-se a e proteção, mas por outro lado a sua des-
obra, pura e simplesmente. O acrescenta- localização é também uma quase vandali-

– VICTOR CORREIA 79
zação, pois a obra de arte foi concebida e to como pouco adequado para um monu-
realizada para um local específico. mento. Uns defendiam que a Revolução do
25 de Abril merecia uma monumento mais
No século XX um dos exemplos mais co- grandioso, outros defendiam que uma cida-
nhecidos foi o da escultura Tilted Arc, de Ri- de como Lisboa merecia um monumento
chard Serra, que foi retirada pelas autorida- melhor, outros defendiam era a própria arte
des municipais, da Federal Plaza, em Nova que estava em causa, que merecia ser mais
Iorque, em 1989, depois de pública contro- dignificada, e outros contestavam que o 25
vérsia, devido ao facto de “impedir” a pas- de Abril precisasse de um monumento. So-
sagem das pessoas na praça onde foi co- bretudo obras de arte como essa, devido à
locada, e também devido à sua linguagem sua linguagem artística inusitada, e encon-
estética, mas outros casos se podem referir trando-se no espaço público, podem pôr
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

da contestação por motivos estéticos, como o cidadão comum a pensar, despertam-no,


as colunas de Daniel Buren, na cour do Pa- suscitam diversas interrogações, pelo que
lácio Real em Paris, também muito contesta- a participação através do debate pode ser
das pela opinião pública. A instauração de um fator de sociabilidade, de inter-relação,
obras escultóricas de grande porte, uma de de reflexão, e de incentivo para a própria
Henry Moore e outra de Eduardo Chillida, arte, e para os temas políticos que através
em Guernica, levantou também uma polé- dela se pretenda eventualmente evocar. To-
mica, por motivos estéticos, de que se sa- davia, nem sempre assim acontece, e atitu-
lienta o tamanho das esculturas, considera- de mais imediata, proveniente da crítica e
do demasiado grande, polémica essa que do espírito contestatário, é muitas vezes a
passou do âmbito local para a imprensa na- destruição dessas obras de arte, que como
cional. Em Barcelona Alexandre Calder ofe- tal tem a designação de vandalismo.
receu uma das suas esculturas à cidade, que
foi colocada num dos bairros residenciais, Subjacente ao conceito de vandalismo está
do qual foi retirada pouco depois devido à geralmente a ideia de uma destruição mui-
forte contestação, também por motivos es- to violenta e lamentável, de uma perda ir-
téticos, e ao risco de vandalismo por parte reparável. Por vezes existem destruições
da população. muito violentas e perdas irreparáveis de
outros bens que se encontram no espaço
Muitos outros casos se poderiam referir, público, e algumas delas tanto ou até mais
como por exemplo em Portugal, com o mo- do que as provocadas nas obras de arte,
numento erguido ao 25 de Abril, em Lis- mas a essas destruições não se aplica tanto
boa, de autoria do escultor João Cutileiro, a designação de vandalismo, como para as
e que provocou muita polémica e contesta- obras de arte, pois subjacente ao concei-
ção por parte da opinião pública, devido ao to de vandalismo, embora a destruição, do
seu conteúdo artístico, suscetível de diver- ponto de vista físico, possa ser menor do
sas interpretações, como por exemplo a sua que a exercida sobre uma casa de habita-
forma, por muitos considerada fálica, e vis- ção, por exemplo, está ideia de uma pro-
fanação, de uma destruição que atinge os lado porque não seria tão vista, e por ou-
símbolos de uma cultura e de um povo. tro lado porque, mesmo muito vista, estaria
protegida, ou pelo menos mais protegida.
O conceito de vandalismo da arte pública
pode também ser confundido com o vanda- Enquanto que as obras de arte guardadas
lismo do espaço público, feito pela própria nos museus, nas galerias, nas igrejas, nos
arte pública : algumas esculturas indesejá- palácios, e nas coleções particulares, estão
veis, e sobretudo os graffiti, que são atual- protegidas por armários, vitrinas, ou outras
mente um dos mais controversos exemplos barreiras de acesso, assim como por câ-
de crítica e de oposição, quer da parte de maras de vigilância, seguranças, guardas
alguns setores da opinião pública, quer de vigilantes, e estão geralmente ligadas a
alguns organismos oficiais, exceto casos iso- alarmes, estas obras de arte encontram-se
lados de permissão por parte destes últimos totalmente desprotegidas, expostas à mer-
em determinados locais, o que não impede, cê de tudo e de todos. Qualquer pessoa, de
mesmo nesses casos, a crítica e a contesta- noite, e por vezes de dia, pode lá chegar,
ção de alguns setores da opinião pública. tocá-las, riscá-las, danificá-las, ou mesmo
Essa contestação, se por um lado se insurge furtá-las, sem que ninguém veja, ou mes-
contra aquilo que considera ser vandalismo, mo que alguém veja, geralmente não diga
por outro lado ela próprio também o pra- nada, não impeça, nem comunique esse
tica, ao destruir determinados graffiti, com facto às autoridades.
qualidade artística, mesmo que eles não se
encontrem pintados em casas particulares, Outro grande motivo está no facto do fre-
ou se encontrem pintados em casas particu- quentador do espaço público ser em rela-
lares, autorizados pelos respetivos morado- ção a essa arte um espectador involuntário,
res. Porque razão tudo isso acontece ? É o não motivado, e até forçado, dado que essa
que veremos no capítulo seguinte. arte se impõe ao seu olhar em pleno espa-
ço público, um espaço que ele percorre, e
Motivos do vandalismo da arte pública que é também seu enquanto transeunte e
cidadão. A arte pública é apresentada a to-
O primeiro grande motivo do vandalismo das as classes sociais, e a todas as pessoas
da arte pública está no facto desta se encon- de diferente nível etário, profissional, e cul-
trar colocado no espaço público, nomea- tural. Resulta daqui a confrontação com um
damente na rua, estando portanto muito público eclético, heterogéneo, não adver-
vulnerável, e suscetível de ser tocada, mo- tido, não sensibilizado, não familiarizado,
dificada, destruída, ou furtada por qualquer não favorável, e sobretudo muito reativo.
pessoa. O facto de se encontrar colocada Uma parte do público não reconhece mes-
no espaço público origina mais facilmente a mo a arte pública como arte, ou determi-
contestação e por vezes o vandalismo, pois nada arte pública como arte, vendo apenas
se estivesse colocada num espaço interior como arte a que se encontra em museus
já não provocaria tanta polémica, por um ou galerias, igrejas ou palácios, necessitan-

– VICTOR CORREIA 81
do portanto de um contexto de localização
específica para o seu reconhecimento en-
quanto arte. Associado ao facto do espec-
tador da arte pública ser um espectador
involuntário está a posição social e econó-
mica do homem comum, a sua formação e
a sua educação. O espaço público é um es-
paço frequentado por todos, mas ao con-
trário das galerias, dos salões de arte, e dos
museus, é maioritariamente frequentado
por pessoas com formações diversas e por
vezes opostas, pessoas que não são conhe-
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

cedoras de arte, a qual requer compreen-


são, uma sensibilidade própria e motiva-
ção, sobretudo a arte contemporânea.
Dom Sebastião, escultura de João Cutileiro,
em Lagos, Portugal
Foto de Baptista-Bastos, afixada por Carlos Medina Ribeiro
No que diz respeito aos motivos mais dire-
http://sorumbatico.blogspot.pt/2014_09_01_archive.html tos do vandalismo, e de caráter muito di-
verso, existem motivos de carácter político,
isto é, o facto de serem uma homenagem a
personalidades distintas do passado, o cul-
to aos heróis nacionais, e a invocação atra-
vés da arte pública de factos históricos que
já não têm valor nem significado para as
gerações do mundo de hoje, ou que os ti-
nham no passado mas que os deixaram de
o ter, como por exemplo a exaltação de de-
terminados acontecimentos históricos. Em
alguns desses acontecimentos exaltados
pela arte pública tradicional, encontram-se
expressas, implicitamente ou explicitamen-
te, uma narrativa de desigualdades sociais,
ou uma exaltação de guerras, e de conquis-
tas, como por exemplo o colonialismo. Em
alguns casos não se trata de acontecimen-
tos do passado, mas do próprio presente,
que são alvo de polémica, como por exem-
IDEM. Pormenor do vandalismo plo a Revolução do 25 de Abril de 1974,
Foto de Baptista-Bastos, afixada por Carlos Medina Ribeiro
http://sorumbatico.blogspot.pt/2014_09_01_archive.html
em Portugal, que alguns com posições po-
líticas opostas contestam, vandalizando os
monumentos erigidos a esse acontecimen- antiga Grécia, com Eróstrato, que destruiu
to político. Noutros casos ainda, dentro dos o templo de Diana, em Éfeso, porque pre-
motivos políticos, temos por exemplo a es- tendia, através desse feito, ficar famoso. Há
cultura de homenagem a um ex líder do também que referir a personalidade proble-
Partido Social Democrata (PSD), Francisco mática de quem comete esses atos de van-
de Sá Carneiro, erguida em Lisboa, e que dalismo, pois em alguns casos são pessoas
foi vandalizada. com problemas psicológicos, como sucede
por exemplo com os incendiários, que des-
Existem também motivos religiosos para troem o património natural. Por vezes é uma
a vandalização da arte pública (por exem- raiva originada por frustrações, que faz das
plo uma escultura que simboliza uma cren- obras de arte o principal alvo, canalizando-
ça, uma fé, que não é respeitada); motivos -se através da destruição dos símbolos cul-
de carácter cultural (por exemplo uma es- turais e sociais os recalcamentos dos au-
tátua a determinado escritor que defendia tores desses atos de vandalismo, como se
determinadas ideias com as quais não se essa mesma destruição fosse uma espécie
concorda); motivos de carácter económi- de triunfo do indivíduo, que transporta para
co (os gastos elevados de dinheiro público essas obras de arte a sua revolta contra a so-
com essas obras de arte, em detrimento de ciedade, e que através da arte pública fica
outras necessidades consideradas mais im- mais visível. Essa atitude aparece principal-
portantes); motivos de carácter nacionalis- mente em relação ao património, e à arte
ta (as populações oporem-se à participação pública em particular, cuja destruição apa-
de artistas estrangeiros); motivos de carác- rece como uma espécie de acontecimento,
ter moral (por exemplo uma estátua com um para que todos possam ver, devido ao facto
corpo humano nú); motivos ligados à agres- dessas obras de arte se encontrarem no es-
sividade do ser humano, e o gosto gratuito paço público. Há ainda a referir o clima de
de fazer mal pura e simplesmente, destruin- tensão política e social em que se vive por
do essas esculturas, ou motivados por uma vezes em alguns países, o ambiente gerado
pura brincadeira, como por exemplo furtar por contestações e manifestações políticas
uma parte de uma escultura, deixando-a in- contra o Governo, a sociedade contestatá-
completa, para provocar o humor por parte ria e violenta do mundo de hoje, ou o am-
do público, mas também uma certa revol- biente de terrorismo que por vezes se vive
ta, como sucedeu recentemente com o fur- em alguns países, em que se vandaliza tudo
to da estátua do rei Dom Afonso Henriques, o que está no espaço público, sendo que
em Guimarães. as manifestações políticas de rua provocam
mais facilmente esse vandalismo. Há tam-
Há alguns ataques que não são anónimos, bém a referir, por vezes, a revolta de adep-
mas que têm a ver também com um dese- tos de determinado clube de futebol, por
jo de chamar a atenção, conseguindo isso terem perdido um jogo ou um campeona-
através do peso mediático que a ação po- to, e que vêm para a rua e destroem tudo o
derá ter, como sucedeu por exemplo na que encontram : viaturas, vidrões, árvores,

– VICTOR CORREIA 83
bancos de jardim, sinais de trânsito, assim rocratizado ou tão viciado pelo clientelismo
como a arte pública, que é um dos alvos político, que os critérios para a seleção de
mais cobiçáveis, e também o mais lamentá- artistas, os procedimentos de adjudicação
vel, por se tratar de obras de arte. da obra, o seguimento de projetos ou o
controle da execução, conduzem a uma infi-
Todavia, fora das convulsões sociopolíti- nidade de procedimentos aleatórios ou de
cas, ou desportivas, os principais motivos, irregularidades, que levam a que as obras
no que diz respeito à arte pública, são os de arte executadas sejam de qualidade ar-
de carácter estético, e que por vezes têm a tística duvidosa, e que provoquem a dece-
ver com a própria obra de arte, o que aliás ção por parte do público. Além disso, tam-
sucede por vezes também a propósito do bém sucede o facto da pobreza artística
design urbano em geral, que não se integra ou da insignificância de muitas das obras
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

no pano de fundo permanente da cidade e de arte se dever à pobreza física ou social


se restringe à sua funcionalidade. Por vezes e à insignificância ou pouca visibilidade de
pode não existir com o design urbano de- determinados espaços públicos, que faz
coração, no sentido comum do termo, isto com que se invista pouco neles. O espaço
é, enquanto ornamentação ou embeleza- público é distante, não está no centro, da ci-
mento, mas deveria certamente enquadrar- dade, por isso fazem-se para ele obras de
-se de modo a não chocar com o espaço arte pobres, o que leva por vezes a contes-
urbano envolvente, pressupondo a noção tá-las e a destruí-las.
clássica de decoração, que radica antes de
mais na ideia de conveniência do elemen- Todavia, dentro dos motivos estéticos, o
to decorativo ao lugar que o acolhe (deco- principal motivo para a contestação e a
rum, de decet, isto é, convém), o que nem vandalização provém dos diferentes gostos
sempre sucede. No caso das esculturas, há do público, e da frustração provocada pela
casos em que algumas delas são desprovi- incapacidade de compreender a arte. Um
das de escala integrativa, do ponto de vis- dos primeiros e mais significativos exem-
ta da sua inserção, de formalização conve- plos, em Portugal, foi o da escultura do rei
niente ou de presença física adequada, e Dom Sebastião, de autoria do escultor João
algumas obras ficam colocadas em lugares Cutileiro, erguida em pleno espaço públi-
inadequados ou que têm que competir em co, em Lagos, em 1973, que não tem o ar
presença física com uma enorme quantida- heroico de outras esculturas representan-
de de objetos urbanos, o que faz com que do monarcas, e cujo rosto é o de um jovem
esculturas bem executadas, e com valor es- demasiado jovem, que alguns consideram
tético, resultem inoportunas ou inapropria- com “cara de menino”, e que suscitou con-
das para o local, e portanto contestadas e testação. Por vezes, trata-se de uma reação
vandalizadas. a algo que supostamente pode suscitar
constrangimento nos gostos estéticos do
Por outro lado, o encargo com obras de senso comum, como é o caso de determi-
arte pública encontra-se por vezes tão bu- nadas esculturas abstratas, cuja mensagem
por vezes subversiva produz intranquilida- cional do património cultural, onde quer que
de no público, que não compreende o seu este património se situe”, incluindo portan-
significado. Isso sucede também porque to o da arte pública. Essas medidas podem
o homem comum encontra-se geralmente ser provenientes do Estado, das autarquias,
preso à tradição, que associa a arte ao culto da própria sociedade civil organizada (por
da beleza, e espera isso da arte, o que nem exemplo, associações de defesa do patrimó-
sempre sucede na arte contemporânea, nio), ou do cidadão anónimo.
pois se desde os gregos que se relaciona
arte e beleza e se utiliza o critério de beleza No entanto, não é fácil apresentar medidas
para avaliar uma obra de arte, essa relação e soluções, para fazer face ao vandalismo da
é posta em causa por algumas correntes arte pública, pois cada caso é um caso. Têm
estéticas contemporâneas, cujos princípios sido tomadas diversas medidas, algumas
estão presentes em muitas das obras de com alguma eficácia, outras meramente re-
arte colocadas no espaço público. mediativas, e portanto não isentas de polé-
mica. Por exemplo, no caso de uma escultura
Enquanto na arte pública tradicional os ci- vandalizada, andar-se frequentemente a res-
dadãos viam os seus gostos reconhecidos, taurar uma escultura, devido ao seu vandalis-
e chegavam a organizar-se subscrições po- mo, pode não ser a melhor solução, por isso
pulares para se erigir monumentos, e a arte a Câmara Municipal de Lisboa resolveu retirar
pública tradicional desempenhava portan- para o Museu da Cidade a escultura Verdade,
to uma função mais gregária, congregando de autoria do escultor Teixeira Lopes, que se
e agregando a população, na arte pública encontrava na rua do Alecrim, em Lisboa, es-
contemporânea, como na arte contemporâ- cultura essa cujo conteúdo consiste em Eça
nea em geral, habitualmente devido à lin- de Queiroz com uma mulher nua nos braços
guagem artística empregue, existe um di- (simbolizando o realismo literário), e que era
vórcio entre o grande público e o artista, várias vezes alvo de vandalismo: riscos, pin-
que fala uma linguagem menos compreen- turas, dedos partidos, etc. A Câmara Munici-
sível pelas populações, o que conduz à si- pal substitui essa escultura por uma réplica,
tuação contraditória da arte, apesar de ser em bronze. Alguns cidadãos insurgiram-se
pública, ou de se pretender pública, não ser contra esse facto, preferindo outras medidas,
vista como tendo essa função. como por exemplo a construção de um pe-
destal para essa escultura (pois encontrava-
Medidas e eventuais soluções -se em contacto com o chão, de fácil acesso
por qualquer pessoa). A argumentação em
A Declaração da UNESCO sobre a destruição torno dessa medida consiste essencialmen-
do património cultural, de 17 de Outubro de te em que não nos devemos deixar intimi-
2003, afirma no seu parágrafo III, na alínea 1, dar, mas sim insistir na permanência das es-
que “Os Estados devem tomar todas as me- culturas, pois em alguns casos têm sido pura
didas apropriadas para prevenir, evitar, fazer e simplesmente retiradas, sem serem sequer
cessar e reprimir os atos de destruição inten- substituídas por qualquer réplica.

– VICTOR CORREIA 85
Têm sido tomadas diversas medidas pe-
las autarquias, no que diz respeito a outros
exemplos de arte pública espalhada pelo
país, que têm sofrido atos de vandalismo.
Em casos mais drásticos, como o do furto
de esculturas, tem-se substituído essas es-
culturas por uma réplica, como sucedeu por
exemplo com o furto do busto de António
Nobre, no Penedo da Saudade, em Coim-
bra. Mas isto são medidas não preventivas,
mas de solução face ao já sucedido. Ora,
“The Watch’s Statues”, de autoria de Hebru Brantley, em há algumas medidas que poderão even-
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

Chicago Park District. tualmente ser tomadas, de modo a preve-


Foto de Antonio Perez, “ChicagoTribune”.
http://www.chicagotribune.com/news/local/breaking/chi-watch-statues- nir o vandalismo da arte pública, como por
tuskegee airmen-vandalized-20140720-story.html exemplo a vedação de uma determinada
escultura através de um gradeamento, ou
por exemplo em determinadas esculturas
importantes, colocar mesmo câmaras de
vigilância em edifícios que estão em frente.

Não obstante, há também que resolver de


forma mais profunda o problema, e evitar
essas situações não de forma meramente
defensiva, recorrendo apenas a meios téc-
nicos. Certamente que não compete às po-
líticas de defesa da arte pública resolver os
problemas psicológicos e económicos das
pessoas, que encontram na arte pública
uma das formas de descarregar os seus sen-
timentos de frustração, através dos ataques
de vandalismo, mas competir-lhes-á, certa-
mente, campanhas de informação e de sen-
sibilização para a importância de proteger a
arte pública, e da necessidade do respeito
pelas diferenças artísticas. Os técnicos (ar-
quitetos, urbanistas, designers, artistas) po-
derão também desempenhar um papel de
facilitadores da informação, apresentando
os resultados do trabalho. Poderão organi-
zar-se encontros, fóruns de discussão, para
análise da situação, e o público intervir não O caso das pinturas murais e da sua varian-
propriamente na criatividade e no estilo do te, os graffiti, é um outro exemplo particu-
artista, mas sobre a pertinência das obras, larmente importante. De modo a que as
defendendo-se eventualmente determina- pessoas as não destruam por terem sido
dos aspetos e criticando-se outros, desen- feitas em propriedade particular sem auto-
volvendo-se tanto quanto possível uma arte rização do proprietário, deve proporcionar-
pública aprendida, assumida e apropriada -se a oportunidade aos autores dos graffi-
pelos cidadãos. ti de intervirem, de se expressarem através
dessa forma de arte, de modo criterioso e
É importante que o público esteja também regulamentado. Essas pinturas devem tam-
envolvido na iniciativa de erigir determina- bém ser protegidas, e por isso devem po-
das obras de arte pública, e por outro lado der ser feitas em locais próprios, como por
contribua para o seu financiamento, fazen- exemplo em muros de jardins públicos, em
do sentir mais suas essas obras de arte. De viadutos, em pontes, em paredes de edifí-
forma a evitar-se a oposição e a destruição cios camarários, em grandes placards co-
por parte do público, deve procurar-se a im- locados no espaço público, etc. Poderão
plantação de obras que tenham significado também promover-se concursos para a
para a comunidade, que tenham a ver com realização de graffiti, de modo a aumentar
os valores locais, e que reforcem ou promo- a qualidade da oferta, sendo selecionadas
vam a identidade do lugar. Devem erigir-se determinadas obras, que embelezarão o
essas obras em locais onde não anulem o espaço urbano, e darão uma melhor ima-
simbolismo dos mesmos, não interfiram gem à cidade, e facilitarão uma maior ade-
com as atividades aí desempenhadas, e não são do público a essa forma de arte.
tapem os campos visuais ou pontos de refe-
rência importantes desses lugares. Quando se trata de erigir uma determina-
da obra de arte pública, como por exem-
É importante que o público sinta que o pro- plo uma escultura, ou um monumento,
jeto não foi imposto sem consideração das poderão também eventualmente serem
suas necessidades, ou dos seus interesses. organizados encontros, debates, fóruns de
Há que ter a preocupação de evitar que a discussão, auditorias, e os inquéritos pode-
obra de arte implique uma mudança de rão ser também uma outra forma de fazer
usos e vivências do quotidiano, que afetará ouvir a voz dos cidadãos, a cargo de co-
negativamente a comunidade local e mes- missões consultivas, que poderão incluir
mo outros transeuntes, como sucedeu com por exemplo o representante da entidade
a escultura do Tilted Arc, em Nova Iorque, contratante, o autor do projeto geral, um
escultura colocada de um lado ao outro da representante da comissão de moradores,
praça, que obrigava as pessoas a contorná- um representante da autarquia, e peritos
-la (apesar da intenção do escultor ter sido de urbanismo, de modo a evitar-se o clien-
essa, de modo a repensar a vivência quoti- telismo, o economicismo, a fraude, os jo-
diana do espaço). gos de interesse por parte da especulação

– VICTOR CORREIA 87
imobiliária, e a fraca qualidade dos proje- principalmente a contemporânea, tenderá
tos urbanos e das obras de arte. a suscitar uma reação de estranheza ainda
maior, pois os cidadãos tenderão a consi-
Em termos concretos estas comissões re- derar inútil, impertinente e supérflua a sua
presentativas poderão por exemplo apre- implantação, pelo que o ideal será, tanto
ciar a seleção de artistas, à luz do mérito quanto possível, essa educação e forma-
artístico e da equidade de oportunidades ção dos cidadãos, que embora não anule
no concurso público, o controle de prazos e as reações populares de vandalismo, pelo
custos, a adequação e pertinência da obra, menos tenderão a diminui-las.
a sua visibilidade e acessibilidade, e outros
aspetos como os referidos atrás, acompa- Certamente que estas e outras medidas
nhando por conseguinte os mecanismos de são discutíveis. Nem todos os cidadãos es-
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

contratação, aprovação e implementação tão de acordo com determinada obra de


da obra, que embora não solucionem todos arte, e muitos acham-se no direito de as
os problemas, tenderão a diminui-los. destruírem ou vandalizar. Não é fácil so-
lucionar o constrangimento que exerce
A Declaração da UNESCO sobre a destrui- sobre o psiquismo de determinados indi-
ção intencional do património cultural afir- víduos a expressão e a mensagem de de-
ma também, no seu parágrafo III, na alínea terminadas obras de arte. Não é fácil anu-
3, que “Os Estados devem esforçar-se por lar o atitude em relação aos graffiti, pois
todos os meios apropriados para assegurar muitas vezes a contestação não tem a ver
o respeito pelo património cultural na socie- apenas com os locais onde são colocados,
dade, em particular através de programas mas também com o preconceito em rela-
de educação, de sensibilização e de infor- ção aos seus autores. A arte pública correrá
mação”. Há obras de arte pública que, como sempre o risco de vandalização, mas estas
é sabido, não são alvo de auditoria e de pe- medidas, como outras, tenderão pelo me-
dido de remoção, mas antes de vandalis- nos a prevenir essa vandalização, a evitá-la
mo pelo cidadão comum, reação essa que ou a diminui-la, e a sensibilizar o público
se deve também em grande parte à falta para o significado e o valor da arte pública.
de informação e sensibilização sobre as
questões do ambiente urbano, e sobretudo
de educação e formação estética.

Tratando-se de arte pública, não é fácil


proporcionar a todos essa educação esté-
tica, mas certamente que numa socieda-
de dominada pela iliteracia e onde a arte
desempenhe um papel pouco importante
na educação do ser humano, a implanta-
ção de obras de arte no espaço público,
— Bibliografia and Controversy, Washington, Ed.
Smithsonian Institution Press, 1998.
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– VICTOR CORREIA 89
Escultura Pública Portuguesa em 1940,
Fora da Exposição De Belém
por Joaquim Saial
Mestre em História da Arte pela UNL; Diploma de Estudos Superiores da Univ.
de Salamanca; Investiga arte pública portuguesa e a história e arte de Vila
Viçosa e Cabo Verde; ex-docente do INP e UCL; publicou vários livros e artigos.
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

1940. The world is in the second year of a devastating


war, but peace reigns in Portugal. In Lisbon, the capital of
the country, between inflamed exaltation of patriotism, Num ano de júbilo nacionalista…
unfolds the historical exhibition of the Portuguese
World, commemorating the centennial independence of 23 de Junho de 1940 foi dia de grande festa
1140 and 1640. With stage in the Lisbon neighborhood para Portugal. Abria oficialmente em Belém,
of Belém, the show employs the cream of architects, Lisboa, a Exposição Histórica do Mundo
painters and sculptors of the country, with practice more Português, também dita dos Centenários,
or less modernist, but the event one is, in artistic terms, por comemorar em simultâneo o de 1140
an unfulfilled promise, as rightly noted the professor (vitória portuguesa no Torneio de Arcos de
José-Augusto França. Valdevez, considerado para o efeito de fun-
In the rest of the territory (european and colonial), the dação da nacionalidade) e o de 1640 (Res-
celebrations also left track, through greater or lesser tauração da Independência).
scale patterns. But equally were erected pieces that had
nothing to do with the Lisbon event, among statues and Era a primeira do género a ser levada a efei-
busts. What in this year was made in terms of public to em todo o mundo e os objectivos pro-
sculpture and how these pieces stood against the official pagandísticos de teor nacionalista da mes-
framework and a nineteenth century aesthetically ma, expostos no discurso de abertura pelo
persisted, that’s what we intend to show. comissário Dr. Augusto de Castro eram
claros: “em primeiro lugar, a projecção so-
— Keywords bre o passado – como uma galeria de ima-
Arqu., Arquitecto, Esc., Escultor, Escultura, Estátua, Inaug., gens heróicas da fundação e da existência
Inauguração, Monumento, Padrão, Padrões. nacionais, da fundação universal, cristã e
evangelizadora, da Raça, da glória maríti-
ma e colonial do Império; em segundo lu-
gar, a afirmação das forças morais, políticas
e criadoras do presente; em terceiro lugar,
um acto de fé no futuro. Esses três objec-
tivos resumem-se num só: testemunho e Estatuária equestre
apoteose da consciência nacional.1” Tudo
nascera a partir de portaria oficial de 1938 Uma das primeiras notícias do ano de 1940
em que Salazar gizava o plano das come- sobre estatuária pública alude ao monu-
morações. A partir daí, entrou em cena o mento equestre a Mouzinho de Albuquer-
camartelo para demolir edifícios existentes que para Lourenço Marques5, cuja estátua
na zona destinada ao palco comemorati- estava a ser ultimada no Porto, peça de seis
vo de Belém, seguindo-se com o apoio de metros de altura e 10 toneladas de peso,
vasto estaleiro a construção dos pavilhões sugerindo-se que logo que pronto fosse
efémeros e outros espaços necessários ao exposto em Lisboa6. A feitura do memorial
acontecimento, ao mesmo tempo que por ao vencedor do insurrecto Gungunhana
todo o país se sucediam obras de restauro em Chaimite coube após concurso à du-
em edifícios e monumentos nacionais (mui- pla constituída pelo arq. António do Couto
tas vezes polémicas), se edificavam padrões e esc. Simões de Almeida7 que realizaram
comemorativos do evento e se enchiam pá- obra de escasso rasgo, hirta e fria, pouco
ginas e páginas de jornais e revistas com li- consistente com a memória heróica e ro-
teratura alusiva. mântica do homenageado. Na base, para
além de dois baixos-relevos em bronze alu-
Deste sucesso que mobilizou Portugal, fica- sivos a episódios das campanhas bélicas de
ram para a arte pública o Padrão dos Des- Mouzinho, a figura feminina de “Moçam-
cobrimentos2 do arq. Cottinelli Telmo e do bique” acariciava a cabeça de um peque-
esc. Leopoldo de Almeida, quatro cavalos no nativo, ilustrando a protecção da coló-
em fontes da Praça do Império, de António nia aos seus filhos, em simbólica própria da
Duarte, algumas peças junto ao Museu de época…8 Mas outras três estátuas equestres
Arte Popular, de Adelina Oliveira, e pouco faziam carreira neste ano9. A de uma, ain-
mais. A muito germânica estátua da Sobera- da em gesso mas colocada no local onde
nia, de Leopoldo de Almeida, e estátuas de se pretendia erguer a definitiva, foi anulada
D. Afonso Henriques adossadas ao gigan- pelo ciclone de 15 de Fevereiro 1941 que
tesco Portal da Fundação foram destruídas a destruiu10. Tratava-se do monumento ao
com o encerramento do certame3. Porém, marechal Gomes da Costa, delineado pelo
não é dele que queremos tratar. Que arte arq. (também esc.) Alberto Ponce de Cas-
pública nesse ano se lavrou, qual vinha de tro e executado pelo esc. Armando Cor-
trás ou nele teve desenvolvimentos, o que reia, complicada máquina em que cavaleiro
se fez por todo o país e Ultramar neste âm- e cavalo (do qual só se vislumbrava a parte
bito, enquanto Lisboa se embevecia com a fronteira) saíam de bloco vertical decorado
exposição e a quase totalidade dos escul- com escudo(s?), ladeados por figuras que
tores em exercício4 estava arregimentada os ajudavam a progredir. Melhor sorte teve
para o esforço construtivo, é o que tentare- a do antigo governador de Macau coman-
mos descobrir com o presente texto. dante Ferreira do Amaral, do esc. Maximia-
no Alves e do arq. Carlos Rebelo de Andra-

– JOAQUIM SAIAL 91
de, inaugurada em 24 de Junho. As alusões
ao fim trágico do retratado, barbaramente
morto por chineses revoltosos, são óbvias
na movimentação do conjunto, cavalo
de patas dianteiras alçadas e cavaleiro
defendendo-se dos seus assassinos apenas
com um bastão, esquema nunca antes uti-
lizado nas poucas estátuas desta tipologia
erigidas em Portugal11. A do Rei D. João IV,
para Vila Viçosa, configurou-se como a este-
ticamente mais erudita. Realizada pelo esc.
Francisco Franco e com pedestal do arq.
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

Pardal Monteiro, teve longa e empenhada


concepção, em boa e necessária lembrança
funcional “velasquenha”, como com acerto
a caracterizou José-Augusto França12. A fei-
tura do monumento estava prevista na por-
taria de 1938 que expunha as orientações
pelas quais se deveriam reger as comemo-
rações centenárias de 40. Em portaria oficial
Maqueta do mon. ao governador de Macau, Ferreira do de 10 de Setembro do mesmo ano de 38,
Amaral - Notícias Ilustrado, 20.05.1928
o ministro das Obras Públicas e Comunica-
ções, engenheiro Duarte Pacheco, determi-
nava que a obra caberia a Francisco Franco
e (em rara atitude de subalternização de um
arquitecto a um escultor) que ao arq. Pardal
Monteiro caberia “como seu assessor, o es-
tudo da urbanização do terreiro e a elabora-
ção do projecto do pedestal”.

Guerras e militares

A longa leva de monumentos aos mortos


da Grande Guerra, também ia fazendo a
sua caminhada. O primeiro a ser lançado
fora o de Portalegre, em 192013. Neste ano
de 1940 inauguram-se os de Abrantes, Al-
meida, Faro, Guarda, Lagos, Oeiras e Sintra.
Estátua do Governador Ferreira do Amaral, Macau Salientaram-se dois: o de Abrantes, com
autoria dos arq. Camilo Korrodi e Francis-
co Nogueira e esc. Ruy Gameiro, pela mo-
dernidade do cimento-armado da maté-
ria-prima e notável pela qualidade plástica
da “Pátria” que, avantajando-se impante,
ampara dois soldados, um deles moribun-
do14; e o de Oeiras, do arq. Veloso Reis Ca-
melo e esc. Álvaro de Brée, baixo-relevo os-
tensivamente castrense, com seu soldado
brandindo espingarda armada de baione-
ta, enquadrado pela moldura do suporte
arquitectónico15. De guerra também era o
arrastado monumento à Peninsular, do Por-
to, lançado em 1909 mas só inaugurado em Estátua de D. João IV, Vila Viçosa
1951, depois de inúmera peripécias e com
os autores (arq. Marques da Silva e esc. Al-
ves de Sousa) já falecidos16 – ao contrário do
de Lisboa, inaugurado em 1933. Para Faro,
um outro monumento de memória guerrei-
ra era anunciado, comemorando a conquis-
ta definitiva do Algarve por D. Afonso III, pa-
drão do arq. Rafael Lopes17, em iniciativa de
Júlio Dantas, algarvio e presidente da Co-
missão Executiva das Comemorações Cen-
tenárias… e em Arcos de Valdevez surgia a
6 de Junho de 40 outro, muito simples, co-
memorativo do recontro local vencido pe-
las armas de D. Afonso Henriques, com le-
genda alusiva da homenagem feita pelos
“portugueses de 1940” . Dias depois, a 13,
o ministro da Agricultura inaugurava outro
padrão cilíndrico, este alusivo à batalha de
Ourique . Pelo Ultramar, alguns semelhan-
tes, também, referentes a outros recontros:
por exemplo, na Guiné, o da pacificação de
Canhambaque; em Angola, o da pacifica-
ção do Amboim . O de Canhambaque, na
ilha do mesmo nome, nos Bijagós, foi des-
cerrado em meados do ano. Dizia o Diário
de Notícias que lembrava “quantos ali mor- Ruy Gameiro a trabalhar no monumento aos mortos da
Grande Guerra, Abrantes
reram no cumprimento do honroso dever

– JOAQUIM SAIAL 93
de impor a ordem a um grupo aguerrido
de indígenas”. E que ele fora “erguido por
iniciativa e contrato dos habitantes de Ca-
nhambaque que assim quiseram prestar a
justa homenagem à mãe-pátria e ao repre-
sentante do governo de Lisboa, sr. tenente-
-coronel Carvalho Viegas” . O monumento-
-padrão do Amboim reportava revolta mais
de 20 anos anterior, em registo ideológi-
co semelhante . Este modelo simples era
Monumento aos mortos da Grande Guerra, Abrantes o mais ou menos comum relativo aos pa-
drões do Ultramar, sobretudo os alusivos a
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

combates. E os governadores gerais ou re-


gionais também muitas vezes era homena-
geados, como o major de artilharia Veríssi-
mo Sarmento, governador da Lunda que,
por iniciativa do governador de Angola,
Borges de Sousa, teve monumento póstu-
mo anunciado em Julho .

No que ainda concerne às colónias, pode-


mos referir o monumento com estátua dis-
creta e de bom efeito, em Bolama, Guiné, ao
presidente americano Ulisses Grant , media-
dor internacional num diferendo que opôs
Portugal à Grã-Bretanha, sobre a quem per-
tenceria a ilha de Bolama. Embora ventilado
em 1940 , só foi erigido em 1955 com auto-
ria do esc. Manuel Pereira da Silva. Mesmo
sem ser directamente alusivo à guerra, é de
citar um Monumento evocativo do esforço
da raça no continente africano português,
desejado para a Praça Infante D. Henrique,
no Lobito, com projecto de Carlos Mimoso
Moreira e apoio municipal . Para o território
indiano português de Goa, seguia por volta
de Outubro uma estátua de Afonso de Al-
buquerque modelada pelo esc. Maximiano
Alves . E para a Lunda, Angola, divulgou-se
a 18 de Dezembro na Sala Portugal da So-
ciedade de Geografia de Lisboa o busto do de D. Afonso Henriques (Guimarães, da au-
general Henrique de Carvalho que ali se toria do esc. Soares dos Reis) e o de D. Ma-
pretendia erigir. Com autoria de Raul Xavier, ria I (Lisboa/Queluz, do esc. João José de
esc. luso-macaense de vasta obra, e do arq. Aguiar).
Luís Xavier (seu filho), o custo fora suporta-
do por subscrição efectuada não só em An- No do Rei Fundador houve alteração do
gola, como na Guiné e Índia . Os singelos pedestal e sítio. Até aí colocado na Praça
padrões inaugurados em Moçambique no do Toural, era trasladado em 21 de Maio
final do ano em Languene (posto militar de de 1940 para as cercanias da capela de São
Mouzinho de Albuquerque para o seu avan- Miguel, no novo parque do castelo de Gui-
ço sobre Chaimite) , Macontene (lugar onde marães, oferecendo-se assim à estátua do
venceu Maguiguana, líder dos vátuas) e Rei fundo mais consentâneo com o roteiro
Chaimite (lugar onde em 1895 venceu Gun- heróico deste e a concepção historicista
gunhana, imperador de Gaza) mantinham em vigor à época. Porém, numa certa con-
características sobretudo “arquitectónicas”, tradição, a base primitiva, de teor neo-me-
praticamente sem escultura. Inusitado foi o dieval, dava agora lugar a um suporte de
roubo de uma pasta que viajava no automó- concepção modernista.
vel do arq. Raul Tojal, onde estavam os pla-
nos para um monumento a erigir a D. Afon- O monumento à Rainha, constituído pela
so Henriques em Luanda . Com concurso sua estátua e mais quatro alegorias alusivas
patrocinado pela Liga Nacional Africana, ao a continentes, teve vida extremamente atri-
qual se apresentou uma dezena de maque- bulada. Ideia do intendente Pina Manique,
tas, a vitória coube ao trio constituído pelo foi entregue a João José de Aguiar, bolsei-
esc. António da Costa e pelos arq. Faria da ro casapiano de escultura em Itália. Termi-
Costa e Raul Tojal. A estátua foi logo ridicula- nado em 1798, chegou a Portugal quatro
rizada por Diogo de Macedo, na revista Oci- anos depois. Com o intendente prestes a
dente . Não se enganava o escultor/crítico, cair em desgraça, quedou-se pelo convento
ao argumentar que tanto a peça de Costa do Carmo, Lisboa, até que o quarteto conti-
como as dos restantes concorrentes tinham nental foi parar à Avenida da Liberdade (a
sido mal bebidas na homóloga de Soares figura real continuou no Carmo ), nos sítios
dos Reis, de Guimarães. Mas a hirta figura lá onde estão desde cerca de 1950 as estátuas
se fez, numa África que o Rei Conquistador de escritores realizadas por Barata Feyo e
nunca soube que existia, apesar do furto do Leopoldo de Almeida. Muito se escreveu na
projecto que quase ia invalidando seme- imprensa sobre o desejo de união das cin-
lhante disparate colonial. co peças e em Abril de 1940 ainda se suge-
ria a integração do monumento neo-clássi-
Monarcas co no largo da basílica da Estrela , mas ele
acabou por ficar em Queluz, para onde de
Dois monumentos a figuras régias, há muito início fora previsto .
executados, tiveram desenvolvimentos: o

– JOAQUIM SAIAL 95
Outras figuras jos Teixeira. Porém, a morte do escultor em
1935 fez com que a obra não se concreti-
A 2 de Fevereiro, Duarte Pacheco recebia zasse e o monumento ao autor de “Amor
uma comissão que lhe foi pedir para inter- de Perdição” acabou por ser executado por
ceder junto da Câmara Municipal de Lisboa, António Duarte em 1950, para o sítio pre-
a fim de que esta designasse local para a visto, com ganhos de sensibilidade certeira
erecção de um monumento à memória de e discreta sobre o complexo grupo literário
Sidónio Pais, de preferência na zona do Par- de Teixeira.
que Eduardo VII, à qual ele respondeu po-
sitivamente . Contudo, o monumento não Entretanto, António Sardinha, escritor e
teve seguimento. doutrinário filosófico do Integralismo Lusi-
tano tivera inauguração de busto em Mon-
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

Poucos dias depois, lembrava-se a oferta forte, em bronze de Raul Xavier, inaugura-
que o Brasil iria fazer a Portugal, no âmbito do a 16 de Agosto. Um grupo de amigos
das comemorações centenárias, de um gru- organizou a homenagem que incluiu vestir
po estatuário figurando Pedro Álvares Ca- 23 adultos indigentes e o baptismo de um
bral e companheiros . Da autoria de Rodolfo quarto de hospital com o nome de António
Bernardelli, é réplica de outro existente no Sardinha na Misericórdia local…
Rio de Janeiro, inaugurado em 1900. Obra
complexa, nas suas diversas personagens e Por subscrição proporcionada pelo jornal O
bandeira ondulando ao vento , é claro que Povo da Barca que atingiu elevado montan-
nada de novo trouxe à estatuária portugue- te e foi acrescido com donativo camarário,
sa. Veio de barco para Lisboa, tem pedestal concretizou-se o padrão com interessan-
em mármore cinzento feito no Porto e inau- te baixo-relevo alusivo a Frei Agostinho da
gurou-se a 30 de Novembro, junto ao Jar- Cruz e Diogo Bernardes, irmãos, poetas e fi-
dim da Estrela, Lisboa, mais tarde que o pre- lhos de Ponte da Barca, feito por artista por-
visto, por atrasos na chegada dos bronzes . tuense cuja identificação desconhecemos e
inaugurado em 1940 .
Pela mesma altura, a comissão executiva do
monumento a Camilo Castelo Branco para Viriato, o herói primordial, que fora pensa-
Lisboa reunia-se no Museu do Carmo, sob do pelo esc. Júlio Vaz Júnior, acabou por ter
a presidência de Eloy do Amaral. Tratava-se feitura oferecida pelo esc. espanhol Maria-
de apreciar um ofício da Câmara Municipal no Benlliure, casado com uma portuguesa
propondo que o memorial fosse colocado de Viseu, cidade onde o conjunto escultóri-
algures entre a avenida Duque de Ávila e co constituído por figuras em bronze fundi-
as ruas Rodrigues Sampaio e Camilo Caste- das no Porto representando o herói lusitano
lo Branco e sugeria-se como material a pe- e seus assassinos foi erigido sobre blocos
dra e não o bronze . Com concurso falhado de granito aparelhados pelo canteiro norte-
em Janeiro de 1926 e outro conseguido em nho Francisco Moreira. Os trabalhos tiveram
Julho do mesmo ano, a vitória fora para An- comparticipação de 200 contos entregues
por Duarte Pacheco para ajudar a cobrir as nacional dessa figura e nesta terra a Câma-
despesas com materiais e fundição . Mas tal ra Municipal, que o patrocinava, continuava
como acontecera com o monumento a Pe- a receber donativos para a sua feitura. En-
dro Álvares Cabral, este não trazia novidade tre os 30.367$35 angariados até finais de
digna de registo, pese embora a qualidade Março, mil eram oferta da Rainha D. Amé-
naturalista e fama internacional de Benlliure. lia que os enviara em carta onde dizia do
Condestável: “É a figura primordial da nos-
Também em Viseu, previa-se em Maio a sa independência e o símbolo mais puro do
inauguração de um busto ao capitão Almei- patriotismo, da intrepidez, lealdade e gene-
da Moreira, criador e primeiro director do rosidade da raça portuguesa” .
Museu Grão Vasco .
De igual modo militar, para além de explo-
Em 9 de Julho inaugurava-se em Tomar o rador e administrador colonial, Serpa Pin-
monumento ao templário Gualdim Pais. to tinha em início de Novembro prometi-
Com primeira pedra lançada em 1895, a es- do busto na terra natal, Tendais, Cinfães,
tátua ao fundador da cidade levou 45 anos do esc. Lima Machado Pereira . Anunciava-
para ter concretização . Inicialmente previs- -se que maqueta, já pronta, iria ser passada
ta para o cinzel de Anjos Teixeira, também a bronze , o que efectivamente aconteceu,
aqui a desaparição do escultor deu a auto- realizando-se a inauguração do monumen-
ria a outro nome, desta feita Macário Diniz, to apenas em 1946 .
escultor que terminara o curso na Escola de
Belas-Artes do Porto com alta classificação . No mesmo dia em que se inaugurou a es-
O batalhador ostenta um documento escri- tátua equestre do governador Ferreira do
to enrolado na mão direita – que se presu- Amaral em Macau, anteriormente referida
me ser o da fundação da cidade ou seu fo- (24 de Junho), foi descerrada uma outra, do
ral –, perna do mesmo lado avançando, mão segundo-tenente de artilharia Vicente Nico-
esquerda repousada entre montante e es- lau de Mesquita, heróico atacante do Forte
cudo. Nada de novo, mais uma vez, pese o de Passaleão tomado por chineses pouco
ar fero e decidido do homenageado. Acon- depois do assassinato do governador. Eri-
tece que a estátua foi colocada no pedestal gida por subscrição pública, com o auxílio
em Março de 1938 mas esperou por inau- do governo da colónia, tal como a de Ama-
guração oficial a 9 de Julho de 1940 inte- ral esta era da autoria de Maximiano Alves . A
grando assim em Tomar as comemorações atitude decidida e valente do militar impos-
oficiais do duplo centenário. ta pelo escultor e o seu historial biográfico
fizeram com que fosse muito danificada em
Para Abrantes, que como vimos inaugurou 1966 durante a revolução cultural chinesa
um dos melhores monumentos aos mortos que tinha seguidores militantes no território.
da Grande Guerra neste ano de 40, também
se previa outro ao Condestável Nuno Álva- Demorava então o monumento sem valor
res Pereira. A época era de forte valorização artístico ao general espanhol José Sanjurjo.

– JOAQUIM SAIAL 97
Previsto comandante da revolta que deu lu- Um Cristo-Rei
gar à guerra civil naquele país, morrera num
desastre de aviação em Cascais, quando se Na área religiosa, sobressai a estátua a Cris-
preparava para seguir para Burgos encabe- to-Rei em Paços de Ferreira , da autoria do
çar o movimento que depois teve como che- portuense Henrique Moreira. A cerimónia
fes o general Mola e finalmente Francisco de inauguração a 6 de Outubro é elucidativa
Franco. Em inícios de Maio na Quinta da Ma- do modelo seguido na altura, na generali-
rinha, por iniciativa do Dr. Joaquim (ou Alber- dade das cerimónias deste tipo: procissão,
to) Madureira estava a erguer-se um bloco missa, discurso, descerramento. No final da
de pedra mais ou menos em bruto, com cer- missa, “o bispo do Porto regozijou-se com
ca de 14 toneladas, encimado por uma cruz, a inauguração do monumento a Cristo-Rei
que lembrava o funesto acontecimento . e com o facto de aquela cerimónia ter sido
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

integrada nas Comemorações Centenárias.


A 14 de Junho inaugurava-se em Faro, com Dissertou acerca da fundação da naciona-
a presença de Duarte Pacheco, a estátua do lidade, dos descobrimentos e da indepen-
bispo D. Francisco Gomes de Avelar , reno- dência. O prelado referiu-se à guerra que
vador da cidade no pós-terramoto de 1755. [ensanguentava] o Mundo e pôs em desta-
A iniciativa foi lançada pela Comissão Mu- que o sossego do País em comparação com
nicipal de Turismo do Algarve. A inaugu- outras nações, afirmando: ‘- Atravessamos
ração, em 14 de Junho, estava inserida no uma hora de glória para Portugal e de tra-
âmbito das iniciativas das Comemorações gédia para o Mundo inteiro. As outras na-
Centenárias, o que demonstra o interesse ções estão mergulhadas na penumbra da
atribuído à peça. “A figura de coroamento, guerra; nós vivemos um momento em que
que apresenta o ilustre prelado numa atitu- a História se perpetua.’” Cerca de três anos
de de rara nobreza e energia e que mede depois, em 8 de Dezembro de 1943, ainda
cerca de três metros de alto, chegou ontem Júlio Dantas diria algo semelhante na inau-
à tarde a esta cidade, tendo-se procedido guração da estátua equestre de D. João IV,
imediatamente à sua colocação sobre o pe- em Vila Viçosa: “- Na hora em que os po-
destal que há dias se encontrava concluído. vos mais poderosos do Mundo derrubam
Todo o monumento é da autoria do distinto as suas estátuas para fabricar canhões, nós
escultor sr. Raul Xavier, que tem sido muito agradecemos à Providência ter-nos permiti-
felicitado pelo magnífico trabalho produzi- do destruir em paz alguns canhões para fa-
do.” Porém, Xavier, oferece-nos uma estátua zer uma estátua. ”… Quanto à peça, em gra-
que embora demonstrando alguma digni- nito e com vinte toneladas e onze metros
dade tem pouco rasgo imaginativo, vulgar de altura, era de certo modo percursora da
pela pose e pela simbologia e pobre no ób- que cerca de vinte anos depois foi erigida
vio plano de obras que segura, enrolado, em Almada, embora aquela com élan mais
numa das mãos, tal como vimos na estátua emotivo, na pose da cabeça e dos braços
de Gualdim Pais. – o que não foi conseguido na gigantesca
estátua da margem sul do Tejo, por motivo
da ciclópica dimensão e morte prematura A lista é longa e monótona. Mesmo assim,
do autor, Francisco Franco. Henrique Mo- deixamos uma mostra destes lembretes das
reira, senhor de vasta obra por todo o País, comemorações de 40: a 28 de Julho inaugu-
realizou aqui uma peça naturalista honesta ravam-se os de Castelo Mendo e Almeida,
que pela sua natureza e época dificilmen- aqui com cenário de uma força da Legião
te podia ter tido outra concepção . Infeliz- Portuguesa, ao mesmo tempo que de igual
mente, tal como aconteceu com a estátua modo se inaugurava o monumento local
de Gomes da Costa no Porto, a do infante D. aos Mortos da Grande Guerra. O de Almei-
Henrique no Padrão dos Descobrimentos e da, de atarracada secção quadrangular, tem
a bandeira do monumento a Pedro Álvares cruzes afonsinas na base e escudos no topo,
Cabral em Lisboa, esta estátua também foi por sua vez encimado por esfera armilar e
destruída por violento temporal, tendo sido cruz de Cristo ; o da Guarda, erigido na Rua
entretanto reconstruída . Marquês de Pombal e pertencente à mesma
tipologia do de Almeida, inaugurou-se a 31
E um desportista ; também no final do mês, era a vez do de
Vila Cova, concelho de Vila Nova de Paiva,
Um monumento ao desportista Mário Duar- mais esguio mas também mais aproximado
te em Aveiro é nota mais ou menos disso- de vulgar cruzeiro religioso ; com festejos a
nante, num país e numa estatuária pouco 3 e 4 de Agosto, inaugurava-se no segundo
interessada por esta temática e por isso dia o da Covilhã e freguesias do seu conce-
com raros antecedentes . Praticante hábil lho, no “ponto mais alto de Portugal”. Dias
de várias modalidades, faleceu em 1939 e antes, a 29 de Julho, tinham terminado os
logo no ano seguinte se anunciava monu- trabalhos de “colocação da cruz de D. San-
mento em sua honra no estádio aveirense cho I na Serra da Estrela, sobre a pirâmide
a que deu nome, em projecto do arq. Júlio de 10 metros que marca o ponto mais alto
Sobreiro com medalhão de bronze do esc. de Portugal. Uma inscrição latina referente
Romão Júnior . aos Centenários foi aberta no grande blo-
co de granito do Covão do Boi, por cima da
Padrões dos Centenários nascente da Pedra Rachada (…) Procede-se
agora à recolha de lenha para as cinco gran-
Para além da campanha da Exposição de des fogueiras que, durante a noite de 3 para
Belém, neste ano de 1940 houve ainda uma 4 de Agosto, hão-de iluminar o planalto da
outra com ela directamente relacionada: a torre… ”; na mesma altura passava-se pare-
dos chamados “padrões dos centenários”. cida cerimónia em Vila do Conde, de novo
Por todo o País e em alguns lugares do Ultra- com padrão em forma de cruzeiro religio-
mar (cidade do Mindelo, na ilha São Vicente so (afinal, situavam-no em frente da capela
de Cabo Verde e Lobito , Angola, por exem- de Nossa Senhora da Guia) no cimo de um
plo) se plantaram memoriais muito simples escadório de pedra, no local onde existira
e com escassa integração artística, bastas o farol da Guia . Castelo Novo e Mangual-
vezes entregues a mestres canteiros locais. de, respectivamente no início e meados de

– JOAQUIM SAIAL 99
Agosto, receberam padrões semelhantes
aos da Guarda e Almeida . A Póvoa de Var-
zim seria contemplada em inícios de Setem-
bro e Viseu a 16, mesmo dia da inaugura-
ção do monumento a Viriato.

Um caso particular

Numa capital sempre carecida de água,


anunciava-se em 1938 a chegada à cidade
de um caudal diário de cem milhões de li-
tros. Para comemorar e simbolizar o feito de
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

engenharia que o possibilitava, decidiu-se a


construção de uma fonte monumental em
Lisboa, na Alameda D. Afonso Henriques.
Coube a autoria deste complexo de arqui-
tectura, escultura, água e luz aos Rebelo de
Andrade que associaram ao empreendi-
mento Maximiano Alves (potentes cariáti-
des sustentando vasos) e Diogo de Macedo
(Tejo equestre, acompanhado de Tágides) e
o pintor e ceramista Jorge Barradas (painéis
laterais em baixo relevo colorido, de majó-
lica). Atrasos sucessivos só permitiram inau-
guração em 1948, oito anos depois da fonte
Inauguração do Padrão dos Centenários de Almeida luminosa da Praça do Império e das intimis-
Diário de Notícias, 30.07.1940
tas figuras mitológicas femininas frente a
arcas de água de Barata Feyo e António da
Costa para os cantos da Praça Afonso de Al-
buquerque, Lisboa.

Também integradas nas comemorações do


progresso hidráulico de melhor acesso à
água por parte dos lisboetas e residentes
nos arredores da cidade foram as gigan-
tescas figuras alegóricas designadas como
Fontes, apostas neste ano nos topos dos
dois terminais do sifão de Sacavém. Bastan-
te inusitadas para o nosso meio, então úni-
cas no género pela dimensão e raras pelo
material, cimento armado, foram encomen-
da directa da Câmara Municipal de Lisboa
através de Duarte Pacheco, então seu pre-
sidente . Com autoria de Maximiano Alves,
apresentavam alguma relação estilística
com as figuras laterais do seu monumento
aos Mortos da Grande Guerra, de Lisboa.
Os dois gigantes assentavam, semi-ajoe-
lhados e de costas voltadas um para o ou-
tro, sobre construções cúbicas destinadas
ao mecanismo do sifão desenhadas pelos
irmãos arquitectos Carlos e Guilherme Re-
belo de Andrade . Fora uma realização de- Fontes no Sifão de Sacavém
morada, com o trabalho em gesso a levar
dois anos e o da passagem a cimento mais
um. Mas em Dezembro de 1942 viram-se
desmanteladas, “em nome da estética”. Di-
zia então o Diário Popular que “Em minia-
tura, as figuras eram de grande efeito. Mas
uma vez em plano de construção definitiva,
assumiam tais proporções que dominavam
a ponte e tudo em redor, revelando dimen-
sões gigantescas que prejudicavam a ideia
de beleza que havia preconcebido a sua
realização. ” Temos assim que a obra mais
invulgar deste período acaba por ser der-
rubada pelo motivo que menos se espera-
ria e sem que saibamos de quem realmen- Estátua de D. João IV, Vila Viçosa
te partiu a ordem de destruição – desfecho
só comparável, embora neste caso por mo-
tivos ideológicos, ao do conjunto de Hein
Semke alusivo à primeira Grande Guerra na
Igreja Alemã de Lisboa, partido e enterra-
do nos terrenos do templo cerca de 1935, a
mando das autoridades nazis da embaixada
alemã na capital portuguesa .

…uma estatuária tímida, demasiado


oitocentista, avessa ao estrangeiro,
doméstica.

– JOAQUIM SAIAL 101


Mesmo sem sermos exaustivos – que a Da leva de que falámos, salvar-se-ão quatro
contabilidade do espaço do presente ar- ou cinco exemplares, pela maior capacida-
tigo não o permite –, vemos que durante de, prática profissional e empenho estético
este ano, fora da exposição lisboeta, en- dos seus autores: o “D. João IV” de Franco
tre monumentos em andamento, feitos e o “Ferreira do Amaral” de Maximiano Al-
ao longo dele e outros que tiveram iní- ves, ambos equestres e capazes de mobi-
cio ou se planearam, contamos cerca de lar bem o espaço em que foram inseridos
meia centena, de desigual aparato e va- – na grande praça ducal de Vila Viçosa a
lor estético. Se de “ouro” era a “idade” primeira estátua; no distante Macau, junto
desta escultura, com a classificou António ao mar, a segunda –, o monumento abran-
Ferro , pouco ele brilhava, apenas visível tino aos mortos da Grande Guerra, de Ruy
num lampejo mais forte, aqui e ali (dentro Gameiro, as expressivas “Fontes”, também
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

ou fora da exibição de Belém), deslocada de Maximiano, pouco mais. E se de dentro


que estava num tempo virado de modo verdadeira inovação não houve, de fora (ou
reverente para o século XIX, bebendo o de gente de fora que cá veio ou cá vivia)
romantismo-realismo de Soares dos Reis também não a teve. O “Café” de Portinari,
e o naturalismo de Teixeira Lopes – que só espécie de submarino subversivo cultural
faleceu em 1942. A escultura oficial não mostrado no Pavilhão do Brasil, nenhum im-
foi capaz, nestes anos de propaganda na- pacto teve nestas peças escultóricas, quase
cionalista e consequente exaltação de he- todas em andamento à data da apresenta-
róis internos e coloniais de seguir rumos ção do quadro em Lisboa. Tal como não a
de há muito traçados na escultura pública teve a exposição de pintura e escultura que
internacional avançada. Os artistas signifi- abriu em 11 de Novembro no Chiado, com
cativos estiveram ocupados com a expo- António Pedro , António Dacosta e a escul-
sição ou, caso de Francisco Franco, com tora Pamela Boden que ali exibiu seis es-
obra ainda assim feita nesse contexto. E culturas de teor abstracto em madeira, de
embora tenham tido trabalho fora dele, quem Diogo de Macedo decidiu dizer logo
muitas das realizações externas ao ce- que “não [era] um estandarte revolucioná-
nário lisboeta foram executadas por es- rio” . E Arpad Szenes, que contraditoriamen-
cultores de segunda linha – logo, menos te conseguiu expor no SNI nesse ano de 40,
interessantes. Para além disso, parte signi- ao mesmo tempo foi obrigado a partir para
ficativa é de modestos padrões que pon- o Brasil, com a esposa Maria Helena Vieira
tuam até hoje o País, feitos memória dos da Silva, por ser apátrida como ela, retira-
Centenários. Alguns descerramentos de da que foi a esta a nacionalidade portugue-
estátuas, antes concluídas, foram progra- sa. E Semke, que participou marginalmente
mados para coincidirem com o período na Exposição, mas também sofreu resistên-
festivo das comemorações, demonstran- cia cerrada de colegas portugueses ali e no
do um esforçado afã de cobertura inaugu- acesso a concursos públicos estatuários,
rativa do território. por ser estrangeiro .
Nestes tempos estatuários de pouco ouro, Editores, Lda., 1998.
decididamente 1953 (Jorge Vieira, ma- SAIAL, Joaquim – Estatuária Portu-
queta para um “Monumento ao Prisionei- guesa dos Anos 30, ed. Bertrand
ro Político Desconhecido” ) e 1973 (João Editora, Lisboa, 1991.
Cutileiro, “Rei D. Sebastião”, Lagos) ainda
estavam muito longe… — Notas

1
Diário de Notícias, 24.06.1940,
p. 4.
2
Diário Popular, 05.07.1943, p. 1:
o padrão inicial, provisório, foi des-
mantelado em Julho e Agosto de
— Bibliografia 1943 por operários da empresa
União de Sucatas que assim obteve
FRANÇA, José-Augusto – A Arte 170 toneladas de ferro e 200 de
em Portugal no Século XX, ed. madeira. O actual, em pedra, data
Livraria Bertrand, Lisboa, 1974. de 1961.
MATOS, Lúcia Almeida – Escultura 3
A escultura da exposição está
em Portugal no Século XX (1910- razoavelmente estudada no nosso
1969), Col. Textos Universitários livro Estatuária Portuguesa dos
de Ciências Sociais e Huma- Anos 30 (1926-1940), Bertrand
nas, ed. Fundação Calouste Gul- Editora, Lisboa, 1991.
benkian, Fundação para a Ciência 4
Anjos Teixeira, António da Costa,
e a Tecnologia, Ministério da Ciên- António Duarte, Barata Feyo, Canto
cia, Tecnologia e Ensino Superior, da Maia, Euclides Vaz, Francisco
Lisboa, 2007. Franco, Hein Semke (alemão radi-
PEREIRA, José Fernandes (direc- cado em Lisboa), Irene Lapa, João
ção) – Dicionário de Escultura Por- Fragoso, Leopoldo de Almeida,
tuguesa, ed. Caminho, SA, Lisboa, Maximiano Alves, Martins Correia,
2005. Raul Xavier e Ruy Gameiro eram os
PORTELA, Artur – Salazarismo e nomes mais sonantes das quase
Artes Plásticas, Biblioteca Breve, duas dezenas de escultores com
ed. Instituto de Cultura e Língua trabalhos presentes na exposição.
Portuguesa, Ministério da Educa- Franco, por estar a realizar a está-
ção e das Universidades, Lisboa, tua de D. João IV para Vila Viçosa,
1982. particularmente citada no pro-
REGATÃO, José Pedro – Arte grama das comemorações, como
Pública e os Novos Desafios das veremos.
Intervenções no Espaço Urbano – 5
Actual Maputo, capital de
Bond, Books on Demand, Quimera Moçambique.

– JOAQUIM SAIAL 103


6
Diário de Notícias, 13.02.1940, Machado e escultura de Henrique 28
Diário de Notícias, 19.12.1940,
p. 5. Moreira. p. 5.
7
E participação de Leopoldo de 14
Inaug. em 4 de Junho. O escultor 29
Notícias de Lourenço Marques,
Almeida num dos baixos-relevos falecera prematuramente, em 28.12.1940, p. 1.
da base. Este pertencera ao júri 1935, em desastre de mota com 30
Ibidem, 29.12.1940, p. 7.
do concurso… a esposa na estrada de Sintra. 31
Ibidem, 29.12.1940, p. 11.
8
O monumento foi desmantelado Gameiro já fizera um monumento 32
Diário de Notícias, 21.11.1940,
após a independência de Moçam- aos Mortos da Grande Guerra para p. 4.
bique e a estátua encontra-se hoje Lourenço Marques de similar valor 33
Ocidente, n.º 16, Agosto.1939,
exposta na Fortaleza/Museu de que ainda existe. p. 488.
História Militar de Maputo. 15
“cuja cerimónia será revestida 34
A 7 de Junho foram postos à
9
Uma, cuja autoria desconhece- de grande solenidade, embora venda selos comemorativos com
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

mos, de reduzidas dimensões, não haja cortejo nem foguetes, imagens feitas pelo processo de
foi inaugurada em 08.06.1940 em atenção ao actual momento talhe doce (inovador em Portu-
no Portugal dos Pequenitos, em internacional, mas apenas uma gal) comemorativos das festas dos
Coimbra. Ver Diário de Notícias, concentração das entidades ofi- Centenários: maqueta da Exposi-
09.06.1940, p. 1. ciais e particulares.”, ver Diário de ção do Mundo Português, D. João
10
E também atirou ao Tejo a está- Lisboa, 04.04.1940, p. 3. IV (Vila Viçosa), Padrão dos Des-
tua em gesso do Infante D. Hen- 16
A vasta parte de escultura foi cobrimentos (Lisboa) e a referida
rique do primitivo e provisório completada por Henrique Moreira de D. Afonso Henriques de Gui-
Padrão dos Descobrimentos. e Sousa Caldas. marães.
11
A estátua equestre do “Tejo” na 17
Praça de D. Afonso III. Ver Diário 35
Ainda se vê no Diário de Lisboa,
Fonte Monumental da Alameda de Notícias, 17.05.1940, p. 1. 06.11.1940, p. 5, em cerimónia
de D. Afonso Henriques, Lisboa 18
Ibidem, 07.06.1940, p. 1. alusiva ao “Dia do Condestável”.
(fonte plan. em 1938 - inaug. 19
Ibidem, 14.06.1940, p. 1. Erigido 36
Ocidente, n.º 41, Setembro.1941,
30.05.1948) também tem confi- em Castro Verde. p. 436.
guração rampante. É da autoria do 20
Ibidem, 22.07.1940, p. 4. Inaug. 37
Diário de Notícias, 05.04.1940,
esc. Diogo de Macedo. A estátua cerca desta data. p. 2.
de Ferreira do Amaral veio para 21
Ibidem, 17.07.1940, p. 6. 38
Ibidem, 03.02.1940, p. 5. A
Lisboa por altura da passagem 22
Ibidem, 22.07.1940, p. 4. comissão era constituída pelo
da soberania efectiva de Macau, 23
Ibidem, 17.07.1940, p. 6. coronel Álvaro César de Men-
de Portugal para a China. Encon- 24
Devido ao empenho de Grant, o donça e pelo capitão Teófilo
tra-se colocada sobre modesto desfecho do pleito em 1870 deu Duarte.
pedestal na Alameda da Encarna- razão a Portugal sobre a tutela da 39
Ibidem, 17.02.1940, p. 1.
ção, Olivais, Lisboa. ilha. 40
A bandeira foi derrubada pelo
12
FRANÇA, José-Augusto. A Arte 25
Diário de Notícias, 07.08.1940, ciclone de 1941 e em Junho de
em Portugal no Século XX, p. 256, p. 2. 1948 caiu de novo… ver Diário
ed. Livraria Bertrand, Lisboa, 1974. 26
Ibidem, 07.08.1940, p. 5. Popular, 16.06.1948, p. 5.
13
Inaug. em 11.11.1935. Pro- 27
Ocidente, n.º 30, Outubro.1940, 41
Diário de Notícias, 25.06.1940,
jecto de Francisco Soares Lacerda p. 133. p. 2.
42
O articulista da notícia queria tração, 16.06.1938, p. 24. 65
Um “Jogador de disco” (estátua
dizer Duque de Loulé. 53
Ibidem, 24.03.1940, p. 2. de José Netto, inaug. 13.11.1931,
43
Diário de Notícias, 18.02.1940, 54
De seu nome verdadeiro na Avenida da Liberdade, Lisboa,
p. 5. António Joaquim Fernandes Lima. depois no Pavilhão dos Despor-
44
Ibidem, 01.01.1926, p. 7 e 55
Diário de Notícias, 06.11.1940, tos), um monumento ao profes-
06.01.1927, p. 2. p. 2. sor de Educação Física Luís da
45
Ibidem, 12.05.1935, p. 4. Já nesta 56
Fotografia do gesso pode ser Costa Monteiro (estátua de Anjos
altura, através da voz do vogal Pas- vista no espólio de Abel Salazar, Teixeira, inaug. 15.05.1932, tam-
tor de Macedo, a comissão discu- na Fundação Mário Soares, Lisboa. bém na Avenida da Liberdade,
tia o local, caso o monumento não 57
Que assim se via representado depois na portaria do Ginásio
pudesse vir a ser erigido no Par- em mais uma colónia, depois da Clube Português) e o monumento
que Eduardo VIII, o primeiro pre- de Cabo Verde (estátua jacente a Pepe, precocemente falecido
visto. no jazigo da família Serradas, no jogador de futebol de “Os Bele-
46
Ibidem, 17.08.1940, p. 1 e cemitério do Mindelo, e busto nenses” (padrão com baixo-relevo
Gazeta dos Caminhos de Ferro, n.º do médico militar Dr. Lereno, na de Leopoldo de Almeida, inaug.
1265, 01.09.1940, p. 587. cidade da Praia), para além de 23.09.1932, no antigo estádio das
47
Diário de Notícias, 25.03.1940, uma estátua de Afonso de Albu- Salésias e depois no novo estádio
p. 5. querque em Nova Goa, no Estado do clube no Restelo) são alguns
48
Inaug. em 16 de Setembro. da Índia, e o apostolado da cate- parcos antecedentes próximos
49
Diário de Notícias, 03.09.1940, dral de Nova Lisboa (actual deste de Aveiro.
p. 1. Huambo), Angola (1945). 66
Diário de Notícias, 25.11.1940,
50
Ibidem, 18.05.1940, p. 14. 58
Ibidem, 07.05.1940, p. 4. p. 5.
Não conhecemos o desenvolvi- 59
Diário de Notícias, 12 e 67
Este ainda está no lugar onde foi
mento desta planeada homena- 15.06.1940, p. 4 e 1, respectiva- erigido (Rua de Coco, na cidade
gem que também compreendia mente. do Mindelo) e bem estimado.
colocação de lápide toponímica 60
Na realidade no Monte do Pilar, 68
Diário de Notícias, 07.08.1940,
em artéria viseense com nome a cerca de quatro quilómetros de p. 2. Posto no adro da igreja de
do militar. Em http://fotosviseu. Paços de Ferreira. Nossa Senhora da Arrábida, nesta
blogspot.pt/2015/06/a-casa-mu- 61
D. António Augusto de Castro cidade angolana.
seu-almeida-moreira.html (visto Meireles. 69
Ibidem, 30.07.1940, p. 1.
em 29.08.2015) diz-se que em 62
Diário de Lisboa, 08.12.1943, p. 70
Ibidem, 27.07.1940, p. 1.
25.11.1973, em comemoração do 4. 71
Ibidem, 29.07.1940, p. 1.
centenário de nascimento desta 63
Ibidem, 07.10.1940, p. 5, O 72
Ibidem, 18.07.1940, p. 1 e
figura, foi inaugurado no jardim da Século Ilustrado, 12.10.1940, p. 9 e 31.07.1940, p. 2.
Casa Museu Almeida Moreira um Ocidente, Novembro.1940, p. 267. 73
Ibidem, 05.08.1940, p. 2.
busto do capitão esculpido pelo 64
Encontrámos como datas de 74
Ibidem, 05.08.1940, p. 6 e
“seu amigo Mariano Benlliure”. destruição na Internet a do ciclone 18.08.1940, p. 4.
51
Ibidem, 22.02.1938, p. 9. Fun- de 1942 e na Wikipedia a de tem- 75
Ibidem, 09.09.1940, p. 5 e ibi-
dida em Vila Nova de Gaia. poral de 1960 com reconstrução dem, 17.09.1940, p. 2.
52
Ibidem, 10.07.1940, p. 1 e Ilus- em 1961 (versão mais repetida). 76
Desenho de António Lino e

– JOAQUIM SAIAL 105


jogos de água e luz do eng. Car- estudou em Paris e em 1945 emi-
los Buigas. Indicação em NOBRE, grou para os Estados Unidos da
Pedro Alexandre de Barros Rito América.
Nunes, Belém e a Exposição do 84
Ocidente, n.º 32, Dezem-
Mundo Português: Cidade, Urba- bro.1940, p. 461.
nidade e Património Urbano, tra- 85
Facto que nos confidenciou
balho de projecto de mestrado em em conversa que com ele tive-
Património Urbano, Faculdade de mos para entrevista do Diário de
Ciências Sociais e Humanas, Uni- Notícias, 06.05.1989, na coluna
versidade Nova de Lisboa, 2010, “Sábado em Perfil”, p. 2: “Estava
p. 33. proibido [de participar em concur-
77
Acumulou o cargo com o de sos para monumentos], porque era
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

ministro das Obras Públicas desde estrangeiro. Só excepcionalmente


25 de Maio de 1938. trabalhei para a Agência Geral das
78
Ainda existentes. Colónias. Mesmo assim, alguns
79
Diário Popular, 09.12.1942, p. 1. artistas escreveram para lá, mani-
80
Situava-se no “Pátio de Honra” festando o seu repúdio.”
da igreja (que ainda existe, na Ave- 86
Diário de Lisboa, 02.04.1953, p.
nida Columbano Bordalo Pinheiro, 12. A maqueta foi premiada em
a Palhavã). Era constituído por três concurso internacional promovido
figuras de soldados, um ileso, um pelo Instituto de Artes Contempo-
ferido e um terceiro moribundo, râneas, em Londres. A ele concor-
amparado pelo segundo. Intitu- reram 2500 artistas, de 56 países.
lava-se “Camaradagem na Der- A escultura de Vieira esteve longo
rota”… Para além deste conjunto tempo exposta na Tate Gallery. Só
escultórico viam-se a estátua em 1994 o monumento foi execu-
“Mater Dolorosa” e o baixo-relevo tado e erigido em Beja.
“A Ascensão do Herói” (que sub-
sistem).
81
Discurso de 06.05.1949, in
FERRO, António, Arte Moderna,
ed. SNI, Lisboa, p. 36.
82
Que mais tarde faria pequenas
esculturas surrealistas.
83
A exposição realizou-se na Gale-
ria (ou Casa) Repe, na Rua Paiva
de Andrade, Lisboa. Abriu a 11
de Novembro e encerrou a 23.
Pamela Boden (1905-1981) nas-
ceu em Derbyshire, Inglaterra,
Monumento Multiculturalidade – Uma
Experiência Participada

por José Francisco Alves


Doutoramento em História da Arte, curador independente e membro da
ABCA, ICOM e ICOMOS. Curador-Chefe do Museu de Arte do Rio Grande
do Sul (2011-2013) e Professor de Escultura do Atelier Livre da Prefeitura de
Porto Alegre. Mantém o site www.public.art.br

Abordage du projet Monument Multiculturalisme, projet


de la Mairie de Almada (Portugal) avec la participation
de l’Université de Lisbonne, inauguré en 2013. Le Almada, situada na margem esquerda do
monument a été érigé après diverses consultations Rio Tejo, fronteira a Lisboa, passou a chamar
directes de la communauté à laquelle il fut destiné. a atenção internacional de instituições aca-
Des citoyens du Bairro da Caparica, Almada, ont dêmicas e artísticas nos últimos anos pela
participé à plusieurs sessions de travail comprenant surpreendente e bem-vinda atitude de en-
une expérimentation artistique (ateliers) et ont décidé carar a arte pública a partir de uma visão es-
non seulement du contenu du monument comme de tratégica para a cidade. No caso, as ações
ses formes. Ce processus a été analysé à la lumière práticas desenvolvidas por essa municipa-
de la théorie de l’art publique, spécialement en ce lidade para o assunto ultrapassou as habi-
qui concerne les auteurs qui abordent la question tuais – e igualmente relevantes – políticas de
communautaire et démocratique de ce genre d’art, ainsi ereção de monumentos representativos e/
qu’en référence à des exemples pratiques de projets ou a instalação de obras de arte em espaços
similaires antérieurs de l’Université de Barcelone. públicos. Apesar de ainda importantes tais
comissionamentos, no sentido de qualifica-
ção da paisagem, memória histórica ou sta-
tus cultural, a cidade de Almada quis ir além.

O Monumento Multiculturalidade, levado a


cabo pela Câmara Municipal de Almada, e
Universidade de Lisboa, apresenta-se como
importante contribuição no universo das di-
versas políticas de arte pública europeias e
americanas. Isto porque o projeto ingres-
sou num terreno difícil, no qual governos

– JOSÉ FRANCISCO ALVES 107


e instituições evitam “arriscar-se”: obras de com as esculturas em seu mais importante
arte pública erigidas para determinadas co- sítio, a Praça da Sé (1978). Na Europa, o pa-
munidades e com a participação ativa dos radigma mais difundido foi e continua sen-
seus cidadãos na definição dos objetivos e do Barcelona, remodelada a partir dos Jo-
formas dessa arte. Este, de fato, é um tipo gos Olímpicos de 1992, cuja revitalização
de arte desafiador, uma vez que a escala de e regeneração do espelho urbano desde
uma comunidade específica é, para a arte então passou a incluir a arte pública. Obvia-
pública, paradoxalmente mais complexa do mente, este novo tipo de arte, determinado
que a construção de monumentos de gran- pela sua instalação em espaços públicos
des proporções, em sítios urbanos de mé- (majoritariamente abertos), foi acompa-
dias e grandes metrópoles. nhado de uma teorização igualmente sem
precedentes. Paulatinamente, a crítica vol-
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

Temos no exemplo deste notável projeto tou-se à divulgação desta arte, em seguida
três características a destacar, em razão de introduzindo em grau elevado a politização
seu contexto enquanto obra de arte e elabo- e a polêmica nos discursos. Entre essas re-
ração comunitária: o caráter de monumento, ferências sobre o assunto, podemos ver al-
o processo participado e a autoria coletiva. guns exemplos a seguir.

A obra de arte pública enquanto marco re- A primeira reflexão crítica sobre esta nova
ferencial de uma cultura ou comunidade es- produção pode ter sido o artigo de Amy
pecífica foi uma discussão bastante profícua Goldin, na prestigiada revista Art in Ame-
quando a arte em espaços urbanos passou rica: “O Gueto Estético: algumas reflexões
a fazer seriamente parte do discurso teórico, sobre a Arte Pública” (1974). Conforme a au-
a partir de princípios da década de 1970. A tora, aquilo que era oferecido então como
produção que determinou este novo cam- arte pública seria “na maior parte... ampla
po instaurou-se a partir da inclusão de obras decoração”. Goldin também dava a partida
de arte icônicas em projetos de revitaliza- da grande corrente que começou a definir
ção urbana. Podemos delimitar este históri- criticamente a arte pública: “o problema
co período entre 1969 e 2006, de La Grande verdadeiro é explicar porque, no momento,
Vitesse (cidade de Grand Rapids; artista Ale- virtualmente [arte pública] é uma classifica-
xander Calder) a Cloud Gate (cidade de Chi- ção vazia”.1 Penso que esta autora percebeu
cago; artista Anish Kapoor), ambas escultu- com firmeza – e isso é válido até o presen-
ras públicas nos Estados Unidos da América. te – “que há tão pouca arte pública genuína
em razão justamente de nossa descrença na
Neste período, uma produção numerosa e realidade da própria esfera pública”.
diversificada de obras ao ar livre de câno-
nes moderno e contemporâneo surgiu na Então, conforme o contexto era propício,
América (Estados e Canadá) e Europa. Mes- os que que começaram a teorizar sobre a
mo timidamente, houve reverberação na arte pública politizaram ao máximo os pon-
América Latina, a exemplo de São Paulo, tos de vista. As considerações mais corren-
tes foram aquelas as quais apontavam que No livro que organizou, “Arte na Esfera Pú-
a maior parte da arte pública não represen- blica”, J. W. Mitchell em seu texto introdu-
tava aspectos ligados às comunidades as tório refletiu sobre legitimação, violência e
quais era dirigida e que as novas obras em público, e ponderou que a arte pública é um
espaços urbanos continuavam a ser a mes- meio significativo de violência simbólica.8
ma arte “privada” das galerias e museus. Entretanto, o questionamento teórico mais
Com o tempo, surgiram mais artigos bem comum e prolongado acabou sendo em
como livros específicos que ampliaram es- torno da própria condição “pública” de uma
ses questionamentos. obra de arte pública. Ou seja, se esta pas-
saria a adquirir tal caráter por sua simples
Uma análise crítica muito citada sobre arte colocação em espaços públicos. Nesse sen-
pública até o presente parece ser o contun- tido, Harriet Senie ponderou: “Como algo
dente artigo “Inoperante: a Máquina da Arte pode ser ambos, público (democrático) e
Pública” (1988), de Patricia Phillips. Nele, arte (elitista)?” (1992).9 Uma reflexão similar
a autora atacou a mera condição “pública” fez o artista Daniel Buren: “Porque, quando
desta arte ser exclusivamente em função de falamos sobre um trabalho ao ar livre [...] a
sua propriedade pública (governo) ou de palavra ‘arte’ é juntada ao termo ‘público’?
sua localização (local público), pois “o con- O que está implícito nessa união?”.10 Outro
ceito de ‘público’ é difícil, mutável, talvez autor de referencia no período foi Malcolm
um pouco atrofiado, mas o fato é que a di- Miles, com “Arte, Espaço e Cidade” (1997),
mensão pública é uma construção psicoló- o qual também debruçou-se mais ou me-
gica em lugar de física ou ambiental”.2 Mais nos nas mesmas reflexões.11
adiante, Phillips publicou o artigo “Constru-
ções Públicas” (1995), em um livro coletivo, A par desta infindável discussão teórica em
no qual voltou a questionar: “De onde vem o torno da questão da propriedade ou loca-
público da arte pública de se a vida pública lização da obra como sendo definidora da
está assim, tão perigosamente esgotada?”3 condição de um trabalho pertencer ou não
Este livro em questão, “Mapeando o terre- à tipologia arte pública, Javier Maderuelo,
no: um novo tipo de arte pública” (1995)4 em 1990, já observava esta situação sob
esteve com três outros entre as coletâneas o prisma do público e não da obra, já que
de textos mais difundidas na década de “trata-se de um tipo de arte cujo destino
1990, as quais buscaram novas e múltiplas é o conjunto de cidadãos não especialista
abordagens, em especial problematizan- em arte contemporânea e cuja localização
do os aspectos comunitário e crítico que a é o espaço público aberto” (grifo nosso).12
arte pública deveria refletir: “Arte no Interes- E este “destino”, afinal, é o maior desafio
se Público” (1989),5 “Arte na Esfera Pública” desta tipologia de arte uma vez que, ain-
(1992),6 “Questões críticas em Arte Pública: da segundo Maderuelo, “a cidade hoje foi
conteúdo, contexto e controvérsia” (1992).7 transformada num campo aberto, cenário
de variadas manifestações estéticas que se
deslocaram dos espaços das galerias e mu-

– JOSÉ FRANCISCO ALVES 109


seus para enfrentar diretamente a um pú- tão proposta por trabalhos permanentes ou
blico heterogêneo, de olhar distraído, sem temporários elaborados conforme as ca-
tempo para interessar-se por arte e preo- racterísticas dos respectivos locais a que se
cupado em questões mais pragmáticas do destinam. Ao mencionar como referência o
cotidiano”.13 Vejo que a denominação do postulado de Jeff Kelley para a distinção en-
campo arte pública, por esta ótica de Ma- tre lugar e local – “um local (site) representa
deruelo, soluciona um pouco esta questão as propriedades físicas do lugar (place) [...]
exaustiva sobre o que é ou não um trabalho enquanto lugares (places) são os reservató-
de arte pública. Neste sentido, seria aque- rios do conteúdo humano”17 – Lippard cu-
la obra colocada fora dos espaços tradicio- nhou um novo termo para o que seria um
nais de arte, a qual transforma o espectador, novo tipo de arte pública, em oposição ao
o transeunte, em espectador de arte, pela site-specific: a arte “place-specific” (a espe-
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

simples colocação de uma obra de arte em cificidade do lugar). Assim, “a arte place-s-
seus caminhos quotidianos. pecific” teria “uma ligação orgânica com a
sua localização e, principalmente”, não po-
Entre esse maciço teórico produzido sobre deria “ser vista como um objeto fora da vida
arte pública, do qual pinçamos as referên- dos habitantes/espectadores”.18
cias acima por serem os primeiros ques-
tionamentos a enfocarem preocupações Com a instauração ou identificação desta
concernentes ao nosso Monumento Mul- nova tipologia de arte (a place-specificity),
ticulturalidade, a crítica de arte Lucy Li- Lucy Lippard elaborou uma apropriada de-
ppard14 produziu talvez o aporte mais signi- finição de Arte Pública:
ficativo sobre a necessidade de participação
– decisiva – do público na definição de uma Qualquer tipo de arte acessível que se preo-
arte erigida em seu nome. Em 1997, ela pu- cupa, desafia, envolve e consulta o público
blicou “A atração do local – sentidos do lu- para/ou no qual ela seja feita, respeitando a
gar em uma sociedade multicêntrica”,15 um comunidade e o meio ambiente. As outras
denso livro que aprofundou questões apre- coisas – a maioria combustível para as con-
sentadas anteriormente em artigo seu no já trovérsias e a retórica dos meios de comu-
mencionado “Mapeando o terreno [...]”, sob nicação sobre a arte pública – ainda é arte
o título “Olhando em volta: onde estamos, privada, não importa o quanto seja grande,
onde poderíamos estar”.16 exposta, intrusa ou sensacionalista. Perma-
nente e efêmera, objeto e performance, de
Lippard dedicou-se a teorizar sobre a no- preferência interdisciplinar, democrática, às
ção de local, localização e localidade, com vezes funcional ou didática, uma arte públi-
o objetivo de problematizar sobre o lugar ca existe nos corações, mentes, ideologias e
na arte, buscando, inclusive, conceitos da educação de seus públicos, bem como em
geografia e do meio ambiente. De seus en- suas experiências física e sensual.19
foques, questionou o célebre site-specific
(a especificidade do local), ou seja, a ques-
Conforme o final dos anos 1990 se aproxi- front.22 Não é sem razão, inclusive, que no
mava, o complexo teórico sobre arte públi- âmbito da influência deste largo trabalho
ca refreou no sentido de discussões menos da Universidade de Barcelona encontra-se
polêmicas e críticas. Passou-se também a também, efetivamente, o próprio projeto
uma fase de maior interesse por autores e Monumento Multiculturalidade. Enquanto
investigadores que não atuavam no mundo o corpo teórico antes exemplificado (ma-
da arte, oriundos de vários campos, como joritariamente americano) seja majoritaria-
a história, filosofia, sociologia, urbanismo e mente voltado às questões das relações
psicologia social, entre outros. A perspecti- dos projetos com os seus públicos, e por
va de que a arte pública não era somente isso se constituem também em referência
pertencente ao campo artístico coincidiu, para abordarmos o assunto presente, creio
por um lado, com a academização da dis- que os projetos efetivados por meio da
ciplina em universidades; por outro, ao tre- Universidade de Barcelona aportem sub-
mendo boom de legislações (obrigatorie- sídios mais apropriados ao nosso caso em
dade) e incentivos para a colocação de arte tela, um projeto conjunto entre universida-
ao ar livre, em especial na Europa, EUA, Ca- de e câmara municipal.
nadá e Austrália. Nesse quadro, a iniciativa
acadêmica mais efetiva e duradoura ocor- Temos em conta que nos Estados Unidos,
reu na Universidade de Barcelona, que insti- ou, mais amplamente, no dito “primeiro
tuiu à época o Observatório de Arte Pública mundo”, o rol teórico mencionado – além
(atual paudo).20 Posteriormente, o Observa- de outros obviamente – em muito tenha in-
tório desdobrou-se em cursos de mestrado fluenciado a criação de centenas de proje-
e doutorado com enfoque em Arte Pública, tos municipais de arte pública permanente.
Patrimônio Cultural, Regeneração Urbana O mais conhecido desses casos é Nova Ior-
e Espaço Público, a partir de um centro de que, cujo programa municipal de arte pú-
pesquisa, o crpolis.21 blica há décadas tem alocado trabalhos em
comunidades afastadas de Manhattan, mui-
A par da necessidade de investigação e di- tas estigmatizadas devido aos seus vernizes
vulgação teórica, o paudo/crpolis passou multiculturais, cujos processos de comis-
a realizar projetos concretos (ou seja, nas sionamento levam em conta a obrigatorie-
ruas) com administrações municipais (os dade de uma demorada negociação entre
entes que afinal de contas enfrentam a arte os artistas e moradores. Porém, é bom que
pública), em Espanha e Portugal. Também se frise, a politizada – e até mesmo ativis-
ampliou a sua influência por meio de proje- ta – produção teórica americana (e de sua
tos conjuntos, em universidades europeias influência direta: Inglaterra, Canadá e Aus-
e, incluso, nas américas do Sul e Central. trália) é de difícil compreensão e interesse
Isso, sem mencionar a realização de sim- daquilo que ocorre fora de sua órbita. As-
pósios de arte pública em ambos os lado sim, restam à margem desse universo co-
do Atlântico e a edição de publicações, en- mentado, criticado, interessantes experiên-
tre as quais a principal é a On The W@ter- cias em Espanha, Portugal, América Latina,

– JOSÉ FRANCISCO ALVES 111


e até mesmo em França e Alemanha. O que
a experiência do paudo / crpolis acrescen-
tou ao campo da arte pública internacional
resulta de uma vontade política – institu-
cional – duradoura sobre práticas urbanas
e comunitárias, cujos resultados são cons-
tantemente reprocessados, analisados e
reinterpretados sob a luz de teorias pre-
decessoras às quais se apresentam novos
aportes, com uma característica proposita-
damente interdisciplinar.23
Escultura Casa Barata, Baró de Viver, Distrito de Sant Andreu,
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

Barcelona.
Imagem em <fernandofuao.blogspot.com.br>
Entre as iniciativas da Rede paudo conjun-
tamente a câmaras municipais em Espanha
e Portugal destacamos o projeto desenvol-
vido no bairro Baró de Viver,24 Distrito de
Sant Andreu, nordeste de Barcelona. Foi le-
vado a cabo com efetivo envolvimento co-
munitário, em meio à regeneração urbana
participada do local, iniciada por volta de
2004, tais como uma nova rambla, praça
cívica e estação de Metro. No sentido sim-
bólico, este amplo projeto foi também pen-
sado para melhorar a autoestima do bairro,
estigmatizado por sua história ligada às ca-
sas populares (“casas baratas”), construídas
pelo governo em torno de 1928, quando a
região era uma periferia distante de Barce-
lona. No amplo projeto, emergiram dois tra-
balhos de arte pública, o Mural da Memória
e a escultura Casa Barata, (ambos de 2011).
O mural, com 524 m2, ocupa o paredão
acústico que protege o entorno (Passeio de
Santa Coloma) do cruzamento de viadutos
e avenidas expressas; trata-se de um painel
ilustrativo, como um livro gigante, que con-
ta a história do bairro por meio de memó-
rias, fotografias e interesses compartilhados
pelos próprios moradores. A escultura em
homenagem às Cases Barates (casas bara- Entretanto, de tempos em tempos, pode-
tas, em castelhano, ou, casas populares, no mos perceber que fatos e situações podem
português brasileiro), por sua vez, nos re- fazer o sentido do monumento sentir-se re-
porta ao Monumento Multiculturalidade vigorado e a sociedade parece voltar a ne-
por ser uma obra de arte de autoria coleti- cessitar deles. Corrobora para isto a visão
va, comunitária. Foi instalada na extremida- do historiador Andreas Huyssen de que a
de mais elevada da Rambla Ciudad d’Asun- “memória”, no mundo inteiro, tornou-se nas
sión, na junção com o Passeio Santa Colona, últimas décadas “uma obsessão cultural
e ergue-se na forma de uma singela casa, de monumentais proporções”27 e que a “a
realizada em betão, como um verdadeiro noção de monumento como memorial ou
monumento, sem, no entanto, reivindicar evento comemorativo público vem conhe-
essa condição comemorativa. cendo um retorno triunfante”.28 Este ponto
de vista Huyssen vinha observando em ra-
Este aspecto, assim, nos remete à primeira zão das celebrações da memória do Holo-
das três características que queremos des- causto, da queda do Muro de Berlim e do
tacar no Monumento Multiculturalidade, ou fim das ditaduras militares sul-americanas.
seja, a opção pela ereção de um monumento. Essa “obsessão”, ao que tudo indica, mos-
trou-se fortalecida a partir dos aconteci-
A par de toda a controvérsia em torno do pa- mentos de 11 de setembro de 2001, em as-
pel do monumento na história da arte e da sunto que esse próprio autor debruçou-se
cidade – e Antoni Remesar nos resume que posteriormente, sob essa mesma ótica.29 Se
o mesmo pode ser visto como um “conceito formos pensar em “memórias traumáticas”
maldito, ou bendito, conforme e como o ob- (termo também de Huyssen), quando elas
servamos”25 –, eu creio que não restam dúvi- tomam forma para uma sociedade em par-
das de que o monumento é a forma mais re- ticular o são de modo geral na condição de
conhecível pelo “público geral” daquilo que monumentos públicos.
inequivocamente seja o mais típico exem-
plar de arte pública. Assim, a morte anuncia- Se o culto moderno aos monumentos30 mos-
da várias vezes desta categoria já não pode tra-se atual, em que medida se situa, nessa
mais ser levada a sério. O flutuar do dia-a- perspectiva, o Monumento Multiculturalida-
-dia da História nos demonstra que a neces- de? Podemos começar pelo próprio contex-
sidade dos monumentos vai e vem e cada to imediato, a própria cidade de Almada.31
contexto requer novas abordagens. Néstor
Canclini observa o presente de uma mega- Almada, hoje uma cidade com numeroso
lópole de 22 milhões de pessoas (a Cidade conjunto de arte pública, numa proporção
do México) na qual ali os “monumentos es- elevada de obras de arte ao livre aos pa-
tão cansados”; não podem mais ser vistos e drões europeus, se considerarmos a sua
não podem competir com o que hoje se en- população e área, surpreendentemente
contra agregado ao espaço urbano.26 teve o seu primeiro monumento instalado
ao ar livre recentemente, somente cinco

– JOSÉ FRANCISCO ALVES 113


anos após a redemocratização do país. O para se mostrarem presentes, atuantes na
grupo estatuário Os Perseguidos (de An- vida da cidade, neste novo período, em es-
jos Teixeira) foi executado em 1969 e inau- pecial os que anteriormente eram privados
gurado em praça pública a 24 de junho de de terem voz na sociedade.
1979, como um monumento a “todos os
homens e mulheres vítimas da persegui- Seguiu-se a partir dos anos 1980 a ereção
ção fascista”32 da ditadura do Estado Novo de monumentos a causas justas, efeméri-
(1933-1974). Antes, a cidade já contava des e homenagens habituais, em contextos
com o gigantesco Cristo Rei (à moda do locais e universais, aspectos do quotidiano
Cristo Redentor; Rio de Janeiro), devoção da vida em cidades democráticas. Assim
católica inaugurada em 1959, emblema- encontramos em Almada monumentos às
ticamente “de costas” à Almada e voltada profissões e homenagens congêneres (As-
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

para Lisboa. Porém, seria forçoso crer que sociativismo, Trabalho, Paz, Vida, Liberdade,
esse destino de peregrinação religiosa seja Solidariedade, etc.). Em muitos desses co-
um “monumento de Almada” pelo simples missionamentos observamos o expediente
fato de estar fixado em seu município, uma do concurso aberto a projetos de artistas,
vez que seu objetivo é fitar a capital e ser com financiamento predominantemente
visto de lá, bem como os visitantes que o público. A maioria das obras pertence ao
procuram ignoram solenemente a cidade. campo da escultura, mas também encon-
Esse é um fato que revela a antiga sina de tramos painéis cerâmicos e em relevo, além
Almada durante um largo período de sua de mobiliário urbano diverso (luminárias,
história, a ausência de monumentos, como abrigos, objetos lúdicos), com elaboração
se os monumentos da capital, do outro plástica artística. A linguagem quase abso-
lado do Tejo, suprissem essa deficiência. luta das obras de arte utiliza procedimen-
tos, materiais e cânones contemporâneos,
A partir da redemocratização (1974), Alma- numa exceção às habituais demandas por
da adquiriu o direito de ter um poder au- tradições predecessoras, a exemplo de es-
tônomo e passou a ditar os seus destinos. tatuas ou obeliscos.
Este fato permitiu que finalmente a cidade
passasse a instalar os seus monumentos e Sendo Portugal perfeitamente integrado no
obras de arte. Entre outras iniciativas, a arte espírito da comunidade europeia e mais di-
pública passou a cumprir um papel interes- retamente ao contexto ibérico, como men-
sante na autoestima dos moradores e na cionado antes a Câmara de Almada tem
construção de memória e imaginários cole- participado de projetos de arte pública no
tivos próprios. Se não totalmente represen- âmbito da Universidade de Barcelona. O
tativos – e a arte pública jamais consegue ser exemplo anterior a destacar, nesse sentido,
representativa para toda uma população, a foi “En els marges / nas margens”, iniciativa
maior parte dos monumentos dessa cidade integrada como troca de experiências entre
vinculou-se aos interesses de grupos que projetos artísticos comunitários dos bairros
positivamente buscaram o espaço público Pica-Pau Amarelo (Almada) e Baró de Viver
(Barcelona), em 2011. Para Almada, este foi uma comemoração tradicional (monumen-
mais um incentivo para um passo adiante, to), “não só se dava a oportunidade à comu-
a realização de um projeto de arte pública nidade de participar numa acção concreta
permanente, o Monumento Multicultura- dirigida ao seu território, como se potencia-
lidade, definido de forma participada pela va um maior diálogo e entrosamento social
comunidade do Raposo, junto ao Centro Cí- no seio de uma comunidade bastante com-
vico do bairro Monte de Caparica. plexa e culturalmente diversificada”.33

O comissionamento do monumento foi le- Sob a coordenação de Sérgio Vicente, cerca


vado a cabo pela Escola de Belas Artes da de quarenta moradores, entre crianças, jo-
Universidade de Lisboa, sob coordenação vens e adultos, participaram ativamente de
do professor e escultor Sérgio Vicente, em nada menos que sete Sessões (ou oficinas)
projeto gestado no Centro de Investigação de Trabalho, no Clube Raposense, a partir
e de Estudos em Belas-Artes – CIEBA, o qual de convocação aberta a qualquer residente
foi proposto à Câmara Municipal de Alma- que quizesse participar. O resultado foi sur-
da, para uma realização conjunta. Por sua preendente. Não se escolheu um monumen-
vez, o CRPOLIS, da Universidade de Bar- to específico, mas um conjunto de três es-
celona, acompanhou de perto o projeto, culturas a formar a proposta comemorativa.
numa forma de consultoria. Cada elemento remeteu a uma característi-
ca – ou memória – que os cidadãos escolhe-
A iniciativa foi organizada justamente para ram representar. Tais elementos “convidam
avançar na recente experiência da cidade ao uso e à construção de um lugar de en-
de Almada com a arte pública, desta vez em contro e reflexão, consolidando uma visão
uma atuação direta no seio de uma comuni- poética da experiência e memória coletivas:
dade específica, do Monte de Caparica, cuja a ‘casa’ do estar e da comunhão, o ‘poço’ do
proposta do monumento inseriu-se no com- fazer e da relação com o trabalho, e o ‘obser-
plexo do Centro Cívico de Caparica: par- vatório’ do sentir, das inquietações do des-
que, biblioteca, piscina pública e nova sede conhecido e do conhecer”.34
do Clube Recreativo União Raposense, uma
espécie de centro comunitário local. Assim, Sobre o desenrolar das sessões de traba-
integrado ao novo e moderno complexo co- lho, não nos cabe aqui descrever e analizar
munitário, o monumento encontrou abrigo as discussões no âmbito dos encontros da
para as suas necessidades de orçamento, de comunidade para a realização do monu-
forma a garantir o seu custeio. mento, visto que já plenamente detalhadas
e analisadas em artigos (2012 e 2013).35 A
A denominação do monumento foi no sen- respeito das três esculturas, estruturas de
tido de ressaltar a característica multicul- aço cor-ten, bem verticalizadas, cada uma
tural do local, composta, entre outros, por paira sobre uma forma circular correspon-
ciganos, imigrantes de África e população dente, em betão, com palavras e cores que
de baixa renda. Nesse sentido, por meio de expressam sentidos àquela comunidade. A

– JOSÉ FRANCISCO ALVES 115


primeira trata-se de um grande cilindro va-
sado sobre um círculo amarelo, com a pala-
vra “sentimos” gravada; a segunda, um po-
liedro irregular, também vasado, sobre um
círculo vermelho: “estamos”; a terceira, uma
forma quase minimal (duas hastes) suporta
um anel sobre o círculo azul: “fazemos”.

Esses conteúdos e significados que aca-


baram por tomar formas de arte foram re-
sultado das sessões, nas quais a comuni-
dade, estimulada pelas experimentações
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

artísticas, “pode gerar conteúdos de auto-


-reconhecimento com o objectivo de ir ad-
quirindo elementos” que ajudaram os par-
ticipantes a “representar as especificidades
de seu território”.36 Processo este não muito
fácil a ser desenvolvido, o qual certamente
não foi atingido nesse projeto por uma una-
nimidade absoluta, algo que não existe em
qualquer grupo de pessoas que discuta in-
teresses comuns (e incomuns) de sua histó-
Cartaz da 4a. Sessão Pública de discussão do projeto ria e de seus quotidianos. Mas o resultado
Monumento Multiculturalidade.
formal do processo participado – o monu-
mento em si – foi, a meu juízo, surpreen-
dente, pois a paisagem recebeu objetos de
valor formal (dentro de sua simplicidade)
reconhecidos pela comunidade como algo
que lhes diz respeito.

Tais esculturas são também reconhecíveis


como elementos artísticos contemporâneos
uma vez que, obviamente, elas precisaram
de ajustes de escala, linguagem e material,
pela equipa de escultores que participou
do projeto. Porém, isto foi feito com a preo-
Uma das Sessões de Trabalho do projeto Monumento cupação de intervir o menos possível nas
Multiculturalidade.
propostas originalmente escolhidas. Nes-
Imagem cedida por Sérgio Vicente/FBAUL.
se sentido, a participação dos escultores na
definição das formas das esculturas não os
fizeram autores do monumento, e isso não
quer dizer que a forma final não seja im-
portante, pelo contrário. Isto porque, não
se trata, o Monumento Multiculturalidade,
de uma obra sem autores. Ele é um monu-
mento de autoria coletiva, ou seja, de toda
uma comunidade. E este é um aporte novo,
importante, entre os tantos que o projeto
apresenta para o campo da arte pública.

Como mencionado, o processo de consul-


ta optado pelos comissionadores (Câmara e Elemento 1, “Sentimos”.
Foto do autor.
Universidade) foi o de sessões de trabalho
– workshops – com a comunidade. Ou seja,
obviamente dentro da comunidade com os
interessados em se envolverem com este
tipo imcomum de encontro, tanto de as-
sunto (arte) quanto de sistema de discussão
(convocatória). As implicações sociais do
projeto só o tempo poderá responder, com
seus desdobramentos. Este tempo poderá
ajudar a revelar o alcance, o grau de envol-
vimento das pessoas do lugar. Mas um sin-
toma já é evidente: próximo dos três anos
de inauguração do produto final do comis- Elemento 2, “Estamos”.
Foto do autor.
sionamento, o monumento, o mesmo se en-
contra íntegro, bem cuidado pela comuni-
dade a qual destina-se e da qual foi fruto.

Esta intervenção plástica na paisagem do


novo Centro Cívico de Caparica, perten-
cente ao campo da arte pública, nos agre-
gou uma experiência que vai muito além
de aplicações do plano teórico. Trata-se de
um belo exemplo ao nível das práticas ar-
tísticas e democráticas, um processo parti-
cipado que chegou a bom termo, quanto
mais se levarmos em conta que iniciativas Elemento 3, “Fazemos”.
Foto do autor.
desse tipo não são fáceis de serem levadas
a cabo. Temos a considerear que a discus-

– JOSÉ FRANCISCO ALVES 117


são entre administradores, artistas e co- Finkenpearl, Tom. Dialogues in
munidade sempre corre um risco de não Public Art. Cambridge: The MIT
lograr bons êxitos, mas este não é um “de- Press, 2000, 454 p.
feito” destas iniciativas. Estas dificuldades Goldin, Amy. The Esthetic Ghetto:
tratam-se, em verdade, de um grande de- Some Thoughts About Public Art.
safio e estímulo. E uma das maiores dificul- Art in America, New York, p. 30-35,
dades no comissionamento de arte públi- May–June, 1974.
ca, ou seja, a discussão e o envolvimento Huyssen, Andreas. Seduzidos
direto da comunidade, o projeto em Alma- pela Memória. Rio de Janeiro:
da soube muito bem enfrentar. Aeroplano, 2000, 118 p.
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– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

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Senie, Harriet. Contemporary in Münster 1997. Oct., 2012.
Public Sculptures – Tradition, 11
Art, space and the city – public art 24
<http://fembarodeviver.
Transformation and Controversy. and urban features, 1997. wordpress.com/>.
New York: Oxford University Press, 12
El espacio raptado – Interferen- 25
Antoni Remesar. Para una Teoría
1992, 276 p. cias entre Arquitectura y Escultura, del Arte Público – proyectos y len-
Revistas On the W@terfront, Uni- 1990, p. 164. guajes escultóricos, 1997 (pág. 8).
versidade de Barcelona, dis- 13
Hacia la definición de un arte 26
Néstor García Canclini. Arte en
poníveis em <http://www.ub.edu/ público. In: Poéticas del lugar – la ciudad – Reinventar la historia,
escult/Water/>. Arte Público en España, 2001. 2013.
14
Ao longo de sua carreira como 27
Andreas Huyssen. Seduzidos
teórica, curadora e artista, Lucy pela Memória, 2000, pág. 16.

– JOSÉ FRANCISCO ALVES 119


28
Idem, p. 42. boração com Gerbert Verheu e
29
Capítulo Twin Memories: Afteri- Mariana Fernandes), Monumento
mages of Nine/Eleven, In Present à Multiculturalidade em Almada:
Pasts: Urban Palimpsests and the comunidade, identidade e arte
Politics of Memory. Stanford Uni- pública. In: As Partes, revista do
versity Press, 2003 (p. 158-163). Atelier Livre da Prefeitura de Porto
30
Alöis Riegl. El culto moderno a Alegre (Brasil), n.º 7, Dez. 2012,
los monumentos. Madrid: La Balsa isbn 2178-8685, pag. 23-27.
de La Medusa, 1987. Publicação 36
Sérgio Vicente (em colaboração
original Der Moderne Denkmalk- com Verheu e Fernandes), op. cit.
ultus, Viena e Leipzig, 1903.
31
A cidade de Almada, para os
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

padrões portugueses, é uma


cidade de porte. É a quarta mais
populosa do país, com cerca
de 175.000 habitantes. Para os
padrões brasileiros, onde vivo,
apenas como informação, a
cidade seria apenas a 13.ª cidade
mais populosa do estado do Rio
Grande do Sul, cuja capital é Porto
Alegre.
32
Arte Pública no Concelho de
Almada. Livro-catálogo da expo-
sição homônima, Casa da Cerca
Centro de Arte Contemporânea
(mar-maio 2004), Almada. Coorde-
nação de Ana Isabel Ribeiro, pág. 44.
33
Maria Assunção Gato; Filipa
Ramalhete e Sérgio Vicente. Hoje
somos nós os escultores! – agen-
cialidade e arte pública partici-
pada em Almada. In: Cadernos de
Arte e Antropologia, Vol. 2, n.º 1
(2013). <cadernosaa.revues.org>
34
<www.m-almada.pt> “Notícias
> Monumento à Multiculturali-
dade inaugurado na Caparica”.
35
Gato, Ramalhete e Vicente (op
cit.) e Sérgio Vicente (em cola-
Significado de Arte Urbana,
Lisboa 2008–2014

por Pedro Neves


Doutorando, bolseiro do programa HERITAS no CIEBA, FBAUL. Organizador
de diversos encontros científicos internacionais e publicações sobre
"Criatividade Urbana" em Urbancreativity.org

This article pretend to contribute for the clarification


of Arte Urbana (Urban Art) expression, proposing a
geographical (Lisbon) and temporal (2008-2014) A expressão Arte Urbana é de difícil tipifica-
delimitation. This delimitation serves as an anchor for ção e avaliação apesar de institucionalmen-
identifying specific meanings, thoughts, actions and te em Portugal ser amplamente utilizada so-
forms that occurred in determined time and place, bretudo desde 2008. Esta problemática no
but doesn’t exclude references to other temporal and contexto de Lisboa tem características pró-
geographical dimensions. prias. À luz das referências internacionais e
The article development would not be possible without outras nacionais procurarei delimitar as ca-
the international contextualization related with the racterísticas dominantes do que proponho
problematic of Street Art and Graffiti expressions. significar de Arte Urbana em Lisboa entre
A vast array of distinct disciplinary areas approach from 2008 e 2014, algo ao qual estão associadas
different angles the problematic, producing distinct formas e valores a identificar.
points of view that had been relating and recognizing
mutually. The article concludes with a proposal of 3 1 - Breve contextualização internacional
typologies of Lisbon Arte Urbana.
Aqui abordo os conceitos de Graffiti, Street
Art e Urban Art. Serão descritas as principais
relações entre estes conceitos e quais as pu-
blicações académicas e não académicas que
os abordam. Começando com o conceito de
Graffiti, e sua associação com a Street Art, e
por fim identificando as distinções entre Ur-
ban Art e a sua tradução direta Arte Urbana.
A palavra Graffiti associa-se a inscrições
não oficiais, não autorizadas, que ocorrem
no espaço público, independentemente da

– PEDRO NEVES 121


técnica, meio ou estilo, palavra, por exem- O termo Street Art disseminado mais tar-
plo, que surge nos relatórios dos arqueólo- de, surge interpretado como algo que
gos do séc XIX como forma de diferencia- se relaciona mas que é distinto do termo
ção entre inscrições oficiais e não oficiais Graffiti. Por exemplo Peter Bengtsen en-
encontradas nas escavações de Pompeia1. quadra a designação como referente a
Por outro lado, a palavra Graffiti tem sido um contexto social autónomo, como Mun-
também utilizada para identificar um con- do da Street Art4 que estabelece e define
junto de convenções estilísticas e subcultu- continuamente as distancias e afinidades
rais que se desenvolveram a partir do final nomeadamente com o Graffiti subcultural.
da década de 1960 nos EUA. Outro exemplo é a abordagem de Anna
Waclawek que sugere que a Street Art é
Estas interpretações na realidade por vezes uma evolução, uma revolta contra, ou uma
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

sobrepõem-se e por esta razão surgem su- adição ao Graffiti subcultural; em suma,
gestões de novas designações na tentati- uma contribuição que permite uma gran-
va de maior clarificação da especificidade de diversidade cultural5.
do Graffiti de origem subcultural dos anos
1960. Por exemplo, Joe Austin, numa pers- Será necessária uma interpretação esba-
pectiva mais académica, propõe o termo tida das fronteiras do significado dos ter-
graffiti art2, do interior da subcultura tam- mos Graffiti e Street art para o melhor en-
bém surgem propostas como a de Phase2 tendimento do conceito de Arte Urbana
que propôs aerosol art em entrevista publi- adoptado a partir de 2008 em Lisboa. Es-
cada na On the Run de 1993, revista Alemã tes devem ser observados como campo
dedicada a esta subcultura. Porem estas e expandido indo ao encontro da propos-
outras sugestões de novas designações não ta de Rosalind Krauss, que aliás partilhou
demonstraram capacidade de substituir a o mesmo espaço de apresentação (Artist
utilização do termo Graffiti, quer no contex- Space Soho em Nova Iorque) com os Uni-
to académico, quer no contexto subcultural. ted Graffiti Artists em Setembro de 19756,
Subcultura é um conceito vasto e complexo o que nos leva a suspeitar de ligações por
dentro dos estudos teóricos sócio-culturais. identificar entre a proposta de campo ex-
Está associado à Universidade de Birmin- pandido e as problemáticas associadas ao
gam, mais especificamente ao CCCS (Cen- Graffiti subcultural.
ter for Contemporany Cultural Studies), con-
ceito que são revisitados e contestados em 1.1 Produção internacional de
parte por novas gerações de investigadores conhecimento sobre Graffiti subcultural e
que os confrontam com realidades como o Street Art
Punk ou o HipHop . O local exacto de onde
se encontram as fronteiras do que se desig- A produção de conhecimento sobre Graf-
na por Graffiti esbatem-se ou tornam-se rí- fiti e Street Art desenvolve-se há aproxima-
gidas conforme a abordagem. damente 4 décadas. Para o melhor enten-
dimento do leitor sugerimos dividir esta
produção em duas grandes componentes: A abordagem da área da criminologia
(1.1.1) a componente académica e (1.1.2) (cultural) ganha vigor após o trabalho de-
a componente não académica. senvolvido por Jeff Ferrel13, e a primeira
publicação académica originária do cam-
1.1.1 - Dentro da componente académi- po disciplinar da História da Arte surge
ca existem trabalhos de investigação que por Jack Stewart que propõe uma aborda-
provêm das mais variadas áreas do conhe- gem do ponto de vista pedagógico (au-
cimento, como, por exemplo, da sociolo- to-didáctico, arte popular) e analisa a sua
gia, etnografia, criminologia, historia cul- evolução estilística integrada na Historia
tural e historia da arte. da Arte14.

Evidenciam-se tendências que permitem Mais recentemente, o conceito de Street


propostas para agrupar a informação exis- Art também tem sido abordado do ponto
tente. Existe por exemplo um forte grupo de vista académico.
de publicações referentes aos anos 1970
em Nova Iorque, quer do ponto de vista Como já vimos, a tese de Peter Bengtsen
do confronto das narrativas entre o discur- estabelece-se como uma importante refe-
so oficial e o discurso subcultural7, quer rência, isto por recorrer às mais vastas ba-
a partir de abordagens de leitura étnica ses de dados existentes sobre Street Art,
(Afro/ Latino Americana)8. os forums de discussão que acompanha-
ram o crescimento do fenómeno. No seu
Os estudos Etnográficos existentes são trabalho são feitas considerações sobre
suportados em grande medida por en- as várias interpretações dos termos Graf-
trevistas que tendem a aprofundar a di- fiti, Street Art e Urban Art neste caso de-
mensão subcultral, seja desenvolvendo senvolvidas pelos protagonistas do que
abordagens comparativas Londres - Nova então designou de Street Art world em di-
Iorque9, seja a partir de abordagens mais reta analogia com o conceito de Art wor-
globais centradas em casos de estudo lds de Howard S. Becker’s.
como Montreal por exemplo10.
Explorando a relação entre os conceitos
Todavia o Graffiti de Nova-Iorque nos anos Graffiti e Street Art, surge também a de-
70 evidencia-se como o caso de estudo signação pós Graffiti, sustentada e desen-
mais desenvolvido, desde o reconhecido volvida nos trabalhos de Anna Waclawek
e amplamente divulgado estudo de Craig (2008) e Javier Abarca15. Abarca parte de
Castleman publicado em 198211 na rea- uma análise ancorada nas subculturas e
lidade antecedido pelo primeiro estudo traça elementos conceptualmente co-
académico sobre o Graffiti subcultural de muns, já Anna Waclawek faz uma análise
NY em 1978 por Andrea Nelli12. sobretudo cronológica com recurso aos
“visual culture studies”.

– PEDRO NEVES 123


Para além de livros ou teses totalmente uma amostragem local e ou global21, com
dedicadas aos temas do Graffiti e ou Street enfoque no género, e ou em tipologias es-
Art existem também muitos artigos ou ca- pecificas de intervenções como o clássico
pítulos isolados importantes. Destes arti- de 1984 Subway Art de Martha Cooper e
gos, provavelmente, o mais reconhecido Henry Chalfant22.
será o de Jean Baudrillard “Kool Killer ou
l’insurrection par les signes” (1976)16. De À semelhança da produção de conheci-
referir também periódicos como o Crime, mento académico, o papel de Nova-Iorque
Media, Culture (da área da Criminologia nos anos 70 é central também nas publi-
Cultural) e especificamente a edição do cações não académicas que logo, desde
City: analisys of urban trends, theory, po- 1974, acompanharam o fenómeno23. De
licy, action. de Fevereiro – Abril 2010, que qualquer forma, existe também uma pro-
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

abordou em capítulo específico o tema dução de conhecimento relevante no


“graffiti, street art and the city”. que refere à diáspora do fenómeno24, por
exemplo, para alguns países da Europa25
De notar que o conceito Street Art (ou em como para a Australia26.
alguns contextos Urban Art como descre-
verei em profundidade mais à frente) veio Nesta mesma categoria de publicações não
também trazer novos olhares do ponto de académicas integram-se também os catálo-
vista académico. Pela sua característica ter- gos e monografias decorrentes de exposi-
ritorial, mas também de discurso que se ções. Aqui o número de publicações é bas-
faz para fora e não em exclusivo para den- tante vasto, e com a excepção de alguns
tro da subcultura, veio permitir abordagens exemplos que abordam diretamente a rela-
de aproximação por parte das disciplinas ção entre Street art e Graffiti27, estas publica-
de projeto como design e arquitetura. Seja ções traduzem sobretudo as estratégias de
de um ponto de vista da análise do discur- abordagem na perspectiva do autor ou das
so sobre o território e seu mapeamento17, instituições como no exemplo do livro Art
ou a partir das lógicas de participação e ou in the Streets da exposição homónima do
colaboração18, na relação com o lugar19, en- MoCa de Los-Angeles em 201128.
fim todo um conjunto de referências acadé-
micas (teses e publicações resultantes de 1.2 Modelos
investigações) relacionadas com a proble-
mática do espaço público urbano que abor- São vários os modelos de interpreta-
dam direta ou indiretamente formas identi- ção (histórica e conceptual) do Graffiti e
ficáveis como de Street Art, ou Urban Art. da Street Art. No livro Spraycan Art29, de
1987, vem documentado e publicado um
1.1.2 Na componente não académica é mural feito por Chris Pape que retratou o
vastíssimo o número de publicações20 exis- que se considerava uma visão histórica do
tentes e em produção. Existe um conjunto Graffiti à época. Um mural auto explicati-
significativo de colectâneas que recolhem vo com reproduções do estilo e pseudó-
nimos relevantes na sua perspectiva. Este
é um dos exemplos de vários modelos.
Outro exemplo, mais recente, é o cartaz pro-
duzido por Daniel Feral, Graffiti and Street
art (2011). Este póster recria o esquema
gráfico criado por Alfred H. Barr Jr. para a
exposição Cubismo e Arte Abstrata, que se
realizou no MOMA de NY em 193630. Con-
sistindo na descrição cronológica e com re-
ferências a conceitos e locais, Feral, inicia a
sua proposta de modelo de interpretação
na sequência do gráfico de Barr.

Colocando no lugar central as designações


Graffiti e Street Art, a partir destas propõe
um conjunto de ligação ao passado e futu-
ro. Apesar das suas carências ao nível de
referências torna-se uma imagem interes-
sante, sobretudo pelo estímulo à reflexão
que representa.

1.3 Urban Art

A designação em inglês Urban Art vem as-


sociada especificamente aos conceitos de
Graffiti e Street Art pela primeira vez na ex-
posição Spank the Monkey de 2006 em Ga-
teshead, Reino Unido31. Surge da proble-
mática gerada pela distância entre a arte
na rua e a arte do mundo estabelecido da
arte, nasce da necessidade de resolver a
questão de abordar a Street Art no contex-
to dos museus, galerias e agentes instituí-
dos no mundo da arte.

Em 2008 o leiloeiro Bonhams iniciou um


conjunto de leilões periódicos especializa-
dos em Urban Art e em 2009 o fórum de
discussão Bansky.info passou a chamar-se
Urban Art Association. Todavia este surgi- Cartaz de Daniel Feral, Graffiti and Street Art (2011)

– PEDRO NEVES 125


mento da designação surge sem estar de- viajantes, escritores e pintores (sobretudo
finida à partida uma clarificação do que na os anteriores ao século XVIII)35. Estudos
realidade representa, quer na sua essência, pelo LNEC a pedido da CML confirmaram
quer em relação com os termos Graffiti e a existência, também no Rossio, de estratos
ou Street Art. de revestimentos acabados com guarneci-
mentos em pasta de cal e coloridos com
Talvez por esta razão gerou reacções di- amarelo-ocre36.
vergentes dentro do mundo da Street Art e
também do mundo estabelecido da Arte32. Segundo Eduardo Nery37, mais tarde, o am-
O uso ocasional de Urban Art como sinóni- biente social e político ditatorial do Estado
mo de Street Art frusta alguns membros do Novo caracterizou-se pela sobreposição da
mundo da Street Art. A conotação e viabi- policromia existente com um predomínio
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

lidade comercial da expressão Urban Art dos tons cinzentos nos bairros das classes
abriu caminho para que o facto de que a altas e principais eixos (por exemplo a Ave-
colocação de trabalhos na rua e, por vezes, nida da Liberdade).
só a referência a esta, se terem tornado veí-
culos para uma carreira comercial. Esta si- Apropriações gráficas informais ocorreram
tuação veio tornar pouco clara a relação sobre esse predominante “cinzentismo”
mesmo de quem espontaneamente produz com a revolução democrática de 1974. Esta
Street Art, pois esta rapidamente se trans- época foi prolífica (por todo o país mas em
forma na vertente de marketing da Urban particular em Lisboa) no que toca à produ-
Art que potencialmente mais tarde a irá co- ção de murais e colocação de cartazes po-
mercializar. líticos. Neste período particular da história
recente de Portugal os muros das cidades
2 – Em Lisboa foram, por excelência, a plataforma para a
comunicação38.
2.1 – Breve introdução
Estas actividades abrandaram de ritmo e con-
A cor das fachadas de Lisboa tem sido fru- finaram-se a meios mais convencionais após
to de controvérsias e diversos contributos a entrada de Portugal na CEE (depois UE) em
ao longo do tempo33. O tema foi o assun- 1983. Já no fim da década de 1980 os murais
to central num ciclo de conferências orga- que resistiram foram-se degradando.
nizado pelos Amigos de Lisboa em 1949,
convidando conhecidos intelectuais, ar- No início da década de 90 começaram a sur-
tistas plásticos e arquitectos para discutir gir assinaturas do tipo “tag” a par com ex-
normas municipais34. pressões gráficas mais ou menos criativas,
como stencil. Inicialmente em locais especí-
O branco – enquanto cor global na (e da) ficos como ao longo das linhas de comboio
cidade de Lisboa – parece em geral resi- suburbanas, auto-estradas, etc. Surgiram
dir na sua frequente referência por antigos também a colagem “selvagem” de cartazes
de concertos, touradas, circos e políticos. peza de Graffiti e Street Art no Bairro Alto
(Chiado e Bica) que, após alguns concursos
Com o evento Lisboa Capital Europeia da públicos para remoção e limpeza durante
Cultura em 94 e a Expo 9839 estas ocorrên- 2009, integra um conjunto de acções mais
cias diversificaram-se em escala e forma, vastas, o plano de pormenor da Reabilita-
ocupando locais de vivência boémia noc- ção urbana do Bairro Alto e Bica43.
turna como a 24 de Julho, Santos ou Bair-
ro Alto. Coincidência ou não esta dinâmica Um momento crucial44 para a criação do
ganhou particular força em Lisboa quan- projecto que se veio a designar de Galeria
do em 2003 a autarquia de Barcelona fez de Arte Urbana - GAU foi o encontro de-
aprovar a “ordenanza de convivencia pací- nominado Qual o Futuro das Paredes do
fica” que aborda a questão das apropria- Bairro Alto?. Este encontro ( que ocorreu
ções gráficas informais numa perspectiva em Julho de 2008 na Galeria ZDB) possibi-
de confronto e erradicação40. litou a partilha de opiniões dos principais
actores deste território, incluindo morado-
De 2004 (Campeonato Europeu de Fute- res, artistas plásticos, jornalistas, autores
bol em Portugal) a 2008 (data de despacho de Graffiti e Street Art, presidente da Jun-
municipal que implicou remoção de graffiti, ta de Freguesia da Encarnação presidente
street art, cartazes e ou outras inscrições41) da Associação de Comerciantes do Bairro
foram os anos em que se tornava por de- Alto, e técnicos municipais. Destes encon-
mais evidente a intensidade e presença das tros surgiu a conclusão de que seria impor-
camadas de vários anos de apropriações tante dar espaço a algo mais do que me-
gráficas informais em Lisboa, particular- ramente um projecto de limpeza, teria de
mente no Bairro Alto. existir uma componente de mediação cul-
tural no projecto de reabilitação urbana.
2.2 Bairro Alto 2008
2.3 Arte Urbana
Em Outubro de 2008, através do já referido
despacho, a CML decidiu reduzir o horário A necessidade de incorporar desvios im-
nocturno dos cafés e bares do Bairro Alto, previsíveis que ocorrem ao longo do tem-
horário que tinha sido alargado em a titulo po conduziu a uma maior flexibilidade nos
excepcional em 1994 a propósito de Lisboa planos urbanísticos a qual culminou na mu-
ser Capital Europeia da Cultura e que des- dança de representação de planos–imagem
de então não se tinham alterado. para planos de gestão que em Portugal
ocorreu a partir de 195445. Este facto ocor-
A redução de horário, medida danosa para reu a uma escala global e ajudou a fazer cair
os comerciantes, tem como “medida de em desuso o termo Arte Urbana que até en-
compensação” a limpeza, melhor ilumina- tão se tinha usado com um sentido estrita-
ção e qualificação geral do espaço públi- mente urbanístico.
co42. Esta situação levou a acções de lim-

– PEDRO NEVES 127


No contexto português mais recente, em ou arte pública. Este assumir de relações
1998, António Mega Ferreira, comissário ocorre num contexto onde é simultanea-
executivo da EXPO’98, decide designar de mente relembrado o uso da Arte Urbana
Arte Urbana às intervenções de caracter ar- como desenho urbanístico.
tístico no então novo território urbano. Este
facto originou o crescente uso do termo Assim e pela análise até agora desenvolvida
Arte Urbana que tomou a designação como tornam-se preponderantes 3 tipologias de
referente46 de algo novo, de forma distinta fronteiras esbatidas dentro do que se pode
da escultura pública e de alguma maneira designar por Arte Urbana na adopção de
mais próxima à Arte Pública47. 2008 pelo Município de Lisboa:

Em Outubro de 2008 no momento da cria- A tipologia de formação, onde se incluem


– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

ção da Galeria de Arte Urbana na Calçada tipos de aplicação da expressão Arte Urba-
da Glória foram colocados um conjunto de na como desenho da cidade (dos pré ou
painéis que serviram de suporte a inter- urbanistas culturalistas), e signos visuais no
venções plásticas que visavam segundo os território que em maior ou menor escala
seus co-responsáveis “confirmar o graffiti e são sinais do uso do e no território.
a street art como reconhecíveis e reconhe-
cidas expressões de arte urbana, como uma A tipologia pré-formal, estável bem defini-
subcultura artística globalmente presente da que compreende o graffiti subcultural e
nas metrópoles mundiais”48. a Street Art nas suas vertentes não comissio-
nadas, tipos de Arte Urbana em permanen-
A este propósito foi publicada uma peque- te negociação de distancias e afinidades.
na brochura49 que contem uma proposta
de justificação da utilização do termo Arte A tipologia formal é a da institucionaliza-
Urbana, neste texto é feita a referência à ção, onde há a ruptura dos pressupostos
prática “artística” de desenhar a cidade, não comissionados, surgem aqui tipos de
de pré-urbanistas culturalistas como John Arte Urbana que se podem designar de mu-
Ruskin ou William Morris e posteriormente ralismo contemporâneo, ou arte pública.
ao urbanismo culturalista de Camillo Sitte e
Ebenezer Haward50. Seguindo este padrão propõe-se uma
subdivisão da Arte Urbana em Lisboa
Ou seja, se por um lado, no contexto da rea- (2008–2014) por: 2.3.1 Arte Urbana como
bilitação urbana do Bairro Alto, na aplicação desenho da cidade e signos visuais; ; 2.3.2
do termo Arte Urbana é clara a intenção de Arte Urbana como Graffiti e Street Art;
afastar a relação direta com a Street Art ou 2.3.3 Arte Urbana como Street Art Murals,
Graffiti subcultural, por outro lado tentando Murais de Arte contemporânea, Arte Pú-
manter-se a ligação aos aspectos não co- blica e ou Urban Art.
missionados do fenómeno desassocia-se
de práticas próximas da escultura pública
2.3.1 Arte Urbana como desenho da observando sim quais as qualidades do su-
cidade e signos visuais porte em função por exemplo: dos signos
visuais identificados, qualidades de visibili-
Esta proposta de tipologia de Arte Urbana dade, da textura da superfície, acessibilida-
é a menos definida, mas todavia será a mais de, simbolismo, entre outras.
preponderante durante o nosso quotidiano.
Indo ao encontro das designações da ten- 2.3.2 Arte Urbana como Graffiti e Street
dência urbanística culturalista, do desenho Art
das cidades como desenhos com “arte”, in-
clui-se aqui também a dimensão do dese- Nesta categoria enquadram-se as designa-
nho pelo uso, pela necessidade, da arqui- ções de Graffiti subcultural e Street Art con-
tetura sem arquitetos51, que no contexto forme descrito supra, Graffiti da subcultura
português poderá apoiar-se em referências já referida dos anos 60, já que a designação
tão distintas como Orlando Ribeiro52, Raul Graffiti no sentido atribuído pelos arqueólo-
Lino53 ou o Inquérito à Arquitetura Popular gos de Pompeia enquadra-se no ponto an-
Portuguesa54. terior (2.3.1).

Signos visuais nas suas vertentes, isoladas É evidente que as produções de Graffiti e
ou conjugadas, de: ícones, índices (sinto- Street Art, com as suas formas e acções, são,
mas) e símbolos55. em grande medida, efémeras, destacando-
-se, sobretudo, pela sua visibilidade mo-
O âmbito espacial da produção informal mentânea; por este facto aumentando os
de signos visuais reflecte-se sobretudo na aspectos relacionados a acção e não tanto
dimensão de proximidade, aquela que é com a forma. Todavia, existem também ele-
alcançável fisicamente pelo utilizador na mentos que persistem ao tempo, padrões
sua vivência quotidiana. Nesta dimensão e locais de constante utilização, autores e
a arte urbana para além de ser de autor mundos relacionais do Graffiti da Street Art
anónimo, o próprio autor poderá estar na a analisar.
condição de não estar consciente da sua
produção. Esta tipologia é central na medida em que é
a partir dela que se justificam e estruturam
Arte Urbana como signo visual é abrangen- as restantes. É pela prevalência de Graffiti e
te, e inclui: caminhos de pé posto; carta- Street Art nas cidades em geral e em parti-
zes sem autorização; desgaste de escadas cular em Lisboa (quantidade anónima e de
causado pela passagem de utilizadores; qualidade questionável) que pressiona o
profusão de assinaturas (tags) em superfí- debate, análise e abordagem ao tema.
cies várias; etc. A identificação do seu valor
nesta dimensão será possível sobretudo Existe bastante informação disponível em
olhando para as características do suporte, termos internacionais, e também alguma
descurando a interpretação da mensagem, informação, em termos nacionais apesar

– PEDRO NEVES 129


de não totalmente sistematizada nomeada- fias que começam por surgir, também por
mente em publicações de caracter acadé- via internacional sobretudo associadas ao
mico. Iniciando por estas será de referir os “fenómeno” Vhils, publicações que, ape-
trabalhos de Ricardo Campos56 e Lígia Fer- sar de tudo, caem dentro da proposta de
ro57 como os iniciadores da análise desta ti- próxima tipologia de Arte Urbana.
pologia de Arte Urbana em termos acadé-
micos nacionais. 2.3.3 Arte Urbana como Street Art Murals,
Murais de Arte Contemporânea, Arte
Nas publicações não académicas encon- Pública e ou Urban Art
tram-se tentativas ainda no seio da sub-
cultura, quer de forma amadora quer de Foi e é afinal a partir desta tipologia, que de
forma estruturada pela primeira vez com a forma generalizada, a população contactou
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

revista Subworld. Para além de artigos vá- e contacta com a dimensão imediatamente
rios que durante os últimos anos de 1990 inteligível da Arte Urbana, que por vias que
foram animando a comunidade de prati- reconhecivelmente levaram a uma discutí-
cantes em franco crescimento, nos primei- vel valorização do Graffiti subcultural e da
ros anos de 2000 inicia-se um conjunto de Street Art (categoria descrita em 2.3.2).
publicações dedicadas e maior seriedade
com a Visual Street Pefromance, de 2007, É importante aqui esclarecer a dimensão
publicação que contou com prefácio de claramente consentida, comissionada, e
Martha Cooper58. Publicações com carác- ou suportada por instituições ou empre-
ter misto que abordam tanto a vertente sas, associada com maior ou menor intensi-
não comissionada como produções or- dade ao contexto de produção e consumo
ganizadas e apoiadas (por marcas, como, da “arte instituída” dialogando diretamente
por exemplo a Redbull). com agentes, galerias, colecionadores, mu-
seus, etc. Apesar de distinta na origem as
Também com carácter misto, encontra-se obras e autores são em tudo semelhantes
a publicação regular da GAU, apesar de, aquilo que se propõe afirmar no contexto
na generalidade, tratar informações de da arte contemporânea.
tipo comissionado inclui uma rubrica de
1 página denominada “observatório” com A produção académica nacional existente
obras não comissionadas. Da mesma for- de forma direta e exclusiva sobre esta ca-
ma, tendencialmente obras comissiona- tegoria é vaga, encontram-se alguns arti-
das com pequenos apontamentos de não gos isolados60, ou compilações pontuais61
comissionadas, já surgem edições recen- que, de certa forma, esbate-se com as ou-
tes de carácter comercial59. tras tipologias sugeridas. No âmbito das
abordagens a partir das problemáticas as-
Esse modelo de texto e publicação vai en- sociadas à Arte Contemporânea, existem
contrando veículo sobretudo em exposi- discursos próximos mas não coincidentes
ções temáticas e ou através de monogra- quer pelo angulo de pesquisa quer pela
abrangência da abordagem (como no Concretamente no contexto da interpre-
caso de Marta Traquino62). tação da Urban Art associada ao Graffiti
subcultural e à Street Art, a expressão sur-
O material publicado e informação dispo- ge identificada pela actividade comercial,
nível sobre esta categoria existe, principal- ligada à venda de obras de Street Art jun-
mente, editado numa perspectiva não aca- to de colecionadores, museus, galerias
démica e, em grande medida, constitui uma e agentes instituídos no mundo da arte.
vasta quantidade de informação por anali- Esta característica comercial da designa-
sar em bases de dados, online, ou em pu- ção Urban Art, fruto de ruptura dentro do
blicações impressas. A este nível há infor- mundo da Street Art, poderá ser analisa-
mação gerada no contexto da promoção da através do vasto conjunto de publica-
comercial de autores, obras, festivais e ex- ções apresentadas que estruturam o pen-
posições, mas também por instituições pú- samento em torno do Graffiti subcultural
blicas, privados dinamizadores e participan- e a Street Art.
tes do mundo da Arte Urbana.
Ficou claro que a interpretação de Arte
É de facto esta a categoria mais tangível e Urbana no contexto nacional é distinta
perceptível ao nível da facilidade de con- conforme os momentos como por exem-
servação, porem é simultaneamente a que plo a Arte Urbana de 1998 e a de 2008.
demonstra a homogeneidade clássica e tra- Se no contexto da Expo98 a Arte Urbana
ços distintivos do Graffiti e Street Art em re- estaria mais próxima de um sinónimo de
lação a outras vias de criação de artefactos. Arte Pública ou Escultura Pública (ou até
Por esta razão, sem o referente do Graffiti mesmo design urbano), já em 2008 a in-
subcultural ou Street Art (categoria descri- terpretação tem outros contornos.
ta em 2.3.2), dissolve-se em transformações
que a vão gradualmente tornando outra De forma distinta à da interpretação da
coisa (exemplo: Arte Pública, Arte Contem- designação internacional Urban Art a
porânea). Arte Urbana de 2008 não se afirma ini-
cialmente no contexto comercial, mas sim
3 – Conclusão no contexto institucional, especificamen-
te do Município de Lisboa.
Afinal do que se trata quando se refere Arte
Urbana? Em termos internacionais a desig- No assumir da expressão Arte Urbana em
nação tem um significado disperso por vá- 2008 é clara a intenção de englobar na
rias áreas de actividade, como, por exemplo, interpretação do termo significados pro-
em associação ao urbanismo, constituída venientes do modelo de urbanismo cultu-
tangivelmente sobretudo por planos dese- ralista, assim como é evidente englobar o
nhados e por um mundo de ideias e ideais Graffiti e a Street Art, deixando em aberto
relacionados com o modelo de urbanismo a relação com os termos Urban Art que à
culturalista. época carecia de desenvolvimento.

– PEDRO NEVES 131


Como síntese conclusiva, propõem-se 3 Negotiating Art Worlds, Urban
tipologias para a Arte Urbana de Lisboa Spaces, and Visual Culture, 1970-
(2008–2014): 2008, Diss. Montreal: Concordia
University. p.122
• Formação; Arte Urbana como desenho 6
Claudia Gould & Valerie Smith
da cidade e signos visuais; (1998) 5000 Artists Return to Artist
Space: 25 Years. New York: Artist
• Pré-formal; Arte Urbana como Graffiti e Space. p.68
Street Art; 7
Austin, Joe (2010).
8
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• Formal; Arte Urbana como Street Art dom: Subway Painters of New York
Murals, Murais de Arte contemporânea, e City. Jackson  : University Press of
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

ou Arte Pública; Mississippi. p.15


9
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p.2-3
— Notas 10
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1
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riet som bildform, konstrorelse och 11
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2
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policy, action February – April, nality, Boston: Northeastern, Uni-
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3
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4
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Aguiar, José, 2003, Planear e
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Mascarenhas, João Mário, (1998)
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Design Alliance. 30
Barr, Alfred (1936) Cubism and ca-Museu República e Resistência,
20
Por exemplo o livro sobre livros Abstract Art. New York: Museum of Lisboa
de C. Omodeo que contém a Modern Art. 39
Exposição Internacional de Lis-
referência e breve descrição de 31
Bengtsen, Peter (2014), p.67. boa de 1998[1] , cujo tema foi
mais de 400 publicações de ori- 32
Collings Matthew (2008), Banksy’s “Os oceanos: um património para
gem ou autoria italiana: Omodeo ideas have the values of a joke. NY: o futuro”, realizou-se em Lisboa,
,C. (2014) Crossboarding: an Ita- The Times, 28 de Janeiro Portugal de 22 de maio a 30 de
lian Paper History of Graffiti Writing 33
Assunto abordado por exemplo setembro de 1998. Teve o propó-
and Street Art, Le Grand Jeu, Parigi: em artigo de Eduardo Rodrigues sito de comemorar os 500 anos
LO/A Library of Art. de Carvalho sobre “O colorido dos Descobrimentos Portugueses.
21
Ganz, Nicholas (2004) Graffiti dos prédios de Lisboa”, publicado 40
Para mais informações sobre esta
World: Street Art from Five Conti- na Revista Municipal, n. º 3, 1949, medida consultar: http://www.bcn.
nents. London: Thames & Hudson. pp.11. cat/publicacions/b_informacio/
22
Chalfant, Henry y Martha Coo- 34
Com a participação de Pereira bi_93/convivencia_castella.pdf
per (1984) Subway Art. New York: Coelho, Abel Manta, Carlos (visitado em 12/10/2015)
Thames and Hudson. Botelho, Martins Barata, Diogo 41
Despacho sobre sobre regime
23
Mailer, Norman (1974) The Faith de Macedo, Norberto de Araújo, de horários para o Bairro Alto do
of Graffiti. New York: Praieger Publi- Armando de Lucena, Cristino da então Presidente da Câmara de
shing.. Silva, Paulino Montez, Gustavo Lisboa, António Costa, a 14 de
24
Caputo, Andrea (2009) All City de Matos Sequeira, e ainda o Outubro de 2008.
Writers: the graffiti diaspora. “anónimo” João Triste ; Sequeira, 42
Ver noticia (consultado a
Bagnolet: Kitchen93. M. (1949) A cor de Lisboa. Depoi- 12/10/2015) http://www.publico.
25
Almqvist, Bjorn & Sjostrand, mentos de Amigos de Lisboa. Lis- pt/local/noticia/plano-para-lim-
Torkel (eds.) (2008). Overground boa: Olisipo 45. par-bairro-alto-preve-processo-su-
3, Trans Europe Ex-press. Astra: 35
Aguiar, J. e Veiga, R. (editores), mario-para-graffiters-1345890
Dokument. Revestimentos de paredes em 43
Aprovada a elaboração do plano,
26
Cubrilo, Duro; Harvey, Martin; edifícios antigos, Cadernos Edifí- termos de referência, dispensa de

– PEDRO NEVES 133


avaliação ambiental e abertura do duction to non-pedrigreed archi- versidade de Lisboa, CIEBA, FCT,
período de participação pública tecture. London: Academy Edi- ed. CD-ROM.
preventiva, na reunião de Câmara tions. 62
Traquino, Marta (2010) A Constru-
de 21 de Julho de 2010, de acordo 52
Ribeiro, Orlando (1945) Portu- ção do Lugar pela Arte Contempo-
com a proposta nº 408/2010.Parti- gal, o Mediterrâneo e o Atlântico. rânea. Ribeirão: Edições Húmus.
cipação Preventiva de 26 de agosto Coimbra: Coimbra Editora.
de 2010 a 7 de outubro de 2010. 53
Lino, Raul, (1918) A Nossa Casa –
44
Ferro, Lígia (2011) Da rua para o Apontamentos sobre o bom gosto
mundo: configurações do graffiti e na construção de casas simples, Lis-
do parkour e campos de possibili- boa: Atlântica.
dades urbanas Diss. Departamento 54
AA.VV (1961) Inquérito à Arqui-
de Sociologia do ISCTE-IUL. p.209 tectura Popular em Portugal. Sindi-
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

45
Lobo,  Margarida  Sousa (1995) cato Nacional dos Arquitectos, Lis-
Planos de Urbanização. A Época de boa.
Duarte Pacheco, Porto: DGOTDU/ 55
Schaff, Adam (1968) Introdução
FAUP. p. 13 à semântica. Coimbra: Almedina.
46
José Manuel Ressano Garcia p.158
Lamas (2000) Morfologia Urbana e 56
Campos, Ricardo (2007) Pin-
desenho da cidade. 2ª ed., p. 152. tando a cidade. Uma abordagem
47
Regatão, José Pedro (2007) Arte antropológica ao graffiti urbano,
Pública e os Novos Desafios das Dissertação de Doutoramento em
Intervenções no Espaço Urbano. Antropologia, especialidade de
Lisboa:.Bond. Antropologia Visual, Lisboa, Uni-
48
Carvalho, Jorge Ramos; Câmara, versidade Aberta.
Silvia (2014) Lisboa, Capital da Arte 57
Ferro, Lígia (2011)
Urbana, revista On the W@terfront, 58
AA.VV. (2007) Visual Street Pefro-
nº30, Barcelona mance. Lisboa.
49
Esta brochura acompanha uma 59
Galeria de Arte Urbana de Lisboa
caixa com postais que reproduzem (GAU) (2014) Street Art Lisbon - Vol.
paineis executados na calçada da 1”, Zest, Lisboa.
glória, actividade promovida pela 60
Neves, Pedro Soares; Simões, D.
CML com o apoio da marca de ves- (Coord.) (2014) Lisbon Street Art
tuário Friday’s project em Outubro & Urban Creatvity, International
de 2008. Conference. Lisboa: Faculdade de
50
Choay, Françoise (2003) O Urba- Belas-Artes da Universidade de Lis-
nismo: Utopia e realidades de uma boa, CIEBA, FCT.
antologia; São Paulo: Editora Pers- 61
Quaresma, José (2013) Do Graf-
pectiva. p.115, p.203 fiti, Passado e Presente de uma
51
Rudofsky B (1964) Architecture Expressão de Risco, coord.. Lisboa:
without architects: A shoort intro- Faculdade de Belas-Artes da Uni-
Escultura e a Re-Simbolização do Espaço
Público no Pós-25 de Abril: A Evocação de
“Os Perseguidos” em Almada

por Sérgio Vicente


Assistente e doutorando na FBAUL. Mestre em Design Urbano pela
Universidade de Barcelona. Artista plástico e investigador em escultura,
cidadania e espaço público.

Sculpture in the process of re-symbolization of the


civic centre of the City of Almada, in the first years
after the 1974 Carnation Revolution, corresponded to Na sequência da destituição dos órgãos au-
a strategy of re-elaboration of collective memory. With tárquicos do Estado Novo em 1974, consi-
the renaming of streets and squares and the imposing dera-se o ano e data da Revolução como
of new forms and symbols on public space, there um marco para a escultura em Almada, por-
was an accelerated renewal of urban and historical que a partir desse momento preciso foi indi-
identity. After 1974, this meant a conflict between the gitada a Comissão Democrática Administra-
experience of the public space and the new narratives tiva Municipal1 que se manteve em funções
that sculpture pieces implemented upon it. até às eleições autárquicas de dezembro de
Departing from the history of the monument “The 1976 e o Poder Local iniciou a encomenda
Persecuted” (1979), we will analyse the most de escultura pública e, ao mesmo tempo, se
significant socio-territorial factors in the municipality deu início ao processo de substituição dos
of Almada that contributed to the monument’s símbolos do Estado Novo no concelho2. Os
affirmation as an identitary landmark in the city. novos símbolos da jovem democracia nas-
ceram então num claro exercício de supres-
são da identidade fascista do espaço públi-
co da cidade. Procurou-se criar uma nova
‘monumentalidade’ e novos espaços de
memória no ‘centro cívico’ almadense.

Entre 74 e 76, a Comissão Administrativa do


concelho de Almada, em consonância com
o ambiente revolucionário, delineou em
confronto com a realidade urbanística do

– SÉRGIO VICENTE 135


concelho, além de medidas que visaram a concelho. As novas formas de organização
alteração da forma de gestão territorial, um popular3, que contribuíram sobremanei-
processo político associado de gestão sim- ra para o estabelecimento de modelos de
bólica do espaço através da arte, com refle- governação participativa local, ganharam
xos diretos sobre os elementos de retenção forma com a constituição de Comissões de
da memória do espaço urbano herdado do Trabalhadores, Assembleias Populares ou
Estado Novo. Uma atuação de forte pendor Comissões de Moradores, por exemplo.
interventivo sobre o território, que impôs Oliveira (1996: 353) sustenta que as Co-
uma direção na evolução da imagem urba- missões de Moradores foram fundamentais
na da cidade até hoje. Desenvolveu-se um para a rutura com o corporativismo base da
processo de apagamento dos elementos forma de organização do poder local que
de memória anterior a 25 de Abril de 1974, vinha do antigo regime. E permitiram, com
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

através da substituição do nome das arté- a sua dinâmica popular, levar à comunidade
rias conotadas com o tempo da ditadura o esclarecimento político e o debate sobre
por novos nomes identificados com a resis- o planeamento urbano local em novas for-
tência antifascista e ou evocativos dos valo- mas de organização comunitárias.
res da Revolução. E não foi por acaso que as
primeiras esculturas fossem colocadas no Foi neste momento de profundas alterações
centro cívico de Almada em 1974 e 1979. nos modos de relacionamento, de aproxi-
mação à realidade social, que se atuou na
Em Almada sentiu-se bem toda a capacida- transformação direta do espaço urbano. As
de de iniciativa do período revolucionário. equipas que trabalharam no terreno eram,
A descentralização do aparelho de Estado em muitos casos, multifuncionais nas quais a
e a operacionalidade técnica do Município componente de animação cultural ganhava
contribuíram para que o ‘poder autárquico’ sentido interventivo junto das populações.
fosse consolidado em sintonia com a ‘mobi- O período revolucionário moldou a visão
lização popular’, de modo a serem implan- e a ação de muitos artistas comprometidos
tadas medidas mais focadas na procura de com as profundas alterações da realidade
formas alternativas de gestão administrativa social portuguesa a partir de 1974. Metafo-
com pendor participativo: um movimento ricamente, os resultados das ações coletivas
impulsionador de grandes avanços na salu- de grupos de artistas plásticos ou popula-
bridade e qualidade de vida mediante um res sobre esculturas públicas depois do 25
trabalho conjunto com as populações. Deu- de Abril, poderão ser encarados como o iní-
-se assim um primeiro passo para o contro- cio e fim de um período de ‘arte com a revo-
lo do processo de urbanização clandesti- lução’. Falamos do ato público do amorta-
na do concelho, aprovaram-se medidas de lhar da estátua de Salazar no Palácio Foz, “A
contenção das políticas urbanas herdadas arte fascista faz mal à vista”, no dia 28 maio
do antigo regime e, por outro lado, pro- de 1974, pelo Movimento Democrático dos
moveram-se políticas de infraestruturação Artistas Plásticos4. E no lado oposto da revo-
e saneamento em áreas problemáticas do lução, em fevereiro de 78 a tentativa de re-
colocação da cabeça na estátua de Leopol-
do de Almeida alusiva a Salazar, em Santa
Comba Dão, por um grupo de cidadãos, um
ano depois de Portugal ter pedido oficial-
mente a adesão à CEE (5 de abril de 1977)5.

Neste período pós-25 de Abril a admi-


nistração técnica e política municipal não
deixou de encarar a necessidade de intro-
duzir elementos de arte urbana re-simboli-
zando o território. Foi até à década de 80,
que em áreas urbanas reconvertidas, veri- Bairro Clandestino na Quinta da Alegria. Cacilhas, década de 70.
Fotografia: Júlio Diniz | Cedência: Museu da Cidade/ Câmara Municipal
ficam-se as homenagens civis (por subscri- de Almada
ção pública) a personalidades almadenses
como o médico José Pessoa, com um pro-
jeto de Lagoa Henriques e Manuel Carga-
leiro. Ficaram também o Monumento ao
Bombeiro, de Anjos Teixeira, bem como a
evocação de Fernão Mendes Pinto, assina-
lando em 1983 o quarto centenário da sua
morte, e para a qual se retomou uma en-
comenda a António Duarte para na praça
S. João Batista, feita em 1973. E ensaia-se,
igualmente, um controverso concurso pú-
blico para o Monumento ao Pescador na
Costa da Caparica.

Em Almada há uma diferença clara na for-


ma como a jovem democracia gerou o seu
espaço simbólico em relação ao Estado
Novo. O regime salazarista convocou os
seus símbolos de forma impositiva, pressu-
pondo uma conceção ideológica sobre a
organização do espaço público e a forma
como se organizam e leem os seus símbo-
los na malha da cidade. O Poder Local, sob
a égide da Comissão Administrativa, teve
na génese da sua intervenção urbana o
uso dos símbolos do novo regime, ou seja,
convocou os valores do ‘Povo’ na constru-

– SÉRGIO VICENTE 137


ção dos seus primeiros marcos representa- Pacheco e coadjuvadas pelo autoritarismo
tivos e logo no ‘centro cívico’ da cidade do do regime, se mostravam em conformidade
Estado Novo. com o dito modelo de espaço”.

Por outro lado, está presente nesta nova Em Almada, o processo de urbanização do
realidade a dimensão política, e por con- Centro Cívico foi sinónimo da hierarquiza-
seguinte de expressão de poder, que as ção funcional e morfológica da vivência da
potencialidades de efabulação simbólica cidade. Isto é, a visão planificadora de De
do espaço vão permitir ao novo regime, Gröer previu o assento das classes sociais
já que a identidade coletiva encontrou os segundo critérios de estratificação social.
seus ecos na forma como o espaço se reor- As classes trabalhadoras e porventura mais
ganizou ao nível simbólico. pobres, que procuravam as rendas baixas
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

e as habitações mais próximas da indústria,


O Centro Cívico de Almada6 foi sujeito à num concelho de imanente vocação indus-
mais forte ação ideológica depois da data trial como era então o de Almada, viam-se
da Revolução por parte dos governantes lo- empurradas para zonas periféricas do cen-
cais. De facto, o paradigma de cidade preco- tro cívico em bairros operários ou casas
nizado por Etienne De Gröer para Almada7, económicas. Como o foram mais tarde o
que encontrara eco nos gabinetes gover- Bairro de Nossa Senhora da Conceição na
namentais do Estado Novo, constituiu-se zona do Pombal, inaugurado em 1952, na
ao nível da identidade urbana como a mais Cova da Piedade. Para a classe média que
pesada herança para a jovem democracia. se fixaria em torno da área central, propu-
Souza Lôbo (1995) defende, a este propósi- nha-se, por exemplo, a ocupação de habi-
to, que o pensamento urbanístico da déca- tações com rendas de custos controlados
da de 40 e princípios de 50, sob a influência que ladeiam as principais avenidas, já que
da presença de Etienne De Gröer, esteve esses grupos, mantendo embora uma es-
imbuído do modelo da ‘cidade jardim’ de treita relação laboral com Lisboa, encontra-
Ebenezer Howard. Ao que não é alheio o vam na apetecível relação bucólica com a
facto de De Gröer ([1946] 2004) considerar periferia, o local ajustado a uma visão dou-
que a visão de Howard do urbanismo seria trinária de qualidade de vida em família.
o alicerce do urbanismo moderno. Cristina
Cavaco (2009: 171) acrescenta que Na sua organização funcional, o ‘centro cí-
vico’ foi o local onde foram implantados os
“(...) enquanto se procurava passar para o principais equipamentos públicos de forte
espaço construído essas mesmas diligên- carácter simbólico para o regime. Assim,
cias formais e conceptuais, havia mecanis- esquematicamente, ‘rasgou-se’ uma gran-
mos operatórios e diretrizes políticas que, de praça que, de forma marcante, repre-
no quadro das bases doutrinárias do urba- senta o poder. E é ali que encontramos o
nismo moderno em Portugal, desencadea- antigo Largo Cavaleiro Ferreira, agora Ga-
dos pelo empreendedorismo fundador de briel Pedro, associando-lhe esquematica-
mente a presença do jardim público, tribu-
nal, bombeiros, igreja e mercado.

Em 74 a Comissão Administrativa, pressio-


nada para agir no imediato, atribuiu logo
em Maio à Comissão de Problemas Locais
do Movimento Democrático do Concelho
de Almada8 a responsabilidade de sugerir
as alterações toponímicas que entendesse
necessárias e elaborar e propor a lista de Plano Parcial de Urbanização de Almada: Relativo à
Localização do Centro Cívico e Zona Imediata.
nomes que deveriam ser dados às ruas, lar-
Fonte: Arquivo Histórico da Cidade de Almada
gos e praças nesta área urbana de Almada.

Em 4 de julho, o edital da comissão propo-


ria que a Rua Oliveira Salazar e a Av. Fre-
derico Ulrich passassem a denominar-se,
respetivamente, Rua da Liberdade e Av. 25
de Abril. Do mesmo modo, o Largo Cava-
leiro Ferreira passaria a nomear-se Largo
Gabriel Pedro. Por seu turno, em Cacilhas,
o Largo Costa Pinto passaria a chamar-se
Largo Alfredo Dinis (Alex). Em Agosto, e já
com a nomeação de uma Comissão Muni-
cipal de Toponímia9 propor-se-ia para a fre-
guesia de Almada a alteração dos nomes
da Praceta Henrique Tenreiro para Dr. Ar-
lindo Vicente e o Jardim Sá Linhares para
Jardim Doutor Alberto Araújo10; a Praça da
Renovação passaria a Praça do Movimento
das Forças Armadas11, cujo nome foi alte-
rado em homenagem ao MFA, numa inicia-
tiva pública realizada no dia 25 de agosto
de 197412.

Com este processo administrativo as princi-


pais artérias e praças que delimitam o cen-
tro cívico foram sujeitas a um ato de am-
nésia forçada num importante campo de
afirmação simbólica no fascismo. É eviden-
te que esta ação pressupôs que o Estado

– SÉRGIO VICENTE 139


Novo e os seus órgãos de gestão adminis-
trativa local interpretassem de forma eficaz
o modelo morfológico que o plano de ur-
banização do centro cívico preconizava, ao
propor uma nomenclatura fortemente ideo-
logizada para as principais artérias da ‘nova
Almada’, e deste modo, exacerbar e selar o
sistema doutrinário inscrito no modelo de
desenvolvimento do planeamento urbano
e enaltecer os seus intérpretes. Atribuíram
Em Cacilhas, desde 4 de julho de 1974, o Largo Costa de forma seletiva o nome de avenidas a fi-
Pinto passaria a chamar-se Largo Alfredo Dinis (Alex).
guras de destaque do regime e a praças no-
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

Cedência: Museu da Cidade/ Câmara Municipal de Almada


mes de figuras ligadas ao regime local, rea-
lidade à qual a jovem democracia esteve
atenta e rapidamente procurou converter e
atualizar dentro dos novos valores.

O significado da escultura para a adminis-


tração local pós-25 de Abril, deverá ser en-
tendido segundo duas realidades: ou foi
uma expressão mais radical da cidadania
com raízes na vontade popular, sendo a ad-
ministração um simples agente de viabiliza-
ção legal da iniciativa; ou foi, por outro lado,
uma ação impositiva, vista de cima para bai-
xo, uma visão administrativa na construção
de uma nova e fundacional identidade ur-
bana. Brandão (2008: 17) salienta que a
arte pública teve sempre um papel impor-
tante na organização simbólica da cidade
e é, portanto, uma ferramenta política ape-
tecível para um poder dominante. Mas, por
outro lado, o mesmo autor também lembra
que a democracia hoje, na sua génese, con-
voca a população para a construção dos
seus símbolos de representação pública.
Mais do que a afirmação de valores simbóli-
cos construídos pela administração pública,
a dimensão democrática da arte no espaço
público deve ser feita pela participação de
todos na sua construção. Argan (1993:255) interveio quando se chegou ao processo de
já salientara a impossibilidade de se discutir instalação da obra no antigo Jardim Sá Li-
a possibilidade da escultura sem a confron- nhares17, que fora renomeado em Agosto
tar com o ambiente urbano que a abarca: de 1974 como Jardim Doutor Alberto Araú-
jo, e que viria a receber o busto18 deste,
“(...) a cidade está para a sociedade assim concebido por Vasco da Conceição em De-
como o objeto está para o individuo. A so- zembro do mesmo ano19.
ciedade se reconhece na cidade como o
individuo no objeto; a cidade, portanto, é O busto seria realizado pelo escultor que
um objeto de uso coletivo. Não só isso, a já participara na conceção do ‘incomple-
cidade também é identificável com a arte to’ monumento ao Estatuto Nacional do
porquanto resulta objetivamente da con- Trabalho para a Costa da Caparica, no 10º
vergência de todas as técnicas artísticas na aniversário da colónia de férias ‘Um Lu-
formação de um ambiente tanto mais vital gar ao Sol’, da FNAT, em 1948. Vasco da
quanto mais rico em valores estéticos”. Conceição deixou bem vincado, nos anos
40, e aproveitando a temática e o contex-
Provavelmente, o modelo de implantação de to da execução da obra na colónia de fé-
escultura na cidade apostou numa decisão rias, o seu comprometimento estético e
compartilhada entre a administração local e a principalmente político com o neorrealis-
população nos anos subsequentes à Revolu- mo, confrontando as estruturas da FNAT
ção. Não é obra do acaso o facto de a maior e da organização corporativa do trabalho.
parte dos monumentos da primeira década No entanto, aquela que foi a sua primeira
de democracia terem sido inaugurados pela obra em Almada em democracia não tem o
administração local sob a bandeira da subs- mesmo fulgor da anterior: pareceria que o
crição pública, à qual esteve normalmente resultado estava amarrado ao comprome-
associada uma comissão promotora consti- timento político que a homenagem impu-
tuída por ilustres personalidades locais. nha no momento da Revolução.

O primeiro exemplo é a homenagem pres- As celebrações ocorreram no dia 14 de de-


tada ao cidadão almadense Alberto de zembro de 74, e consistiram numa marato-
Araújo, passados poucos meses após o 25 na de descerramento de placas evocativas
de Abril. Neste caso, a Comissão Democrá- de Alberto de Araújo. Uma no Pragal (Bairro
tica Administrativa da Câmara Municipal do Matadouro) e outras na Costa da Capa-
de Almada associou-se a uma comissão de rica, na Charneca da Caparica, na Cova da
democratas do concelho13 encarregada de Piedade, na Sobreda da Caparica e no Mon-
promover uma subscrição pública14. Era en- te de Caparica. E seria mais tarde, pelas 16
cabeçada por José Alaiz15 e tinha por obje- horas do mesmo dia, no jardim com o mes-
tivo evocar a vida e resistência ao fascismo mo nome em Almada, que se inaugurou o
de um destacado almadense, membro do seu busto na presença de elementos do Co-
Partido Comunista Português16. O Município mité Central do PCP, das Juntas de Fregue-

– SÉRGIO VICENTE 141


sia, da Comissão Democrática Administrati-
va da CMA, seguindo-se a homenagem no
cemitério local.

Com a conclusão do processo do busto de


Alberto Araújo, a Comissão Administrativa
da autarquia recebeu da Comissão Organi-
zadora da Homenagem o relatório final da
comissão que aponta a existência de um
excedente monetário da subscrição públi-
As celebrações de homenagem a Alberto de Araújo ca. Este facto vem demonstrar que esta ini-
ocorreram no dia 14 de Dezembro de 74, no jardim com o
ciativa foi suportada por uma vontade po-
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

mesmo nome em Almada.


Cedência: Museu da Cidade/ Câmara Municipal de Almada pular legitimadora, que não teve paralelo
em iniciativas futuras. As obras que a edi-
lidade decidiu encomendar depois e mar-
cadas por forte pendor político, estiveram
sempre amarradas a comissões promoto-
ras que, diga-se, não aparentam ter tido
por base a iniciativa popular. Estas comis-
sões funcionaram, principalmente, para o
executivo diluir o peso político da iniciativa
autárquica. Foi assim que passados cinco
anos, em 1979, bem no centro da cidade
programada pelo Estado Novo, na central
Praça do Movimento das Forças Armadas
Postal ilustrado da década de 60, da Colónia de Férias
(Praça da Renovação até agosto de 1974)
‘um Lugar ao Sol’. Com o Monumento comemorativo do
Estatuto do Trabalho Nacional e do 10º Aniversário’ da foi inaugurado o Monumento aos Perse-
colónia da FNAT, obra de Vasco da Conceição de 1948. guidos, de Anjos Teixeira, com o intuito de
Cedência: Museu da Cidade/ Câmara Municipal de Almada
homenagear ‘todos os homens e mulheres
vítimas da perseguição fascista’ e não o
Monumento ao Trabalho de Joaquim Cor-
reia com projeto de 1974, contratualizado
em vésperas da Revolução.

O monumento nasceu sob controvér-


sia e foi legitimado politicamente a partir
de iniciativa autárquica na forma de uma
comissão cívica e de uma inconsequente
subscrição pública.
O monumento Os Perseguidos e uma simbólica da obra estava no facto de esta
nova organização simbólica da cidade ter sido feita sem qualquer traço de enco-
menda e apenas em reação à situação polí-
Tinham passado três anos sobre a Revolu- tica que se vivia no momento, um protesto
ção, e no primeiro ano de mandato de José à ‘farsa’ eleitoral de Marcelo Caetano, coin-
Martins Vieira na Presidência da Câmara cidindo com um ano em que a repressão
de Almada, após as primeiras eleições li- mais se fez sentir no concelho22.
vres para o Poder Local em 1976, o Jornal
de Almada, na sua edição de Novembro de Assim, decidiu a autarquia adquirir a obra
197720, noticiava que o Município manifes- de Anjos Teixeira que seria inaugurada em
tara publicamente a vontade de erigir uma 1979, dez anos passados sobre a sua conce-
nova estátua para Almada. ção. O local escolhido para implantar a es-
cultura foi o Largo do Movimento das For-
Foi o vereador da Cultura, o jovem Francis- ças Armadas no coração do centro cívico de
co Simões21, que acabara de concluir o cur- Almada, embora se salientasse na proposta
so de Escultura na Academia de Música e levada a reunião de Câmara23, que a esco-
Belas Artes da Madeira e que naturalmen- lha deste local não se sustentava numa de-
te se terá cruzado com o professor escultor cisão, mas era uma mera sugestão, estando
Pedro Anjos Teixeira naquela instituição, o local definitivo dependente de uma aus-
confrontou-se com a existência de uma sua cultação popular que nunca ocorreu.
escultura denominada ‘Os Perseguidos’, de
1969. Esta terá sido concebida por Anjos À data da inauguração ainda não se con-
Teixeira como ‘obra protesto’ em solida- seguira reunir a verba total para cobrir os
riedade para com os homens e mulheres custos para a realização do monumento,
do povo e com os intelectuais antifascistas angariada através de uma subscrição pú-
perseguidos pela ditadura. Respondendo blica24, assumindo assim a contribuição vo-
na perfeição ao sentimento da viva home- luntária dos cidadãos como forma coletiva
nagem dos almadenses a todos os antifas- de homenagem aos seus conterrâneos an-
cistas locais. tifascistas. Este assunto trouxe alguma con-
trovérsia em sessão de Câmara, já que, no
A história desta escultura funde-se com a momento de discussão da aprovação do
história do próprio escultor. Pedro Anjos valor de encomenda da fundição, o verea-
Teixeira foi um opositor assumido do regi- dor Jorge Martins fez uma declaração de
me fascista. Este já sentira na pele os efei- voto, destacando na ocasião a necessida-
tos da perseguição e saneamento político. de de o dinheiro investido poder ser apli-
E o vereador aconselhou a sua aquisição cado em outras rubricas mais prementes,
num contexto local de reafirmação dos va- além de salientar que estava em curso uma
lores da revolução e exacerbação da cultura subscrição pública e era necessário esperar
como uma conquista do novo poder local pelos resultados da angariação para perce-
eleito. Além disso, um fator de valorização ber que tipo de investimento o Município

– SÉRGIO VICENTE 143


teria de fazer. No entanto, a Câmara confir- “(...) os representantes do Partido Socialis-
mara a decisão ao adjudicar à empresa de ta na AFCP lembram todos com saudade e,
fundição de bronzes artísticos – Bernardino em sua memória propõem: 1º- Que seja eri-
Inácio Leite —, a fundição da escultura dos gido na freguesia da Cova da Piedade um
Perseguidos25, justificando que o valor da monumento em recordação daqueles que
Cultura26 é um bem primário a promover. tombaram pela causa da liberdade. 2º- Que
Além disso, havia o intuito de a sua inaugu- este monumento seja feito por subscrição
ração coincidir com o aniversário da cidade pública. (...) Esta proposta foi aprovada por
no ano de 1979. unanimidade dos presentes, e transcrita na
ata n.º 5 do diário das sessões da Assem-
As controvérsias políticas em torno do mo- bleia de Freguesia da Cova da Piedade”.
numento não acabaram aqui. Em sessão de
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

Câmara a 6 de julho do mesmo ano, uma A proposta fora aprovada em Assembleia


moção denominada Inauguração do Monu- Municipal, e afirmava-se que a presidência
mento aos Perseguidos27, os vereadores Ar- da autarquia fez sua a ideia de um monu-
tur Cortez, Hortênsia de Sousa, Domingos mento de homenagem àqueles que luta-
Jacinto e José Ribeiro mostraram a sua in- ram pela liberdade. Subentende-se que a
satisfação pelo sigilo com que todo o pro- presidência, tendo tido conhecimento da
cesso de aquisição e implantação foi desen- escultura de Anjos Teixeira, encomendou,
volvido. Salientaram que a escolha do local num ato de antecipação política, uma cópia
de implantação esteve até ao último mo- em bronze da obra.
mento sob segredo, contrariando a aber-
tura para a auscultação pública prometida, O monumento foi inaugurado no dia 24 de
tal como toda a documentação inerente à junho de 1979, pelas 10 horas da manhã,
inauguração do respetivo monumento. Por integrado nas festas da cidade de Alma-
outro lado, vincavam que para a inaugura- da, e o Boletim Municipal faz referência ao
ção era evidente no protocolo a parcialida- monumento como um caso único na nova
de da representação social e política. Pelos Democracia29 e valorizar-se-ia a obra a ser
documentos, adivinha-se que esta foi uma inaugurada na principal artéria da cidade
investida política concertada pela oposição como o único monumento aos persegui-
na Câmara, já que na edição do mesmo dia, dos pelo fascismo erigido, ao tempo, na Pe-
o Jornal de Almada28 publicava um texto nínsula Ibérica30.
no qual se lembrava que em data anterior
à aprovação da ideia de erigir um monu- Já se tinha conhecimento de quem esta-
mento aos antifascistas pelos órgãos cama- ria oficialmente presentes na cerimónia, a
rários, uma moção apresentada pelo grupo partir de informações recolhidas em confe-
socialista da Junta de Freguesia de Cova da rência de imprensa nos Paços do Concelho
Piedade, já o propusera. Ou seja, por representantes da Câmara e da União
de Resistentes Antifascista Portugueses,
dias antes da inauguração: “O descerra-
mento será feito por um coletivo de forças
democráticas, representado por um operá-
rio corticeiro, um intelectual, uma mulher,
um representante dos mais sacrificados na
luta pela liberdade e por um jovem”31 re-
latava-se na sessão. Foram também desta-
cados os nomes de antifascistas carismáti-
cos, como Cândido Pires Capilé, morto a
tiro numa artéria da cidade, Alberto Araú-
jo, que sucumbiu aos maus tratos na prisão
e já fora homenageado em Almada, Álva- Ato inaugural do monumento Aos Perseguidos, no dia
24 de junho de 1979, na Praça do Movimento das Forças
ro Ferreira e Augusto Valdez que passaram
Armadas, integrado nas festas da cidade de Almada.
longos anos no Tarrafal. Fonte: Flores (1985: 255)

Martins Vieira32 referiria no ato inaugural


que, passados dez anos sobre os aconteci-
mentos de 69, o monumento impunha-se
na cidade como “(...) uma página de resis-
tência”33. Não deixando de fazer uma refe-
rência à motivação política que levou Anjos
Teixeira a realizar a obra e o facto de centrar
o discurso sobre o autor, deu espaço para
que as interpretações e leituras da obra
por parte do público estivessem ancoradas
num sentimento solidário com as causas do
artista e não com o confronto com o realis-
mo pouco sedutor de uma manifesta home-
nagem aos antifascistas almadenses. A este
prepósito Pereira (2005: 578) constata que
obra no percurso de Pedro Anjos Teixeira
evidencia-se por “(...) uma excessiva mode-
lação das massas musculares, a par do seu
pendor classicizante”. Que só encontra pa-
ralelo numa outra sua obra de 1935: ‘Ho-
mem a lutar com o polvo’.

Sobre o autor da obra, os vespertinos refe-


riam que Anjos Teixeira34, professor da Es-
cola Superior de Belas Artes na Madeira, ti-
nha inúmeros trabalhos em praças públicas

– SÉRGIO VICENTE 145


no país e na União Soviética. E valorizavam o tamentos sociais assumidos por incentivo
facto de “se tratar de um trabalho sem o ca- camarário, nomeadamente as comemo-
rácter de encomenda, mas sim com a força rações anuais do 25 de Abril, sob o peso
de quem vivia e sentia diretamente as preo- da memória da resistência antifascista do
cupações do povo português”35, sendo o monumento ‘Os Perseguidos’, confirma a
seu universo de referências o mundo do tra- ideia segundo a qual é no espaço públi-
balho e dos seus representantes36. co, e nas diversas formas de o apropriar
que se constrói a identidade urbana. Um
O monumento foi inaugurado com a guarda processo social de desenvolvimento as-
de honra de um grupo de antifascistas tarra- sente na consumação da vida quotidiana,
falistas37 no centro da Praça, que foi sujeita a ou seja, a partir das relações sociais esta-
renovação, calcetada à portuguesa com mo- belecidas e na atividade das pessoas em
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

tivos inspirados nos símbolos das ex FEPU e função dos usos sociais do espaço urbano.
APU, ou seja, losangos e argolas38. E foi no Pol & Valera (1999: 6) apontam ainda que
embasamento da escultura que se inscre- a identidade constitui-se como uma ação
veu, ‘Aos que deram a liberdade e até a pró- de mediação, interação entre o sujeito e o
pria vida pela liberdade dos outros’. espaço. Neste sentido, a identidade social
urbana (Brandão, 2008: 15) constrói-se no
Constata-se que o monumento é ainda sentimento e na relação de pertença a um
hoje referência identitária por todos aque- ambiente, seja o lugar ou a cidade que re-
les que se vêem representados nos valores conhecemos. E no caso de Almada, a au-
democráticos que a revolução despoletou tarquia foi o agente que forçou a recons-
em Almada (Vicente, 2006: 12). A Praça é trução da identidade urbana depois de 74.
hoje o espaço no qual as manifestações
coletivas ganham maior carga emocional O monumento impôs-se durante muito
nas comemorações anuais da data da re- tempo como um pilar urbano da identida-
volução de 1974, tal como continua a ser o de pós-25 de Abril. Num momento em que
local onde uma franja da população se ma- para algumas franjas da população a obra
nifesta em momentos de crise política. O ainda enaltece e glorifica um sentimento
monumento veio assumindo deste modo comum de uma história de lutas e resistên-
uma posição urbana de inequívoco valor cia, as obras do metro de superfície realiza-
identitário. das a partir de 2003 no concelho de Almada
e Seixal, provocaram profundas alterações
Ou como refere Ribeiro (2005: 44), a obra nas avenidas Dom Afonso Henriques e Dom
de Pedro Anjos Teixeira continua a ser o Nuno Álvares Pereira, obrigando ao desvio
monumento mais representativo do con- do monumento para uma lateral da Praça
celho, no qual a autarquia reconhece uma do MFA em 200739. Passados 28 anos e com
herança histórica que é fundamental re- base em opções técnicas de desenho urba-
cordar. E facilmente reconhecemos que no, o monumento aos Perseguidos perdeu
a ritualização de determinados compor- irremediavelmente o peso simbólico da sua
centralidade inicial, passando agora a com-
petir com os outros equipamentos do espa-
ço público por um protagonismo identitário
e urbano de outros tempos.

A Escultura na cidade: a reconstrução


da memória

Os novos órgãos autárquicos não enceta-


ram, logo em 1974, uma política de abafa-
mento e ocultação dos elementos escultó-
ricos de simbologia fascista na cidade. Os O monumento Aos Perseguidos em 2007, na Praça do
pouco relevantes monumentos preexisten- Movimento das Forças Armadas em Almada.
Fonte: Anabela Luís/ Câmara Municipal de Almada
tes estavam predominantemente ligados a
causas civis. No entanto, consideramos o
Monumento aos Mortos do Ultramar na Tra-
faria, como aquele que foi sujeito à elimina-
ção dos seus símbolos fascistas pela ação
política revolucionária.

Por outro lado, o processo de urbanização


de Almada no Estado Novo não trouxe con-
sigo, como refere Helena Elias (2006), os
monumentos de cariz historicista, idealiza-
dos para os novos centros de vilas e cidades
sujeitas a plano de urbanização. Na verdade,
a estatuária do Estado Novo, principalmen-
te no contexto do Ministério das Obras Pú-
blicas e dos Planos Gerais de Urbanização,
nunca tinha chegado à margem esquerda
do Tejo: não está demonstrado ter sido pro-
posta no âmbito do Ministério das Obras Pú-
blicas, aproveitando o incentivo às artes sob
a égide do Estado, a introdução de monu- Fotografia do Monumento aos Mortos no Ultramar na
Praça da República na Trafaria hoje sem as inscrições em
mentos no Centro Cívico que acompanhas-
bronze sobre o plinto.
sem o acerto do espaço público de Almada Cedência: Museu da Cidade/ Câmara Municipal de Almada

com os parâmetros ideológicos do regime.

Foi no início dos anos 70 que se deu a ele-


vação de Almada à categoria de cidade, a

– SÉRGIO VICENTE 147


21 de junho de 197340. E foi nesse momen-
to que a autarquia apostou numa política
de afirmação estratégica da recém-criada
cidade, e lançou as bases para um ansiado
programa monumental. O número de enco-
mendas de escultura aprovadas em reunião
da Câmara até ao 25 de Abril de 1974, não
só vinha marcar o chão da nova cidade com
elementos escultóricos de valorização patri-
monial e urbanística, como visavam enalte-
cer os valores culturais e principalmente um
Inauguração do monumento a Fernão Mendes Pinto, a dia passado histórico comum. A homenagem
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

31 de dezembro de 1983, no Pragal.


Cedência: Museu da Cidade/ Câmara Municipal de Almada
a personalidades reconhecidas naturais de
Almada seria o ponto mais alto da afirma-
ção da nova cidade.

Foi com a época marcelista e num momento


de maior autonomia política na área autár-
quica, que se possibilitou a conjugação de
esforços intermunicipais para que o Municí-
pio de Lisboa e a administração da penín-
sula de Setúbal patrocinassem algumas das
propostas de monumentos para Almada41.

Os monumentos encomendados no oca-


so do regime42 foram programaticamente
reassumidos pelos orgãos de gestão demo-
crática e construídos sob um novo prisma
ideológico, num contexto urbano diferen-
ciado e por outros escultores. A este res-
peito Meecham & Sheldon (2004: 549-568)
referem que os monumentos são um lugar
de ritualização de comportamentos cole-
tivos. Em Almada perceber-se que embora
o tempo de realização das obras seja outro,
identificam-se as mesmas temáticas simbóli-
cas que são difundidas e compartilhadas pe-
los seus habitantes. Valores que contribuem
para a afirmação identitária ou, pelo menos,
de uma memória coletiva portadora de um

– SÉRGIO VICENTE
léxico próprio ao qual subjaz a expressão ou cebemos a imposição de símbolos como
construção cultural de uma comunidade. uma acelerada experiência constitutiva da
identidade do espaço urbano, a qual sub-
Veja-se o Fernão Mendes Pinto, de António entende, uma conflituosa troca entre ex-
Duarte, uma encomenda do Estado Novo periência e novas narrativas inerentes à con-
para homenagear o navegador e escritor strução do espaço público.
no primeiro aniversário da cidade de Alma-
da em 1974, que inicialmente foi concebido Em Almada, ainda hoje, a identidade dos
para ser colocado sobre um aparato céni- lugares é indissociável do fortalecimento
co de jorros de água de uma fonte monu- de uma ‘memória histórica’, sendo deter-
mental e na Praça S. João Baptista, no prin- minante o domínio simbólico do espaço
cipal eixo da cidade, onde se construiriam público pela autarquia, ao implantar mon-
os novos Paços do Concelho. Ali apresen- umentos de cariz politizado, influenciando
tava-se como um objeto impositivo na ci- e estabelecendo parâmetros significantes
dade, ou seja, a afirmação local, política e para a construção de uma memória do lu-
pública de uma instituição administrativa gar. Ou seja, a administração local foi con-
vital para o Estado Novo. E depois, já nos struindo ao longo de 40 anos uma narrativa
anos 80, o monumento acabou sobre um histórica própria, adequada à afirmação dos
plinto em betão vigoroso e simples, numa valores democráticos que o novo regime
relação compositiva aprovada provavel- em 1974 manifestou de forma contundente
mente por António Duarte e de acordo com sobre o espaço público.
os postulados compositivos do monumen-
to maquetado dez anos antes. Pressupondo
obrigatoriamente uma leitura do conjunto
de baixo para cima. E, agora localizado fora
do lugar de celebração do regime (o Cen-
tro Cívico), no sítio onde Fernão Mendes
Pinto terá vivido e morrido em 1583, no Pra-
gal, valorizou-se com a sua implantação a
dimensão humanizada do homenageado,
contrariando o inicial pendor historicista e
celebratório da ditadura.

Os novos monumentos na cidade a partir


de abril de 1974 corresponderam na sua
génese programática a uma estratégia de
reposição de memória coletiva, ao que se
associa o facto de se renomearem ruas e
praças, e se imporem novas formas, símbo-
los de substituição no espaço público. Per-

– SÉRGIO VICENTE 149


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culano Rodrigues Pires e Nuno cionais existentes no concelho. 10
Câmara Municipal de Almada
Manuel Perfeito Cabeçadas. No 4
Deste movimento fazia parte, (1974, Ago. 8). Reunião de Órgãos
dia 23 de maio a comissão entrou entre outros, Rogério Ribeiro, um Autárquicos. (Atas). (Livro 85, fl.
em atividade até ao dia 12 de dos seus fundadores e poste- 41-42).
dezembro de 1976, data das riormente ligado de forma intensa 11
Câmara Municipal de Almada
primeiras eleições para as autar- a Almada. (1974, Ago. 16). Reunião de
quias. 5
Como salienta Oliveira (1996: Órgãos Autárquicos. (Atas). (Livro
2
Importa referir que sobre este 362) a adesão à CEE na perspec- 85, fl. 48).
assunto, Ricart & Remesar (2014) tiva de Mário Soares — Primeiro 12
Homenagem que tinha sido
discutem de forma impressiva Ministro vindo das eleições Legis- organizada pelos partidos políti-
as ‘estratégias da memória’ por lativas de 1976 — “(...) a inte- cos da Coligação Governamen-
parte da municipalidade de Bar- gração de Portugal no processo tal, com o apoio do Movimento
celona confrontada com a neces- de construção europeia impli- Democrático Português, do Movi-
sidade de equacionar o seu pas- cava uma tríplice garantia: era, mento da Juventude Trabalha-
sado através da gestão do seu em primeiro lugar, um acordo de dora e Movimento Democrático
património e da arte pública na regime entre aquelas forças polí- da Mulher. [Câmara Municipal de
cidade, num processo de nor- ticas que defendiam a democra- Almada (1974, Ago. 16). Reunião
malização histórica. A recupera- cia representativa; era, depois, a de Órgãos Autárquicos. (Atas).
ção de elementos ou monumen- ‘protecção’ exterior para o próprio (Livro 85, fl. 48)]
tos derrubados pelo franquismo, processo de consolidação e enrai- 13
Câmara Municipal de Almada
ou a eliminação dos monumen- zamento da democracia e, final- (1974, Dez. 12). Reunião de
tos franquistas e as homenagens mente, a afirmação de um novo Órgãos Autárquicos. (Atas). (Livro
realizadas na democracia, são posicionamento de Portugal no 141-142, Ata 47, fl. 2)
reflexo de uma política de atuação concerto das Nações”. 14
Destaque (1999, Jan.). Boletim
sobre o espaço público que vem 6
Arquitecto-Urbanista Etiénne De Municipal. (36), 2. Almada.
sendo desenvolvida sob o lema Gröer: Plano Parcial de Urbaniza- 15
José Alaiz, que viria a falecer
‘década da memória histórica’. Os ção de Almada Relativo à Localiza- nesse mesmo ano, esteve sempre
autores concluem que a política ção do Centro Cívico, 1947. ligado ao movimento associa-
de supressão de símbolos sem 7
Arquitectos-Urbanistas Etiénne tivo almadense. Foi fundador do
uma estratégia efetiva de regene- De Gröer e Faria da Costa: Plano quinzenário A Voz de Almada,
ração monumental do lugar, leva Geral de Urbanização de Almada, publicado pela primeira vez a 1
à permanência de espaços sem s/ data (2ª metade anos 40). de Janeiro de 1927.
memória. 8
Câmara Municipal de Almada 16
Alberto Emílio de Araújo foi uma
3
Como exemplo da importân- (1974, Mai. 30). Reunião de figura ilustre almadense, que viveu
cia das organizações populares Órgãos Autárquicos. (Atas). (Livro entre 1909 e 1955. Licenciado
diga-se que a 2 de fevereiro de 84, fl. 157v). em Filosofia Clássica e Estudos
1975 realizou-se a Assembleia 9
Câmara Municipal de Almada Canónicos, fez parte do Comité
Popular do concelho de Almada, (1974, Jul. 4). Reunião de Órgãos Central do PCP na clandestini-
reunindo 400 delegados das Autárquicos. (Atas). (Livro 84, fl. dade, e foi secretário geral após a
organizações populares e institu- 191). morte de Bento Gonçalves no Tar-

– SÉRGIO VICENTE 151


rafal. Foi redator principal do jor- Jan.). Autarquias Povo. (1). Almada. 28
Semedo, F. (1979, Jul. 06). O que
nal Avante! e colaborou na Seara 23
Câmara Municipal de Almada ficou por dizer na Inauguração do
Nova e noutras publicações de (1977, Out. 21). Reunião de Monumento. Jornal de Almada.
índole literária. Acabaria por mor- Órgãos Autárquicos. (Atas). (Livro Almada.
rer vítima das sequelas do des- 146, Ata 24, fl. 110) 29
Os Nossos Monumentos. (1978,
terro no Tarrafal. 24
O monumento aos Persegui- Jan.). Autarquias Povo. (1). Almada.
17
O Comandante Sá Linhares foi dos foi adquirido por subscrição 30
Monumento ‘Os Perseguidos’
presidente da Câmara Municipal pública para não sobrecarregar o inaugurado em Almada. Home-
de Almada entre 1947 e 1951, orçamento da Câmara, em: Monu- nagem do povo do Concelho aos
imediatamente anterior a Aquiles mento em Almada aos Perse- Resistentes Antifascistas. (1979,
Monteverde. guidos pelo Fascismo. (1979) O Jul./ Ago./ Set.). Autarquias Povo.
18
Transcrição do texto gravado Diário. Lisboa. (12). Almada.
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

na parte traseira do pedestal do 25


Esta adjudicação vem de des- 31
Almada ergue Monumento aos
busto: Vitima do fascismo ainda pacho da presidência de 5 de Perseguidos. (1979, Jun. 23) A
jovem; professor do liceu; foi ati- abril de 1978 e o valor em causa Capital. Lisboa.
rado para o Campo de Concen- foi de trezentos e cinquenta mil 32
Inaugurado monumento em
tração do Tarrafal onde suportou escudos para uma peça que no Almada aos perseguidos pelo fas-
todas as violências ali praticadas; final teria 2 metros de altura sobre cismo. (1979, Jun. 25) Diário de
poucos anos após a saída daquele base em pedra com 1,5 metros. Notícias. Almada.
campo da morte veio a falecer Em: Câmara Municipal de Almada 33
As lutas dos antifascistas
vítima de tuberculose agravada (1978, Mai. 19). Reunião de Órgãos Almadenses foram nomeadas
pelos trabalhos forçados a que foi Autárquicos. (Atas). (Livro 147, Ata pelo representante da União de
sujeito durante 8 anos. 11, fl. 110) Resistentes Antifascistas Portu-
19
Câmara Municipal de Almada 26
A Câmara Municipal realizaria gueses, Manuel Cabrita, bem
(1976) Relatório de atividades da posteriormente, já em 1982, qua- como as greves de 1942, 43, 45,
Comissão Administrativa. (16 de trocentas réplicas do monumento e 49, e o envolvimento entusiás-
maio de 1974 a 30 de novembro aos Perseguidos em material que tico dos Almadenses nas eleições
de 1976). Almada. imitasse o original com um assen- presidenciais de 58, apoiando
20
Uma estátua para Almada. tamento em mogno, isto para que a candidatura do general Hum-
(1977, Nov. 11). Jornal de Almada. o Município fizesse uso dos tro- berto Delgado, nas manifestações
Almada. féus como símbolo da cidade, a de rua de 1961 e 62 e nas cam-
21
Francisco Simões foi vereador partir da ideia de uma representa- panhas de 1969 e 1973. Também
da Câmara Municipal de Almada, ção identitária que a cidade pro- se evocaram as figuras de Alex
é natural de Porto Brandão, e assi- curava afirmar. Em: Câmara Muni- (Alfredo Dinis), Gabriel Pedro e
nava Francisco Simões escultor e cipal de Almada (1982, Jan. 08). Alberto Araújo, José Elias Garcia,
Francisco de Almada pintor. Em: Reunião de Órgãos Autárquicos. José Alaiz, José Carlos Pinto Gon-
Pintor e escultor. Francisco Simões (Atas). (Livro 151, Ata 1, fl. 13) çalves, Herculano Pires, Felizardo
é artista que orgulha terra natal. 27
CMA, Órgãos do Município, Artur. Reforçava-se assim a ideia
(1984, Jul., 25). A Capital. Lisboa. Câmara Municipal, Atas, Livro 148, de que o monumento era uma
22
Os Nossos Monumentos. (1978, Ata 14, fl. 258, 6 de julho de 1979 homenagem a todos os democra-
tas antifascistas, a ‘todos os perse- União de Sindicatos de Almada e a Trabalho, encomendado ao pro-
guidos’ pelo antigo regime. sobrinha do conhecido dirigentes fessor Joaquim Correia, aprovado
34
Para consulta da biografia de do PS, Edmundo Pedro. e mandado erigir na Praça da
Pedro Anjos Teixeira ver: Castro, I. 38
Inaugurado um monumento aos Renovação (atual Praça do Movi-
de. (2005). Anjos Teixeira, Artur e perseguidos. (1979, Jun. 29). Jor- mento das Forças Armadas) e
Pedro: vida e obra. Sintra: Câmara nal de Almada. Almada. um monumento ao Bombeiro, do
Municipal de Sintra. 39
A nova localização foi conside- arquiteto Castro Lobo.
35
“Os Perseguidos”: monumento rada pelo Município privilegiada 42
Três meses passados sobre
antifascista a inaugurar na cidade em relação à anterior, sustenta-se a Revolução, a nova Comissão
de Almada no próximo dia 24 do por passar a estar localizada sobre Administrativa, em reunião de
corrente. (1979, Jun. 06). Diário de um ‘pódio suspenso’ ganhando Câmara presidida por Fernando
Lisboa. Lisboa. protagonismo na envolvente. A Proença de Almeida, decidiu em
36
“Os Perseguidos” Nota Alta nas passagem do Metro Sul do Tejo consequência da precária situação
Festas da Cidade. (1979, Jun. 1). pelo centro da praça torna a área financeira da Câmara e com base
Praia do Sol. Almada. uma praça dura, na qual as tona- numa decisão unânime, comuni-
37
Subiram ao estrado o Gover- lidades de pedra se organizam car aos escultores a suspensão
nador Civil, os presidentes dos de acordo com os diferentes usos imediata dos trabalho de enco-
diversos organismos da Câmara do solo. [Intervenção no centro. menda dos monumentos. [Câmara
(havia Conselho Municipal), Obras em breve na Praça MFA. Municipal de Almada (1974, Jun.
o embaixador da Checoslo- (2007, Jun.). Boletim Municipal. 20). Reunião de Órgãos Autárqui-
váquia (Almada geminara-se com (128), 18. Almada] cos. (Atas). (Livro 140, Ata 23)]
Ostrava), os representantes par- 40
Almada passa de vila a cidade a
tidários, entre eles, Herculano 21 de junho de 1973 pelo Dec. Lei
Pires pelo PS (que viria a ter home- nº308/73 de 16 de junho.
nagem póstuma em escultura), 41
Logo em 13 de novembro de
Lopes Graça e Romeu Correia, 1973 a autarquia adjudicou a
também Henrique Barbeitos anti- Vasco Pereira da Conceição um
fascista preso do Tarrafal. Ainda, monumento que homenageasse
uma mulher lutadora, um jovem, Columbano Bordalo Pinheiro;
um operário, um representante do de seguida, a 18 de dezembro
movimento associativo, cinco indi- de 1973 a Câmara aprovara uma
vidualidades galardoadas com a encomenda a António Duarte,
medalha de ouro de Almada, os com base numa oferta da Câmara
presidentes das Câmaras Muni- Municipal de Lisboa, para um
cipais do nosso distrito ou seus monumento que a autarquia deci-
representantes, os presidentes dira ser a Fernão Mendes Pinto;
das Juntas e Assembleias de Fre- Apresentar-se-ia igualmente em
guesias do nosso concelho, os reunião de Câmara de 5 de março
comandantes dos B.V. de Cacilhas de 1974, a deliberação sobre uma
e da Trafaria, um representante da proposta de um Monumento ao

– SÉRGIO VICENTE 153


Duas Narrativas para o Meu País nos
Painéis de Almada Negreiros

p o r C r i s t i n a Ta v a r e s
Professora Associada de Ciências da Arte e do Património na FBAUL e no
PD-FCTAS da FCUL, Investigadora integrada do CFCUL, Head de Arte e
Ciência, investigadora colaboradora do CIEBA.
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

La présence de l’œuvre d’Almada Negreiros au cours du


XXe siècle est encore un sujet de réflexion aujourd’hui:
son travail se joue en multiples facettes et dans les Almada Negreiros (1893, S. Tomé e Princí-
mouvements modernes et a été la pour longtemps et pe-1970, Lisboa) artista multifacetado, «po-
sans doute il a exercé de nombreuses influences sur liapto» no entender de Pessoa, «um farol
d’autres artistes. numa época» para Cotinelli Telmo, um «por-
tuguês sem mestre», no dizer do Professor
La modernité d’ Almada a vécu de la figuration et de José-Augusto França, quando inicia os mu-
l’abstraction, mais pour les stations maritimes il y a rais para a primeira gare de Lisboa, é um ar-
surtout travaillé les racines de la culture populaire . tista plástico com uma carreira confirmada.
Almada nous raconte une histoire, réel et fantastique
avec des rapports plastiques aux vitraux de l´Église de Para trás ficavam os anos de desenhador e
Fátima, comme on voit a Alcântara, mais il va près du publicitário da «Alfaiataria Cunha» (1913),
cubisme avec Conde de Óbidos. Ici c’est le drame du a participação em inúmeros jornais e revis-
peuple qui a parti pour d’autres pays, et cette dénonce tas, algumas como diretor, desde a «Luta»,
a mis an danger les fresques. Mais malgré tout Almada «Papagaio Real «, «ABC a rir» e o empenho
continue a rêver de sa Lisbonne près du Tejo qu’il avait vanguardista interessado no futurismo na
travaillé avant. participação no Orfeu como poeta. De 1915
datam a «Cena do Ódio» dedicada a Álvaro
de Campos, o «Manifesto Anti-Dantas», a no-
vela «Engomadeira» publicada dois anos de-
pois, «Litoral» dedicado a Amadeo em 1916,
e a «Conferência Futurista» de 1917 no Teatro
República, atualmente S. Luís, em que a per-
formance e a palavra se juntaram. No mes-
mo ano publicou ainda «K4 Quadrado Azul»
numa tipografia do Norte por intermédio de
Amadeo, que foi motivo de um quadro de dos temas prediletos de Cézanne. Almada
Eduardo Viana, e motivo para a prisão de figuraria com Eduardo Viana, António Soa-
Viana e do casal Delaunay, devido às suspei- res, Jorge Barradas, Stuart Carvalhais, Ber-
tas de espionagem. Entretanto e desde Maio nardo Marques e José Pacheco, que havia
de 1912, Almada participou em Lisboa no I proposto esta seleção de nomes juntamen-
Salão dos Humoristas Portugueses, depois te com Norberto Araújo, para a decoração
mais duas vezes em 1913 e 1920, afirmando do café que se tornaria símbolo da moder-
a sua posição de transgressão relativamen- nidade de Lisboa e lugar de convívio artísti-
te aos valores tradicionais e académicos, co- co e intelectual durante décadas. Um outra
muns a uma série de artistas incluindo Can- pintura de dimensões razoáveis seria o «Nu»
to da Maia, António Soares, Jorge Barradas, destinado ao vestiário das senhoras, enco-
Stuart Carvalhais ou Botelho. mendado em 1926 para o Bristol Clube, e
que nesse ano por vontade do proprietário
Os anos 20 depois da «aventura futurista» Mário Ribeiro sofre uma remodelação com
foram marcados pela presença de Alma- a colocação de obras de escultores e pin-
da na «Exposição dos 5 Independentes» tores modernistas. Para além de Almada e
(1923), continuando a publicar: «Pierrot e Eduardo Viana, havia ainda esculturas de
Alecrim» de 1924 e «Nome de Guerra» no Canto da Maia e Leopoldo de Almeida. Nu
ano seguinte, e a trabalhar como desenha- pálido, e vertiginosamente alongado, qual
dor no «Sempre Fixe», «Diário de Notícias» Vénus de inspiração modernista, olhando-
e «Diário de Lisboa» e realizando também -se languidamente no espelho, sobressai
cartazes. Colabora na «Ilustração Portugue- o corte do cabelo «a la garçonne» que as
sa» dirigida por António Ferro e no «ABC a estrelas de cinema nos anos 20 exibiam na
rir» e na revista «Contemporânea». Ainda afirmação da modernização de costumes.
em 1925 duas pinturas suas, haviam de ser Um nota de cor vibra em toda a composi-
penduradas na Brasileira do Chiado remo- ção: umas chinelas de salto alto soltas nos
delada então, sendo primeiro mostradas pés, completando a notação erótica.
na S.N.B.A. Tratam-se de «Auto-retrato» e
«Banhistas». A primeira dando conta de um Nos finais de 20, Almada parte para Madrid
auto retrato em grupo em torno de uma colaborando nas revistas Gaceta Literaria,
messa de café, no qual figuravam (da es- no diário El Sol e La Farsa, entre outros, es-
querda para a direita) a bailarina e atriz es- creve duas peças para teatro e realiza em
panhola Júlia de Aguilar, a atriz Aurora Gil e 1929 as decorações murais para vários ci-
o Prof. Dória Nazaré e Almada, dando ecos nemas como o Cine-Teatro San Carlos que
do expressionismo e do cubismo.»Banhis- comemorava a entrada do cinema sonoro.
tas» apresenta numa composição de volu- Regressa a Portugal em 1931, depois de ter
mes planificados, duas figuras femininas em acabado a peça «Público em cena» que só
fato de banho e touca sentadas numa rocha, será publicada postumamente em 1971.
tendo o mar e um barco à vela como pano
de fundo, evocando simplificadamente um

– CRISTINA TAVARES 155


Na década de 30, Almada firma alguma es- Pardal Monteiro, a inscrever-se num bairro
tabilidade casando-se com Sara Afonso, e novo e numa nova paróquia (freguesia das
nascem os filhos respetivamente em 1934 Avenidas Novas) por vontade do Cardeal
e 1938. Participa em diversas exposições na Cerejeira. Dois anos depois Almada seria
S.N.B.A., nomeadamente o II Salão de Arte um dos artistas decoradores da Exposição
Moderna (1938), pois esta instituição torna- do Mundo Português realizando vitrais para
-se permeável aos modernistas depois da o Pavilhão da Colonização e vários cartazes
«Questão do Novos» em 1921, em que An- comemorativos. Executa os dois painéis
tónio Ferro assume protagonismo na de- para a estação dos Correio de Aveiro e ou-
fesa dos «novos» contra «os bota de elás- tro para os Restauradores destruídos em
tico», coadjuvado por Almada. E em 1933 1951, que Cotinelli Telmo considerava de-
realiza na Galeria UP de António Pedro tentores de uma «Doce humanidade (...) -
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

uma exposição individual, e no Clube Ale- nessas figuras de mulheres: a que se afin-
mão uma exposição com o escultor alemão ca na escrita da carta e a que se deleita na
Hein Semke, chegado a Portugal um anos leitura da carta recebida» (...).1 Entre 1939
antes, e o designer suíço Fred Kradolfer, e 1940 realizou os frescos com temas varia-
que desde 1928 estava instalado no nosso dos desde o planisfério e quatro alegorias
país. Ainda em 1933 Almada desenha dois a Portugal e à Imprensa para o edifício do
cartazes para o filme de Cotinelli Telmo «A Diário de Notícias na Av. da Liberdade da
Canção de Lisboa» e um para o Secretaria- traça de Pardal Monteiro.
do de Propaganda Nacional («Votai a Nova
Constituição»), marcando a sua colabora- Em 1941 tem lugar a exposição individual
ção com o Estado Novo. “Almada-Trinta Anos de Desenho”, reali-
zada pelo S.P.N. e também participa na 6ª
Em 1935 projeta um painel decorativo para Exposição de Arte Moderna do S.P.N. en-
a Casa da Moeda convidado pelo arquite- tre outras. No ano seguinte a consagração
to Jorge Segurado, mas que não vem a ser é reconhecida amplamente através da atri-
executado, e no ano seguinte, estuda o pai- buição do Prémio Columbano na 7ª Exposi-
nel decorativo para o Café Arcadas no Esto- ção de Arte Moderna do S.P.N. com a pintu-
ril em colaboração com o arquiteto Carlos ra “Mulher” (Lisboa).
Ramos. Com este mesmo arquiteto e o es-
cultor Leopoldo de Almeida realiza o proje- O ano de 1943 traz a encomenda dos
to que concorre ao II Concurso para o Mo- frescos para a Gare Marítimas, através do
numento ao Infante de Sagres. Eng. Duarte Pacheco apreciador da obra
de Almada(segundo o testemunho de
Em 1938 Almada conclui os vitrais de índole Sara Afonso). Iniciam-se os primeiros es-
mais naturalista e inspirados nos textos bí- tudos dos frescos que seriam terminados
blicos para a Igreja de Nossa Senhora de Fá- em 1945 e o tema escolhido pelo pintor
tima na Av. de Berna em Lisboa, edifício de para um dos trípticos foi a lenda da Nau
linhas modernas, projetado pelo arquiteto Catrineta, romance popular, que segundo
Rui-Mário Gonçalves, o pintor considera- pelas mesmas dimensões 6,20 metros de
va que unia a “tradição popular” ao tema altura por 4 de largura. No primeiro fres-
do “mar”2. Almeida Garrett tinha-o incluído co o capitão e o gajeiro do alto dos mas-
no seu Romanceiro (1843-1851) e a prove- tros procuram ver com um óculo as terras
niência tem a ver com o relato da História de Portugal, enquanto os marinheiros de-
Trágico- Marítima em que se narra o nau- sesperados olham para as solas cozidas. A
frágio de um barco vindo do Brasil que fica mesa tem um tambor pousado e cartas de
à deriva por ser atacado por corsários. “A jogar espalhadas, e nas velas está o diabo
Nau Catrineta” evoca a vida dos marinhei- e um esqueleto simbolizando a morte. No
ros portugueses embarcados e à deriva, segundo fresco vemos apenas uma par-
comendo sola que estava de molho desde te dos mastro principal e a as velas com o
a véspera. É uma narrativa com um fundo anjo da guarda a proteger a nau. Ao longe
real misturada com a fantasia, que encarna numa falésia está um cavalo branco, e mais
a luta do bem contra o mal e a saudade. distantes as três filhas do capitão, uma a co-
O gajeiro transforma-se na figura do diabo zer, outra a fiar e a última a chorar. Por fim
que não aceita casar com umas das filhas o terceiro fresco mostra-nos o final, a nau
do capitão - a mais formosa - pois preten- varada, o capitão salvo abraçando as três fi-
de roubar-lhe a alma, mas o capitão res- lhas, rodeado pelos marinheiros e popula-
ponde-lhe: «Renego de ti demónio/Que res, incluindo um marujo e uma mulher de
me estavas a tentar!/A minha alma é só de vermelho que Almada teria visto anterior-
Deus;/O corpo só do mar»3. É a vez do anjo mente e retratou aqui, e no topo esquerdo
bom intervir evitando que o capitão se afo- o anjo da guarda em pé triunfando sobre
gue, e assim a Nau Catrineta acaba por va- o demónio vencido, espezinhado no chão.
rar em terra, terminando num final feliz.
Do outro lado, o tríptico é constituído por
Com esta narrativa, que evoca a epopeia de imagens de Lisboa representando três vis-
um povo, e a presença dos seus valores mo- tas da cidade. Todas elas partem da zona do
rais, Almada apropria-se de um discurso de rio para a urbe e descrevem tarefas carac-
cariz popular- sabendo que essa apropria- terísticas da vida à beira Tejo: no primeiro
ção do popular genuíno era parte consti- fresco, no primeiro plano, mulheres robus-
tutiva do porta estandarte do modernismo tas, as varinas, «seus troncos varonis recor-
por toda a Europa fora - mais do que expor dam-me pilastras»4 cantadas assim por Ce-
um dos aspetos defendidos pela «política sário Verde no poema O sentimento dum
do espírito» de António Ferro, a quem falta- ocidental I Avé- Marias e também Almada,
vam poucos anos para ser destronado. varinas carregando à cabeça canastas de
carvão empilhado em pirâmide, e percor-
A lenda da Nau Catrineta é apresentada rendo descalças um passadiço, tendo por
em três frescos estabelecendo uma conti- pano de fundo os barcos; no segundo fres-
nuidade narrativa que não existe na outra co, em primeiro plano uma vista das trainei-
parede oposta, aliás suportada também ras de chaminés listadas a vermelho e bran-

– CRISTINA TAVARES 157


co e por detrás os barcos típicos do rio Tejo Por último, o fresco intitulado «Ó terra
como o varino e uma fragata; e no terceiro onde nasci» uma cena rústica, em tempo
fresco as peixeiras separando o peixe para a de romaria, mostra-nos o namoro do ma-
venda enquanto uma delas coloca a canas- rujo e da rapariga de vestido e xaile ver-
ta à cabeça, tendo este momento como ce- melhos junto a uma ermida decorada fitas
nário o rio com os varinos e fragatas, e por e balões. Mais ao longe uma mulher debai-
detrás a Sé de Lisboa e o Castelo e S. Jorge xo de um chapéu de sol vende queijadas e
ao fundo. Por cima uma frase Quem não viu atrás à sombra de uma árvore um grupo jo-
Lisboa não viu coisa boa. vens faz um piquenique. Mais distante po-
demos ver o topo de uma pequena aldeia
Dois outros frescos avulso representam a caiada, com as casa sobrepostas umas nas
Lenda do Milagre da Nazaré segundo a outras sobre a colina.
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

qual o intrépido D. Fuas Roupinho, cavalei-


ro templário e primeiro Almirante da Arma- Este lirismo quase nostálgico de uma Lis-
da Portuguesa que lutou contra os mouros boa virada ao Tejo e de um Portugal rústico,
sob o comando de D. Afonso Henriques, segundo Rui-Mário Gonçalves estabelece li-
se salvou ao não ter caído num precipício gações naturais à « Histoire du Portugal par
da Nazaré quando caçava um veado, em Coeur» que Almada havia escrito, em Pa-
dia de nevoeiro. Em aflição e desespero ao ris em 1919. Observamos uma linguagem
evocar o nome de Nossa Senhora, milagro- simplificada mas de raiz naturalista, não
samente cavalo e cavaleiro são salvos, mas sendo alheia também à fotografia da épo-
o testemunho desse momento ficou na ro- ca ou os filmes de Leitão de Barros como
cha onde se podem ver as marcas das patas «Nazaré, Praia dos Pescadores» (1929) e
traseiras do cavalo. (Bico do Milagre). Reco- «Maria do Mar» (1930). Contudo a receção
nhecido, D. Fuas Roupinho mandou erguer positiva por parte do público a estes frescos
uma ermida no local onde ocorreu este epi- decorativos não foi repetida na intervenção
sódio. A pintura oferece-nos o momento em de Almada Negreiros na Gare Marítima da
que o cavalo de D. Fuas afinca as patas tra- Rocha do Conde Óbidos.
seiras no solo e o veado cai no precipício.
Ao longe surge a imagem de Nossa Senho- Para estes segundos frescos, os estudos
ra. Por debaixo da falésia a praia mostra-nos iniciais são datados de 1945, e ficariam ter-
os pescadores nas suas fainas vestindo ca- minados em 1948, pois Almada trabalhou
misas e calças de quadrados, capa e barre- nesta obra durante dois anos e meio, e só
te de lã na cabeça trazendo as redes do mar depois os começou a executar sozinho,
para a areia quente da praia, enquanto as sem ajudante. Inicialmente pensou como
mulheres de capa e de chapéu com borla tema tratar do episódio mítico do «Rapto
estão a cozer as redes, e um pescador dor- da Europa» tendo depois desistido. São
mita à sombra do barco varado em terra. Ao dois grupos de uatro frescos: um tem por
lado uma âncora e uma corda desenham base a vida ribeirinha, estabelecendo uma
sombras e arabescos na areia. continuidade narrativa com as pinturas da
gare anterior; o outro grupo foca um tema pé olha atentamente para a trapezista. À
novo na obra mural de Almada: a partida frente um barco com o rapaz do tambor, um
das gentes, emigrando para outras para- outro saltimbanco e uma mulher com um ar
gens, através do mar em navios de grande cansado. No último plano estão os popula-
calado, para a América do Sul, Brasil sobre- res de olhos bem abertos, narizes empina-
tudo e também África, assim como a che- dos no ar e pés fincados no chão.
gada de outros.
Do outro lado, apenas o cais com as pes-
A ligação ao rio Tejo e ao mar, não é novi- soas a despedirem-se uns dos outros, os
dade relativamente à narrativa anterior em que partem e os que ficam, tal como José-
Alcântara, mas o tema da emigração e a Augusto França afirmou «Os emigrantes
linguagem mais próxima do cubismo pra- com a sua bagagem de esperança e já de
ticado nos anos do pós-guerra com André saudade» 5, e por último, um homem traba-
Lhote, Pignon e Fougeron, afastam definiti- lhando nas obras do porto subindo os an-
vamente Almada do naturalismo lírico ainda daimes, e por detrás a proa do navio com
presente na gare anterior. um marinheiro. O contraste entre uma nova
vida e o quotidiano de quem fica.
O tríptico evocando Lisboa foca o domin-
go lisboeta à beira Tejo: Um passeio numa A geometria das composições que era sen-
bateira, representando uma mulher tenta tida na primeira gare, é agora muito mais
agarrar um chapéu de palha de criança que saliente pelo jogo de alinhamento das figu-
se precipita na água, um rapaz sentado no ras, pelas retas e diagonais das escadas e
cais segurando uma rede de pesca, um ca- dos guindastes, pelas traves de madeira do
sal abraçado, e no fundo uma janela aber- andaime sobreposto à murada da proa do
ta de uma casa burguesa com um terraço navio. As figuras, ainda na série dos saltim-
por cima, com um jovem casal apoiando- bancos são planificadas, geometrizadas, ou
-se no parapeito, e mais afastada uma trai- cruzando os xailes e os corpos em abraços
neira. O seguinte fresco tem como cenário sofredores, ou ainda como meras sombras
um estaleiro, e retoma o tema das varinas encostadas ao cais. E embora a harmonia
uma com a canasta à cabeça e a outra sen- cromática se rompa aqui e ali em vermelhos
tada apoiando o queixo na mão. Por detrás, saturados, laranjas e azuis, o desenho e a li-
um barco em reparação. Ainda no primei- nearidade dominam as composições como
ro plano estão dois rapazes numa bateira, uma espécie de malha subjacente.
um segura um remo e o outro uma grande
rede de pesca. No último fresco, temos um Tal como foi referido anteriormente estes
grupo de saltimbancos no plano médio: frescos das última gare não foram tão bem
o homem que cospe fogo e os acrobatas, aceites como os primeiros. Sara Afonso6
uma dos quais está agarrada ao trapézio nos seus testemunhos contava que as pes-
por uma perna e uma mão, enquanto um soas não gostavam das gentes dos circo,
faz acrobacias no solo, e a outra figura em os saltimbancos que Almada representou,

– CRISTINA TAVARES 159


e que ainda quando o mestre estava aca- cluindo o poeta e seu amigo Fernando Pes-
bar os frescos, sentiu reações negativas de soa. Nos anos cinquenta o abstracionismo
quem por ali passava. Contudo ao focar o começa a ter maior visibilidade na obra de
tema da emigração, Almada participava na Almada de tal modo que tomará conta de-
denúncia da situação difícil em que o povo liberadamente da última obra que realizou,
se encontrava, sob o domínio de um regime precisamente “Começar”.
ditatorial, que não abria mão, mesmo numa
Europa vivendo o pós-guerra. Por isso, Igualmente na mesma década no ano de
houve vontade de que estes frescos, acusa- 1955, um pintor de uma outra geração, Luís
dos «por excesso de modernismo»7 fossem Dourdil pintava um fresco de dimensões
destruídos, como haviam sido os frescos no grandes no Café Império, que sofreu restau-
Cinema Batalha por vontade do Presidente ro recentemente, em 2014, ano que marcou
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

da Câmara do Porto, à altura. Evocativos das o centenário sobre o nascimento do pintor.


festas de S. João e pintados por Júlio Pomar Dourdil realiza um mural intimista pintado a
em 1946 e 47, tendo o cinema sido inau- têmpera, afastando-se das epopeias de Al-
gurado com os frescos inacabados, pois o mada. Coloca todas as figuras majestosas e
pintor havia sido preso, as pinturas são apa- monumentais conversando entre si, jogan-
gadas em 1948, e outras obras de escultu- do-se em planos geometrizados e grandes
ra que decoravam o edifício foram mutila- manchas de cor, leves, como o sussurro das
das. Contudo em Lisboa, a intervenção do palavras, ditas no café, por debaixo do tilin-
Dr. João Couto, historiador de reconhecido tar das chávenas e das colheres. Nada tem a
mérito, Director do Museu Nacional de Arte ver com Almada e muito menos com os fres-
Antiga, e que desempenhava funções de cos das gares. É um outro tempo, e disso Al-
vogal na Junta Nacional da Educação, sain- mada nos soube dar conta como ninguém.
do em defesa da obra de Almada Negrei-
ros, impediu que tal viesse a acontecer. Este texto foi apresentado no Colóquio “Do quadro na nar-
ração à pintura narrativa/ Du tableau dans le récit à la pein-
Nos anos 50, Almada deu continuidade à ture narrative” que teve lugar na Casa das Histórias, Cas-
sua obra como decorador: realizou painéis cais de 18 a 20 de Fevereiro de 2014.
em mosaico (Bloco das Águas Livres), vitrais
(Fábrica de Fogões Portugal), tapeçarias
(Hotel Ritz, Tribunal de Contas) e toda a in-
tervenção artística em pedra incisa da cida-
de universitária de Lisboa, indo culminar no
Painel Começar (1969) na Fundação Calous-
te Gulbenkian. Contudo, Almada não volta-
ria a repetir nenhuma das narrativas ante-
riores integradas nas gares, embora tenha
retomado mitos e lendas e relembrado as
figuras marcantes da cultura portuguesa, in-
– Bibliografia porânea”[coord. de Daniel Pires].
Lisboa: Ed. Centro Nacional de
Almada Negreiros (dir. Joaquim Cultura, Bertrand, 1993.
Vieira). Lisboa: Ed. Bertrand Edi-
tora, 2006 (dir. Joaquim Vieira). – Notas
Centro Cultural De Belém - Almada
a Cena do Corpo; comissário José 1
In CENTRO CULTURAL DE
Monterroso Teixeira. Lisboa: Ed. BELÉM - Almada a Cena do Corpo;
Fundação das Descobertas Centro comissário José Monterroso
Cultural de Belém, 1994. Teixeira. Lisboa: Ed. Fundação das
França, José-Augusto - Almada Descobertas Centro Cultural de
o Português sem mestre. Lisboa: Belém, 1994. (pág.101)
Estúdios Cor, 1974. 2
In FUNDAÇÃO Calouste Gul-
Fundação Calouste Gulbenkian benkian - Almada. Lisboa: Acarte,
- Os anos 40 na arte portuguesa; 1985.
comissário Fernando de Aze- 3
In GARES Marítimas Passen-
vedo, programação José-Augusto ger Terminals Alcântara Rocha do
França. Lisboa: Ed. Fundação Conde de Óbidos. Lisboa: Ed. APL-
Calouste Gulbenkian, 1982. Vol.1 Administração do Porto de Lisboa,
(6 volumes). S.A., 1999.
Fundação Calouste Gulbenkian - 4
In GARES Marítimas Passen-
Almada. Lisboa: Acarte, 1985. ger Terminals Alcântara Rocha do
Gares Marítimas Passenger Termi- Conde de Óbidos. Lisboa: Ed. APL-
nals Alcântara Rocha Do Conde Administração do Porto de Lisboa,
De Óbidos. Lisboa: Ed. APL- Admi- S.A., 1999.
nistração do Porto de Lisboa, S.A., 5
In FRANÇA, José-Augusto -
1999. Almada o Português sem mestre.
Negreiros, Maria José Almada, Lisboa: Estúdios Cor, 1974.
Conversas com Sarah Afonso. Lis- 6
Ver de Maria José Almada Negrei-
boa: Ed. Arcádia, 1982. ros , Conversas com Sara Afonso.
Revista de História da Arte, vol.2 , Lisboa: Ed. Arcádia, 1982
Almada Negreiros. Lisboa: Ed. Ins- 7
IN FUNDAÇÃO CALOUSTE GUL-
tituto de História da Arte, FCSH BENKIAN - Os anos 40 na arte por-
UNL,2012 [Consultado 31 de tuguesa; Lisboa: Ed. Fundação
Agosto de 2015].Disponível em Calouste Gulbenkian, 1982. Vol.1
URL: http/ficheiros/Revista%20
Almada%20Negreiros.pdf.
Tavares, Cristina De Azevedo,
“José Pacheco e os Novos”, in
“PacheKo, Almada e a Contem-

– CRISTINA TAVARES 161


Olhar em Movimento: As Intervenções
Cerâmicas de Catarina e Rita Almada
Negreiros no Ascensor da Bica e na Estação
Sul/Sueste do Terreiro do Paço

por Daniela Simões


– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

Mestre em História da Arte pela FCSH-UNL, investigadora e bolseira do


Instituto de História da Arte - Fundação Millennium BCP.

Catarina and Rita Almada Negreiros are two Portuguese


Lisbon based architects whose work goes far beyond the
architecture field. During the last years they have created Introdução
several urban artistic interventions which aim to question
the perception act by challenging the viewer’s vision Qualidade, luz, cor, profundidade, que estão
through optical illusions based on colour, line, relief and ali perante nós, só lá estão porque despertam
movement, rescuing some of the main principles of Op um eco no nosso corpo, porque ele as acolhe
Art and Kinetic Art to the Portuguese contemporary art (MERLEAU-PONTY:1992, 23).
scene. This article describes and analyzes two of their
major works – Cota Zero (2011) and Vai Vem (2013) – A Fenomenologia da Percepção constituiu
both using tiles as the preeminent material and both um dos campos de investigação centrais da
located in central transport infrastructures of the city, obra filosófica de Maurice Merleau-Ponty
showing how these interventions interfere and interact (1908-1961), cujo trabalho foi marcado por
with the users’ perception during their daily journeys. um interrogar constante da percepção, en-
The privileged relation Portuguese art has established quanto processo simultâneo de descodifi-
with the use of tiles during the last five centuries, make cação e construção do mundo. Encarando-
them a frequent choice by contemporary architects and -a como um acto corpóreo, isto é, assente
artists whose projects and works aim to rehabilitate and nas sensações recolhidas pelos sentidos,
“humanize” old and (sometimes) degraded parts of the é através do corpo que o indivíduo atribui
city and thus addressing new meanings and functions to sentido à realidade, pois, como refere o au-
the public space. tor, só se vê aquilo para que se olha (MER-
Hence, it is also important to question how the relation LEAU-PONTY:1992, 19), reforçando assim a
between public art and public space takes place interacção contínua entre corpo, espaço e
nowadays and how can the first contribute to a better and movimento como base do fenómeno per-
more profitable relation between the city and its citizens. ceptivo. O movimento assume-se, por isso,
como a chave da recolha de informação cício da arquitectura é acompanhado pela
sensorial, uma vez que as sensações apa- concepção de intervenções artísticas em es-
recem associadas a movimentos e cada ob- paços públicos, onde a utilização do azulejo
jecto convida à realização de um gesto, não se assume como marca fundamental. Partin-
havendo, pois, representação, mas criação, do da problematização dos desafios que se
novas possibilidades de interpretação das colocam à arte pública na sua relação com
diferentes situações existenciais (NÓBRE- o espaço público e seus utilizadores, serão
GA:2008, 142). apresentadas duas intervenções das auto-
ras - Cota Zero (2011) e Vai Vem (2013) –
A proposta da fenomenologia da percep- analisando o modo como estas interagem
ção, aliada aos estudos da Gestalt (dos quais com a toponímia, arquitectura e imaginário
a primeira foi igualmente devedora) estive- da cidade de Lisboa e, em particular, com as
ram na base de muitas das propostas artís- estruturas que as acolhem, ambas ligadas
ticas desenvolvidas ao longo da segunda ao transporte de passageiros – O Ascensor
metade do século XX1, as quais procuraram da Bica (Raoul Mesnier du Ponsard, 1892) e
questionar a percepção da obra de arte por o novo átrio da Estação Sul Sueste (Cottinel-
parte do espectador, através da introdução li Telmo, 1932) respectivamente.
de movimento nas próprias criações artís-
ticas, desafiando, desta forma, o carácter Os desafios da Arte Pública na cidade
estável e unificado da imagem percepcio- contemporânea
nada. Este desejo de interpelação do obser-
vador desprevenido, com vista à criação de Desde o final dos anos 60 que se vem as-
uma conexão sensorial com a obra, tão fu- sistindo à generalização do conceito de arte
gaz quanto mutável, permanece e renova-se pública, o qual, não obstante as diferentes
(talvez mais do que nunca) no cenário actual acepções e significados que comporta, en-
da arte contemporânea, não só em contexto contra-se intimamente ligado à ideia de es-
museográfico e galerístico, mas também, e paço público3. Ainda que recorrendo a uma
sobretudo, no espaço público, aquando da certa generalização, poder-se-á afirmar que
concepção de obras que integram o espaço o termo arte pública se refere às obras de
urbano, renovando estruturas pré-existentes arte e intervenções artísticas concebidas
ou integrando novas edificações. Na base para espaços de acesso público4, com vis-
destas intervenções encontra-se frequente- ta à criação de uma relação mais próxima
mente um desejo de reabilitação e “huma- entre estes e as comunidades e utentes que
nização” destes locais, atribuindo-lhes novas neles circulam e que com eles se relacio-
funções e possibilitando o seu usufruto por nam5. Ou seja, a arte pública desvela e re-
parte da(s) comunidade(s). vela um lugar, faz parte do quotidiano dos
seus utentes, e pode dizer-se que simulta-
Estes parecem ser os pressupostos do tra- neamente produz como que uma suspen-
balho de Catarina Almada Negreiros (1972) são desse mesmo quotidiano, transforma o
e Rita Almada Negreiros (1969)2, cujo exer- espaço público em espaço real, povoado

– DANIELA SIMÕES 163


e diversificado, suprime um espaço inicial- function of motion, it thus becomes less
mente vazio para o tornar transformável e stimulating in itself; the driver wants to go
habitável. A presença da obra de arte no es- through the space, not to be aroused by it.
paço público convida o espectador a ima- The physical condition of the travelling body
ginar como se pode dispor esse espaço, na reinforces this sense of disconnection from
situação que tem pela frente face a um dado space. Sheer velocity makes it hard to focus
local e a uma dada obra de arte, e como se one’s attention on the passing scene (SEN-
podem mudar as distâncias vividas no espa- NETT: 1994, 17-18).
ço público (CORREIA:2013, 25-26). No fun-
do, trata-se da criação de um diálogo único Os transportes como espaço privilegiado
e íntimo entre o indivíduo e o espaço que o para a Arte Pública em Portugal
acolhe, tornando este último mais habitável
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

através da experiência sensorial e atribuição O papel central dos transportes nas cida-
de significado que o primeiro lhe confere6. des, verdadeiras artérias de comunicação,
responsáveis por fluxos diários de passagei-
Porém, este reequacionar da relação entre ros, cujas estruturas se destacam e impõem
indivíduo e espaço público que a arte públi- ao longo do traçado urbano, tem levado a
ca promove parte, frequentemente, de uma que, nas últimas décadas, sejam encarados
atitude crítica por parte de artistas (também como locais privilegiados para a criação de
verificável nos campos da arquitectura, ur- obras de arte pública. Tal opção, quer por
banismo e design) em relação à descone- parte de artistas, quer das entidades res-
xão entre corpo e espaço que caracteriza ponsáveis pelas comissões, baseia-se não
o dia-a-dia na cidade contemporânea. Esta só no elevado número de indivíduos que,
desconexão apresenta a sua génese no sé- por via da utilização do transporte, contac-
culo XIX, aquando da formação da cidade tarão com as obras, mas também porque
oitocentista7, caracterizada pela sensação a presença de obras de arte em estações
de anonimato entre os seus habitantes, mas (comboios, metro), cais (fluviais, marítimos),
também pela ideia de movimento contínuo, terminais (rodoviários) e aeroportos fun-
fruto não só da crescente velocidade dos cionam em muitos casos como um factor
transportes, como do aumento demográ- de encorajamento para a sua utilização, ao
fico no espaço urbano. O indivíduo é, por tornarem os seus espaços arquitectónicos
isso, embalado num ritmo que é o da pró- mais atractivos visualmente, enfatizando as-
pria cidade, tão rápido quanto fragmenta- sim, para além da dimensão física, a com-
do, deixando poucas oportunidades para o ponente social do local (MILES:1997, 132)8.
exercício da experiência sensível. Tal como
apontado por Richard Sennett, este ador- Em Portugal, a criação da rede do Metropo-
mecimento dos sentidos é um resultado litano de Lisboa9, cujo autor do projecto foi
of the physical experience which made the o arquitecto Francisco Keil do Amaral (1910-
new geography possible, the geography of 1975) reflecte esta atitude na opção pelo
speed (....) As urban space becomes a mere emprego do azulejo na decoração de todas
as estações, familiarizando, deste modo, os Eduardo Nery (1938-2013), Rolando Sá No-
utentes com o novo transporte através da gueira (1921-2002), Querubim Lapa (1925-
presença de um material caro à tradição ar- ), João Abel Manta (1928-), Júlio Pomar
quitectónica nacional. Para além da neces- (1926-), Manuel Cargaleiro (1927-), entre
sidade de tornar as novas estações visual- vários outros. No contexto do presente ar-
mente apelativas e acolhedoras, restrições tigo considera-se relevante salientar a obra
orçamentais estiveram na base da opção de Eduardo Nery, uma vez que, tal como os
de Keil do Amaral pela integração do azu- revestimentos azulejares criados por Ma-
lejo no revestimento das paredes dos átrios, ria Keil para a rede de metropolitano de
escadarias gares de cada estação, tendo o Lisboa, também os da autoria deste artista
arquitecto escolhido Maria Keil (1914-2012) apresentam polos de contacto com as pro-
para a concepção dos respectivos projectos postas de Catarina e Rita Almada Negreiros.
cerâmicos. Estes deveriam aliar a compo-
nente artística à da funcionalidade do local Eduardo Nery foi um dos primeiros artistas
que os acolhia, segundo os novos pressu- portugueses cuja obra apresentou, ao lon-
postos modernistas, pelo que uma das di- go das décadas de 60 e 70, preocupações
rectrizes impostas foi a do predomínio de semelhantes às do movimento Op Art, no-
uma decoração geométrica, uma vez que, meadamente no questionamento da ambi-
porque os espaços a animar eram zonas de guidade perceptiva do objecto através da
passagem, não deveria haver lugar para mo- exploração e inclusão de jogos de trompe
tivos que provocassem a paragem dos uten- l’óeil suas nas telas e, posteriormente, nas
tes (CASTEL-BRANCO: 2000, 14). Maria Keil tapeçarias e painéis azulejares concebidos.
concebeu assim composições assentes na Com uma régua rodando geometricamen-
sua maioria em padrões geométricos cujos te sobre si própria ou em vários sentidos da
ritmos e dinâmicas não só se adaptassem superfície – como processo despertador de
às características arquitectónicas dos espa- imagem – cria paisagens de abstracta, e ao
ços a revestir (átrios, lanços de escadas, ...), mesmo tempo, lírica espacialidade. (…) O
como ao ritmo apressado dos passageiros10. princípio da economia na aplicação de co-
res (…), o seu limitado uso em degradé, e
Para além destes aspectos, o emprego do os jogos geométricos puros, as figuras pu-
azulejo em grande escala permitiu reabili- ras (círculo, o triângulo, o quadrado, a linha
ta-lo no contexto do movimento moderno recta), os volumes autênticos ou sugeridos
na arquitectura, resgatando-o da secunda- virão estruturar, depois, um alfabeto próprio
rização a que havia sido votado no período e, seguidamente, um discurso, ou mesmo
inicial do Estado Novo. Esta atitude de va- vários discursos, inovador. No qual, ou nos
lorização e exploração das potencialidades quais, o espaço, a condição da espacialida-
do azulejo no espaço urbano encontra-se de, do plano, da profundidade, é sempre o
patente em várias intervenções de arte pú- dispertar da acção visual11 ou de diversas
blica ao longo da cidade de Lisboa (e não acções e, simultaneamente, os seus ecrãs
só), das quais se destacam os trabalhos de (AZEVEDO:1997, 20-21).

– DANIELA SIMÕES 165


Tais premissas encontram-se presentes nas Este serviu de “matéria-prima” à concepção
várias obras de revestimento azulejar cria- de inúmeras obras de arte pública ao longo
das por Eduardo Nery para espaços públi- dos últimos 60 anos, pelo que, se tal opção
cos, nomeadamente para a Sociedade de contribuiu, por um lado, para o alargamen-
Cervejas em Vialonga (1966); a decoração to das potencialidades e funções do azulejo
do Banco Nacional Ultramarino em Torres na sua relação com a arquitectura e urbanis-
Vedras (1972); o revestimento tridimensio- mo, por outro foram estas mesmas poten-
nal para o pátio do Centro de Saúde de cialidades e marcas estruturais – cor, brilho,
Mértola (1981); um painel para o Museu da cambiantes de luz, efeitos ópticos, relevo,...
Água da EPAL, Prémio Municipal de Azule- – que levaram a que inúmeros artistas o ele-
jaria (1987); o conjunto cerâmico para o in- gessem como protagonista no processo de
terior da Sede do Banco Nacional de Crédi- questionamento do acto perceptivo que as
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

to Imobiliário (1991), actual Banco BIC, em suas obras propõem.


Lisboa; o revestimento dos pilares dos via-
dutos da Segunda Circular no Campo Gran- Neste contexto insere-se o contributo de
de, em Lisboa; a estação Campo Grande do Catarina e Rita Almada Negreiros que, ao
Metropolitanos de Lisboa (1993); um painel longo dos últimos anos, em várias das inter-
de placas cerâmicas e viadutos da Av. Infan- venções realizadas na capital, optaram pelo
te Santo, Lisboa (1994 e 2002) e uma grande emprego do azulejo, em particular do “azu-
intervenção para o exterior da Estação de lejo cinético”, concebido em parceria com
Tratamentos de Água da Asseiceira, em To- a fábrica Viúva Lamego e que recupera as
mar (2010) (http://redeazulejo.fl.ul.pt/noti- dimensões 14x14cm, características da azu-
cias,0,589.aspx). As intervenções de Eduar- lejaria nacional. Este modelo azulejar, cujo
do Nery e Maria Keil são, por isso, exemplos perfil em ziguezague, aliado ao possível uso
primordiais do emprego do azulejo em es- de duas cores e as diferentes configurações
paços públicos com vista à sua humaniza- - plano, com uma dobra, com duas dobras
ção, tornando-os não só mais atractivos ou com quatro dobras -, mostra e propõe ao
para aqueles que os utilizam, como, em al- observador, conforme a sua posição, dife-
guns casos, contribuindo activamente para rentes percepções (GONÇALVES: 2011, 16),
a reabilitação urbana da área envolvente. baseadas nos ritmos e texturas recriadas.
Tais ritmos dividem-se, segundo as auto-
Cota Zero (2011) e Vai Vem (2013): ras, em dinâmico – resultante da circulação
Olhar em movimento do transeunte no espaço – e estático – fruto
da própria textura dos azulejos (GONÇAL-
O percurso até ao momento realizado per- VES: 2011, 16). O movimento é, por isso,
mitiu salientar questões centrais para a pro- uma peça chave no trabalho das duas ar-
blematização da arte pública no contexto quitectas, uma vez que é através do “jogo”
da cidade contemporânea, sem descuidar de posicionamentos que o observador es-
o caso português, em particular o lugar ful- tabelece com a obra nos vários momentos,
cral ocupado pelo azulejo neste campo. que a ambiguidade perceptiva do objecto
artístico se define, na ilusão de formas e es- A estreita relação que estas obras estabele-
paços que pretendem pôr em causa a apa- cem com as estruturas arquitectónicas que
rente naturalidade e estabilidade do acto integram remete igualmente para uma das
perceptivo, salientando, ao invés, a comple- marcas mais comuns no objecto de arte pú-
xidade e artificialidade do mesmo, na me- blica: a sua especificidade para com o lo-
dida em que, como salienta Merleau-Ponty cal que o acolhe, ou seja, o seu carácter de
pensar é experimentar, operar, transformar, site-specific15. Tal característica consiste no
com a única reserva de uma verificação ex- facto de este ter sido concebido e projecta-
perimental, na qual não intervêm senão fe- do tendo em conta não só as características
nómenos altamente “trabalhados” e que os topográficas, paisagísticas, arquitectónicas
nossos aparelhos, mais do que registarem, e funcionais do local, mas também a com-
produzem (MERLEAU-PONTY:1992,14). ponente social e cultural que o define – va-
lor histórico, tipos de utilizadores, …- de tal
A procura de um confronto entre a imedia- modo que, fora deste contexto que é o seu,
tez da experiência sensorial e a lógica do a obra deixa de fazer sentido ou, no míni-
raciocínio ancora o trabalho de Catarina e mo, vê-o diminuído.
Rita Almada Negreiros na herança da arte
cinética e, em alguns casos, no tratamen- Neste âmbito, Cota Zero define-se como o
to formal da Op Art, dada a prevalência de protagonista do novo átrio da Estação Flu-
composições abstractas, com recurso quer vial Sul Sueste, resultante da ampliação le-
a figuras geométricas (Vai Vem), quer a va- vada a cabo pelo atelier de Daciano Costa,
riações tonais (Cota Zero) que, pela sua re- com vista à criação de uma plataforma de
petição e conjugação, produzem estímulos ligação entre a recente estação de metro
visuais12 de direcção, profundidade e mo- do Terreiro do Paço (Linha Azul) e as em-
vimento cuja necessidade de organização barcações da Transtejo. A intervenção de-
introduz na obra uma dimensão temporal13. senvolve-se ao longo do tecto (17x23m) e
O facto de as intervenções em questão in- das oito colunas (0,6m de diâmetro; pé di-
tegrarem estruturas arquitectónicas ligadas reito de 5,6m) que o suportam, que são na
ao transporte de passageiros, onde diaria- íntegra revestidos por azulejo de formato
mente circulam milhares de pessoas num quadrangular (14x14cm)16, adaptando-se
ritmo apressado e contínuo (Cota Zero), este à superfície arquitectónica, veiculan-
aliado ao próprio trajecto realizado pelo do, deste modo, a sensação de um espaço
transporte (Elevador da Bica em Vai Vem), unificado. Tal como apontado pelas auto-
asseguram não só a presença do movi- ras, neste espaço coexistem dois movimen-
mento necessário à experiência sensorial tos fortes: a chegada do barco à Cota Zero,
da obra, como prolongam-na no tempo e pela superfície da água, e a chegada do me-
no espaço14, tornando-a, por isso, em algo tropolitano, a uma cota negativa. A ligação
processual, em constante redefinição. entre estes dois movimentos é feita ao nível
da superfície da água. A união entre estes
dois fluxos faz-se aqui e é desta especifici-

– DANIELA SIMÕES 167


dade do lugar que surge a ideia base desta
intervenção: uma reflexão sobre a Cota Zero
(http://can-ran.com/#/cota-zero/). Esta, que
em geografia, indica o nível médio do mar,
constituindo, por isso, uma referência para
a construção de cartas topográficas, serve
neste contexto de denominação a um espa-
ço que, também ele se assume como ponto
de partida, quer para o Rio Tejo que ao fun-
do se vislumbra, quer para a cidade, por via
da entrada no metropolitano, ou simples-
mente da saída para o exterior da estação.
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

Vista geral de Cota Zero (2011). Destaca-se o movimento de


entrada e saída de passageiros no átrio, bem como o fluxo
A evocação da água é notória, quer pelo
proveniente da estação de metro do Terreiro do Paço.
Fotografia da autora (2015). título escolhido, quer pela proximidade
com o rio, de tal forma que o revestimen-
to azulejar empregue se aproxima da ima-
gem de uma superfície aquática em que
formas circulares sugerem ser geradas pe-
las colunas e é recriada uma ligação en-
tre a superfície plana e brilhante do tecto
e as colunas. Desta relação/reflexão nasce
um espaço virtual, colocando o espectador
num novo lugar (http://can-ran.com/#/co-
ta-zero/). Este efeito de círculos concêntri-
cos, aliado a um esbatimento das suas for-
mas por meio de suaves gradações tonais
– que a Psicologia da Forma denomina de
Pormenor do revestimento azulejar do tecto e das colunas. moiré effect17 – foi conseguido através do
Fotografia da autora (2015).
emprego de vinte tonalidades diferentes
de azulejo, desde o branco até ao preto,
passando por vários tons de azul18, sendo
exactamente esta variação tonal a respon-
sável pelo efeito óptico que introduz a ilu-
são de profundidade e movimento numa
superfície que é, afinal, plana e estática. As
cambiantes de luz simuladas pelas diferen-
tes tonalidades, aliadas ao brilho e reflexos
lumínicos que caracterizam o azulejo, inter-
vêm activamente na sensação de mutação
contínua desta obra, enfatizada pela deslo-
cação no espaço do observador.

Quanto a Vai Vem, trata-se de uma interven-


ção formada por dois painéis azulejares que
revestem os dois muros que ladeiam a es-
trutura do Ascensor da Bica19, destacando
a presença do histórico transporte e enfati-
zando os movimentos de subida e descida
por ele realizados. Estes painéis apresen-
tam composições idênticas, dispostas si-
metricamente de cada um dos lados do as- Vista geral de Vai Vem (2013) e do seu enquadramento nos
censor, formadas pela repetição de motivos muros que ladeiam o Ascensor da Bica.
Fotografia da autora (2015).
de cariz geométrico que, no seu todo, ori-
ginam dois padrões distintos que se suce-
dem subtilmente. Devido à sua localização,
estes padrões são apenas visíveis em pers-
pectiva, pelo que é aquando da subida ou
descida que as duas imagens vão-se mos-
trando, misturando e sobrepondo, até que
a imagem frontal se converta em imagem
abstracta (http://can-ran.com/#/vai-vem/). A
obra revela-se assim à medida que o per-
curso é feito, introduzindo a já mencionada
dimensão de tempo.

Como motivo principal da composição Eléctrico realizando o percurso ascendente, o qual parece ser
sugerido pelo padrão de setas presente no painel.
destaca-se a sucessão de setas que, numa
perspectiva ilusionística de estruturas pe-
riódicas20, parecem não só apontar os dois
sentidos do percurso – vai/vem – mais tam-
bém acentuar a inclinação do mesmo, numa
aproximação à sinalética de trânsito que an-
tecipa os diferentes acidentes de percurso.
Catarina e Rita Almada Negreiros optaram
pelo uso exclusivo do preto e do branco21,
assim como pela alternância entre azulejo
liso e “azulejo cinético”22 cujo relevo pare-
ce simular uma gradação de tons cinzentos,
ainda que se trate de uma entre as várias ilu-

– DANIELA SIMÕES 169


sões de óptica que esta obra comporta. Tal
escolha cromática remete igualmente para
as cores da cidade de Lisboa, bem como
para um certo universo digital, pela suges-
tão de “pixelização” que algumas das partes
do revestimento azulejar comportam.

Considerações Finais

As relações que se estabelecem entre in-


divíduo e espaço público assumem uma
Pormenor de uma das extremidades do padrão, crescente complexidade no contexto da
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

destacando-se a presença do “azulejo cinético”. cidade contemporânea, não apenas do


Fotografia da autora (2015).
ponto de vista urbanístico e paisagístico com
a crescente densificação da malha urbana,
das linhas de transportes e deslocações
diárias de passageiros, mas também sob o
prisma cultural e social, na relação de per-
tença e participação que o indivíduo esta-
belece com o espaço público no seu quo-
tidiano. A arte pública apresenta-se como
um agente central no estreitar destas liga-
ções, incentivando novas leituras do espaço
público através de um questionamento dos
moldes em que decorre o acto perceptivo.

Pormenor da assinatura da obra, verificando-se a alternância É este o campo de investigação de Catari-


entre azulejos lisos e relevados.
Fotografia da autora (2015). na e Rita Almada Negreiros, cujo recurso ao
azulejo como material privilegiado nas suas
intervenções permite ancorá-las a uma tra-
dição de valorização deste material já cons-
tatada nos trabalhos de Maria Keil e Eduar-
do Nery. Para além deste aspecto, outros
pontos de contacto podem ser sublinha-
dos: a preferência por espaços e infra-estru-
turas ligadas ao transporte de passageiros,
o emprego de formas abstractas e geomé-
tricas, bem como de tonalidades que, pelos
efeitos ilusionísticos produzidos, remetem
(tal como na obra de Eduardo Nery) para
um vocabulário próximo da Op Art, e ainda – Bibliografia
o papel fulcral desempenhado pelo movi-
mento no processo interacção entre obra e Obras consultadas:
observador. Tal proximidade de princípios BARRETT, Cyrill, Op Art. London:
levou ainda a que, em 2009, Catarina e Rita Studio Vista, 1970
Almada Negreiros colaborassem com Maria BEAUDELAIRE, Charles, O Pintor
Keil na concepção dos padrões azulejares da Vida Moderna. Lisboa: Vega,
que decoram a estação de metro de São Se- 1992 (1863)
bastião, sendo que, enquanto o revestimen- CASTE-BRANCO, João Pereira,
to das paredes do átrio e escadarias ficou a Azulejos no Metropolitano de Lis-
cargo das primeiras (tendo aí sido empre- boa. Lisboa: Metropolitano de Lis-
gue o “azulejo cinético” pela primeira vez), boa, 1990
Maria Keil ocupou-se das paredes das plata- CORREIA, Vítor, Arte pública, seu
formas, dialogando de uma forma profícua significado e função. Lisboa: Fonte
os dois revestimentos criados. da Palavra, 2013
ECO, Umberto, A Obra Aberta. São
O jogo de formas, cores e relevos (por via Paulo: Editora Perspectiva, S.A.,
do emprego do “azulejo cinético”) em que 1991 (1962)
as intervenções de Catarina e Rita se ba- GONÇALVES, Clara Germana, No
seiam, se por um lado se apresentam como Ritmo: A arquitectura de Catarina e
atractivas para a visão, por outro lado desa- Rita Almada Negreiros. In Jornal de
fiam-na, pois nelas reside uma ambiguida- Arquitectos, nº242, Jul-Set 2011,
de e ilusionismo que, aliados à forma ines- pp.14-17
perada como se apresentam ao observador, MECO, José, Os Azulejos do Metro-
convidam a uma interrogação sobre esse politano de Lisboa. In Artes Plásti-
encontro constante que é o do corpo com o cas, nº10, Maio 1991, pp.25-28
mundo. As duas obras azulejares analisadas MERLEAU-PONTY, Maurice, O
– Cota Zero e Vai Vem - apresentam-se como Olho e o Espírito. Lisboa: Vega,
fruto de um trabalho multifacetado, onde se 1992 (1961)
congregam áreas como a arquitectura, artes MILES, Malcom, Art, Space and the
plásticas e design, num espírito de diálogo City: Public art and urban features.
que se encontra na génese dos Ateliers de New York/London: Routledge,
Santa Catarina. 1997
SENNETT, Richard, Flesh and
Stone: The Body and the City in
Western Civilization. New York/
London: W. W. Norton & Company,
1994

– DANIELA SIMÕES 171


— Em linha: rina em 2000. Segundo revelam, dencial Campolide Parque, em Lis-
neste espaço colectivo de ateliers boa, Arq. José Soalheiro e Teresa
NÓBREGA, Teresinha Petrúcia da, onde trabalham, coexistem, para Castro, 2006), Cais Fluvial do Aero-
Corpo, Conhecimento e Percepção além da arquitectura, diferentes porto de Linzhi (projecto arquitec-
em Merleau-Ponty. Universidade actividades que se relacionam tónico, Tibete, 2008), Cota Zero
Federal do Rio Grande do Norte, com um sentido amplo do termo (intervenção plástica com recurso
2008. Disponível em: design: urbanismo, design indus- ao revestimento azulejar do tecto e
http://www.scielo.br/pdf/epsic/ trial, design gráfico, Web design, das colunas do novo átrio da Esta-
v13n2/06.pdf vídeo, música artes plásticas, ilus- ção Sul/Sueste no Terreiro do Paço,
http://can-ran.com/#/vai-vem/ tração. Acredita-se que, cruzando 2011, Vencedor do Prémio SOS
http://can-ran.com/#/cota-zero/ quer diferentes modos de pensar Azulejo 2011 e um dos finalistas do
Elas trabalham a arquitec- uma mesma disciplina, quer outros prémio European Prize for Urban
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

tura azulejar. In Dinheiro Vivo, modos de pensar e fazer (num sen- Public Space), tratamento plástico
04/05/2012. Disponível em: tido lato), as diferentes colabora- da Estação de Metro de São Sebas-
http://www.dinheirovivo.pt/faz/ ções concorrem para um enriqueci- tião (revestimento azulejar em par-
pessoas/interior.aspx?content_ mento de cada área específica. (…) ceria com Maria Keil, 2012), Vai
id=3913881&page=2 Neste “atelier de arquitectura” nem Vem (painéis de azulejo nos muros
http://redeazulejo.fl.ul.pt/noti- todos os trabalhos desenvolvidos anexos ao Ascensor da Bica, 2013),
cias,0,589.aspx são os “habituais” projectos de Reminiscência (escultura, Avenida
arquitectura. Mas ainda que o não Ribeira das Naus, Lisboa, 2014).
– Notas sejam são, na realidade, quer deter- Website: http://can-ran.com/
minantes na identidade do objecto 3
A problematização do conceito
1
Como exemplo destas propostas arquitectónico em que se inse- de espaço público e das suas dife-
destacam-se a Op Art, Kinetic Art rem, quer veículos de uma ideia e rentes leituras e significados é
(Arte Cinética), Colour Field Pain- arquitectura em que os aspectos abordada por Victor Correia em
ting, Minimal Art (Minimalismo), sensitivos são como fundamen- Arte Pública, seu significado e fun-
Performance Art, Hiper Realismo, tais. Fundamentais na caracteriza- ção. Lisboa: Fonte da Palavra, 2013.
entre outras. Contudo, as pesqui- ção do espaço: potencializa-se a Partindo da proposta de defini-
sas relacionadas com as implica- capacidade própria da arquitec- ção deste autor, o espaço público
ções do movimento na obra artísti- tura, de alterar – (re)criar – o indife- é entendido como um espaço em
ca e do seu impacto na percepção rente, o vago: ou seja, a capacidade que a vida dos cidadãos se desen-
haviam já sido afloradas ao longo do “desenho” adjectivar as formas rola e se efectiva, ou potencial-
da primeira metade de novecen- (GONÇALVES:2011, 14). Como mente, concedendo à componente
tos, com as propostas do Cubismo, principais intervenções da autoria social urbanística um lugar central
Futurismo, Construtivismo, Orfis- de Catarina e Rita Almada Negrei- na constituição das práticas sociais
mo e em alguns trabalhos dadaís- ros destacam-se Lustre 177 (inter- e culturais. Ou seja, trata-se de um
tas, em particular na obra de Mar- venção no átrio do edifício de habi- espaço físico e material, aberto, de
cel Duchamp (1887-1968). tação Lisboa Loft, 2003), Estratégia inter-ligação e controlo das diferen-
2
Catarina e Rita Almada Negreiros de Iluminação (projecto de ilumi- ças sociais, étnicas e culturais, que
fundaram os Ateliers de Santa Cata- nação inserido no conjunto resi- se condensa sobretudo na cidade
contemporânea (CORREIA:2013, 9). mas características e interesses), (1863) da autoria de Charles Bau-
4
Como exemplos de espaços de mas vários tipos de público, pelo delaire (1821-1967), no qual o
acesso público citam-se ruas e que a concepção de intervenções autor descreve a Paris haussema-
praças, edifícios administrativos de arte pública com base numa niana, “capital do mundo”, intro-
e governativos, parques e jardins, visão generalista do público a que duzindo o leitor à figura do flâ-
escolas, hospitais, tribunais, esta- esta se destina leva frequente- neur. Para este, eleger domicílio no
ções de comboio e metro, entre mente a uma falta de interesse e meio da multidão, no inconstante,
outros. A instalação de obras participação na recepção e interac- no movimento, no fugitivo e no
nestes espaços resulta frequente- ção com a obra, já que esta apenas infinito, constitui um imenso gozo.
mente de actividade mecenática, parece apelar e ser acessível a uma Estar fora de casa e, no entanto,
mas também de encomendas reali- minoria. Não obstante a importân- sentir-se em todo o lado em casa;
zadas pelos órgãos administrativos cia de tais questões, o presente ver o mundo, estar no centro do
(de cariz público ou privado), muni- texto opta por deixa-las de parte, mundo, permanecer escondido do
cipais ou mesmo estatais. Ainda devido a serem outras as que pre- mundo, tais são alguns dos peque-
que do ponto de vista da proprie- tende abordar. Para uma leitura nos prazeres destes espíritos inde-
dade, estas obras de arte possam mais aprofundada sobre as contra- pendentes, apaixonados, impar-
estar situadas em espaços priva- dições da arte pública no que se ciais, que a língua apenas pode
dos (não pertencentes ao Estado), refere aos seus públicos e recep- definir de um modo imperfeito
se estes forem concebidos para ção sugere-se a leitura do capítulo (BAUDELAIRE:1992,18)
usufruto público, as criações artís- The contradictions of public art, 8
Tal atitude havia já sido preconi-
ticas neles presentes deverão ser parte integrante da obra Art Space zada por Hector Guimard (1867-
consideradas como manifestações and the City (MILES:1997). 1942), aquando da concepção das
de arte pública. 6
Neste contexto vale a pena relem- entradas e respectivas estruturas
5
No entanto, muitos são os exem- brar Umberto Eco quando na sua decorativas art nouveau do Metro-
plos de arte pública criada à mar- publicação seminal A Obra Aberta politano de Paris, inaugurado
gem das encomendas institucio- (1962) afirma que uma obra de entre 1899 e 1900. Os metropo-
nais, funcionando muitas vezes arte, forma acabada e “fechada” na litanos de Londres e Nova Iorque
como uma crítica ao próprio modo sua perfeição de organismo per- (inaugurados ainda no século XIX)
de funcionamento das mesmas, feitamente calibrado, é também demarcaram-se igualmente pela
assim como da própria sociedade aberta, isto é, passível de mil inter- atenção que foi dada à decora-
que, na sua tentativa de unifor- pretações diferentes, sem que isso ção das gares, plataformas e cor-
mização de gostos e comporta- redunde na alteração da sua irrepro- redores, através do emprego de
mentos, segrega comunidades duzível singularidade. Cada fruição azulejo, essencialmente de pro-
e grupos pelo seu “não encaixe” é, assim, uma “interpretação” e uma dução industrial, cujo vocabulário
nos padrões dominantes (Graf- “execução”, pois em cada fruição a oscilou entre o do Modern Style e
fiti, Street Art, Performance, …). obra revive dentro de uma perspec- o da Arte Deco.
Esta questão traduz-se igualmente tiva original (ECO:1991, 40). 9
O início da construção do
numa outra, isto é, nos públicos da 7
No contexto da formação da primeiro troço do projecto teve iní-
arte pública, dado que não existe cidade oitocentista destaca-se o cio em Agosto de 1955, tendo as
um público (uniforme, com as mes- texto O Pintor da Vida Moderna primeiras estações sido inaugura-

– DANIELA SIMÕES 173


das em Dezembro de 1959. material formado pela repetição de amount of concentration on the pic-
10
Ainda que maioritariamente placas com forma seriada (MECO: ture before it takes place (…). We
compostos por motivos seriados, 1991,28). observe something which we could
os revestimentos concebidos por 11
Um dos conceitos criados por not have observed before, since a
Maria Keil procuraram a fuga à Eduardo Nery para a ancoragem period of time is required for this
repetição infinita do módulo azule- teórica do seu trabalho foi o de phenomenon to happen. (…) There
jar, através quer do diálogo entre “Mobilidade Visual”, ou seja, “a is also, corresponding to formal
vários padrões, quer da introdução permanente mudança dos dados movement, a kind of formal tempo.
de subtis variações nos mesmos, perceptivos, tanto no campo ope- This may be due to speed of the eye
capazes de “prender” o observa- rativo concreto como na fluidez das movement or to visual equivalent
dor - utente, levando-o a ques- memórias que atravessam a face of suggestion of slow, fast, endless
tionar o todo percepcionado. Tal equívoca dos objectos”. Percep- or arrested movement (BARRETT:
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

como apontado pela artista, cada ção e memória exactamente (AZE- 1970, 99).
revestimento é concebido como VEDO:1997, 21). 14
Neste caso o tempo que é o
uma arquitectura cenográfica ins- 12
Tal como apontado por Cyrill Bar- necessário para realizar o percurso,
tauradora de um espaço lugar rett, where the elements are simple isto é, a deslocação no espaço.
autónomo, por articulação de seg- and continuously repeated over the 15
Ainda que o carácter de site-spe-
mentos de padrões, dispostos de surface, where the surface pattern cific seja uma das marcas mais
modo irregular e dinâmico, em fun- is homogeneous and no element is comuns da arte pública, nem
ção dos ritmos de utilização, ascen- dominant, the eye is bluffed by its sempre esta especificidade se
dente e descendente, dos lances vain attempts to organize the data verifica, podendo o artista realizar
das escadas, com evidente mas before it. (…) The Op artist, there- várias reproduções da mesma obra
fundamental recusa do padrão fore, “provokes” the spectator. But e integra-la em contextos arquitec-
em tradicional disposição serial, the initial situation which he pre- tónicos e urbanísticos variados.
criando uma “obsessiva constru- sents is “pre-planned” and confines Outro aspecto associado à arte
ção por sobrearticulação de planos the spectator’s activity to more or pública é a sua presença quoti-
– redes de movimento, como se a less optical response. Neverthe- diana na vida das populações,
parede se desmultiplicasse numa less, it is impossible for the specta- embora muitas das manifestações
espacialidade imaterial de cortinas tor to remain inactive: he must react artísticas deste tipo se definam
entreabertas (CASTEL-BRANCO: (BARRETT: 1970, 102-104). essencialmente pelo seu carácter
2000, 14). A intensidade cromá- 13
Ainda que seja possível argu- efémero, como é o caso do graffiti,
tica e o brilho que caracterizam o mentar que tal dimensão temporal do cartaz, da performance, entre
azulejo, aliados à malha reticular se verifica aquando do processo outros.
em que assentam intervêm acti- de recepção de qualquer objecto 16
O revestimento azulejar ocupa
vamente no diálogo pretendido, artístico, no caso das obras de cariz uma área total de 480m2.
acentuando ainda mais a concep- op art e cinéticas tal dimensão tem- 17
“Moiré” is a French Word mea-
ção global da decoração de cada poral deriva da noção de movi- ning “watered” and was first
espaço, partindo do todo para as mento, uma vez que this kind of applied to fabrics known in English
diversas partes, e da necessidade movement is not always apparent as “watered-silk”. The water –like
de não apagar o azulejo enquanto at once. It usually requires a certain effect is produced by doubling a
glossy fabric with a parallel weave achieved by the use of black and
so that the parallel cords are nearly white alone. By excluding colour,
aligned, and pressing the surface the artist can produce the effects he
together (BARRETT: 1970, 65). wants without the added complexi-
18
Segundo as autoras, no revesti- ties which colour brings with it. (…)
mento do tecto foram utilizados Secondly, black and white is more
dez tons – os mais claros – e nas dramatic in its effect. It is more dyna-
colunas os restantes dez – mais mic; it carries more punch; it affords
escuros (http://can-ran.com/#/ a greater contrast. Black and white
cota-zero/). act like complementary colours
19
Num total de 52m2 de reves- but with greater effect because of
timento azulejar, articulando-se the strong contrast between them.
com o projecto de requalificação The contrast also helps to make the
da Bica, da autoria da arquitecta forms clear-cut and incisive, and
Teresa Nunes da Ponte. clear definition of form is essential
20
O movimento ilusionista conhe- for certain kinds of optical effect
cido na Psicologia das For- (BARRETT: 1970, 38).
mas como “periodic structures” 22
O azulejo cinético havia já sido
define-se como functions which empregue no revestimento da
repeat the same values at regular estação de metro de São Sebas-
intervals, as the variable increases tião, realizado em 2009.
or decreases uniformly. In less
technical language, they consist of
a repetition of simple geometrical
elements – lines, squares, circles,
triangles, etc. The characteristic fea-
ture of a periodic structure is that
the elements are virtually anony-
mous; that is, one can observe them
individually with difficulty or not at
all. (…) They merge or fuse together
to form a recognizable image in
black and white and various shades
of grey (…) (BARRETT:1970, 38).
21
Citando novamente Cyrill Barret,
the use to which Op artists put their
visual effects can most easily be
demonstrated in black and white.
(…) The reason for this is twofold.
First, most optical effects can be

– DANIELA SIMÕES 175


A Arte de José Datrino,
O 'Profeta Gentileza', e suas 56 Inscrições
nas Pilastras do Viaduto da Avenida Brasil
no Rio de Janeiro.

por Angela Ancora da Luz


– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

Historiadora e Crítica de Arte, vice-Presidente da ABCA, Professora da


Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Le «Prophète Gentillesse» comme il est connu, a cherché


à humaniser la ville de Rio de Janeiro, avec des peintures
réalisées, sur les piliers du viaduc de l’Avenida Brasil «  Gentileza gera gentileza  », tema que se
(Avenue Brésil), près de la zone portuaire. Lieu de tornou a marca de José Datrino1, e que o in-
circulation de plus de cent mille véhicules, par jour, dentifica no universo de sua produção artís-
l’oeuvre est présentée avec le caractère de «livre urbain», tica, tornou-se o fulcro de uma mensagem
avec des mots peints, en titres superposés et révélés, profética, proclamada pela boca de um ho-
sur des murs, formellement, dans d’une composition mem simples que deambulava pela cidade
constructive. Le message de paix et d’amour cherche do Rio de Janeiro e pintava mensagens nos
à neutraliser l’agression de la ville, donnant des pilares do Viaduto da Avenida Brasil. Sua
encouragements pour ceux qui passent et l’espoir à ceux arte foi aos poucos modificando o cinza dos
qui prennent refuge, dans les travées du viaduc. Les muros, colorindo de esperança a vida dos
phrases apparaissent comme des versets numérotés, que por ali passavam, revelando-se como li-
commeun poème mystique, qui fait partie du patrimoine vro aberto para inspirar o povo.
culturel de la ville de Rio de Janeiro. Les panneaux ont
été peints, dans les années 1980, sur 55 piliers du viaduc Durante a década de 1980 o artista pintou
et la peinture enregistrée par la Mairie, en 2000, à rester suas mensagens nos pilares do viaduto. Fo-
en tantque mémoire de la ville. L’oeuvre de Gentillesse ram 56 inscrições muralistas, textos pautados,
intervient dans les zones urbaines, avec une force que guardam uma sequência a ser lida, pre-
indéniable et sera présentée comme un objet d’étude, ferencialmente, da última para a primeira pi-
pour que nous puissions mieux discuter des questions lastra, aonde o profeta ficava, acenando para
liées à l’art public. o povo e proclamando sua mensagem.
Na década seguinte, alguns vândalos dani- bom termo o projeto. Os custos foram co-
ficaram os murais que foram então cober- bertos pelo Operador Nacional do Sistema
tos com tinta cinza pela COMLURB2. A po- Elétrico (ONS).
pulação reclamou. Vozes se levantaram de
todos os cantos clamando por « gentileza ». Para se ter uma idéia do impacto que o Pro-
Marisa Monte3 e Gonzaguinha4 compuseram feta Gentileza causava com suas frases de
músicas que exaltavam a mensagem deste encorajamento, em 2009, quando foi ao ar
artista que sai do anonimato para se tornar a telenovela “Caminho das Índias”, a auto-
referência na arte pública do Rio de Janeiro. ra Gloria Perez fez uma homenagem a José
Datrino, trazendo-o à vida6 através do ator
Através das cartas enviadas às redações dos Paulo José, que perambulava pelas ruas do
jornais as pessoas se posicionavam. Entre- Rio com seu estandarte e sua pregação.
vistas colhidas nas ruas, por pessoas que
passavam diariamente pelo local, davam Para Washington Fajardo, presidente do Ins-
conta do sentimento de perda que a popu- tituto Rio Patrimônio da Humanidade e do
lação manifestava diante dos muros cinzas. Conselho Municipal de Proteção do Patri-
Por iniciativa da Pró-Reitoria de Extensão da mônio Cultural, os murais de Gentileza vão
Universidade Federal Fluminense, o projeto permanecer. O mais recente ataque veio
« Rio com Gentileza » foi elaborado, objeti- desta vez do planejamento urbano da ci-
vando a restauração e preservação dos mu- dade, pois três dos cinqüenta e seis pila-
rais, dando atendimento às vozes de Marina res do viaduto estavam no último trecho do
Monte e Gonzaguinha e ao apelo popular elevado que foi demolido, de acordo com
através da mídia. O Consórcio Novo Rio, a o plano de mobilidade urbana para a zona
Socicam5, a Secretaria Municipal de Cultu- portuária da cidade. Fajardo foi taxativo ao
ra do Rio de Janeiro e as empresas Ponto afirmar:
de Bala, Fosroc Reax Tintas, GP Andaimes e
Wherever se uniram em apoio ao empreen- “— Vão passar mais mil anos e as pinturas vão
dimento e, a partir de 1999 começa a recu- ficar ali. É a obra de um personagem urbano,
peração dos mesmos até que em maio de que surge pela cidade e que traz uma men-
2000 a restauração é concluída e a obra sagem mística. São pinturas organizadas
tombada pela Prefeitura. como versículos. Por isso, têm numeração”7

Anos mais tarde, em março de 2011, novo O cumprimento da promessa se iniciou com
projeto de restauração é elaborado, como a sua preservação, pois, os três pilares que
presente pelo aniversário para a cidade. estavam na área da demolição tiveram ape-
Desta vez, o movimento “Rio com Gentile- nas a parte superior, chamada de tabulei-
za”, que fora criado em 1999, na Universi- ro, retirada, sendo mantidos os pilares que
dade Federal Fluminense (UFF), reúne uma guardam as mensagens e proclamações de
equipe formada por dois restauradores e Gentileza. Os demais estavam fora da área
quatro pintores assistentes que levam a prevista para a demolição.

– ANGELA ANCORA LUZ 177


“Onde tiver pintura do Gentileza, nós vamos diferentes fenômenos da sociedade urba-
manter as pilastras! Garante Paes [prefeito na, defendendo que a identidade de uma
da cidade do Rio de Janeiro]. A idéia é que cidade torna-se mais importante do que a
elas fiquem intactas na Avenida Rodrigues sua própria herança.
Alves. Mas ainda há, segundo o coordena-
dor do Programa Maravilha Cultural e res- Os escritos do Profeta Gentileza criaram
ponsável por projetos de preservação do uma identidade para o local do qual se
Patrimônio e História da Região, Alberto apoderaram. Sua pintura vai além de versos
Silva, a possibilidade de serem removidas superpostos, divididos em faixas paralelas,
para outro local, como uma praça, um me- como os registros da pintura egípcia.
morial ou mesmo um museu. Nenhuma das
pilastras com a arte do caminhante incansá- Sobre um espaço organizado entre duas fai-
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

vel José Datrino (nome verdadeiro de Gen- xas horizontais as letras adquirem a estatura
tileza), todavia, será derrubada [...] A idéia é de figuras que se ajustam lado a lado e vão
preservá-las de qualquer jeito, com um tra- criando um tecido rigoroso. As palavras, or-
tamento urbanístico, mas ainda não há uma denadoras das imagens, não estão subme-
definição do que será feito».8 tidas ao rigor ortográfico, elas são figuras
repletas de significados, não apenas no que
O que faz uma obra pública adquirir tal força concerne ao entendimento da própria pa-
de permanência, apesar de exposta a todas lavra, mas elas são plurívocas e simbólicas.
as possibilidades de agressão e desapare-
cimento? O que mobilizou o povo a se unir Em suas imagens surgem outros entendi-
pela preservação dos murais? O que deter- mentos revelados apenas aos que alcan-
minou que, após ser coberta pela tinta cinza, çam a mesma sintonia espiritual de Gentile-
quando deixou de existir na concretude visí- za. “UNIVVVERRSSO” está assim registrado
vel dos passantes pudesse continuar a pro- porque a repetição das letras não se deu
clamar sua mensagem de AMORRR com três por descuido ou erro, mas pela carga da
“erres”9 e com tal força, que ressurgiu restau- mensagem que o profeta desejava procla-
rada por ordem da própria prefeitura? mar. As letras repetidas, como por exemplo,
os ‘três vês’ de ‘univvverso’, sinalizavam uma
A arte pública tem como cenário a cidade existência superior e não a comum. Assim,
e existe no imaginário do povo que transita para cada alteração ortográfica criada pelo
por suas ruas e logradouros. Não podemos artista a palavra continuava a revelar o seu
pensar em cidade apenas como um conjun- significado primeiro, mas passava, também,
to de edificações que estão dispostas nos a emitir novos significados para os que do-
traçados regulares de um espaço delimita- minavam os códigos do profeta.
do e que possuem organização e distribui-
ção ordenadas de funções públicas. Para Os painéis eram coloridos em função das le-
Argan, a cidade é muito mais do que isto10. tras e das faixas que delimitavam o espaço.
Para ele a arte tem as explicações para os Verde, amarelo, azul, preto, branco eram as
mais utilizadas. Havia o vermelho, menos uti-
lizado, mas presente em alguns pequenos
textos, como fundo a destacar as palavras.

A grande intervenção na cidade se deu


como vocação maior de José Datrino, que
necessitava reverberar, como o profeta no
deserto, o aconselhamento para que o povo
meditasse na necessidade de uma nova
conduta ética e moral11. Mas ele gritava em
silêncio, clamando em textos que foram co-
brindo os pilares do viaduto da Avenida
Brasil. Ele também carregava estandartes
com seus escritos, sempre seguindo a mes- Caracteres desenhados por Gentileza e transpostos para
fonte digital.12
ma poética de registros. Com as longas bar-
bas e a túnica que ia aos pés ele era uma
figura que se destacava nas ruas da cidade.
Levava flores para distribuir enquanto em-
punhava o estandarte para proclamar este
novo tempo messiânico que ia anunciando.
Não recebia dinheiro pelo que oferecia. Era
anticapitalista. Grafava capitalismo com “e”
criando um duplo significado: “CAPETALIS-
MO”. Sua máxima era: GENTILEZA + GERA
=> GENTILEZA.

Do ponto de vista gráfico, e aqui podemos


observar um acento importante de arte gráfi-
ca em sua pintura, o artista cria uma tipologia
própria para grafar suas letras e caracteres.

Os cinqüenta e seis painéis pintados nas pi-


lastras do viaduto compõem uma obra mu-
ral, em capítulos, numa extensão de cerca de
1500 metros, na zona portuária do Rio. Genti-
leza escreveu sua mensagem propositalmen-
te na entrada da cidade, segundo o historia-
dor Leonardo Guelman, que observa como o
artista planejava e projetava sua obra:

– ANGELA ANCORA LUZ 179


“O profeta planejou-a realizando, previamen- cas que já o aproximam das descrições dos
te, um caderno de rascunhos com manuscri- profetas do Antigo Testamento e reforçam o
tos. Sua espacialização segue a coerência de significado do que proclamava. Havia ainda
seus conteúdos, por isso estabeleceu cuida- os atributos que reforçavam a carga mística
dosamente a seqüência das mensagens, nu- de Gentileza. Ele levava um estandarte com
merando as pilastras. Nada é aleatório.”13 sua mensagem de apresentação. Da mes-
ma forma que nos muros, ele usou a com-
Pela seqüência das mensagens a obra ad- posição em faixas mantendo o padrão que
quire o caráter de “Livro urbano”, conforme confere identidade à obra do artista e apre-
ressalta Leonardo Guelman. Um livro para senta o resumo preciso de sua mensagem
ser lido, para ser assimilado no contexto da mística. Na primeira linha, ao alto, vemos a
própria cidade. Obra urbana, pública, que representação de três estrelas. Logo abaixo
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

instaurou a identidade de seu artista nos se seguem as apresentações. “DEUS 1º >


muros do viaduto. PAE >” e, a seguir, ocupando toda a exten-
são da faixa a palavra “GENTILEZA”, alguns
Gentileza, que é a palavra chave de seus tex- signos e números; seguem-se as demais
tos, torna-se também seu nome. Ela está car- faixas com os dizeres “CRRIADO”, “UNIV-
regada de atributos de generosidade e re- VVERRSSO”, “2º FILHO”, “JESSUSS”, “PORR
ciprocidade, conforme Guelman esclarece. GENTILEZA”, “SANTO”, “IRRMÃO”, “3º ESPÍ-
Para José Datrino não se deveria pedir “por RITO SANTO”, “JOZZE AGRADECIDO”, “SE-
favor,” mas, “por gentileza”, isto porque o fa- NHOR”, “PAPAE DE JESSUSS”, “SANTO”, 4º
vor guarda certo interesse das partes, solici- SSENHORRA”, “MAMÃE”, “MARRIA”, “APAR-
ta retribuição, portanto está de acordo com RECIDA”, “COM”, “AMORRR”, “E”, “HONRRA”.
a visão capitalista da sociedade, enquanto
gentileza revela gratuidade, generosida- Na parte superior do estandarte ele colo-
de. “Favor” e “obrigado” são palavras que cava as flores, os cata-ventos, que simboli-
condenam, enquanto “gentileza” e “agrade- zavam como a mente humana deveria ser:
cido” são palavras que libertam. Para ele a livre e fluida, além de palmas e pequenos
natureza entrega-nos tudo gratuitamente, enfeites. Sua bata era também decorada
diferente do mundo capitalista, que para o com aplicações retangulares com dizeres
profeta era uma sociedade “capetalista”, ou que endossavam o conteúdo de sua men-
seja, “do capeta”, que deveria ser aniquilada sagem. Ele se considerava um jardineiro de
pelo poder do amor e da gentileza. Deus, sendo que as flores eram os homens
que ele deveria cuidar. Calçava sapatos tam-
Além da força da mensagem pintada ao bém por ele decorados com elementos sim-
longo de quase um quilômetro e meio de bólicos que completavam o conjunto deste
muros, a obra tem um componente perfor- homem, quase uma parte viva de seus mu-
mático na pessoa do próprio artista. Suas rais, que podia andar livremente levando
longas barbas, seu rosto vincado de sulcos, com ele a mensagem para alcançar os que
olhos brilhantes e fundos são característi- estavam distantes dos muros do viaduto.
As aparições de Gentileza no espaço públi- Como artista performático a percorrer a ci-
co da cidade eram sempre performáticas. dade ele cunhava ditos de fácil assimilação,
Sua obra era engajada, como convém à arte reforçando a mensagem que transmitia. Por
pública, que deve estabelecer com o frui- exemplo: “se a saia sobe a moral desce e se
dor o fluxo de seus próprios interesses, de- a saia desce a moral sobe”. Levava desta for-
sejos, anseios, sejam místicos ou políticos, ma uma mensagem moralista que, não ra-
de informação ou de denúncia, de clamor ras vezes procurava ser imposta com certo
ou de reflexão. tom de agressividade. Era paradoxal. Com
um semblante sereno, quase angelical, ele
A finalidade precípua da arte pública é a se agitava quando via mulheres com batons
criação de um espaço de discussão dentro fortes e chamativos, usando roupas justas e
do espaço da cidade. Não objetiva o seu curtas. Ele vociferava, ameaçava apocalipti-
embelezamento, mas a conscientização do camente e seguia, sempre utilizando o espa-
povo da cidade em relação ao seu momen- ço público para se comunicar, quer através
to. “A arte pública deixa de atender priori- de seu “Livro Urbano”, quer em seu embate
tariamente ao embelezamento urbano e pessoal pelas ruas da cidade, distribuindo
surge como a possibilidade de redefinir flores como o “bom jardineiro de Deus.”.
a experiência do lugar, por meio da expe-
riência de um sítio expandido.”14 É o que se Nos muros ele pintava seus textos seguin-
observa na arte do Profeta Gentileza cujas do duas possibilidades. A de que fossem
cinqüenta e seis inscrições nas pilastras do lidos pelos passageiros de ônibus, ou que
viaduto redefiniram a experiência do lugar e fossem alcançados pelos que viajam em
continuam interagindo com as pessoas. carros. No primeiro caso, a velocidade do
veículo não permitiria a leitura total de
A ordem ideal para a leitura de suas mensa- cada painel, mas ficariam as palavras cha-
gens deve seguir a seqüência do último pai- ves, destacadas pelo profeta em sua pre-
nel, o de número 55, para o primeiro, no sen- gação. O fruidor teria apenas a percepção
tido Caju => Av. Francisco Bicalho. São 56 do todo e a retenção de algumas frases.
inscrições ao todo.15 Ele inicia sua mensagem A mais emblemática: “GENTILEZA GERA
ensinando ao público que o mundo é uma GENTILEZA”. No segundo caso, o motoris-
escola e que as palavras “Gentileza” e “Agra- ta poderia imprimir uma velocidade menor
decido” devem substituir às que normalmen- ao carro e conseguir ler uma quantidade
te são usadas como “Por favor” e “Obrigado”. maior de suas reflexões.
A primeira porque, como já foi esclarecido,
implica numa obrigação, exigindo uma tro- A arte pública não nasce para ser contem-
ca, enquanto a segunda, deve ser eliminada, plada de uma só vez. Ela necessita do tem-
pois ninguém deve ser “obrigado” a coisa al- po cumulativo, das muitas passagens pelo
guma. O homem nasceu para ser livre, para local em que ela se encontra, de ser lida
respeitar a natureza, devendo tomar cuidado aos pedaços, ser contemplada em diferen-
com o vício, com a nudez e com o carnaval.

– ANGELA ANCORA LUZ 181


tes ângulos, ser acrescentada a cada en- Durante muito tempo o Rio de Janeiro foi
contro pela própria obra de modo a que a capital do Brasil e conferia o caráter ofi-
possa ampliar-se sucessivamente. cial ao que aqui se realizava. A nação era
vista por seu intermédio. Com a mudança
“O artista deve ter a consciência de que a da capital para Brasília, em 1960, o Rio não
obra não será contemplada de uma só vez perdeu a força de ser um dos pólos mais in-
e por inteiro pelo transeunte, mas que este fluentes na divulgação das idéias para todo
absorverá gradativamente a imagem da o cenário nacional, o que nos leva a pensar
obra na medida em que transita no ambien- que a escolha do Rio, por Gentileza, foi em-
te onde ela se encontra instalada, até formar blemática. Ele sabia que a cidade divulga-
o todo em sua memória”.16 ria suas idéias e mensagens, sendo, portan-
to, necessário buscar o melhor canal para a
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

Diferente de outros artistas que têm patroci- veiculação das mesmas. A importância do
nadores para realizarem a arte pública, Gen- viaduto na zona portuária, junto à rodoviá-
tileza não aceitava dinheiro por seu trabalho. ria era a escolha acertada. Gentileza intui a
Era uma espécie de missionário que deveria força do local escolhido, como pólo de di-
distribuir gratuitamente o que havia recebido. vulgação de seu discurso visual.

Por outro lado, a arte pública possibilita ao A zona portuária era uma região de grande
artista uma experiência mais dinâmica e so- permissividade moral, de baixa qualidade de
cial do que aquele que cria no interior de seu vida, de expressivo volume de pessoas que
ateliê. Ele não está preocupado em “vender” se misturavam heterogeneamente aos que
sua obra. Se for patrocinado ele vai receber chegavam de minuto a minuto na Rodoviá-
pelo trabalho o valor acordado, mas, se for ria Novo Rio. Além disso, o viaduto da Ave-
trabalhar por conta própria vai arcar com os nida Brasil, no trecho do Caju, era um lugar
custos. É este o caso de Gentileza. sombrio, próximo aos grandes cemitérios
da cidade. Uma área que não acolhia o tran-
Deve ser lembrado que o artista que cria seunte. O tom cinza das pilastras despertou
na rua, já está imerso no ambiente que lhe em Gentileza o desejo de recobri-las com
solicita a obra, não por uma encomenda suas mensagens coloridas. Como hera que
contratada, mas por uma necessidade de se apega ao muro e o cobre, mudando suas
diálogo permanente com o espaço públi- características, a intervenção visual provoca-
co e o povo. da pelo artista ao longo de um quilômetro
e meio na via pública seduziu os que passa-
José Datrino percebe que o Rio é a gran- vam diariamente pelo local e trouxe curiosos
de metrópole com força necessária para que se impactavam com as mensagens.
divulgar sua arte e mensagem em todo o
território nacional. Como andarilho ele vai Na arte pública o observador deixa de ser
a muitos lugares, mas volta para o Rio. um espectador distanciado e se torna parte
integrante da própria obra. Ele não vê, ape-
nas, ele é apreendido pela obra e a leva em plena solidão tornamo-nos parte do seu re-
sua memória. A superposição de experiên- pertório total, e todos os nossos sentidos
cias visuais experimentadas a cada vez que entram em perfeita sincronia com o seu
passa pelos locais em que ela se encontra universo”.18 Para o escultor, quando somos
vai construindo “a sua obra”, presente, im- apreendidos pela obra ela não nos deixa
possível de ser desfeita, mesmo que a origi- mais e, para reforçar sua reflexão, Moriconi
nal venha a ser destruída. nos diz que a obra é mais fiel que o homem,
pois ela não nos esquece e nos procura.
O entendimento de “sua obra” se dá a partir
da apreensão de cada fruidor, uma vez que Mesmo no curto espaço de tempo em que
é quase impossível que ele apreenda toda a ela foi coberta de tinta cinza a obra conti-
obra em seus detalhes e informações. É com nuou a procurar os seus alvos, ou seja, “a
o que ele experimenta do objeto, no caso da nós” e a força com que o público se levantou
arte pública, que “a sua obra” é construída. em direção a ela, que já não estava lá, tor-
nou possível sua restauração e seu retorno
Didi-Hubermann destaca o poder da obra ao local de origem, porque efetivamente
de arte quando ela “nos olha”: “nós” éramos parte de seu repertório e não
podíamos desaparecer.
O que vemos só vale – só vive – em nossos
olhos pelo que nos olha. Inelutável, porém é a A arte pública deve ser inicialmente estuda-
cisão que separa dentro de nós o que vemos da no contexto da modernidade. Um dos
daquilo que nos olha. Seria preciso assim par- primeiros grandes movimentos que desta-
tir de novo desse paradoxo em que o ato de camos neste sentido é o do muralismo me-
ver só se manifesta ao abrir-se em dois.17 xicano que se inicia após a revolução de
1910. É certo que, se nos detemos a obser-
A força da obra de arte em relação ao frui- var a arte dos murais percebemos que ela
dor deve ser considerada, no caso de José é talvez a mais antiga expressão artística do
Datrino, na medida em que ele se lança no homem no planeta, isto pensando nas pin-
espaço público e vai ao encontro das pilas- turas parietais da Pré-História que já testifi-
tras cinza. Diferente do impacto de um ou- cavam a necessidade do homem em se ex-
tdoor, cuja linguagem é predeterminada pressar utilizando as paredes e muros como
em função do consumo, a obra de Gentile- suportes naturais para sua arte. Mas a arte
za nos alcança pela necessidade íntima de pública sobre a qual trazemos algumas re-
uma ética esquecida e de uma desesperan- flexões é uma prática social que vai buscar
ça crescente nas grandes metrópoles. Para no espaço urbano o veículo de mudanças
Roberto Moriconi, escultor performático que deseja promover a partir de poéticas,
que viveu no Brasil até sua morte em 1993, escultóricas ou pictóricas, capazes de plas-
“olhar é uma opção de altíssimo risco”, por- mar idéias e constituir intervenções neces-
que podemos ser introjetados pela obra e sárias a criação de um campo em que as
passamos de observadores para alvos. “Em fronteiras entre a política, a sociedade, a

– ANGELA ANCORA LUZ 183


cultura e a ideologia são fluidas, mas pos-
suem um acento eminentemente crítico. O
exemplo maior é a arte do grafite.

Nas pinturas de Gentileza percebemos uma


grande afinidade com os grafites contem-
porâneos. Há uma navalha crítica cortante,
que penetra na alma do povo trazendo ex-
periências catárticas. À medida que vai se
tornando coletiva a obra começa a sair dos
http://www.hojemais.com.br/andradina/noticia/geral/ muros, sendo levada em pequenas frases
exposicao-traz-historia-e-curiosidades-sobre-o-profeta-
para outros suportes. Adesivos para carros,
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

gentileza (foto divulgação)


imãs de geladeira, pulseiras, camisetas es-
tampadas, enfim, toda a sorte de objetos
que pertencem ao universo dos diferentes
grupos sociais e culturais da cidade, que
desfaz suas fronteiras e se aproxima através
dos dizeres: “Gentileza gera gentileza”.

Os grafites surgiram como figuras pintadas


nos muros da cidade de Nova York, na dé-
http://oglobo.globo.com/rio/projeto-recupera-os-56- cada de 1970, diferindo das pichações, que
paineis-de-gentileza-pintados-em-pilares-de-viadutos-da- utilizavam letras existentes ou criadas como
cidade-2817194 Restauração de murais do profeta Gentileza
(foto: divulgação) signos de seus autores. Ambos tinham a fun-
ção social de liberdade de expressão, pro-
curando ocupar o espaço da cidade utilizan-
do um veículo que estivesse ao alcance da
população. Enquanto os grafites evoluíram
para serem absorvidos como arte, as picha-
ções continuaram a ser discriminadas e, qua-
se sempre, consideradas atos de vandalismo.

Podemos fazer uma aproximação dos grafi-


tes de José Datrino com as obras de Jenny
Holzer. O que nela se observa é a utilização
de frases que partem de verdades óbvias,
como “A revolução começa com mudanças
no indivíduo” ou, ainda, quando ela busca
a inspiração em textos que revelam o seu
discurso social, em frases inflamadas proje-
tando sua indignação. Já em Datrino os tex- mo”, “Jesus”, “humanidade” e muitas outras
tos são aconselhadores, buscam o sentido cujos significados reforçam a mensagem de
de elevar o cidadão, trazendo uma esperan- Paz, de organização, de perdão e trabalho.
ça nova. Alguns são até apocalípticos, mas Desta forma, elas se tornam pregnantes e se
sempre revelam a existência de alguém que destacam da parede estimulando a percep-
nos olha e nos ama, enquanto somos nós a ção e possibilitando a reflexão.
olhar o grafite escrito numa caligrafia que,
por si só, já é uma criação à parte. Haveria No espaço público a obra adquire uma di-
ainda muitos outros grafiteiros que pode- mensão peculiar. Não apenas pelo resulta-
ríamos cotejar com o Profeta Gentileza, mas do visual que fica registrado, mas porque o
queremos apresentar especificamente este artista também está presente. No caso de
artista singular, um filósofo ingênuo com ap- Gentileza ele atuava como parte da obra e
tidões artísticas e como ele interveio no es- agente de sua propaganda. Ele se deixava
paço público. fotografar, conversava, oferecia flores e re-
forçava de modo inequívoco a permanência
No caso dos murais de Gentileza, eles se si- da obra.
tuam na fronteira dos grafites e pichações,
tendo sido tombados pelo Patrimônio Cul- Desde a escuridão dos tempos, em que o
tural da Cidade do Rio de Janeiro como homem pintava nas cavernas, a arte mani-
um bem que confere identidade à própria festou sua força como veículo de comunica-
cidade e assim foram instaurados como ção, surgindo no espaço público ao alcance
“obra de arte”. dos deuses e dos homens. Foram necessá-
rios muitos séculos para que o homem fizes-
O artista utiliza letras e signos, o que apro- se suas primeiras exposições artísticas com
ximaria sua pintura das pichações, porém o sentido de levar as obras ao público para
não possui o caráter de liberdade gestual, serem mostradas, apreciadas e, até adquiri-
de movimento e ação da letra em relação das. Sabe-se que a primeira exposição com
ao espaço. As composições possuem cará- tais características só veio a ocorrer no Re-
ter construtivo e as letras são figuras pinta- nascimento, sendo organizada por Giorgi
das, numa tipologia criada pelo artista, que Vasari nas exéquias de Michelângelo. Com
nelas identifica sua força autoral, o que nos a aquisição das obras de arte surgiu o co-
faz considerá-lo “grafiteiro”. Ela possui carac- lecionismo e, já no século XVII os museus
terísticas contemporâneas, na medida em modernos, a partir de doações de coleções
que parece ter consciência do olhar frag- particulares. As famílias principescas acu-
mentado dos transeuntes e da velocidade mulavam objetos de arte da antiguidade, te-
dos veículos que não permitem o tempo de souros e curiosidades que conferiam status
olhar reflexivo aos seus passageiros. As pa- aos proprietários. Os museus19, como guar-
lavras são repetitivas e redundantes, como da destes tesouros que preservaram a me-
“gentileza”, ”amor”, “agradecido”, “natureza”, mória das civilizações e dos povos tiveram
“Deus”, “bondade”, “perfeição”, “capitalis- seu apogeu no século XVIII.

– ANGELA ANCORA LUZ 185


Durante os séculos seguintes eles foram – Bibliografia
os “guardas dos tesouros da humanidade”,
mas, a partir do advento da arte moderna ARGAN, Giulio Carlo – História da
e, mais precisamente na contemporaneida- Arte como História da Cidade. São
de, a arte foi deixando os museus na direção Paulo: Martins Fontes, 1992.
de um público maior e encontrou nas ruas o DIDI-HUBERMAN, Georges – O
espaço público por excelência para criar e que vemos, o que nos olha. São
apresentar suas obras. As condições locais Paulo: Editora 34,1998.
determinaram o caráter efêmero de certas GUELMAN, Leonardo Caravana
obras, sobretudo as pintadas nos muros da – Univvverrsso Gentileza. Rio de
cidade, mas a documentação das mesmas Janeiro: Ed. Mundo das Idéias,
passou a se constituir num novo arquivo da 2009.
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

memória para a preservação destas obras. GUYAU, Jean-Marie – A arte do


ponto de vista sociológico. São
No espaço público das ruas e praças, a arte Paulo: Martins Fontes, 2009.
foi assumindo o papel de meio de reflexão LUZ, Angela Ancora da – Roberto
do homem no mundo, sem perder sua con- Moriconi. Vida e obra. Rio de
dição de lugar. Nas pilastras do viaduto da Janeiro: Editora Caligrama, 2012
Avenida Brasil, os murais do profeta Gentile- PALLAMIN, Vera Maria – Arte
za, filósofo, artista, profeta e andarilho, pro- urbana. São Paulo: região central
movem uma declaração ética, moral e reli- (1945 – 1998): obras de caráter tem-
giosa que não se constitui como produto, porário e permanente. São Paulo:
na medida em que não pode ser comprada Annablume: FAPESP, 2000.
ou vendida, mas uma intervenção visual que SILVA, Fernando Pedro da – Arte
instaurou um espaço de discussão dentro Pública: Diálogo com as comuni-
do espaço da cidade. dades. Belo Horizonte: Editora C/
Arte, 2005.

– Sites visitados:

<http://oglobo.globo.com/rio/
rio-450/pinturas-de-gentile-
za-vao-ser-mantidas-com-des-
monte-do-elevado-da-perime-
tral-13283522> em 28 de agosto
de 2015
<http://www.cultura.rj.gov.br/arti-
gos/livro-urbano-de-gentileza> em
28 de agosto de 2015.
<http://sociologiaemdebatemeta.
blogspot.com.br/2012/02/profe- 3
https://www.youtube.com/ 13
Guelman, Leonardo Caravana
ta-gentileza-sera-que-ele-estava. watch?v=mpDHQVhyUrY – Univvversso Gentileza. Rio de
html> em 1 de setembro de 2015. 4
https://www.youtube. Janeiro: Ed.Mundo das Idéias.
<http://www.tipomakhia.com/arti- com/watch?v=j5cewnEzc- 2009. P.48
go-blog/ghentileza-regular-e-ori- FY&list=RDj5cewnEzcFY#t=82 SILVA, Fernando Pedro da – Arte
14

ginal> em 2 de setembro de 2015. 5


A SOCICAM é uma empresa bra- pública. Diálogo com as comu-
sileira prestadora de serviços de nidades. Belo Horizonte: C/Arte,
– Notas gestão, integrada no apoio de pas- 2005. P. 12
sageiros e atendimento ao cidadão. 15
Uma das pilastras possui dois
1
José Datrino nasceu em Cafelân- 6
O Profeta Gentileza faleceu em 29 murais.
dia-SP, no dia 11 de abril de 1917 e de maio de 1996. Id. P.28
16

faleceu em Mirandópolis-SP em 28 7
http://oglobo.globo.com/rio/ DIDI-HUBERMAN – O que vemos,
17

de maio de 1996. Cresceu no cam- rio-450/pinturas-de-gentile- o que nos olha. São Paulo: Editora
po, trabalhando na roça e aman- za-vao-ser-mantidas-com-des- 34, 1998. P.29
sando burros. Por volta dos doze monte-do-elevado-da-perime- LUZ, Angela Ancora da – Roberto
18

anos passou a ter visões premo- tral-13283522 Moriconi. Vida e obra. Rio de
nitórias de sua missão o que levou 8
http://www.cultura.rj.gov.br/arti- Janeiro: Editora Caligrama, 2012.
seus pais a buscarem tratamen- gos/livro-urbano-de-gentileza P.125
to com curandeiros locais. Mais 9
Para Gentileza, AMOR com um A palavra ‘museu’ tem origem
19

tarde fugiu para o Rio de Janeiro. “erre” era o amor material, já com grega. ‘Mouseion’ era o templo das
Casou-se e teve cinco filhos. Tor- três erres era o Amor da Trin- nove musas filhas de Zeus e Mne-
nou-se um pequeno empresário dade, ou seja, do Pai, do Filho e do mosine, a deusa da memória. Era
de transportes até que, com o in- Espírito Santo, portanto completo. o local destinado à contemplação,
cêndio do Gran Circus Norte-Ame- 10
ARGAN, Giulio Carlo – História da aos estudos científicos, literários e
ricano em Niterói, ocorrido em 17 Arte como História da Cidade. São artísticos, pois as musas eram liga-
de dezembro de 1961, ele vai para Paulo: Martins Fontes, 1992. das às artes e à ciência. Como eram
o local do incêndio que vitimou 11
Há muitas controvérsias em rela- filhas de Mnemosine, o local estava
cerca de 500 pessoas dirigindo um ção ao comportamento do profeta, associado á guarda da ‘memória’.
de seus caminhões. A tragédia tem pois, apesar de todo o discurso em
enorme impacto em José Datri- que pregava a gentileza, em mui-
no, que afirmava ter ouvido vozes tas vezes ele era “agressivo, mora-
orientando que largasse tudo, se lista e desbocado [...] Vociferava,
desapegasse dos bens materiais, ofendia e ameaçava espancar tran-
do mundo capitalista e cumprisse seuntes” (http://sociologiaemdeba-
sua missão na terra. Ele parte para temeta.blogspot.com.br/2012/02/
Niterói e faz no local das cinzas do profeta-gentileza-sera-que-ele-es-
incêndio uma plantação de flores. tava.html)
Nascia ali o Profeta Gentileza. 12
http://www.tipomakhia.com/
2
Companhia Municipal de Limpeza a rt i g o - b l o g / g h e n t i l e z a - re g u -
Urbana (COMLURB) lar-e-original

– ANGELA ANCORA LUZ 187


A Olhar para as Paredes

p o r M a r t a Tr a q u i n o
Artista e investigadora em arte contemporânea. Em 2013 iniciou
investigação teórica e prática em pós-doutoramento ao abrigo da FBAUL
com o apoio da FCT.
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

This text proposes an exercise of thought on ‘the wall’


in the city as a barometer for the observation of certain
sociabilities and movements’ qualities of individuals, Parede. Um lado de lá, um lado de cá. Den-
determining or conditioning points of view, or while a tro. Fora. Antes, durante, depois. A constru-
mediation device between the realities that it physically ção de espaço pela sua subtracção. O que
separates and the relationship between collective and oculta, o que separa, o que revela. O que
individual memory. The walls in the cities are one of the contém. Tempo.
supports/mediums most used for the public expression
of individual subjectivities, from many different No seu documentário En Construccìon, con-
backgrounds and purposes, legal or illegal, in particular cluído em 2001, Luis Guerín acompanha a
from the field of artistic interventions that usually are reabilitação do bairro El Raval no distrito
designated as ‘public art’. However, it is rarely taken from Ciutat Vella de Barcelona. Deteve-se so-
a critically attentive approach to the metaphorical or bre a construção de um novo condomínio
documental potential which may contain from the start, numa zona muito antiga e degradada, com
inseparable from the urban context in which it operates, elevados índices de marginalidade e pros-
from it’s dynamic possibilities, like a living organism tituição, sendo uma grande parte da pop-
constantly ‘breathing’ in/with the city. ulação constituída por imigrantes e idosos
com poucos recursos. Uma zona também
cheia de vitalidade, local de habitação e
de diversos pequenos comércios, onde só
é possível construir de novo sob a destru-
ição do antigo. Quando tal acontece, inevi-
tavelmente a memória do passado do bair-
ro emerge à luz do dia. Memória de outros
modos de fazer e de habitar que se revela
momentaneamente através do processo do
seu apagamento. Não só desaparecem os
vestígios materiais que a contêm mas tam-
bém a possibilidade do seu lembrar partil- Tomo o exemplo deste documentário de
hado, uma vez que tais processos de reabil- Guerín como introdução a esta proposta de
itação implicam a exclusão dos residentes. reflexão sobre ‘a parede’ na cidade enquan-
Situação comum a muitas cidades europe- to barómetro para a observação de certas
ias cujos centros históricos são sujeitos a sociabilidades e qualidades de movimentos
planos de reabilitação que visam a substi- dos indivíduos, determinantes ou condicio-
tuição dos antigos edifícios de habitação, e nantes de pontos de vista, ou enquanto dis-
das pessoas que neles vivem, por condomí- positivo de mediação entre as realidades
nios privados, hotéis de luxo, lojas gourmet que fisicamente separa e da relação entre
e outros espaços afins. memória colectiva e individual. As paredes
nas cidades são um dos suportes/meios
Guerín reincide na alternância entre as mais utlizados para a expressão pública de
imagens da queda da velha arquitectura e subjectividades individuais ou colectivas
as imagens do erguer da nova arquitectu- das mais diversas origens e propósitos, le-
ra, dando a certa altura escuta aos pensa- gais ou ilegais, nomeadamente para inter-
mentos e conversas dos fazedores das pa- venções artísticas do domínio do que com-
redes conforme ocorrem espontaneamente mumente se designa como ‘arte pública’.
durante o processo de construção. Con- No entanto, raramente são tomadas a partir
tam-se factos sobre a vida destes homens, de uma abordagem criticamente atenta ao
sonhos e desilusões, alegrias e tristezas, so- potencial metafórico ou documental que
bre a vida de alguns dos moradores e do à partida podem conter, indissociável do
quotidiano do bairro, sobre Barcelona, so- contexto urbano em que se inserem. Este
bre o mundo, onde passado e presente se texto surge assim como a tentativa de um
conjugam. Um amplo mosaico de histórias exercício neste sentido, considerando que
por diversas geografias é composto a par- as paredes podem ser “entendidas como
tir apenas de uma pequena área do bair- zonas de convergência entre o material e
ro, lembrando que as paredes são feitas de o imaterial” (Brighenti, 2009: 68). Podem
muito mais do que apenas materiais e técni- evidenciar factos, questões e conclusões
cas de construção porque são feitas tam- sobre ‘fronteiras’ que estruturam a urbani-
bém pelos muitos e muitos dias das vidas dade, tanto de ordem física como psíqui-
de pessoas. Guerín foca a sua atenção em ca e, consequentemente, cultural, social e
elementos simples consequentes da acção política, não esquecendo que a sua materi-
e interacção humana durante o fazer das alidade tanto se desenvolve verticalmente
paredes. Raramente recorre aos planos que como horizontalmente.
mostram ruas ou praças. A narrativa decorre
à medida que as paredes perdem e gan- Proponho pensar ‘a parede’ a partir das
ham forma, através de um olhar persistente, suas possibilidades dinâmicas, como sendo
que vai e volta, ao longo de um tempo que uma espécie de organismo vivo que respi-
se demora. ra na/com a cidade. Não excluindo a sua
função de limite, muito pelo contrário, nem

– MARTA TRAQUINO 189


a atenção sobre o que se encontra de um
lado ou de outro, separado e/ou protegido,
mas considerando sobretudo o próprio es-
paço intermédio que o limite em si mesmo
constitui, entendido como possível zona de
contacto, de transferências.

As paredes têm peso, mas a palavra ‘peso’


parece ter apenas conotações negativas
para a cultura ocidental no mundo actual,
sobretudo se tivermos em conta como (pelo
contrário) à palavra ‘leveza’ sempre se as-
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

José Luis Guerin, En Construccìon, 2001 (fotogramas do filme). sociam conotações positivas. Este facto é
© José Luís Guerín.
evidente, por exemplo, na publicidade de
Fonte: http://cineyarquitectura.blogspot.pt/2008/08/en-construccin-
1998-director-jos-lus.html produtos que tanto se pode referir com os
mesmos termos ao corpo, como a um car-
ro ou a um ambiente. Também na arquitec-
tura das últimas décadas predomina uma
tendência que valoriza a dissolução do peso
ou da desmaterialização dos limites, a qual
na prática se traduz, sobretudo, pela ex-
ploração dos efeitos visuais nas superficies
dos edifícios. Uma das vias pelas quais esta
tendência se tem desenvolvido é a que esta-
bele analogia entre a arquitecutra e o têxtil,
nomeadamente através do efeito da ‘pare-
de cortina’. Desde meados do século XIX,
enquanto novidade introduzida pela en-
José Luis Guerin, En Construccìon, 2001 (fotogramas do filme). tão emergente arquitectura do ferro e do
© José Luís Guerín.
vidro, a ‘parede cortina’ começou a ser um
Fonte: http://cineyarquitectura.blogspot.pt/2008/08/en-construccin-
1998-director-jos-lus.html termo comum na linguagem arquitectónica
para definir o sistema de cobertura exterior
de um edíficio no qual as paredes não têm
necessariamente carácter estrutural. Rela-
cionado com funcionalidades e modos de
produção específicos possibilitados pela
Revolução Industrial, desde então o termo
tornar-se-ia uma das metáforas mas suges-
tivas da arquitectura. Ao longo do século XX
a ‘parede cortina’, a par das evoluções tec-
nológicas, sobretudo as digitais que abri- de rede metálica) que sugerem tratar-se de
ram novos caminhos para a concepção de uma matéria têxtil de grandes dimensões
formas curvas e dinâmicas, tornou-se con- em permanente mutação formal. Efeito que
ceptualmente e esteticamente um tema se efectiva visualmente a partir de uma cer-
estimulante na obra de alguns arquitectos ta distância física do edifício. Esta cobertura
consagrados. A partir de finais da década de pode também, por vezes, estender-se deste
oitenta do século XX, ganhou novos contor- à área que o envolve exteriormente, funcio-
nos na relação com a orientação das teorias nando como um toldo. Área que é contem-
do espaço rumo ao paradigma da ‘liquidez’, plada no projecto com o objectivo de ser
sobre o qual assenta, segundo o sociólogo uma zona de transição, geradora de vários
Zygmunt Bauman (2007), a contemporanei- ‘níveis’ de espaço público, entre o edifício e
dade. Movimento, flexibilidade, fluidez, in- a cidade propriamente dita. Tomemos como
teractividade, transitoriedade, leveza, são exemplo desta descrição o Grand Theatre
conceitos aos quais a arquitectura desde D’Albi concluído em 2014.
então procura dar forma através da analo-
gia com a tecnologia e a semântica do têx- ‘Envelope’, ‘vestimenta’, ‘curvas e contra-cur-
til, tornando-se assim representativa de uma vas’, ‘pele’, são termos utilizados no sumário
sociedade na qual, como refere Bauman, de apresentação do projecto do teatro pelo
as vidas dos homens e mulheres decorrem ateliê de Perrault (publicado em 2012 no
mais no sentido de ‘procurar e experimentar seu website). Termos que apelam a uma
sensações’ do que no de ‘fazer coisas’. dimensão táctil mas que, no entanto, pela
monumentalidade do edifício só podem ser
Um dos arquitectos cuja obra explora a ‘interpretados’ pelo olhar sugestionado a
tendência com base na ‘parede cortina’, des- atribuir leveza ao que na realidade tem peso,
de o final da década de oitenta do século XX, liberdade de movimento ao que é fixo, liris-
é Dominique Perrault. O seu ateliê foi o pri- mo ao que é da ordem do rigor e da razão.
meiro a desenvolver e a utilizar rede metálica, Pretende-se assim, segundo as intenções
o elemento chave para a qualidade emotiva de Perrault, realizar a ‘monumentalidade’ e
que Perrault (2006) diz procurar na arquitec- a ‘desmaterialização’ em simultâneo, uma
tura através da pesquisa dos jogos de luz. obra arquitectónica que se torne um símbo-
Permeabilidade, inter-relação, transição, ou lo identitário da cidade estando sempre em
movimento são conceitos que funcionam actualização, como uma ‘obra-acontecimen-
como directrizes na sua obra por relação to’, a conciliação entre a ordem e o acaso.
com um entendimento da ‘parede’ enquanto Contudo, alguma contradição parece estar
elemento ‘não separador’. A materialização contida na relação entre estas intenções e
destes subentende-se pelos efeitos de a sua efectiva concretização. Para Perrault, a
uma cobertura construída sobre o primeiro questão essencial é a de como conseguir li-
corpo do edifício, com características de gar a disposição de um volume no espaço
textura, maleabilidade e penetrabilidade com o seu contexto. A rede metálica, pelo
pela luz (como as possibilitadas pelo ‘tecido’ efeito análogo ao de um ‘tecido’, é o mate-

– MARTA TRAQUINO 191


rial/meio que Perrault considera ideal para
a criação de um ‘espaço-entre’ onde esta
ligação acontece, pois para além de funcio-
nar como um ‘filtro’ mediador dos efeitos
da luz, da chuva e do vento sobre o edifício,
constituí também um prolongamento estru-
tural deste com um efeito de redução pro-
gressiva da sua densidade física no espaço
envolvente. Nesta gradação de peso, que se
apresenta variavelmente ao sentido da visão
Dominique Perrault, Grand Theatre D’Albi, 2009-14 (simulação na medida em que o corpo do observador
do edifício). © Dominique Perrault Architecture.
se aproxima ou se afasta, está implícita a
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

Fonte: http://archcase.com/dominiqueperrault/portfolio/grand-
theatre-dalbi/ ideia de Perrault de uma arquitectura ‘aber-
ta’ e ‘mutável’, impermanente. No entanto,
trata-se na realidade da sobreposição de um
invólucro a outro. O mesmo será dizer que
se trata, efectivamente, da sobreposição de
uma arquitectura a outra, sobretudo se for
tida em conta a relação formal (e funcio-
nal) que existe entre a cobertura de rede
metálica e uma tenda (sendo a tenda uma
modalidade de arquitectura que ainda hoje
se pratica, como é o caso das tendas dos
nómadas na Mongólia ou, num exemplo até
Dominique Perrault, Grand Theatre D’Albi, 2009-14 (simulação mais próximo do teatro, o caso das tendas
do edifício). © Dominique Perrault Architecture.
de circo). O Grand Theatre D’Albi sugere a
Fonte: http://archcase.com/dominiqueperrault/portfolio/grand-
theatre-dalbi/ analogia com uma tenda gigante contendo
um edíficio. Poderá, como defende Perrault,
este efeito ser representativo, mesmo num
plano metafórico, da ligação entre o edifício
e o seu contexto envolvente? Ou não resul-
tará afinal numa ‘dilatação’ dos limites do
edifício em causa? Porque ainda que a acção
da luz sobre a rede metálica possa sugerir
ao olhar a impermanência e a fluidez, as pro-
priedades dos materiais utilizados garantem
resistência a longo prazo, são pesados, não
são propriamente mutáveis a um toque de
mão como pode acontecer com a parede
de uma tenda verdadeira.
Na verdade, trata-se de uma arquitectu- que se mostram abertos à vista de todos po-
ra com duplo sistema de parede exterior, dem não ser efectivamente ‘públicos’, como
pois a rede metálica, à parte das suas analo- acontece com muitos dos espaços amplos
gias técnicas e metafóricas com as proprie- que circundam edíficios monumentais, sím-
dades do têxtil, constituí inevitavelmente bolos de identidade local e nacional, con-
um imponente limite físico. No Grand The- trolados por sistemas de vigilância que ga-
atre D’Albi observamos uma ‘duplicação’ rantem o nivelamento dos modos de estar.
da fachada do edíficio e não propriamente
a sua ‘diluição’, o que é contrário ao que É nas cidades que, actualmente, se
sugere Perrault (2006) quando refere que identificam as novas modalidades de
a utilização do ‘tecido’ metálico na sua ar- fronteiras. Por exemplo, é curioso ter em
quitectura confere a ligação desta à geogra- conta como paralelamente aos processos
fia do sítio. Paradoxalmente, é pretendida a de abertura das fronteiras territoriais en-
desconstrução da separação entre interior tre os países europeus ao longo do século
e exterior que habitualmente caracteriza XX, as cidades têm vindo a tornar-se cada
a arquitectura quando, de facto, o edifício vez mais fragmentadas pela criação no seu
em causa se destina a funções, usos e con- interior de territórios que praticam a segre-
teúdos cuja efectivação implica necessar- gação e, consequentemente, o conflito. Os
iamente o distanciamento e protecção em mais fáceis de se circunscrever, pela sua evi-
relação ao exterior. Os limites físicos têm dência física, são os territórios murados des-
aqui de existir, são um facto imprescindível tinados a habitação, derivados de escolhas
do modelo da arquitectura em causa. De- residenciais praticadas por certas catego-
vem até ser facilmente identificáveis, pois rias sociais, economicamente mais favore-
em edifícios de tal sofisticação e imponên- cidas. O sociólogo Richard Sennett (2005)
cia a vigilância não se faz apenas à entrada considera que cada vez que uma comuni-
mas em toda a sua área envolvente. Contu- dade murada se ergue um novo gueto pas-
do, o que importa aqui salientar é a nature- sa a existir, tornando-se necessário analisar
za da relação entre o discurso e a prática a cumplicidade deste tipo de construção
nesta tendência da arquitectura, pois não com a violência e a insegurança na cidade,
podendo ser concretamente ‘aberta’ é con- pois trata-se de um modo de habitar que
tudo sustida por argumentos e por efeitos recusa o civismo, que pressupõe que as dif-
visuais que evocam a sugestão da ‘desma- erenças devem ser policiadas. Nesta prática
terialização’ das suas propriedades físicas. de muralhar voluntário, as fronteiras que as
Em causa está uma ‘camuflagem’ dos lim- paredes são devem ser entendidas como
ites do edifício que provoca um efeito ilu- dispositivo simultaneamente de territorial-
sionista na percepção da diferenciação e idade e de visibilidade. Como refere o so-
separação entre espaço privado e espaço ciólogo Andrea Brighenti (2009), quando os
público, ou mesmo a criação de espaços territórios são definidos por paredes, é a di-
‘pseudo-públicos’ que tendem a predomi- mensão da verticalidade destas que está em
nar cada vez mais nas cidades. Os espaços questão e, consequentemente, o seu sig-

– MARTA TRAQUINO 193


nificado mais imediato que é o de ‘impedi- quitectónicas existentes, podem ser de-
mento’. Trata-se da afirmação de ‘um dentro’ tentores de maior poder de intervenção,
e de ‘um fora’, da gestão de possibilidades ainda que éfemera, do que os arquitectos.
e impossibilidades de comunicação pelo Podem praticar conceitos que, efectiva-
controlo dos modos de circulação das pes- mente, não se esgotam no objecto realiza-
soas. Contudo, neste modo de demarcação do, com a vantagem de se desenvolverem
territorial, as paredes são elas mesmas tam- através de processos experimentais. No-
bém territórios, pois constituem horizontes meadamente pela liberdade de acção que
de significados que se estendem ao nível a prática artística pode ter quando não está
do olhar do habitante da cidade. Brighenti ao serviço da encomenda nem dependente
alerta que nesta característica se encontra o da condição de um resultado que perdure
segundo significado da verticalidade que é fisicamente, como no caso desta obra de
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

a ‘superficialidade’. Com ou sem inscrições Christo e Jeanne-Claude. Apesar das suas


que possam ocorrer imprevisiveis ao seu proporções monumentais, não só de esca-
propósito, a ‘superfície’ é, logo à partida, co- la mas também no que respeita aos meios
municante. No caso das comunidades mu- técnicos e humanos necessários à sua real-
radas, a superfície em cerco é significante ização, Wrapped Reichstag não dependeu
de abuso de poder e ostentação de rique- de qualquer espécie de patrocínio con-
za material face ao exterior do qual se de- forme a opção que o casal sempre teve em
marca. No entanto, há que salientar que nas ser totalmente independente e livre na sua
novas modalidades de fronteiras que emer- criação artística. Coerente também com tal
gem na cidade a ‘imaterialidade’ é uma car- opção é a natureza programadamente tem-
acterística que predomina. porária dos projectos. Neste caso, a monta-
gem decorreu entre 17 e 24 de Junho de
Os edifícios ‘cobertos’ de Perrault, como o 1995 e a obra permaneceu apenas até 7
exemplo referido, evocam os edifícios ‘em- de Julho seguinte. No entanto a ideia sur-
brulhados’ pelo casal de artistas Christo e giu em 1971, dez anos após o início da con-
Jeanne-Claude. Desde o início da déca- strução do Muro de Berlim, mas só em 1994
da de sessenta do século XX estes artistas (já após a reunificação da Alemanha) os ar-
sempre trabalharam de um modo singular tistas conseguiram obter autorização para
a relação entre a arquitectura de carácter ‘embrulhar’ o edifício com mais de 100.000
permanente e as propriedades da matéria metros quadrados de tecido polipropileno
têxtil (presentemente, apesar da morte de à prova de fogo, coberto por alumínio, e
Jeanne-Claude em 2009, Christo prosseg- 15.600 metros de corda. A fase final de um
ue o mesmo âmbito de trabalho). Tomemos processo que levou 25 anos, envolvendo,
como exemplo a obra Wrapped Reichstag entre outras acções, reuniões com centenas
(1971-95), realizada em Berlim (Fig. 5). de membros dos parlamentos de ambas as
partes da Alemanha então dividida (RDA e
Quando os artistas interveêm sobre o es- e RFA), tendo mesmo havido sessão parla-
paço físico, questionando as estruturas ar- mentar para votação sobre a realização ou
não do projecto. Construído no final do sé-
culo XIX, o Reichstag foi a primeira sede de
um parlamento democrático alemão, tor-
nando-se ao longo do século XX um po-
tente símbolo de memória colectiva não só
da Alemanha mas também da Europa. Da
Républica de Weimar ao Regime Nazi, do
abandono após o incêndio de 1933 à metá-
fora de uma cidade e país divididos.

Interessa aqui considerar a obra Wrapped


Reichstag em contraposição com o referido Christo e Jeanne-Claude, Wrapped Reichstag,
[1971-95] 1995, Berlim. © 1995 Christo
atrás a propósito do Grand Theatre D’Albi
(Photo: Wolfgang Volz).
de Perrault. Tomando a arquitectura, a pri- Fonte: http://www.theartsdesk.com/sites/default/files/imagecache/

meira foi literalmente uma ‘obra-aconte- mast_image_landscape/mastimages/Wrapped%20Reichstag%20


C%20Christo.jpg
cimento’ não pela pretensão da ‘diluição’
das paredes do edifício quando estas inevi-
tavelmente existiam mas, ao contrário, pela
sua afirmação através de activar um outro
modo de as dar a ver que, paradoxalmente,
aconteceu pelo efeito da sua ocultação. O
envolvimento de todo o edifício com o te-
cido branco prateado acentuou e actual-
izou a sua presença, a sua massa concre-
ta, sem efeitos de ilusão ou ambiguidade
na percepção da demarcação dos limites
em relação ao espaço exterior. Um efeito
‘parede cortina’ deu-se de modo literal so-
bre o edifício, possibilitando a acessibil-
idade não só às propriedades visuais mas
também tácteis do têxtil. Durante quatorze
dias a nova ‘pele’ do Reichstag reagiu à pas-
sagem do vento, reconfigurando assim os
contornos da memória que a sua existência
de mais um século evoca. A este respeito
foi notável a opção dos artistas pela opaci-
dade do tecido, contrariamente à opção
pela ‘transparência’ que a arquitectura tem
vindo a praticar na sua analogia conceptual
e técnica com as características do têxtil. A

– MARTA TRAQUINO 195


opacidade criou um certo silêncio sobre o arquitectura conforme sugerida nos referi-
edifício, abrindo espaço para uma interpre- dos argumentos de Perrault, aqui toma-
tação renovada sobre a sua existência. Em dos como representativos do que consid-
analogia com o que refere o crítico cultural ero ser uma tendência actual na prática e
Andreas Huyssen (2003), teoria de agentes responsáveis pela rep-
resentação do espaço urbano, orientada
“Num contexto público e discursivo mais pelo discurso ‘politicamente correcto’ de-
amplo, o velar de Christo funcionou de fac- fensor da ‘diluição’ dos limites entre zonas.
to como uma estratégia para tornar visível, Tal discurso tem sido sobretudo útil a ex-
desvelar, para revelar o que estava escondi- ercícios de estilo que se revelam debilita-
do quando era visível. Conceptualmente, o dos no que respeita à necessidade de uma
velar do Reichstag teve outro efeito salutar: revisão da ideia de ‘diferença’ à luz da plu-
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

silenciou a voz dos políticos como era habi- riculturalidade característica da população
tual, a memória dos discursos das suas ja- de qualquer actual cidade europeia e a sua
nelas, o levantamento das bandeiras alemã relação com o fosso cada vez maior entre
ou soviética no telhado e a retórica política ricos e pobres. Exercícios, como tal, ten-
oficial no interior. Assim, abriu um espaço dencialmente configurantes de espaços
para reflexão e contemplação, bem como que sendo designados de públicos são no
para a memória. A transitoriedade do even- entanto de acesso restrito, não necessari-
to em si — os artistas recusaram prolongar a amente pelo controlo através de barreiras
mostra sob demanda popular — era tal que de ordem física mas por outras aparente-
iluminou a temporalidade e a historicidade mente mais leves como, por exemplo, o fil-
do espaço construído, a relação ténue en- tro selectivo da capacidade de poder de
tre lembrar e esquecer.” (Huyssen, 2003: 36) compra face à tipologia das actividades de
consumo que acolhem e promovem. Tor-
Uma alusão à representação do paneja- na-se fundamental questionar do que tra-
mento na História da Pintura e da Escultu- ta exactamente uma prática de arquitectura
ra Ocidentais parece estar presente nesta e de planeamento urbano quando intenta
relação do têxtil (e a sua opacidade) com ‘diluir’ os limites entre espaços, pois neg-
o edifício. Ao envolver os corpos, o pane- ligenciar a factual existência destes pode
jamento não distrai o olhar da interpre- levar tal prática a colaborar na criação de
tação das formas que oculta. Pelo contrário, um modelo de cidade onde a ‘indiferença’
faz perscrutar mais sobre estas, sobretudo face à ‘diferença’ predomine. Torna-se en-
quanto mais elaborado for o trabalho do tão urgente a identificação dos ‘limites’
claro-escuro, ou seja, a representação dos na cidade, a sua confrontação, a sua inter-
efeitos da luz sobre a matéria. Pode tam- rogação através da experiência de os at-
bém acentuar a sugestão do movimento ravessar, para que se possa conhecer o que
dos corpos, sem no entanto sugerir a sua está em cada um dos lados, ambos partes
‘desmaterialização’. Num entendimento da mesma urbanidade.
oposto segue a relação entre o têxtil e a
No seu documentário In Comparison “In Comparision apresenta o tijolo como
(2009), Harun Farocki aborda de modo su- uma metáfora global para a interacção hu-
preendente e essencial os processos de mana nos processos de construção e resul-
construção de paredes enquanto espelho tados finais construídos. O filme começa em
de diferença e diversidade culturais, partin- Gando, Burkina Faso — uma aldeia num dos
do da consideração do elemento básico países mais pobres do mundo. Os tijolos
da sua estrutura: o tijolo. Observou pro- para um pequeno hospital estão a ser ma-
cessos de produção de tijolos em diver- nufacturados pela comunidade da aldeia,
sos países, cuja sequência na estrutura do simplesmente através do uso das mãos e
documentário se organiza de modo cres- dos pés. Homens, mulheres e crianças fa-
cente em função da situação económica, lam e riem juntos através do processo (…)
dos países mais pobres aos mais ricos. O A meio do filme (…) imagens de uma nova
primeiro acontece em Burkina Faso (Fig. 6) fábrica de tijolos alemã com processos de
com os esforços colectivos de uma comuni- produção totalmente automatizados. A úni-
dade de pessoas com diferentes gerações ca pessoa que ainda está na imagem é um
que realiza todas as etapas da construção operário sentado de braços cruzados junto
de um edifício pelas suas próprias mãos, at- a um computador rodeado por máquinas.
ravés da acção conjunta com base na coor- Durante todo o processo, o ser humano
denação espontânea dos movimentos dos nunca toca o material básico, a terra, nem
corpos. O último decorre no contexto de o produto concreto, o tijolo.” (Lepik, 2010)
produção industrial de tijolos tecnologica-
mente mais avançado, na Alemanha, onde Modos de observação em torno do enfor-
as poucas pessoas necessárias ao proces- mar das paredes dão ênfase à dimensão
so trabalham isoladas com as máquinas, de temporalidade que estas subentendem.
desempenhando poucos gestos quase re- Não a temporalidade apenas por sugestão
stritos apenas ao movimento dos olhos. visual que, por exemplo, pode derivar das
Farocki cria assim um incisivo retrato glob- metamorfoses de cor e textura nas suas su-
al no qual diferenças culturais, sociais e perficies, mas a temporalidade que é ac-
económicas se revelam pela duração es- tivada pelo movimento do corpo que ousa
pecífica do modo de produção de tijolos indagar sobre o que ‘oculta’ aquilo que se
e, consequente, do modo de construção dá a ver, sobre o que pode um limite mostrar
de paredes que praticam. Uma metáfora através de si mesmo, no seu ‘porquê’ e
poderosa sugerindo que as diferenças en- ‘como’. A existência de limites no espaço
tre as culturas se determinam pelo ‘tempo físico, como os constituidos por paredes, é
do tijolo’ que produzem. Para Farocki os inerente à efectiva limitação ou restrição de
tijolos ‘ressoam’ os fundamentos das nos- movimentos. De um modo ou de outro, é
sas sociedades, mas ainda não aprendem- como a imposição de distância ideológica
os a ouvi-los. Andres Lepik (2010), curador na proximidade espacial, mas movimentos
e historiador de arte, refere o seguinte na não expectáveis do olhar ou do corpo po-
análise que faz deste documentário, dem questionar e revelar a natureza destes

– MARTA TRAQUINO 197


limites, confrontando o seu desígnio com o
momento presente. Os limites deixam en-
tão de ser uma representação no espaço
para se tornarem experiência, ou por outras
palavras, um possível espaço de represen-
tação para quem os pratica, zonas para o
exercício da subjectividade.

Este texto integra conteúdos da tese de doutoramento:


Traquino, Marta, Ser na cidade: urbanidade e prática artís-
tica, percepções e acções, Orient.: Prof.ª Mª João Gamito,
FBAUL, 2012. Todas as citações têm tradução livre pela au-
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

tora. O texto não segue o acordo ortográfico.

– Bibliografia: sent Pasts: Urban Palimpsests and


the Politics of Memory, California:
BAUMAN, Zygmunt ([2005] 2006), Stanford University Press.
Confiança e Medo na Cidade, Lis- LEPIK, Andres (2010), “Architecture
boa: Relógio D’Água Editores. on Film: Harun Farocki Double Bill”,
— ([1995] 2007), A Vida Frag- URL: http://www.architecturefoun-
mentada – Ensaios sobre a Moral dation.org.uk/programme/2009/
Pós-Moderna, Lisboa: Relógio architecture-on-film/in-compari-
D’Água Editores. son-the-creators-of-shopping-wor-
BRIGHENTI, Andrea Mubi, (ed.), lds, acedido em Nov. 2010.
(2009), The wall and the city / Il SENNETT, Richard (2005), “Civi-
muro e la città / Le mur et la ville, lity”, URL: https://www.lse.ac.uk/
Trento: professionaldreamers. collections/urbanAge/0_down-
— (2010c), Visibility in Social Theory loads/archive/Richard_Sennett-Ci-
and Social Research, Londos: Pal- vility-Bulletin1.pdf, acedido em
grave Macmillan. Dez. 2009.
GARCIA, Mark (2006), “Impending — (2007), “The Open City”, in BUR-
Landscapes of the Architextile DETT, Ricky e SUDJIC, Deyan,
City: An Interview with Dominique (eds.), (2007), The Endless City – The
Perrault”, in Architectural Design, Urban Age Project by the London
“Architextiles” Volume 76, Issue 6, School of Economics and Deutsche
Nov. Dez. 2006. Bank’s Alfred Herrhausen. Society,
HUYSSEN, Andreas (2003), Pre- London: Phaidon Press Limited.
Arte Pública e Política1

por Cristina Pratas Cruzeiro


Professora Assistente Convidada na FBAUL e Investigadora do CIEBA.

The notion of Public Art has been moving in a terrain


open to redefinitions and interpretations. This fact
derives, among others, from the artistic dynamics No decorrer da década de noventa do sé-
developed in the second half of the twentieth century culo XX, a noção de Arte Pública foi profi-
and from the identity expansion of the traditional cuamente discutida nos EUA a partir do
disciplines. But it also stems from the fact that in our comprometimento social que alguns artis-
days this notion it is applied to artistic interventions with tas manifestavam nas suas obras. Dela re-
very different purposes. Nevertheless, it is possible to sultou a proposta de uma nova tipologia
understand the convergence of the critical discourse to artística, então denominada de ‘novo gé-
a characterization of the notion of Public Art based on nero de arte pública’. A designação surgiu
two elements: the relationship with the Space and the pela primeira vez numa edição publicada
relationship with the Public. But these concepts have em 1995, que reunia as intervenções ocorri-
extended the perimeters of its significance. On the one das no simpósio ‘Mapping the Terrain: New
hand, the Space it has been understood through an Genre Public Art’, realizado em 1991 no San
anthropological and social dimension. On the other hand, Francisco Museum of Modern Art. Suzanne
the connection between the Politics and Public2 became Lacy, a quem coube o trabalho de edição
central to some artistic practices. This text it is precisely do volume com o mesmo título, destacava
about the relation of the Public Art with the Politics. aí o papel pioneiro e o contributo da inicia-
tiva para um conhecimento e compreensão
de produções artísticas cuja contextualiza-
ção teórica ocorria até ao momento a par-
tir da designação lata de ‘artistas políticos’
(Lacy, 1995, p.12).

A introdução de Lacy veiculava o ‘novo gé-


nero de arte pública’ a questões de ordem
social, o que no seu entender evidenciava
uma convergência histórica com o desen-
volvimento de vários grupos de vanguarda,
como os feministas, marxistas e de outros
activistas (Lacy, 1995, p.25). A designação

– CRISTINA PRATAS CRUZEIRO 199


tinha em conta o facto de determinadas procedimentos metodológicos e de inte-
práticas artísticas se centrarem numa inter- racção com uma audiência ampla e diver-
venção social baseada na interacção con- sificada – assente em assuntos relevantes
tinuada com diferentes segmentos da po- para as suas vidas – e com uma actuação no
pulação ou com comunidades específicas, terreno social que privilegiava questões de
alargando dessa forma o perímetro da con- ordem cultural (Lacy, 1995, p.20), uma op-
textualidade que, até aí, tinha estado afecto ção alinhada com os caminhos que então se
ao princípio da espacialidade. Lacy descre- trilhavam no domínio político.
ve-as considerando que “They have enga-
ged broad, layered, or atypical audiences, A indexação destas práticas artísticas à in-
and they imply or state ideas about social tervenção social e política motivou desde
change and interaction. Most important, the logo uma série de reflexões teóricas de cariz
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

artists selected provide different models of ideológico que importa conhecer. Tradicio-
practice and ideology.” (1995, p.13). nalmente, os artistas com uma intervenção
social de relevo – fosse enquanto cidadãos
Para Suzanne Lacy, as características que ou enquanto artistas – estavam maioritaria-
uniam determinadas práticas e em simul- mente afectos ao marxismo. Mas durante as
tâneo as distinguiam das restantes centra- décadas de setenta e de oitenta, ao mesmo
vam-se na sensibilidade relativamente à au- tempo que a reconstrução teórica da obra
diência, à estratégia social e à sua eficácia de Marx era abundante e dirigida por orien-
real (Lacy, 1995, p.20). Ainda assim, a auto- tações filosóficas distintas como as de Györ-
ra destacava de entre elas o ‘público’ como gy Lukács, Ernst Bloch, Antonio Gramsci ou
a componente essencial do trabalho, con- Louis Althusser, diferentes organizações po-
siderando que a relação entre o artista e a líticas de fundamento marxista colapsavam.
audiência poderia, em si mesma, tornar-se Simultaneamente, assistia-se de forma glo-
a obra de arte (Lacy, 1995, p.20). Para Lacy, balizada à privatização de todos os aspec-
estas práticas apenas podiam ser relacio- tos da existência social e da dominação do
nadas com as do espectro político em ter- poder capitalista (Bidet e Kouvelakis, 2008,
mos teóricos, uma vez que as áreas sociais p.5 e 6). Com a queda do Muro de Berlim
em que actuavam – por exemplo a oposição em 1989 e o fim da URSS em 1991, sucede-
ao racismo, a violência sobre as mulheres, a ram-se os vaticínios de morte do marxismo.
Sida ou a ecologia – “are as much a recoun- A eles, juntaram-se os discursos analíticos
ting of a traditional leftist agenda as they do pós-modernismo, as teorias do fim da
are the subject matter of new genre public História e as da derrota do marxismo sobre
art.” (Lacy, 1995, p.30). A autora sugeria a o capitalismo como, entre outros, Francis
existência de campos de actuação distintos Fukuyama defendeu em ‘The End of History
entre as práticas artísticas abrangidas pela and the Last Man’, de 1992.
nova designação e as restantes práticas ar-
tísticas assentes numa intervenção social e Esta conjuntura, onde “this theoretical tra-
política. A diferenciação tinha em conta os de-off made in the name of deconstructing
grand historical and political narratives came ‘Hegemony and Socialist Strategy: Towards
at the very moment when capitalism emer- a Radical Democratic Politics’, publicada em
ged as the totalizing world system” (Shole- 1985, onde propõem que os objectivos de
tte, 2011, p.15), não foi coincidência. Não uma nova esquerda assentem na criação de
obstante, determinou uma alteração subs- uma democracia radicalizada e plural que
tancial no panorama do pensamento crítico, articule a luta de diferentes grupos e formas
das ideologias e também da sua influência de subordinação como a classe, a raça, o
sobre críticos, artistas e práticas artísticas. sexo, assim como as causas dos movimen-
tos ecológicos, antinucleares ou anti-institu-
A incidência nos conflitos gerados fora do cionais (Laclau e Mouffe, 1987, p.6).
contexto económico ganhou bastante ex-
pressividade a partir da segunda metade A influência destes autores para o pensa-
do século XX, sobretudo nos EUA. Estes mento crítico produzido no contexto das
conflitos, associados ao contexto cultural – artes, durante os anos noventa, raramen-
como as questões de género, de raça, de te tem sido equacionada no que se refere
identidade – procuraram com frequência à reflexão que determinados autores fize-
instalar-se num ‘novo’ pensamento de es- ram durante este período sobre a relação
querda veiculado ao feminismo e/ou ao das artes com a Política. Não obstante, esse
pós-colonialismo, afastando-se da análise equacionamento é fundamental para o en-
social marxista. quadramento ideológico de algumas tipo-
logias artísticas inseridas no perímetro da
Durante este período, o pensamento filosó- Arte Pública, assim como o é para caracte-
fico ‘pós-marxista’ e ‘neo-marxista’3 de Er- rizar a re-focagem do contexto artístico na-
nest Laclau e Chantal Mouffe, Paulo Freire e quele período em matéria de intervenção
Henry Giroux ou ainda de activistas associa- social e política.
dos às teorias feministas como bell hooks,
tornou-se uma referência para alguns círcu- No mesmo ano em que Chantal Mouffe e
los e tipologias artísticas, nomeadamente ao Ernest Laclau publicaram o volume atrás
‘novo género de arte pública’. Nele, a con- referido – 1985 –, Hal Foster publicou ‘For
vergência com o marxismo assenta apenas a Concept of the Political in Contemporary
na forma “in which Marx discloses the shor- Art’, onde propunha fazer uma reflexão so-
tcomings of modern democratic theory (…) bre a conjuntura político-artística dos anos
namely, free and equal development of a oitenta a partir de uma revisão das relações
self-determining community.” (Tønder e Tho- entre os domínios cultural e político e en-
massen, 2005, p.2). As divergências são mais tre o social e o económico (Foster, 1985,
profundas, assentando num pensamento p.140). Neste ensaio, que se aproxima às
que considera o marxismo desactualizado considerações tecidas no contexto do pós-
na sua estruturação e análise social, eco- -marxismo, Foster reiterava que o modelo
nómica e política. É isso que, por exemplo, social marxista, baseado na luta de classes,
Ernest Laclau e Chantal Mouffe sustêm em estava ultrapassado. A definição de clas-

– CRISTINA PRATAS CRUZEIRO 201


se era, no seu entender, uma praxis social Hal Foster partia da análise baseada na
específica e não um dado histórico perma- comutação entre a cultura e a economia
nente que pudesse ser representado (1985, (Foster, 1985, p.146) pelo que defendia uma
p.143). Por isso argumentava que: radical alteração estratégica da arte crítica
em relação às utilizadas durante as primei-
Today progressive social forces in the west ras vanguardas. Se aí a estratégia tinha as-
cannot be defined strictly in terms of “pro- sentado na transgressão cultural e política,
ductive man” – for two reasons. Historically, agora ela deveria assentar na resistência
women, blacks, students...were no long su- e interferência (Foster, 1985, p.149) políti-
bordinate in production or consigned to a ca, efectuada directamente no campo da
realm outside it – to consumption or culture; cultura (Foster, 1985, p.154). Isso exigia da
and socially, the site of struggle for these po- arte uma concepção de cultura como es-
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

litical forces is as much the cultural code of paço conflitual onde era possível oferecer
representation as the means of production, resistência e interferir com os sistemas de
as much homo significans as homo œcono- produção simbólica e com os processos de
micus. (Foster, 1985, p.142). circulação que controlam as representações
culturais. Era esse o lugar possível para tra-
Hal Foster formulava então a questão: “if it balhar no sentido da transformação social.
can no longer be conceived as representa-
tive of a class, materially productive or cul- O ensaio de Hal Foster terminava sugerin-
turally vanguard, how and where is political do uma distinção entre ‘arte política’ e ‘arte
art to be posed?” (Foster, 1985, p.140). Em com uma política’. Para o autor, a primeira
resposta, afirmava que o poder não pode- mantinha-se encerrada num código retóri-
ria continuar e ser exercido exclusivamente co, pelo que reproduzia representações
ou maioritariamente através do controlo dos ideológicas enquanto que a segunda, im-
meios de produção, mas através do controlo plicada com um posicionamento estrutural
dos meios de representação (1992, p.260). de pensamento, procurava uma prática ma-
Desta forma, a arte política não poderia con- terial efectiva com a totalidade social (1985,
tinuar a ser concebida apenas “as a repre- p.155). Dadas as estratégias de actuação,
sentation of a class subject (…) or an instru- o autor considera que a última procurava
ment of revolutionary change (…).” (Foster, produzir um conceito de ‘político’ relevante
1985, p.143), valores transversais à socie- para a época (Foster, 1985, p.155), evitan-
dade, tendo antes que ser concebida para do dessa forma a apropriação e dominação
“specific uses and material effects (...)” (Fos- pelo poder.
ter, 1985, p.143). Para que isso acontecesse,
tornava-se necessário “see in the social for- Em 1996, Hal Foster clarificava a sua per-
mation not a “total system” but a conjuncture spectiva, publicando o texto ‘The artist as
of practices, many adversarial, where the cul- etnographer’. A partir da recuperação do
tural is an arena in which active contestation pensamento que Walter Benjamin expres-
is possible.” (Foster, 1985, p.149). sou em 1934 no texto ‘Der Autor als Produ-
zent’ (O autor enquanto produtor), o autor Lugares e considera que “When this kind
considerou que a partir dos anos oitenta of research into social belonging is incor-
vários artistas e críticos começaram a tra- porated into interactive and participatory
balhar em versões contemporâneas do par- art forms, collective views of place can be
adigma aí expresso. Mas a par do modelo arrived at. It provides ways to understand
do ‘autor enquanto produtor’, Hal Foster how human occupants are also part of the
identifica o nascimento de um novo par- environment rather then merely invaders
adigma, o do ‘artista enquanto etnógrafo’ (but that too).” (Lippard, 1995, p.116). As-
(1999, p.172). Estruturalmente similares, sim, no seu entender, as práticas artísticas
os dois consideram que o lugar da trans- comprometidas com o contexto social –
formação política é simultaneamente o lu- por ela denominadas de “art of place” (Lip-
gar da transformação artística (Foster, 1999, pard, 1995, p.119) – deviam trabalhar com
p.173). O que os distingue é o sujeito pelo as particularidades humanas geradas nos
qual o artista comprometido luta, uma vez Lugares, centrando-se nesse microcosmos
que no modelo do artista como produtor para dele retirar as dimensões práticas, so-
o sujeito é definido em termos da relação ciais e políticas da comunidade.
económica e no modelo do artista como
etnógrafo é definido em termos da identi- As práticas artísticas compreendidas nes-
dade cultural (Foster, 1999, p.173). ta tradição teórica são várias e os propósit-
os que as movem também. Não obstante,
O paradigma etnográfico identificado por o seu eixo central – o contacto directo com
Hal Foster, de onde se destaca o carácter determinadas comunidades – é tenden-
antropológico das práticas artísticas, é tam- cialmente entendido como o elemento de
bém evidenciado no volume editado por maior significância política. De tal forma que
Suzanne Lacy como sendo uma característi- “a community art project has only ‘succeed-
ca do ‘novo género de arte pública’. Lucy ed’ when it realizes an interaction between
Lippard, no texto ‘Looking around: where we participants and the artist and wider com-
are, where we could be’, aí incluso, propõe munity at which it was aimed.” (De Bruyne
que se volte a olhar em redor, ao que está e Gielen, 2011, p.21). Para o enquadramen-
ao alcance dos olhos e do corpo. Conside- to da questão, é importante referir que as
ra a autora que “because we have lost our metodologias colaborativas e participativas
own places in the world, we have lost re- estavam a assumir neste período uma forte
spect for the earth, and treat it badly.” (Lip- proeminência. Por exemplo, na mesma al-
pard, 1995, p.115). A noção antropológica tura em que o perímetro de actuação con-
de Lugar é definida por Lippard como um ceptual do ‘novo género de arte pública’
espaço social com conteúdo humano, at- estava a sedimentar-se, Nicolas Bourriaud
ravés do qual se podem compreender as in- escrevia ‘Esthétique Rélationnel’ (publica-
terligações pessoais, sociais e culturais. Pos- do em 1997), dedicado à arte centrada nas
tula por isso a necessidade de aprofundar interacções humanas e no seu contexto so-
a reflexão sobre a experiência pública dos cial (Bourriaud, 2008, p.13). Tal como Lip-

– CRISTINA PRATAS CRUZEIRO 203


pard, o autor identifica nas ‘microutopias’ Ernest Laclau e Chantal Mouffe, “a duo of
do presente a significância política da arte anti-Marxist Leftists (...) attempted to prove
relacional. Mas como Claire Bishop obser- that any universal economic explanation of
va, a mesma tende a centrar-se não no es- society is merely a fetish or myth dreamed
paço social mas na relação entre o artista up by Marx and elaborated on by his follow-
e o espectador (Bishop, 2004, p.56). Isso é ers.” (2011, p.14). Sholette rejeita liminar-
também notado por Christian Kavragna em mente a visão ‘horizontal’ do pluralismo de-
relação ao ‘novo género de arte pública’: fendido por Mouffe e Laclau assim como o
facto de considerarem que:
The rhetoric of the NGPA hardly obscures
the process of “othering”, the construction No one privileged signifier—such as the
of an “other” as a condition for further pro- economy or class status—could possibly af-
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

jections. The “others” are not only poor and fect all of these positions [as posições de
disadvantaged, they are also representati- conflito social] because capitalism is not a
ves of what is genuine and real, so that they totality, it is instead a text with a multiplici-
are at once both needy and a source of in- ty of interpretive possibilities that generate
spiration (1998). merely local conflicts of power and temporal
moments of subjectivity (2011, p.14).
O discurso de Lacy, de Foster, de Lippard
e de outros autores como Rosalyn Deut- Naturalmente que este debate não está en-
sche4 ou Nicolas Bourriaud relevava uma cerrado e dele tem resultado uma extensa
intervenção social segmentada face a uma profusão de relacionamentos da Arte Públi-
intervenção social dirigida ao contexto ca com o Político. Um dos efeitos mais evi-
económico e político hegemónico. Chris- dentes tem sido o crescimento de propos-
tian Kavragna considerou por isso que tas terminológicas e sub-tipologias dentro
“What is noticeable about the programma- do tecto abrangente da Arte Pública, cu-
tic writings by Lacy and Jacob, but also by jos propósitos se enunciam como políti-
Lucy Lippard, Suzi Gablik and Arlene Raven, cos5. Mas a questão essencial passa pela
is that political analysis is largely missing, dimensão ideológica que esses propósitos
even though there is much talk of social têm, assim como pela interrogação acer-
change at the same time.” (1998). Contudo, ca da sua relação com o sistema capitalista
a omissão da análise política dos discursos neoliberal e com a Política.
críticos sobre arte destes autores não era
casual. Acontecia porque eram enformadas O BAVO, um colectivo sediado em Roter-
por teorias políticas ideológicamente alin- dão, fundado pelos arquitectos-filósofos
hadas com um pensamento sobre as dinâ- Gideon Boie e Matthias Pauwels, tem de-
micas sociais marcadamente niilista e em senvolvido uma investigação nesta matéria,
muitos aspectos anti-marxista. A este res- designando as práticas artísticas sem pro-
peito, por exemplo, o artista Gregory Sho- pósitos políticos dirigidos para o comba-
lette sustenta que toda a teoria política de te às estruturas hegemónicas de poder de
“NGO art”, ou seja, arte ONG (Organização e De Roo, 2011, p.289). O objectivo passa
não governamental). Este colectivo centra por “do what can be done within the realms
a sua pesquisa e acção na dimensão polí- of possibility and to offer instant relief or em-
tica da arte, na arquitectura e planeamento powerment through a concrete project or
urbano, através da filosofia e psicanálise e intervention” (De Cauter, L. e De Roo, 2011,
sustenta que: p.291) e não por “initiating long-term politi-
cal processes in which ‘the impossible is de-
It is no doubt noble and much-needed that manded’ and of which no one knows wheth-
artists undertake some direct action in the of- er they will ultimately produce a concrete
ten harrowing social situations that continue improvement for the social groups in ques-
to exist in our current societies (...). When it tion.” (De Cauter, L. e De Roo, 2011, p.291).
comes to gauging the effectiveness of the-
se socially committed practices in tackling Para o colectivo, a questão do enquadra-
the problems at hand in a more fundamen- mento num projecto social de fundo aca-
tal sense, however, they are often found la- ba por ser essencial no momento de aufer-
cking. (...) They reason and operate more like ir sobre a intervenção política das práticas
humanitarian organizations or NGOs: rather artísticas contemporâneas. Isto determina
than addressing the larger, political issues, uma actividade político-artística prolonga-
they focus on what they can do immediately da, pelo que se torna impossível a obtenção
for the affected individuals or groups within de efeitos a curto prazo, como diferentes
the limitations of the feasible. With these or- práticas artísticas comunitárias e relacionais
ganizations they share a high measure of pretendem. O BAVO sustém inclusive que a
self-censorship. It is a known fact that huma- compulsão em atingir resultados imediatos
nitarian organizations deliberately avoid ta- não só condena os artistas comprometidos
ckling head-on controversial political issues a uma neutralidade política como os torna
for fear that the relief effort might be com- extremamente vulneráveis politicamente
promised (...). NGO-art is in fact characteri- (De Cauter, L. e De Roo, 2011, p.291).
zed by a denial of politics: the question of
what can be done here and now, and how Em certa medida, a análise deste colectivo
this can be achieved most efficiently is more coloca em destaque a importância que as di-
important than exposing and combating ferentes concepções de intervenção política
more underlying structures – which should no espaço social têm na concepção e estru-
be the essence of politics. (De Cauter, L. e turação da prática artística. Em relação à
De Roo, 2011, p.291). Arte Pública na sua dimensão comunitária,
a análise do investigador Pascal Gielen con-
O colectivo artístico destaca a acção direc- tribuí para uma melhor compreensão desta
ta, uma característica essencial das práticas problemática. Em ‚Mapping Community Art‘
artísticas de carácter colaborativo, participa- (2011), o autor considera que “an engaged
tivo e relacional, como denotadora do prag- artist, who sincerely wishes to make a po-
matismo próprio das mesmas (De Cauter, L. litical statement, forces himself into a par-

– CRISTINA PRATAS CRUZEIRO 205


ticulary complex role. This is especially the propósito subversivo (De Bruyne, P. e Gielen,
case when he tries to substantiate this social P., 2011, p.21). Isto complexifica a questão,
claim from an artistic position.” (De Bruyne, mas traz simultaneamente à luz a importân-
P. e Gielen, 2011, p.18). A complexidade cia de se identificar o carácter intencional da
que Gielen identifica está relacionada com prática artística, considerando os propósitos
o que considera ser um frágil equilíbrio en- políticos da mesma como uma característica
tre o contexto artístico e o contexto político, essencial a investigar.
podendo um levar à anulação do outro (De
Bruyne, P. e Gielen, P., 2011, p.19). Gielen afirma que a estética auto-relacional
digestiva está tradicionalmente afecta à arte
Pascal Gielen considera existirem dois posi- em espaços públicos onde o artista, embora
cionamentos extremos na arte comunitária. possa ter a participação da comunidade lo-
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

Um responde à noção de ‚estética auto-rel- cal, de instituições públicas ou de empresas


acional‘ e acontece quando o trabalho serve locais (ao nível do patrocínio, por exemplo),
a identidade do artista e o outro pressupõe segue a sua assinatura artística (De Bruyne,
a existência da noção de ‚estética alter-rela- P. e Gielen, P., 2011, p.23). É frequente nest-
cional‘ e acontece quando o trabalho serve es casos o artista trabalhar com organi-
a identidade do Outro (De Bruyne, P. e Giel- zações focadas em Arte no Espaço Público
en, P., 2011, p.18). Estes dois posicionamen- (comuns nos EUA e em alguns países euro-
tos sugerem que a arte comunitária pode peus) que servem de intermediárias neste
seguir duas direcções: obedecer às regras processo, a fim de encontrar consensos, ou
da arte profissional ou servir exclusivamente de instituições ligadas ao Poder local ou
a interacção social levando inevitavelmente central. Este posicionamento é aquele que
a um suicídio artístico (De Bruyne, P. e Giel- mais directamente se associa ao âmbito da
en, P., 2011, p.20 e 21). Ainda assim, consid- escultura e da edificação objectual, embo-
era o autor, o sucesso do trabalho depende ra possam existir projectos fora desse con-
de um correcto equilíbrio entre os dois texto. Por seu turno, a estética alter-rela-
posicionamentos (De Bruyne, P. e Gielen, P., cional digestiva prima por procurar atingir
2011, p.21). resultados sociais, colocando num plano se-
cundário a assinatura artística (De Bruyne, P.
O que se julga ser essencial nesta análise é e Gielen, P., 2011, p.25). Nela, podem inclu-
que Gielen sublinha que o propósito que ir-se todos os projectos onde acreditar “in
conduz o trabalho para a interacção social the healing effects of the arts is remarkably
determina que o mesmo possa ser consider- strong” (De Bruyne, P. e Gielen, P., 2011,
ado subversivo ou digestivo. A divisão entre p.25) e cujo objectivo artístico passa pela
os dois pólos não é intransponível pelo que integração social de determinados elemen-
a uma estética auto-relacional não tem que tos da comunidade.
corresponder necessariamente um propósi-
to digestivo, assim como a uma estética al- Um exemplo que se julga paradigmático
ter-relacional não tem que corresponder um deste posicionamento é o projecto‚ 'mega-
fone.net'6 dirigido entre 2004 e 2014 pelo
artista espanhol Antoni Abad. O projec-
to consiste em convidar grupos de pes-
soas em risco de exclusão social a expres-
sarem-se na primeira pessoa. Escolhido
o grupo é cedido a cada participante um
telemóvel com câmara para que registe
episódios do seu quotidiano e os publique
directamente no sítio da Internet7. O ‘mega- Vista da exposição 'Antoni Abad. megafone.net/
2004-2014'. MACBA
fone.net’ caracteriza-se inequivocamente Foto: Miquel Coll (Apud http://www.macba.cat/es/10-anyos-de-
por encontrar na arte uma plataforma de megafone-net)

sociabilidade que neste caso se traduz por


dar voz a determinadas comunidades fra-
gilizadas. Como o próprio website do pro-
jecto refere, a intenção é que o dispositivo
tecnológico entregue a cada participante
possa actuar como um megafone, ampli-
ficando a voz de indivíduos e grupos fre-
quentemente ignorados e incompreendi-
dos pelos meios de comunicação principais
(Megafone.net, 2013). Aqui, o artista fala em
discurso indirecto, cedendo o espaço que
lhe é concedido enquanto artista a outros
que em condições regulares não o teriam,
pelo que se trata de uma prática alter-rel-
acional. Considera-se que a mesma é ‘di-
gestiva’ por duas razões: em primeiro lugar
porque o projecto advoga o objectivo de
deixar falar o outro, impedido pelos média
de o fazer. Acaba portanto por se substitu-
ir aos mesmos, transferindo a responsabili-
dade de serviço público para si mesmo sem
que isso se traduza em qualquer alteração
na atitude dos referidos meios de comuni-
cação social. Não existe neste trabalho a in-
tenção de ir mais longe a este nível, exigin-
do por exemplo que os média cumprissem
a sua função, mas antes substituir-se a eles
numa função que diríamos ser protésica. A
outra razão, mais evidente, prende-se com

– CRISTINA PRATAS CRUZEIRO 207


o suporte financeiro do projecto, dado por trangeiro envolve um forte sentimento de
instituições sociais, culturais ou artísticas e exclusão social e cultural. Para o reiterar, co-
também por empresas privadas, especial- loca-se lado a lado com trabalhadores de
mente as dirigidas às telecomunicações8. O diferentes actividades que, numa situação
artista coloca-se numa posição de facilitador de precariedade laboral sem direitos, ofere-
das políticas financeiras empresariais que cem diariamente os seus serviços de canali-
primam com frequência pelo apoio a iniciati- zador, pintor ou electricista na praça Zócalo,
vas de cariz social com o objectivo de ganhar no centro da Cidade do México. Na fotogra-
estatuto social e em simultâneo benefícios fia, vemo-lo junto aos demais, oferecendo-
fiscais, pelo que de certa forma, sendo al- -se para trabalhar enquanto turista. O ques-
ter-relacional, este projecto colabora mais na tionamento político do artista não implica a
manutenção do sistema social e político em renúncia à presença autoral mas o conteú-
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

vigor do que na sua alteração profunda. do subversivo da obra é explícito. Outros


trabalhos do artista partilham das mesmas
A estética auto-relacional subversiva acon- características, como ‘When Faith Moves
tece quando o artista potencia a sua própria Mountains’, realizado no Peru em 2002, que
assinatura artística, o que resulta num tra- implicou inclusive a colaboração de Cu-
balho indiscutivelmente aceite nas institu- auhtémoc Medina e Rafael Ortega, para
ições artísticas (De Bruyne, P. e Gielen, P., além de cerca de quinhentas outras pes-
2011, p.25). Um exemplo que se conside- soas da comunidade local. Aqui, a dimensão
ra clarificador deste posicionamento é o do política, ainda que metaforizada, instala-se
artista Francis Alÿs. De nacionalidade belga, no domínio da esfera pública, onde precis-
escolheu o México como residência desde amente as causas da exclusão social devem
meados dos anos oitenta, desenvolvendo ser debatidas na sua relação com o poder
um percurso artístico dirigido à exploração económico, social e político.
da urbanidade, à relação entre a política e a
poética artística e à esfera pública. Pode-se Por último, a estética alter-relacional subver-
dizer que a sua base de trabalho é a per- siva acontece quando a prática artística se
formance, no sentido em que procura criar dilui em movimentos e organizações políti-
eventos que envolvem um reconhecimen- cas e sociais. Aliás, a prática pode até nunca
to do espaço e da esfera pública e onde ser pensada como artística, ainda que recor-
a análise política concreta se interliga com ra à estética. Pascal Gielen utiliza a Parada
uma linguagem poética individualizada. Es- do Orgulho Gay como exemplo. Segundo
tes eventos são registados maioritariamente o autor, neste posicionamento, a estética é
em vídeo e fotografia e depois trabalhados utilizada para servir a intervenção e luta so-
em meios muito distintos. cial e a lógica da sua utilização pode ser eq-
uiparada à que Mikhail Bakhtin atribuiu ao
‘Turista’, uma fotografia de 1994 é disso ex- carnavalesco: produzir uma inversão sim-
emplo. Quando se muda para o México, bólica. Pode-se por isso dizer que o posi-
Alÿs apercebe-se que a sua condição de es- cionamento compreendido na estética
alter-relacional subversiva se encontra pre-
sente de forma veemente em diversos mov-
imentos e associações de carácter social
criados nos últimos anos com o propósi-
to central de resistência ao capitalismo e
política neoliberal, designados comum-
mente nos meios de comunicação social
como movimentos anti-globalização.

Embora com antecedentes, trata-se de um


fenómeno recente. O seu crescimento re- Francis Alÿs, 'Turista', 1994 – Fotografia, 9.9 x 15.1 cm.
(Apud http://www.stedelijk.nl/en/artwork/82250-turista)
monta ao início da década de noventa e
embora no seu âmago existam profundas
distinções ideológicas e operativas – des-
de as mais claras às mais dispersas e difusas
– como caracterização essencial pode ser
apontada a dimensão global “en sus efectos
y en el alcance del mensaje que lanzan (...),
en la escala de sus redes y en la dimensión
de los problemas sobre los que trabajan (...)
y en la movilidad y circulación de sus com-
portamientos rebeldes (...).” (Fernández-Sa-
vater, A. et al, 2004, p.206). Essa dimensão
global pode ser explicada de variadas for-
mas. Embora se possa ver nela reminiscên-
cias de ideologias internacionalistas, o que
move a sua existência são fundamental-
mente os processos de globalização inten-
sificados no decorrer da década de noven-
ta. Para além disso, a influência filosófica de
determinadas orientações de esquerda que
promulgariam a designada ‘crise da repre-
sentação’ está também presente, traduzin-
do-se na rejeição por todas as formas de or-
ganização política ‘institucional’ e no apelo
à auto-organização.

Destes movimentos, destacam-se aqueles


que se centram na acção directa, utilizan-
do-a como método primordial de inter-

– CRISTINA PRATAS CRUZEIRO 209


venção política. A acção directa, mantida
por vários movimentos anti-globalização
organizados fora das instituições políticas,
tem um vínculo expresso aos movimentos
anarquistas e a algumas correntes de au-
to-organização, como o Operaísmo italia-
no protagonizado por Toni Negri. Mas do
ponto de vista do entendimento da estética
tem uma clara relação com formas de per-
formatividade criadas no decorrer dos anos
setenta, entre as quais se destaca o Teatro
do Oprimido, um sistema de exercícios, jo-
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

gos e técnicas teatrais, criado por Augusto


Boal em 1971.

O colectivo londrino ‘Reclaim the Streets’


(1991-2002) integra um dos primeiros ex-
emplos em matéria de actuação integra-
da em movimentos sociais. Caracterizado
pela organização de raves e festas ilegais
de carácter político, o colectivo esteve ini-
Reclaim the streets, Cartaz, 1995 cialmente centrado na questão da ecolo-
(Apud http://rts.gn.apc.org/poster1.htm)
gia, tendo organizado alguns protestos an-
ti-rodoviários, como a pintura de ciclovias
nas estradas ou a sua ocupação por breves
períodos por forma a interromper o tráfego
rodoviário. Após um período de interreg-
no na sua actividade – que durou sensivel-
mente cerca de três anos – o Reclaim the
Streets voltou a reunir-se e depressa alar-
gou o seu foco de contestação para o siste-
ma capitalista.

Uma das questões mais marcantes da ac-


tuação deste colectivo foi sempre, desde o
início, a forte componente estética utilizada
nos protestos, facto que levou a historiado-
ra de arte Julia Ramírez Blanco a afirmar que
“What makes its events fascinating is that
they occupy the ambiguous meeting space
between aesthetic creativity, social imagina- depois das suas sucessivas redefinições,
tion and political action. Their discourse and ocorridas a partir da década de noventa do
praxis borrow something from each of these século XX, esta alocação à problematização
three fields while simultaneously belonging espacial manteve-se determinante, tanto
to all of them.” (2013). ao nível do delineamento genealógico e
histórico como ao nível da sua delimitação
A estética alter-relacional subversiva, aqui conceptual. Mas a afectação à Política e à in-
incluída em práticas artísticas comunitárias, tervenção social aconteceu desde o início.
parte de uma inversão da questão arte/ Importa por isso, na análise crítica que se
política, ou seja, considera que não é no faz destas práticas artísticas, equacionar os
seio de movimentos artísticos, por mais efeitos sociais e políticos e neles, a relação
politizados que sejam, que a intervenção mantida com a sociedade capitalista e com
política da arte se torna relevante. Ela tor- o neoliberalismo global, reflectindo de que
na-se relevante quando os movimentos so- forma as mesmas contribuem para a ma-
ciais e políticos a utilizam enquanto ferra- nutenção ou derrube do mesmo.
menta de acção. Assim, a centralidade do
problema não é estético, é social. Não ob-
stante, a estética funde-se num campo ex-
pandido de práticas diversas com um só
objectivo: a alteração social. (IMAGEM 5 )
Em boa verdade, a questão que aqui é colo-
cada centra-se na articulação entre a arte e
a produção e não entre a arte e a recepção,
como acontece com muitas das práticas de-
scendentes do ‘novo género de arte públi-
ca’, pelo que o seu perímetro de actuação
se encontra simultaneamente no âmbito do
activismo artístico.

A veiculação da Arte Pública a questões de


ordem social e política é pois uma questão
que merere reflexão aprofundada. Se do
ponto de vista metodológico, conceptual,
estrutural, imagético e poético existem dif-
erenças que substanciam a identificação e
caracterização de tipologias distintas den-
tro do mesmo tecto, também do ponto de
vista político isso acontece. Por norma, a
noção de Arte Pública tem estado afecta a
noções de especificidade espacial. Mesmo

– CRISTINA PRATAS CRUZEIRO 211


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– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

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ticle188&varrecherche=Ingre- Washington: Bay Press. ISBN: Kouvelakis distinguem os termos
dientes%20de%20una%20 0-941920-30-5. da seguinte forma:
4
Although it is not always easy to com mobilidade limitada (Gene-
distinguish between the two, they bra, 2008), com pessoas desmo-
are differentiated in principle in bilizadas ou deslocadas (Colôm-
as much as the one seems to pro- bia, 2009-2010), com saharauis
claim the exhaustion of the Marxist em campos de refugiados (Argé-
paradigm, whereas the other intro- lia, 2009-2011), com pessoas
duces problematics which, while com deficiência visual (Barcelona,
maintaining a special relationship 2010-2011), com imigrantes em
with certain ideas derived from Nova Iorque (2011-2013) e com
Marx, reinterpret them in new pessoas com mobilidade reduzida
contexts or combine them with (Montréal, 2012-2014).
different traditions. (Bidet e Kou- 8
No website da Internet do projecto
velakis, 2008, p.XIII). (http://www.megafone.net) é pos-
5
A este respeito ver por exemplo sível aceder aos patrocínios e apoios
os textos ‘Evictions: Art and spa- financeiros de cada trabalho.
tial politics’ (1996), ‘Men in Space’
(1989) e ‘Agoraphofia’ (1996).
6
Como Miwon Kwon fez em ‘One
Place After Another: Site-Specific
Art and Locational Identity’, publi-
cado em 2002, propondo que as
diversas noções surgidas nas últi-
mas quatro décadas em relação à
arte pública fossem organizadas
em três distintos paradigmas: arte
em espaços públicos, arte como
espaço público e arte como inte-
resse público.
6
É possível acompanhar todo o
projecto no website http://www.
megafone.net/site/index
7
Até ao momento foram desenvol-
vidos treze trabalhos: com taxistas
(México, 2004-2014), com ciganos
(Lleida e Léon, 2005), com prosti-
tutas e prostitutos (Madrid, 2005),
com imigrantes nicaraguenses
(Costa Rica, 2006-2007), com
motociclistas (motoboy) (São
Paulo, 2007-2015), com pessoas

– CRISTINA PRATAS CRUZEIRO 213


Alguns Factores Determinantes para o
Impacto da Arte Urbana em Lisboa1

por Sílvia Câmara

Coordenadora da Galeria de Arte Urbana (GAU) da Câmara Municipal de


Lisboa, a partir do Departamento de Património Cultural. Mestre em História
da Arte Contemporânea pela Universidade Nova de Lisboa.
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

To elaborate briefly the survey of some seminal factors in


the evolution of graffiti and street art expressions in the
city of Lisbon, is the analytical challenge of this article. I
Particularly focused on the creations of the 21st century,
the inquiry outlines a summary overview of these No âmbito das manifestações plásticas as-
manifestations, from its beginnings in the Portuguese sociadas à produção do graffiti e da street
capital, also going back to April 25, 1974 and the art, a cidade de Lisboa granjeou, sobretu-
subsequent production of revolutionary muralism. The do na segunda década do século XXI, uma
main reasons given for the current status of the urban posição particular no panorama europeu. O
art phenomenon in Lisbon, characterize the authors volume de obras realizadas, cerca de 400
community involved; point the interest shown by various trabalhos entre os patentes e os entretanto
political bodies, social and business entities; refer to the perdidos; a amplitude das suas escalas, ex-
impact of the financial crisis that marked the country pandindo-se entre uma dimensão de cariz
in recent years; allude to the media, with national and monumental, por vezes com mais de uma
international coverage on this plastic universe; mention dezena de andares intervencionados num
the touristic attraction of urban art and describe the work único edifício, e uma reduzida compleição,
done by the Cultural Heritage Department of Lisbon circunscrita à superfície de um armário téc-
Municipality, through the Urban Art Gallery, in its various nico; a dispersão pela malha urbana, atin-
working fields. gindo tanto a área central da cidade, como
alguns dos pólos que marcaram a sua ex-
pansão urbanística, o caso das Avenidas
Novas ou até o núcleo dos Parque das Na-
ções e tanto bairros de elevado estrato so-
cioeconómico, como bairros municipais; e
ainda a diversidade de discursos, de gera-
ções, de carreiras, de nacionalidades dos
autores envolvidos, afirmam-se como indí- da década de 60 e início da seguinte, no sé-
cios da vitalidade que este fenómeno con- culo XX, em território norte-americano, res-
quistou na capital portuguesa. pectivamente em Filadélfia e Nova Iorque,
com a proliferação do tag, enquanto assi-
O levantamento de alguns factores que se natura do alter-ego do seu autor, o writer3.
nos afiguram determinantes para o actual Em Lisboa, se a sua herança pode retroce-
impacto da arte urbana em Lisboa, pro- der até aos murais propagandísticos execu-
posto por este artigo, resulta do trabalho tados nos anos subsequentes à Revolução
realizado no seio da Câmara Municipal de de 1974, como verificaremos adiante neste
Lisboa (CML), nomeadamente no seu De- artigo, as obras inaugurais, que implicam o
partamento de Património Cultural, cuja ac- modus operandi, as narrativas, os símbolos
ção dedicada às manifestações do graffiti e e os rituais próprios desta comunidade ar-
da street art, praticadas num quadro lega- tística, ocorrem no final da década de 80,
lizado, tem vindo a ser desenvolvida pela deflagrando-se na zona de Carcavelos, até
Galeria de Arte Urbana (GAU), desde 2008. chegarem à capital, especialmente em nú-
Constitui pois, uma abordagem decorrente cleos como o ainda hoje activo, muro das
da nossa reflexão e investigação produzi- Amoreiras, junto à Av. Conselheiro Fernan-
das neste campo estético, da concepção da do de Sousa4. Trata-se portanto, de tendên-
estratégia promovida pela GAU nas distin- cias recentes, com aproximadamente 30
tas áreas de actuação que a configuram, na anos de presença na cidade, disponibilizan-
participação em inúmeros projectos organi- do-se ainda num diminuto hiato temporal à
zados e apoiados, na observação e relacio- observação, fruição, análise e estudo.
namento directos com os criadores e agen-
tes associados a estas práticas artísticas, Tal contemporaneidade, o facto de o fenó-
mas também com a população confrontada meno estar a acontecer hic et nunc, permi-
com estas manifestações, nos seus vários te-nos percepcionar as céleres mutação e
papéis sociais, enquanto residente, proprie- ampliação da comunidade ligada à produ-
tária, empresária, turista, entre outros. ção do graffiti e da street art, em Lisboa e
noutras cidades a nível mundial, aspectos
Dentro das principais dificuldades episte- que não apenas reflectem um carácter de
mológicas inerentes ao presente objecto de transitoriedade no interior deste domínio
estudo, realça-se a proximidade temporal plástico, como incutem uma permanente
do fenómeno, cuja génese pode eventual- necessidade de actualização por parte dos
mente remeter para ancestrais gestos pictó- seus investigadores5. Traçar cenários exaus-
ricos e caligráficos, plasmados em registos tivos, consultar taxionomias sedimentadas,
pré-históricos ou articulados na Antiguida- obter dados consolidados, constituem tare-
de Clássica2 ou até em criações de um mu- fas bastante inacessíveis ou até vãs, peran-
ralismo mais recente, em diferentes corren- te a produção criativa em causa. Revela-se
tes novecentistas, mas cujo principal corpus para mais como uma situação globalizada,
de expressão, emerge na segunda metade não só na sua faceta de manifestação sub-

– SÍLVIA CÂMARA 215


versiva e anti-sistémica, como na sua ver- bém com uma proveniência distante de cer-
tente comissariada e autorizada, surgindo tas estruturas artísticas, consequentemente
constantemente novas iniciativas. Assim e pouco reconhecida pelo pensamento, pela
na ausência de manuais de boas práticas, crítica, pelo mercado, pela maioria das en-
importa aceitar a impossibilidade de uma tidades museais, ao ser germinada no seio
visão holística e definitiva sobre estas ex- de uma comunidade originalmente autodi-
pressões, adoptando um entendimento di- dacta e anónima, ditaram uma clara falta de
nâmico e disponível perante o movimento interesse académico, que se traduzia igual-
perpétuo dos acontecimentos. mente numa fraca produção bibliográfica.
Esta lacuna será outro dos obstáculos ao
Outra dificuldade reside na forte ambiva- seu estudo, situação que começa a ser su-
lência e nas estruturantes contradições que primida, de forma predominante, por disci-
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

percorrem as posturas de toda esta comu- plinas sociais, como a antropologia visual, a
nidade, perante os desafios que presente- sociologia urbana, muito mais recentemen-
mente lhe são colocados. O pontual ape- te pela história da arte8, e por uma crescen-
lo das galerias e da curadoria, a resposta te vaga de publicações ligadas ao tema.
às encomendas, a atracção pelas marcas, a
sujeição ao processo de legalização, até a Perante o exposto, qual a relevância desta
opção por certos suportes, técnicas e plas- temática na análise da actuação artística na
ticidades, são encaradas por alguns criado- esfera pública? O fenómeno encerra uma
res como processos de “domesticação”, de vertente vandálica que atinge claramente
aniquilação da rebeldia e do descompro- outras expressões plásticas presentes no
metimento (com excepção das regras gera- espaço público, componente que mais do
das pelos pares) que pautou o espírito ori- que se combater cegamente, apenas atra-
ginal das práticas do graffiti e de uma certa vés de vastas campanhas de limpeza, urge
“deontologia” concebida pelos writers6. Se também ser compreendido pelas orgãos
em Lisboa, se encontram cada vez mais ar- responsáveis pela salvaguarda do patrimó-
tistas a trabalharem exclusivamente num nio, enquanto forma de expressão, gesto de
campo autorizado, surgem também auto- rebeldia, sinal de afirmação, acto de demar-
res a produzirem somente registos ilegais, cação do território, perante as condições de
em meios como carruagens de comboios, vida na urbe contemporânea, por parte de
a pièce de résistance do universo ligado ao uma camada adolescente da população9,
graffiti7. Estas facetas, entre outras, espe- estrato aliás cada vez mais jovem. Muitas ci-
lham bem a complexidade do terreno que dades, têm acolhido uma crescente presen-
estamos a percorrer, expondo a subtileza e ça de obras predominantemente parietais,
a delicadeza das matérias em causa. nem sempre de cariz site-specific, criadas
por esta comunidade, produções que trou-
Por outro lado, o estado coevo, conjugado xeram para o espaço público, todo um novo
não só com a natureza efémera da arte ur- grupo composto por artistas emergentes,
bana e a origem de praxis ilegal, mas tam- traduzindo-se numa efectiva regeneração
da intervenção estética na malha urbana, A consignação das liberdades primordiais
processo que importa compreender para espoletada pela transição à Democracia,
mais proficuamente se integrar. Tais ma- trouxe intrinsecamente para os muros da ci-
nifestações aportam igualmente múltiplas dade, uma explosão de revindicações pro-
repercussões, de diferentes índoles tão di- postas por movimentos políticos, partidos,
versas como as sociais, as urbanísticas, as sindicatos, artistas. Quebrar o jugo do regi-
culturais, as políticas, as económicas, as me- me ditatorial que havia governado o país du-
diáticas, complexidade de impactos que se rante cerca de quatro décadas, denotava-se
torna premente ser apreendida para a ac- igualmente numa nova ocupação do espaço
tual administração do território10. Enfim, não público, por parte dos cidadãos, agora livres
reflectir e estudar tais registos artísticos, sig- no pensamento e na expressão das suas pa-
nificaria negligenciar e discriminar um vi- lavras e da sua iconografia11. As obras então
goroso panorama plástico, que de algum concebidas derivavam mais de um esforço
modo, tem enformado o mais recente esta- provindo das estruturas políticas e menos de
do da arte em espaço público. um ensejo concretizado por certa elite criati-
va, apesar de algumas intervenções produzi-
II das por artistas plásticos, como o vasto mural
conjunto, realizado na Galeria Nacional de
A interrogação subjacente a este artigo, Arte Moderna, em Belém, no ano da Revo-
nasce do interesse em descortinar quais as lução e no qual participaram nomes presti-
principais razões para o fenómeno da arte giados, como Júlio Pomar, Nikias Skapinakis,
urbana ter adquirido a presente expres- Vespeira, entre outros12, ou ainda a interven-
são em Lisboa, identificar alguns dos facto- ção executada no piso da Rua do Carmo, em
res que estimularam este tipo de interven- Agosto de 1974, envolvendo o grupo Acre13.
ções artísticas, alimentando a pujança que O património estético trabalhado, emanava
as manifestações do graffiti e da street art essencialmente de uma linguagem gráfica
hoje patenteiam nas ruas da cidade. Nes- delineada pelo marxismo-leninismo e pelo
se reconhecimento, constatámos que há maoismo, quer em termos formais, quer cro-
causas que se tornam efeitos e efeitos que máticos, adaptada tão mimética ou espon-
se tornam causas, dialéctica presente num taneamente, quanto permitia a capacidade
processo pautado pelo dinamismo, pela ex- técnica e imagética dos seus autores. Consis-
ponenciação da comunidade, dos eventos, tiam em peças com claros fitos políticos, que
dos trabalhos, dos lugares onde se inscreve portanto procuravam ser eficazes na comu-
este universo plástico, como foi apontado. nicação, ao despertar, consciencializar, enga-
jar, activar comportamentos nos indivíduos,
Antes de mais, julgamos ser relevante refe- através de mensagens de assinalável impac-
rir a herança do muralismo propagandísti- to visual, com frases imperativas de interpre-
co, eclodido imediatamente após o 25 de tação imediata14. Tal acervo original de mu-
Abril de 1974 e prolongando-se durante rais encontra-se hoje, totalmente perdido,
todo o Processo Revolucionário em Curso. entre as vicissitudes construtivas e urbanísti-

– SÍLVIA CÂMARA 217


cas da cidade, legado apenas resgatado de
modo tangível, por alguns núcleos fotográfi-
cos, actualmente sob a guarda de entidades
como a Fundação Mário Soares15, o Arqui-
vo Fotográfico da CML16, o Centro de Do-
cumentação 25 de Abril, pertencente à Uni-
versidade de Coimbra17. Todavia, a memória
persiste nas gerações que experienciaram
directamente os acontecimentos do PREC,
gerando certa abertura para as intervenções
do muralismo da actualidade, também ele
Carlos Farinha, Exposição “Venham mais 7!”, atento a essa herança, como o testemunham
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

Painel da GAU, Calçada da Glória, 2014


o projecto “40 Anos/40 Murais”, organizado
© CML | DPC | José Vicente 2014
por António Alves e a Associação APAURB18
ou a exposição “Venham mais 7!” decorrida
em 2014, nos painéis da GAU, sitos na Calça-
da da Glória e Largo da Oliveirinha19.

Outro factor que nos parece fulcral alinhar,


consiste na maturidade estética e empreen-
dedora que a comunidade de arte urbana
foi obtendo ao longo do seu percurso, na
cidade de Lisboa, como o demonstrava a
produção de hall-of-fame, obras de maior
dimensão e exigência plástica, realizadas
especialmente, no já mencionado, muro
das Amoreiras, a partir da primeira metade
da década de 90. Nesse período inaugural,
sobressaíam criadores como Wize (poste-
riormente denominado Nomen), ainda hoje
bastante activo no local20, ou Exas e Youth21.
Um pouco antes, durante os anos de 1980,
nas ruas do Bairro Alto, considerado o bair-
ro cultural e boémio da cidade de Lisboa,
onde foram proliferando as empresas cria-
tivas, as actividades artísticas, os locais de
restauração e vivência nocturna22, e dada a
proximidade de alguns estabelecimentos
de ensino dedicados às práticas plásticas
e gráficas como a Faculdade de Belas-Ar-
tes da Universidade de Lisboa e do Palácio
Quintela, antiga sede do IADE, apareciam
obras de menor dimensão, ligadas a técni-
cas como o stencil23.

Assim, ainda antes da definição de uma es-


tratégia municipal implementada pela GAU,
desde 2008, estas expressões exibiam já
uma considerável consistência pictórica e
temática, dentro de uma heterogeneida- Nomen, Slap & Kurtz, Muro das Amoreiras,
Av. Conselheiro Fernando de Sousa, 2012,
de de plasticismos que podiam inspirar-se
© CML | DPC | José Vicente 2012
em correntes internacionais associadas a
este universo, mas não deixavam de decor-
rer da afirmação da singularidade presente
nalgumas autorias nacionais. Os criadores
portugueses organizavam-se em diversas
crews, grupos de writers com afinidades
que frequentemente actuavam em conjun-
to, e ocorreram estimulantes visitas de al-
guns autores a actuarem no estrangeiro,
como o actualmente reconhecido André24.
Na capital, surgiam as primeiras iniciativas
promovidas pela comunidade, com desta-
que para a VSP – Visual Street Performance,
projecto com 6 edições, organizadas entre Os Gémeos & Blu, Projecto “Crono”,
Av. Fontes Pereira de Melo, 2010,
2005 e 2010, que reunia algumas das figu-
© CML | GAU 2010
ras mais prestigiadas deste universo, como
Hium, Klit, Mar, Ram, Vhils, entre outros25. O
evento decorreu em vários edifícios, espa-
ços abertos ao público, envolvendo tanto a
mostra e comercialização de trabalhos de
menor escala, como a produção de traba-
lhos parietais e instalações, sendo de assi-
nalar que Vhils realiza neste contexto, a sua
primeira obra em baixo relevo, com perfura-
ção do reboco, técnica pela qual se tornou
mundialmente reconhecido26. Desta forma,
o aparecimento da GAU veio incremen-
tar este ímpeto já presente na comunida-
de, proporcionando-lhe novas oportunida-

– SÍLVIA CÂMARA 219


des para aprofundar as suas plasticidades e Promovendo não só as suas próprias ini-
apoiando os seus projectos, como as duas ciativas, como suportando e apoiando os
derradeiras edições da VSP, na cidade. eventos organizados por terceiros, a Gale-
ria alarga a sua área de intervenção. Assim,
Aquando da implementação de um pro- adopta logo nesse ano de 2009, como cam-
grama de reabilitação do Bairro Alto, que pos essenciais à sua actuação, para além
implicava entre outras medidas, a remo- necessariamente da curadoria e da produ-
ção das inscrições patentes nos seus princi- ção de eventos, as campanhas e acções de
pais eixos, a CML funda a GAU, inicialmen- divulgação e sensibilização para a impor-
te constituída por um conjunto de painéis, tância do enquadramento das práticas do
instalados na Calçada da Glória, nesta fase graffiti e da street art, num plano legalizado.
avultando-se o papel do Grupo Regojo, en- A inventariação de registos, levantamento
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

quanto patrocinador, e de Pedro Soares Ne- que recua até à Revolução de 1974 e avan-
ves, elemento ligado à comunidade. Nesse ça até à actualidade, inventário divulgado
núcleo de suportes, realiza-se em Outubro permanentemente pela Galeria em diferen-
do mesmo ano, uma primeira exposição tes meios, como o Google Art Project28. O
que reúne alguns dos mais notáveis artis- apoio ao debate, à investigação e à publica-
tas portugueses, de distintas gerações. E ção, através da organização de seminários,
no princípio de 2009, o Departamento de da participação em aulas, conferências e
Património Cultural da edilidade, assume a congressos, de parcerias com investigado-
tutela daquele espaço, delineando uma es- res e editoras, o caso de Ricardo Campos,
tratégia para a arte urbana que versava não para a sua obra “Porque Pintamos a Cida-
apenas aqueles painéis, mas ponderava ou- de? Uma Abordagem Etnográfica do Graffiti
tros territórios na cidade, passíveis de rece- Urbano” publicada pela Fim de Século ou a
berem intervenções de arte urbana27. Ra- edição de “Street Art Lisbon”29, lançada pela
pidamente, no contexto dessa actuação, a Zestbooks. A animação e pedagogia, orga-
Galeria giza uma abordagem do problema nizando e apoiando entre outras iniciativas,
que para além de pugnar pela salvaguar- o projecto “Lata 65” no âmbito do progra-
da e a preservação do património artístico ma municipal do “Orçamento Participativo”,
e cultural de Lisboa, procura promover e em colaboração neste caso, com Lara Seixo
sensibilizar para o fenómeno da arte urba- Rodrigues, projecto que se propõe aproxi-
na, defendendo que poderá ser compatí- mar a população sénior destas tendências
vel, frutuosa e harmoniosa uma convivência visuais30. Ainda as relações internacionais,
entre os discursos artísticos até então utili- estruturando candidaturas e projectos inter-
zados nas produções ligadas à arte pública nacionais, integrando redes ligadas à arte
patente na cidade e outras intervenções de- urbana, como a Urban Creativity Alliance31
rivadas do universo do graffiti e da street art. e a RAIU- Rede Luso-Brasileira de Pesquisa
Para tal, inicia um diálogo com a comunida- em Artes e Intervenções Urbanas32.
de, reforçando relações de confiança com
algumas das figuras prestigiadas do meio.
No contexto do apoio às actividades de
produção artística, concebidas pela comu-
nidade, realçamos dois dos eventos mais
emblemáticos da cidade de Lisboa – o pro-
jecto “Crono” e a plataforma “Underdogs”.
O primeiro, idealizado por Vhils, Pedro Soa-
res Neves e Angelo Milano, notabiliza-se a
partir das monumentais intervenções rea-
lizadas num conjunto de três imóveis, loca-
lizado na Avenida Fontes Pereira de Melo,
um dos principais eixos viários da cidade,
por parte de alguns dos reconhecidos no- Sainer, Projecto “Underdogs”,
Av. Afonso Costa, 2015,
mes da street art estrangeira, referimo-nos a © CML | DPC | José Vicente 2015
OsGémeos33, Blu, Sam3, EricaIlCane e Lucy
McLauchlan34. Será a sua escolha como uma
das mais importantes obras de arte urbana a
nível mundial, num artigo da autoria de Tris-
tan Manco, publicado pelo The Guardian35,
que começa a oferecer a Lisboa uma posi-
ção de destaque no cenário internacional.

Por sua vez, Vhils e Pauline Foessel no âm-


bito da plataforma “Underdogs”36, criada no
seu formato actual, no ano de 2013 e con-
tando com o apoio da GAU, têm vindo a reu-
nir em Lisboa, alguns reconhecidos autores
estrangeiros, a par com criadores nacionais.
Apenas para elencar alguns: os brasileiros
Nunca e Finok; o polaco Sainer; o espanhol
Okuda; a dupla norte-americana Cyrcle; os Guilherme Filipe, Projecto “Reciclar o Olhar”, 2014,
© CML | DPC | José Vicente 2014
portugueses MaisMenos e AkaCorleone37.

Assim, do interesse político, da consciência


democrática em como seria relevante dedi-
car um tempo e um espaço próprios a uma
comunidade de artistas que vinha sendo
afastada da intervenção plástica na malha
urbana, arredados maioritariamente para
práticas não autorizadas, nasce a GAU, plata-
forma municipal a actuar num terreno nunca

– SÍLVIA CÂMARA 221


antes desbravado pela edilidade, então com
raros casos de estudo internacionais, como
o programa implementado pela cidade de
Filadélfia38. Por outro lado, desde os primór-
dios da criação da Galeria, torna-se clara a
exigência de trabalhar em várias frentes, ter-
ritórios, escalas, suportes, plasticidades, ge-
Saddo, Projecto “Rostos do Muro Azul”, Centro Hospitalar rações, laborando nas diferentes facetas do
Psiquiátrico de Lisboa, Rua das Murtas, 2014,
fenómeno, com múltiplas prioridades, entre
© CML | DPC | José Vicente 2014
elas a renovação da intervenção plástica em
espaço público, a desconstrução de precon-
ceitos associados às expressões do graffiti e
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

da street art, a elevação do seu estatuto es-


tético e profissional, a introdução de activi-
dades culturais em zonas carenciadas da ci-
dade. A conjugação de todas estas áreas de
actuação sob o signo de diversos propósi-
Tamara Alves, Projecto “25 de Abril Hoje”, Assembleia tos, parece também contribuir para a esta-
Municipal de Lisboa, Fórum Lisboa, Av. de Roma, 2014,
© CML | DPC | José Vicente 2014
bilização de um terreno fértil à expansão e
diversificação do fenómeno da arte urbana,
na cidade de Lisboa.

Outra das variáveis decisivas na evolução


deste universo plástico, na cidade de Lis-
boa, assenta no significativo crescimento
e o progressivo ecletismo da comunidade
artística implicada. A produção de diversas
actividades que envolvem a intervenção em
suportes de menor escala, como o progra-
ma “Reciclar o Olhar” com trabalhos execu-
tados em vidrões39 ou até a “Mostra de Arte
Urbana”40 decorrida nos já referidos painéis
da GAU ou ainda as obras criadas no muro
do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa
(antigo Hospital Júlio de Matos), no âmbi-
to do projecto “Rostos do Muro Azul”41, tem
proporcionado a muitos autores o “ritual
de iniciação” na praxis da arte urbana. Em
todas as fases dos concursos dos quais re-
sultam a realização das peças nestas inicia-
tivas, surgem criadores que nunca antes ha- Por outro lado, o facto de a GAU defender
viam trabalhado em espaço público e que a remuneração destas obras, no sentido da
almejam adquirir alguma experiência neste sua dignificação enquanto produção criati-
campo, conviverem com autores de gera- va, de elevação do seu estatuto perante os
ções anteriores, darem-se a conhecer às en- outros campos artísticos, posicionam a arte
tidades organizadoras. urbana como uma oportunidade de tra-
balho num cenário de crise financeira que
Por outro lado, o constante aparecimento atingiu fortemente muitas das áreas onde
de novos autores, tem como consequência paralelamente estes autores desenvolviam
uma crescente heterogeneidade plástica, a suas carreiras profissionais, por exemplo
com recurso a outras técnicas, imagéticas, no mercado publicitário. Estas carências en-
iconografias e posturas perante os códigos frentadas pelo país, implicaram igualmente
originais que orientavam o comportamen- uma redução na procura de suportes parie-
to no interior da comunidade. Esta diversi- tais para a instalação de telas publicitárias,
ficação resulta também da introdução de pelos elevados montantes dispendidos em
percursos académicos através de elemen- taxas e logística, situação que de alguma
tos com formação na área das Belas-Artes, forma, ofereceu uma maior margem de ma-
do Design Gráfico, da Arquitectura ou com nobra ao aparecimento de obras artísticas
experiência no domínio da ilustração e da em fachadas e empenas com forte visibili-
banda desenhada, no seio de uma reali- dade. Ainda assim e dado também tratar-
dade que inicialmente, na geração deno- -se de uma comunidade bastante jovem43,
minada old-school, se fazia de modo auto- os valores praticados são inferiores aos en-
didacta, com uma aprendizagem bastante volvidos na produção de peças com mate-
prolongada e directamente na rua. Nesta riais mais perenes e onerosos, e por cria-
profunda transformação, o surgimento de dores reconhecidos pelo mercado da arte.
mais mulheres é igualmente um aspecto a Desfrutando igualmente da proliferação e
assinalar, numa comunidade predominan- notoriedade que estas manifestações têm
temente composta por elementos mascu- usufruído em Lisboa, identificam-se novas
linos, possivelmente mais aptos para en- oportunidades de negócio e a criação de
frentar situações geradas pela ilegalidade42. micro-empresas vocacionadas para a pres-
A concepção de obras num quadro autori- tação de serviços ou a concepção de ma-
zado, destituído de riscos na relação com teriais neste contexto, como a organização
as autoridades, facilita o trabalho produzi- de roteiros e visitas guiadas44, o merchan-
do pelas criadoras que assumem hoje po- dise, as edições, a instalação de pequenas
sições de relevo neste panorama plástico, galerias a trabalharem exclusivamente com
salientando-se entre outras, figuras como street artists, ou ainda que com menor ex-
Kruella d’Enfer, Glam, Maria Imaginário, Ma- pressão, a procura de exibição e comercia-
riana Dias Coutinho, Tamara Alves, Vanessa lização de peças por parte de espaços ga-
Teodoro, Wasted Rita. lerísticos firmados no panorama artístico
nacional, o caso da Agência Vera Cortês45.

– SÍLVIA CÂMARA 223


Perante estas circunstâncias, observa-se
uma crescente atenção quer por parte de
residentes e/ou proprietários do edifica-
do, quer por parte de entidades gestoras
do território e empresas interessadas em
desenvolverem projectos neste domínio.
Essa procura obedece a diversas finalida-
des – busca-se não apenas retardar o apare-
cimento de inscrições vandálicas em deter-
minados espaços, mas também promover
Mosaik, Klit, Kruella d’Enfer & José Carvalho, Projecto certa valorização patrimonial; revitalizar e
“Natureza Viva”, Pilares da Ponte 25 de Abril, dignificar áreas mais abandonadas, degra-
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

Calçada da Tapada, 2014,


© CML|DPC|José Vicente 2014 dadas e “deprimidas”; reforçar o diálogo
interétnico e intergeracional, a inclusão so-
cial e o enraizamento territorial que o de-
senvolvimento de algumas metodologias
artísticas pode estimular; aprofundar estra-
tégias de responsabilidade social e cultural;
aproximar-se de públicos urbanitas e juve-
nis que claramente se identificam com es-
tes léxicos visuais; partilhar o protagonismo
mediático atingido por estas manifestações
na cidade de Lisboa, entre outros intuitos.
Neste campo da colaboração com marcas e
grupos empresariais, apontamos o projecto
“Natureza Viva”46 concretizado entre 2013
e 2014, com a companhia francesa Immo-
chan, proprietária dos Centros Comerciais
Alegro, que se traduziu na elaboração de
um tríptico de intervenções, em Setúbal, Al-
fragide e Lisboa, nomeadamente em dois
dos pilares da Ponte 25 de Abril, em todos
os locais com o mesmo grupo de artistas –
José Carvalho, Klit, Kruella d’Enfer, Mosaik,
Regg, Tamara Alves, Violant.

A já apontada cobertura mediática, pare-


ce-nos merecer uma menção particular,
pois tem vindo a intensificar-se no decorrer
dos últimos anos, tanto nos meios nacio-
nais, como nos media internacionais. Entre III
estes, apontaremos o New York Times, o
El Pais, o L’Express, a France Press, a RAI, o Considerada a estratégia municipal para o
Tagesspiegel, numa cobertura permanen- graffiti e a street art, como exemplo de boas
temente levantada pela GAU, com um ba- práticas na plataforma Cultura 21 da orga-
lanço de clipping em 2014, de 192 peças nização mundial CGLU-Cidades e Governos
jornalísticas registadas. Obviamente que Locais Unidos49 e tendo o Huffington Post,
esta atenção mediática, traz um relevante na sua edição de 17 de Abril de 2014, co-
nível de exposição para o fenómeno, junto locado a cidade de Lisboa, no sexto lugar
de um público cada vez mais vasto, atrain- entre as 26 cidades a nível mundial, mais
do consequentemente autores, agentes, interessantes para se observar criações de
associações, marcas e empresas, instân- arte urbana50, a capital portuguesa e toda a
cias de gestão autárquica e outras entida- comunidade artística a actuarem nesse ter-
des políticas, residentes e proprietários. E ritório, alcançaram uma posição singular no
o atractivo turístico que a produção de arte panorama internacional. Este artigo inten-
urbana constitui para a cidade de Lisboa, tou elencar alguns factores que inspiraram,
alimenta-se de forma idêntica, a partir des- alavancaram, alicerçaram a expressão que
te interesse jornalístico e de toda a divul- estas práticas aqui atingiram, num processo
gação impulsionada pelas redes sociais e em que as próprias criações e os seus refle-
outras plataformas digitais. As manifesta- xos no espaço público e na sociedade, gera-
ções do graffiti e da street art, para além ram mais artistas, intervenções e projectos.
de impulsionarem um turismo próprio, de Todavia, ainda que algumas causas tenham
indivíduos que peregrinam pelo mundo no sido aludidas e algumas outras se pudes-
sentido de visitarem obras, posicionam-se sem adicionar, o âmago da questão pare-
como um apelo importante para um públi- ce esquivar-se, parece furtar-se ao elenco
co com uma faixa etária entre os 25 e os apresentado. Possivelmente só numa cida-
34 anos, que viaja muito numa modalidade de democrática, livre, criativa, vigorosa, dis-
de City Break e em companhias Low Cost, ponível para a novidade, atenta ao outro, se
inseridos numa geração de consumidores tornou possível traçar este percurso. E estes
3.0 que busca um conjunto de vivências são talvez os atributos mais determinantes
autênticas, originais, emotivas, sensitivas47. para a compreensão do fenómeno da arte
Daí a inclusão de referências dedicadas a urbana em Lisboa.
esta matéria nalgumas publicações turísti-
cas, como a National Geographic Traveler
Magazine, e a crescente oferta de visitas
guiadas dedicadas ao tema (ver nota 44),
o que já acontecia noutras cidades euro-
peias como Londres e Berlim48.

– SÍLVIA CÂMARA 225


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Cedar LEWISOHN, op. cit., p. 127. em http://www.fmsoares.pt/
teurbana/docs/gau_5_issuu> 7
Anna WACłAWEK, Graffiti and 16
Cf. em http://arquivomunicipal.
<http://issuu.com/camara_muni- Street Art, Thames & Hudson, Col. cm-lisboa.pt/pt/
cipal_lisboa/docs/revista_gau_ World of Art, London, 2011, p. 48. 17
Cf. em http://www.cd25a.uc.pt/
vol_o6_2014> 8
Pedro Soares NEVES e Daniela V. 18
Cf. em http://40anos40murais.
<http://www.mude.pt/exposicoes/ Freitas SIMÕES, “Street & Urban weebly.com/
andre-saraiva_6.html> Creativity”, in Lisbon Street Art & 19
Cf. em Revista GAU, Câmara
<http://muralarts.org> Urban Creativity – 2014 Internatio- Municipal de Lisboa, Vol. 4, Abril
<http://redeartesurbanas.wix. nal Conference, op. cit., p. 8. 2014, também disponível em
com/raiu> 9
Ricardo CAMPOS, op. cit., p. 24. http://issuu.com/galeriadearteur-
<http://streetartlondon.co.uk/tours/> 10
Pedro COSTA e Ricardo LOPES, bana/docs/gau_vol4_pt ; Revista
<http://www.theguardian.com/ Is street art institutionalizable? GAU, Câmara Municipal de Lis-
culture/gallery/2011/aug/07/art> Challenges to an alternative urban boa, Vol. 5, Julho 2014 , também
<http://www.under-dogs.net/> policy in Lisbon, Working Paper nº disponível em http://issuu.com/
<http://www.inward.it/piatta- 2014/08, Dinamia’Cet, ISCTE-IUL, galeriadearteurbana/docs/gau_5_
forme/urban-creativity-alliance-2> 2014, p. 22. issuu
<http://www.veracortes.com/> 11
André CARMO, “Revolutionary 20
Co-autor dos conhecidos murais
Landscapes: The PCTP/MRPP de cariz político representativos
– Notas Mural Paintings in the Lisbon das figuras de Passos Coelho, Paulo
Metropolitan Area”, in Finisterra, Portas e Angela Merkel.
1
Este artigo não foi redigido segun- XLVI, nº 92, 2011, p. 31. 21
Miguel MOORE, “Sous les Pavés,
do o actual Acordo Ortográfico. 12
Maria Adelaide GINGA, “Os La Plage…”, op. cit., p. 9.
2
Cedar LEWISOHN, Street Art – The Murais de Abril” in Revista História, 22
Pedro COSTA, Bairro Alto-Chiado,
Graffiti Revolution, Tate Publishing, Nova Série, nº 1, Outubro, 1994, Efeitos de Meio e Desenvolvimento
London, 2009, pp. 26-27. pp. 36-37. Sustentável de um Bairro Cultural,
3
Ricardo CAMPOS, Porque Pinta- 13
Composto por Alfredo Quei- Câmara Municipal de Lisboa, Col.
mos a Cidade? Uma Abordagem roz Ribeiro, Clara Menéres e Lima Lisboa: Estudos Sociais, 2009, p.
Etnográfica do Graffiti Urbano, Fim Carvalho. Cf. Fernando Rosa 13.
de Século - Edições, Col. Antro- DIAS, “Dois momentos históricos 23
Miguel MOORE, “Sous les Pavés,
pológica, 2010, pp. 91-94. da performance no Chiado: as La Plage…”, op. cit, p. 13.
4
Miguel MOORE, “Sous les Pavés, acções futuristas e o Grupo Acre”, 24
Miguel MOORE, “Sous les Pavés,
La Plage…”, in Underdogs, Vera in Coord. José QUARESMA, O La Plage…”, op. cit, pp. 10-13. Este

– SÍLVIA CÂMARA 227


autor realizou no ano de 2014, uma http://issuu.com/galeriadearteur- Lisboa, Vol. 6, Outubro 2014, tam-
exposição individual no MUDE – bana/docs/gau_3_portugue____s_ bém disponível em http://issuu.
Museu do Design e da Moda. Cf. issuu ; Revista GAU, Câmara Muni- com/camara_municipal_lisboa/
em http://www.mude.pt/exposi- cipal de Lisboa, Vol. 5, Julho 2014, docs/revista_gau_vol_o6_2014
coes/andre-saraiva_6.html também disponível em http:// 41
Cf. Revista GAU, Câmara Muni-
25
Visual Street Performance, Lis- issuu.com/galeriadearteurbana/ cipal de Lisboa, Vol. 1, Novembro,
boa, 2007. docs/gau_5_issuu ; Revista GAU, 2012, também disponível em
26
Alexandre FARTO aka Vhils, Dis- Câmara Municipal de Lisboa, Vol. 6, http://issuu.com/galeriadearteur-
secção, Fundação EDP/Museu da Outubro 2014, também disponível bana/docs/gau_vol01_2012_issuu
Electricidade, Lisboa, 2014. em http://issuu.com/camara_ ; Revista GAU, Câmara Municipal
27
Galeria de Arte Urbana – 3 municipal_lisboa/docs/revista_ de Lisboa, Vol. 2, Abril 2013, tam-
Anos, Câmara Municipal de Lis- gau_vol_o6_2014 bém disponível em http://issuu.
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

boa, Departamento de Património 38


Cf. o programa Mural Arts Pro- com/galeriadearteurbana/docs/
Cultural, 2012, p. 5. gram em http://muralarts.org revistagauvol2_issuu ; Revista
28
Cf. em https://www.google.com/ 39
Cf. Revista GAU, Câmara Muni- GAU, Câmara Municipal de Lisboa,
culturalinstitute/collection/gale- cipal de Lisboa, Vol. 1, Novembro, Vol. 3, Janeiro 2014, também dis-
ria-de-arte-urbana?hl=pt-PT&pro- 2012, também disponível em ponível em http://issuu.com/gale-
jectId=street-art http://issuu.com/galeriadearteur- riadearteurbana/docs/gau_3_por-
29
Street Art Lisbon, Zestbooks, Lis- bana/docs/gau_vol01_2012_issuu tugue____s_issuu ; Revista GAU,
boa, 2014. ; Revista GAU, Câmara Municipal Câmara Municipal de Lisboa, Vol. 4,
30
Cf. Em https://www.facebook. de Lisboa, Vol. 2, Abril 2013, tam- Abril 2014, também disponível em
com/Lata65 bém disponível em http://issuu. http://issuu.com/galeriadearteur-
31
Cf. em http://www.inward.it/piat- com/galeriadearteurbana/docs/ bana/docs/gau_vol4_pt ; Revista
taforme/urban-creativity-alliance-2 revistagauvol2_issuu ; Revista GAU, Câmara Municipal de Lisboa,
32
Cf. em http://redeartesurbanas. GAU, Câmara Municipal de Lisboa, Vol. 6, Outubro 2014, também
wix.com/raiu Vol. 3, Janeiro 2014, também dis- disponível em http://issuu.com/
33
Concomitantemente, realizavam ponível em http://issuu.com/gale- camara_municipal_lisboa/docs/
uma exposição individual no Museu riadearteurbana/docs/gau_3_por- revista_gau_vol_o6_2014
Colecção Berardo. Cf. Os Gémeos - tugue____s_issuu ; Revista GAU, 42
Ricardo CAMPOS, op. cit., pp
Para quem mora lá, o céu é lá, Fun- Câmara Municipal de Lisboa, Vol. 6, 194-198.
dação de Arte Moderna e Contem- Outubro 2014, também disponível 43
Com os elementos mais velhos a
porânea Colecção Berardo, 2010. em http://issuu.com/camara_ atingirem nesta fase, aproximada-
34
Cf. em http://issuu.com/unidade/ municipal_lisboa/docs/revista_ mente os 40 anos de idade.
docs/crono_lisboa_2010-2011 gau_vol_o6_2014 44
Cf. em http://www.under-dogs.
35
Cf. em http://www.theguardian. 40
Cf. Revista GAU, Câmara Muni- net/news/underdogs-public-art-
com/culture/gallery/2011/aug/07/art cipal de Lisboa, Vol. 1, Novembro, tour/ e http://www.estreladalva.pt/
36
Cf. em http://www.under-dogs.net/ 2012, também disponível em index.php/pt/tours/tours-temati-
37
Cf. Revista GAU, Câmara Muni- http://issuu.com/galeriadearteur- cos/street-art-tour
cipal de Lisboa, Vol. 3, Janeiro bana/docs/gau_vol01_2012_issuu 45
Underdogs, op. cit. e em http://
de 2014, também disponível em ; Revista GAU, Câmara Municipal de www.veracortes.com/
46
Revista GAU, Câmara Municipal
de Lisboa, Vol. 4, Abril 2014, tam-
bém disponível em http://issuu.
com/galeriadearteurbana/docs/
gau_vol4_pt
47
Rita MIRANDA, Debaixo de uma
parede cinza… existe um amor
pela nossa Cidade. (OsGemeos)
Cidade Turismo e Arte Urbana na
área metropolitana de Lisboa, Dis-
sertação Mestrado em Turismo e
Comunicação, Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa,
2015, pp. 27-33.
48
Cf. por exemplo em http://stree-
tartlondon.co.uk/tours/ e http://
alternativeberlin.com/berlin-graffi-
ti-workshop-and-street-art-tour
49
Cf. em http://www.agenda-
21culture.net/images/a21c/bones_
practiques/pdf/LISBON-ENG.pdf
50
Cf. em http://www.huffing-
tonpost.com/2014/04/17/best-
street-art-cities_n_5155653.html

– SÍLVIA CÂMARA 229


A Filha Bastarda da Arte

p o r M a u r o Tr i n d a d e
Doutor pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de
Janeiro e professor do Departamento de História e Teoria da Arte do
Instituto de Artes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

L’institutionnalisation du graffiti dans le champ de l’art


– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

n’arrive pas sans clivages ni contradictions, dans lesquels


ses pratiques et ses concepts semblent entrer en conflit Na galeria de vilões magistrais que Shakes-
avec le champ même de l’art qui l’absorbe, en un abîme peare nos legou, talvez nenhum se compa-
de valeurs et intérêts, dans la formation des artistes re ao dissimulado, envolvente e sedutor Ri-
et l’appréciation des oeuvres. L’un des rares artistes cardo III, incapaz de viver sob as grinaldas
du graffiti dans l’oeuvre est dans la rue, les galeries et da paz e ao som lascivo do alaúde, após
les centres culturels, Toz - Tomas Viana - analyses son a vitória da casa de York sobre Lancaster.
assimilation par le marché et les institutions. Seu desconforto reside na incapacidade
para o amor e para a alegria, pois é um
ser abjeto contra o qual até os cães inves-
tem. Imperfeito e lançado antes da hora
para esse mundo que respira, resta ao Du-
que de Gloucester “armar conjuras, tramas
perigosas, por entre sonhos, acusações e
ébrias profecias”1, em desacordo com a fe-
licidade que ele próprio ajudou a criar. Ele
não vive para a vitória, mas para o comba-
te, não para a paz, mas para a carnificina.
Aproveito as trevas que o personagem ali-
menta como metáfora ao papel do graffiti
na unanimidade artsy de nossa era, na qual
a experiência estética pode ser encontrada
em qualquer parte e a qualquer momento,
mesmo em ações que ainda hoje são crimi-
nalizadas. Não há descontentamento sob o
glorioso sol da arte contemporânea?
Tomas Viana, o Toz, é um grafiteiro baia- lavras pintadas nas ruas para a difusão de
no radicado no Rio de Janeiro que, des- ideias e comportamentos. Na mesma déca-
de 1996, pinta com sprays muros, viadu- da, jovens negros e hispânicos moradores
tos e outras construções pela cidade e que de Nova Iorque e de outras cidades iriam se
tem feito sucesso no mercado de arte, com bater contra as configurações simbólicas do
obras espalhadas por todo o Brasil e em di- espaço urbano após a repressão aos “gran-
versos países da Europa. Quando começou des motins urbanos de 1966-1970”4, como
a colorir as ruas do Rio, a arte e o mundo da nota Jean Baudrillard. Dividida em zonas de
arte não tinham a menor importância para ocupação sociais e raciais, a cidade é igual-
os grafiteiros. Segundo ele, mente ordenada por um sistema de signos
que define as normas de conduta e o laisser
“Eram mundos distintos que continuam to- passer de seus habitantes: não é coincidên-
talmente distintos. Mas agora as coisas estão cia que os vagões de metrô tenham sido um
mais confusas. Há grafiteiros em galerias e dos alvos iniciais do graffiti.
artistas que vão grafitar. E os grafiteiros que
estão em galerias não têm força para ‘puxar’ As cronologias desenvolvidas pelos pri-
para dentro os que estão de fora. Não é um meiros autores (GITAHY, 1999) indicam
movimento. É cada um por si. Mesmo quando que o graffiti passou a ter importância no
são feitas exposições, não há aprofundamen- Brasil por volta de 1975, quando John
to, apenas alguém chama os artistas mais pró- Howard, Alex Vallauri e Waldemar Zaidler,
ximos, porque praticamente não existem cura- entre outros, espalharam pela cidade de
dores especializados. Penso no graffiti como a São Paulo seus trabalhos pioneiros. Na dé-
filha bastarda da arte contemporânea.”2 cada seguinte, surgia uma nova geração de
grafiteiros sob a influência do hip hop nor-
A despeito de seu caráter fundador na ex- te-americano, tendência que prosseguiu
periência plástica e pictográfica e de seus nos anos 1990 e segue até hoje. Toz per-
múltiplos contextos, o graffiti como o co- tence a esse grupo que, de maneira geral,
nhecemos “é como uma versão artesanal não tinha qualquer formação artística mais
do ritmo fragmentário e heteróclito do vi- aprofundada. Na época nunca tinha ouvi-
deoclip”3 e torna-se conhecido a partir da do falar em Tunga, Waltércio Caldas, Anto-
segunda metade do século XX. Ele sofreu nio Dias ou qualquer outro artista de des-
influências localizadas do muralismo mexi- taque na arte contemporânea brasileira.
cano pós-revolução de 1910 que, com seu Suas referências eram Os Gêmeos, Binho,
caráter político, resgatou tradições visuais Tinho, Espeto e outros grafiteiros paulista-
pré-colombianas e deslocou a apreciação nos que já atuavam há cerca de 10 anos.
da arte para os espaços públicos. E, de Os parceiros (Fabio) Ema, (Marcelo) Eco e
forma mais abrangente, a revolta estudan- Akuma (Soares) e Airá O Crespo, além de
til de maio de 1968, em Paris, revelou aos (Marcelo) Ment e Mackintal foram conheci-
writers, como se denominavam os primei- dos nas ruas e no Zoeira Hip Hop, festa mu-
ros grafiteiros, o caráter epidêmico das pa- sical promovida no bairro da Lapa, no Cen-

– MAURO TRINDADE 231


tro do Rio de Janeiro, pela produtora Elza na aquele que “pichar, grafitar ou por outro
Cohen, e que envolvia rap, break e graffiti. meio conspurcar edificação ou monumento
urbano”, com uma pena de detenção que
Três crews – equipes – se destacavam: o pode chegar a um ano de detenção e mul-
Nação, com grafiteiros da Zona Norte da ta. Em caso de grafitagem sobre bens tomba-
cidade, outro vindo do município de São dos, a pena aumenta em seis meses. Para Toz
Gonçalo, na região metropolitana do Rio de – representado no Rio de Janeiro pela galeria
Janeiro, e o Fleshbeck, da Zona Sul, do qual Movimento – e para a maioria dos grafiteiros,
Toz fazia parte. Alguns grafiteiros, como a ilegalidade faz parte do jogo.
Acme, andavam sozinhos. “Nem a popula-
ção, nem a prefeitura tinha conhecimento “O meu graffiti é ilegal. E é preciso muita
do que a gente fazia. A cidade era um gran- vontade e se espalhar. Isso é do graffiti. Há
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

de playground”5, comenta o artista. algumas formas de você ser respeitado. Pri-


meiro tem de forte, fisicamente forte. Depois
A estratégia de ocupação dos espaços ur- você tem de ter um desenho foda! Que todo
banos era territorial, com a ampliação das mundo admire seu estilo. E depois tem de
áreas grafitadas conforme a ausência de ou- se arriscar. Ir onde ninguém consegue ir. O
tras obras. A demarcação de caráter identi- cara que faz coisa na rua e ninguém vê não é
tário dominou a atividade desses grafiteiros importante. Você tem de fazer algo que im-
sem, entretanto, que houvesse enfrenta- pacte a todo mundo. A rua cobra. Você tem
mentos no caso de possíveis “invasões”. Arte de ter força. Por exemplo, ao grafitar na (au-
efêmera, o graffiti convive e se funde a ou- toestrada) Lagoa-Barra, é só dar um passo
tros graffitis, até desaparecer por completo. em falso e você morre. O que faz o graffiti
Para Toz, essa é a regra do jogo do graffiti: a ser forte é a atitude. E é isso que tem de le-
ausência de regras. var para a galeria, a atitude.”7

“A rua é de todo mundo. Às vezes tem um Demorou muito tempo para que diversas
moleque doidão que sai pichando tudo. E instituições públicas e privadas passas-
usam o suporte do desenho alheio. Não há sem a dar espaço para o graffiti, ao mes-
regras, não há moral, picha tudo. A regra mo que livros a respeito de arte urbana
é não respeitar ninguém, igreja, prédio. É fossem lançados em diversos países e es-
anarquia.”6 tudos acadêmicos dessem atenção ao fe-
nômeno. Alguns livros e ensaios chegaram
Durante todos esses anos, o graffiti continuou a ser publicados de forma esparsa em anos
a ser qualificado pela imprensa como uma anteriores, desde artigos sobre Pompeia e
forma de vandalismo e dificilmente era en- Roma antiga até igrejas medievais rabis-
carado de maneira artística pelas instituições cadas per saecula saeculorum. Em um tra-
e pela população em geral. Desde 1998, pi- balho pioneiro, o pesquisador norte-ame-
chação ou graffiti sujeitam-se à Lei N.º 9.605, ricano Robert Reisner, procurou preservar
a Lei dos Crimes Ambientais, que incrimi- e reavaliar o graffiti, até então considera-
do pornográfico, estúpido e destrutivo. fiteiros ainda era considerada degradante
Reisner realizou uma pesquisa aprofunda- do espaço urbano e do mobiliário público.
da que apontou diferenças entre o graffi- Em uma reportagem na Esquire de maio
ti tradicional e as novas modalidades que de 1974, Mailer dedicou 17 páginas a Cay
passaram a ser praticadas nas grandes ci- 161, pertencente a uma das primeiras ge-
dades. Em Graffiti: Two thousand years of rações de desenhistas nova-iorquinos a co-
wall writing (1971) e, mais tarde, em En- brir os muros e os vagões do metrô daque-
ciclopedy of graffiti (1974), ele analisa es- la cidade com tags – assinaturas grafitada
ses desenhos e escritos em diversos espa- nas paredes. O autor de Os nus e os mor-
ços sociais, em particular, onde e quando tos não economizou elogios ao artista e o
o grafiteiro podia deixar suas mensagens comparou ao melhor do Trecento:
sem temer censuras por abordar temas
“muito mais viscerais” (Reisner, 1971: 4). “...tão famoso no mundo dos graffitis de mu-
Com o interesse em alcançar visibilidade ros e metrôs quanto Giotto pode ter sido
para seus escritos, os grafiteiros procura- quando seu nome começou a circular nos
vam escrever e pintar em espaços abertos, circuitos das oficinas que levaram de Masac-
cujas mensagens, sugere Reisner, traziam cio, através de Piero della Francesca, a Boti-
informações vitais a respeito da indiscipli- celli, Michelangelo, Leonardo e Rafael.”8
na, sobre o funcionamento de mentes de-
bilitadas, de ególatras ou entediados (Reis- Mailer traça um longo perfil não apenas de
ner 1974: 8). Suas pesquisas centradas em Cay 161, mas de toda uma geração de ar-
graffitis latrinários e de rua apontaram pela tistas, cujo trabalho até então era classifica-
primeira vez para o contexto onde se reali- do como vandalismo puro e simples. Para
zam os graffitis e as implicações que a am- o escritor, as palavras escritas nas tipolo-
biência imprime aos conteúdos. gias originais do graffiti eram o sinal de um
apocalipse cultural, indicativas de um no
Coube a Norman Mailer, porém, ser a voz future que se tornaria frequente na litera-
tonitruante em defesa do graffiti. Ele o di- tura e no cinema dos anos seguintes. Em
fundiu em uma nova perspectiva dentro da uma prosa abundante e caudalosa de ima-
revista Esquire, que gozava de forte acei- gens, o escritor identifica nos rabiscos das
tação na intelligentsia dos Estados Unidos. ruas de Nova Iorque a ascensão de uma
Na década de 1930, escritores do porte de arte ainda indecifrável e profética.
Ernest Hemingway, F. Scott Fitzgerald, Al-
berto Moravia e André Gide já figuravam “Estamos no fim possível da civilização. Nos-
em suas páginas. E, durante os anos 1960 so instinto, exausto e cabalmente poluído,
e 1970, a revista apoiou o chamado New sonha com algum tipo de limpeza ou puri-
Journalism, com a publicação de longas ficação que não encontramos; impulsos tri-
reportagens de caráter literário de Gay Ta- bais despontam no mundo inteiro. A linha
lese, Tom Wolfe, Tim O’Brien e do próprio genealógica de artistas isolados e da obra
Mailer. Há cerca de 40 anos, a ação dos gra- solitária atravessa toda extensão de Miche-

– MAURO TRINDADE 233


langelo até Shoot de Chris Burden, e, se nos e nossa identidade só podem se perceber
fizessem voltar ao imperativo emocional da num espelho. Se nosso nome é tremendo
pintura rupestre e tentar rabiscar alguma para nós, ele tampouco é real – como se ti-
coisa no mundo diante de nós para tentar véssemos vindo de outros lugares que não
descobrir se existe o desastre, é o artista de o nome, e vivido outras vidas. Vai ver esse
computador do Guggenheim que podemos é o eco inaudito dos graffitis, a vibração
compreender mais facilmente do que os au- do desconforto profundo que eles incitam,
tores de graffiti. Eles ainda são outra coisa.”9 como se a música inaudita de sua procla-
mação e/ou de sua missa, a agitação inten-
A genealogia descrita pelo escritor com- cional de sua folhagem, fosse o arauto de
preende o estatuto social do artista ociden- um apocalipse qualquer que se aproxima,
tal e sua identidade única e original como cada vez menos distante. Os graffitis tar-
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

uma herança do Renascimento, que che- dam na porta dos nossos metrôs como um
ga às performances de Chris Burden e ao memento daquilo que eles bem podem ter
“artista de computador”, expressão precá- sido, nossa primeira arte do karma, como
ria para os novos experimentos mais tarde se, com efeito, todas as vidas jamais vivi-
classificados como “arte digital”. O caráter das soassem agora como as trombetas dos
anônimo, grupal e desvinculado das insti- exércitos em toda a cordilheira invisível.”10
tuições artísticas dessa primeira geração
de grafiteiros espanta Mailer, que aponta A valorização do graffiti parece igualmen-
para a vitalidade do graffiti em relação à te uma consequência lógica dos desdo-
arte contemporânea exposta nos grandes bramentos da arte moderna e contempo-
museus. Para o escritor, são as letras desses rânea. Essa ampliação do campo artístico
nomes inescrutáveis que anunciam o fim de pode ser apontada como resultado dire-
uma era e, talvez, o início de uma nova arte: to da descategorização da arte ocorrida a
partir do dadaísmo e do surrealismo, com
“Não obstante, ainda há um mistério. De seus ready-made e object trouvé, operação
que combate vêm as letras curiosas dos de ressignificação dos objetos do cotidia-
graffitis, com suas caligrafias chinesas e no como, dez anos antes da reportagem de
arábicas; de que conexões com o passa- Mailer, defendia Arthur Danto em seu céle-
do são essas luzes e fulgores de chama tão bre artigo Artworld, a respeito exposição de
semelhantes ao alfabeto hebreu, onde a Andy Warhol na Stable Gallery, com caixas
própria forma da letra era adorada como de sabão Brillo Box.
manifestação do Senhor; não, não basta
pensar no desejo infantil de ver seu nome Se o mercado de arte ainda não absorvia os
passar em letras grandes o bastante para trabalhos desses primeiros writers, o mundo
fazer seu ego ecoar por toda a cidade, não, da arte mostrou-se mais amplo e tolerante
é quase como se tivéssemos que voltar a al- com eles. Do outro lado dos Estados Uni-
gum sentido primevo da existência, àquela dos, o artista e curador nicaraguense Rolan-
curiosa sugestão de como nossa existência do Castellón vai realizar uma das primeiras
exposições inteiramente dedicadas à nova A aceitação do graffiti como forma artísti-
arte. Aesthetics of Graffiti foi apresentada no ca é exemplar nesse contexto. Enquanto os
Museu de Arte Moderna de São Francisco rabiscos de nomes e frases emergiam do
entre abril e julho de 1978, com nada me- metrô de Nova Iorque, a pintura tradicional
nos que 94 artistas envolvidos, desde grafi- enfrentava uma profunda crise deflagrada
teiros mais ou menos anônimos até nomes desde a chegada dos textos críticos de, en-
de destaque na arte americana, como Ro- tre outros, Joseph Kosuth e Sol LeWitt, pu-
bert Rauschemberg e Edward Ruscha. A ex- blicados em 1969. Sob a influência da filo-
posição representava ainda uma tentativa sofia de Wittgenstein e uma interpretação
de artistas latinos conquistarem um espaço particular da Crítica do Juízo, de Kant, Kosu-
dentro do universo artístico norte-america- th rejeita a compreensão da arte em bases
no, com formas e práticas mais populares. morfológicas e que as obras de arte não se-
Em seu texto de apresentação, Castellón riam mais do itens de colecionador. “As pin-
afirmava esperar que, fora de seu ambiente turas de Van Gogh não valem mais do que
costumeiro, as pichações pudessem ser vis- sua palheta”13, escreve.
tas por suas qualidades visuais e estéticas
e que, “através do processo de integração Sol LeWitt, por sua vez, ataca a categoriza-
consciente com artistas de estúdio, o graffi- ção da arte com suas Sentenças sobre arte
ti, assim, tornar-se oficialmente sancionado conceitual, nas quais afirma que quando pa-
como ‘belas artes’”11. lavras “como ‘pintura’ e ‘escultura’ são usa-
das, elas conotam toda uma tradição e em
Hans Belting nota, em seu seminal O fim da consequência implicam uma aceitação des-
história da arte, que a arte multiplicou-se e sa tradição, impondo assim limitações ao
“se dissolveu num espectro de fenômenos artista, que relutaria em fazer uma arte que
opostos que há muito tempo aceitamos fosse além das limitações.”14
como arte, antes mesmo de termos forma-
do um conceito a seu respeito”12. Além de O graffiti anárquico, inculto e desrespei-
museus, galerias, surgem feiras e centros toso com objetos sagrados da arte, como
culturais espalhados em todo o mundo, edi- monumentos e prédios históricos, lenta-
ções cada vez mais frequentes de livros de mente começou a ser tratado como uma
arte e uma proliferação de artistas em toda prática artística nova e cheia de vitalidade.
parte. A arte e a experiência estética estão Mesmo a repetição de seus escritos e de-
nas ruas e praças, na alimentação e no ves- senhos passou a ser visto dentro de uma
tuário, no trabalho e no lazer. De seus tem- perspectiva da história da arte. A seriali-
plos privilegiados, dos monumentos e dos zação industrial, assunto frequentemente
locais de troca, a arte se irradia sobre todos abordado pela arte pop, também seria te-
os campos da vida, em ações, produtos cul- matizado pelo graffiti. Não demora muito
turais e uma incessante produção de ima- tempo para que galerias de arte passas-
gens midiáticas que envolvem a noosfera. sem a convidar alguns grafiteiros para ex-
por seus trabalhos, desta vez feito sobre

– MAURO TRINDADE 235


papel ou tela, enquanto órgãos de fomen- lo e Lisboa dispõem há alguns anos de ór-
to à cultura no Brasil e em outros países co- gãos públicos que fomentam e disciplinam
missionaram trabalhos. Ao mesmo tempo, o graffiti em seus espaços15.
uma vasta rede de grafiteiros e simpatizan-
tes desenvolvida através da internet estrei- No lugar de ocorrer uma fusão ao circuito
tou laços entre artistas de todo o mundo e de galerias e museus, porém, a maioria des-
permitiu que a obra de diversos deles cir- ses eventos é realizado em um setor parale-
culasse mundo afora. Em 2006, obras dos lo, no qual público e produtores são inteira-
Gêmeos estiveram no BALTIC Centre for mente diferentes daqueles dos vernissages
Contemporary Art, em Gateshead, na Ingla- e exposições. Se a legitimação da obra de
terra, para a mostra Spank the Monkey, ao arte acontece através de sua inclusão no
lado de trabalhos de artista de rua Bansky mundo da arte, o graffiti necessita de uma
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

e da pintora japonesa Chiho Aoshima. Em nova classificação, pois nem material nem
2008, em Belo Horizonte, o grafiteiro Bi- ideologicamente ela necessita dos apre-
nho Ribeiro organizou a 1ª Bienal de Graffi- ciadores da “arte contemporânea erudita”,
ti, com alguns segmentos artísticos que se como define Toz:
tornariam recorrentes nestes encontros e
festivais pelo Brasil: música – rap e hip hop “É uma cultura mundial muito forte que não
–, dança – break –, poesia – com os MCs – depende dos meios normais da arte. Não há
e, naturalmente artes visuais, com o grafite. críticos de arte nem curadores. Ela sobrevi-
veu e sobrevive pelas próprias pernas, pelo
Hoje já é rotineira no Brasil a realização de próprio público. Os livros e as revistas de
feiras e festivais nos quais a fórmula da cul- graffiti são financiados por quem as compra.
tura hip hop é repetida. Entre muitos ou- Ele é tão forte de público que não se preo-
tros exemplos, em 2015, ocorreu o 7º Re- cupa com o mercado de arte contemporâ-
cifusion, no Recife, com oficinas de “live nea. Tem um público que vai à Homegrow,
paint” e “produção de graffiti”. Em Salva- que é uma loja-galeria em Ipanema (no Rio
dor, o Bahia de Todas as Cores promoveu de Janeiro) que vende graffitis. E em São
a pintura de um mural gigante na comu- Paulo há várias delas.”16
nidade de Itinga, com a produção de um
gigantesco painel de graffiti. Em São Pau- A criação de uma economia própria, com
lo, é comemorado desde 2004, o Dia do seus próprios agentes e instâncias revelam
Graffiti. Ele foi instituído em São Paulo pela que os processos de institucionalização do
Lei Municipal 13903, que homenageia graffiti realizam-se em uma relação de po-
Alex Vallauri, morto em 1987. Em Maceió, der com o mundo da arte, onde seu valor
Rio de Janeiro, Joinville, São João Del-Rey, de troca e seu valor cultural estão até certo
Campos de Goytacazes, Corumbá, Chape- ponto desgarrados. A apreciação estética
có e diversas outras cidades realizaram fes- do graffiti parece, assim, constituir-se fora
tivais com grafitagens e oficinas de street do campo da arte, através de uma retórica
art. Tanto Rio de Janeiro, quanto São Pau- distinta e em um meio social igualmente
distinto, o que explica a dificuldade e talvez lares por pessoas para absorver calorias.
até o desinteresse de sua inclusão na arte. Mas por um feito estético”. Com a crescen-
Talvez por isso as ações de institucionaliza- te estetização da alimentação, refeições rá-
ção do graffiti passem menos pelos museus pidas oferecidos em kombis e vans pelas
e galerias de arte do que por políticas de ruas das cidades, agora garbosamente tra-
cultura oficiais que disciplinam os espaços tadas como food trucks, transformam um
públicos a serem grafitados, em uma legis- reles sanduíche em uma experiência com-
latura do louvável e do interdito. parável a jantar no El Bulli, do chef Ferran
Adrià, cujo lema era “comer conhecimen-
Em recente palestra no Rio de Janeiro, o crí- to para alimentar a criatividade”. Há me-
tico Hans Ulrich Gumbrecht apresentou al- nos de um ano, esses veículos eram conhe-
gumas das ideias contidas em seu novo li- cidos pelos moradores do Rio de Janeiro
vro Nosso amplo presente, no qual comenta como “podrões”, tanto devido ao mau esta-
a estetização da vida cotidiana, na qual tudo do de conversação quanto à qualidade de
está sujeito a um “olhar estético”. O escritor seus produtos. A descrição de seus ingre-
pressupõe que não existem mais quaisquer dientes – “carne de vitela cuidadosamente
diferenças entre a experiência estética e a moída e acrescida de ervas finas, sal mari-
vida cotidiana, exatamente ao contrário do nho e pimenta negra moída na hora” – e de
pensamento fundado na terceira Crítica seu preparo – “grelhada por vinte minutos
kantiana e sua concepção de desinteresse em temperatura alta o bastante para selar
e autonomia da arte. Hoje a experiência es- a peça de carne e evitar a perda dos sucos
tética estaria presente em todos os aspec- e da maciez” – evidencia o esforço em im-
tos da vida, sem que a interpretação herme- primir às refeições ligeiras uma dimensão
nêutica supere o aspecto fenomenológico de experiência estética digna de Brillat-Sa-
do acontecimento, em uma situação precá- varin. Dessa forma, bolinhos doces transfor-
ria que marca toda a experiência estética mam-se em cupcakes, picolés – sorvetes em
ocidental da atualidade. Assim ela estaria Portugal – em paleta mexicana, e doses de
imbricada ao cotidiano e ao mercado. “Não aguardentes em shots.
existe, por exemplo, roupa para comprar
que não ofereça algum efeito estético. Até a Gumbrecht acredita que a estetização do
roupa profissional conta com certos efeitos cotidiano ocorre de três maneiras. Primei-
estéticos”, observa. ro, com sua irrupção no próprio cotidiano,
quando em situações aparentemente ba-
Gumbrecht incluiu em suas observações a nais e costumeiras, surge algo com dimen-
crescente “gourmetização” do mundo, na são estética. Segundo, com o aumento da
qual uma refeição nunca é uma simples ab- funcionalidade dos objetos – à exemplo da
sorção de calorias. “A comida tem de ter sa- Bauhaus – que transformam nossa relação
bores específicos e também uma apresen- com o que está à nossa volta. Terceiro, de
tação linda em um restaurante lindo. E você forma epifânica, quando passamos a olhar
não vai a um restaurante que custa 500 dó- objetos do cotidiano de forma diferente,

– MAURO TRINDADE 237


quando uma simples árvore ganha uma di-
mensão estética nunca antes apercebida. O
grafite se enquadraria no primeiro caso.

Para Gilles Lipovetsky e Jean Serroy, a estra-


tégia cultural no capitalismo tardio envolve
uma produção ininterrupta de objetos estéti-
cos muito além do campo de produção eru-
dita, com arquiteturas-espetáculo em mu-
seus feéricos, hotéis de charme, onipresença
de produtos sonoros, em um muzak perma-
nente e, cada vez mais, imagens permanen-
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

tes em dispositivos móveis permanentes. Os


autores defendem que a era da globalização
e da “financeirização, da desregulamentação – Bibliografia
e da excrescência de suas operações, tam-
bém é a que está marcada por outra espécie BAUDRILLARD, Jean. L’échange
de inflação: a inflação estética.”17 symbolique et la mort. Paris: Galli-
mard, 1976.
Nessa nova era superestetizada, “um impé- BELTING, Hans. O fim da história da
rio no qual os sóis da arte nunca se põem”18, arte – uma revisão dez anos depois.
os valores históricos da arte e da cultura en- São Paulo: Cosacnaify, 2006.
tram em crise e a arte encontra novas con- CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas
junções capazes de justificá-la. Nesse senti- híbridas: Estratégias para entrar e
do as transformações internacionais da arte sair da modernidade. São Paulo:
e de suas formas de exibição e legitimação Edusp, 1998.
são sintomáticas, com o crescimento expo- CANEVACCI, Massimo. Antropolo-
nencial das feiras de arte e certo descenso gia da comunicação visual. DP&A:
das antigas bienais. O graffiti nesse contex- Rio de Janeiro, 2001.
to permanece na intersecção entre o trans- CASTELLÓN, Rolando (Curator).
gressivo, que define territórios e resinifica o Aesthetics of Graffiti – April 28- July
espaço urbano, e a absorção pelo campo 2, 1978 (catálogo). São Francisco:
da arte, hesitante em abonar uma prática San Francisco Museum of Modern
iconoclasta alheia a sua própria dinâmica. Art, 1978.
Para Toz, “o graffiti é mesmo a filha bastarda COOPER, M and Chalfant, H.
da arte, mas é muito talentosa. Cedo ou tar- Subway Art. London: Thames and
de a família vai ter de abraçá-la.” Certamen- Hudson, 1984.
te não será por amor. GITAHY, Celso. O que é Graffiti?
São Paulo: Editora Brasiliense,
1999
GUMBRECHT, Hans Ulrich. A 5
Entrevista ao autor. desire to see one’s name ride by in
experiência estética perdeu a sua 6
Idem. letters large enough to scream your
“autonomia”? Uma dupla reflexão 7
Ibidem. ego across the city, no it is almost as
genealógica. Palestra. Rio de 8
“Giotto may have been when his if we must go back into some more
Janeiro: Museu de Arte do Rio, name first circulated through the primeval sense of existence, into
25 de agosto de 2015. Disponível circuits of those workshops which that curious intimation of how our
em https://www.youtube.com/ led from Masaccio through Piero existence and our identity may per-
watch?v=GRxr8NCHiQo. Acesso Della Francesca to Botticelli, Miche- ceive each other only as in a mirror.
em 03/09/2015. langelo and Raphael”. MAILER, Nor- If our name is enormous to us, it is
_______. Nosso amplo presente. man. The Faith of graffiti. Nova also not real - as if we have come
São Paulo: Unesp, 2015. Iorque: Esquire, maio de 1974, pp. from other places than the name,
LIPOVETSKY, Gilles & Jean Ser- 77. and lived in other lives. Perhaps
roy. A estetização do mundo: Viver 9
“We are at the possible end of that is the unheard echo of graffiti,
na era do capitalismo artista. São civilization, and our instint, batte- the vibration of that profound dis-
Paulo: Companhia das Letras, red, all-polluted dreams of some comfort it arouses, as if the unheard
2015. cleansing we have not found; tribal music of this proclamation and/or its
MAILER, Norman. The Faith of graf- impulses start up across the wor- mess, the rapt intent seething of its
fiti. Nova Iorque: Esquire, maio de lds. The descending line of isolated foliage, is the herald of some onco-
1974, pp. 77-88; pp. 154-158. artist and the solitary work goes ming apocalypse less and less far
REISNER, Robert. Graffiti: Two from Michelangelo all the way down away. Graffiti lingers on our subway
thousand years of wall writing. Chris Burden’s Shoot, and if we are door as a memento of what it may
Chicago: Cowles Book Company, cast back into emotional impera- well have been, our first art of karma,
1971. tive of the cave painting and trying as if indeed all the lives ever lived
_______. Encyclopedia of Graffiti. to make some scratch in the world are sounding now like the bugles of
New York: Macmillan Publishing, before us in order that we may disco- gathering armies across the unseen
1974. ver if disaster exists, it is the Guggen- ridge.” Ibidem, p. 157-158.
heim coumputer artist we can com- 11
CASTELLÓN, Rolando (Curator).
– Notas prehend more easily than the writers Aesthetics of Graffiti – April 28- July
of graffiti. They are still something 2, 1978 (catálogo). São Francisco:
1
SHAKESPEARE, William. Ricardo other.” Idem, p. 157. San Francisco Museum of Modern
III. Rio de Janeiro: Agir, 2008. Tra- 10
“Yet there is a mystery still. From Art, 1978, p. 3-4.
dução de Carlos Alberto Nunes. which combat came these curious 12
BELTING, Hans. O fim da história
2
Entrevista ao autor. letters of graffiti, with their chinese da arte – uma revisão dez anos
3
CANCLINI, Néstor Garcia. Cultu- and arabic calligraphies; out of what depois. São Paulo: Cosacnaify,
ras híbridas: Estratégias para entrar connection to the past are these 2006.p. 19.
e sair da modernidade. São Paulo: lights and touches of flame so much 13
KOSUTH, Joseph. Arte depois
Edusp, 1998, p. 338. like hebrew alphabet where the form da filosofia, in FERREIRA, Glória &
4
BAUDRILLARD, Jean. L’échange of the letter itself was worshiped as COTRIM, Cecília. Escrito de artistas.
symbolique et la mort. Paris: Galli- a manifest of the Lord; no it is not Rio de Janeiro: Jorge Zahar Edi-
mard, p. 119. enough to think of the childlike tora, 2006, pp. 210-234.

– MAURO TRINDADE 239


14
LeWITT, Sol. Sentenças sobre arte
conceitual, in FERREIRA, Glória &
COTRIM, Cecília. Escrito de artis-
tas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editora, 2006, p. 205-207.
15
A Secretaria Municipal de Cultura
do Rio de Janeiro criou, em 2013, o
Eixo Rio, que tanto incentiva graf-
fitis e outras ações artísticas urba-
nas, quanto denuncia práticas de
pichação em monumentos. Secre-
taria Municipal de Cultura de São
– CONVOCARTE Nº.1 | ARTE PÚBLICA

Paulo promove a Bienal do Gra-


fite no Parque do Ibirapuera e,
desde o ano passado, transforma
cerca de 70 muros da avenida 23
de maio em espaço franqueado ao
graffiti. Lisboa goza do Gabinete
de Arte Urbana, ligado à Câmara
Municipal, cuja ação incentivou e
comissionou grafiteiros de diver-
sos países a atuarem na capital,
com resultados elogiados pelo
Presidente de Turismo de Portu-
gal João Cotrim Figueiredo. Dis-
ponível em: http://www.publico.
pt/local/noticia/arte-urbana-de-lis-
boa-e-cada-vez-mais-uma-atrac-
cao-turistica-1693672. Acesso em
09/09/2015.
16
Entrevista ao autor.
17
LIPOVETSKY, Gilles & Jean Ser-
roy. A estetização do mundo: Viver
na era do capitalismo artista. São
Paulo: Companhia das Letras,
2015, p. 39.
18
Idem.
Estudos de Historiografia e Crítica de Arte Portuguesa
Historiografia da Arte Portuguesa:
Pioneiros e Precursores
por Margarida Calado
Professora Associada de Ciências da Arte e do
Património na FBAUL, Coordenadora do Mestrado em
Educação Artística e co-coordenadora do Mestrado em
Ensino das Artes Visuais.
– CONVOCARTE Nº.1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

A primeira vez que me propus escrever sobre o


tema foi nos anos 70 e a proposta, inicialmente
recusada pelo director de uma revista que então Os nossos cronistas medievais não nos
se iniciava, foi aproveitada por um jovem aluno legaram informações sobre a construção
de Belas Artes, Pedro Cabrita Reis, para a revista de edifícios nem descreveram obras de
da Associação de Estudantes, Arte Opinião. arte. Temos de esperar pelo séc. XVI para
Por este facto quero começar por lhe prestar a encontrar informação relevante para a
minha homenagem. Essa série de artigos é aliás construção de uma história da arte nacio-
parcialmente retomada neste texto. nal, e mais precisamente por Francisco de
Holanda, educado em ambiente huma-
nista e viajado por Itália e França. É certo
que a sua obra diz mais respeito à teoria
da arte, mas faz eco da construção renas-
centista da história da arte que após o pe-
ríodo antigo, encontrava uma época de
decadência e de trevas, marcada pelas in-
vasões bárbaras, a que sucedia o renascer
na Itália do séc. XIII para XIV, com artistas
como Simone Martini e Giotto:

Então primeiramente a pintura começou a


ressurgir muito contrita e castigada. Ressur-
gir, não; mas a mover-se um pouco na cova
onde estava. E isto foi por ventura no ditoso
tempo do gentil Francisco Petrarca por seu
amigo Simon, pintor daquela idade, e Giot-
to. (Holanda, 1984a, 25)
E da mesma maneira aponta alguns artistas um Senhor atado à coluna, que dois homens
do séc. XV, como Pordenone, em Veneza, estão açoitando, em uma capela do Mostei-
ou Mantegna em Pádua, a que se sucedem ro da Trindade. (Holanda, 1984a, 37-38)
Leonardo da Vinci e Rafael de Urbino que
abriram os fermosos olhos da pintura (Ho- A verdade é que aqui Holanda parece não
landa, 1984a, 25) e finalmente Miguel Ân- ter consciência de que Nuno Gonçalves era
gelo, que lhe deu espírito vital e a restituiu afinal contemporâneo de Mantegna e pos-
quase em seu primeiro ver e prisca animosi- terior portanto a Giotto e Simone Martini,
dade (Holanda, 1984a, 25-26). dalguma maneira acentuando que quando
em Itália se dava o renascer da pintura an-
Considerando que o «Da Pintura Antiga» tiga, ainda aqui em Portugal se viviam tem-
terá sido escrito no regresso de Itália, por- pos bárbaros, ou seja a Idade Média.
tanto na década de 1540, poder-se-á dizer
que é contemporânea, senão anterior, à sis- A mesma falta de uma relação cronológi-
tematização apresentada por Vasari na obra ca se pode verificar nas «tábuas» que apre-
publicada em 1550, mas certamente escri- senta no final da obra «Diálogos em Roma»,
ta ao longo da mesma década e, portanto, onde mistura artistas do séc. XV e XVI, pare-
aqui Holanda apresenta uma evolução não cendo ter como critério a importância rela-
muito afastada daquele que é considerado tiva, já que refere em primeiro lugar Miguel
o primeiro historiador de arte. Ângelo tanto para a pintura como para a es-
cultura e só no final refere:
Relativamente à pintura portuguesa na épo-
ca medieval, designa-a de velha, explicitan- 20. M. Jacome, italiano, pintor de El-Rei D.
do que se trata das coisas que se faziam no João de boa memória.
tempo velho dos reis de Castela e de Por-
tugal, jazendo a boa pintura ainda na cova. 21. O pintor português, ponho entre os fa-
(Holanda, 1984a, 37) mosos, que pintou o altar de S. Vicente de
Lisboa (Holanda, 1984b, 90).
E a propósito afirma, iniciando um dos te-
mas mais tratados na historiografia da arte Relativamente à iluminura refere em primei-
portuguesa: ro lugar, A António d’Ollanda, meu pai…por
ser o primeiro que fez e achou em Portugal o
E neste capítulo quero fazer menção de um fazer suave de preto e branco, muito melhor
pintor português que sinto que merece me- que em outra parte do mundo e o que ilu-
mória, pois em tempo mui bárbaro quis imi- minou uns livros que El-Rei D. Manuel, que
tar nalguma maneira o cuidado e a discrição a santa glória haja, deu a Belém, vindos de
dos antigos e italianos pintores. E este foi Itália (Holanda, 1984b, 90).
Nuno Gonçalves, pintor de el-Rei dom Afon-
so, que pintou na Sé de Lisboa o Altar de S. Quanto à arquitectura, refere-se a si próprio
Vicente; e creio que também é da sua mão em último lugar, num grupo que tem à ca-

– MARGARIDA CALADO 243


beça Bramante mas curiosamente nunca re- das inscrições romanas do que propriamen-
fere Brunelleschi: Eu, Francisco d’Ollanda, te com a descrição dos monumentos.
que escrevo estas coisas, sou o derradeiro
dos arquitectores (Holanda, 1984b, 91). Ao longo do século XVII continuarão a ser
escritos textos, publicados ou não, que des-
Não há da parte de Holanda, um esforço de crevem a cidade de Lisboa e são tanto mais
investigação no que à história da arte diz úteis quanto é certo que em 1755 essa cida-
respeito e o próprio assume que assim é, de praticamente desapareceu. No contexto
ao terminar pedindo a quem o melhor en- da ocupação filipina, ou se quisermos, do
tender que, se sabe doutros mestres mais governo dual dos Filipes, haveria a ideia de
famosos, que os ponha em seus lugares, e trazer para Lisboa a capital de um império
emende o que eu não soube melhor eleger que abrangia uma grande parte do mundo
– CONVOCARTE Nº.1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

nem acertar. conhecido e que fazia mais sentido ser go-


vernado a partir de uma cidade com por-
E ressalva: Mas pareceu-me conveniente to com as características que tinha Lisboa.
ajuntar a este livro sua memória, a qual vive- São valiosos para a história da arte Do Sítio
rá alguns anos (Holanda, 1984b, 92). de Lisboa, de Luís Mendes de Vasconcelos
(1608); o Livro das Grandezas de Lisboa, de
Um capítulo importante da historiografia é a Fr. Nicolau de Oliveira (1620); Das Antigui-
história da cidade de Lisboa, de que se des- dades da mui nobre Cidade de Lisboa de
tacam duas obras de meados do séc. XVI, António Coelho Gasco, obra manuscrita, de
contemporâneas portanto de Holanda: a de 1626; a História Ecclesiastica da Igreja de
Damião de Góis, Urbis Olisiponis Descrip- Lisboa de D. Rodrigo da Cunha (1642) ou
tio, editada em Évora em 1554, e o Summa- a I Parte da fundação, antiguidades e gran-
rio em que brevemente se contem algumas dezas da mui insigne cidade de Lisboa de
cousas assim eclesiásticas como seculares Luís Marinho de Azevedo (1652) (Gonçal-
que há na cidade de Lisboa, de Cristóvão ves, 1962, 12).
Rodrigues de Oliveira. De notar que o mes-
mo Damião de Góis, na sua Crónica do Feli- Logicamente que obras de carácter religio-
císsimo Rei D. Manuel, na 4ª parte, publica- so como as crónicas das Ordens Religio-
da em 1567, inclui uma dissertação acerca sas fornecem elementos importantes para
«das novas igrejas, mosteiros, castelos, for- a história dos edifícios, mas foram escritas
talezas e outras obras que o rei D. Manuel com intenções diferentes, pelo que as de-
fez construir e das que fez restaurar» (Gon- vemos considerar como fontes, mas não
çalves, 1962, 6). fazem parte da historiografia da arte. Não
podemos ignorar, a nível da investigação
O humanista André de Resende, quer na histórica a Crónica de Cister de Frei Bernar-
sua Das Antiguidades da Lusitânia, quer na do de Brito, a História de S. Domingos de
História da Antiguidade da Cidade de Évora Frei Luís de Sousa, continuada por Frei Lu-
parece mais preocupado com a transcrição cas de Santa Catarina, ou a História Seráfica
da Ordem dos Frades Menores de Frei Ma- A lista podia ser muito alargada com con-
nuel da Esperança, continuada por Frei Fer- tinuidade no século XIX e sobre o assunto
nando da Soledade, não esquecendo a va- existem dissertações e teses, mas não se
liosa obra anónima História dos Mosteiros, deve esquecer que muitas destas memórias
Conventos e Casas religiosas de Lisboa1, es- não tinham qualquer preocupação científi-
crita nos inícios do séc. XVIII mas só publica- ca e eram mesmo escritas no regresso das
da no século XX, ou o Santuário Mariano de viagens, pelo que podem conter erros e
Frei Agostinho de Santa Maria, igualmente confusões.
da primeira metade do século XVIII2.
Um dos casos mais patentes é a referência
Outra contribuição importante é dada pe- a uma estátua equestre de D. João V pelo
las narrativas de viagens, que podem obe- autor anónimo da «Descrição da Cidade de
decer a um registo oficial e panegírico, ou Lisboa» em 1730, que ao falar do arsenal
ter o carácter de memórias, que se tornam afirma que é um edifício com bastante bele-
mais abundantes a partir do século XVIII, za e onde há pouco se colocou uma estátua
época que corresponde a um desenvolvi- equestre do rei. (Chaves, 1983, 43). A verda-
mento do hábito de viajar – o grand tour – de é que não existe mais nenhuma referên-
com uma intenção mais turística, sobretudo cia a tal monumento, embora se conheçam
com vista ao conhecimento de monumen- desenhos de Carlos Mardel, aliás posterio-
tos, usos e costumes, ou ainda com fins polí- res, para uma fonte com a estátua real.
ticos próximos do que hoje se chama espio-
nagem. No primeiro caso temos a Relazione Dados os hábitos da época, a ser verdade,
del Viaggio del Portogallo e Galizia de Cos- haveria com certeza uma inauguração noti-
me de Médicis, capítulo da obra mais am- ciada na «Gazeta de Lisboa» para não men-
pla, Relação da viagem por Espanha e Portu- cionar outros textos de carácter panegírico
gal de 1668-1669, que viria a ser publicada e comemorativo.
em Madrid, em 1933 (Gonçalves, 1962, 13).
No segundo caso temos as diferentes nar- A verdade é que o tipo de fontes mencio-
rativas do tempo de D. João V, publicadas nadas diz sobretudo respeito a edifícios e
pela Biblioteca Nacional sob o título genéri- monumentos e quase nada nos diz sobre
co de O Portugal de D. João V visto por três os seus autores ou sobre as pinturas que os
forasteiros (1983) ou o Diário de William decoravam.
Beckford em Portugal e Espanha (1983) ou
as mais recentes Observações de uma via- Entretanto, ao longo do séc. XVII, e dada a
gem a Portugal e Espanha (1760), de Tho- ausência da Corte em Madrid, as artes eram
mas Pitt (2006), obra prefaciada por Maria sobretudo patrocinadas pela Igreja e pelas
João Baptista Neto e publicada sob a égide Ordens Religiosas, responsáveis não só pela
do Ministério da Cultura e da Universidade construção de novos edifícios mas sobretu-
de Lisboa. do pela decoração dos já existentes, reves-
tindo-os de azulejos, completando os altares

– MARGARIDA CALADO 245


com retábulos de talha dourada que enqua- ção social dos pintores e de como eram mal
dravam pintura e imaginária, em madeira apreciados ao contrário do que acontecia
ou barro. Não havia grandes artistas que se noutros países.
destacassem e o exemplo de Vasari3 em Flo-
rença ou de Karel van Mander4 no norte da Em 1668 Portugal tinha finalmente assinado
Europa não foi seguido em Portugal pelo a paz com a Espanha, mas as guerras da Res-
menos até final do século XVII. tauração esgotaram o país e durante esse
período a prioridade foi para a arquitectura
A realização de obras de carácter religio- militar, face à necessidade de garantir a de-
so, pela sua vertente devocional, deveria fesa das fronteiras terrestres e a segurança
ser encarada como serviço de Deus e a do litoral. Tal facto justifica que em 1680, um
exaltação dos seus criadores não seria cer- engenheiro militar português, Luís Serrão Pi-
– CONVOCARTE Nº.1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

tamente vista com bons olhos pela Igreja mentel, tenha publicado o Método Lusitano
contra-reformista. de Desenhar as Fortificações das Praças Re-
gulares e Irregulares, Fortes de Campanha e
No entanto, algumas excepções existem outras obras pertencentes à Arquitectura Mi-
a esta situação, uma delas rara ou mes- litar, sendo esta a primeira obra teórica que
mo única no contexto europeu, que é a consagra a arquitectura e engenharia mili-
homenagem a Bento Coelho da Silveira tares portuguesas, cuja história se continua
promovida pela Academia dos Singulares, para além do Terramoto de 1755, e que se
organizada e compilada em 16705. Prova- concretizou em obras como as praças de El-
velmente tratava-se de criar um ambiente vas, Valença ou Almeida, mas também no
favorável à criação de uma Academia a ser Aqueduto das Águas Livres.
dirigida pelo próprio Bento Coelho, como
sugere Luís de Moura Sobral, o que não se Face a esta situação, não havia um mecenato
veio a concretizar. expressivo nem da Casa Real nem da nobre-
za, embora após as Guerras da Restauração,
É exactamente neste contexto que nos tenham surgido algumas obras patrocina-
surge o texto manuscrito de Félix da Costa das pelos membros da nobreza envolvidos
Meesen, Antiguidade da Arte da Pintu- na guerra, como é o caso dos Marqueses de
ra, datado de 1696, mas que só viria a ser Fronteira, que não só construíram uma casa
publicado no século XX por George Ku- nobre nos arredores de Lisboa (S. Domingos
bler. Félix da Costa (1639-1712), pintor e de Benfica) como a decoraram com azulejos
teórico, pretendia o reconhecimento da nacionais e importados e com esculturas em
sua profissão como liberal e procurava mármore também importadas.
demonstrar não só a excelência da pintu-
ra, mas também a sua antiguidade. Deve A qualidade das obras pictóricas então rea-
ter redigido a sua obra entre 1685 e 1688, lizadas revela claramente a falta de conhe-
tendo a intenção de a imprimir o que não cimentos a nível do desenho, da anatomia
aconteceu. Tem consciência plena da situa- e até da perspectiva, ensinamentos que na
época se obtinham a nível de academias Teixeira, Fernão Gomes, Simão Roiz (Rodri-
como a de Florença, fundada por Vasari, a gues), Amaro do Vale, Afonso Sanches, Do-
de S. Lucas em Roma, de Zuccaro, ambas mingos Vieira, Francisco Nunes, Diogo da
remontando ao século XVI, ou a mais próxi- Cunha, André Reinoso, Diogo Pereira, Jose-
ma Académie Royale de Peinture et Sculptu- fa de Ayala, Marcos da Cruz, entre outros,
re, fundada em 1648 em França. Para Félix todos da segunda metade do século XVI e
da Costa a fundação da Academia era uma XVII com excepção de Gregório Lopes que
necessidade urgente, embora não tivesse a faleceu em 1550. É curioso que tendo risca-
compreensão da sociedade portuguesa de do em 1693 o retábulo de pedraria para a
então, pelo que no resumo final altera a sua Capela de S. Vicente na Sé de Lisboa (Cae-
posição, afirmando que se não for possível tano, 1989, 288) não faça qualquer referên-
criar uma Academia ao menos seja designa- cia a Nuno Gonçalves.
do um pintor – chefe que tivesse a missão de
velar pela qualidade das obras realizadas. A título de exemplo, transcrevemos o que
diz de Campelo (fl. 106):
Tal como Holanda – e procurando demons-
trar a nobreza e liberalidade da pintura António Campelo Pintor, que seguio em
– afirma que Deus foi, como criador, o pri- muita parte a Escola de Michael Angelo Bo-
meiro dos pintores, e traça uma história, di- narrote, assim na força do debucho, como
remos internacional, da pintura que inicia parte do colorido; se bem já com outra in-
com Tubalcano, na 6ª geração de Adão (ou teligência no mexido das cores. Do qual se
seja, recorre ao Antigo Testamento) e pros- vem suas obras em Belém no claustro e hum
segue para a Grécia com os muito citados painel de Cristo com a cruz às costas prodi-
Zeuxis e Apeles, recorrendo igualmente à gioso,6 que merecia outro lugar, e outro tra-
ideia de que as invasões bárbaras puseram to, que o que tem e várias pinturas suas em
fim à pintura que ressurgiria com Cimabue outra Igrejas. Floreceu em tempo del Rey
e prosseguiria a sua evolução ascendente Dom João o Terceiro.
até Miguel Ângelo e Rafael. Procura tam-
bém acentuar as honras que muitos pinto- Esta breve contribuição de Félix da Costa é
res receberam, inspirando-se não só em Va- uma das fontes utilizadas por Cirilo Volkmar
sari mas noutros autores. Machado que exalta a sua contribuição para
os inícios da história da pintura, do que fala-
Relativamente à pintura portuguesa acres- remos num próximo artigo.
centa uma série de Memorias de 19 Pintores,
enriquecidas com alguns dados biográficos No entanto nem D. Pedro II nem seu filho
e artísticos e portanto com mais conteúdo D. João V, apesar do manifesto patrocínio às
do que as Tábuas de Holanda, embora cin- artes, chegaram a fundar uma Academia de
gindo-se à pintura. Refere os pintores que Artes em Portugal, mas esse é outro tema a
receberam protecção régia como Gregório abordar.
Lopes, José de Avelar, Gaspar Dias, Diogo

– MARGARIDA CALADO 247


Regressando à temática principal que nos cripçam Corografica do Reyno de Portugal
orienta ou seja, a historiografia, e em parti- de António de Oliveira Freire (1789); o Ma-
cular a historiografia da arte, é de salientar a ppa de Portugal Antigo e Moderno de João
fundação por D. João V , em 1720, da Aca- Baptista de Castro (5 volumes, 1745-1758);
demia Real de História Portuguesa, da qual o Dicionário Geográfico do Padre Luís Car-
sairá um conjunto notável de obras de ca- doso, de que foram apenas publicados dois
rácter monumental, importantes para a his- volumes correspondentes às primeiras le-
tória em geral mas também para a história tras do alfabeto (A-C) (1747-1752) e do
da arte em particular. Citaremos a Colecção mesmo autor o Portugal sacro e profano (3
de Documentos e Memórias em quinze volu- volumes, 1767-1768).
mes; as Memórias para a história eclesiástica
do Arcebispado de Braga, em quatro volu- Todas estas obras são inventariações exaus-
– CONVOCARTE Nº.1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

mes (1732-1747), de Jerónimo Contador de tivas e realizadas com critérios objectivos, e


Argote; a História Genealógica da Casa Real que foram continuadas no século XIX pelos
Portuguesa, de D. António Caetano de Sou- dicionários corográficos de que se destaca
sa, que com as Provas atinge os dezanove o Portugal Antigo e Moderno de Pinho Leal.
volumes (1735-1748); a Bibliotheca Lusitana
de Diogo Barbosa Machado (1741-1751), Ainda na primeira metade do século XVIII é
entre outras (Gonçalves, 1962, 14). publicada a Carta apologética e analytica,
que pela ingenuidade da Pintura, em quan-
Mas uma das principais consequências da to sciencia escreveu José Gomes da Cruz,
fundação da Academia foi a publicação em em 1752, a pedido do pintor André Gonçal-
30 de Agosto de 1721 do Alvará sobre o ves, e que é mais um documento em defesa
Património, o segundo a existir na Europa7, do estatuto da pintura como arte liberal, a
que salvaguardava os Monumentos antigos que Diogo Barbosa Machado acrescentou
que havia, & se podião descobrir no Rey- uma lista dos famosos corifeus da pintura.
no, dos tempos em que nelle dominarão os
Phenices, Gregos, Penos, Romanos, Godos, Na sequência do Terramoto de 1755, que
& Arabios, … que poderão existir nos Ede- destrui não só uma parte substancial da ci-
ficios, Estatuas, Cippos, Laminas, Chapas, dade de Lisboa, mas afectou muitas outras
Medalhas, Moedas & outros artefactos… povoações e edifícios por esse país fora,
(Pereira, 1989, 27). Quem encontrasse es- foi dirigida aos párocos das diversas igre-
ses vestígios era obrigado a comunicar e jas o pedido de um relato do estado em
se não o fizesse, consoante a classe social, que tinham ficado os edifícios das suas pa-
podia ser punido ou apenas incorrer no róquias. O resultado é diferente, porque as
desagrado do rei. respostas foram dadas com diferente de-
senvolvimento mas a verdade é que as Me-
São ainda de referir as corografias, como a mórias Paroquiais de 1758 constituem de
Corographia Portugueza de António Carva- modo geral um documento incontornável
lho da Costa (3 volumes, 1706-1712); Des- para quem estuda a arte portuguesa ante-
rior ao Terramoto encontrando-se algumas acentuar que, apesar do seu interesse como
publicadas . Francisco Luís Pereira de Sou- documento pessoal, não apresenta impar-
sa publicou em 1928 uma obra em vários cialidade do ponto de vista histórico, no-
volumes em que se inventariam os estra- meadamente porque Vieira Lusitano não ti-
gos deixados pelo Terramoto: O Terremoto nha uma boa relação com o arquitecto João
do 1º de Novembro de 1755 em Portugal, Frederico Ludovice.
onde transcreve muitos dos documentos
existentes quer na Torre do Tombo quer na Uma outra fonte para o estudo da história
Biblioteca Nacional. está na epistolografia, não como género li-
terário, mas a que tem carácter documen-
Ainda relativamente ao século XVIII, cons- tal, como as Cartas da Rainha D. Mariana Vi-
titui uma fonte importante para a pesquisa tória para sua família de Espanha, editadas
da história da arte a «Gazeta de Lisboa», pu- por Caetano Beirão10 e que apesar do título
blicada semanalmente a partir de 1715, e cobrem toda a sua vida em Portugal, desde
que além de uma extensa parte dedicada que aqui chegou em 1729, e onde se fazem
a questões políticas internacionais e nacio- algumas referências a questões artísticas
nais, tinha uma secção final, de cariz eminen- para além de ser um documento notável
temente social, que tanto falava das igrejas sobre a vida quotidiana na Corte Portugue-
que a Rainha D. Maria Ana de Áustria visi- sa. Existem também publicadas cartas de D.
tava nas suas devoções como podia referir Maria Bárbara, rainha de Espanha, para D.
uma descoberta arqueológica ou a oferta de João V com algumas observações interes-
uma imagem a determinada igreja ou ainda santes para a história da música.
a fundação ou sagração de outra. Além da
Gazeta editada, houve outras que permane- Ao longo do século XVIII, surgiram obras
ceram manuscritas como o «Mercúrio de Lis- diversas no campo da engenharia militar
boa» ou o «Folheto de Lisboa», manuscritos (O engenheiro Português de Manuel de
que podemos encontrar na Biblioteca Na- Azevedo Fortes, em 1728-29), como no da
cional ou na Biblioteca Pública de Évora. teoria da arte, nomeadamente os Artefac-
tos simetríacos e Geométricos do Padre
Finalmente há ainda que mencionar a auto- Inácio da Piedade Vasconcelos, de 1733,
biografia escrita pelo pintor Vieira Lusitano ou as diversas obras de Machado de Cas-
já no final da vida, depois da morte de D. tro, algumas das quais editadas já nos iní-
Inês Helena, sua mulher, e quando se reco- cios do século XIX.
lheu ao Convento de Xabregas, que ele in-
titulou O Insigne Pintor e Leal Esposo9. Essa Será de facto no primeiro quartel do sécu-
autobiografia, escrita em verso, narra não lo XIX que nos surgem as que podemos
apenas os factos aventurosos relativos à considerar verdadeiramente as primeiras
sua vida conjugal, como refere as suas via- obras da historiografia da arte portuguesa,
gens a Itália e nos fornece alguns elemen- que abordaremos em próximo artigo, subli-
tos de ordem histórica. Há no entanto que nhando a importância da obra de Cirilo por

– MARGARIDA CALADO 249


– Bibliografia:
ser a primeira que além de pintores, men-
ciona arquitectos, escultores e gravadores: CAETANO, Joaquim Oliveira
(1989) – Meesen, Félix da Costa.
Regras da Arte da Pintura, de José da Cunha Dicionário da Arte Barroca em Por-
Taborda (1815) a que Acresce memoria dos tugal. Lisboa: Editorial Presença
CALADO, Margarida (1978-1979)
mais famosos pintores portugueses e dos
– Acerca da historiografia da arte
melhores quadros seus que escrevia o tra- portuguesa. ArteOpinião. Associa-
ductor. ção de Estudantes da Escola Supe-
rior de Belas Artes de Lisboa. Nº 1
Ensaio sobre História da Arte da Pintura a 5 (Dezembro de 1978 a Abril de
1979)
de Almeida Garrett (1818-1822), dividida
GONÇALVES, António Manuel
numa parte europeia e numa parte dedica-
– CONVOCARTE Nº.1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

(1962) – Historiografia da Arte em


da à pintura portuguesa. Portugal. Boletim da Biblioteca
da Universidade de Coimbra. Vol.
Collecção de Memórias Relativas às vidas XXV. Coimbra (Comunicação à Sec-
dos pintores, e escultores, architetos, e gra- ção de Belas-Artes do IV Colóquio
Internacional de Estudos Luso-Bra-
vadores portuguezes, E dos Estrangeiros
sileiros, de Salvador da Baía, Brasil
que estiverão em Portugal, recolhidas e or-
– Agosto, 1959
denadas por Cyrillo Volkmar Machado. Lis- HOLANDA, Francisco de (1984ª)
boa, 1823. – Da pintura antiga. Lisboa: Livros
Horizonte - (1984b) – Diálogos em
Roma. Lisboa: Livros Horizonte
KUBLER, George (Introduction and
notes) (1967) – The Antiquity of the
art of Painting by Félix da Costa.
New Haven and London: Yale Uni-
versity Press
PEREIRA, José Fernandes (1989) –
Património. Claro-Escuro. Revista de
Estudos Barrocos. Nº 2-3. Lisboa:
Quimera, Maio/Novembro de 1989

– Notas

1
Obra manuscrita que veio a ser
publicada pela Câmara Municipal
de Lisboa em 1950, com advertên-
cia de Durval Pires de Lima.
2
Destacamos o Tomo Primeyro Que
compreende as Imagens de Nossa
Senhora, que se venerão na Corte,
& Cidade de Lisboa, publicado em
1707, e o Tomo VII – História das
Imagens milagrosas de Nossa Sen- Património. Jornal do Património.
hora E milagrosamente aparecidas, Direcção de José Hormigo. Nº 1.
& suplemento daquelas que nos Janeiro Fevereiro Março de 1985
ficarão por referir em os seis tomos Os manuscritos originais encon-
antecedentes por falta de inteyra tram-se no Arquivo Nacional da
noticia, publicado em 1721 Torre do Tombo onde podem ser
3
Giorgio Vasari é o autor de Le Vite consultados.
de’ più eccelenti Architetti, Pittori e 8
Fernando Portugal e Alfredo
Scultori Italiani da Cimabue insino Matos – Lisboa em 1758. Memórias
a’ tempi nostri, com 1ª edição em Paroquiais de Lisboa. Lisboa, 1974
1550 e 2ª em 1568, obra conside- 9
Francisco Vieira Lusitano – O
rada a primeira história da arte, já Insigne Pintor e Leal Esposo. Histo-
referida a propósito de Francisco ria Verdadeira que elle escreve em
de Holanda Cantos Lyricos. E oferece ao Illus. E
4
Karel van Mander (Meulebeke, Excellent. Senhor José Da Cunha
1548 – Amesterdão, 1606) foi um Gran Ataíde e Mello, Conde e Sen-
pintor que a exemplo de Vasari hor de Povolide, do Conselho de
publicou Schilder-Boeck (O livro da Sua Magestade Fidelissima, Gen-
Pintura), cuja primeira edição data til-Homem de sua Real Camara,
de 1604 e de que existe uma edi- Comendador da Ordem de Cristo,
ção seleccionada Vidas de Pintores Alcaide Mor da Vila de Sernan-
Flamengos, Holandeses e Alemães. celhe, etc. Lisboa, 1780
Madrid: Casimiro, 2012 10
Caetano Beirão – Cartas da
5
Esta homenagem foi exaustiva- Rainha D. Mariana Vitória para a sua
mente estudada por Luís de Moura família de Espanha. Apresentadas e
Sobral em Pintura e Poesia na época anotadas por… Vol. I (1721-1748).
barroca. A homenagem da Acade- Lisboa: Empresa Nacional de Publi-
mia dos Singulares a Bento Coelho cidade, 1936
da Silveira. Lisboa: Estampa, 1994
6
Trata-se da obra de cerca de
1570, um óleo sobre madeira hoje
no Museu Nacional de Arte Antiga,
proveniente da escadaria monu-
mental da portaria do Mosteiro de
Santa Maria de Belém e que foi res-
taurada para a exposição «Jeróni-
mos – 4 séculos de Pintura». Sobre
o assunto ver o artigo de Joaquim
de Oliveira Caetano «Campelo
nos Jerónimos: os Fragmentos da
Fama» publicado no Catálogo da
Exposição (p. 96)
7
Sobre o tema publiquei um
pequeno texto cuja referência
deixo: Margarida Calado (1985) –
Portugal detentor da segunda mais
antiga legislação da Europa sobre

– MARGARIDA CALADO 251


Três Jornais de Belas-Artes do Século XIX
em Portugal
por Eduardo Duarte
Prof. Auxiliar de Ciências da Arte e do Património na
FBAUL, Investigador do CIEBA, Responsável do 2.ª Ciclo
das Ciências da Arte e Coordenador do Mestrado em
Museologia e Museografia.
– CONVOCARTE Nº.1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

The 19th century has known in our country, three


important publications related to the Fine Arts:
the Jornal de Bellas-Artes ou Mnémosine Lusitana Portugal quase nunca teve uma relação har-
(1816-1817), the Jornal das Bellas-Artes (1843- moniosa com as Belas-Artes. Na verdade,
1846 e 1848) and the Jornal de Bellas-Artes (1857- são muitos os artistas que a isso se referem,
1858). Due to their theoretical and artistic impact, desde Francisco de Holanda (1517-1584) a
the last two are the most relevant, since the first, Joaquim Machado de Castro (1734-1822).
formal and aesthetically, still belongs largely to the Como sabemos, essa situação continuou no
18th century. século XIX e ainda hoje, teimosamente, per-
In the Journal das Bellas-Artes collaborated authors siste.
and essential writers like Garrett, Herculano,
Castilho, Varnhagen and artists such as Roquemont, Francisco de Holanda, logo no primeiro dos
Fonseca, Manuel Maria Bordalo Pinheiro, Sendim seus célebres Diálogos de Roma (1548), di-
and Paulino dos Reis, among others. rigindo-se a Miguel Ângelo e contextua-
In the Jornal de Bellas-Artes colaborated several lizando a arte em Portugal, refere, numa
writers, among which we highlight Bulhão Pato, passagem habitualmente esquecida, mas
Mendes Leal and romantic artists who were part paradigmática desta situação:
of the framework Cinco Artistas em Sintra (1855):
Anunciação, Metrass, Cristino, Victor Bastos and “[…] nós outros, os Portugueses, ainda que
José Rodrigues. Having been almost the only alguns nasçamos de gentis engenhos e es-
publications that contemplated the fine arts, it will píritos, como nascem muitos, todavia temos
be elaborated a theoretical and formal analysis of por desprezo e galantaria fazer pouca conta
these periodicals. das artes, e quase nos injuriamos de saber
muito delas, onde sempre as deixamos im-
Keywords: Fine-Arts, Journals, Romanticism, Portugal perfeitas e sem acabar.”1

Também o escultor Machado de Castro,


numa carta dirigida a pessoa indetermina-
da, mas datada de 3 de Fevereiro de 1817, e invasões francesas (1807, 1809 e 1810), é
com um tom de revolta contida em relação notável que tenha surgido esta publicação.
àqueles que o caluniavam a si e ao seu tra- Como facilmente se imagina, a Mnémosi-
balho, escreve: ne Lusitana (como geralmente é conheci-
da) teve vida breve, dois anos, 1816-1817,
“Em Portugal influe Astro maligno destrui- como a maioria dos periódicos no século
dor das Bellas Artes!!!”2 XIX, mas marcou, sem dúvida, uma novida-
de editorial muito importante. Não apenas
Camões (1524/25-1579/80), n’Os Lusíadas, na questão literária, na teoria da arte e do
lamentando-se de que os chefes militares património, mas também como importante
portugueses sempre tenham desprezado documento iconográfico, mercê das gravu-
as artes, ao contrário de Octávio, César, Ci- ras que apresentava.
pião, Alexandre, entre capitães Romanos,
Gregos ou Bárbaros3, escreve o célebre e O texto de apresentação fazia, como era ha-
paradigmático verso: bitual, o elogio ao Príncipe D. João e uma
crítica ao “Usurpador”, não revelando se-
“Porque quem não sabe arte, não na estima.”4 quer o seu nome. Toda essa introdução re-
vela que se trata, de facto, de um “Jornal Pa-
Com estas críticas, a que poderíamos jun- triotico” que até então não existia e que o
tar tantas outras, como as de Cyrilo Volkmar próprio título de Redacção Patriótica pou-
Machado (1748-1823), entende-se a escas- cas dúvidas deixava.
síssima publicação de livros e de periódicos
relativos às Belas-Artes e à teoria destas. Era intento do periódico recordar a memó-
ria do passado, quando os Portugueses fo-
Jornal de Bellas-Artes ou Mnémosine ram o “assombro do mundo”, com os des-
cendentes dos Pereiras, Albuquerques,
Lusitana. Redacção Patriótica Cunhas, Almeidas, Castros e tantos outros,
que não degeneraram o bem da Pátria, an-
Só em 1816 surgiu uma publicação periódi- tes lançando em confusão os inimigos da
ca dedicada de facto às Belas-Artes e, mais “Gloria Lusa.”5 O programa editorial do pe-
importante, com essa designação no seu tí- riódico estava elencado da seguinte forma:
tulo completo de Jornal de Bellas-Artes ou
Mnémosine Lusitana. Redacção Patriótica e “1.º Memorias das acções dos Guerreiros
cujo director era Pedro Alexandre Cavroé Portuguezes na recente, e nas antigas Cam-
(1776-1844). panhas, de que os Escriptores Estrangeiros
tenhão feito honrosa menção.
Num contexto difícil, marcado pela pre-
sença do futuro D. João VI no Brasil (1807- Refutação de algumas opiniões dos mes-
1821) e por uma situação grave para o país, mos Escriptores sobre Portugal, etc.
que havia sofrido, havia poucos anos, três

– EDUARDO DUARTE 253


2.º Descripção dos edifícios, e monumentos crição das Aulas Régias e Públicas de Dese-
mais notáveis de Lisboa; justa avaliação do nho Histórico e de Arquitectura Civil8 ou um
seu merecimento. Dos sitias amenos, ricos interessante artigo com o título: Da Estatuá-
em Botânica, etc.; com huma estampa em ria, e Escultura em pedra em Portugal9, entre
cada quarto Numero. outras matérias sobre Belas-Artes.

3.º Artes, e Officios; o esmero a que tem Este artigo sobre escultura é, recorde-se,
chegado algumas Artes, e Officios em Por- talvez a primeira tentativa para fazer uma
tugal; novos inventos; meios de excitar a in- síntese da história desta expressão artísti-
dustria; nomes, e moradas dos principaes ca em Portugal. Cavroé esboça uma breve
Artistas em Lisboa; suas obras, etc. história da escultura nacional em 5 pági-
nas. Como exemplo mais antigo no territó-
– CONVOCARTE Nº.1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

4.º Poezias; Composições não impressas de rio nacional, evoca a cidade de Évora como
Authores acreditados; reimpressão de algu- os capitéis coríntios do seu célebre Tem-
mas rarissimas, etc. plo de Diana (que não foram importados
de Atenas ou Roma, mas antes obra de es-
5.º Curiosidades; Indicação das cousas dig- cultores locais que testemunham que “na
nas de serem attendidas dos curiosos, e via- Lusitania havia bons Escultores”10. É igual-
jantes; seu merecimento, etc. mente apresentado o exemplo de Beja,
com as suas cimalhas, frisos, estátuas e lá-
6.º Anecdotas, Historias, e Ditos sentencio- pides, achadas nas escavações ordenadas
sos, nos quaes se encontrem, ou elogio á pelo prelado da diocese, D. Fr. Manuel do
Nação, ou aquella agudeza natural, e pró- Cenáculo11. Durante a Idade Média, Cavroé
pria da lingua Portugueza.”6 destaca a escultura (e a arquitectura), em
Alcobaça, nos Túmulos de Pedro e Inês de
Grande parte do conteúdo do Jornal de Castro, no Convento de Cristo em Tomar,
Bellas-Artes ou Mnémosine Lusitana. Redac- no Mosteiro da Batalha e nos Jerónimos
ção Patriótica versa as histórias de Portugal, (Bellem), “talvez no género ghotico os me-
recentes - como, por exemplo, episódios das lhores do mundo”, citando Murphy12. Refe-
Invasões Francesas -, e passadas, descrições re ainda o Mosteiro de S. Vicente de Fora e
de edifícios e monumentos, procurando va- o Claustro dos Filipes em Tomar (“de 1580
lorizar o património edificado, inclusivamen- a 1640”) como exemplos, apesar de “nunca
te com algumas gravuras, mas também mui- tão brilhantes, e honrados” como as obras
ta literatura, como poesias, odes, sonetos e nos reinados de D. João V, D. José I e D.
as prometidas anedotas, algumas delas so- Maria I (ideia de manifesto pendor nacio-
bre jesuítas, e ainda curiosidades. nalista). Do século XVIII, o autor menciona
Alexandre Giusti (Justi), José de Almeida,
Do 1.º volume, destaca-se, por exemplo, a Machado de Castro, João José de Aguiar,
descrição da Praça do Comércio e da sua Amatucci, Faustino José Rodrigues, Joa-
Estátua Equestre7, uma pormenorizada des- quim José de Barros, Alexandre Gomes,
Francisco Leal Garcia e António Ferreira,
recordando as principais obras de cada
um deles. Por fim, lembra que “de todos
os nossos Estatuários o mais famoso he o
immortal Manoel Pereira” que “Em Itália he
tão conhecido o seu nome, como entre nós
pôde ser o de Bernini.”13 O texto de Cavroé
é muito interessante, pois refere e comple-
ta por vezes obras de todos estes escul-
tores, sendo uma espécie de esboço, para
as entradas que Cyrilo Volkmar Machado
publicará na conhecida Colecção de Me-
mórias (1823)14.

Os frontispícios da Mnémosine Lusitana


dos anos de 1816 e 1817 apresentam as
armas reais de Portugal, numa antiga tra-
dição que podemos remontar à época ma-
nuelina e que surge, da mesma forma, no
primeiro periódico português, a Gazeta em
que se relatam as novas todas… de 1641.

O 1.º volume da Mnémosine Lusitana, de Mnémosine Lusitana, 1816


1816, apresenta 26 números, num total
de 432 páginas, e o 2.º volume, de 1817,
tem igualmente 26 números e 420 pági-
nas. Cada número apresenta 6 gravuras a
água-forte desenhadas por Pedro Alexan-
dre Cavroé, director da Mnémosine Lusita-
na, e abertas por António Manuel da Fon-
seca (1796-1890)15.

Como se pretendia no programa editorial,


respeitou-se o número de gravuras, uma a
cada quatro números, mas apenas no 1.º
volume, de 1816. No 2.º volume, de 1817,
não existe essa periodicidade. As gravu-
ras são todas hors-texte. Se as de formato
vertical estão naturalmente encadernadas
como as páginas do periódico, as de for-

– EDUARDO DUARTE 255


mato horizontal foram colocadas nessa po-
sição, sendo necessário o leitor voltar o li-
vro para as poder contemplar.

As gravuras apresentadas são as seguintes:


1.º Vol., 1816, Aqueduto das Águas Livres,
n.º 4; Monumento sepulcral erigido no Ce-
mitério dos Ingleses ao Príncipe de Valdeck,
n.º 8; Real Teatro de S. Carlos, n.º 12; Moi-
nho movido por água, n.º 17; Convento de
N. Senhora de Jesus, n.º 22; Palácio do Go-
verno, n.º 26. 2.º Vol., 1817: Igreja da Basíli-
– CONVOCARTE Nº.1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

ca de Santa Maria, n.º 6; Casa de Campo e


Quinta Real de Belém, n.º 11; Terreiro Públi-
co de Lisboa, n.º 19; Arsenal Real do Exér-
cito, n.º 24; Duas máquinas muito úteis, n.º
24; Colégio Real dos Nobres, n.º 26.

Estas gravuras, com os respectivos textos,


Mnemosine Lusitana, 1817- Igreja da Basílica de Santa Maria descrevem apenas um monumento antigo
(Basílica de Santa Maria, Sé de Lisboa), sen-
do os restantes edifícios e construções do
século XVIII. É igualmente interessante re-
gistar a referência a um moinho (inventado
por Filipe Arnaud)16 e duas máquinas (para
moer farinha em casas particulares e para
peneirar) de criação inglesa17. A presença
destas máquinas na Mnémosine Lusitana
são consequência da tímida industrializa-
ção portuguesa ocorrida durante o consula-
do do marquês de Pombal e, principalmen-
te, de um interesse na engenharia mecânica
que hoje se poderia considerar como próxi-
Mnémosine Lusitana, 1816 - Moinho ma do design de equipamento.

Em termos compositivos e de design de co-


municação, o Jornal de Bellas-Artes ou Mné-
mosine Lusitana. Redacção Patriótica, com o
texto a uma coluna, é continuador do gra-
fismo do século XVIII, que se observa, por
exemplo, em inúmeras publicações patroci- a par das outras “escolas” que existiam nos
nadas pela Casa Literária do Arco do Cego repositórios públicos e nas colecções par-
ou na Impressão Régia onde se imprimiu ticulares.
este periódico.
Também a escultura e a arquitectura não se-
Jornal das Bellas-Artes riam esquecidas, assim como as medalhas,
moedas e os demais objectos que se pu-
Muito diferente em termos formais e, de dessem considerar “documentos para a his-
resto, muito mais focalizado na temática tória da arte”. Era igualmente intuito do Jor-
das Belas-Artes era o Jornal das Bellas-Ar- nal das Bellas-Artes reproduzir os “grandes
tes (1843-1846 e 1848). Este foi, como se monumentos da arte antiga e moderna que
refere no início, “Patrocinado sob os aus- enriquecem outros paizes.” Os quadros, es-
picios de uma reunião de litteratos e ar- tátuas, relevos e edifícios seriam acompa-
tistas”. O presidente era Almeida Garre- nhados pela sua história, análise e aprecia-
tt (1799-1854), o vice-presidente, o pintor ção. As biografias dos artistas mais distintos,
António Manuel da Fonseca (que já havia principalmente os nacionais, estariam ainda
colaborado na Mnémosine Lusitana) e o presentes. Finalmente, o periódico iria no-
secretário, António da Silva Túlio (1818- ticiar todas as ocorrências, descobertas ou
1884). Colaboraram autores e escritores novas produções que interessavam à arte e
incontornáveis como Alexandre Herculano que faziam a sua história contemporânea18.
(1810-1877), António Feliciano de Castilho
(1800-1875), Francisco Adolfo de Varnha- Como facilmente se constata, eram mui-
gen (1816-1878) e artistas como Augusto to ambiciosos os propósitos deste jornal,
Roquemont (1804-1852), José Maria Bap- manifestando Garrett um grande interesse
tista Coelho (1812-1891), Manuel Maria pela “história da arte”, como o próprio es-
Bordalo Pinheiro (1815-1880), Maurício creve. Pensamos que este deve ser um dos
José Sendim (1790-1870), Máximo Paulino primeiros textos, no qual surge esta expres-
dos Reis (1778-1865) e Pedro Augusto Gu- são. Esta Introdução, habitualmente muito
glielmi (c. 1837-1852), entre outros. esquecida, é uma peça fundamental para a
história, teoria da arte, estudo e defesa do
A introdução do jornal, redigida por Almei- património nacional do século XIX.
da Garrett, referia que o periódico tinha
como objectivo “ilustrar as nossas glórias Cada número do Jornal das Bellas-Artes de-
passadas”. Pretendia-se, de igual modo, veria ter uma periodicidade mensal e pos-
auxiliar a “sublime e patriotica idea que or- suiria, pelo menos, 16 páginas e duas es-
ganisou a Academia das Bellas-Artes de tampas gravadas ou litografadas19.
Lisboa e os outros Institutos connexos”. Um
outro propósito do Jornal das Bellas-Artes Nas mesmas informações, menciona-se
era reproduzir pela gravura e pela litogra- também os preços das assinaturas e os lo-
fia todos os “quadros dos nossos mestres” cais de compra do periódico20. No primeiro

– EDUARDO DUARTE 257


número do jornal, na sua contra-capa, afir-
mava-se que os assinantes receberiam, ao
fim de 12 números, um frontispício com or-
natos análogos aos assuntos que eram tra-
tados no periódico e ainda o índice geral
das matérias do volume21.

O Jornal das Bellas-Artes foi impresso na Ti-


pografia da Sociedade de Propaganda dos
Conhecimentos Úteis, n.º I e II; na Imprensa
Nacional, n.º III-VI; e na tipografia do Pano-
rama, n.º I-III do Tomo II22.
– CONVOCARTE Nº.1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

Os editores foram Manuel Maria Bordalo Pi-


nheiro, pai de Rafael e Columbano Bordalo
Pinheiro, e José Maria Baptista Coelho23. A
mancha do texto é a duas colunas separa-
das por uma linha vertical.

Jornal das Bellas-Artes, 1843 Além da componente de ilustração que os-


tenta, o Jornal das Bellas-Artes é inequivo-
camente do século XIX, em termos de tipo-
grafia, e a escolha dos caracteres revela um
típico eclectismo gráfico oitocentista. O títu-
lo, por exemplo, deve ter sido desenhado.
Somos levados a colocar esta hipótese pela
irregularidade da letra. Foram utilizados três
tipos de letras, todas elas em relevo, de que
resulta uma composição gráfica bastante
dinâmica e interessante, apesar dos seus
limitados recursos gráficos. A composição
surpreende pelo preto e branco e, princi-
palmente, pelo movimento da inclinação
do “das”24.

Mas uma das mais importantes novidades


editoriais que o Jornal das Bellas-Artes apre-
senta, talvez mesmo a mais relevante, é a
questão gráfica e a da ilustração que acom-
panhava o texto. Num país com parcos recur-
sos ao nível da gravura, como se verifica no “a tempo e com lealdade, na liça.”26 Como
quase sempre pobre panorama da sua his- se sabe, só após os trabalhos do conde Ra-
tória em Portugal, não deixa de ser extraor- czinsky (1846 e 1847)27 é que se começou a
dinário um periódico ter essa preocupação. definir melhor esta personalidade artística.

Na verdade, podemos contabilizar, em 118 Quanto a Sequeira, recordemos que sem-


páginas25, 16 gravuras de página inteira pre foi um pintor muito considerado pela
(hors-texte) e mais 16 imagens pequenas geração romântica. O longo texto a descre-
dentro do texto, num total de 32 gravuras. ver o quadro reproduzido (S. Bruno em ora-
Estas gravuras pequenas podem ser peque- ção), que pertenceu à Cartuxa de Laveiras,
nos quadros, composições gráficas de iní- foi escrito por António Feliciano de Casti-
cio de texto ou simplesmente uma letra de- lho28. Após este, surge uma biografia desse
senhada. A média de gravuras por página pintor por José Maria da Silva Leal (1812-
no Jornal das Bellas-Artes é de aproximada- 1883)29. Por fim, a presença do Túmulo de D.
mente 3,7, o que dá ideia da importância da Dinis revela, obviamente, o gosto romântico
ilustração neste periódico. pela Idade Média e arte dessa época.

Em termos de gravuras de página inteira, A par das gravuras de página inteira, o Jor-
é ainda interessante constatarmos que as nal das Bellas-Artes apresenta ainda algu-
duas primeiras reproduzem dois quadros mas composições gráficas muito interes-
atribuídos ao mítico Grão Vasco (Epipha- santes no meio do texto, com composições,
nia e S. João Baptista), um de Domingos algumas não assinadas, e letras iniciais. Des-
Sequeira (S. Bruno em oração), a reprodu- tas, destacam-se as gravuras desenhadas
ção do Túmulo de D. Dinis, em Odivelas, e por Bordalo Pinheiro e gravadas por José
um quadro de Rafael de Urbino. Todos es- Baptista Coelho30 que ilustram os romances
tes quadros pertenciam, como se informa, à Rei Ramiro e Miragaia de Garrett com letras
Academia de Belas-Artes de Lisboa. e composições fantasistas, povoadas de
personagens da Idade Média. Na primeira
O aparecimento no início do Jornal das composição gráfica, na qual se observa um
Bellas-Artes de duas obras que se pensava, R, surge mesmo uma janela manuelina com
na época, serem de Grão Vasco é sintomá- duas cordas atadas na zona superior31.
tico do papel que este mítico pintor portu-
guês tinha no imaginário artístico nacional Também as ilustrações do artigo O Castello
de Oitocentos. Aliás, Almeida Garrett evoca d’Almourol, escrito pelo conde de Mello, são
Grão Vasco no fim da sua Introdução, refe- muito interessantes, sobretudo a última, com
rindo não poder ser deste pintor todos os uma varanda de inspiração manuelina, com
quadros que se lhe atribuem, como Homero dois medalhões, sobre o castelo do Tejo32.
poderá não ter escrito todas as rapsódias da
Ilíada e da Odisseia. Contudo, Garrett pro- De temática manuelina é a ilustração do ar-
mete estar atento a esta questão e irá entrar tigo Porta lateral da Egreja de S. Julião, em

– EDUARDO DUARTE 259


Setubal, de Varnhagen, também de Borda-
lo Pinheiro, povoada com algumas pessoas,
um cão e um galo, num pequeno trecho de
desenho romântico de costumes33.

Quatro letras do Jornal das Bellas-Artes me-


recem referência, devido à sua qualidade
gráfica. Inspirando-se numa iluminura de
grafismo celta, é um A34 e um P35. Também
um E clássico surge no interior de uma jane-
la manuelina36. Um Q é definido por ramos,
flores, folhas e insectos37.
– CONVOCARTE Nº.1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

Dos vários textos importantes inseridos no


Jornal das Bellas-Artes, destacam-se, além
da referida biografia de Domingos Sequei-
ra por Silva Leal, um texto de Almeida Gar-
rett com o título Claustro de Belem38 (no
qual o Mosteiro da Batalha é descrito, ape-
Jornal das Bellas-Artes, Rei Ramiro sar de belo, como quase puramente nor-
mando, em contraste com o Mosteiro dos
Jerónimos, que era, segundo o escritor, ver-
dadeiramente português) e ainda o já cita-
do estudo de Varnhagen sobre o Portal la-
teral da Igreja de S. Julião, em Setúbal39, no
qual se fazia uma profunda reflexão sobre
o conceito do “typo do estylo manuelino.”40
Curiosamente, e dentro das preocupações
editoriais do Jornal das Bellas-Artes, ambos
os textos eram acompanhados por gravuras
de João Pedro Monteiro (1823/26-1853) e
de Bordalo Pinheiro, respectivamente. Tam-
bém relevante foi a descrição e, de certo
modo, a crítica de arte que surgiu a propó-
sito da Exposição da Academia das Bellas-
-Artes de Lisboa. 184341. O texto, bastante
longo, e que deve ser de Almeida Garrett,
faz uma descrição da segunda exposição
organizada pela Academia de Belas-Artes
Jornal das Bellas-Artes, O Castello d’Almourol de Lisboa, depois da primeira de 1840, se-
gundo as várias aulas (Desenho Histórico, sobre o frontão não deveriam estar sepa-
Pintura Histórica, Aula de Pintura de Paisa- radas do grupo de Apolo e das Musas no
gem, Aula de Desenho de Arquitectura Ci- tímpano do mesmo; depois, em vez de as
vil, Aula de Gravura e Aula e Laboratório de estátuas da Tragédia e da Comédia a ladea-
Escultura), enumerando as obras premiadas rem Gil Vicente, deveriam estar, por exem-
e, dentro da filosofia do periódico, apresen- plo, o “tragico Ferreira” (António Ferreira),
tando três gravuras, o célebre Eneias salvan- Camões ou mesmo Garrett. Uma outra críti-
do a Anchises, de António Manuel da Fon- ca é feita à estátua de Gil Vicente, por estar
seca; A Volta do Filho Pródigo, de António “curvada de mais, o que produz mau effeito
Tomás da Fonseca (1822-1894), filho do an- vista de lado; talvez haja em toda ella um
terior, e o baixo-relevo Juramento de Viria- sentimento da humilhação.” Segundo o crí-
to, de Francisco de Paula Araújo Cerqueira tico, faltava-lhe a “nobreza e a magestade
(1808-1855)42. da estatua romana” e Gil Vicente, curvado,
“apoia a mão esquerda sobre o peito, e pa-
Uma outra característica interessante que o rece estender o braço direito ao viandante
Jornal das Bellas-Artes introduziu nos últi- que passa…”46
mos números, em 1848, foi a presença de
uma secção designada Album sobre pe- Jornal de Bellas-Artes
quenas notícias da actualidade43. Assim,
foi noticiada a morte precoce, aos 23 anos, No Jornal de Bellas-Artes (1857-1858), com
do gravador e colaborador do Jornal das 8 números47, colaboraram também vários
Bellas-Artes Ernesto Gerard; a chegada, em escritores, dos quais destacamos Castilho,
Janeiro, de Francisco Metrass (1825-1861) Bulhão Pato (1828-1912), Gomes de Amo-
e do visconde de Meneses (1817-1878) de rim (1827-1891), Mendes Leal (1820-1886)
Roma e de um périplo que haviam realiza- e os artistas românticos que contemplamos
do por várias cidades europeias; a estreia no quadro Cinco Artistas em Sintra (1855):
do jovem pianista Lozano e uma desenvol- Tomás da Anunciação (1818-1879), Fran-
vida notícia sobre a Academia Filarmónica cisco Metrass, João Cristino da Silva (1829-
de Lisboa, fundada em 1838. 1877), Victor Bastos (1829-1894) e José Ro-
drigues (1828-1887), além de António José
Finalmente, no último número do Jornal Patrício (1827-1858) e Leonel Marques Pe-
das Bellas-Artes surge, na mesma secção, reira (1828-1892).
um texto, não assinado, de crítica de arte
intitulado Inauguração das Estatuas sobre No texto de apresentação, José Eduardo de
o Frontão do Theatro Nacional44. Apesar de Magalhães Coutinho (1815-1895)48 refere
as estátuas honrarem o seu autor, Francis- que as causas para o “pouco aumento das
co de Assis Rodrigues (1801-1877)45, pelo Bellas-Artes portuguezas” foram o “desam-
desenho “assaz correcto e estudado, as rou- paro, e o esquecimento” por aqueles que
pas cheias de graça e naturalidade”, o pro- as deveriam proteger e os que as deviam
grama é severamente criticado. As estátuas apreciar nem sequer suspeitavam que elas

– EDUARDO DUARTE 261


existissem49. Seguidamente, o médico faz de Bellas-Artes apresenta, no fim de cada
um elogio da Anatomia e da sua importân- número, uma Chronica Mensal e um Noti-
cia para as Belas-Artes. Escreve ainda uma ciario sobre exposições em Lisboa, Porto e
breve síntese histórica dessa disciplina fun- até em Paris; obras de artistas que estavam
damental para a Medicina. a ser realizadas; concursos para professores
nas Belas-Artes; álbuns de fotografias; notí-
No mesmo número, o visconde de Jurome- cias de teatro e música, de lançamento de
nha (1807-1887), conhecido escritor e histo- livros e até da inauguração de um estabele-
riador, escreve que o Jornal de Bellas-Artes cimento fotográfico em Lisboa.
havia sido empreendido por alguns artistas
portugueses que pretendiam esclarecer-se A composição do frontispício do periódico,
a si e ao público na história da arte50. Refere desenhada por Victor Bastos e gravada por
– CONVOCARTE Nº.1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

o importante contributo das obras do con- João Pedroso (1823-1890)60, apresenta-se


de de Raczynski51 e os nobres esforços de bastante clássica na sua simetria. Obra de
José da Cunha Taborda (1766-1836) e de um pintor, mas que se iria dedicar à escultu-
Cyrilo Volkmar Machado52, afirmando, como ra (Victor Bastos foi o mais importante escul-
no Jornal das Belas-Artes, que em Portugal tor do romantismo português e autor do Mo-
a História da Arte estava na infância, haven- numento a Camões, no Chiado, em Lisboa,
do numerosos arquivos para explorar e ex- 1867), coloca, na parte superior, três mulhe-
cursões artísticas a empreender53. res, em tronco nu e bastante dinâmicas, a co-
roarem outras três figuras femininas em bai-
Além de peças literárias e poéticas de vá- xo que representam a Pintura, a Escultura e a
rios autores, como os referidos Feliciano Arquitectura. A primeira está ao centro, com
de Castilho54 ou Bulhão Pato, o Jornal de uma paleta; a Escultura, do seu lado direito,
Bellas-Artes apresenta artigos sobre esté- segura um maço, apresentando uma cabeça
tica55, biografias artísticas56, descrições de esculpida aos pés; e a Arquitectura, do lado
obras da geração romântica e dois cur- esquerdo, numa atitude pensativa ao colocar
sos que ficaram incompletos, devido ao a mão no queixo e a olhar para baixo. Esta
fim do jornal: Introducção a um Curso de parece, deste modo, ser mais meditabunda
Anatomia applicada ás Bellas Artes de José e teórica que as suas irmãs Pintura e a Escul-
Eduardo de Magalhães Coutinho57 e Estu- tura; segura um compasso e tem um dese-
dos de Architectura Civil de José da Costa nho no chão; ao seu lado, contemplam-se
Sequeira (1800-1872)58. Finalmente, no ar- ainda três livros, numa alusão evidente aos
tigo intitulado Reliquias da Arte Portuguesa tratados de arquitectura. Curiosamente, a Es-
no Districto de Coimbra59, faz-se a defesa cultura olha para a Pintura, como que signi-
do património artístico dessa região e do ficando a sua proximidade artística e está à
país em geral. direita desta. Atrás da Escultura, surge uma
estátua feminina e vários vasos esculpidos,
Como nos últimos números do periódico que se encontram ao seu lado. A Arquitec-
que anteriormente descrevemos, o Jornal tura, por sua vez, está à frente de um capitel,
de uma coluna e de vários ornatos arquitec-
tónicos, que se vislumbram à sua esquerda.

Toda esta composição alegórica, das três fi-


lhas do Desenho a serem coroadas por figu-
ras que se assemelham a deusas clássicas e
à Vénus de Milo, encontra-se dentro de uma
moldura circular, com hera na parte supe-
rior, exibindo, ao centro, a legenda Jornal
de Bellas-Artes. Em baixo, numa base arqui-
tectónica sobre duas consolas, encontra-se
a data da fundação deste periódico.

Uma análise formal ao Jornal de Bellas-


-Artes revela 128 páginas e 58 gravuras
(17 hors-texte e 41 pequenas). Uma outra
constatação imediata é a de que nesta pu-
blicação periódica proliferam as imagens
no meio do texto, também este a duas co-
lunas. A animação gráfica é, por isso, muito Jornal de Bellas-Artes, 1857
maior que no Jornal das Bellas-Artes. As le-
tras são acompanhadas, muitas vezes, por
imagens e também elas dialogam e esta-
belecem várias relações com a mancha de
texto, que assim se dinamiza a cada instan-
te e se torna imprevista. Este aspecto é ab-
solutamente original e não se observa em
publicações anteriores.

De facto, cada número inicia-se com uma


composição que desenha uma letra fanta-
sista quase sempre com impacto visual e
que corta a estática coluna de texto61. No
fim de cada número, também surgem com-
posições gráficas ou pequenos desenhos.
Além dos hors-texte, das obras mais im-
portantes da geração romântica, como, por
exemplo, de Anunciação, Metrass, Cristino,
Bastos, José Rodrigues, Patrício, Marques
Pereira e D. Fernando II (1816-1885), quase Jornal de Bellas-Artes, Abril 1857

– EDUARDO DUARTE 263


sempre acompanhadas de textos e de poe- meçaram a passear por entre as palavras,
sias, são muito interessantes e variadas as principalmente com as notáveis gravuras
pequenas composições dentro da mancha desenhadas por Metrass. Outra questão
gráfica. Essas imagens podem ser unica- gráfica que pensamos ser importante é o
mente ilustrações de textos ou de poesias, facto de o Jornal de Bellas-Artes ter mais es-
mas igualmente letras, paisagens, flores e paço em branco nas páginas que o anterior
figuras femininas. Sobretudo estas últimas, Jornal das Bellas-Artes. Aliás, o tamanho
desenhadas por Francisco Metrass, lem- dos periódicos também vai aumentando65.
bram inequivocamente a Grécia e a Antigui- Deste modo, as pequenas gravuras podem
dade Clássica, num contexto que também é surgir no início das colunas, no fim ou mes-
profundamente romântico pela paisagem à mo no meio das páginas, interrompendo a
volta. Partindo do seu célebre Nu de costas linha que divide as duas colunas. Por uma
– CONVOCARTE Nº.1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

(1855), este pintor voltou ao tema e colocou vez, uma gravura, ao centro, chega mesmo
pequenas figuras sobre linhas imaginárias, a reduzir cada uma das colunas66.
como que suspensas no texto e a voarem62
à frente de plantas semelhantes a cascatas Conclusão
de água63. Literalmente, algumas das figu-
ras de Metrass pairam por entre as palavras. Num país habitualmente pouco dado ao
A última imagem do Jornal de Bellas-Artes universo das artes plásticas, o simples fac-
como que se despede de nós, numa dia- to de alguns autores pensarem em jornais
gonal ascendente, fugindo do texto, em di- dedicados às Belas-Artes era, por si só, um
recção ao espaço em branco da página e feito notável. Também a precocidade, a
da nossa imaginação... Com um manto por qualidade e o arrojo gráficos devem ser va-
cima do corpo nu, a figura parece estar de lorizados nas duas publicações, principal-
partida do periódico. Uma das composi- mente no Jornal de Bellas-Artes. Convém
ções mais complexas, com várias figuras fe- sublinhar ainda que os desenhadores das
mininas, quais ninfas numa floresta, chegou gravuras não eram quaisquer ineptos ar-
a ser repetida64. tistas, gravadores ou tipógrafos, mas toda
uma geração de pintores e de escultores
O Jornal de Bellas-Artes representa, deste que se fizeram representar no quadro Cinco
modo, um grande avanço em relação ao Artistas em Sintra. Se esta tela é o manifes-
anterior jornal, em termos gráficos e na im- to plástico da geração romântica, o Jornal
portância que a imagem começou a revelar. de Bellas-Artes é, inequivocamente, o seu
Se os hors-texte são em número semelhan- manifesto e testemunho gráfico. Não pode-
te (16 e 17, respectivamente), o número de mos, portanto, estar de acordo com a críti-
gravuras pequenas subiu bastante (de 16 ca ligeira e injusta de que o resultado não
para 41). foi brilhante67. Aliás, se dúvidas existissem,
periódicos posteriores, como Artes e Le-
Em suma, podemos afirmar que foi com o tras (1872-1875), O Ocidente (1878-1915),
Jornal de Bellas-Artes que as imagens co- A Arte (1879-1881) continuaram a usar e a
explorar a imagem, mas apenas trinta, quin- se pretendia apresentar e estudar a histó-
ze anos, respectivamente, depois dos dois ria da arte nacional e do estrangeiro, mas
periódicos analisados. igualmente pela defesa do património artís-
tico português.
Recorde-se, ainda, que em relação ao ante-
rior O Panorama (1837-1868), o Jornal das Também as questões ligadas ao design de
Bellas-Artes e o Jornal de Bellas-Artes apre- comunicação nestes periódicos revelam
sentavam uma componente gráfica e uma uma cada vez maior presença de gravuras
sistematização ao nível da imagem muito que são fundamentais como ilustração de
superior ao célebre periódico publicado peças artísticas, antigas ou contemporâ-
pela Sociedade Propagadora dos Conhe- neas, e das narrativas literárias e poéticas.
cimentos Úteis. De facto, a qualidade das Da Mnémosine Lusitana, com poucas mas
imagens de O Panorama era, por vezes, me- esforçadas gravuras, passando pelo Jornal
díocre e estas ocupavam invariavelmente das Bellas-Artes, no qual estas começam a
metade da página (com mancha de texto ter um maior protagonismo até ao grafica-
também a duas colunas) ou hors-texte. mente surpreendente Jornal de Belas Artes,
observamos que as imagens parecem au-
Mesmo um jornal dedicado às Belas-Ar- tonomizar-se no periódico e dialogar, cada
tes francesas e internacionais, como a Ga- vez mais, com a mancha de texto, ganhan-
zette des Beaux-Arts. Courrier Européen de do, desta forma, vida própria. Nas Belas-Ar-
l’Art et de la Curiosité, fundada em 1859 por tes e nos seus jornais a imagem começava
Charles Blanc (1813-1882)68, não tem a qua- a ter tanta ou mais importância que o texto.
lidade gráfica do Jornal de Bellas-Artes. O
periódico francês, a uma coluna de texto, os-
tenta gravuras hors-texte e outras inseridas
na mancha do texto. Como seria de esperar,
a maior parte das suas gravuras tem grande
qualidade formal e técnica. Contudo, talvez
o que mais surpreenda neste periódico fran-
cês é a quase total subordinação das ima-
gens ao texto, que é graficamente muito
denso. A Gazette des Beau-Arts é um enor-
me livro, exibindo muito pontualmente algu-
mas imagens e letras iniciais trabalhadas.

Os três jornais com a designação de Belas-


-Artes que marcam o panorama editorial
português do século XIX são interessantes
casos de estudo. Não apenas ao nível dos
seus textos num quadro conceptual em que

– EDUARDO DUARTE 265


— Referências:
XIX. Lisboa: Biblioteca Nacional, 13
Jornal de Bellas-Artes ou Mnémo-
2002. Vol. II. sine Lusitana. Redacção Patriótica,
DUARTE, Eduardo - Desenho SOARES, Ernesto - Evolução da n.º 1 (1816), p. 211. São destacados,
romântico português. Cinco artis- Gravura de Madeira em Portugal. como obras do escultor Manuel
tas desenham em Sintra. Lisboa: Séculos XV a XIX. Lisboa: Publica- Pereira, o célebre S. Bruno na Rua
[s.n.], 2006. Tese de Doutoramento ções Culturais da Câmara Munici- de Alcalá, em Madrid, que “Filippe
em Ciências da Arte na Faculdade pal de Lisboa, 1951. II mandava ao seu cocheiro, que
de Belas-Artes de Lisboa da Uni- SOARES, Ernesto - História da Gra- andasse muito devagar, quando
versidade de Lisboa. vura Artística em Portugal. Nova por alli passava, para ter mais
Disponível em: http://reposito- Edição. Lisboa: Livraria SamCar- tempo de a contemplar, e admirar”,
rio.ul.pt/bitstream/10451/8277/4/ los, 1971. e um Cristo que, segundo se dizia,
ULFBA_TES%20250_VOL.%202.pdf estava na Igreja de S. Domingos
– CONVOCARTE Nº.1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

FRANÇA, José-Augusto - A Arte — Notas de Benfica. No fim da vida, Manuel


em Portugal no Século XIX. 3.ª ed. Pereira, já cego, pelo tacto, emen-
Venda Nova: Bertrand Editora, 1
HOLANDA, Francisco - Diálogos dava as obras dos seus discípulos.
1990. Vol. I. em Roma. Lisboa: Livros Horizonte, 14
MACHADO, Cyrillo Volkmar - Col-
HOLANDA, Francisco - Diálogos 1984, p. 31. lecção de Memorias, relativas ás
em Roma. Lisboa: Livros Horizonte, 2
LIMA, Henrique de Campos Fer- Vidas dos Pintores, e Escultores,
1984. reira Lima - Joaquim Machado de Architetos, e Gravadores Portu-
Jornal das Bellas-Artes (1843- Castro. Escultor Conimbricense. gueses, e dos Estrangeiros, que esti-
1846 e 1848). Notícia biográfica e compilação verão em Portugal. Lisboa: Imp. de
Jornal de Bellas-Artes (1857- dos seus escritos dispersos. Coim- Victorino Rodrigues da Silva, 1823.
1858). bra: Imprensa da Universidade, 15
SOARES, Ernesto - História da
Jornal de Bellas-Artes ou Mnémo- 1925, p. 322. Gravura Artística em Portugal. Lis-
sine Lusitana. Redacção Patriótica 3
Os Lusíadas, Canto V, 92-98. boa: Livraria SamCarlos, 1971, vol.
(1816-1817). 4
Ibid., Canto V, 97. I, pp. 284-285. António Manuel da
LIMA, Henrique de Campos Fer- 5
Jornal de Bellas-Artes ou Mnémo- Fonseca assina: “Fonca F.o” e “Fonca
reira Lima - Joaquim Machado de sine Lusitana. Redacção Patriótica. Filho”. António Manuel da Fonseca
Castro. Escultor Conimbricense. Lisboa: Na Impressão Régia, n.º 1 era filho de João Tomás da Fonseca
Notícia biográfica e compilação (1816), pp. 3-4. (1754-1835).
dos seus escritos dispersos. Coim- 6
Ibid., p. 5. 16
Jornal de Bellas-Artes ou Mné-
bra: Imprensa da Universidade, 7
Ibid., pp. 27-33. mosine Lusitana. Redacção Patrió-
1925. 8
Ibid., pp. 80-85. tica, n.º I (1816), pp. 279-282. O
O Panorama: jornal litterário e ins- 9
Ibid., pp. 207-211. moinho foi mandado executar
tructivo da Sociedade Propaga- 10
Ibid., p. 208. por D. José António de Meneses
dora dos Conhecimentos Úteis 11
Ibid. e Sousa, principal da Santa Cúria
(1837-1868). 12
Ibid. MURPHY, James - Plans, Ele- Patriarcal e governador do Reino.
RAFAEL, Gina Guedes ; SANTOS, vations, Sections and Views of the Segundo o texto, o moinho era “uti-
Manuela (Org. e Coord.) - Jornais Church of Batalha. London: I. & J. lissimo nas Províncias faltas de agua
e Revistas Portuguesas do Século Taylor, 1795. e fartas de trigo, como no Alem-
téjo” (p. 281). O modelo esteve na Gravura de Madeira em Portugal. 34
Jornal das Bellas-Artes, tomo I
Casa do Risco das Obras Públicas Séculos XV a XIX. Lisboa: Publica- [sic.] tomo II, n.º I (1846), p. 1.
e fez uma demonstração pública ções Culturais da Câmara Muni- 35
Jornal das Bellas-Artes, tomo I, n.º
em Alcântara e foi remetido para cipal de Lisboa, 1951, p. 43. José II (Nov. 1843), p. 33.
o Rio de Janeiro para ser apresen- Maria Baptista Coelho foi um labo- 36
Jornal das Bellas-Artes, tomo I
tado a D. João VI (pp. 281-282). A rioso gravador em madeira com [sic.] tomo II, n.º I (1846), p. 2.
gravura deste moinho foi copiada grandes qualidades, que trabal- 37
Jornal das Bellas-Artes, tomo I
por Cavroé e gravada por António hou em parceria com Bordalo Pin- [sic.], n.º II, Segunda Série (1848),
Manuel da Fonseca. heiro no Panorama e na Ilustração p. 17.
17
Jornal de Bellas-Artes ou Mné- Luso-Brasileira. 38
Jornal das Bellas-Artes, tomo I, n.º
mosine Lusitana. Redacção Patrió- 24
O título deve ter sido desenhado VI (1844), pp. 87-88.
tica, n.º I, Segundo Volume (1817), por Manuel Maria Bordalo Pinheiro, 39
Jornal das Bellas-Artes, tomo I, n.º
pp. 374-378. As duas máquinas que, como já referimos, era um dos III (Dez. 1843), pp. 43-44.
foram inventadas por Mr. T. Rustall editores do jornal e um incansável 40
Ibid., p. 44.
de Purbrockheath, perto de Ports- gravador e ilustrador em vários jor- 41
Jornal das Bellas-Artes, tomo I, n.º
mouth, tendo recebido da Socie- nais e revistas. IV (1844), pp. 55-66.
dade das Artes um prémio de 40 25
O Jornal das Bellas-Artes tem, na 42
Não deixa de ser interessante a
guinéus. (p. 374). sua 1.ª série, 94 páginas (de 1 a 94) coincidência de se revelar o qua-
18
Jornal das Bellas-Artes, tomo I, n.º e, na segunda, 24 (da p. 1 à 24). dro de António Manuel da Fonseca,
I (Out. 1943), Introdução, pp. 1-2. 26
Jornal das Bellas-Artes, tomo I, n.º Eneias salvando seu pai Anquises
19
Ibid., p. final deste número. I (Out. 1943), Introdução, p. 2. do incêndio de Tróia (actualmente
20
A assinatura por 3 meses era 27
RACZYNSKI, Comte A. – Les Arts no Palácio Nacional de Mafra),
de 1.200 réis; seis meses, 2.160; en Portugal. Paris: Jules Renouard numa litografia hors-texte de Pedro
um ano, 4.200 réis; avulso, 440. et Cie, Libraires-Éditeurs, 1846 e Augusto Guglielmi (ca. 1837-1852),
Subscrevia-se na rua do Arco do Dictionnaire Historico-Artistique du e do seu filho, António Tomás,
Bandeira, n.º 59, 2.º andar. Era ven- Portugal. Paris: Jules Renouard et numa gravura linear não assinada,
dido na Rua Augusta, n.º 1, 120 C , Libraires-Éditeurs, 1847.
ie
mas que deve ser, com toda a cer-
e 195; Rua do Ouro, n.º 62 e 93; 28
Jornal das Bellas-Artes, tomo I, n.º teza, do mesmo Tomás da Fonseca.
Chiado, n.º 6; Calçada dos Paulis- II (Nov. 1943), pp. 20-27. Quanto ao relevo de Cerqueira, foi
tas, n.º 54; Rua da Esperança, n.º 29
Ibid., pp. 28-32. desenhado por Tomás da Anuncia-
150. Vendia-se no Porto (na Loja de 30
Jornal das Bellas-Artes, tomo I, n.º ção, supervisionado por António
Novaes) e em Coimbra (na Imprensa I (Out. 1943), p. final deste número. Manuel da Fonseca e gravado por
da Universidade). 31
Ibid., p. 10. António Tomás da Fonseca.
21
Jornal das Bellas-Artes, tomo I, n.º 32
Jornal das Bellas-Artes, tomo I, n.º 43
Jornal das Bellas-Artes, tomo I
I (Out. 1943), p. final deste número VI (1844), p. 83. Ambas as gravuras [sic.], n.º I, Segunda Série (1848),
22
Este último tomo surge no origi- não estão assinadas, mas devem ser p. 6. Neste mesmo número (p. 8),
nal como tomo I, mas poderá tra- da parceria Bordalo Pinheiro e Bap- escreve-se que o Álbum do Jornal
tar-se de uma gralha, pois deveria tista Coelho. só deveria incluir “[…] cousas novas,
ser tomo II. 33
Jornal das Bellas-Artes, tomo I, n.º ou interessantes, e estas consigna-
23
SOARES, Ernesto - Evolução da III (Dez. 1843), p. 43. das com simplicidade e concisão

– EDUARDO DUARTE 267


[…]”. menha revela ao longo do Jornal sor de arquitectura na Academia
44
Jornal das Bellas-Artes, tomo I de Bellas-Artes uma Descripção de Belas-Artes de Lisboa e autor de
[sic.], n.º III, Segunda Série (1848), dos quadros remetidos pelo grava- várias obras teóricas.
p. 24. dor francez João Mariette mandou a 59
Jornal de Bellas Artes, n.º 4, Abr.
45
Francisco de Assis Rodrigues el-rey D. João V. (1857), pp. 7-9, da autoria de J. P.
nunca é identificado no artigo. 54
Castilho, além de textos literários Fernandes Tomás Pipa
46
Jornal das Bellas-Artes, tomo I e poemas, escreve uma interessante 60
SOARES, Ernesto - Evolução da
[sic.], n.º III, Segunda Série (1848), p. Carta d’um poeta a um esculptor, Gravura de Madeira em Portugal.
24. O resto do artigo é um pouco Jornal de Bellas Artes, n.º 6, Jun. Séculos XV a XIX, pp. 54-55.
confuso nas referências à estética e (1857), pp. 2-5 e Fundação de um João Pedroso Gomes da Silva foi
à história da literatura portuguesa, Campo Elysio, Jornal de Bellas pintor, gravador e professor de gra-
italiana, francesa (da época de Luís Artes, n.º 8 (1858), pp. 14-16. Nestes vura na Escola de Belas-Artes de
– CONVOCARTE Nº.1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

XIV). dois textos, o escritor defendia um Lisboa. Colaborou em vários perió-


47
No primeiro ano (1857), foram cemitério em Lisboa dedicado aos dicos e fez o célebre álbum A Gra-
publicados 6 números (de Janeiro portugueses ilustres da literatura, vura de Madeira em Portugal (1872
a Junho) e, no segundo ano (1858), com esculturas. e 1876).
apenas dois números (sem indica- 55
Qual é o fim da Arte? Da autoria 61
A composição do n.º 1, que
ção dos meses). de F. Sequeira Barreto, Jornal de desenha a letra E, é formada por
48
Jornal de Bellas Artes, n.º 1, Jan. Bellas Artes, n.º 1, Jan. (1857), pp. um homem em cima de um burro,
(1857), pp. 1-3. José Eduardo de 7-8; n.º 2, Fev. (1857), pp. 8-10; n.º estando por baixo uma figura
Magalhães Coutinho foi director e 4, Abr. (1857), pp. 12-13. de animal fantástico e, do lado
lente da Escola Médico-Cirúrgica 56
Surgiram as biografias artísticas esquerdo, figuras femininas a pinta-
de Lisboa, primeiro médico da Real de João Pedro Monteiro (1823/26- rem uma grande tela; está assinada
Câmara, obstetra, director da Real 1853), Jornal de Bellas Artes, n.º Colaço, devendo ser José Daniel
Biblioteca da Ajuda, membro do 2, Fev. (1857), pp. 5-6 e de Luís Colaço, pai do pintor e azule-
Conselho Superior de Instrução Canina, Jornal de Bellas Artes, n.º jista Jorge Colaço (1868-1942). O
Pública e deputado, entre outros 3, Mar. (1857), pp. 13-14, ambas de mesmo José Daniel Colaço escreve
cargos da maior relevância. Pelo Joaquim António Marques. a Viagem de sua majestade el-rei D.
texto de apresentação, assinado, 57
Jornal de Bellas Artes, n.º 1, Jan. Fernando a Tanger, Jornal de Bel-
Magalhães Coutinho deverá ter (1857), pp. 8-9; n.º 2, Fev. (1857), p. las Artes, n.º 5, Mai. (1857), pp. 1-2;
sido um dos directores deste jornal. 1; n.º 3, Mar. (1857), pp. 6-7; n.º 4, n.º 7 (1858), pp. 2-6; n.º 8 (1858),
49
Ibid., p. 1. Abr. (1857), pp. 1-4. pp. 1-4. Este texto está incompleto,
50
Ibid., p. 5. 58
Jornal de Bellas Artes, n.º 2, Fev. pois no último número está a indi-
51
O próprio Raczynski confessa que (1857), pp. 6-8; n.º 3, Mar. (1857), cação de que continuava.
teve para os seus livros sobre a arte pp. 1-3; n.º 4, Abr. (1857), pp. 4-6; 62
As pequenas figuras nuas de
em Portugal o precioso auxílio do n.º 5, Mai. (1857), pp. 2-3; n.º 6, Metrass surgem numa grande
visconde de Juromenha. Jun. (1857), pp. 5-7; n.º 7 (1858), composição, suspensas no
52
Jornal de Bellas Artes, n.º 1, Jan. pp. 11-13; n.º 8 (1858), pp. 10-14. arvoredo, formando um C, na
(1857), p. 5. José da Costa Sequeira, sobrinho primeira página (n.º 4, Abr. 1857, p.
53
Ibid., p. 6. O visconde de Juro- de Domingos Sequeira, foi profes- 1) e é repetida numa outra página
(n.º 6, Jun. 1857, p. 5). Também em Portugal no Século XIX. 3.ª ed.
merece destaque a composição Venda Nova: Bertrand Editora,
de Leda e o Cisne (n.º 3, Mar. 1857, 1990, vol. I, p. 406.
p. 6) e outras duas figuras a voarem 68
Charles Blanc foi historiador, crí-
com um grande manto sobre o seu tico de arte, gravador e director da
corpo nu (n.º 1, Jan. 1857, p. 15), École des Beaux-Arts. Entre a sua
esta com um morcego a voar perto numerosa bibliografia destaca-se
de si, e a última figura do periódico o conhecido Grammaire des Arts
(n.º 8, 1858, p. 16). du Dessin. Architecture, sculpture,
De Metrass são ainda dois desen- peinture: jardins, gravure en pierres
hos de meninos: um a pintar uma fines, gravure en médailles... (1867)
grande tela (n.º 2, Fev. 1857, p. 10) que teve várias edições nos séculos
e outros dois a voar, um deles com XIX e XX (1870, 1876, 1880, 1881,
asas, segurando uma bandeira 1888, 1889, 1970, 1991, 2000 e
com a palavra: Fim (n.º 2, Fev. ainda traduções em inglês e castel-
1857, p. 16). hano). O livro teve grande projec-
Também Victor Bastos utilizou ção na Europa, surgindo ainda hoje,
pequenas figuras femininas, junto com alguma frequência, nos alfarra-
de densa vegetação na composi- bistas portugueses.
ção da primeira página do n.º 2,
Fev. 1857.
63
DUARTE, Eduardo - Desenho
romântico português. Cinco artistas
desenham em Sintra. Lisboa: [s.n.],
2006, vol. II, p. 550.
64
Jornal de Bellas Artes, n.º 4, Abr.
(1857), p. 1; n.º 6, Jun. (1857), p. 5.
65
O Jornal de Bellas-Artes ou Mné-
mosine Lusitana. Redacção Patrió-
tica tem 19 cm de altura; o Jornal
das Bellas-Artes, 28 cm e o Jornal
de Bellas-Artes, 31 cm, Vd. RAFAEL,
Gina Guedes ; SANTOS, Manuela
(Org. e Coord.) - Jornais e Revistas
Portuguesas do Século XIX. Lisboa:
Biblioteca Nacional, 2002, vol II, pp.
23, 28-29.
66
Jornal de Bellas Artes, n.º 8 (1858),
p. 9.
67
FRANÇA, José-Augusto - A Arte

– EDUARDO DUARTE 269


A Crítica de Arte Portuguesa na «Década
do Silêncio» (Estudos para a História da
Crítica de Arte na Década de 1950)1
por Fernando Rosa Dias

Professor Auxiliar de Ciências da Arte e do Património


na FBAUL, Investigador do CIEBA, Responsável do 3.ª
Ciclo das Ciências da Arte e coordenador do Mestrado
– CONVOCARTE Nº.1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

de Crítica, Curadoria e Teorias da Arte

En définissant quatre typologies de critiques d’art


– dérivations de journalisme; entre le journalisme
et le professionnalisme; critiques comme hommes «Uma das aflições da vida artística portuguesa
de lettres (poètes et écrivains); et artistes comme é a falta total de crítica de arte»
critiques d’art – on présentent un aperçu de cette
activité au Portugal, durant les années 1950, avec (José-Augusto França, 1958)
une attention à ses protagonistes plus importants.
Le texte cherche à comprendre le difficile passage Já apresentada como a «década do silên-
de cette pratique dans les années qui ont suivi cio»2, os anos de 1950 foram um particular
l’embarras du Régime dans le second après-guerre, parêntesis cultural, entre as cisões do anos
et à la croisée de différents mouvements artistiques, 40, do neorealismo e do surrealismo, os pri-
mais en vue de le lancement d’une revendication meiros projectos abstractos (emergentes da
de la professionnalisation de cette activité et la escola do Porto) e o modernismo do Secre-
formation d’une décennie d’or de la critique d’art au tariado de Propaganda Nacional (SPN, en-
Portugal – les 1960. tretanto SNI). A década estava na ressaca
da euforia ideológica do neorealismo, esta
vítima da censura, de perseguição e em
crise estética, mas ainda memória, do sur-
realismo, desde a pintura exposta por An-
tónio Pedro e António Dacosta em 1940 na
Casa Repe, ainda sem pretender fazer opo-
sição ao regime, mas já sendo outra coisa
em margem estética, até ao Grupo Surrea-
lista formado em 1948, e que expunha em
1949, para logo se cingir, mas assumindo
clara oposição ao regime. Mas sobrevivia sé-Augusto França, mas que daria melhor
ainda o modernismo do Secretariado (SPN) entendimento a uma prática de história da
de António Ferro, colocado em 1950 fora arte que o crítico também assumiria em plu-
da orientação do Secretariado que fora seu ral actividade. Sem autonomia especulativa
e que a si não saberia sobreviver, moder- nem densidade filosófica, a teoria da arte
nismo este que se descobria fora do tem- portuguesa escoava na crítica de arte e na
po e que hesitava numa renovação para a própria necessidade desta de ir definindo
qual não encontrava saída. À entrada, a dé- operativamente os seus conceitos. Mais do
cada de 50 sofreu a afirmação do surrealis- que orientadora e programática, a teoria
mo em polémicas que sabiam ser estéticas, era esclarecimento ou explicação pontual
primeiro, mas logo depois também ideo- de uma prática da crítica de arte, cuja efe-
lógicas; para culminar no sucesso da abs- meridade e contingência dificultava um de-
tracção, que afinal fora o seu deambular vido fundamento e sistematização.
e alicerçar de raízes em terreno difícil por
sementes que, vimos, já tinham sido lança- Para apresentar a crítica de arte da década e
das na década anterior. Esta passagem da os seus principais protagonistas, propomos
euforia ética para a estética foi outra pará- a seguinte organização, segundo tipologias
bola silenciosa da década, que se desviou dos «profissionais» da actividade:
da carga ideológica dos significados sociais
para ir ao encontro de uma dimensão esté- Derivações do jornalismo
tica que se refugiava no reconhecimento e
autonomia dos significantes. A assimilação Entre o jornalismo e a profissionalização
sócio-cultural da abstracção foi a sua prin-
cipal história. Tudo isso interessou, em inci- Críticos homens de letras (poetas e escritores)
dências e debates teórico-críticos, com alte-
rações ao longo e na transição das décadas Artistas como críticos de arte
de 1950 e 1960.
Se a necessidade e desejo de profissionali-
Acompanhando um processo de profis- zação se começava a proclamar, a verdade é
sionalização da crítica de arte que se de- que não havia mecanismos claros para essa
sejou na década de 1960, uma teoria que profissionalização do crítico de arte. Não
orientasse essa crítica tornava-se necessá- havendo cursos superiores de história da
ria. Contudo, ela foi-se construindo com a arte, mas apenas cadeiras curriculares dos
própria actividade crítica, com as fragilida- cursos de História (e só depois de reformas
des dai advindas, sem outro tratamento ou após a Revolução de Abril de 1974 surgem
aprofundamento teórico – com excepção as variantes de história da arte e os primei-
esforçadas por parte de Mário Dionísio num ros mestrados, anexados aos cursos da His-
processo de maturação do neo-realismo, de tória) ou da Escola Superior de Belas Artes
que já se abordou, ou mais tarde, da socio- (que tradicionalmente tinha uma compo-
logia da arte de matriz francasteliana em Jo- nentes teórica centrada na história da arte

– FERNANDO ROSA DIAS 271


que concorreria ainda com as da variante de ela própria legitimadora da actividade. Nes-
história da arte, quando criadas), as tipolo- ta crítica jornalística dominava a tendência
gias indicadas definem as possibilidades do para o ecletismo, que tendia a hesitar pe-
tempo. A Estética estava mais arredada, sem rante as manifestações mais arrojadas de
interessar os cursos de Filosofia até pratica- modernidade no panorama artístico por-
mente ao final do século, onde começou a tuguês, o que à distância histórica tende a
crescer substancialmente. Estas duas vias, apresentar um sentido abonatório na ava-
história da arte e/ou estética, que podiam liação dessas mesmas manifestações – ou a
servir de alicerces à formação do crítico de ler nalguma crítica negativa a certas linhas
arte, só começaria a ter possibilidade real modernistas o próprio arrojo destas (em
nos últimos decénios do século XX. escala portuguesa), num desentendimento
que, apesar de tudo, se procurava descul-
– CONVOCARTE Nº.1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

A desejada profissionalização só iria aconte- par nesse julgamento menos simpático.


cer com apoio na criação da AICA e após re-
solução de atávico impasse que retardara a A partir da boa formação humanística que
secção portuguesa. A essa importante reno- tinham muitos jornalistas, e por necessida-
vação da secção portuguesa da AICA dedi- des de preencher de modo regular as cróni-
caremos próximo ensaio. Mas, entre as pos- cas críticas de arte, houve vários que tive-
sibilidades da «década do silêncio» e essa ram uma actividade mais ou menos regular
renovação, definia-se, para a historia da cul- e mais ou menos especializada de crítico de
tura portuguesa, os tempos de ouro da críti- arte. Com alguma regularidade refiram-se
ca de arte em Portugal, que seria certamente os exemplos de Luís Teixeira (1904-1978)6
os 60 e, em parte, os 70. Nos anos 80 da con- no Diário de Notícias, Julião Quintinha
tinuidade era já mudança e crise – nascendo (1886-1968)7 na República ou, um pouco
aí o plano inclinado de uma crise geral na crí- mais tarde, Artur Portela Filho (n.1937) no
tica de arte que, como em quase todas as cri- Diário de Lisboa8.
ses, talvez seja uma redefinição que é desa-
fio de esclarecimento para o presente. Assumindo uma clara dimensão jornalística,
sublinhe-se Quirino Teixeira (n.1933) que se
Derivações do jornalismo dedicou a estudos e reportagens de divul-
gação artística, tanto em jornais portugueses
Para a prática de crítica de arte dos perió- como espanhóis9, centrando-se mais na re-
dicos dos anos de 1950, sobretudo nos portagem com entrevista, no encontro com
jornais, deu-se vasta continuidade e até artistas plásticos (embora não só?). Evitando
consistência à tradição dos «jornalistas de o julgamento do crítico de arte, acabava por
boa vontade»3 ou «repórteres de arte»4, tal dar mais justiça a uma actividade de jornalis-
como eram referidos em 1947 na constata- ta do que de crítico. Nos finais dos anos de
ção de uma ausência de profissionalismo5, 1950 colaborou sobretudo no Diário da Ma-
alguns firmados através de uma experiência nhã. Mais tarde dirigiu revistas de turismo e
assente numa regularidade que se tornava cultura (Gazeta de Artes e Artes, 1988).
Entre o jornalismo e a profissionalização tónio Enes) do SPN – com a obra Os Voro-
noffs da Democracia. Formado em Filologia
Fernando de Pamplona (1909-1999)10, no Românica, aprofundaria os seus estudos so-
Diário da Manhã e nos microfones da Emis- bre história e crítica de Arte, publicando vá-
sora Nacional dominou a década de 1950 rias obras, e nesse âmbito obtinha o Prémio
com grande regularidade, acompanhando José de Figueiredo pela Academia Nacional
quase todas as exposições de artes visuais das Belas-Artes, nos anos de 1943, 1954 e
de Lisboa, e depois de outra relevância esté- 1983., que lhe daria um decisivo prestígio
tico-ideológica própria ao regime que assu- nacional.
mira nos anos 40, desenvolvia um bem mais
tolerante e generoso ecletismo nos anos Fernando de Pamplona foi uma das vozes
50, numa crítica que acabava mais por di- que nos anos 40 defendeu uma via austera
vulgar que crivar. Depois de um rigor ideo- para uma modernidade do regime, dentro
lógico de separação de águas, caia numa de uma estilização, que tinha em Eduardo
que parecia aceitar. Apesar deste processo Malta um dos nomes que mais elogiava. E
de quase indiferenciação e de estar atento se houve uma teoria estética modernista e
às expressões modernas que se iam expon- fascista do Estado Novo de carácter reacio-
do, não deixou de lhe enjeitar os arrojos, so- nário e até contrária à de António Ferro, um
bretudo no âmbito da abstracção. Sendo o modernismo austero, de regresso à ordem
crítico regular do jornal mais porta-voz do e de recusa da vanguarda, essa teoria teve
Estado Novo, foi o crítico que mais reagiu nas páginas de Rumos da Arte Portuguesa
negativamente às Exposições Gerais – so- (1944) de Fernando de Pamplona, dos seus
bretudo as Segundas Gerais em 1947, que momentos mais marcantes11.
foi um ponto agudo de um gesto de recu-
sa por parte da actividade crítica de Fernan- Neste impressionante livro de estética fas-
do de Pamplona, tal como foi dos mais vio- cista, o crítico defendia o que devia ser a
lentos crítico das exposições surrealistas de arte moderna do seu tempo. Para tal atacava
1940 e 1949. Renitente na recepção de mo- o «desenraizamento» defendendo uma tra-
vimentos mais modernos, como o surrealis- dição nacional, na necessidade de comedir
mo e a abstracção, foi ao longo dos anos 50 as referências cosmopolitas com um equilí-
mais tolerante e, por isso, mais eclético. Ra- brio entre o que é internacional e nacional.
ramente falhava uma exposição de Lisboa No capítulo IV fazia uma defesa da tradição,
nas suas regulares crónicas. como soma de qualidades: «A arte dos de-
senraizados será, como a sua vida, um eter-
Seria professor liceal do 2.º Grupo (Portu- no recomeço, um aflitivo tatear na sombra»
guês e Francês) do Ensino Técnico, que man- (p.50), propondo no capítulo seguinte uma
teve em simultâneo com a actividade que articulação entre arte internacional e nacio-
vinha tendo desde a juventude, de escritor nal. No capítulo VI acusava os «novos bár-
e jornalista. Em 1934 ganhava o primeiro de baros», afirmando: «Não estamos perante
vários prémios de jornalismo (o Prémio An- mera manifestação de exotismo: achamo-

– FERNANDO ROSA DIAS 273


-nos em presença dum facto mil vezes mais te. Em 1954 começaria a lançar um Dicioná-
grave – a proliferação, em plena Europa, rio de Pintores e Escultores Portugueses ou
duma arte de orientais e de mulatos (…). que trabalharam em Portugal, que teria cinco
Apenas registamos a sua inferioridade ma- volumes e várias edições. A obra é vasta, em-
nifesta (salvo raras excepções) no domínio bora irregular na pertinência das entradas e
das artes plásticas e portanto a sua rotun- na informação – e hoje objecto interessante
da incompetência para, nesse particular, para encontrar informação de artistas mais
darem lições aos europeus, que, através de esquecidos pela historiografia da arte.
mais de dois milénios, plasmaram obras pri-
mas sem conta e sem par» (pp.70-71), Gustavo Matos Sequeira (1880-1962) teve
também actividade regular na crítica de ar-
No capítulo VII, atacava o anarquismo («é o tes plásticas em O Século. Além de jornalis-
– CONVOCARTE Nº.1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

fruto negro do individualismo»), do impro- ta, apresentou-se como historiador de arte


viso e do individualismo, com as suas facili- e autor dramático, sendo considerado uma
dades técnicas, a sua saída da ordem e dos autoridade sobre a história de Lisboa Não
evangelhos. Afirmava ainda que a pintura chegando a concluir formação superior uni-
abstracta era «por definição um absurdo». O versitária, frequentou a Escola Politécnica de
surrealismo, que se manifestara pouco antes Lisboa, o Instituto Industrial e o Curso Supe-
com a exposição de António Pedro e António rior de Letras12.
Dacosta em finais de 1940, também era um
dos movimentos mais visados: «(….): o cul- O desejo de profissionalização da crítica de
to fervoroso do actual: é hoje também o her- arte efectuava-se com uma base de história
deiro confesso do expressionismo, do “fau- da arte, ao qual a estrutura académica na-
vismo”. Do futurismo, do cubismo – de tôdas cional não dava grande especialidade, obri-
as monstruosas heresias de ontem, já tomba- gando a exercícios autodidáctas. Era apenas
das dos seus pedestais (…)… Se as analisar- uma aproximação ao que seria desenvolvido
mos uma a uma, não foi por necrofilia, mas nos finais da década de 1960, com o papel
por as vermos renascer (…) germes doentios de José-Augusto França e a renovação da
de outras manifestações inquietantes da ac- secção da AICA portuguesa.
tualidade, como o sobrealismo, directa con-
sequência das teorias expressionistas com- Artistas como críticos de arte
binadas com a psicanálise de Freud». Estas
teorias podem mesmo apresentar-se como Outra via de profissionalização, por forma-
um confronto ao próprio António Ferro, e ao ção que poderiam ter no âmbito das artes,
modo como este deixava certas vias estéti- por exemplo com a componente teórica de
cas integrarem as exposições de arte moder- história da arte que existia na Escola Supe-
na do SPN. Ao longo dos anos 50, sobretudo rior de Belas Artes (actual FBAUL), são os
na segunda metade, o crítico atenuava esta próprios artistas como críticos, que vinha en-
intransigência com os movimentos mais mo- contrando desde a década de 40 um impres-
dernos, mostrando cada vez mais abrangen- sionante crescimento.
Alguma actividade, por experiência prática visuais, que seria uma das mais relevantes
e proximidade de investigação das artes vi- dos anos de 1940 e até ao seu falecimento
suais, era efectuada por artistas que se viam em 1959. Desde os anos 20 foi apresentan-
como que «obrigados a desdobrar-se em do crónicas de crítica ou ensaios teóricos e
críticos»13 (o que levará a algum debate de históricos sobre arte portuguesa, em várias
carácter mais deontológico do que de com- revistas tais como Ilustração, Revista Portu-
petências nos anos 60), fornecendo um in- guesa, Seara Nova (anos 20), O Diabo (anos
diciamento profissional a explorar que, pelo 30) ou o Mundo Literário (anos 40). No iní-
menos, ultrapassava a mera e normalmente cio dos anos 40 publicava na revista Aven-
inócua boa vontade jornalística. Num meio tura um conjunto de artigos com o nome
cultural com pouca profissionalização da «Subsídios para a História da Arte Moderna
prática crítica esta poderia ser uma das vias em Portugal», que seria um dos primeiros
paradigmáticas de uma afirmação de com- trabalhos de sistematização da história da
petências – e esse entendimento seria uma arte moderna portuguesa. Até finais da dé-
das marcas dos anos de 1960. Assim, sur- cada de 50, teria uma marcante actividade
gia uma linha de artistas plásticos e arqui- de crítico de arte com as suas regulares «no-
tectos que praticavam a actividade crítica tas de arte» na revista Ocidente, passando
com a melhor formação possível de então depois a dedicar-se mais a uma actividade
em Portugal, assente nas escolas e prática de investigação histórica orientada em mo-
de Belas-Artes. Alguns nomes pertenciam nografias de artistas plásticos portugueses
a outras práticas artísticas, mas com algum dos séculos XIX e XX. Foi ainda director do
exercício, mais ou menos profissional, das Museu de Arte Contemporânea (do Chiado)
artes plásticas. Apenas uma questão ética, entre 1944 e 1959, no que se tem conside-
implicada no facto de artistas plásticos es- rado uma das melhores gestões artísticas
tarem a julgar outros artistas plásticos, per- da história deste Museu, enquanto de arte
turbava esta orientação – questão deontoló- contemporânea, e que só teria sido prejudi-
gica que se acendeu várias vezes, nos anos cado por limitações financeiras. Mas no per-
60, sendo de destacar a discussão em torno curso de Diogo de Macedo, a sua afirmação
e no seio do Júri do Prémio GM67 ou em como historiador e crítico de arte foi acom-
algumas opções dos críticos para as exposi- panhada pela desistência do escultor. Sig-
ções AICA-SNBA/72 e 74, sobretudo as de nificou, contudo, um primeiro sentido para
Rocha de Sousa. uma profissionalização da actividade de crí-
tico de arte.
Diogo de Macedo (1889-1959) foi um dos
primeiros e mais distintos casos de grande Dos contemporâneos de Diogo de Mace-
consideração de um artista que exerceria a do, refira-se ainda Leitão de Barros (1896-
prática crítica. Escultor de formação, activo 1967), pintor, fotógrafo e cineasta que teve
nos anos de 1920 e 1930, que iria abando- prática crítica em Ilustração, O Século, e
nando no desenvolvimento de numa activi- mais tarde colaborações em O Dia e Jor-
dade teórica de crítico e ensaísta de artes nal de Notícias14, ou Roberto Nobre (1903-

– FERNANDO ROSA DIAS 275


1969), inicialmente pintor, depois teórico e se total da sua produção artística em finais
crítico de cinema que mantinha interesse dos anos 40, que se foi reduzindo em finais
nas artes plásticas, com actividade crítica dos anos 40, para praticamente se perder
em O Primeiro de Janeiro e com colabora- na década seguinte, actividade que só reto-
ções em O Comércio do Porto. Ligeiramen- maria em finais da década de 1970. O seu
te posterior, indique-se ainda o pintor José discurso crítico era algo lacónico, com uma
Júlio (1916-1963), que teria efémera activi- tendência quase aforística, parecendo que-
dade de crítico em «crónica de exposições» rer concentrar a expressão certeira relativa
no periódico Ler, reduzida na relativamente à exposição ou autor em causa, ou sobre a
curta duração do semanário (1953-1954). própria arte, numa acuidade que foi elogia-
da por amigos que partilhavam com ele a
O pintor António Dacosta, herói da aven- visita de exposições, como José-Augusto
– CONVOCARTE Nº.1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

tura surrealista de 1940 na Casa Repe com França, Júlio Pomar ou Fernando Azevedo.
António Pedro, após colaboração com tex-
tos e ilustrações nos periódicos Acção, Va- Por razões de doutrina estético-ideológica,
riante e Panorama (nesta faria alguma crítica sobretudo após a saída do regime no se-
de arte), teria nas páginas do Diário Popu- gundo pós-Guerra, alguns artistas plásticos
lar o seu primeiro trabalho regular de críti- ligados ao neo-realismo, tiveram grande
co de arte15. A primeira crónica crítica sua necessidade de praticar a crítica, com orien-
publicada neste diário vespertino saia a 27 tações doutrinais próprias.
de janeiro de 1943; a 9 de abril de 1947
passou a efetuar crónicas a partir de Paris A actividade crítica e intervencionista do
(para onde partia como uma bolsa de um pintor Lima de Freitas (1927-1998) atra-
ano onde continuaria, ficando a morar em vessou décadas e periódicos, em vários
França o resto da vida); a última, para o Diá- com regularidade, tais como Átomo (des-
rio de Lisboa, será a 16 de Agosto de 1950 de 1951), Mundo Literário (1952, neste caso
mais pontual), Vértice (desde 1953), Diá-
Começaria depois a colaborar no jornal bra- rio Popular (cerca de 1972), Artes Plásticas
sileiro O Estado de São Paulo, com crónicas (1974) ou no suplemento Ao Km Zero (su-
culturais de Paris a partir de 1955 (a primei- plemento de Reconquista) (cerca de 1970),
ra crónica seria a 27 de novembro de 1955; além de colaborações dispersas em Seara
a última a 28 de novembro de 1980), fazen- Nova, Arquitectura, Portucale, Jornal de No-
do parte de um círculo de colaborações de tícias, Jornal Novo ou Século Ilustrado. Em
portugueses no jornal brasileiro que tinha finais dos anos 50, os seus textos seriam de
ainda os nomes dos amigos Adolfo Casais particular violência contra a abstracção, tor-
Monteiro, Novais Teixeira ou José-Augus- nando-o um dos mais activos críticos, em
to França. Esta longa prática de escrita de desejo de querela aberta, com esta via esté-
crónicas críticas (entre 1943-1980) sobre tica – que exactamente se vinha dificilmente
arte e cultura (no Diário Popular e n’O Esta- impondo ao longo da década.
do de São Paulo) levou à interrupção qua-
Assumindo-se como «um pintor que nunca xão teórica sobre o sentido da arte e das
acreditou na pintura pura», posicionando- suas práticas éticas e estéticas, que já an-
-se na «querela da forma e do conteúdo», tes trabalhava, mas agora com maior auto-
«contra a arte “abstracta”»16, Lima de Freitas nomia, como um ensaio paralelo de escla-
criticou e resistiu ao que chamou a falsa li- recimento e guia da sua própria prática. Na
berdade criadora dos puristas da forma e a fase neo-realista colaborou em vários perió-
sua «metafísica da forma», acusando a des- dicos, tais como A Tarde, no qual dirigiu a
confiança e o desprezo pelo tema que estes página cultural A Arte (1945), Mundo Lite-
viam como impuro17. Defendendo a profun- rário (1946), Seara Nova (a partir de 1946),
didade do tema, para lá da superficialidade Arquitectura Portuguesa (1952) ou Vértice
do motivo prévio, como «profusão inespe- (a partir de 1953). Por vezes os seus textos
rada de valores» «que surdamente coman- surgiam reproduzidos em periódicos do an-
dam a energia das formas»18, encontrava tigo Ultramar, como foi o caso de Itinerário
aí a «razão última da obra». Vendo na abs- de Lourenço Marques (1948).
tracção uma incomunicação vaidosa, onde
a forma se encerra na sua própria interio- Pertencendo já ao panorama cultural entre
ridade, defendia que «a arte» era antes «a as décadas de 1950 e seguintes, Mário de
formação de conteúdos» «emergindo em Oliveira (n.1916), arquitecto e pintor, teria
formas»19. A liberdade procurada pela mo- actividade regular como crítico, sobretudo
dernidade, que levou ao extremo da «liber- no Diário Popular (1952-1961), depois no
dade de não ter tema», revelou-se no se- Diário de Notícias (1965-1973) ou ainda em
gundo pós-Guerra de uma «extremidade O País (1978). Faria parte da secção portu-
patológica»20: «Os cultores do gratuito em guesa da AICA.
arte esquecem que a originalidade reside
na reestruturação dos temas, e não na cria- Fernando de Azevedo (1923-2002), pin-
ção ex nihilo, fora dos temas»21. Mais tarde, tor inicialmente ligado ao neo-realismo,
entre os anos 70 e 80, o pintor desenvolvi mas com uma obra desenvolvida no âmbi-
o simbolismo do tema, reencontrando-lhe to do surrealismo português (desde cerca
uma produndidade abstracta por assimila- de 1948) na altura em que iniciava também
ção de uma geometria sagrada, tendo para uma actividade de crítico de arte (desde
isso criado afinidades com teorias de An- cerca de 1947). Começou por exercer uma
tónio Quadros (Poeta), Gilbert Durand e o actividade de crítico e ensaísta em Unicór-
último Almada Negreiros. nio, Mundo Literário (1946-1947) e Horizon-
te, mas a sua intervenção mais regular foi ao
O pintor Júlio Pomar (n.1926) teve assinalá- longo das décadas de 1960 e seguintes, na
vel actividade crítica enquanto enquadrado colaboração com as revistas da FCG, Coló-
na estética neo-realista, depois enfraqueci- quio e Colóquio Artes. Além deste exercício
da com a crise desta orientação estética na crítico em periódicos, teve uma vasta cola-
segunda metade dos anos de 1950. Passa- boração em textos de apresentação para ca-
va então a centrar-se no texto como refle- tálogos de exposições em diferentes gale-

– FERNANDO ROSA DIAS 277


rias ou, sobretudo, da FCG e da SNBA. Dele actividade de crítico de arte – que, normal-
diria José-Augusto França em homenagem mente, acabava por se estender articulan-
póstuma: «(…) podia ser o melhor crítico do vários tipos de manifestações artísticas e
de arte da nossa geração, se quisesse sê-lo culturais na primeira metade do século XX.
em continuidade e profissão»22. E compara- Da experiência pontual de Fernando Pessoa
va ao caso de António Dacosta, ambos seus com uma crítica a uma exposição de Alma-
amigos, e ambos com essa «sensibilidade da Negreiros, à maior intervenção dos teóri-
inteligente e com inteligência sensível»23. cos e escritores presencistas25, ficou alguma
tradição atenta à arte moderna portuguesa
A actividade de Fernando Azevedo como com continuidades para a segunda metade
crítico, crescia na década de 60, com a sua do século.
proximidade com o Serviço de Exposições
– CONVOCARTE Nº.1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

da Fundação Calouste Gulbenkian e com a Nos anos 30 e 40, a geração presencista ti-
revista Colóquio, com notório prejuízo da nha tido uma marcante acção e teorização
sua produção artística. Ele envolve-se as- da actividade da crítica, centrada na literatu-
sim com as alterações e dinâmicas trazidas ra, mas com abordagens no âmbito do cine-
com os anos 60, em grande parte derivadas ma ou das artes plásticas, sobretudo, José
do aparecimento da FCG. Outros nomes de Régio, João Gaspar Simões e Casais Mon-
artistas plásticos com regular prática crítica teiro. Nas páginas da Presença, foi marcante
surgiam nesta década, dando continuidade a defesa da 1ª Exposição do Independen-
a esta linha, caso de Júlio Giraldes (n.1923), tes de 193026. João Gaspar Simões também
Rocha de Sousa ou Eurico Gonçalves, que deixaria um dos primeiros textos a debater
deixaremos para outro ensaio. a questão da abstracção, a propósito de ex-
posição de Vieira da Silva27.
Críticos homens de letras
(poetas e escritores) No início dos anos 40, o escritor Carlos
Queiroz (1907-1949)28 deixaria um ensaio
Outra linha tradicional na actividade de crí- de síntese da história da Arte Moderna por-
ticos de arte surgia da prática da escrita de tuguesa que fazia das primeiras resenhas
poetas, nomes da literatura, ou ainda por da história da arte moderna portuguesa29,
formação variada no domínio das ciências tal como no âmbito da Exposição de Ilus-
sociais e humanas que seguiam as origens tradores Modernos no SPN, faria uma breve
do século XVIII da actividade de crítico de história do desenho moderno30. Faria várias
arte, enquanto mediadores de uma prática crónicas de críticas de arte nos primeiros
especializada a um público anónimo e não tempos do Diário Popular ou, ao longo da
especializado (alguns não deixavam de se década na Panorama.
apresentar como jornalistas)24. Esta proxi-
midade nas ciências humanas flectia uma Mais recentemente, a aparecer em finais da
actividade que já não era propriamente de década de 1950, temos o exemplo de Fer-
jornalista, mas de cronista, como base da nando Guedes (n.1929)31, poeta e crítico
de arte activo entre as décadas de 1950 e com Claridade (prefaciado por Aquilino Ri-
1960. Tendo sido director do Tempo Pre- beiro), tendo depois escrito o romance An-
sente entre 1959 e 1962, e crítico regular jo-Demónio, os livros e novelas Filhos do
de artes plásticas do Diário da Manhã, teve Diabo (prémio Fialho de Almeida) e Filhos
ainda colaboração de carácter teórico-críti- de Deus. Teve representadas as peças Ca-
co em periódicos como Graal, Rumo, Pano- milo e Fanny e Má sorte. Foi um dos funda-
rama, Praça Nova, Diário Ilustrado ou Diário dores e directores do Centro Português de
de Notícias32 Interessado pela arte abstrac- Escritores e redactora de República e Diá-
ta, publicaria ensaios que defendiam a im- rio de Lisboa e chefe de redacção de Vida
portância dos artistas plásticos do Porto na Mundial, Vida Mundial Ilustrado. Mas sobre-
sua genealogia na arte portuguesa33. tudo, e durante muitos anos, foi redactora
no Diário de Notícias, onde exerceu funções
Também escritor, Alfredo Margarido de crítica de teatro, bailado e artes plásticas,
(n.1928)34 colaborou como crítico de ar- com especial actividade nas décadas de
tes plásticas na Seara Nova (1958), no 57 1960 e 1970.
(1958), no Diário Ilustrado (1959) dirigindo
o suplemento literário ou ainda no Diário de Sellés Paes (Joaquim Sellés Paes de Villas-
Notícias (1963). Teria maior relevância e re- -Boas), nascido em Madrid em 1913, foi di-
gularidade ao substituir Rui Mário Gonçal- rector-fundador da revista de Arqueologia
ves nas críticas de artes plásticas do Jornal Boletim do Grupo Alcaides de Faria, e publi-
de Artes e Letras, a partir de Dezembro de cou vários estudos de etnologia e de artes
1963, e até Outubro de 1964, altura em que plásticas. Desenvolveu uma regular activida-
partia como bolseiro da FCG, regressan- de de crítico de arte em vários periódicos,
do Fernando Pernes, primeiro crítico regu- entre finais da década de 1950 e inícios da
lar do periódico que tinha sido substituído seguinte, tais como O Debate, de orienta-
por Rui Mário Gonçalves também devido a ção monárquica, depois no Diário Ilustrado
uma bolsa35. Era habitual em Alfredo Mar- (desde 1956) e na segunda metade dos nú-
garido introduzir em cada crítica, uma pré- meros da terceira série da revista Panorama
via e autónoma reflexão teórica em torno (1959-1961). Numa defesa histórica da acti-
da prática crítica. Partindo da antropologia, vidade do SPN-SNI, procurava efectuar um
e estendendo-se à sociologia e à história, olhar crítico sobre a arte contemporânea
interessava-se por várias manifestações ar- portuguesa como sua continuadora, numa
tísticas além das artes plásticas, tais como a articulação que deixaria explícita em ensaio
literatura e o cinema. Faria carreira de do- de 1962: Da Arte Moderna em Portugal37.
cência Universitária em Paris.
Foi no cruzamento destas vias, onde o pro-
No Diário de Notícias foi bastante regular a fissionalismo se desejava mais ou menos
actividade de Manuela de Azevedo (M. A.) que, ao longo dos anos da década de 1960,
(n.1911)36, sobretudo na crítica de teatro e se definiu um grupo de críticos de arte
artes plásticas. Começou a carreira literária com vontade de assumir uma dimensão

– FERNANDO ROSA DIAS 279


profissional, especializada e independen- «Esta actualização nunca actualizada, essa
te, articuladas num esforço de mudanças inexequível contemporaneidade de nós
culturais38. Este grupo foi adquirindo uma mesmos (…) que se traduz, paradoxalmente
autoridade considerável ao longo da déca- por uma auto-actualização (…) é, afinal e só
da, sobretudo a partir do I Encontro de Crí- uma forma paroxística da nossa vivência cul-
ticos de Arte (1967) e de renovação da sec- tural em todos os demais domínios”
ção portuguesa da AICA (1968), procurando
ultrapassar uma dominante crítica amadora (Eduardo Lourenço, «Os círculos de Delau-
de jornalistas. Se alguns críticos dos anos nay ou o estatuto da nossa pintura», 1971).
de 1950 anunciavam uma maior profissio-
nalização e especialização, casos da acti- «Porque a crítica de arte é uma disciplina a
vidade que José-Augusto França já então criar, ou a recriar, (…)»
– CONVOCARTE Nº.1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

desenvolvia, de Ernesto de Sousa, ou ainda


de Fernando Guedes ou mesmo de Sélles (José-Augusto França, 1966)
Paes, seria na década seguinte que essa di-
mensão se acentuaria, no sentido em que o
crítico não efectuava apenas uma avaliação
da produção artística mas, inclusive, trazia
uma consciência orientadora e dinamizado-
ra – e a colaboração que se desenvolveria
com galerias e instituições seria disso mar-
ca. O papel de mudança estaria centrado
em José-Augusto França, Rui Mário Gonçal-
ves, Fernando Pernes ou Francisco Bronze,
alguns deles já começando a actuar nesta
década do silêncio, com a sua reforma da
secção da AICA, com dimensão programá-
tica, a que se poderia acrescentar um reno-
vado Ernesto de Sousa, que iria aparecer
com outra dinâmica crítica e doutrinal com
relevante actuação na década de 1970. Dis-
so falaremos noutro ensaio, que continuará
e fechará este, centrado nos anos 60. Seria
o fim da década do silêncio, que só a pas-
sagem dos anos 60 poderiam protagonizar,
da qual adiantámos alguns nomes também
aí bem activos – e a revolução de Abril de
1974 consagrar.
— Notas revista Turismo. Colaborou ainda 1 de Maio de 1909. Terminados
noutros jornais, como no Notícias, os estudos liceais, matriculou-se
1
Este texto é uma adaptação e de Lourenço Marques, e na Tribuna, na  1.ª Faculdade de Letras do
actualização de partes do nosso de Santos. Redactor da República, Porto, concluindo a licenciatura em
trabalho para a tese de douto- foi depois seu colaborador, desde Filologia Românica com a classifi-
ramento. Fernando Rosa Dias, A que se aposentou, em 1956». cação de 18 valores, a 27 de Julho
Nova-Figuração nas Artes Plásti- Dicionário Cronológico de Autores de 1931. Em 1956 participou no
cas em Portugal (1958-1975) (3 Portugueses, Vol.III, Lisboa, 1994, IV Congresso da União Nacional
volumes), Tese de Doutoramento in: http://www.iplb.pt/pls/diplb (Maio a Junho - Lisboa), na sec-
em Ciências da Arte, Lisboa, Uni- [endereço da Direcção Geral dos ção de Educação Cultura. Passados
versidade de Lisboa, Faculdade de Livros e das Bibliotecas] [consulta: três anos foi nomeado Inspector
Belas Artes, 2008. Novembro 2007] Superior do Ensino Técnico, tendo
2
Rui Mário Gonçalves, “A década 8
Embora convergindo para a crí- assumido, ainda, as funções de
do silêncio, 1951-1960”, in catálogo tica literária, teve uma interven- Professor Metodólogo do ensino
da exposição: Arte Portuguesa nos ção abrangente, aceitando quais- do Francês. Para biografia de Fer-
Anos 50, Beja: Biblioteca Nacio- quer querelas. Também escritor e nando de Pamplona, Pela escrita
nal de Beja, Outubro-Novembro ensaísta, no âmbito das artes plás- da peça Quando Salomão voltou
1992; Lisboa: Sociedade Nacional ticas seria o autor das edições Sala- foi agraciado, em 1960, com o Pré-
de Belas-Artes, Janeiro-Fevereiro zarismo e Artes Plásticas (1982) e mio do Teatro  do Secretariado
1993. Francisco Franco e o «zarquismo» Nacional de Informação; também
3
José-Augusto França, A Arte em (1997). Para biografia de Artur Por- foi eleito vogal e secretário da Aca-
Portugal no século XX (1911-1961), tela Filho, cf. Dicionário Cronoló- demia de Belas-Artes de Lisboa. cf.
Lisboa: Bertrand Editora, 1991, gico de Autores Portugueses, Vol.VI, Dicionário Cronológico de Autores
p.470. Lisboa, 1999, in: http://www.iplb. Portugueses, Vol.IV, Lisboa, 1997,
4
«Em Portugal somente existem pt/pls/diplb [endereço da Direcção in: http://www.iplb.pt/pls/diplb
repórteres de arte – pessoas que Geral dos Livros e das Bibliotecas] [endereço da Direcção Geral dos
vão às exposições fazer relatos, às [consulta: Novembro 2007] Livros e das Bibliotecas] [consulta:
vezes literários» (anónimo), Hori- 9
Quirino Teixeira entrevistou Sal- Novembro 2007]
zonte, nº14, 1ª quinzena Setembro vador Dali, Juan Miro, Modest 11
Fernando de Pamplona, Rumos
1947. Cuixart, Juan Tharrats, Villa-Ca- da Arte Portuguesa, Porto: Portuca-
5
Ibidem. sas, António Buero-Vallejo, Camilo lense Editora, 1944.
6
Para biografia de Quirino Teixeira, José Cela, Ana Maria Matute, Fer- 12
Cf. António Valdemar, «Matos
cf. Dicionário Cronológico de nando Sabino, Manuel Carga- Sequeira, um dos mais notáveis
Autores Portugueses, Vol.IV, Lis- leiro, Thomás de Melo (Tom), entre olisipógrafos do século XX» (26-8
boa, 1997, in: http://www.iplb.pt/ outros. Contudo, as mais impor- 2013), in http://www.publico.pt/
pls/diplb [endereço da Direcção tantes foram as efectuadas a Fer- opiniao/jornal/matos-sequei-
Geral dos Livros e das Bibliotecas] nando Namora, Jorge Amado e ra-um-dos-mais-notaveis-olisipo-
[consulta: Novembro 2007] Artur Bual que tiveram direito a edi- grafos-do-seculo-xx-25130098
7
«Em 1920 veio para Lisboa para ção em livro. Para biografia de Qui- 13
José-Augusto França, A Arte em
exercer o jornalismo profissio- rino Teixeira, cf. as indicadas nas Portugal no século XX (1911-1961),
nal, ingressando no Século. Tra- suas edições: Teorias e Práticas da Lisboa: Bertrand Editora, 1991,
balhou também no Diário Popu- Promoção Turística Portuguesa (ed. p.471.
lar, no Diário Liberal, em O Diabo, Autor, 1977); Em Outubro com Fer- 14
Para biografia mais alargada de
na Mala da Europa e nas Actuali- nando Namora (Flamingo, 1987). Leitão de Barros, cf. catálogo da
dades, sendo chefe de redacção 10
Filho de José César de Araújo cinemateca Leitão de Barros, Lis-
do Diário da Tarde, do Diário da Rangel e de Alda Luísa de Sá Pas- boa: Cinemateca Portuguesa, 1982,
Noite, do Jornal da Europa e da sos, nasceu na cidade do Porto a pp.14-18.

– FERNANDO ROSA DIAS 281


15
A produção crítica de António 25
Cf. Patrícia Esquível, Teoria e Crí- de Imprensa e Propaganda; Lis-
Dacosta teve publicação bastante tica da Arte em Portugal (1921- boa: Secretariado da Propaganda
completa, só com algumas faltas 1940), Lisboa: Edições Colibri, IHA, Nacional, nº2, 1942, pp.336-343.
na sua colaboração no Estado de Faculdade de Ciências Sociais e 31
Para biografia de Fernando Gue-
São Paulo, sobretudo na década Humanas, Universidade de Lisboa, des, cf. Dicionário Cronológico de
de 1960. Cf. António Dacosta, 2007 [edição de tese de mestrado Autores Portugueses, Vol.V, Lis-
Dacosta em Paris, Lisboa: Assírio de 1996]. Ou ainda: Fernando Paulo boa, 1998, in: http://www.iplb.pt/
& Alvim, 1999. Alguns fragmentos Rosa Dias, Ecos Expressionistas na pls/diplb [endereço da Direcção
de crónicas ausentes neste volume Pintura Portuguesa (1910-1940), (2 Geral dos Livros e das Bibliotecas]
encontram-se em «seçecção» no volumes), Dissertação de Mestrado, [consulta: Novembro 2007].
catálogo: António Dacosta, Lisboa: Lisboa, Universidade Nova de Lis- 32
Cf. Fernando Guedes, Pintura,
Fundação Calouste Gulbenkian. boa, Faculdade de Ciências Sociais Pintores, Etc., Lisboa: Edições Pano-
Centro de Arte Moderna, 23 Feve- e Humanas, Novembro 1997, rama, 1962.
reiro a 27 Março 1988; Porto: Fun- pp.123-137. 33
Cf. Fernando Guedes, Estudos
– CONVOCARTE Nº.1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

dação de Serralves. Casa de Serral- 26


Para estudo, cf. Fernando Rosa sobre artes plásticas. Os anos 40
ves 8 Abril a 8 de Maio 1988, s.p. Dias, Op.cit., pp.163-169. em Portugal e outros estudos, Lis-
16
Lima de Freitas; Pintura incó- 27
João Gaspar Simões. «Introdu- boa: Imprensa Nacional, Casa da
moda, Lisboa: Publicações Dom ção à Pintura Abstracta», in Diário Moeda, 1985.
Quixote, 1965, pp.11-13. de Lisboa, 17 Janeiro 1936. Para 34
Para biografia de Alfredo Mar-
17
Cf. Ibidem, p.17. estudo desta questão, cf. Patrícia garido, cf. Dicionário Cronológico
18
Cf. Lima de Freitas, “O tema na Esquível, Op.cit., pp.106-113. de Autores Portugueses, Vol.V, Lis-
pintura”, in Ibidem, pp.22-23. 28
Como teórico literário e poeta, boa, 1998, in: http://www.iplb.pt/
19
Ibidem, p.33. publicou em diversas revistas e pls/diplb [endereço da Direcção
20
Ibidem, p.37. folhas literárias, sendo uma figura Geral dos Livros e das Bibliotecas]
21
Ibidem, p.51. marcante nas páginas da Presença, [consulta: Novembro 2007].
22
José-Augusto França, in catálogo estendendo-se a periódicos como 35
Cf. “Os nossos críticos de artes
da exposição: Fernando Azevedo, Ocidente, Atlântico, Revista de Por- plásticas”, in Jornal de Letras e
Vila Nova de Cerveira: Museu da tugal,  Momento, Aventura, Vamos Artes, Lisboa, nº160, 21 Outubro
Bienal de Cerveira, 7 Junho a 5 Ler e a revista  Litoral  que foi diri- 1964, p.1.
Julho 2003; Pontevedra: Museu gida pelo próprio. De modo mais 36
Para biografia de Manuela de
de Pontevedra, 21 Novembro a esporádico colaborou nas revistas Azevedo, cf. Dicionário Cronoló-
21 Dezembro 2003; Lisboa: Socie- Contemporânea (1915-1926),  Ilus- gico de Autores Portugueses, Vol.
dade Nacional de Belas Artes, 10 tração  (1926-) e Sudoeste (1935) e IV, Lisboa, 1997, in: http://www.iplb.
Janeiro a 14 Fevereiro 2004. na revista de poesia Altura  (1945). pt/pls/diplb [endereço da Direcção
23
José-Augusto França, «Fernando Esteve ligado a aristocracia, Geral dos Livros e das Bibliotecas]
de Azevedo, crítico», in Fernando casando com sobrinha materna do [consulta: Novembro 2007].
de Azevedo – ensaio e crítica, Lis- 1.º  Visconde de Idanha  e sobrin- 37
Cf. Sellés Paes, Da Arte Moderna
boa: Sociedade Nacional de Belas ha-neta do 1.º Visconde de Vila- em Portugal. Elementos para a sua
Artes, Atgena, 2013. P.18. Boim, de quem teve cinco filhos. história Lisboa: Edições Panorama,
24
Cf. Francisco Calvo Serral- 29
Carlos Queiroz, «Da Arte Moderna 1962.
ler, “Orígenes y desarrollo de un em Portugal», in Variante, Lisboa, 38
Cf. Rui Mário Gonçalves, entre-
género: la crítica de arte”; “El Salón”, nº1, Primavera 1943, pp.21-23. vista in «Rui Mário Gonçalves, “Fal-
in Historia de las ideas estéticas 30
Carlos Queiroz, «Ilustradores ta-nos a presença de artistas qua-
y de las teorías artísticas contem- Modernos Portugueses – A pro- lificados — sejam portugueses ou
poráneas, volumen I (ed. Valeriano pósito de uma Exposição», Atlâ- estrangeiros”», in Jornal de Letras
Bozal), Madrid: Visor 1996, pp.148- ntico – Revista Luso-Brasileira, e Artes, Lisboa, nº156, 23 Setembro
178. Rio de Janeiro: Departamento 1964, pp.16, 12.
Exposição Artistas Portuguesas
e o Papel da Mulher na Arte
da Pós-Revolução
Por Cláudia Simenta
[em verificação]

In the beginning of 1977, after the portuguese


revolution of April 1974, the National Society
of Fine Arts had an opened event that brought «As mulheres são assim. Mais desembara-
together three exhibitions and the presentation çadas do que os homens, quando despem
of several other cultural manifestations. o casaco.
The event exclusively dedicated to women’s art
and to the discussion of what meant to be a Foi assim, agora também que as mulheres
woman in Portugal in that period was, in fact, resolveram comparecer em força e desem-
an historical testimony of the changes that were baraço na exposição que as Belas-Artes
being made and for which women played a inauguraram. Se se excluir a cave, dir-se-á
fundamental role in all levels. que todos os andares e seus espaços foram
The various documents consulted and the ocupados: pintura do Século XIX, saída dos
contacts made with some of the artists who arcazes do Museu de Arte Contemporânea,
participated both in the exhibition and in its livros de autoras portuguesas e outros acer-
organization, reveal a cultural event which, for its ca delas, as que foram «sexo fraco». Ora, pa-
historical-temporal framework, assumed a huge rando aqui nestas zonas, dir-se-á que, preci-
importance for its time, being something yet samente, é nessas do sexo que as mulheres
today with no parallel. arregaçam as mangas, deixando muito en-
vergonhadas as pintoras americanas, ino-
centes entretidas com histórias de ratinhos
ou pintura cerebral…»1

No início de 1977, no rescaldo de uma revo-


lução que prometia devolver ao povo por-
tuguês as suas liberdades, entre as quais
uma das de maior valor – a liberdade de ex-

– CLÁUDIA SIMENTA 283


pressão – teve lugar, na Sociedade Nacio-
nal de Belas Artes, uma exposição que reco-
nhecia e apresentava publicamente o valor
da mulher enquanto recurso ativo e parti-
cipante na construção do mundo artístico
português.

A exposição, realizada no âmbito de uma


outra proveniente dos Estados Unidos da
América e que cumpria um programa de iti-
nerância por Portugal – Liberation, 14 Artis-
tas Americanas – reunia obras de algumas
– CONVOCARTE Nº.1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

criadoras do mundo artístico português


que, sujeito por tanto tempo a constantes
avanços e recuos, dava agora sinais eviden-
Capa do catálogo | Janeiro – Fevereiro de 1977 tes de desentorpecimento, apresentando
Exposição realizada pela Sociedade Nacional de Belas
uma nova dinâmica e vitalidade.
Artes com o apoio da Secretaria de Estado da Cultura, da
Fundação Calouste Gulbenkian e do Museu Nacional de Arte
Contemporânea. A juntar a estas duas exposições teve lugar
uma outra, singela homenagem a artistas
portuguesas já desparecidas, realizada com
o apoio e colaboração do Museu Nacional
de Arte Contemporânea, que para ela ce-
deu obras do seu acervo.

Contudo, o evento realizado na Sociedade


Nacional de Belas Artes não se resumiu à
apresentação destas três exposições. Tra-
tou-se de um acontecimento muito mais
complexo, composto por um conjunto de
manifestações culturais exclusivamente de-
dicadas à criatividade no feminino e ao ser-
-se mulher e artista em Portugal, no final da
década de 70, no período da pós-revolu-
ção. Paralelamente à programação de ex-
posições foi elaborado um programa de
diferentes atividades culturais, onde se in-
cluíam a música, o teatro, a poesia e o deba-
ter do papel da mulher na arte e na socieda-
de contemporânea da época.
Pelo seu enquadramento histórico-tempo- mercado (que se irá retrair a partir de 1973),
ral, esta exposição assumiu grande impor- que se dá uma considerável proliferação
tância, revelando-se num acontecimento dos salões coletivos e se desenvolvem
cultural sem paralelo ainda hoje nos nossos novas formas radicais de criação artística,
dias. Achou-se, portanto, oportuno analisar em tudo distintas dos tradicionais conceitos
mais profundamente, na concretização des- de pintura e escultura.
te ensaio, o referido evento enquanto acon-
tecimento histórico e cultural, abordando Os anos 70 vêm, assim, dar um novo impul-
de forma pormenorizada as iniciativas que so ao já iniciado nos anos 60, no campo do
dele fizeram parte, assim como o seu im- experimentalismo português, dentro das
pacto na arte e na sociedade da época e as designadas novas disciplinas artísticas (per-
suas repercussões na arte dos nossos dias. formance, instalação, happenings, rituais, in-
tervenções, etc.) que se prolongam até mea-
PORTUGAL NOS ANOS 70 – A arte, a dos da década de 80 e dão origem a novas
liberdade e as mulheres formas de produção e expressão. No segui-
mento de um período definido por António
Os anos 70 são caracterizados, por João Pi- Rodrigues como «de rutura em relação à arte
nharanda, como «uma década contraditória portuguesa das décadas anteriores»3, nos
e complexa»2; uma década de consagração anos 70 procuram-se registos que fujam aos
de alguns dos artistas revelados nos anos suportes tradicionais e o estreitar da relação
60, de grande dinamismo no designado entre a arte e a vida, de que Lourdes Castro
“mercado da arte”, mas também de grande é exemplo com os seus lençóis de «sombras
crise no setor. O início da década de 70 ca- deitadas» (1969) e Ana Vieira, com as suas
racteriza-se fundamentalmente por um de- instalações em torno dos ambientes domés-
sinteresse institucional generalizado pela ticos, como é o caso da sua casa translúcida
arte que se traduz numa total ausência de mas impenetrável (Galeria Ogiva, 1972). É
políticas culturais (sendo apenas de notar também neste contexto que surge a poesia
alguns acontecimentos pontuais promovi- visual ou experimental, que explora precisa-
dos pelo governo), na inexistência de mu- mente os limites entre escrita e artes plásti-
seus de arte moderna, no fechamento do cas e que tem em Ana Hatherly uma das suas
País ao exterior que se reflete num desco- grandes representantes.
nhecimento do que se faz lá fora em termos
artísticos (nomeadamente EUA e países do Um dos acontecimentos mais marcantes
Leste) e pela sobreposição das entidades desta década e que, sem dúvida, provocou
privadas às competências e responsabilida- o corte radical em termos artísticos, foi a re-
des do Estado com o aparecimento de al- volução militar de abril de 1974. As ruturas
guns (esporádicos) apoios empresariais a provocadas por este acontecimento políti-
ações culturais por parte de entidades co- co vieram alterar o modo de encarar, per-
merciais e bancárias. É também nesta altura cecionar e perspetivar a arte. A Revolução
que se regista o surgimento de um pequeno de Abril e o fim da ditadura clarificaram al-

– CLÁUDIA SIMENTA 285


guns aspetos da realidade do País, nomea- É nos anos 70 que o pensamento feminista
damente, a existência de um mercado de começa a ganhar um posicionamento
arte pouco sustentado, com constantes si- mais central, sobretudo nos contextos
tuações de crescimento e retração, que no norte-americano e britânico, em parte
entender de Gonçalo Pena revelaria, assim, devido às profundas transformações
a sua «fragilidade […] após a revolução de político-sociais que se fazem sentir e que,
74, verificando-se então uma brusca quebra segundo Filipa Lowndes Vicente provocam
de confiança provocada pela imediata crise «o desenvolvimento de uma perspetiva
económica, provocando a falência de mui- feminista no interior das ciências sociais e
tas das galerias dos finais de 60»4. Por ou- humanas».6 Em Portugal, no entanto, estas
tro lado, estes acontecimentos contribuíram questões sentem-se de forma mais ténue. A
também para uma efetiva libertação em ter- situação política vivida, a mudança de regi-
– CONVOCARTE Nº.1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

mos artísticos, ao tornarem possível uma me, a tomada de consciência por parte da
maior abertura ao exterior, que teve como sociedade civil, a construção de uma demo-
consequência a descoberta (apesar de tar- cracia consolidada assente nas liberdades e
dia) da arte conceptual. direitos dos cidadãos e a própria redefini-
ção do ensino, poderão ter sido as causas
Outro aspeto que durante este período se mais diretas para a escassez de atenção de-
começa a destacar é o papel das mulheres dicada ao estudo e teorização das questões
na sociedade e, em particular, na produção do feminismo no meio académico.
artística. Durante um longo período, a arte
feita por mulheres ao contrário de inexis- Contudo, fora do contexto académico as
tente, foi uma “arte sem história”5, descon- mudanças vão-se fazendo sentir. Ernesto de
siderada pelos historiadores de arte tanto Sousa, por exemplo, surge como figura cen-
no contexto português como internacional. tral na compreensão daquilo que foi a dé-
Em Portugal, são escassos os casos de mu- cada de 70. Artista, cineasta, crítico de arte,
lheres-artistas consagradas no decurso de organizador de exposições, foi o responsá-
séculos e séculos de história de arte. Pou- vel pelo aparecimento de uma geração de
cos são os nomes que conseguimos referir; artistas com uma produção artística diferen-
vem-nos à memória Josefa de Óbidos (du- ciada e inovadora, a que a Alternativa Zero
rante o período Barroco), Maria Helena Viei- (1977) deu visibilidade e projeção e na qual
ra da Silva (após a II Guerra Mundial), Paula Clara Menéres participou com a sua Mulher-
Rego e Lourdes Castro (a partir de 60/70) -Terra-Vida (um torso feminino, inteiramente
e, mais recentemente, Joana Vasconcelos. moldado com relva plantada, criado especi-
É de notar, contudo, que apesar de escas- ficamente para a mostra).
sos, todos estas artistas são personagens in-
contornáveis no estudo da história de arte A agitação política, social e cultural senti-
portuguesa, assumindo-se como figuras de da no pós-25 de Abril ultrapassou todas
destaque tanto a nível nacional como inter- as previsões, havendo uma grande adesão
nacional. por parte dos criadores artísticos (operado-
res artísticos, conforme Ernesto de Sousa), cultural antifascista, e representantes reais
que se organizaram na apresentação de dos interesses de artistas e críticos de arte.
propostas e reformas. Entre 1974 e 1977
foi possível a integração de representantes É assim, neste contexto, e um pouco
de artistas e críticos de arte, nas comissões em reação à situação que se fazia sentir,
consultivas da Secretaria de Estado da Cul- que na segunda metade da década de
tura, com o intuito de contribuir, de forma 70 se generalizam as ações de carácter
ativa, na definição de uma política cultural coletivo, que resultam num conjunto muito
para o País. significativo de exposições8, happenings e
pinturas murais de carácter interventivo, de
A situação começa, contudo, a mudar a par- que é exemplo o painel realizado a 10 de
tir de 1977, sendo percetível uma diminui- Junho de 1974, pelo Movimento Democrá-
ção na liberdade de ação por parte dos in- tico de Artistas Plásticos, e que contou com
telectuais. Rui Mário Gonçalves refere-se a a participação de diversas mulheres artistas,
este período como «uma temporada em entre as quais Teresa Dias Coelho, Teresa
que a palavra «silenciamento» parece ser a Magalhães, Fátima Vaz, Ana Vieira, Helena
mais recorrível para descrever o que rodeou Almeida, Alice Jorge, Emília Nadal, Menez
oficialmente a vontade de expressão.»7 É e Maria Velez.
nesta altura que se mandam apagar pare-
des e desfazer comissões consultivas, en- Os anos 70 apresentam-se, assim, como um
tre outras ações representativas desta des- período conturbado, mas libertador, criati-
vitalização. É notório o real desinteresse vo e aberto a novas possibilidades, construí-
governamental pela cultura. A liberdade do com o apoio de uma sociedade artística
de expressão e o espírito crítico são os mo- ativa (e reativa perante a inércia e imprepa-
tores fundamentais para a manutenção de ração institucional) na qual as mulheres tive-
uma cultura viva, contudo podem gerar in- ram um papel fundamental.
cómodo aos decisores políticos. Assim, a
ausência de uma política cultural compe- ARTISTAS PORTUGUESAS – o início
tente manteve-se ao longo dos anos, dan- da revolução cultural no rescaldo da
do origem a ações contraditórias por par- Revolução de Abril
te dos sucessivos governos, incapazes de
definir programas coerentes para a cultura. Liberation – 14 Artistas Americanas.
As grandes iniciativas que foram ocorrendo
durante este conturbado período, foram or- Em Dezembro de 1976, no Centro de Arte
ganizadas por instituições culturais com um Contemporânea do Museu Nacional de
grande know-how cultural, como era o caso Soares dos Reis, teve lugar uma exposição,
da Sociedade Nacional de Belas Artes e proveniente dos Estados Unidos da Amé-
da Association Internationale des Critiques rica, denominada Liberation – 14 Artistas
d’Art, entre outras; instituições democrati- Americanas. Esta exposição, no seguimen-
camente organizadas, polos de resistência to do programa de itinerância que cumpria,

– CLÁUDIA SIMENTA 287


pela Europa, veio a Lisboa por intermédio
do Serviço de Imprensa e Cultura da Em-
baixada dos Estados Unidos da América,
que propôs à Sociedade Nacional de Belas-
-Artes a apresentação da mesma nos seus
salões, no âmbito do Ano Internacional da
Mulher. Constituída por 27 obras de pintu-
ra e escultura de 14 artistas americanas e
patente, na Sociedade Nacional de Belas
Artes, entre 25 de Janeiro e 15 de Feverei-
ro de 1977, esta exposição apresentava ao
público português a pluralidade de estilos
– CONVOCARTE Nº.1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

e expressões muito característicos da Arte


Americana dos anos 70, sendo a primeira
oportunidade para o público europeu ter
contacto com o «específico vetor evoluti-
vo»9 da produção artística norte-americana,
conforme refere Jane Livingston no desdo-
brável da exposição. Também Beth Coffelt
considerou ser esta uma exposição alta-
mente representativa da produção artística
da América de então, defendendo na con-
ferência realizada a 26 de Janeiro, na Socie-
dade Nacional de Belas Artes, a importância
crescente da mulher no meio artístico (só
possível através de uma luta intensa que foi
Desdobrável da exposição | 25 de Janeiro de 1977 forçada a travar contra a irrelevância a que
Exposição realizada na Sociedade Nacionalde Belas Artes,
foi votada ao longo de séculos e séculos de
promovida pelo Serviço de Imprensa e Cultura da Embaixada
dos Estados Unidos da América. história de arte) e classificando a arte mas-
culina como «menos interessante»10 do que
a das mulheres.

Nesta exposição foi possível observar


as obras de Jennifer Bartlett, Lynda Ben-
glis, Lee Bontecou, Elena Borstein, Manon
Cleary, Mary Corse, Rebecca Davenport,
Claudia Demonte, Janet Fish, Nancy Gra-
ves, Harriet Korman, Ann McCoy, Susan Weil
e Jacqueline Winsor.
Artistas Portuguesas. A Comissão Organizadora desta exposição,
constituída por Emília Nadal, Sílvia Chicó e
Paralelamente à inauguração da exposição Clara Menéres, representantes do núcleo fe-
Liberation – 14 Artistas Americanas teve lu- minino da direção da Sociedade Nacional
gar, entre 25 de janeiro e 20 de fevereiro de de Belas Artes à época, referir-se-ia à mes-
1977, a exposição Artistas Portuguesas que ma como uma mostra da «pluralidade de
Manuela de Azevedo descreve, no seu ar- tendências existentes na arte portuguesa […]
tigo publicado no Diário de Notícias de 27 na qual colaboraram nomes bem conhecidos
de janeiro de 1977, como um evento em do nosso meio artístico».12 Esta exposição,
«que as mulheres resolveram comparecer ainda no entender da sua Comissão Organi-
em força e desembaraço […] as que foram zadora, seria a primeira exposição de artis-
«sexo fraco» […] arregaçam as mangas, dei- tas portuguesas a focar a forte presença fe-
xando muito envergonhadas as pintoras minina numa área onde aparentemente teria
americanas, inocentes entretidas com histó- uma presença pouca expressiva, sendo ape-
rias de ratinhos ou pintura cerebral…»11. nas possível nomear raras e cirúrgicas exce-
ções do passado e do presente.
Realizada no âmbito das comemorações
do 75º aniversário da Sociedade Nacional Emília Nadal sempre recusou a existência
de Belas-Artes, e tendo o apoio da Secre- de quaisquer discriminações no seio do
taria de Estado da Cultura, da Fundação meio artístico tendo expressado isso mes-
Gulbenkian e do Museu Nacional de Arte mo em entrevista ao Diário de Notícias, a
Contemporânea, a exposição contou com 2 de fevereiro de 1977, referindo que a si-
a participação de Alice Gentil Martins, Alice tuação existente não justificava a neces-
Jorge, Amália Andrade, Ana Hatherly, Ana sidade de uma tomada de posição nesse
Vieira, Assunção Venâncio, Clara Estrela, campo. Apesar disso, houve sempre uma
Clara Menéres, Dorita Castel-Branco, Emília tendência natural de conotar a exposição
Nadal, Estreia, Fernanda Nobre, Graça Mo- com questões ligadas a reivindicações de
rais, Gracinda Candeias, Inês Guerreiro, Isa- carácter feminista. Este facto levou a que,
bel Laginhas, Ivone Balette, Kukas, Lourdes no início do processo de organização da
Leite, Manuela Correia de Sousa, Maria Ân- mesma, tivessem surgido determinadas
gela de Brito Pereira, Maria Antónia Azeve- polémicas com algumas das artistas, que
do, Maria Antónia Correia Martins Gomes, se recusavam a participar na exposição se
Maria Benamor, Maria do Carmo Galvão ela assumisse tais objetivos, uma vez que
Teles, Maria Flávia de Monsaraz, Maria Ga- não se sentiam atingidas por esse tipo de
briel, Maria Keil, Maria Rolão, Maria Velez, questões no seio do meio artístico. O obje-
Marília Viegas, Matilde Marçal, Menez, Pau- tivo da exposição passava, assim, por pro-
la Rego, Pissarro, Rosa Fazenda, Salette Ta- mover «um interessante estudo sobre as
vares, Sarah Afonso, Teresa Ferrand, Teresa constantes específicas da expressão artística
Magalhães e do Grupo Puzzle. da mulher e que, podendo tornar-se um
tema polémico, não só pela exposição em

– CLÁUDIA SIMENTA 289


si mas pelas manifestações culturais que
a acompanham e pelos ecos que poderia
levantar, ser uma excelente ocasião para
equacionar problemas e definir posições.
Enfim, chamar a atenção do grande público
para a real importância da mulher na vida
cultural portuguesa»13 e transmitir uma
«mensagem de intervenção crítica e de
vitalidade criadora.»

Sendo incontestável a sua ligação às ques-


tões do feminino, esta não pretendia, portan-
– CONVOCARTE Nº.1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

to, ser uma exposição feminista. E essa era


também a opinião de Salette Tavares que, no
prefácio do catálogo da exposição, defendia
a vontade de libertação «do complicado en-
redo da reivindicação», não obstante a juste-
za e as inegáveis conquistas obtidas por in-
termédio das ações e lutas feministas. Dizia
Salette Tavares que esta exposição pretendia
Emília Nadal | Decomposição V - A viagem antes de mais ser «uma boa oportunidade
123 x 90 cm | 1975
para uma confrontação entre mulheres. […]
a grande afirmação da criatividade […] frente
a frente as diversas maneiras de uma mulher
ser artista em Portugal […] a certeza de que
os caminhos são múltiplos e todos válidos.
Quando autênticos.»14

A seleção das obras para a exposição Artis-


tas Portuguesas foi realizada por concurso,
tendo sido escolhidas 73 de 171 obras apre-
sentadas15. No catálogo da exposição Sílvia
Chicó indica a constituição do Júri, referindo
fazerem parte do mesmo «dois membros da
Sociedade Nacional de Belas-Artes – Clara
Menéres e Emília Nadal – […] um membro
da Secção Portuguesa da Association
Internacionale des Critiques d’ Art – Salette
Tavares – e dois representantes dos artistas –
Rocha de Sousa e Sílvia Chicó.»16
A maioria das obras foram realizadas especi-
ficamente para a exposição, resultando num
conjunto muito expressivo da «multiplicidade
de tendências e técnicas de expressão
características da arte contemporânea» que
reunia obras desde a «pintura à criação de
ambientes, da colagem à escultura»17, tape-
çaria, joias, entre outras formas de produ-
ção artística. Para José Luís Porfírio, contudo,
a exposição apresentava uma seleção pou-
co rigorosa, assente em critérios debilmen-
te estruturados, apresentando tanto nomes Teresa Magalhães | Sem Título
com algum reconhecimento no meio artís- 1976 | Acrílico sobre tela | 140 x 200 cm
Fotografia cedida pela artista
tico da época, como nomes menos conhe-
cidos, selecionados por intermédio de um
concurso aberto a todas as mulheres-artis-
tas. Descreve-nos uma exposição organiza-
da ao jeito de «um inventário da situação
existente ao nível das atitudes dos objectos
contrapondo-se à selecção mais actualizada
do lado americano.»18

No ano seguinte à apresentação da exposi-


ção em Portugal, houve a possibilidade das
artistas participantes apresentarem o seu
trabalho no exterior, tenho sido organizada
uma itinerância da exposição a Paris, onde
esteve patente no Centre Culturel Portugais
da Fundação Calouste Gulbenkian.

Artistas Portuguesas já desaparecidas.

A terceira exposição organizada no âmbito


deste evento cultural teve, de acordo com
Maria de Lourdes Bártholo, o objetivo de
ser uma «singela homenagem»19 a artistas já
desaparecidas, da segunda metade do sé-
culo XIX e inícios do século XX, que conse-
guiram fazer prevalecer a sua obra no seio Rosa Fazenda | Freira
1975

– CLÁUDIA SIMENTA 291


de uma sociedade para qual a arte era uma
área unicamente reservada ao sexo mascu-
lino, assumindo por isso a designação de
“pioneiras”.

A exposição esteve patente de 25 de janei-


ro a 20 de fevereiro de 1977, na Socieda-
de Nacional de Belas Artes e o conjunto de
artistas que integravam esta exposição era
constituído por Maria Augusta Bordalo Pi-
nheiro, Aurélia de Souza, Sofia de Souza,
Emília Santos Braga, Milly Possoz, Eduarda
– CONVOCARTE Nº.1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

Lapa, Estrela de Faria e Teresa Sousa.

A organização da exposição contou com o


forte contributo do Museu Nacional de Arte
Contemporânea, que muito gentilmente
cedeu todas as obras que integraram a ex-
posição e para a qual foi realizado um catá-
logo prefaciado pela diretora do museu na
altura, Maria de Lourdes Bártholo.

Atividades programadas no âmbito das


três exposições.

Paralelamente às exposições tiveram lu-


gar outras manifestações culturais de di-
ferentes tipologias, as quais, segundo Síl-
via Chicó20, pretendiam fazer o balanço da
produção artística feminina até aí e da que
se fazia em 1977, mostrando o que tinha
sido a intervenção da mulher, no campo
das artes e ao longo dos tempos, em Por-
tugal. Tinham o objetivo de discutir o pa-
Vernissage da exposição ARTISTES PORTUGAISES pel cultural da mulher na sociedade portu-
Paris, 28 de Março de 1977
guesa da época e geraram muita polémica
Arquivos Gulbenkian (PRS 04805)
«apesar de não se pretenderem como uma
iniciativa de carácter feminista. Não
podiam deixar de o ser: o próprio facto
de terem sido agrupadas obras apenas de
mulheres constituiu motivo de surpresa 5 de Fevereiro | 18.30 – Colóquio «A mu-
e interrogação para um público não lher e o bailado» | Armando Jorge e Isabel
habituado a intervenções semelhantes. Santa Rosa: o papel da mulher como baila-
Protestos houve também daqueles que rina ao longo dos tempos; aspetos do ser
[consideravam] que a mulher não [sofria] mulher e bailarina em Portugal.
na vida artística qualquer discriminação».21
6 de Fevereiro | 18.30 – Concerto | Gru-
De 24 de janeiro a 18 de fevereiro de 1977, po de Música Contemporânea de Lisboa:
foi possível assistir a diversas manifesta- interpretação de composições de Clotil-
ções artísticas entre as quais música, poe- de Rosa, Constança Capdeville e Maria de
sia, literatura e vídeo, distribuídas por uma Lourdes Martins (asseguradas pelo Grupo
programação diversificada que engloba- de Música Contemporânea de Lisboa), par-
va conferências, colóquios, concertos, re- tindo de improvisos gráficos realizados por
citais, projeção de filmes e debates, e nas artistas plásticos e pelo público.
quais participaram nomes como Eunice
Muñoz, Lurdes Norberto, Glicínia Quartin, 7 de Fevereiro | 18.30 – Concerto de vio-
Julieta Almeida Rodrigues, Maria Antónia loncelo e piano | Teresa Portugal Núncio e
Palla, Antónia de Sousa, entre outras. Jorge Moyano: interpretação de peças de
Bach, Franchoeur e Schumann.
A programação definida contemplava, en-
tão, as seguintes iniciativas: 8 de Fevereiro | 18.30 – Recital de piano
| Maria Teresa Paiva: interpretações de
24 de Janeiro | 9.30 - Conferência de im- obras de Carlos Seixas, Mozart, Schubert e
prensa: apresentação do evento e dos seus Chopin, acompanhadas de notas explicati-
objetivos, pela Comissão Organizadora. vas sobre os compositores e a sua época,
dadas pela solista Maria Teresa Paiva.
25 de Fevereiro | 21.00 – Abertura do even-
to e inauguração das exposições 9 de Fevereiro | 18.30 – Recital de poesia e
literatura | Eunice Muñoz, Glicínia Quartin
26 de Janeiro | 21.30 - Conferência «Mu- e Lurdes Norberto: apresentação de obras
lheres artistas» | Beth Coffelt: apresenta- poéticas de autoras portuguesas através
ção da exposição Liberation – 14 artistas dos tempos.
americanas e debate sobre a arte america-
na dos anos 70 feita por mulheres. 10 de Fevereiro | 21.00 – Recital de Canto
| Dulce Cabrita (voz) e Maestro Filipe de
28 de Janeiro | 21.30 – Conferência «Mu- Sousa (piano): interpretação de obras de
lher portuguesa, que mito que realidade?» Purcell, Pergolesi, Händel, Mozart, Alban
| Julieta Almeida Rodrigues: o papel da Berg e Fernando Lopes Graça, e dos poe-
mulher na sociedade contemporânea. tas Hebbel e Mombert.

– CLÁUDIA SIMENTA 293


11 de Fevereiro | 18.30 – Projeção do filme tudo, ela surge-nos «menos política, menos
experimental «Revolução» | Ana Hatherly ruidosa, mas subtil, infinitamente mais
e Alexandre Gonçalves fascinante […] É a própria personalidade da
arte das mulheres que começa a surgir: com
14, 16 e 18 de Fevereiro | 18.00 – Projeção a sua visão interior e as suas emoções mais
dos filmes «Nascer, viver e morrer», «Uma tranquilas.»22
Alzira como tantas outras», «Uma família
alentejana», «As atadeiras de Peniche», «O À semelhança do que acontecia nos Estados
caso Sogantal» e «Por uma coroa Sueca» Unidos da América, o evento cultural
da série «Nome de Mulher» | Maria Antónia realizado em 1977, na Sociedade Nacional
Palla e Antónia de Sousa de Belas Artes procurava dar a conhecer ao
grande público a arte feita por mulheres e
– CONVOCARTE Nº.1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

17 de Fevereiro | 21.30 – «A mulher e a cria- afirmar (ou confirmar) a sua presença, des-
tividade» | Maria Antónia Fiadeiro, Maria de sempre, no espaço artístico português;
Antónia Palla, Maria José Paixão, Salette mostrar que o silêncio a que foram votadas
Tavares e Teresa Ambrósio: o papel da mu- se deveu, um pouco no seguimento do re-
lher na arte e quais as razões do seu discre- ferido por Coffelt, ao facto de não terem
to aparecimento no seio do meio artístico. «acesso a uma educação que as preparasse
para isso.»23
Devido à programação diversificada organi-
zada em paralelo com as três exposições, o A exposição de 1977 revelava assim uma
evento realizado na Sociedade Nacional de «multiplicidade de tendências e técnicas
Belas Artes atingiu um nível de complexida- de expressão características da arte
de bastante maior, tornando-se num espa- contemporânea»24 fazendo deste evento
ço de discussão e reflexão sobre a condição uma ótima oportunidade de confronto dos
da mulher na sociedade portuguesa e so- contrastes existentes entre as diferentes
bre a sua produção e presença na vida artís- formas de expressão artística no feminino
tica em Portugal. (contrapondo a produção nacional com a
produção proveniente dos Estados Unidos
O IMPACTO DO EVENTO CULTURAL da América) e de debate de diversas ques-
ORGANIZADO NA S.N.B.A. – Ecos e tões ligadas ao ser-se mulher e artista, na
repercussões de 1977 aos dias de hoje década de 70, em Portugal. Da mesma for-
ma, e segundo José Luís Porfírio, foi ainda
Conforme referido pela crítica de arte ame- uma das mais interessantes tentativas de
ricana, Beth Coffelt, na conferência Mulheres contrariar a tendência instalada de realiza-
Artistas, realizada a 26 de janeiro na Socie- ção de «exposições individuais, bem como a
dade Nacional de Belas Artes, a arte no fe- organização de salões colectivos que [resul-
minino, enquanto movimento político e cul- tavam] invariavelmente numa confusão de
tural, nasceu com Gloria Steinem no início critérios e de propostas estéticas que mu-
da década de 70. No final da década, con- tuamente se [anulavam]».25
Como já foi referido, apesar de, de acordo questões referindo Virgínia Woolf em Um
com o defendido pela Comissão Organi- quarto para si própria, para quem a subtile-
zadora26, este evento não ter a intenção de za, descrição e acessibilidade que o uso do
ser uma ação com carácter feminista, dado papel e do lápis permitiam, era por si só jus-
as artistas participantes não sentirem a sua tificativa de uma preferência feminina por
condição feminina como motivo de discri- este meio de expressão em detrimento de
minação face aos seus pares masculinos, qualquer outro, em especial a pintura, que
sentindo-se acarinhadas e recebidas, pelo requeria uma disponibilidade de espaço e
público e pela crítica, com a mesma aber- tempo muitas vezes inacessíveis à mulher.30
tura que os demais artistas, a verdade é que
nos anos 70 (e à semelhança do que ainda Apesar de não vedada ao sexo feminino, a
hoje se verifica) as mulheres permaneciam cultura permaneceu durante muito tempo
uma minoria no seio do grupo dos artistas sob a “jurisdição” masculina. Segundo Fi-
mais cotados27. lipa Lowndes Vicente «ter nascido mulher
foi sempre um entrave ao ser artista: da
Para Maria Antónia Palla esta negação do falta de acesso ao ensino artístico ou às
feminismo por parte das mulheres, justifi- possibilidades de viajar, das condicionantes
cava-se pelo medo de perder o poder e/ sociais à profissionalização feminina, sem
ou privilégios que julgavam ter conquis- esquecer o peso das responsabilidades
tado, adotando um posicionamento qual familiares.»31 Dada a incontestável qualida-
«escravo que [adopta] a ideologia do se- de da produção artística feminina e na im-
nhor».28 Partindo deste pressuposto Palla possibilidade de controlar a presença das
lança a questão já anteriormente aflorada mulheres no meio artístico, houve sempre
por Coffelt: «[…] porque razão, na história uma tentativa de a minimizar sob o pretex-
de arte portuguesa, as pintoras são raras?»29 to das obrigações e responsabilidades para
Não tendo, por isso, a pretensão de ser uma com o lar e a família, forçando à mulher
ação feminista, o evento organizado veio apenas à única opção de se dedicar a uma
possibilitar o refletir sobre problemas que tipologia de produção: a doméstica. Numa
as artistas portuguesas insistiam em não época de suposta liberdade (pós-25 de
considerar, quer fosse por hábito ou inércia: Abril) e de direitos igualitários para todos
o posicionamento da sociedade face a cria- os cidadãos, o papel da mulher na socieda-
tividade no feminino. de continuava confinado às tarefas do lar,
sendo-lhe quase sempre vedado o acesso a
Seria a posição subalterna da mulher, na uma formação especializada e a um empre-
sociedade, limitação a uma expressividade go condigno e remunerado.
criativa plena? Como justificar a prolifera-
ção de mulheres no campo da literatura ex- Tendo a mulher como tema central, este foi,
tremamente contrastante com a sua exígua certamente, um evento de extrema relevân-
presença em áreas como a pintura ou a mú- cia no abrir de portas e no mudar de mentali-
sica? Maria Antónia Palla responde a estas dades, que possibilitaram à mulher um papel

– CLÁUDIA SIMENTA 295


um pouco mais ativo na sociedade de hoje e
onde se falou, acima de tudo, de arte e de in-
tervenção. Foi, assim, possível perceber que
a arte produzida por mulheres começava a
adquirir, ao contrário do que era defendido
pela Comissão Organizadora, uma especifi-
cidade, uma linguagem própria; que a mu-
lher tinha agora consciência de si própria e
das suas capacidades, manifestando-se es-
tas nos mais diversos campos da criativida-
de, nomeadamente na pintura, literatura, ci-
Ana Vieira - Santa Paz Doméstica, Domesticada?, 1977, nema, música, teatro, entre outros.
– CONVOCARTE Nº.1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

Dimensões variáveis | Coleção da autora.


Fonte: www.anavieira.com | Copyright © 2014 Ana Vieira
Apesar de não ter sido a primeira vez que se
realizou um evento deste tipo em Portugal32,
pela sua especificidade, escala, importância
e pelo questionamento e reflexão que levan-
tou à sua volta, este assumiu-se, em termos
históricos, como documento/testemunho
das mudanças que já se vinham a sentir des-
de a década de 60 e, simultaneamente, como
refere Maria Antónia Palla, como um «registo
da presença das mulheres portuguesas nes-
te país e neste mundo»33.

Sendo assim inegável a importância e rele-


vância do evento, a perceção que fica, no
entanto, é que o mesmo ficou aquém das
expetativas no que diz respeito ao atin-
gir o grande público. A sociedade da épo-
ca, sendo uma sociedade que usufruía de
uma liberdade recente, era ainda, no enten-
der de Ana Vieira, retraída e impreparada,
que se revia numa produção de cariz mais
popular, tradicionalista, decorativa, do que
numa produção inovadora, intelectualizada,
contemporânea e feita exclusivamente por
mulheres.34 Também para Clara Menéres
a arte era apenas objeto de apreciação de
um grupo extremamente restrito e fechado,
sendo que a generalidade das pessoas se
identificava com uma tipologia de objetos
de gosto mais popular.35

Apesar de ser esta a realidade da época, a


arte que se pôde ali apreciar era represen-
tativa de um afirmar da mulher enquanto
ser criador, de convicções fortes, lingua-
gem própria e grande irreverência expres-
siva e estética, abordando muitas vezes te-
máticas ligadas ao corpo (em todas as suas
vertentes, sem qualquer tipo de constrangi-
mentos ou restrições) e questões relaciona-
das com a casa e a família, que se tornam
muito evidentes nas obras de artistas como
Ana Vieira, Rosa Fazenda ou Clara Menéres.
Tomemos, por exemplo, o caso da instala-
ção Santa paz doméstica, domesticada? de
Ana Vieira que se trata de um claro protesto
não só às funções habitualmente atribuídas
às mulheres, como também à própria
passividade das mulheres perante a vida
que lhes era destinada.

O caminho iniciado pelas mulheres no de-


correr dos anos 60 e 70 e que veio a reper-
cutir-se no decorrer dos anos 80, invadindo
toda a cena internacional com o reconheci-
mento dos críticos e do mercado artístico,
com a contaminação das artes pela estéti-
ca feminina e com igual abertura à arte pro-
duzida no feminino, sem diferenciação de
género, veio igualmente a ter, no entender
de Emília Nadal36, repercussões no territó- Ana Vieira - Santa Paz Doméstica, Domesticada?, 1977,
Dimensões variáveis | Coleção da autora.
rio nacional apesar de forma extremamente Fonte: www.anavieira.com | Copyright © 2014 Ana Vieira
lenta; tão lenta que, ainda hoje, podemos
observar a existência de notórias discrepân-
cias entre o reconhecimento profissional a
que são votados os artistas mediante o gé-
nero, não obstante nos estabelecimentos

– CLÁUDIA SIMENTA 297


— Referências
de ensino superior artístico, o número de
mulheres inscritas ser ainda consideravel-
mente superior37. — Fortuna crítica

Assim, podemos concluir que, independen- PORFÍRIO, José Luís - Carta de Lis-
boa. Colóquio Artes. Lisboa: Fun-
temente da recetividade e entendimento
dação Calouste Gulbenkian, nº 31,
das verdadeiras intenções, da presente ex-
fevereiro de 1977, p. 64-65
posição, pelo público, este foi um evento in- (Biblioteca da Faculdade de Belas
tegrado num período que marcou o início Artes da Universidade de Lisboa/
de um difícil e lento processo de libertação COTA: PER)
de estereótipos e de reconhecimento da “A mulher como artista” na Socie-
dade de Belas-Artes. Diário de
mulher enquanto força motora da socieda-
– CONVOCARTE Nº.1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

Notícias, 25 de janeiro de 1977, p. 4


de e que antecipou uma temática que só vi-
(Biblioteca Nacional de Portugal/
ria ser abordada de forma mais sistemática COTA: F 5701)
(apesar de nem sempre de forma constante) A mulher como artista. Série de
décadas depois.38 Tratou-se de um evento manifestações culturais promovida
que acabou por se transformar numa opor- pela Sociedade Nacional de Belas-
Artes. Primeiro de Janeiro, 25 de
tunidade única de discussão da situação e
janeiro de 1977, p. 5
do papel da mulher na sociedade de então,
(Biblioteca Nacional de Portugal/
incentivando o diálogo e a reflexão entre ho- COTA: J 2044 G)
mens e mulheres. Um processo lento que, AZEVEDO, Manuela de - Mulheres
ainda hoje, se encontra em movimento e mostram aos homens quanto são
evolução e que tem vindo a sofrer, ao longo “desembaraçadas”. Diário de Notí-
cias, 27 de janeiro de 1977, p. 4
dos tempos, alguns avanços e recuos.
(Biblioteca Nacional de Portugal/
COTA: F 5701)
Duas exposições nas Belas-Artes.
Jornal de Notícias, 27 de janeiro
de 1977, p. 6
(Biblioteca Nacional de Portugal/
COTA: FP 179)
14 artistas americanas nas Belas-
Artes. Primeiro de Janeiro, 27 de
janeiro de 1977, p. 3
(Biblioteca Nacional de Portugal/
COTA: J 2044 G)
Belas-Artes promove manifesta-
ções culturais sobre o papel da
mulher. A Capital, 28 de janeiro de
1977, p.21
(Biblioteca Nacional de Portugal/
COTA: J 2860 V)
Na S.N.B.A. Mulher é tema de
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Emília Nadal em diálogo e a Nacional de Belas Artes, ed. lit.. –
ruptura: uma perspectiva da arte Exposição dos Artistas Portu- Op. Cit, julho de 1978, p. 28-29.
portuguesa nos anos sessenta. Lis- gueses. Diário de Notícias, 2 de 24
CHICÓ, Sílvia. In PORTUGAL.
boa: Lisboa 94 – Capital Europeia fevereiro de 1977, p. 13. Sociedade Nacional de Belas Artes,
da Cultura, Livros Horizonte, 1994 14
TAVARES, Salette. In PORTU- ed. lit.. – Op. Cit, julho de 1978, p. 1.
5
VICENTE, Filipa Lowndes – A Arte GAL. Sociedade Nacional de Belas 25
PORFÍRIO, José Luís – Op. Cit.,
sem história. Mulheres e cultura Artes, ed. lit.. - Artistas Portuguesas. fevereiro de 1977, p. 64-65.
artística (século XVI-XX). Lisboa: Janeiro/Fevereiro 1977. Tavares, 26
Refira-se, contudo, que no seio
Babel, 2012. Salette, introd. Lisboa: SNBA, 1977, da própria Comissão Organizadora
6
VICENTE, Filipa Lowndes – p. 5-6. esta questão não era pacífica,
História da Arte e feminismo: uma 15
Teresa Magalhães refere ter sido havendo entre os seus membros
reflexão sobre o caso português. uma das artistas participantes no algumas divergências de posicio-
Revista de História da Arte. Práticas inquérito realizado no decorrer namento no que concerne aos
da Teoria, nº 10, p. 211. da investigação para este ensaio reais objetivos do evento.
7
GONÇALVES, Rui Mário – Vontade (ver RODRIGUES, Claudia Simenta 27
Os anos 70 foram uma época
de Mudança. Cinco décadas de –  Questionário  |  Exposição “Artis- de grandes mudanças a diversos
artes plásticas. Lisboa: Caminho - tas Portuguesas”  – Teresa Magal- níveis, nomeadamente a nível inte-
Coleção Universitária, 2004, p. 126 hães. Lisboa, 2015 ) lectual e político o que, segundo
8
Alternativa Zero, Erotismo na 16
CHICÓ, Sílvia. In PORTUGAL. Teresa Magalhães, veio a permitir
Arte Moderna Portuguesa, Mito- Sociedade Nacional de Belas Artes, alguma autonomia e liberdade de
logias Locais, Fotografia na Arte ed. lit.. – Op. Cit, julho de 1978, p. 1. expressão às mulheres e «foi uma
Moderna, O Papel como Suporte 17
“A mulher como artista” na Socie- época em as mulheres aparece-
da Expressão são alguns exemplos dade de Belas-Artes. Diário de ram bastante, estando presentes
dessas exposições. Notícias, 25 de janeiro de 1977, p. em inúmeras manifestações, mas
9
LIVINGSTON, Jane. In Portugal. 4. a maior parte delas desistiu em
Sociedade Nacional de Belas Artes, 18
PORFÍRIO, José Luís – Carta de prosseguir. Não havia nenhumas
ed. lit.; PORTUGAL. Embaixada Lisboa. Colóquio Artes. Lisboa: condições que facilitassem esse
dos Estados Unidos, ed. lit.. – Libe- Fundação Calouste Gulbenkian, nº difícil e heroico percurso.» (in
ration – 14 Artistas Americanas. 31, fevereiro de 1977, p. 64-65. RODRIGUES, Claudia Simenta –
Livingston, Jane, introd.. Lisboa: 19
BÁRTHOLO, Maria de Lourdes. Questionário | Exposição “Artistas
S.N.B.A., 1977. In Portugal. Sociedade Nacional de Portuguesas” – Teresa Magalhães.
10
COFFELT, Beth – Mulheres Artis- Belas Artes, ed. lit. – Artistas Portu- Lisboa, 2015, p.2).
tas. In PORTUGAL. Sociedade guesas. Janeiro/Fevereiro 1977. 28
PALLA, Maria Antónia – Arte no
Nacional de Belas Artes, ed. lit. – Bártholo, Maria de Lourdes, introd.. “feminino”. As mulheres criam uma
Artistas Portuguesas. Janeiro/Feve- Lisboa: S.N.B.A., 1977, p. 3. arte própria? O Século Ilustrado, 4
reiro 1977. Chicó, Sílvia, introd.; 20
CHICÓ, Sílvia. In PORTUGAL. de fevereiro de 1977, p. 6-11.
Bártholo, Maria de Lourdes, apre- Sociedade Nacional de Belas Artes, 29
PALLA, Maria Antónia – Op. Cit., 4
sent.; Bandeira, Françoise, trad.; ed. lit.. – Op. Cit, julho de 1978, p. 1. de fevereiro de 1977, p. 6-11.
Fior, Robim, trad.. Lisboa: S.N.B.A., 21
CHICÓ, Sílvia. In PORTUGAL. 30
PALLA, Maria Antónia – Op. Cit., 4
julho de 1978, p. 28-29. Sociedade Nacional de Belas Artes, de fevereiro de 1977, p. 6-11.
11
AZEVEDO, Manuela de – Op. Cit., ed. lit.. – Op. Cit, julho de 1978, p. 1. 31
VICENTE, Filipa Lowndes – A arte
27 jan. 1977, p. 4. 22
COFFELT, Beth – Mulheres Artis- sem história: mulheres e cultura
12
NADAL, Emília; CHICÓ, Sílvia; tas. In PORTUGAL. Sociedade artística (séculos XVI-XX). Lisboa:
MENERES, Clara – Conferência de Nacional de Belas Artes, ed. lit.. – Babel, 2012.
imprensa. In PORTUGAL. Socie- Op. Cit, julho de 1978, p. 28-29. 32
Em 1947 teve também lugar na
dade Nacional de Belas Artes, ed. 23
COFFELT, Belt – Mulheres Artis- S.N.B.A. uma outra exposição, inti-
lit.. – Op. Cit, julho de 1978, p.28. tas. In PORTUGAL. Sociedade tulada Exposição das Mulheres

– CLÁUDIA SIMENTA 301


Escritoras de todo o mundo e orga- seu artigo História da arte e femi-
nizada pelo Conselho Nacional nismo: uma reflexão sobre o caso
das Mulheres Portuguesas que, português a existência, «nos últi-
segundo Manuela de Azevedo mos anos, [de] um claro desper-
(in AZEVEDO, Manuela – Op. Cit., tar crítico da história da arte por-
27 de janeiro de 1977, p. 4), teve tuguesa em relação a estes temas,
à sua frente Maria Lamas, tendo mesmo que, por vezes, ainda dis-
decorrido ainda no tempo em que perso e fragmentado em conferên-
a liberdade de expressão era uma cias e artigos escritos sob dife-
realidade longínqua. Esta exposi- rentes perspetivas, mas centrados
ção foi parcialmente reposta em sobretudo em estudos de caso». In
Março de 1990, pelo MDM, com o VICENTE, Filipa Lowndes – Op. Cit.,
apoio da Sociedade Nacional de p. 213.
Belas-Artes.
– CONVOCARTE Nº.1 | ESTUDOS DE HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA DE ARTE PORTUGUESA

Ao longo dos anos têm sido rea-


lizadas outras exposições exclusi-
vamente de mulheres e de arte no
feminino, mas sem o número de
manifestações culturais multidis-
ciplinares que estiveram associa-
das ao evento e que contribuíram
de forma determinante para o seu
sucesso.
33
PALLA, Maria Antónia – Op. Cit., 4
de fevereiro de 1977, p. 6-11.
34
RODRIGUES, Claudia Simenta –
Entrevista a Ana Vieira. Lisboa, 2015,
p.1.
35
Opinião emitida em conversa
informal realizada ao telefone a 6 de
junho de 2015.
36
NADAL, Emília – De Paula Rego a
Joana Vasconcelos. O Feminino Exas-
perado (resumo). Colóquio Interna-
cional “Olhares sobre a Mulher e o
Feminino no Centenário de Simone
Beauvoir”. Lisboa: Faculdade de
Ciências Humanas/Universidade
Católica Portuguesa, Outubro de
2008, p. 3.
37
Em 2014, dos 35.492 alunos matri-
culados no ensino superior, nas
áreas de Artes e Humanidades, 58%
eram mulheres. In PORDATA - Alu-
nos Matriculados do Ensino Superior
- Por área de educação e formação.
38
Filipa Lowndes Vicente refere no
S
egue-se um conjunto de exercícios de crítica de arte, de-
senvolvidos sobretudo na unidade curricular de Estudos
de Crítica de Arte I e II do Mestrado de Crítica, Curadoria
e Teorias da Arte. Considerando que o melhor modo de as-

Crítica de Exposições e Eventos Culturais


similar a prática da crítica de arte é, como em muitas coisas,
exercendo-a, esta parte da Convocarte consagra esse sentido
da palavra «exercício».

Por outro lado, considerando a rarefacção da crítica de arte


no seu tradicional espaço dos periódicos (jornais e revistas),
com uma deslocação parcial para a internet, em sites rara-
mente especializados, implicando um preocupante défice de
crítica no espaço público de recepção das questões artísticas
(deixando várias exposições, normalmente as que mais pre-
cisavam, sem qualquer reacção crítica), este pretende ser o
lançamento de um espaço que procura deixar publicada uma
amostra de crítica de exposições recentes. A crítica de arte,
nascida e desenvolvida nos periódicos desde o século XVIII,
acompanhada duma admissão resiliente por parte da Univer-
sidade, parece que se perde na primeira enquanto se começa
a admitir (e sobreviver) na segunda.

A escolha das exposições criticadas é da opção de cada autor.


Foi da responsabilidade dos professores e da coordenação o
acompanhamento através duma interlocução de tutoria, habi-
tual na Universidade, como um pequeno espaço de discussão
que implicou, em certos casos, alterações por parte dos au-
tores até às versões aqui publicadas. Se estas práticas críticas
nascem de mestrandos e doutorandos da FBAUL, o espaço
está aberto a colaborações exteriores que se queiram propor à
coordenação da Convocarte.

A Coordenação Geral

303
Fátima Mendonça –
Operando (Com) O Medo

FÁTIMA MENDONÇA – Exposição retrospetiva


Centro de Arte Manuel de Brito, Algés
26 Setembro 2014 – 15 Setembro 2015

A Cura – Operação ao cérebro


Galeria 111, Lisboa
15 Novembro – 31 Dezembro 2014
– CONVOCARTE Nº.1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS

por Claudia Simenta Rodrigues

«[O medo] acompanha-me a vida toda. […] aos poucos, ele instala-se e não o
consigo mandar embora. Tenho medo, tenho medo. […] Fujo do medo, mas é
ele que me faz pintar e ser quem sou da forma que sou.» - Fátima Mendonça
entrevistada em entrevista à 30 Dias|Oeiras.

Há precisamente 50 anos que Fátima Mendonça opera (com) o medo. Desde


sempre o sentiu. Sempre esteve presente de uma forma ou de outra. O medo
como base da construção humana, na sua mais extensa indefinição, enquanto
criação de uma realidade/fantasia infantil. Fátima sempre teve medo. Medo de
um todo indefinido, grandioso, castrador, visceral.

Foi nas Belas-Artes de Lisboa, através da pintura, que Fátima Mendonça encon-
trou forma de lidar com esse medo; um medo que, por todas as razões que lhe
são intrínsecas, é criador e criativo e que se permite ser transposto para a tela
em emaranhados difusos (e confusos) de linhas, redes, tricotados, contornos,
cromatismos vibrantes e palavras. Muitas palavras.

O universo de Fátima Mendonça desenvolve-se na confrontação entre o imagi-


nário da infância e a realidade da idade adulta. A sua obra é por isso invenção,
fantasia e ironia, denotando, na sua construção, uma forte ligação à casa e à vida
doméstica e o recurso a uma simbologia que lhe é muito própria e à qual recor-
re com frequência nas suas representações.
No Centro de Arte Manuel de Brito apresenta-se assim uma exposição come-
morativa dos 50 anos da artista, composta exclusivamente por obras da coleção
da instituição, que sendo uma coletânea extremamente relevante da sua obra,
permite-nos ter a perceção do que foi o seu percurso até hoje.

Através de séries como A casa do desarranjo, Eu tenho medo; lá, lá lá, lá, lá...,
Para te fazer não tem nada que saber, Assim... assim... assim... para gostares mais
de mim, Para Cegar o Medo, Casa-Carrossel, entre outras, é nos apresentada
uma evolução iconográfica em crescendo, cada vez mais exacerbada, que é re-
presentativa dos estados de alma da artista, mas que nos toma também a nós,
espectadores, e nos contrai sobre aquela que é a nossa própria realidade, ao
ponto de quase nos sentirmos implodir.

Subitamente, contudo, retornamos ao ponto de partida e apercebemo-nos


que estivemos sempre a caminhar em círculos, dando voltas e voltas num ema-
ranhado obsessivo de pensamentos, sentimentos e sensações, que constroem
uma narrativa (a narrativa da vida real/ilusória de Fátima Mendonça), de repre-
sentação simbólica muito própria, construída nos ambientes domésticos já an-
teriormente referidos. Nestes espaços encontramos meninas de corpos desen-
gonçados e frágeis, bolos e doces, coelhinhos, toureiras em lutas cruéis de
arena, jaulas com meninas-mulher de saltos altos e corpos dilacerados e feri-
dos; tudo elementos que habitam o universo construído de Fátima Mendonça.

«[…] o sentimento é sempre o mesmo […] O que me levou a pintar os primeiros


trabalhos a escuro que se vê no CAMB é o mesmo que me levou a pintar os
meus últimos trabalhos. É o mesmo núcleo. É como se fosse o mesmo cheiro. É
sempre o mesmo sentimento, sempre.» - entrevista à 30 Dias|Oeiras.

As obras presentes na exposição do CAMB são quase todas de grande dimen-


são, podendo ser feito o paralelo ao modo de construção do nosso próprio
pensamento: a sua dimensão resulta da justaposição de várias telas de menores
dimensões - fragmentos do pensamento - que só depois de unidos compõem o
todo que é o modo de pensar e sentir de Fátima Mendonça.

Numa das salas centrais surgem-nos quatro telas gigantescas, que ocupam todo
o espaço e o fecham sobre nós. Sentimo-nos invadidos, tomados pelo mesmo
medo que ao longo dos anos tem amedrontado a artista. Somos, assim, forço-
samente transportados para o seu universo e obrigados a ver o mundo pelos
seus olhos (ou forçados a ser alvo da observação dos inúmeros olhos presentes
nalguns dos seus trabalhos).

– CLÁUDIA SIMENTA RODRIGUES 305


Percorrendo as salas de exposição do CAMB, constatamos que cada obra não
se finaliza na sua última pincelada; esta dá o mote para a próxima obra que irá
nascer e assim se cria a narrativa que caracteriza o trabalho e o universo da ar-
tista. O seu trabalho é homogéneo; aqui tudo se inter-relaciona, tudo está co-
nectado. Apesar da aparente incoerência (para muitos loucura) que possa res-
saltar da sua obra, Fátima Mendonça é uma mulher extremamente coerente no
discurso que nos apresenta; na sua obra tudo bate certo, tudo encaixa. Não é
uma pessoa de ocultações; tudo o que pensa, tudo o que lhe trespassa o íntimo
é transposto para a tela.

«Defendo-me muito pouco, confesso que não sou uma pessoa de grandes
tapumes.» - entrevista à 30 Dias|Oeiras.
– CONVOCARTE Nº.1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS

Nos seus trabalhos a tónica não se coloca tanto ao nível da técnica ou do modo
de representação. Muitas vezes o desenho, de carácter recorrentemente infan-
til, extravasa os limites do suporte, e aquilo que nos é dado é apenas uma pe-
quena parcela do pensamento compulsivo da artista. O que é verdadeiramente
relevante é o grafar desse pensamento no suporte e a rapidez com que o mes-
mo é transposto para a tela; quase como se a artista sentisse uma necessidade
premente e constante de purga, de purificação do seu corpo de impurezas ou
matérias indesejáveis (o medo). Neste contexto, as palavras que se inscrevem
na tela resultam de uma escrita automática; são ladainhas, preces a que a artista
recorre para exorcizar esse medo.

A exposição do CAMB encontra-se, no entanto, incompleta. Para assistirmos ao


culminar de todo este processo, temos que forçosamente nos deslocar ao nú-
mero 113 do Campo Grande, à Galeria 111, espaço com a qual a Fátima Men-
donça mantém uma relação de grande proximidade deste que começou a ex-
por os seus trabalhos, no início dos anos 90.

Aqui somos convidados a assistir ao processo de “Operar o medo”. A exposição


A Cura – Operação ao cérebro, com trabalhos de menor dimensão, apresenta-
-nos a operação à cabeça de artista com o objetivo de acabar de vez com a pre-
sença deste medo irracional e extemporâneo.

Desta feita, o suporte utilizado é maioritariamente o papel, numa aparente su-


gestão a um conceber de um projeto de intervenção “médica” (se assim lhe po-
demos chamar) e não tanto a uma representação da operação em si; trata-se da
planificação da intervenção a realizar.
Aqui e ali, surge-nos uma ou outra tela, explanando de forma mais concisa a re-
ferida operação ao cérebro noticiada como a “Cura” da artista: «Procedimento
experimental de recurso! 1 – couro cabeludo afastado; 2 – osso craniano cortado;
3 – cérebro à vista – exposto; 4 – cérebro intervencionado – operado; 5 – voltara
a colocar a “tampa”; 6 – coser couro cabeludo; 7 – observar comportamento; 8
– Tirar da paciente o medo doentio.»

Somos então confrontados com uma série de representações de cabeças aber-


tas, por onde vemos sair os males que afetam a artista, na busca incessante de
uma cura para os seus medos. Numa das representações da intervenção é intro-
duzida, no cérebro, uma imagem de Nossa Senhora de Fátima, noutra são mãos
postas a rezar; tudo na derradeira tentativa de lidar de vez com este Medo, inva-
sor de mentes e castrador de sentimentos.

Acompanham as obras mensagens como: «Tentativa 207 - O medo – Possível


tratamento da Maria de Fátima», «Tirar os males. Tão amados.», «Para deitar o
medo cá para fora» e «obs.: Opinião para operação pouco favorável». Estas fun-
cionam como legendas, como descritores da obra e da intervenção que irá ser
realizada.

Nesta série há ainda uma preocupação estética; a de ocultar, após a interven-


ção, a “bolsa tricotada” que pende do crânio e incomoda a “doente”. Para tal a
artista sugere a criação de um “penteado moderno” com bolos a decorar, repor-
tando-nos a outras obras do passado.

No fim de tudo, feito o percurso e operado o mal, cabe-nos perguntar: e agora?


Que caminho poderá Fátima Mendonça seguir a partir daqui? Tudo dependerá
do sucesso (ou não) da operação realizada. Contudo, deveremos ter em mente
que do sucesso desta operação poderá provir o risco de extinção do motor cria-
tivo da obra artística de Fátima Mendonça - o próprio Medo.

– CLÁUDIA SIMENTA RODRIGUES 307


José de Guimarães no TMG
Exposição ‘Provas de Contacto’ do Stencil ao Digital:

Processos de Transferência da Imagem


Galeria de Arte do TMG, Teatro Municipal da Guarda
27 de Setembro – 31 de Dezembro 2014

por Joana Correia Saraiva


– CONVOCARTE Nº.1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS

A exposição ‘Provas de Contacto’ de José de Guimarães, inaugurada no pas-


sado dia 27 de Setembro na Galeria de Arte do TMG, Teatro Municipal da
Guarda, reflete uma vida artística repleta de viagens e vivências pelo globo,
com um caráter particular na composição de cada imagem, de cada obra.
José de Guimarães, pseudónimo eleito por José Maria Fernandes Marques,
em homenagem à cidade de onde é natural, Guimarães, possui um abastado
percurso artístico, com inúmeros prémios, nacionais e internacionais atribuí-
dos e obra presente nos vários continentes. Alguns dos prémios recebidos e
que merecem ser referidos, sem desprimor para os restantes, contudo estes
tendo sido os primeiros, marcaram o início de uma carreira atualmente con-
solidada, são o Prémio de Gravura no Salão de Arte Moderna da Cidade de
Luanda em 1968, Medalha de Bronze do Prix Europe de Peinture de la Ville
de Ostende em 1980. Com licenciatura em Engenharia, tendo-se também
inscrito posteriormente em Arquitetura na Escola Superior de Belas Artes
de Lisboa, foi nas artes plásticas que sobressaiu, unindo sobretudo a arte
aos estudos de etnografia africana. Com cooperação de Gil Teixeira Lopes
no desenho e de Teresa de Sousa na pintura, adquiriu o suporte necessário,
aliado claramente à sua própria aptidão para imaginar e criar, desenvolven-
do assim um código imagético único e distintivo de qualquer outra compo-
sição realizada pelos artistas seus contemporâneos. Com organização con-
junta entre o Teatro Municipal da Guarda e o CIAJG, Centro Internacional de
Arte José de Guimarães e com curadoria de Nuno Faria, curador responsá-
vel do CIAJG, a exposição apresenta técnicas de produção de imagem por
transferências, entre a gravura e o stencil, tão próprias do artista. Todo o con-
junto apresentado possui uma linha comum, condutora, a colocação de uma
frase, de um número, ou letras soltas, em cada peça, em todas as peças. Nas
imagens retratadas predominam as influências
africanas com interpretação de mulheres, como é
exemplo a série Negreiros, com a técnica mono-
típica, tinta de impressão aquosa e vidro moído
sobre papel. Num total de dezassete peças, esta
série representa figuras bidimensionais monocro-
máticas, despidas e de perfil. A linha condutora
referida é bem visível nesta série, onde as ima-
gens de números se sobrepõem às figuras huma-
nas representadas, num negativo cromático. Uma
outra série quebra inteiramente o padrão ritma-
do da série anterior, com composições coloridas
e recorrendo a uma aparente colagem de formas
articuladas entre si, representante de membros
humanos ou de temas de cariz político, transmi-
tindo um completo domínio do artista na prática José de Guimarães, Gioconda Negra (1975)

da gravura, lembrando algumas obras de Picasso.


Algumas das obras a destacar são sem dúvida a
Gioconda Negra, Mulher ao Espelho, o Grande Nu e o 1º Maio III, todos cria-
das entre 1973 e 1979. Todas elas realizadas com a técnica serigrafia. A série
seguinte é marcada por obras experimentais e de cronologia anterior, da dé-
cada de 60, e com a técnica de xilogravura, com é exemplo a peça Múmero8,
de 1968. Sobre cavaletes e protegidos com um painel de vidro, para evitar o
toque dos mais curiosos, estão dispostos inúmeros stencil, utilizados da rea-
lização de tantas destas obras agora aqui apresentadas, material de trabalho
que, ao longo dos anos, ao longo das décadas, acompanharam o artista, fi-
zeram dele e da sua obra o que ela representa hoje para um visitante, para
cada visitante, para a história da arte de uma país, este país.

– JOANA CORREIA SARAIVA 309


Víktor Ferrando
“Planet Ferrovia Sector IX Via Lusitânea”
Centro de Cultura Contemporânea de Castelo Branco
15 Novembro 2014 – 5 Abril 2015

por Mariana Salgueiro


– CONVOCARTE Nº.1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS

Depois da abertura do Centro de Cultura Contemporânea em Outubro de


2013, com a exposição “Arte Latino Americana”, que apresentou obras da Co-
leção Berardo, a exposição “Planet Ferrovia Sector IX Via Lusitânea” veio dar
continuidade ao programa do CCCCB. Esta nova exposição, comissariada por
Guida Maria Loureiro, veio apresentar várias instalações de Víktor Ferrando.

O artista valenciano teve um percurso eclético e sobretudo autodidata, porém,


nesta exposição, assume o seu interesse pelo futurismo italiano, começando
logo pelo texto que abre a exposição, o ponto 11 do Manifesto Técnico do Fu-
turismo (1912), escrito por Filippo Tommaso Marinetti.

Ainda antes de entrar no espaço do Centro de Cultura Contemporânea somos


cumprimentados por quatro grandes esculturas de material ferroviário reutilizado,
que nos elucidam sobre o tipo de material com que este artista trabalha. Embora
num primeiro momento tenha pensado que representavam peixes, as grandes es-
culturas são a reflecção de um imaginário ligado ao espaço. As esculturas-instala-
ções representam Neptuno, Vénus, Marte e Titã.

No interior, as cinco salas do primeiro piso são espaços amplos que albergam as
instalações que nos contam a primeira parte da história. Na primeira sala, a peça
“Marinetti Il Desinfectadore”, Ferrando introduz o mote futurista da narrativa e faz
uma homenagem ao Futurismo italiano. Com especial destaque para Marinetti,
personalizado na figura central, os percursores do futurismo são representados
pelas malas de viagem flutuantes. Contudo, esta afirmação de influências é revela-
da numa imagem depressiva, que recorda o que foi abandonado nos campos de
concentração nazis após a chegada dos Aliados. É uma partida para um novo lu-
gar, que não se sabe se é bom ou mau, deixando uma terra abandonada, solitária.
Na segunda sala, Ferrando cria uma instalação que tem como intenção dar
dimensão material ao Movimento Fluxus, em que normalmente é o artista o
próprio suporte da arte. Esta peça é descrita como um pedido de ajuda para
pôr fim à fome especialmente dirigido ao presidente dos EUA, Barack Oba-
ma. Contudo, esta intenção nem após a leitura da folha de sala se torna clara,
talvez porque a estética do artista é muito pessoal e é especialmente virada
para o seu próprio sentimento e não se parece preocupar em comunicar com
o público.

“DJ Lambreta” e “Simbiotic Interlock”, que ocupam a terceira e quarta salas,


respetivamente, fazem uso de alguns elementos comuns. As lambretas e o
carro são símbolos de uma tecnologia decadente que se alimenta do ser hu-
mano e que o esvazia de poder sobre si próprio. Em “DJ Lambreta” o mane-
quim decapitado é um ser humano autómato, que não funciona por si, e em
“Simbiotic Interlock” vemos como a tecnologia não funcionaria sem humanos,
mas que estes se continuam a deixar dominar e destruir dessa forma.

“Desolation” é a última peça do primeiro piso e termina a primeira parte da


história. Tendo em conta as peças anteriores, esta é minimalista, com elemen-
tos isolados e desolados, espalhados pelo chão. Os significados de cada peça
são descritos de forma complexa, mas a peça atinge o objetivo de passar uma
ideia de abandono e tristeza sem precisar de explicações rebuscadas.

A quinta sala apresenta um vídeo sobre o artista que se resume à passagem


de um conjunto de fotografias tiradas noutros espaços onde a exposição “Pla-
net Ferrovia Sector IX Via Lusitânea” foi apresentada. Esteticamente não é
muito relevante, nem introduz informação que revele magicamente os signi-
ficados escondidos das restantes peças da exposição, daí ser perfeitamente
dispensável.

Ferrando sugere com as últimas duas peças uma colonização de Marte, após
a destruição da Terra - a narrativa das primeiras peças. A estética torna-se mais
acessível nos últimos dois momentos, o que nos leva a perguntar se não de-
veriam ser, por isso, as primeiras peças a apresentar - é uma questão para a
curadoria.

A sexta sala mostra, assim, um conjunto de cinco esculturas inspiradas nos


satélites de Marte. A estética é semelhante à das peças exteriores, que re-
presentam planetas, mas é acompanhada por cabeças humanoides: crânios
transparentes, mostrando cérebros, e cara tapada com máscaras de gás: uma

– MARIANA SALGUEIRO 311


Humanidade desumanizada. A peça seguinte, uma estrutura que sustenta for-
mas de sapateiro sobre carris, é uma marcha de um exército ou tao somente
de um povo pobre à procura de melhores oportunidades sobre um novo ter-
reno, ainda por conhecer. A ideia de evasão da Terra ganha aqui uma atuali-
dade brutal, especialmente numa altura em que assistimos à destruição do
nosso próprio planeta. Fazemos mesmo um paralelo com outras expressões
deste sentimento de preocupação com o planeta, com filmes como “Interste-
llar” (2014) - atualmente nomeado para os Óscares - ou documentários como
“Cowspiracy” (2014).

Ao terminar a visita a palavra que fica, acima de tudo, é desolação. É um sen-


timento de vazio amargo de uma Humanidade expulsa da sua própria casa. A
– CONVOCARTE Nº.1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS

reutilização de materiais úteis, ou seja materiais com um outro fim que não o
estético-artístico, é um elemento que aumenta a sensação de abandono e de
desumanização presente em toda a exposição. Mesmo nos últimos momen-
tos da exposição - em que, segundo a narrativa, a Humanidade se expande,
chega mais longe e ocupa outros planetas - o sentimento de desumanização
ainda está presente: a humanidade não é mais humana, é metálica, vazia.

No exterior, a mensagem parece, contudo, mais otimista - à noite, brilhante


mesmo (as instalações têm leds que acendem à noite). Esta é uma chamada
de atenção para um Universo com muito por descobrir, muita luz para procu-
rar. É também interessante perceber que a exposição começa e termina nes-
te mesmo ponto, com as instalações exteriores, que representam planetas:
o eterno Universo, que já existia muito antes de existir a Terra e continuará a
existir muito depois da Humanidade desparecer.
Salette Tavares
Exposição “Salette Tavares: Poesia Espacial”
FCG-CAM – Galeria, Lisboa
17 Outubro 2014 (inauguração) – 25 janeiro 2015.

Por Margarida Eloy

Encontra-se presente na galeria de exposições temporárias do CAM da Gul-


benkian a exposição “Salette Tavares: poesia espacial”, com curadoria de Mar-
garida Brito Alves e Patrícia Rosas.

Salette Tavares (1922-1994), foi uma escritora Portuguesa nascida em Mo-


çambique, formada em Filosofia e Estética. Embora tenha produzido diversas
obras literárias e artísticas, ficou conhecida sobretudo pelo seu envolvimento
na poesia experimental dos anos 60. A sua obra cruzou a produção literária e
a prática artística, estendendo-se à poesia visual, à sua exploração tridimensio-
nal e à produção de objetos.

Trata-se de uma retrospetiva da carreira de Sallete Tavares e de um aspecto


muito presente na sua obra, a exploração da “dialética das formas”. Para esta
mostra foram reunidos trabalhos em múltiplos domínios, alguns deles inéditos
e outros reconstruídos para esta mostra.

A abordagem relativa à “Dialética das formas”, trata-se de uma exploração


do discurso e da linguagem enquanto forma física e espacial. Salette traba-
lha a poesia, não como linguagem escrita, mas sim como linguagem espa-
cial, tridimensional. Procura dar forma á poesia, tirando proveito da tipogra-
fia das palavras e da pontuação, criando ritmos esculturais que se espalham
pelo espaço expositivo.

A exposição divide-se em três salas, a primeira, com um corredor inicial onde


se observam textos de Salette nas paredes e três obras, um quadro com de-
senho e escrita, uma chapa de metal com letras marcadas que explora a tipo-
grafia da palavra Alquerubim, e no fundo do corredor uma peça escultórica,
um mobile de aço inox, onde se pode observar a junção de inúmeras letras do

– MARGARIDA ELOY 313


alfabeto, esta peça foi inspirada pelo poema “Ma-
quinin”, que deu nome à peça criada em 1963.

Ao entrar na segunda sala observamos uma diver-


sidade de objetos artísticos, desde desenho, escul-
tura, instalação e fotografia.

No centro da sala é possível observar uma mesa


com uma peça que pretende ilustrar a frase popu-
lar “O rato roeu a rolha do rei da Rússia”, tal como
esta, existem outras representações semelhantes,
como o cartaz tipográfico com o nome “O menino
– CONVOCARTE Nº.1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS

Ivo” de 1963.

Junto à parede encontra-se uma mesa cheia de


Maquinim, 1963-2010 [Réplica única de mobile em objetos escultóricos, de madeira, feitos pela artis-
aço inox. 40 x 40 x 200 cm.
Col. Tiago Aranda Vianna da Motta Brandão
ta. Embora não sejam, uma exploração direta da
palavra e do discurso, parecem-me suscitar a ideia
que estas obras são a projeção simples do signifi-
cado do seu titulo. Isto é, as figuras presentes na mesa, têm o titulo daquilo
que parecem representar, ao observar-mos uma figura de um cavalo, notamos
que o titulo dessa obra é a palavra cavalo. A autora pretende assim, a anulação
de uma dimensão simbólica e a presença do significado direto da palavra sob
o objeto representado.

Existe uma constante exploração da linguagem, que se bifurca. Salette explo-


ra dois tipos de abordagem face à linguagem. A primeira, é a linguagem en-
quanto forma, pelo uso dos elementos da palavra e da pontuação. Como se
observa na maioria das peças da exposição, e sobretudo na peça “Jarra pon-
tos e vírgulas” de 1959/63. O segundo tipo de abordagem face à linguagem,
é através do uso do suporte da linguagem para realçar a ausência dos seus
elementos, palavras e pontuação.

Até aqui, a autora explorou a linguagem enquanto forma, utilizando os ele-


mentos da escrita, nesta segunda abordagem foca-se na ausência destes ele-
mentos, pelo uso do silêncio. Em “livros efémeros” de 1979, podemos obser-
var dois livros feitos de seda onde não foi impresso nenhum texto. Os livros,
são conhecidos como suportes de linguagem, neste caso da linguagem escri-
ta, algo que foi certamente pensado pela artista. Salette, viu nos livros a po-
tencialidade da linguagem como discurso, e como parte integrante do discur-
so, o silêncio, elemento que embora seja fulcral, é muitas vezes esquecido na
linguagem. Os “Livros efémeros” são livros cujas páginas se mantiveram em
branco, onde nada foi impresso, e apenas se observam folhas vazias de carac-
teres. A autora, conseguiu com esta peça, dar uma abordagem da linguagem
enquanto forma e ao mesmo tempo enquanto ausência. Salette utiliza o silên-
cio como elemento que simboliza a ausência de forma, mas ao mesmo tempo
torna este elemento físico ao colocá-lo sobre o suporte do livro, o branco é
aqui a versão física do silêncio, é a sensação do nada e do vazio. Mas não de-
vemos esquecer que o silêncio é um elemento importante do discurso, que
não é exato, mas que é extremamente simbólico. Pode simbolizar diversas
intenções: desde a falta de conhecimento, à pausa de pensamento, e à absti-
nência consciente do discurso.

Ainda neste espaço, está presente uma montra, onde se encontram os es-
tudos para as obras desenvolvidas por Salette Tavares ao longo dos anos, e
alguns livros que inspiraram estas criações. Existe também uma mesa onde
podemos observar fotografias que parecem fazer parte da infância da artista.

Na terceira e última sala existe apenas um objecto, um mobile em cobre cro-


mado. Esta peça tem o nome de Bailia e é uma réplica da peça original de
1979, este mobile foi criado como uma representação tridimensional do poe-
ma “Bailia das avelaneiras” do trovador Aitas Nunes de Santiago. Ao ver a peça
com pormenor compreendemos que são as frases do poema que observa-
mos, e que através da iluminação de um único foco de luz, e da movimentação
própria do mobile, este poema ganha uma nova vida perante o espectador,
trata-se de uma forma inovadora de ler e sentir a poesia.

Esta exposição apresenta-se como uma retrospetiva do trabalho de Salette


Tavares, embora o que seja aqui trabalhado seja a tridimensionalidade da lin-
guagem escrita que ganha aqui uma nova vida e uma nova compreensão. En-
quanto o palavreado das obras literárias apresenta um discurso individual e
de certa forma egoísta, visto que que o leitor tem de chegar à história que ali
está, no seu meio especifico e que nenhuma intersecção física pode ter com
quem a lê. O discurso que Salette apresenta nas suas obras de linguagem fí-
sica e tridimensional permitem um dialogo com o espetador, devido á forma
como estas obras reagem com o espaço e o movimento, mas também porque
partilham a mesma condição física que o ser humano.

Embora as obras sejam de diferentes tipos, como cartazes, esculturas, instala-


ções, partilham a mesma noção de “Poesia espacial”, de linguagem tridimen-

– MARGARIDA ELOY 315


sional através da exploração da palavra como forma, esta partilha de conteú-
do concede à exposição alguma coerência.

Entende-se que ao ser uma exposição retrospetiva, possa existir um certo ca-
rácter biográfico na forma como as obras são apresentadas, a presença de
uma mesa com fotografias da autora acaba por se mostrar bastante acessória,
pois não está ligada à noção da poesia espacial, nem se liga organicamente
com as obras expostas, não enriquece o espólio da exposição.

A exposição mostra coerência temática que une a diversidade formal. A ilumi-


nação é difusa, e não parece ter em atenção a tridimensionalidade dos obje-
tos, tornando-os, à primeira vista, objetos planos e sem grande interesse es-
– CONVOCARTE Nº.1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS

cultórico. Esta percepção é alterada quando nos aproxima-mos das obras e


entendemos que as suas potencialidades visuais e escultóricas poderiam ser
exploradas pelo uso de outra iluminação, mais especializada, que permitisse
um maior destaque da obra face ao ambiente que a rodeia.

A ferramenta da luz poderia completar a exploração da linguagem enquanto


forma, apoiando a noção presente na obra de Salette Tavares.
A Galeria Virtual do Post-Screen
Festival 2014
FBAUL
Novembro 2014

Por Diogo Freitas da Costa

Em lugar algum.

O certame organizado pela secção de Ciberarte do Centro de Investigação e


Estudos Belas Artes (CIEBA) - Post-Screen Festival 2014 - apresenta-se como
a 1ª edição de um Festival Internacional de Arte, Novos Media e Ciberultu-
ras. Para o efeito, Ana Vicente e Helena Ferreira (CIEBA-FBAUL) conceberam
um programa que se desdobra num conjunto eventos de natureza diversa
– workshops, conferências e exposições – a decorrer simultaneamente na Fa-
culdade de Belas Artes de Lisboa durante o mês de Novembro. Embora que-
rendo aqui cingir-nos à vertente expositiva deste festival, estaríamos a omitir
um dos seus aspetos mais relevantes, e até a desvirtuar a própria experiên-
cia dos trabalhos reunidos, se não tomássemos nota da abrangência de um
festival que, a par de uma vincada aproximação dos meios académicos e
artístico claramente apostada na transdisciplinaridade e transnacionalidade
– reunindo investigadores e artistas de várias universidades nacionais e inter-
nacionais – deve ser entendido, antes de mais, como um evento integrado e
construído numa lógica de networking.

Confrontados com o conjunto de obras realizadas no âmbito de um festi-


val como este, explicitamente centrado na “questão da utilização de ecrãs e
o seu impacto no pensamento contemporâneo”, é importante começar por
ancorar os seus desígnios numa tradição mais abrangente, e assim evitar
deixarmo-nos naufragar no jargão tecnologista que inevitavelmente rodeia
a chamada “arte digital”, e cujo efeito mais perverso pode ser o de camuflar
ou confundir o potencial valor artístico da obra em questão. De resto, talvez
seja a esse efeito de fetichização que se possam atribuir as conotações ne-
gativas com que parte importante da crítica contemporânea tem encarado
a arte produzida no terreno dos meios digitais, como lamenta Josephine

– DIOGO FREITAS DA COSTA 317


Bosma (http://www.josephinebosma.com/web/
node/98), aludindo a autores como Bourriaud;
Foster; Jameson; Krauss; Virilio ou Rancière.

A consciência do ecrã enquanto dispositivo que


medeia a experiência estética retirada de um obje-
to artístico pode fazer-se remontar ao lendário epi-
sódio, segundo o qual Parrásio de Éfeso, no século
4aC., terá pintado uma cortina que levou o seu ri-
Fotograma de A Particular Nowhere, de Sterling
Crsipin val Zeuxis a querer afastá-la para ver o que escon-
dia, acabando por “descobrir” apenas o seu enga-
no. A noção de que o médium interfere ativamente
– CONVOCARTE Nº.1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS

na própria perceção do fenómeno artístico, e por inerência sobre a realidade


que aquele quis representar, não será exatamente um dado novo. Na história
das artes visuais encontramos inúmeros momentos em que a introdução de
dispositivos técnicos e tecnológicos vieram confirmar e atualizar esse dado. E
de facto, especificamente no que se refere à ideia de “ecrã”, é impossível não
pensar nas sucessivas abordagens ao plano pictórico - desde a “janela” renas-
centista à grelha modernista, para não falar, evidentemente, de toda essa re-
volução que a fotografia e o cinema vieram introduzir neste domínio. A esse
propósito, lembramos que em 2014 celebrou-se o quinquagésimo aniversário
da publicação do livro de Mashal Mcluhan, Understanding Media, obra que se
assumiu como marco inaugural do debate em torno da própria ideia de co-
municação numa era de mediatização, na qual o ecrã tem vindo a assumir um
papel cada vez mais preponderante. Os ecrãs de hoje trazem consigo a pro-
messa de envolvência, inteligência, interatividade; atributos com os quais se
pretende dar ao espetador um simulacro perfeito de realidade. Dito de outro
modo, os ecrãs da era digital enaltecem a possibilidade de uma vivência vir-
tual, omnipresente mas ao mesmo tempo ausente, como observa Paul Virilio,
informada mas ao mesmo tempo alienada, monitorizada mas ao mesmo tem-
po cega.

Nesse sentido, a opção dos curadores de “montar” a exposição numa galeria


virtual é inquestionavelmente uma forma eficaz de nos situar, enquanto espe-
tadores, frente ao tema do “ecrã”, configurando desde logo uma pista impor-
tante para a sua problematização numa época em que, quer se queira quer
não, os meios digitais estão irreversivelmente estabelecidos no panorama das
artes plásticas. A galeria virtual em que se alojam as obras dos autores incluí-
dos nesta coletiva, estabelece desde logo uma condição prévia, ligada à sub-
versão das coordenadas espaciais e temporais que convencionalmente deter-
minam a montagem e fruição de uma exposição num espaço físico, servindo
como dispositivo de ativação de todo o um repertório temático e conceptual.

Antes de mais, a galeria virtual deste Post-Screen Festival tem o efeito de tor-
nar o ecrã visível. Não será esta afirmação uma mera banalidade se pensar-
mos que um dos grandes objetivos da indústria da tecnológia áudio-visual,
tem sido justamente o de criar aparelhos que pelo seu desenho e atributos
técnicos permitam uma experiência em que o ecrã se torne cada vez mais
um elemento invisível, imperceptivel ao olho nu. A visibilidade ou invisibili-
dade do ecrã, torna-se patente em muitas das peças da exposição: Encontra-
mos trabalhos como Researching the Eichman trial (session nº 01), de Kineret
Lourie, ou Resolution Transformation de Laurus Edelbacher, que evidenciam
essa moldura visual mediante o recurso a múltiplas projeções ou a ecrãs di-
vididos; outros que fazem uma utilização de cariz cinematográfico, mais pró-
ximas do enquadramento, ou “janela” tradicional como All that is Solid Melts
into Data (Boaz Levin e Ryan Jeffery); e ainda outras assumindo a eliminação
da moldura, como no hipnótico God, the Devil in the Detail.

Mas talvez seja preciso voltar a recuar no tempo para encontrar aquela que na
minha opinião continua a ser uma chave mestra para compreender a extensão
das transformações que os desenvolvimentos tecnológicos introduziram na
arte feita no último século, e nas quais uma exposição como a que nos é trazi-
da pelo Post-screen Festival, está evidentemente implicada. Refiro-me ao texto
clássico de Walter Benjamin A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade
Técnica, escrito em 1936. Não por acaso o título já foi inclusivamente readap-
tado ao contexto dos meios digitais, e rebatizado como A Obra de Arte na Era
da Reprodução Digital (título de um ensaio de Douglas Davis, publicado na
revista digital Leonardo (Vol. 28, No. 5).

Muito resumidamente, o texto de Benjamin descreve os efeitos que os avan-


ços nos processos de reprodutibilidade tiveram sobre o conjunto de carac-
terísticas até então consideradas inerentes ao objeto artístico – a unicidade,
originalidade, proveniência - que garantiam alguns dos valores que lhe eram
essenciais - como seja a ideia de “autenticidade” - e que constituíam aquilo
a que Benjamin apelidou de “aura” da obra de arte. Benjamin conclui que as
novas transformações convergiam precisamente para a degradação dessa
aura graças, entre outras coisas, à sua capacidade de depreciar a “presença”
do original; pôr em causa a autoridade do objeto físico da obra; substituir
características de permanência e unicidade, pela transitoriedade e reprodu-
tibilidade. Benjamin vaticina ainda algumas das consequências – por vezes

– DIOGO FREITAS DA COSTA 319


paradoxais – desta verdadeira revolução para a arte, entre as quais a irrecon-
ciliável aproximação do espetador face aos novos modos que a arte tem de
se lhe apresentar e a alienação em que paralelamente o induz face a realida-
de que o rodeia.

Nessa perspetiva, é inquestionável que as obras de arte digital como as que


nos traz o post-screen festival, ainda estão a participar nesse movimento
de progressiva dessacralização da obra de arte de que os falava Benjamin,
agora elevada muito para além da questão da mera reprodutibilidade. Con-
frontados com obras como A Particular Nowhere de Sterling Crispin, que
reclamam para si a consumação dessa desintegração do objeto de arte, a
pergunta que se nos coloca hoje é a de saber até que ponto isso não implica
– CONVOCARTE Nº.1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS

necessariamente também a anulação do espetador?


«7 Mil Milhões de Outros»
Museu da Eletricidade, Lisboa
8 Novembro 2014 – 8 Fevereiro 2015

por Carina Fonseca

“Quem são, como vivem, o que sonham, o que têm a dizer os 7 mil milhões
de habitantes do planeta? O que os une e os separa? Uma exposição que é
o retrato vivo da humanidade dos nossos dias.”

Não é uma exposição de arte, contudo…

Não é propriamente uma exposição de obras de arte, mas artística na forma


de comunicar com o visitante. Há uma sensibilização humana através, não de
objetos, mas de histórias contadas na primeira pessoa.

Vagueando pelo espaço, como quem salta de sala para sala, de tema para
tema, saltamos de espaços como quem salta de realidades, percorrendo um
labirinto de memórias.

Não é uma exposição de arte, contudo…

A opção expositiva vai muito de encontro ao conceito da black box (caixa


preta, sala negra), uma referência à câmera obscura na fotografia, que trans-
porta quem lá está para uma realidade paralela envolta em mistério. Poderia
ter assumido o conceito literal de white cube (cubo branco, sala branca), uma
opção expositiva muito usada por curadores de arte contemporânea nos dias
de hoje. Contudo, o negro recria salas de cinema, tornando a imagem mais
definida e uma maior noção de proximidade. A atenção do observador vai se
focar numa imagem em movimento que sucessivamente vai alterando. Deixa
no ar uma sensação de solidão confortável onde não existe tempo nem espa-
ço – apenas o eu e o outro.

Não é uma exposição de arte, contudo…

– CARINA FONSECA 321


É um projeto desafiante, tanto na sua criação como na forma de o expor. Este
tipo de trabalho é difícil de recolher, preservar e exibir, e projetos em “tempo
real” tornam-se impraticáveis nos museus. Sou da mesma opinião de vários
outros estudiosos no seio da arte multimédia. Tal como Christiane Paul afirma
no seu livro: New media in the white cube and beyond: curatorial models for
digital art, as instituições não estão preparadas para mostrar este tipo de traba-
lhos. A grande maioria das instituições, nacionais e internacionais, simplesmen-
te não compreende esta forma artística, não incluem nas suas coleções este
tipo de arte e não a expõem, criando lacunas acentuadas na história da arte. O
Museu da Eletricidade consegue assim trazer para dentro das suas “quatro pa-
redes”, algo que para a maioria dos museus seria impraticável.
– CONVOCARTE Nº.1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS

Não é uma exposição de arte, contudo…

É uma exposição que questiona museus e galerias, na sua noção de história,


património e tempo. Estes são cada vez mais espaços de memória. Lidam
com coisas, objetos, materialidade e aparentemente permanecem resisten-
tes ás alterações de discurso que as novas tecnologias criaram.

A importância desta exposição pode não ser óbvia, contudo apresenta uma
profunda reflexão sobre a condição humana e a condição tecnológica cor-
rente. São estas tecnologias que levam á globalização e um conjunto de fe-
nómenos ligados a isso. É uma exposição que está a ser muito bem recebida
e tornou-se popular entre as novas gerações, pois um mundo sem jogos de
vídeo, efeitos especiais de computador, internet, telemoveis etc., é inconce-
bível.

Este tipo de projetos ganha relevância no mundo da arte, contudo, a sua au-
tenticidade e unicidade continua a ser questionada, recusando por vezes a
sua essência enquanto obra de arte. Alexandre Melo, em Sistema da arte con-
temporânea, chega a afirmar que o que é ou não considerado arte varía de
uma sociedade e de uma época para outra, no tempo e no espaço, havendo
mesmo épocas e sociedades em que tal noção não existe. E acrescenta, se um
objeto for consensualmente comentado, transacionado e exposto como se
fosse uma obra de arte, na sociedade e na situação onde se insere, ele é uma
obra de arte.

Põe em causa o conceito, por exemplo de Walter Benjamim, de autenticidade


enquanto aqui e agora da obra de arte – a sua existência única no lugar em
que se encontra.
Algo curioso neste tipo de trabalhos é a possibilidade de poder ser visto em
vários lugares ao mesmo tempo, porém, exibidos de forma diferente, de-
pendendo de uma variedade de fatores como a opção do produtor, o espa-
ço de exibição, ou mesmo as pessoas envolvidas na instalação.

Todo o projeto, com descrição e filmagens, está acessível na internet. Embo-


ra haja uma democratização aparente da arte, uma vez que há a tentativa de
chegar ao maior número possível de pessoas, esta premissa não é realista.
Embora seja uma exposição itinerante e desenvolvida na internet, não chega
a todos, embora tente! É no fundo uma produção com grande qualidade que
faz refletir, chorar e rir, que mexe com os sentidos e nos deixa indefesos pe-
rante a realidade.

Não é uma exposição de arte, contudo…

Aquilo que escolhemos mostrar hoje e preservar para as futuras gerações,


determinará o futuro. Esta exposição torna-se assim, como o próprio texto de
apresentação refere, “o retrato vivo da humanidade dos nossos dias”.

– CARINA FONSECA 323


Shadow of a Doubt
Fotografia no Chiado8, Lisboa
13 Novembro 2014 – 31 de Dezembro 2014
(prolongada até 30 Janeiro 2015)

por Joana Ottone

A exposição colectiva de fotografia Shadow of a Doubt esteve patente no Chia-


– CONVOCARTE Nº.1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS

do8 – Arte Contemporânea, inicialmente de 13 de Novembro de 2014 a 31 de


Dezembro de 2014, prolongou-se depois até dia 30 de Janeiro de 2015.

Num espaço organizado de forma complexa, a ocupação total das paredes das
salas principais e das zonas de passagem entre elas, reforça a multiplicidade
dos olhares dos treze artistas presentes.

Destaca-se, com maior número de obras, José M. Rodrigues, com trabalhos,


não só fotográficos, mas também de instalação. Os outros artistas estão repre-
sentados por apenas um trabalho, ou uma série.

Todos estes trabalhos são provenientes de coleções portuguesas, tendo sido


retirados do seu contexto conceptual e temporal para integrarem esta exposi-
ção. Contemplando obras datadas, desde 1982 a 2014, não se estabelecem,
de uma forma imediata, relações formais ou temáticas.

O circuito desta exposição inicia-se com a obra mais antiga, Elementos 20 de José
M. Rodrigues, em destaque, de frente para a entrada. De notar, que não existe um
itinerário ou cronologia definidos, podendo-se passar, livremente, de sala para
sala. A restante obra de José M. Rodrigues distribui-se por mais três espaços: uma
sala com as fotografias dispostas em redor de um objecto, um pequeno espaço de
passagem com uma instalação e uma fotografia, e outra instalação, sobre a bacia
com água, existente na galeria. Na primeira sala, todos os trabalhos fotográficos, a
cores, são emoldurados a dourado, tendo todos a mesma dimensão. Estas fotogra-
fias relacionam-se com o objecto no centro da sala, um coração no interior de uma
redoma. Se algumas das imagens têm ligações cromáticas óbvias entre elas, o con-
junto apresenta fortes discrepâncias que dificultam a leitura. Porém, a unidade cria-
da pela montagem cuidada cria um ambiente propício à evocação e à narrativa.
No pequeno espaço, entre a primeira sala e uma das salas que se seguem, en-
contra-se um instalação e uma única fotografia. A instalação, sem título, realiza-
da em 2014, conjuga a fotografia a preto e branco, de um céu nublado, com um
placa de acrílico com algumas aplicações douradas. Do lado oposto da divisão,
pode-se observar uma fotografia a preto e branco de um caracol com uma mol-
dura, tal como as da sala anterior, dourada. Esta divisão, possuí a sua própria
narrativa, e por ser um espaço tão fechado, a imagem das nuvens no céu esta-
belece uma abertura ao mundo exterior.

O terceiro, e último, espaço onde é exibida a obra de José M. Rodrigues, Pru-


mo, encontra-se no corredor que dá para a saída. Sobre uma bacia com água
(e um peixe encarnado) encontra-se um fio de prumo, onde está impressa a
imagem de um coração. A cor dourada presente nas molduras das duas salas,
nas aplicações da primeira instalação e no Prumo, cria conexões (ainda que
subtis) entre as obras deste artista.

Os restantes doze artistas têm a sua obra distribuída por duas salas. As suas fo-
tografias apresentam-se com formatos muito variados, dispostas em conjuntos
ou isoladas, com molduras de distintas cores e materiais, que exaltam a dife-
rença e a multiplicidade de “olhares”.

Numa das salas coabitam paisagens (interiores e exteriores) e retratos, de sete


dos fotógrafos, numa aparente desordem expositiva. As duas fotografias, res-
pectivamente de Anya Gallaccio e Sarah Jones, revelam paisagens naturais ver-
dejantes onde se perdem personagens que se relacionam com o espaço en-
volvente de forma algo enigmática. Este tipo de relação personagem/espaço é
também visível na obra Looking Out de Sam Taylor-Wood, embora esta ocorra
num interior. As fotografias de Pedro Lobo, Rachel Whiteread e Sarah Dobai
retratam espaços interiores desabitados, onde os vestígios da presença huma-
na expressam o abandono e a ausência. Os dois retratos, de Catherine Bertola,
pelo uso do enquadramento em grande plano e de uma técnica inusitada (im-
pressos em puzzle, com os olhos deliberadamente trocados) contrasta forte-
mente com o aspecto mais “clássico” das outras obras.

Na outra sala, domina a obra de Trevor Appleson, uma série de sete retratos
individuais (sobre fundo negro) que ocupa toda uma parede. As duas fotogra-
fias, de Paul Graham, da série Television Portrait, com as suas tonalidades escu-
ras e um personagem que se destaca, conjugam-se facilmente com as obras
anteriores. A iluminação nestes trabalhos é um factor determinante para a exal-
tação da personagem. No entanto, as restantes imagens contrastam com esta

– JOANA OTTONE 325


“estética” pelas suas cores maisclaras e vivas. A fo-
tografia de Tracey Emin, Outside Myself estabele-
ce, de certa forma, uma ligação entre os retratos e
as restantes fotografias. A personagem retratada
a ler, tendo como fundo uma zona desértica, cria
essa ligação. As duas séries restantes não contêm
figura humana, apesar de apresentarem vestígios
da sua presença, aproximando-se das obras obser-
vadas na outra sala. A série de João Paulo Serafim,
A invenção da memória, representa imagens de um
arquivo onde os documentos se organizam e ali-
nham. Numa outra forma de preservação da me-
– CONVOCARTE Nº.1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS

mória, Nigel Shafran retrata parte de uma cozinha,


fotografada em vários dias, ao longo do ano de
2010.

Catherine Bertola, Keanu And I (2001) Toda esta diversidade parece confrontar as teorias
e métodos expositivos considerados paradigmá-
ticos: ao invés de paredes quase vazias, de obras
organizadas de forma cronológica, por dimensão e/ou formato, por proposta
temática – assiste-se a um acumular de visões, que surgem simultaneamente,
provocando no observador alguma perplexidade...

Se um dos aspectos mais interessante desta exposição era o facto do seu


curador participar também enquanto artista, questionamos qual o peso que
os seu trabalhos adquirem: foi a partir das suas obras que foi feita a escolha
das outras imagens/artistas, ou a partir destas, nasceu a seleção e montagem
da sua obra? Pretende José M. Rodrigues coordenar os seus trabalhos com
os dos outros fotógrafos ou exaltar as diferenças entre pontos de vista? A par-
tir da leitura quer do texto do catálogo, quer do conjunto de obras, conclui-se
que a segunda hipótese se põe como a mais provável.

“As distâncias do olhar aproximam-se. Espaços iguais? Simetria? Não há regras.


Está tudo ligado para nos mostrar o milagre. Cada momento é outro e mais ou-
tro, mas todos ligados entre si são, em conjunto, o espaço da materialização da
imagem.” (José M. Rodrigues)
André Príncipe - Antena 2
Galeria Pedro Alfacinha
21 Novembro 2014 – 7 Fevereiro 2015

por David Gonçalves

É na recente inaugurada galeria de fotografia Pedro Alfacinha que ocorre o


regresso do fotógrafo, cineasta e editor André Príncipe (Porto, 1976) às expo-
sições de fotografia, desde a última, em 2006. Artista de mil ofícios estreou
recentemente, no Cinema Ideal, Campo de Flamingos sem Flamingos e co-
memora cinco anos desde a criação da sua editora de livros de fotografia na
companhia do fotógrafo José Pedro Cortês, a Pierre von Kleist.

Se na obra de André Príncipe o público está habituado a um padrão narrativo


e documental da viagem e à imagem em movimento então, esta exposição
coloca de lado esse paradigma para ensaiar um conjunto de imagens auto-
biográficas, registadas de 2012 a 2014, a partir de duas experiências pessoais.
A distância que o público tem com as imagens bem como os diferentes níveis
de intimidade vão intensificando-se à medida que as observamos numa es-
pécie de atlas, defendido fortemente pelo artista, onde qualquer referência
territorial torna-se inexistente mas, é possível verificar diferentes experiências
e expressões.

Antena 2 é um palco de combate indefinido que revela a harmonia desconcer-


tante de imagens, que circulam a um ritmo constante, esboçando se em dis-
tintas direcções. É perante este cenário que a estação de rádio pública entra
como o complemento musical, ideal para um relato de duas experiências de
quase morte que o fotógrafo sentiu nos últimos três anos. A primeira remon-
ta a 2012, o artista vivia numa caravana e estava a viajar pelo País; a segunda,
em 2013, numa cozinha, no centro da cidade de Lisboa. Em ambas as vezes
despertou e voltou para a realidade enquanto um rádio imperturbável, a partir
da sua trincheira que não fora afectada pelo tempo, o posto de rádio da An-
tena 2 estava sintonizado e audível. É esta experimentação de susto, de uma
quase morte que é revelada, confronta o espectador através de imagens que
vêm de todas as direcções, como se testemunhassem a abertura de uma por-
ta do tempo; assim o artista desafia o public para se enquadrar no papel de

– DAVID GONÇALVES 327


explorador do ambiente que ele próprio criara,
na procura de entender o território, das imagens
e, sobretudo, das histórias. Este lado de explora-
dor implicará uma estranheza perante um terreno
que é visto como a primeira vez.

Este posto de rádio é considerado pelo artista


como o “último reduto cultural” do Serviço Pú-
blico onde a Cultura predomina em vez do ac-
tualizar constante e agressivo de temas como o
desemprego, a instabilidade social, a crise, o pro-
André Príncipe, [sem título] da série Antena 2, 2014, grama de ajuda financeira, ou seja, longe do país
– CONVOCARTE Nº.1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS

140x180cm
real em que as notícias são dadas num tempo cur-
to e numa forma deturpada. Numa luta contra es-
tes poderes maliciosos e dramáticos nascem as
imagens como se fossem gritos de esperança.

Neste universo alternativo surge uma dissidência entre um novo mundo e o


mundo conhecido como o real, um esquecimento, propositadamente assumi-
do, de restrições e leis que impeçam o progresso para o exterior dos confina-
mentos e barreiras que nos tentam regular, no dúbio processo de construção
de um idealism visto como um modelo de perfeccionismo.

Assumindo uma posição clara de protesto perante a ideia de independência


“distorcida”, da qual somos bombardeados no quotidiano pelas instituições e
poder, o fotógrafo orquestra um registo visual numa prática diária que relata
as relações que estabelece com as pessoas, os animais e as coisas. O automa-
tismo do gesto de fotografar nasce destas múltiplas ligações que são estabe-
lecidas tendo em conta, também, o modo como os corpos e as figuras se mol-
dam perante um espaço em constante mutação. É nesta mutação que o artista
constrói o discurso narrativo de tudo aquilo que se apresenta como livre sem
esquecer a mortalidade e o caricato daquilo que observa.

Tudo é apresentado como prova documental. Existe espaço para os amigos, o


urbano, os animais e momentos de confraternização, sendo que estes se sus-
pendem e congelam no tempo. Desde a rebentação das ondas assemelhan-
do-se a uma porta entre o mundo do artista e o mundo real sendo que esta
estivesse para lá do horizonte, a rapariga totalmente despida que se seca pe-
rante uma bacia antiga num canto do quarto numa prática improvável nos dias
de hoje, o homem sozinho sentado no banco da paragem do autocarro, até às
raparigas no sofá como quem lembra um olhar retrospectivo ou uma revisita-
ção que nunca deve ter fim. Esta última imagem das jovens reunidas tem uma
escala que capta de imediato a atenção, bem como todo o momento que ali se
passa. Um convívio normal entre um olhar atento, uma expressão de sorriso e a
distração de quem perde o olhar no chão, um copo em cima de uma perna, o
cigarro e a garrafa que existem nos gestos de uma jovem, não há espaço para
a solidão e as três jovens habitam o espaço à sua maneira como se tratasse de
qualquer espectador na companhia de amigos mesmo sem que haja o devido
conhecimento do motivo que as leva a estar na sala, bem como a história que
cada uma delas tem. E o que será delas depois de tomarem a bebida e aban-
donarem aquele espaço? Nada disso importa, o relevante é o que se passa na-
quele instante, naquela recordação de adolescência, em que todos estiveram
juntos no mesmo lugar.

A invocação da figura da mulher é uma constante, com um papel de destaque,


revelando a importância que o artista lhes atribui. Outra das suas imagens,
com uma jovem num ambiente de festa num bar e que aparenta estar no fim
da idade da adolescência; de cigarro e copo na mão sugere que chegou à
pouco tempo. De cabelos longos, olhos azuis e um ligeiro afastamento dos lá-
bios, esta observa na direção do espectador com um olhar penetrante, como
se dialogasse em silêncio um interesse misterioso perante quem a observa e
exigisse um momento de reflexão perante a confusão em seu redor, dela e de
quem a observa nos olhos.

Por detrás de cada imagem existirá, sempre, uma diferente melodia da esta-
ção de rádio pública: melodias trágicas, cómicas, alegres, saudosas, depri-
midas, nostálgicas. Cada música é uma emoção e uma história, cabendo ao
espectador construir uma sequência lógica de forma a criar um ritmo próprio,
para assim, compreender e rever-se no ambiente originado por estas imagens
que nada trazem de novo a não ser um reconhecimento daquilo que se deu e
quis eternizar na memória. Deixá-las cair na indiferença ou no silêncio é como
se o rádio tivesse, por fim, deixado de tocar e a morte finalmente se desse
num último e derradeiro ato de vitória.

– DAVID GONÇALVES 329


Francisco Tropa
Tesouros Submersos do Antigo Egipto
MUSEU DA CIDADE - PAVILHÃO BRANCO, Campo Grande, 245, LISBOA
7 Dezembro – 22 Fevereiro 2015

por Cláudia Ramos


– CONVOCARTE Nº.1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS

Notas para um desenho

“Levado pela minha desejosa vontade, vagueio para ver a grande cópia das
várias e estranhas formas feitas pela natureza artificiosa, retorcendo-me ainda
mais por entre os sombreados escolhos, cheguei à entrada de uma grande ca-
verna, ante a qual, fiquei assaz estupefacto e ignorante de tal coisa, os meus rins
dobrados em arco, e posada a mão cansada sobre o joelho, e com a direita fiz
sombra às pestanas baixas e fechadas; e continuamente dobrando-me aqui e
ali para ver se dentro se discernisse alguma coisa; e isto vetando-me a grande
obscuridade que lá dentro havia. E tendo estado <assim> demoradamente, sú-
bito crescem em mim duas coisas: medo e desejo: medo pelo ameaçante e es-
curo antro, desejo de ver se lá dentro houvesse alguma coisa milagrosa.”

LEONARDO DA VINCI, Código Arundel 155 R. in Desenho / A Transparência


dos Signos de Pedro A.H. Paixão

Tesouros Submersos do Antigo Egipto, TSAE, resulta de um registo alargado


que recorre a variadíssimas técnicas e não se prende a uma disciplina em con-
creto. Encontramos neste lugar o território da escultura, mas também o da pin-
tura ou da fotografia. O que está no esqueleto deste processo, neste ato de
constituir, é o desenho. Desenhar é por excelência o campo do pensamento.

O trabalho de Francisco Tropa tem em si a importância do tempo no fazer, o


tempo que permite a construção de um corpo de trabalho complexo e vasto.
Em 2008 TSAE teve a sua primeira revelação ao público, levantando o véu da-
quilo que Francisco Tropa denominou de uma arqueologia ficcionada.
Aquilo que agora nos chega de TSAE revela-se por entre uma suposta ar-
quitetura. Um mapa assinala um lugar específico, composto por sucessivos
níveis aos quais pertencem os objetos ali expostos, como se pertencessem a
um espólio que é ali revelado.

O lugar evocado parece situar-se nos nossos antípodas, transporta-nos para


aquilo a que podemos chamar de um antigo templo, uma caverna enigmática
onde das sombras brota a luz, figurando uma qualquer intenção mágica. O ar-
tista explora diferentes núcleos como a Parte Submersa, a Câmara Violada suge-
rindo um espaço parcialmente pilhado, a Terra Platónica revelando-se como um
lugar intocável, suspenso no tempo, e o Poço que sugere uma outra passagem
para possíveis campos desconhecidos. Deixando em aberto, a possibilidade de
um novo momento, que nos revele o que ainda está por descobrir. A obra de
Francisco Tropa assemelha-se a um desenho em constante movimento, um de-
senho que busca por um hipotético final, mas sem que nunca chegue a ele, até
porque provavelmente não há onde chegar.

Dentro de cada um dos núcleos, objetos. Muitos destes objetos, organizam-se


em dicotomias, como os desenhos de areia. São desenhos que emergem do
negativo sob a forma de estruturas geométricas, que surgem por entre o vazio
dos corpos de madeira desenhando sobre a mesa a primeira das dicotomias: o
positivo e o negativo. Também o rei e a rainha se impõe, mas desta, sob a forma
de vidro soprado e nomeados pelo próprio artista, já o macho e a fémea sur-
gem em peças de madeira desenhadas e talhadas para um determinado siste-
ma de encaixe, sublinhando assim, o que tem sido uma constante ao longo do
trabalho do artista: o masculino e o feminino. A morte é outra constante no seu
discurso, uma das preocupações estruturais que define o Homem e que tem
uma relação intima com a arte. Impõe-se entre os símbolos e a matéria, com re-
ferências ao Purgatório ou ao Inferno, presente nos intervalos entre a convivên-
cia de épocas e na fragilidade real ou induzida nas suas peças.

Ao longo da exposição, mapas vão pontuando as salas que visitamos, mapas


que nomeiam e referenciam esse outro lugar evocado e que inclusive nos in-
terpelam com possíveis pontos de vista, afinal as questões da visualidade nun-
ca são livres do nosso corpo, do espaço que ocupamos, da nossa posição num
determinado campo cognitivo, a dada altura na Câmara Violada Francisco Tro-
pa aponta ao espetador pontos de contemplação, conduzindo assim o campo
visual de quem contempla a sua obra. Ainda na Câmara Violada encontramos
uma mesa onde se apresentam quatro frágeis caixas de latão. Estas sugerem
processos naturais de desgaste, colocando em confronto a questão da perma-

– CLÁUDIA RAMOS 331


nência em contraponto à sua aparência que induz a
uma inexorável degradação. Estaremos aqui peran-
te a questão do tempo e inevitavelmente da mor-
te. A mesa é uma figura recorrente no trabalho do
artista, é um território de ação, que assegura a ele-
vação de matérias aparentemente periclitantes. De
passagem pelo Poço visitamos o Inferno e o Purga-
tório, terra de sombra, onde podemos contemplar
duas imagens criadas pelo artista através da luz que
incide sobre o vidro soprado, projetando na parede
Sem título, 2008. Frasco de Vidro, areia, ouro e uma micropaisagem.
mármore - pormenor.
– CONVOCARTE Nº.1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS

Fotografia Pedro Tropa


Chegados à Terra Platónica, o nosso olhar é pleno
de espanto, trata-se de um lugar inviolável, como se
estivesse mergulhado num soporífero. Onde os objetos apresentam cores vi-
vas, belas arquiteturas de latão e vidro colorido, serigrafias pulsantes, é um cam-
po de transcendência.

Francisco Tropa, tem na natureza do seu ato criativo, uma relação privilegiada
com os jogos da imaginação. Tesouros Submersos do Antigo Egipto é o fruto
dessa imaginação fortemente marcada pelo uso de códigos e processos artísti-
cos, algum deles declaradamente duchampianos. Também Raymond Roussel e
Julio Verne emergem do mapa de referências do artista, assim como as relações
encriptadas com a matriz judaico-cristã da cultura ocidental, presentes através
de conceitos como: céu/terra; alma/corpo; purgatório/inferno.

A cosmologia platónica é outro elemento de constituição da sua linguagem,


seja através das palavras, seja através das imagens.

É a criação de um complexo universo, aquilo a que assistimos, um universo onde


o léxico que o compõe passa por conceitos como alegoria, tempo, cinética,
cenário e encenação, memória e convocação, a luz, o divino, o celestial, o
sagrado e o fúnebre, tudo isto emana do seu discurso, encontramos inclusive o
gesto originário, no gesto de polvilhar com areia da praia as formas geométricas
de madeira, revelando assim assombrosos desenhos duma frágil beleza.

Na obra de Francisco Tropa não há um dentro e um fora, há uma cosmologia. É


um lugar de desenho, de pensamento, onde se transfiguram as coisas em seres
e universo. Tesouros Submersos do Antigo Egipto é esse estado de transgressão.
Carla Cabanas
A Palavra Arquivada
Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa
19 Dezembro 2014 – 14 Março 2015

por Rita Branco

A Palavra Arquivada é o álbum número seis da série O Que Ficou Do Que Foi
criada por Carla Cabanas (Lisboa, 1979). Desde o passado recente de 2010,
a imprecisão da memória e a inevitabilidade do tempo são aspectos funda-
mentais no trabalho que a artista tem vindo a desenvolver na forma de colec-
ção de imagens. Em 2013, os conjuntos de fotografias deram lugar a conjun-
to de postais e é agora, na sua mais recente exposição patente no Arquivo
Fotográfico Municipal de Lisboa, até 14 de Março de 2015, que a intervenção
manual deixa de o ser, aperfeiçoando a sua precisão com a introdução do au-
tomatismo do recorte a laser.

Recordações com um século de idade fechadas em pequenas vitrines, proi-


bidas de repente ao total esquecimento, paradas no tempo que as foi consu-
mindo. Os postais provenientes da colecção pessoal da artista e do acervo do
Arquivo Municipal de Lisboa, datados do início do século vinte, são testemu-
nhos de um passado quase esquecido de pessoas que não sabemos quem
são. Uma e depois outra e depois outra. Com a curadoria de Sofia Castro, este
caminho de vitrines iluminadas, montras de histórias das quais já há um mui-
to que não se sabe mais contar, apresenta-nos uma continuação do que tem
vindo a orientar o percurso artístico de Carla Cabanas: a perda da memória
e a passagem do tempo pelos documentos e imagens. Ao longo desta sua
série mais significante, onde a artista tem vindo a intervir sobre a imagem so-
bretudo fotográfica, aquilo que o tempo transforma em ausência é tornado
visível através dos pedaços que são directamente apagados do suporte, seja
ele qual seja. A imagem ganha a vida que só a própria vida tem e torna-se re-
presentação do que só a vida é.

Desta vez, é a partir da palavra desaparecida que somos confrontados com


a impiedade do tempo que, sem nos dar tréguas, vai distorcendo e destruin-

– RITA BRANCO 333


do o que da vida foi guardado. Mas o que dantes era riscado é agora cor-
tado, retirado, fazendo com que o vazio atravesse o papel, atribuindo-lhe
uma nova tridimensionalidade. A pequena sala do Arquivo Fotográfico está
cheia de memórias, mas termina aí a diversidade: as várias peças são todas
diferentes, mas sempre a mesma. É à média luz que os mostruários parecem
também funcionar como caixas-fortes, protegendo da contínua ruína a beleza
das delicadas peças que lembram, sozinhas, algo frágil e susceptível. Mas a
susceptibilidade vai para lá da forma destes objectos tornados imaculados.
É nos postais escritos, meio de comunicação também ele perdido no passar
dos dias, que vamos aqui procurando o que ficou do que foi. Uma cidade de
partida, outra de destino. Uma data, talvez. De um lado texto apagado, do
outro imagem cravada com a memória do texto apagado e, a seus pés, os
– CONVOCARTE Nº.1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS

vestígios do que dali foi eliminado com um recorte cirúrgico só conseguido


à maquina. O que se perdeu de orgânico no trabalho da artista, ganhou-se
em pormenor, mas se há coisa que não faz parte do universo da memória é a
precisão. O mesmo tempo que nos consome e faz morrer, transforma o que
guardamos em recordação, em pequenos pedaços de uma trama que deixa-
mos de saber de cor. Não escolhemos lembrar, não escolhemos esquecer. A
definição perde-se, a lembrança torna-se turva, o que era um todo fica a ser
em bocados. É a distância temporal que nos afasta daquilo que já não é e
tudo possui em si mesmo a fatalidade de vir a não ser: o que é transformar-
-se-á sempre no que foi, o que foi passará sempre a não ser mais. Nos álbuns
anteriores, a intervenção de Carla Cabanas era manual. Não deixando de ser
precisa, não era exacta. O traço cru e destemido, de linhas não direitas, anun-
ciava o que foi esquecido sobre o que ficou, da mesma forma que o tempo
apaga sem pedir permissão. Mas nesta sexta vez de O Que Ficou Do Que Foi,
as palavras que contam as vidas quase esquecidas de quem não conhece-
mos, vão caindo, uma por uma, desaparecendo da superfície que outrora jul-
gou ser para sempre e que foi assim transformada numa história sem história.

Os postais de agora, tal como as fotografias de antes, simbolizam a tentati-


va de tornar imortal o que sabemos ser efémero: a nossa realidade. A partir
deles e ao longo dos últimos anos, a obra em construção de Carla Cabanas
tem vindo a explorar a criação de outras dimensões através da destruição da
já existente. Em constante desenvolvimento, esta série não falhou nunca na
revelação de que a transformação a que o tempo nos condena é inevitável.
Imagerie – Casa de Imagens
Os Diários da TOSCA
Bartô do Chapitô
14 Janeiro 2015 - 14 Fevereiro 2015.

por Catarina Pinto

No passado dia 14 de Janeiro de 2015, no Bartô do Chapitô, pelas 22:00 ho-


ras, teve lugar a inauguração da exposição estenopeica do ateliê Imagerie –
Casa de Imagens, intitulada Os Diários da TOSCA, estará patente de terça-feira
a domingo, das 22:00 horas às 2:00 horas, até dia 14 de Fevereiro de 2015.

O Chapitô é uma instituição onde a Formação, a Criação, a Animação e a In-


tervenção se tornam uma só, sempre numa perspectiva vanguardista do hu-
manismo, há trinta anos.

O ateliê Imagerie – Casa de Imagens, fundado em 2008 pela mão de Magda


Fernandes e José Domingos, é um espaço de aprendizagem e partilha de co-
nhecimentos acerca da fotografia, onde se realizam exposições com artistas
que desejam fugir ao circuito cerimonial das galerias de arte. Os seus fundado-
res auto-intitulam-se como “novos primitivos”, pela fotografia que produzem.

A Tosca “pela máquina em si, que tem uma aparência tosca” é uma câmara ar-
tesanal estenopeica, ou seja, pinhole, e através dela é captada a relação entre
Magda Fernandes, fotógrafa de formação, e José Domingos, argumentista de
profissão e fotógrafo por paixão, criadores da máquina em questão.

A exposição fotográfica conta com dez imagens narrativas analógicas a pre-


to e branco, feitas especificamente para a sua realização, que curiosamen-
te foram das primeiras imagens produzidas com a câmara estenopeica.
Estas imagens produzidas por Magda Fernandes e José Domingos resultam
da colagem de três a cinco imagens 12 x 12, ou seja, os autores fotografam
inúmeras vezes a mesma coisa embora cada imagem seja distinta, revelando
diversos enquadramentos, profundidades de campo e planos fotográficos de
quadrado para quadrado; após são revelados os negativos e cada imagem é

– CATARINA PINTO 335


impressa sendo cortados os elementos necessários de forma a conceber uma
única imagem, criando uma espécie de puzzle que dá por um lado uma sen-
sação de quietude e por outro uma sensação de desordem; posteriormente
as imagens finalizadas são colocadas em suporte de cartão prensado. Este su-
porte poderia ser melhorado, talvez em K-Line de três milímetros, o que leva
os próprios autores a afirmarem que realmente a montagem da exposição Os
Diários da Tosca foi feita com alguma rapidez.

Estas imagens, relativamente ao seu processo fotográfico, remontam à foto-


grafia produzida pelo fotógrafo e pintor inglês David Hockney e à fotografia
criada pelo fotógrafo americano Duane Michaels, não só pelos temas apre-
sentados mas também pelo preto e branco constituído por várias tonalidades.
– CONVOCARTE Nº.1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS

Nas imagens apresentadas, o casal dá a conhecer a sua rotina quotidiana, por-


menores do seu lar em Campo de Ourique e até o seu animal de estimação; de
certa forma pode até declarar-se que o conjunto de imagens exibidas forma um
álbum de família. Denota-se que a apresentação pensada para esta exposição
não foi realmente cuidada, embora talvez tenha sido esse o intuito a transmitir
ao espectador, de forma a não se tornar num espaço demasiado formal e intimi-
dador, sendo que as imagens são bastante pessoais; o que na realidade resulta
pois o ambiente torna-se intimista, descontraído e acolhedor.

Contudo, alguns aspectos poderiam ser melhorados, como por exemplo a dis-
tribuição do Bartô, as mesas e as cadeiras poderiam ser retiradas, dando aos
espectadores a liberdade de se aproximarem mais das imagens, havendo tam-
bém mais espaço para circular, o que facilitaria a observação das fotografias.
Em breve irá ser publicado o nº1 da TOSCAzine, onde muito provavelmente
será possível visualizar as imagens apresentadas nesta exposição Os Diários
da TOSCA.

A TOSCAzine é uma pequena auto-publicação com projectos fotográficos


dos autores e de convidados que tenham em sua posse uma máquina es-
tenopeica Tosca e que produzam fotografia pinhole ou que estejam dis-
postos a produzi-la. Curiosamente a máquina estenopeica Tosca foi criada
pelo casal e pode até ser-lhes encomendada por apenas vinte euros com
direito a um pequeno livro de instruções também criado pelos autores.
Conclusivamente, Os Diários da TOSCA é uma exposição agradável onde
se denota a paixão pela fotografia, partilhada por Magda Fernandes e José
Domingos, recomendada a todos os amantes não só de fotografia mas
também de arte.
Finok
Exposição “Enterro do Galo”
Galeria Underdogs
30 Janeiro – 28 Fevereiro 2015

por Margarida Barros

“Enterro do Galo” é uma exposição individual do artista contemporâneo Finok


(Raphael Sogarra), na galeria Underdogs, patente de 30 de Janeiro a 28 de
Fevereiro de 2015.

Finok é um artista de arte contemporânea ligado à linguagem da cultura ur-


bana. É um jovem artista de apenas 29 anos, que, já, é dos mais prolíferos na
zona do epicentro da América do Sul na cultura do graffiti. Vive em São Paulo,
cidade que é conhecida pela sua arte urbana, e cresceu num bairro operário,
Cambuci, que nos anos 90 foi o epicentro do graffiti sul-americano. É das suas
origens que parte a sua temática, ligada às tradições populistas e vernacula-
res, em junção com a realidade, mais, contemporânea da cidade urbana.

A exposição é composta por oito peças autênticas, e mesmo sendo numa ga-
leria, o intuito não é a venda, mas a partilha com o público do trabalho deste
artista de street art. Os trabalhos vão desde escultura, a pintura e instalações,
mesmo as pinturas são um misto de escultura em madeira (MDF) trabalhadas
em baixo e alto relevo. Para além das peças expostas, também, foi realizada
uma obra exterior, na rua de Manica 3, Olivais Sul, Lisboa, peça que integra a
exposição, demonstrando o trabalho do artista fora das quatro paredes.

A galeria Underdogs é uma plataforma cultural de arte contemporânea ligada


às novas linguagens da cultura urbana. Tem vido a estabelecer várias relações
entre artistas e agentes culturais, com o objectivo da proliferação da arte urba-
na, tanto por locais de exposição e pela cidade de Lisboa. A galeria física, por-
que a galeria estende-se pela cidade com os múltiplos trabalhos realizados
por diversos artistas convidados, encontra-se num armazém na zona do Braço
de Prata, Lisboa. É galeria informal e, até, alternativa, que alberga exposições
individuais e colectivas, sempre dentro da linguagem da street art. Conseguin-

– MARGARIDA BARROS 337


te, a inauguração da exposição foi de um ambiente informal e alternativo, com
várias presenças de indivíduos do mundo da street art, entre outros ligados ao
mundo da arte contemporânea.

O tema da exposição, como o próprio nome indica, está relacionada com ri-
tuais de crença de raiz espiritual, religiosa e popular de grande influência sin-
crética. Rituais não só de origem brasileira mas também portuguesa. Esta liga-
ção é reflectida pela peça composta por quatro balões de ar quente, obra sem
título (fig. 1). Representam os balões lançados nas festividades portuguesas
dos Santos Populares, mais precisamente no São João no Porto, prática tam-
bém realizada no Brasil em várias celebrações. Esta peça dá as boas vindas à
exposição, sendo a obra que mais se destaca devido a ser composta por qua-
– CONVOCARTE Nº.1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS

tro elementos, de grandes dimensões, colocados em quatro pontos da sala,


com uma estrutura quadrangular. As suas cores vivas e a iluminação interior
criam um grande destaque das outras obras. Contudo, ao fundo da sala e
centrada, esta outra peça muito chamativa, uma instalação de pipas, ou papa-
gaios de papel (fig.2), que nos transfere para o topo dos prédios de São Paulo,
onde é costume serem lançados principalmente por crianças, como forma de
diversão e, até, competição.

Um elemento de grande predominância, figurativa, na obra de Finok são as


máscaras e as caras diversas e expressivas. A sua figuração é muito característi-
ca de São Paulo. Se observarmos o trabalho dos artistas Os Gémeos ou de Crâ-
nio, ambos de São Paulo, onde no seu trabalho, também, predomina a figura-
ção num estilo ilustrativo, quase que caricatural. Mas não é só na figuração que
existem semelhantes que marcam a imagética da arte urbana paulista, a cor é
também uma característica muito vincada nestes três artistas. A cor é para além
de uma característica uma tradição dentro da comunidade writer paulista, em
que cada individuo escolhe uma cor para o seu trabalho de rua. No trabalho
de Os Gémios a cor predominante é o amarelo, em Crânio é o azul e em Finok
é o verde. A cor verde tem acompanhado sempre o trabalho deste artista, tan-
to na rua como no estúdio, mas é no estúdio que expande sua paleta para as
mais variadas cores, mas sempre sem esquecer a influência do verde nas ou-
tras cores. Daí a outra cor mais utlizada em, quase, toda a obra de Finok ser o
vermelho, cor complementar do verde. Assim, quase todo sua obra é compos-
ta, predominantemente, por estas duas cores nas suas variadas nuance.

A peça “O Egoísta” (fig.3) dá imagem ao panfleto informativo da exposição,


panfleto que pode ser quase com um print que pudemos emoldurar, devido
à sua alta qualidade de imagem. A imagem não esta reproduzida na sua to-
talidade sendo um pormenor central da peça. A figura central é um homem
a pescar um peixe, mas é um homem hibrido de peixe, sendo a sua parte in-
ferior do corpo uma cauda de peixe, igual à do peixe que pesca. No cimo da
peça observamos, como que, uma moldura de madeira com a palavra “contra”
gravada. A junção da palavra gravada, da figuração e do nome da obra cria,
como que um paradoxo. Isto porque, um homem-peixe que pesca um peixe é
como se estivesse a pescar a ele mesmo, concebendo um dilema ético que é
reforçado com as duas palavras: “egoísta” e “contra”. As relações entre os três
elementos podem levar às mais variadas interpretações, fazendo com que a
sua própria interpretação seja um paradoxo.

Outra peça de destaque na exposição é uma escultura de madeira pendu-


rada na parede, intitulada “Erro” (fig.4). A obra não se resume apenas à peça
física, é acompanhada de velas brancas acesas no chão, que lhe atribuí uma
conotação de culto. A peça é um tridente, que nas suas extremidades contem
outros elementos, compostos por: três mascaras em forma de gota, outro tri-
dente em posição inversa, uma âncora e um elemento tribal. Esta peça invoca
a rituais de culto pagão, característica comum na sua obra, com provável, na-
tureza sincrética. O facto de a obra se intitular “Erro” dá origem a uma múltipla
interpretação, que nos leva a reflectir sobre o acto de culto/adoração e os “er-
ros” cometidos em nome do mesmo.

Plasticamente é um artista bastante diversificado trabalhando a madeira, têx-


teis, pintura acrílica e em aerossol. Mesmo se não tivéssemos conhecimento
da sua ligação ao graffiti/street art esta é bastante notório em, quase, toda a
sua obra devido à utilização de aerossol ou spray, comum na prática da arte
urbana. Toda a sua técnica de pintura remete para a cultura graffiti, com o uso
do stencil, cores solidas, sombras marcadas e quase que padronizadas, onde
é possível ver a sobreposição solida da tinta como que se de uma peça de arte
urbana se trata-se.

A exposição é pequena e simples, contudo demonstra eficazmente a obra


deste jovem artista em início de carreira. A plataforma Underdogs consegue,
assim, mostrar ao público as potencialidades que estes novos artistas e a cul-
tura urbana podem trazer à arte contemporânea, uma vertente artística inicial-
mente marginalizada e agora institucionalmente musealizada.

– MARGARIDA BARROS 339


Modernidades:
Fotografia Brasileira (1940-1964)
Fundação Calouste Gulbenkian - Galeria de Exposições Temporárias
Edifício Sede - Piso -1, Lisboa
21 Fevereiro– 19 Abril 2015

por Lara Neto


– CONVOCARTE Nº.1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS

Modernidades: Fotografia Brasileira (1940-1964), é uma exposição tempo-


rária, resultado da parceria entre o Instituto Moreira Salles, no Rio de Janei-
ro, o Staatliche Museen zu Berlin, e o Programa Gulbenkian Próximo Futuro,
de Arte Contemporânea. José Medeiros, Marcel Gautherot, Thomaz Farkas e
Hans Gunter Flieg são os quatro fotógrafos que invadem o espaço com as
suas imagens de um claro-escuro intenso e linhas absolutamente definidas
e cortantes. Três são estrangeiros, que nascem na Europa e partem rumo ao
Brasil com tenra idade. Marcel, o mais longevo dos seus camaradas, nasce em
1910 em Paris e falece em 1996 no Rio de Janeiro. Thomaz, o húngaro de Bu-
dapeste, nasce em 1924 e acaba por desaparecer já no século XIX, no ano de
2011, em São Paulo. Hans é o único dos três que ainda se encontra em plena
vivência, tendo nascido em 1923, na cidade de Chemnitz, na Alemanha. Por
último, o fotografo brasileiro e aquele que parte mais cedo, José Medeiros,
nasce em 1921 no município de Teresina, e morre em 1990. São artistas cujas
imagens apresentam-se puramente ligadas aos genes da fotografia analógica,
que se encontram no entanto totalmente desprovidas de grão ou deficiências
técnicas. As imagens expostas mostram uma visão crua e ríspida de um Brasil
em fase de industrialização e mudança, passando pela Fundação do Estado
Novo, seguido pelo inicio da Segunda Guerra Mundial, até a uma sucessão de
golpes de Estado, acabando no golpe militar de 1964. O espaço envolvente
faz lembrar um quase labirinto, que se desfaz após o olhar se direcionar para
o tecto baixo, de betão escuro e acinzentado, fazendo maquinalmente com
que a área se torne gélida e pesada. Todo o espaço é branco, desde as pa-
redes que rodeiam as obras, às densas divisórias colocadas no meio da sala
paralelepipédica. É um espaço inteiramente desguarnecido de cores quen-
tes, exceptuando a cor castanha amena das molduras, todas elas quadradas,
tendo como escopo não só indicar a obra, mas direcionando o olhar para a
mesma, sem que a moldura distraia uma observação mais aproximada. Este
aspecto é reforçado pelos vidros Anti-Reflexo e ainda uma segunda moldura
interior de cor branca, cortada de forma precisa, de acordo com o formato
das imagens, fazendo com que todas estejam devidamente protegidas. Toda
a sala está, portanto, nitidamente preparada para uma leitura mais facilitada
das obras. As cores neutras, em conjunto com os pequenos holofotes coloca-
dos no tecto – um para cada fotografia - manipulam a visão, obrigando a que
o olhar apenas se dirija às imagens impressas em gelatina de prata, graças à
representação das sombras e das formas marcadamente negras que se con-
trastam com o ambiente proporcionado em redor. Para além do propósito da
ausência de cor, o texto de apresentação e a ficha técnica que se encontra no
início da exposição, são elementos valorosos que praticamente passam des-
percebidos a quem ali entra, não só por não estar de forma clara ao alcance
do olhar, mas igualmente por se encontrar na direção de uma luz mais fraca.
O tipo e a robustez da letra escolhida são ainda outros pontos fracos, sendo
que os caracteres têm um espaçamento demasiado acentuado, o que dificulta
a leitura, tornando-a mais lenta e fazendo com que haja um cansaço visual que
se devia evitar, devido às fotografias que se vêm de seguida.

Ao todo são cento e dez imagens, sem contar com os quatro retratos dos auto-
res, cada um colocado de forma cuidada no começo das suas representações
naturalistas ou citadinas. As fotografias estão, portanto, divididas por autor e
igualmente separadas por temas. Os autores encontram-se ainda distribuídos
ao longo da exposição, estranhamente, pelo seu óbito e não nascimento, jun-
tamente com os diferentes estilos fotográficos: José Medeiros, o fotojornalista
da classe superior e da classe operária; Marcel Gautherot, claramente interes-
sado na beleza da floresta amazónica, nos populares e nas suas festas e no
quotidiano dos mais desfavorecidos; Thomaz Farkas, um apaixonado pelas
formas, não só de prédios, como também de pessoas; e Hans Gunter Flieg, o
fotografo da precisão técnica, com imagens industriais, teatrais e misteriosas.

O circuito tem então início em José Medeiros, figurado pelo seu retrato, senta-
do a beber um chá. Estão representadas trinta e duas fotografias deste autor,
separadas por quatro paredes, sendo que primeiro são visíveis dez, do outro
lado da taipa estão seis, de frente encontram-se mais dez, e na retaguarda
apresentam-se ainda seis, criando portanto um segmento duplo de imagens
de dez por seis. Thomaz Farkas é o próximo nome da lista, retratado com a
sua máquina fotográfica na mão. É visível um desfasamento de imagens com-
parativamente ao autor anterior, sendo que agora são apenas representadas
setenta e duas, mais uma vez fragmentadas em dez por seis, mas com a par-

– LARA NETO 341


ticularidade de na parede de fronte das seis imagens, estarem nove. Não se
entende o porquê deste corte face à estrutura inicial, e os mais atentos ques-
tionam-se sobre o motivo, sendo que não existe qualquer folha de sala que
possa eventualmente ter a resposta que se requer, e o catálogo da exposição
não tem qualquer informação relativamente à quantidade desajustada ou ao
posicionamento das fotografias expostas. Observa-se a fotografia de Marcel
Gautherot, mais uma vez mira-se um retrato em que o autor está com a sua
máquina de ofício, como se estivesse a fotografar o observador do lado de
fora, tendo as suas imagens como fundo. Assim como em José Medeiros, as
fotografias encontram-se divididas por quatro secções, ocupando duas me-
tades de parede e uma em absoluto. Começam por seis, e de frente residem
doze, em seguida observam-se mais seis e na fachada da frente estão oito, fa-
– CONVOCARTE Nº.1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS

zendo um todo de cinquenta, mais uma vez completamente desfasadas das


secções anteriores. Por fim, a obra de Hans Gunter Flieg, é repartida em duas
ramificações, sendo que de um lado encontram-se nove fotografias e de fren-
te estão doze que se subdividem em nove e três, fazendo um todo de vin-
te e uma fotografias. Por conseguinte, entende-se a intenção dos curadores,
Samuel Tintan Jr, Ludger Derenthal e António Pinto Ribeiro, de posicionar as
fotografias consoante a quantidade relativa a cada autor, mas não se com-
preende a configuração separada que as imagens mostram, o porquê de ora
estarem seis, ora estarem doze, acabando por não haver um fio condutor en-
tre todas, considerando que há que ter em atenção o facto de ser uma expo-
sição colectiva e não individual.

Segundo textos, as fotografias apresentadas na exibição, na sua maioria, são


de uma grande variedade estilística e de um registo documental valioso sobre
um país vasto e contraditório. Destaca-se a imagem “Gavéa, Rio de Janeiro”
de 1952, do autor José Medeiros, uma fotografia que representa um dos bair-
ros nobres da classe alta da capital, que mostra a praia de Copacabana com o
morro dos dois irmãos como fundo. Entre eles, estão dois carros, estacionados
junto à berma, com um homem que surge proximamente unido ao parapei-
to, tornando-a uma imagem desprovida de qualquer elemento mais simples
e modesto. Thomaz Farkas por sua vez, apresenta uma imagem em particular
que nada tem a ver com “Gavéa, Rio de Janeiro”, excetuando o registo mono-
cromático. “São Paulo” de 1950-1960 faz parte de um conjunto de imagens de
sombras e perspectivas num tom mais artístico, que fazem lembrar as assom-
brosas fotografias do mestre Henri Cartier-Bresson. Numa vista de cima, um
homem paira ao lado da sua bicicleta junto à linha de caminhos-de-ferro, dan-
do a ideia que vai de regresso de casa. Em Marcel Gautherot, destaca-se uma
imagem da “Pesca do Xáreu” de 1940, um ritual que se prolonga até aos dias
de hoje em Salvador da Bahia. Avistam-se junto à praia vinte e sete jovens no
momento em que puxam a corda da rede para fora do mar, uma imagem que
mostra nitidamente a vida sôfrega dos mais desvalidos. Hans Gunter Lieg por
sua vez é o único que destaca a realidade dentro das fábricas industriais, com
a fotografia de um inigualável paralelismo, de uma fábrica em São Paulo com
a data de 1960, mostrando um registo visivelmente mais cuidado.

Todas as imagens da exposição são de extremo interesse histórico mas não


se encontram diretamente ligadas, quer seja em estilo ou em tema e por
vezes algumas até podem ser excluídas que não se nota diferença relativa-
mente a uma leitura visual. No entanto, como um todo, formam o conjunto
de fotografias que melhor retratam o Brasil vanguardista dos anos quarenta,
cinquenta e sessenta. Destacam-se várias imagens de carácter documental
forte, mas outras fracas em termos de fotojornalismo, visto que se a intenção
é documentar um país pleno de deficiências, não faz qualquer sentido cor-
tar essa linha de trabalho com imagens de carácter visual imperceptíveis. A
falta de um suporte baixo para que o público possa utilizar para apreciar e
entender as fotografias de outra perspetiva, é outro elemento imprescindí-
vel face ao padrão da exposição, sendo que a forma como a sala está proje-
tada merecia outra atenção. Não interessa só olhar sem perceber, interessa
sim intencionar uma relação mais intima do público com a imagem. Moder-
nidades: Fotografia Brasileira (1940-1964), pretende assim ser uma exposi-
ção preenchida de fotografias que questionam o ciclo da modernização das
principais cidades e zonas do país da época de Getúlio Vargas, com finali-
dade de alcançar um público geral com especial interesse pela vida de um
Brasil vibrante, mundano e cosmopolita.

– LARA NETO 343


Do Desenho e do Ordenar do Tempo:
Catarina Patrício e Emília Nadal na
Galeria São Mamede

Catarina Patrício
Two days before the day after tomorrow
SÃO MAMEDE – Galeria de arte
26 Maio 15 – 23 Junho 15
– CONVOCARTE Nº.1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS

Emília Nadal
O Tempo e a Forma
SÃO MAMEDE – Galeria de arte
26 Maio 15 – 23 Junho 15

Por Cláudia Simenta

No espaço de traça pombalina da galeria de São Mamede, em Lisboa, dá-se o


encontro fortuito do desenhar de duas artistas. Emília Nadal e Catarina Patrício
apresentam-nos as suas propostas cujas fundações assentam em diferentes
conceitos de tempo e da passagem deste. Falam-nos de um tempo por vezes
lento, por vezes acelerado; de um tempo vivido ou simplesmente intuído; de
um tempo que se prolonga ou que se perde. Falam-nos do ritmo do tempo,
do ritmo do mundo.

Catarina Patrício apresenta-nos desenhos de grande formato de uma figura-


ção por vezes hiper-realista, por vezes apenas esboçada; ora constituída a par-
tir de um registo de grande expressividade gestual, ora a partir de uma extre-
ma contenção e economia de meios. A grafite é o material dominante, sendo
o desenho pontuado, aqui e ali, de aguadas de cinzentos, de subtis pormeno-
res de cor, ou de zonas vincadamente definidas (até violentamente cortadas)
por recurso a um exacerbar da técnica do claro-escuro.
«Em cada desenho uma série de linhas se cruzam, criando uma efabulação
permanente. O método que preside a estes efeitos é difícil de apreender. O
interesse de Catarina Patrício pelo cinema ressalta do cinematismo contido,
prestes a explodir em cada uma das imagens, quase todas “desviadas” de
filmes cuidadosamente escolhidos, de cineastas como Kubrick, Dreyer,
Tarkovsky, Muybridge que surge insistentemente nesta série.» (José
Bragança de Miranda, “A Linha da Terra” in O Resto e o Gesto: Desenhos
para o Século XXI, Fundação Côa Parque. 2014)

Os desenhos de Catarina Patrício partem quase sempre de uma imagética


cinematográfica que nos é reconhecível, que nos é familiar. Contudo, o pro-
cesso de execução que utiliza remete-nos, segundo José Bragança de Miran-
da, autor do texto da exposição, para a técnica do cut-up de Burroughs e Gy-
sin, através da qual ela cria uma nova narrativa (a sua) a partir dos estilhaços
daquela que lhe deu origem. Ela fragmenta, destrói, quebrando as linhas de
associação que ligam os momentos temporais da narrativa original, para a se-
guir proceder ao acoplamento de uma nova imagética, de uma nova simbo-
logia, desenhando uma linha (outra) de associação na reconstrução de uma
nova narrativa.

«De facto, cortar as linhas de associação que criam as estórias repetitivas e


tristes que caraterizam história, implica antes de mais revelar a própria linha,
dar conta da sua necessidade. Mais ainda, é evidente que desde que se trace
algo, que se junte seja o que for, se recompõe a linha, ou se descobre que a
linha está ao trabalho, inexoravelmente. […]» (José Bragança de Miranda, “A
Linha da Terra” in O Resto e o Gesto: Desenhos para o Século XXI, Fundação
Côa Parque. 2014)

«Tudo se joga no ordenamento do tempo» conforme referiu Paul Virilio em


entrevista à revista Cahiers du Cinéma e é nesse reordenar do tempo que
Catarina Patrício constrói as suas narrativas. Bill Viola fala-nos, a propósito da
sua obra, da pouca fiabilidade do vídeo, enquanto instrumento de registo da
realidade, precisamente por conferir uma certa maleabilidade ao tempo, por
permitir trabalhar o tempo. Da mesma forma, nas obras de Catarina Patrício o
tempo é igualmente algo de maleável, moldável, passível de ser distendido
ou comprimido; o tempo dobra-se sobre si mesmo, inverte-se, reflete-se, des-
dobra-se numa simultaneidade de eventos que acontecendo na mesma tem-
poralidade, ocorrem, contudo, em espacialidades diferentes.

– CLÁUDIA SIMENTA 345


Outra das premissas do trabalho de Catarina Pa-
trício encontra-se relacionada com o desenvol-
vimento tecnológico global e o impacto deste
no Homem e na Humanidade. Interessam-lhe as
contaminações multidirecionais que envolvem
a arte, enquanto forma de expressão, o cinema,
enquanto delineador/criador de narrativas, e a
tecnologia militar (a guerra), enquanto potencia-
dora do desenvolvimento da arte e do cinema.
Como deixei de me apoquentar e adorei a
bomba #2
Grafite e tinta s/ papel, Uma das suas grandes preocupações é, assim
92 x 150 cm, 2012
como para Paul Virilio, a utilização da tecnologia
– CONVOCARTE Nº.1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS

enquanto forma de supressão do corpo, de anu-


lação da corporalidade, de alteração do espaço
geográfico em todas as suas escalas. Contudo, e de acordo com a visão de Si-
mondon, a libertação do homem poderá, pelo contrário, passar precisamente
pela libertação da máquina se pensarmos que o trabalho que hoje conside-
ramos como “libertador do homem” – as denominadas “manualidades” – foi
outrora trabalho de escravos.

Numa das obras patentes na exposição somos confrontados, pela artista, com
a questão: Et ta délivrance? A pergunta leva-nos a refletir sobre se serão as
máquinas a razão da nossa moderna escravidão ou se, pelo contrário, serão a
razão da nossa tão desejada liberdade? Fica a questão…

Diferentemente do que acontece com Catarina Patrício, o tempo de Emília Na-


dal é outro. Longe da velocidade tecnológica da máquina, longe da loucura da
urbanidade e do tempo acelerado da denominada modernidade, Emília Nadal
permite-nos respirar propondo-nos um tempo de reflexão, de contemplação.

Na exposição “O Tempo e a Forma” apresenta-nos desenhos-calendário, me-


tamorfoses do natural que decorrem num tempo próprio da Natureza, um
tempo do qual nos encontramos privados pela velocidade que nós mesmos
imprimimos à nossa vida.

Emília Nadal já não se rege por esse andar (ou correr?) do tempo. O seu tem-
po, hoje, é o da contemplação, da observação, do ver. José-Augusto França, no
texto que redigiu para a exposição fala-nos, a propósito do desenhar de outro
artista, que este «andava cansado da imaginação e apetecia-lhe uma humil-
dade que não tinha». E, de facto, é situação que muito bem se aplica aqui. A
Calendário (junho)
Desenho a tinta s/ tela, 23 x 80 cm, 2010

ironia social de outros tempos deu lugar à poética da sinceridade e da paz de


espírito, do virtuosismo do saber fazer que se verte para representações da
Natureza e de «raminhos floridos», para uma organicidade contemplativa, que
resulta em reinterpretações de calendários, estações, metamorfoses, da passa-
gem do tempo.

As razões desta mudança de paradigma residem unicamente no pensar da pró-


pria Emília Nadal, permanecendo para nós desconhecidas, mas poderemos
sempre especular e referir, como Helena Osório no seu artigo sobre a expo-
sição, que tudo isto acontece porque «banhados pelo panorama selvático de
um mundo pleno de violência e de injustiças, os artistas repensam o passado,
o presente e o que se avizinha, mercê das conclusões que destes se retiram».

Assim, podemos concluir, que caberá agora a outras gerações (como a da


Catarina, porventura?) a incumbência de reordenar o nosso tempo, de en-
contrar novas formas de nos reestruturar enquanto indivíduos, novas formas
de “arrumar” a casa. Porque, com diz José-Augusto França, «assim também
vai a poesia, vivida e entendida, que ao artista humildemente apetece, sem
dar satisfações a quem de coisas mais vistosas, de brochas largas ou formas
encarrapitadas» e, tratando-se Emília Nadal de um muito estimado pilar da
nossa Arte Portuguesa, com contas saldadas, provas dadas e objetivos cum-
pridos, apetece-lhe agora apenas e só contemplar a Natureza; e eu atrevo-
-me a acrescentar: só, porque sim.

– CLÁUDIA SIMENTA 347


Guilherme Parente
Águas Régias
Azeitão: Galeria Via Idea
20 Junho – 15 Julho 2015

Água de Transcendencia

Por Raquel Farelo


– CONVOCARTE Nº.1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS

A exposição “Águas Régias” realizou-se no dia 20 de Junho às 18h na Galeria


de Arte Contemporânea, VIA IDEA, que apresentou uma exposição individual
do artista Guilherme Parente (Lisboa, 1940).

O Artista Guilherme Parente estudou pintura com o Mestre Roberto de Araújo, na


Sociedade Nacional de Belas Artes, pessoa que muito influenciou o seu trabalho.
Frequentou curso de gravura na Cooperativa Gravura e fez parte de uma gera-
ção de artistas que desde a década de 50, procuraram formação no estrangeiro.

Em 1968 Guilherme Parente ruma para Londres, onde permanece até


1970. Admitido pela Slade School of Fine Art como bolseiro da Gul-
benkian. Cinco anos após o regresso é galardoado com o prémio Ma-
lhoa e mais tarde em 1989 com o prémio de pintura da Sociedade
Nacional de Belas Artes, sendo desde então um artista com mérito re-
conhecido. Hoje é considerado um dos artistas Portugueses mais con-
sagrados internacionalmente, expondo individualmente, em Portugal,
na Bélgica, Alemanha, França, Inglaterra, Japão e nos Estados Unidos. 
Está representado no Ministério da Cultura, na Fundação Nacional Soares
dos Reis, no Museu Nacional de Arte Contemporânea, na Fundação Calouste
Gulbenkian e no Museu Machado de Castro.

Embora seja de certo modo uma “estrela”, da Arte Contemporânea Portu-


guesa, Guilherme é uma pessoa muito afável e doce, como as suas pinturas
e sem qualquer vaidade narcisista.
Guilherme Parente conheceu a Galeria VIA IDEA através do seu velho amigo e
colega da Sociedade de Belas Artes, António Osório de Castro que fez a ponte
entre o artista e a Galeria.

Após o convite da Galeria VIA IDEA, Guilherme Parente propôs uma exposi-
ção mista, com pinturas e aguarelas, mostrando assim duas técnicas e mate-
riais. E subsequentemente a variação preços, permitindo uma maior amplitu-
de de público na aquisição das obras.

A exposição inaugurou na véspera do solstício de Verão às 18h, um Sábado


quente com temperaturas de 34ª, onde a praia foi o local eleito dos Portu-
gueses nesse dia, influenciando a chegada atempada de muitos ao evento,
os convidados só começaram a chegar por volta das 19h, mas rapidamente
o espaço se compôs com artistas, amigos, curiosos e críticos.

Guilherme Parente foi descrito por Augusto França como um “pintor lírico e
fora do tempo”.

Lírico com certeza, pelo universo poético da sua pintura e fora do tempo,
não porque tenha nascido aquém do tempo, ou para além deste mas por-
que, o tempo é um conceito desconhecido e inexistente neste mundo das
ideias imaginadas.

Expôs, na VIA IDEA, uma tela enorme de 2.10 X140 sem engradamento com
o título: “Por mares nunca antes navegados” e uma outra “a travessia “, so-
bre madeira de pau-santo com a figura de um barco, com um elemento tri-
dimensional colado: “escantilhão” incorporando na pintura incorporando a
ondulação da bandeira presa na vela, esta temática não é mágoa das atlânti-
das perdidas, ou do saudosismo dos Descobrimentos que anima, mas a es-
perança, ou desejo de uma recriação da sua expressão.

O símbolo é usado como uma linguagem com dupla intencionalidade logo


necessita de ser interpretado, como o barco, símbolo da travessia da vida
e da morte. Representa a viagem cumprida ao longo da vida, ou a traves-
sia que leva a alma para um outro lugar ou relacionar-se à travessia em dire-
ção à vida, ao nascimento.

A sua obra revela um entusiasmo intrínseco e natural na conceção da viagem


da vida, onde através das suas pinturas somos transportados para uma outra
realidade, doce, terna e suave e por vezes melancólica.

– RAQUEL FARELO 349


Guilherme Parente usa as cores vivas, vibrantes e
puras, existindo sempre uma luz quente e recon-
fortante nas suas telas. Como já o tinha dito José
Augusto França, “Na pintura – pintura de Guilher-
me Parente, jamais faz mau tempo, por impossibili-
dade metafisica.”

Nas aguarelas apresentadas notamos uma leveza do


gesto que se construiu desde a sua infância, quan-
do habitualmente desenhava figuras de chapéu-de-
-chuva que a sua mãe guardou religiosamente. Ele
"Por onde o tempo não passou."
é um homem com espirito de criança, por isso não
– CONVOCARTE Nº.1 | CRÍTICA DE EXPOSIÇÕES E EVENTOS CULTURAIS

admira que seja um apaixonado pela arte das mes-


mas, capazes de criar livre de modelos.

No próprio trabalho ele usa uma simplicidade semelhante à usada por elas,
empregando cores intensas inspiradas por uma viagem ou por um sonho re-
criando um mundo através da imaginação

A sua sensibilidade, intuição e devaneio voltado à infância, convergem num


mundo onírico e simbólico, criando figuras e objetos do fantástico que se
perpetuam na imaginação do próprio e na sua dimensão criativa.

Seu professor e Mestre Cid dos Santos, conjuntamente com Anthony Gross,
reconheceram nele um “artista sensível, dotado de imaginação”.

Estamos perante um artista que viaja do sonho para a matéria. Usa o seu liris-
mo para narrar um mundo simbólico, onde os objetos e figuras, são muito mais
que meras representações gráficas. Elas representam signos e mitos que reve-
lam um pensamento profundo de Ser.

É uma pintura onde o sonho é tornado visível, onde não existe tempo porque
as emoções, afetos e imaginação não se quantificam, só se sentem.

As suas pinturas comunicam intimamente com observador, na medida em


cada um constrói a sua história, partindo das imagens mais ou menos sim-
plificadas que a composição apresenta mas quando percecionadas de
modo invulgar, podem ser reveladoras conduzindo a um estado de liber-
dade, como quando sonhamos acordados…
Inspirado pelo elixir da vida, Guilherme Parente pinta, “cá é lá”, sendo um al-
quimista no ateliê, transformando a matéria com que pinta numa arte revela-
dora do fantástico mistério da vida.

O nome que intitula a exposição é ambíguo, se por um lado tem uma referên-
cia direta às águas reais, à memória histórica de um Povo de navegadores e
descobridores, onde eramos o Povo Rei do Mar, por outro podemos pensar
que a utilização da folha de ouro nas suas pinturas confere uma analogia à,
“Água-régia”, (líquido capaz de dissolver metais nobres) porque como ela, a
sua pintura também dissolve o observador na sua narrativa simbólica e trans-
forma-o, alcançando a verdade e curando-o dos males da vida.

A pintura Guilherme Parente agradece à vida, à obra de Deus e um dia… uma


das suas telas se transformará na “ Grande Obra “,obtendo o elixir da imortali-
dade a água de transcendência.

– RAQUEL FARELO 351


Actividades Convocarte

Encontros com Críticos de Arte – Homenagem a


Rui Mário Gonçalves

Ao longo do mês de Maio de 2015, organizou-


-se o 1º ciclo de Encontros com Críticos de Arte,
– CONVOCARTE Nº.1 | ACTIVIDADES CONVOCARTE

decorridas às segundas no Auditório Lagoa Hen-


riques da FBAUL. Sucedidas no âmbito do Mes-
trado de Crítica, Curadoria e Teorias de Arte, e
de linhas de trabalho do CIEBA-secção Francisco
d’Holanda, o evento teve o envolvimento da re-
vista Convocarte, a partir da sua proximidade com
linhas de investigação sobre a historiografia, a crí-
tica e a teoria estética em Portugal, cujos contri-
butos são patentes na segunda pasta de ensaios
desta edição. O evento pretende deixar alguns
contributos que compensem a carência de estu-
dos relativos aos discursos sobre arte em Portu-
gal, sobretudo no caso da crítica de arte em Por-
tugal. Sendo um trabalho da Área de Ciências da
Arte e do Património, teve a organização dos Pro-
fessores Cristina Tavares e Fernando Rosa Dias.

Este ano, os encontros fizeram uma homenagem


a Rui Mário Gonçalves, um dos mais destacados
críticos de arte portuguesa da segunda metade
do século XX, que nos abandonara cerca de um ano antes, em Maio de 2014.
Para os próximos encontros prepara-se uma sessão especial mais alargada
sobre Rui Mário Gonçalves, abordando a sua importância em diferentes fa-
cetas, tais como crítico de arte, historiador de arte ou curador.

Os problemas actuais do exercício da crítica de arte, tal como as suas rela-


ções com a prática curatorial, ou as suas contribuições para a teoria e história
da arte, foram aspectos colocados em debate e
reflexão. Com cerca de 2 horas, as sessões decor-
reram não propriamente como uma conferência
nem como um aula, mas como depoimentos pes-
soais, desenvolvidos em tom de conversa com os
moderadores e com os interessados presentes.
Apesar do desenvolvimento livre, as sessões de-
correram com a seguinte preocupação estrutural, Encontros com Críticos de Arte – sessão com o
mais ou menos pela mesma ordem: Professor José-Augusto França, 4 Maio 2015.
[Da esquerda para a direita: Cristina Tavares,
José Augusto França e Fernando Rosa Dias]
• Uma breve apresentação biográfica inicial
de cada crítico convidado, por vezes desen-
volvida pelo próprio.
• Uma direcção sobre  histórias e memórias pessoais da actividade de
crítico de arte.
• Tentar definir e problematizar, a partir da experiência pessoal, a activi-
dade de crítico de arte.
• Discutir a situação actual da actividade de crítico de arte.
• Em todos estes parâmetros interessa  possíveis relações com a expe-
riência da curadoria, da história ou das teorias da arte, seja algum contri-
buto pessoal, seja algum posicionamento pessoal.
• No caso deste ano de 2015, houve ainda a preocupação de apresentar
testemunhos pessoas relativos a Rui Mário Gonçalves.

As sessões decorreram com os seguintes convidados:

• José-Augusto França – 4 Maio 2015


• Sandra Vieira Jürgens – 11 Maio 2015
• José-Luís Porfírio –18 Maio 2015
• Sílvia Chicó – 25 Maio 2015

Os convidados abarcavam assim, geracionalmente, um tempo vasto de


percurso da crítica de arte em Portugal. José-Augusto França, actuante
desde a década de 1940, é uma figura incontornável da crítica e história
da arte em Portugal, tendo feito a primeira grande sistematização da his-
tória de Arte Portuguesa da Era Contemporânea, tornou-se parte essencial
dela. A cumplicidade com Rui Mário Gonçalves, os esforços de profissio-
nalização da crítica de arte, com a reforma da secção Portuguesa da AICA
em finais dos anos 60, tal como reflexões sobre o que é a actividade, foram
alguns dos motes da sua intervenção. José Luís Porfírio, com carreira no

353
âmbito museográfico, tendo sido director durante vários anos do Museu
de Arte Antiga, apresentou o seu diálogo com a prática crítica, que tem
exercido regularmente desde os anos 60, transportando essa experiência
de décadas, desde tempos dinâmicos da actividade até à sua derrisão ac-
tual. Sandra Vieira Jürgens, representando gerações mais recentes, apre-
sentou envolvimentos da crítica com a curadoria e o uso de plataformas
digitais para as quais se tem deslocado a crítica de arte, abrindo espaços
de discussão sobre a actividade nestes novos suportes. Sílvia Chicó iniciou
a sua apresentação com reflexões sobre a vasta actividade de Rui Mário
Gonçalves, tendo numa segunda parte, apresentado o seu percurso pes-
soal, enquanto crítica, professora e curadora, com atenção ao lugar do fe-
minino nestas áreas.
– CONVOCARTE Nº.1 | ACTIVIDADES CONVOCARTE

As sessões videogravadas podem ser vistas em:

11 de maio – https://educast.fccn.pt/vod/clips/1680fq51w7/link_box
18 de maio – https://educast.fccn.pt/vod/clips/1ojgjnzd3g/link_box
25 de maio – https://educast.fccn.pt/vod/clips/2khzgjmdri/link_box
Procedimentos e Orientações de
Publicação em Convocarte

Conselho Científico Editorial e Pares Académicos


do nº1 de Convocarte

Pares Académicos Internos à FBAUL:

• Fernando Rosa Dias – Professor Auxiliar de Ciências da Arte, FBAUL, In-


vestigador do CIEBA, secção Francisco d’Holanda – Coordenação Geral da
Revista Convocarte
• Cristina Tavares – Professora Associada de Ciências da Arte e do Patrimó-
nio na FBAUL e no PD-FCTAS da FCUL, Investigadora integrada do CFCUL,
Head de Arte e Ciência,  investigadora colaboradora do CIEBA​.
• Eduardo Duarte – Prof. Auxiliar de Ciências da Arte e do Património na
FBAUL, Investigador do CIEBA, Responsável do 2.ºCiclo das Ciências da Arte
e Coordenador do Mestrado em Museologia e Museografia.

Pares Académicos Exteriores à FBAUL:

• José Pedro Regatão – Professor na Escola Superior de Educação do Institu-


to Politécnico de Lisboa, Doutoramento em Ciências da Arte (Área Específica:
Arte Pública), Investigador - Coordenador do Dossier Temático do nº2 da revista
Convocarte: »Arte Pública» (convidado):
• Javier Maderuelo – Catedrático de Composición Arquitectónica, Universidad
de Alcalá. Encargado de investigación en Archivo Lafuente
• Juan Carlos Ramos Guadix – Artista plástico, Gravador, Profesor Titular, Depar-
tamento de Dibujo, Faculdad de Bellas Artes, Universidad de Granada
• Ângela Ancora da Luz – Historiadora e Crítica de Arte, vice-Presidente da
ABCA, Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro
• Raquel Henriques da Silva – Professora Associada da FCSH-UNL. Directora do
Instituto de História da Arte FCSH-UNL.
• Isabel Nogueira - Doutorada em Belas-Artes, em Ciências e Teorias da Arte
(FBAUL) e pós-doutorada em História e Teoria da Arte Contemporânea e Teo-
ria da Imagem (Universidade de Coimbra e Université Paris 1 Panthéon-Sor-
bonne). Professora Universitária, Investigadora de Arte Contemporânea e
Curadora independente. 

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O Espírito da Revista Convocarte

A revista é de suporte digital e pretende convocar para discussão especialistas de te-


mas das artes, a partir de diferentes formações das artes e humanísticas: historiado-
res de arte, filósofos da estética, críticos e teóricos da arte, curadores, museólogos,
de áreas afins interessadas pelas questões da arte, tais como antropologia, sociolo-
gia, psicologia e psicanálise, estudos da linguagem e do signo, etc… ou os próprios
artistas. O seu princípio é ter um Tema, em torno de questões da arte, que domina
cada número e que é o centro de uma Convocação para a reflexão e discussão.
– CONVOCARTE Nº.1 | PROCEDIMENTOS E ORIENTAÇÕES DE PUBLICAÇÃO EM CONVOCARTE

A Convocarte assume o português como língua base, estendendo a recepção de


textos a línguas tradicionais no mundo universitário português: espanhol, inglês e
francês. O Conselho Científico Editorial trabalhará nessas diferentes línguas sempre
que necessário, com envio dos textos de modo ajustado a essas competências. Os
textos podem ser enviados escritos em cada uma destas línguas, defendendo-se
pluralidade, mas com a preferência de que cada autor escrevesse e pensasse na sua
linguagem de formação base. Se a FBAUL é o seu natural centro de edição e convo-
cação, o seu alcance é plural e cosmopolita.

É uma revista com Leitura e Revisão de Pares (peer review), sem chamada de textos
(call for papers) mas com base na discussão e sugestão. A principal função é criar um
espaço de discussão e publicação de questões múltiplas do mundo (plural) das artes.

Processos Editoriais

— Funções do Conselho Científico de CONVOCARTE – Revista de


Ciências da Arte

O controlo científico e editorial do Dossier Temático, que especifica cada número da


Convocarte, com colaborações de fundo mais alargadas, funciona a partir de textos
solicitados por convites directos aos autores, a partir de uma Coordenação Geral e em
consulta do Conselho Científico Editorial constituída para cada número, que coorde-
na cada dossier temático e que constituirá o painel de Revisão de Pares (Peer Review).
Neste sentido não será efectuada nenhuma chamada aberta de textos (Call for Pa-
pers). Contudo, investigadores interessados poderão apresentar textos à revista, com
consulta prévia através de curriculum científico e explicitação da questão a abordar,
que serão depois apreciados pelo Conselho Científico Científico (cada tema é anun-
ciado no número anterior).

Não há submissão de textos, e é nesse espírito que deve actuar o Conselho Científico
Editorial. A relevância deste método de revisão de pares (com espírito de discussão
de pares) é criar um espaço de debate e partilha científicos pré-editorial, que preten-
de ser uma forma aberta e dialogante entre especialistas das Ciências da Arte em ge-
ral. Por isso, a revisão não é duplamente cega, mas apenas para os autores. Qualquer
membro do Conselho Científico Editorial que apresente texto para o Dossier Temá-
tico, terá que colocar o seu trabalho também em processo de revisão. Nenhum ele-
mento do Conselho Científico Editorial faz revisão do seu texto ou de um autor que
tenha proposta. É apenas a Coordenação que tem a função de organizar e distribuir
os textos para revisão.

Com rigor e partilhas científicas, pretendemos encontrar uma plataforma de revisão


de pares mais ajustada às áreas humanísticas e artísticas relativamente ao modelo do-
minante, muito anglo-saxónico e mais apropriado às Ciências Exactas e Tecnológicas.

Os trabalhos do Conselho Científico Editorial centram-se apenas no Dossier Temático,


mais alargado e central em cada edição. As restantes pastas da revista, resultam de
trabalhos no âmbito de ciclos de formação da FBAUL em articulação com linhas de in-
vestigação do CIEBA, cabendo a sua revisão a coordenadores de linhas de investiga-
ção do CIEBA e à Coordenação Geral. Contudo, em casos específicos, a Coordenação
poderá, relativamente a um destes textos, fazer uma consulta a membros do Conselho
Científico Editorial.

— Funções do Conselho Científico Editorial:

1. Sugestão de investigadores especializados do Dossier Temático para colaborarem


no número correspondente.
2. Apreciação de textos/ensaios, através de breve texto com os seguintes parâmetros
e critérios:
a) Ajustamento do texto/ensaio à política editorial da revista, enquanto revista Uni-
versitária no âmbito das Artes e Humanidades.
b) A adequação do texto/ensaio ao Tema do Dossier.
c) Originalidade do objecto da investigação ou da reflexão.
d) Linguagem especializada, competente e adequada aos problemas em foco.
c) Qualidade científica e metodológica na pesquisa e investigação, tal como na
escrita e argumentação.

357
e) Competência argumentativa e crítica.
f) Domínio de conhecimentos artísticos, históricos, estéticos, e filosóficos.

3. Sugerir melhorias de alterações em forma de breve comentário, se consideradas


necessárias, em função dos parâmetros anteriores ou outros afins (máximo de 1000
caracteres).

Cada texto do Dossier Temático será apreciado por dois revisores do Conselho
Científico Editorial.

As propostas são sempre distribuídas por elementos do Conselho Científico Edito-


rial que não estão na origem da indigitação dos candidatos ou que não correspon-
– CONVOCARTE Nº.1 | PROCEDIMENTOS E ORIENTAÇÕES DE PUBLICAÇÃO EM CONVOCARTE

dam aos próprios.

Sendo um sistema por convite de investigadores especializados, e centrado em su-


gestões, o processo de revisão de pares não será feito sobre os abstracts, mas sobre
o texto final.

Reserva-se à Coordenação, com base nas apreciações das considerações do Conse-


lho Científico Editorial, a recusa de edição de algum dos textos, seja por desajusta-
mento ao Tema, ao défice científico ou à recusa em efectuar alterações a partir das
sugestões de leitura do Conselho Científico Editorial.

A Coordenação pode consultar o Conselho Científico Editorial, ou alguns dos seus


membros, para questões específicas, de dúvida e com carácter de excepção, que
surjam ao longo dos trabalhos.

— Formato dos textos candidatos ao Dossier Temático:

1. Texto geral de c.30.000 (ou entre 20.000 e 35.000) caracteres sem espaços
2. Um resumo (abstract) em inglês ou francês de c.850 caracteres sem espaços
3. Até ao máximo de 8 imagens para reprodução, com devida indicação das respectivas
legendagens (as imagens poderão ser a cores; os processo de autorização e a responsabi-
lidade dos direitos de reprodução das imagens são da responsabilidade do autor do texto)
4. Direitos de autor: dentro do abrigo das edições da Universidade de Lisboa. Cada
autor será responsabilidade por qualquer acto de plágio ou de indevida autorização
de reprodução de imagens ou trechos que escapem à supervisão do Conselho Cien-
tífico Editorial.
5. Utilização coerente de princípios universitários de indicação das fontes documen-
tais e bibliográficas (o sistema e norma adoptados serão da opção de cada autor, mas
o Conselho Científico Editorial pode pronunciar-se sobre a sua adequação e rigor).
6. A redacção dos textos em português a Coordenação deixa a cada autor a liberdade e
responsabilidade de escolha da utilização do acordo ortográfico ou da antiga ortografia.
7. Os textos podem ser apresentados nas seguintes línguas, adequadas à origem e
formação dos respectivos autores: português, espanhol, francês e inglês.

Qualquer outra excepção será apreciada pelo Conselho Científico Editorial e fará par-
te do seu comentário. A decisão final dessas excepções caberá à Coordenação Geral
e ao Coordenador do Dossier Temático.

A Convocarte é uma revista digital pública da FBAUL. OS autores cedem os direitos a


essa publicação através do mundo universitário. Os direitos específicos de publicação
e divulgação dos trabalhos da Convocarte passam, por inerência, a ser propriedade
da Universidade de Lisboa, segundo os seus regulamentos, à qual pertence a FBAUL.

— Sequência e processos de trabalho:

Determinado o Conselho Científico Editorial para cada número, segue-se a seguinte


sequência de trabalhos, cada qual com data limite, segundo calendário a definir em
cada proposta de trabalhos na preparação de cada número.

1. Sugestão de autores/ensaístas por parte do Conselho Científico Editorial e recep-


ção de propostas de textos exteriores por parte da Coordenação (a selecção inicial
das propostas exteriores são da responsabilidade da Coordenação Geral e do Dossier
Temático, com consulta de membros do Conselho Científico Editorial, se considerado
necessário).
2. Convocação dos textos finais aos autores em data a calendarizar para cada número.
3. Envio dos textos ao Conselho Científico Editorial, com princípios e grelha de apre-
ciação (2 para cada texto).
4. Recepção das apreciações da Coordenação e reenvio para os autores para altera-
ções ou correcções, a partir das sugestões do Conselho Científico Editorial.
5. Envio dos textos alterados e/ou corrigidos para a paginação. A paginação ainda
será devolvida aos autores para últimos acertos (já não de alteração do texto).
6. Lançamento

Os comentários do Conselho Científico Editorial são devolvidos aos autores tal como
chegam à Coordenação Geral e Temática, mantendo-se todas as opções pessoais da
apreciação qualitativa. Embora sejam sugestões, sublinha-se uma sua leitura atenta por
parte dos autores. Pretende-se depois que, perante estas análises críticas, estes ponde-

359
rem necessárias alterações: revendo, corrigindo, justificando, cortando, acrescentando,
deslocando, etc. A principal intenção da apreciação qualitativa, destaque-se, é a melho-
ria qualitativa dos textos através de um plano intersubjectivo de funcionamento.

— Proposta externa de Texto/ensaio para a revista Convocarte

A coordenação pode aceitar, para o Dossier Temático, propostas de trabalhos exte-


riores ao processo de convites do Conselho Científico Editorial. Para isso, a proposta
deve ser enviada para a Coordenação através do email da revista Convocarte [con-
[email protected]], acompanhada dos seguintes elementos:
a) Curriculum Vitae académico e de investigação, sobretudo centrado em traba-
lhos relativos ao tema do Dossier.
– CONVOCARTE Nº.1 | PROCEDIMENTOS E ORIENTAÇÕES DE PUBLICAÇÃO EM CONVOCARTE

b) Um resumo até 1000 palavras sem espaços da proposta do seu trabalho.


c) Carta ou email de motivação.

A proposta deve seguir as orientações de cada tema apresentadas no final de cada


número de Convocarte.

Sendo aceite pela Coordenação, os trabalhos seguem os processos gerais dos ou-
tros textos, para leituras e sugestões do Conselho Científico Editorial.

Também podem ser propostos textos para as restantes pastas da revista Convocarte,
ficando neste caso à responsabilidade da Coordenação Geral, com possíveis con-
sultas a membros do Conselho Científico Editorial ou a Coordenadores de linhas de
investigação do CIEBA.
Apresentação do Dossier Temático
do nº2 de Convocarte: «Arte e
Geometria»

A Geometria é uma das mais importantes matérias de estudo, transversal a todas


as grandes civilizações da Antiguidade. A sua utilidade revelava-se nas práticas de
construção arquitectónica, bem como no aprofundamento do conhecimento sobre
a terra ou no desenvolvimento da astronomia. A importância do teorema de Pitágo-
ras é sobejamente conhecida e a extensa recolha de definições, postulados, propo-
sições e provas matemáticas levada a cabo por Euclides dá nome a um ramo da pró-
pria Geometria (Euclidiana), além de enformar o pensamento de múltiplos filósofos,
astrónomos e matemáticos durante séculos.

A compreensão do espaço através da Geometria reflecte-se ainda na importância


das inúmeras associações simbólicas de que é alvo, sendo por exemplo posta ao
serviço de fundamentos religiosos, tanto no Ocidente como no Oriente. Seja pela
exploração de padrões, pelo estudo das proporções, pela riqueza conferida à com-
posição visual ou pela determinação e desenvolvimento dos fundamentos da pers-
pectiva linear, a Geometria tem um lugar de importância maior na história da Arte.
Em épocas mais recentes a exploração da Geometria continuou a trazer novidade e
mudança, particularmente nas artes visuais, senão note-se a importância do cubis-
mo, da abstracção geométrica ou mesmo da op art.

Isto faz com que o estudo abrangente das várias formas de aplicação da Geometria
na Arte seja essencial. Aceitando que a bibliografia existente no campo da análise
geométrica e composicional de pintura, arquitectura ou escultura é considerável, é
inevitável notar que a mesma deve mais à iniciativa individual dos seus autores do
que a uma linha metodológica estabelecida, como acontece por exemplo na história
da arte ou outros campos de análise da imagem (casos de Charles Bouleau, Matila
Ghyka, Robert Lawlor ou Martin Kemp).

Reunir estratégias de investigação mais recentes sobre o tema contribuirá para cla-
rificar e enriquecer metodologias no campo da Geometria aplicada à Arte. Estudos
de caso podem incluir ainda artistas plásticos contemporâneos que fazem uso de

361
propriedades geométricas na sua obra, aplicações que entrecruzam ciências e per-
cepção visual (como o caso da cartografia) ou mesmo o estudo da relação da Geo-
metria com a simbologia.

Contudo, o tema, com vasta profundidade histórica, artística e cultural, tem estado
esquecido nos debates recentes do mundo universitário, como que fora de moda,
pelo que a sua convocação de estudos actuais, se apresente um desafio particular a
que a Convocarte resolveu avocar. Apresentamos alguns motes, com exemplos ge-
néricos, de desenvolvimentos possíveis de propostas de texto. Longe de ser exclusi-
va, esta é uma amostra das potencialidades do tema:

• A Geometria na arte, caso da tratadística e a sua preocupação com as medidas,


– CONVOCARTE Nº.1 | PROCEDIMENTOS E ORIENTAÇÕES DE PUBLICAÇÃO EM CONVOCARTE

desde a antiguidade até, pelo menos, ao modulor de Le Corbusier.


• A Geometria como instrumento de estudo da obra de arte, na história e nas
teorias da arte, caso dos famosos estudos de Panofsky sobre as proporções na
representação do corpo ou sobre a perspectiva, ou estudos de análise de ima-
gem e de composição e a averiguação de princípios geométricos-matemáticos
nas obras, tais como a regra de ouro.
• A utilização de princípios geométricos em movimentos, estilos ou técnicas ar-
tísticas, como a abstracção geométrica, a op art, os padrões geométricos na tra-
dição do azulejo, em culturas não figurativas, etc.
• A Geometria nas várias artes: a métrica na música e na poesia; a regra de ouro
na composição de obras de várias artes visuais, da pintura à tipografia; o canon
da figura humana, etc.
• A Geometria na relação entre as artes, em modos de analogia ou de interferên-
cia; por exemplo a utilização de padrões geométricos na decoração de edifícios
arquitectónicos ou de espaços urbanos.
• O confronto de tempos e movimentos culturais mais marcados pela Geome-
tria, com outros menos aderentes.
• A Geometria e a educação artística, como disciplina basilar em diferentes es-
paços e níveis de ensino artístico.
• O debate da actualidade da Geometria na arte e a sua possível actualidade ou
mesmo crise (ver em exemplo o ensaio de Peter Halley: «A Crise da Geometria»,
in Arts Magazine, nº10, 1984).
• O especialista convidado para co-coordenar o Dossier Temático, é o investiga-
dor do CIEBA Simão Palmeirim. Formado em Pintura pela FBAUL e com o mes-
trado em Fine Arts pela Central Saint Martins College of Art com a tese Sublime
after objecthood and awareness of scale, terminado em 2009, tendo já entregue
tese de doutoramento (FBAUL) em Ciências da Arte com o título A aquisição do
espaço plástico renascentista na Pintura Portuguesa de 141 a 1525 - competên-
cias geométricas e compositivas do final da Idade Média ao início do Renasci-
mento. Além de se debruçar sobre a importância da Geometria na Pintura da
época que a tese de doutoramento abarca, Simão Palmeirim tem trabalhado em
parceria com Pedro J. Freitas (FCUL) e o projecto “Modernismo Online: Arqui-
vo Virtual da Geração de Orpheu”, particularmente no que diz respeito à obra
plástica de Almada Negreiros. Esta colaboração levou recentemente à edição
(em co-autoria com Pedro Freitas) de artigos como “Almada Negreiros and the
geometric canon” Journal of Mathematics and the Arts, Oxford: Taylor and Fran-
cis, 2015; Os Problemas de Matemática de Almada Negreiros, atas do Encontro
Nacional da SPM, 2014; “A linguagem do quadrado” Cinequanon, nº 8, FLUL,
2014; “Geometria na obra abstracta de Almada Negreiros. Quatro composições
de 1957” Revista de História da Arte, série W nº 2, 2014 e do livro (no prelo) Livro
de problemas de Almada Negreiros, SPM.

Fernando Rosa Dias | Simão Palmeirim

363
– CONVOCARTE Nº.1 | PROCEDIMENTOS E ORIENTAÇÕES DE PUBLICAÇÃO EM CONVOCARTE

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