A Querela Do Brasil 2021
A Querela Do Brasil 2021
A Querela Do Brasil 2021
A Querela
do Brasil
A questão da identidade
da arte brasileira
CARLOS ZILIO
A querela do Brasil
A questão da identidade da arte brasileira:
a obra de Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari / 1922-1945
Fotos e desenhos
Fundação Oscar Niemeyer
Capa
Carlos Zilio
Gustavo Meyer
Sobre quadro de
Tarsila do Amaral
Urutu, 1928
Óleo s/tela
60,5 X 72,5cm
Coleção Gilberto Chateaubriand / MAM-RJ
Foto: Vicente de Mello
Digitação: Luci Mendes
Revisão: Sonia Cardoso
Rediagramação: Sonia Goulart
a meus pais
e à Maria del Carmen
PRESSUPOSTOS À CONCEITUAÇÃO
O PROBLEMA DA CONCEITUAÇÃO 16
CRITÉRIOS METODOLÓGICOS 20
O ESPAÇO MODERNO 23
O NACIONALISMO 47
OS BRASILEIROS EM PARIS 70
A ICONOGRAFIA MODERNISTA 78
O SISTEMA DE TARSILA 79
O SISTEMA DE DI CAVALCANTI 85
O SISTEMA DE PORTINARI 90
BIBLIOGRAFIA 124
INTRODUÇÃO DA PRIMEIRA EDIÇÃO
Este trabalho de pesquisa possui uma particularidade: não foi realizado por
um teórico, mas por um artista. A diferença, no caso, não diz respeito, como
se poderia supor, a um menor rigor metodológico. A distinção básica se si-
tua na motivação para a feitura do trabalho, uma vez que, como artista, ‘a
questão da identidade da arte brasileira’ se refere diretamente à formulação
do nosso trabalho. Sendo uma pesquisa realizada por um artista, ela possui,
também, o sentido de atuar criticamente em relação às velhas ideologias da
arte, que pretendem uma divisão do trabalho na qual os críticos pensam e os
artistas são ‘inspirados’. Esta concepção, desmentida inclusive pela inúme-
ra produção teórica dos artistas modernos, ainda permanece com alguma
atualidade no Brasil.
A questão de uma arte brasileira, sem nos determos aqui no mérito da
sua conceituação, diz respeito à própria ambiguidade da cultura brasileira,
latina, de herança cultural europeia, mas profundamente influenciada pelas
culturas indígenas e negras. Por outro lado, esta questão refere-se também à
situação periférica que o Brasil ocupa no sistema internacional de produção
do conhecimento.
Nossa análise, no entanto, delimita sua área de pesquisa à ocorrência
destas questões, numa época determinada e nas artes plásticas. Neste ter-
reno específico, duas constatações surgem de imediato. No plano da produ-
ção, a determinante influência exercida pelos modelos estéticos dos centros
internacionais sobre arte brasileira. No plano teórico, a tendência a analisar
esta situação com a lente de uma polaridade maniqueísta: internacionalismo
e nacionalismo. A nossa tentativa foi de pesquisar ‘a questão da identidade
arte brasileira’, atentando para sua complexidade e procurando retirá-la des-
te tipo de orientação.
Visto que o objetivo da pesquisa foi o de estudar a obra de Tarsila, Di
Cavalcanti e Portinari como expressão de uma concepção de arte brasilei-
ra elaborada pelo Modernismo, a análise se fez segundo uma metodologia
capaz de articular obra de arte e cultura. Esta escolha, embora possa ter li-
mitado as possibilidades de análise da obra de cada um dos três artistas, se
impunha ao considerarmos nossos objetivos.
Dito isto, é necessário esclarecer que esta pesquisa não possui preten-
sões inovadoras. Nossa intenção, longe de qualquer grande originalidade
teórica, foi a de ordenar ideias. Com isto pretendemos não apenas atingir
objetivos imediatos, tendo em vista a nossa própria produção de arte, como
também sistematizar uma posição capaz de contribuir para o debate cultural
brasileiro.
2 Ver
meu artigo “O Centro na margem”, Gávea n. 10, Departamento de História, CCE, PUC-Rio,
março de 1993, no qual analiso a relação de Goeldi com a modernidade brasileira.
dernista. Inegavelmente, a arte, enquanto uma concepção moderna trazi-
da pelo Iluminismo, passa a existir no Brasil graças à atuação da Missão
Francesa e, particularmente, pelo empenho de Debret ao deixar um siste-
ma de arte fundado no país ao retornar à França.
Se a Missão era composta por neoclássicos, seus discípulos brasi-
leiros já estavam ligados ao Academismo, compreendido aqui como uma
tendência que, ao longo do século XIX e início do século XX, propõe um
estilo baseado no Neoclássico que irá recebendo constantes influências
“modernizadoras”. Araújo Porto Alegre, discípulo dileto de Debret, é o
primeiro, e não os artistas do Modernismo, conforme afirmei no livro, a
propor uma visão programática para a arte brasileira. Ao fundar o que no-
meou como Escola Brasileira de Pintura, de estilo acadêmico e temática
histórica, Porto Alegre pretendeu criar uma imagem afirmativa para um
país recém-independente, que foi encontrar em Vítor Meireles e em Pedro
Américo os seus mais importantes representantes. Um projeto amplo,
tendo a Academia Imperial de Belas Artes como centro, e que objetivava
alterar todo o sistema de arte, apontando para um projeto “civilizatório”,
isto é, o de equiparação à cultura oficial dos principais países ocidentais.
Este projeto irá sofrer, a partir do início da década de 1880, uma con-
testação influenciada pela pintura ao “ar livre”, voltada para investiga-
ções formais próximas a uma sensibilidade pré-impressionista na qual se
destaca a pintura de Castagneto, que é, seguramente, o primeiro artista
brasileiro a se vincular à pintura moderna, ao desenvolver uma relação
de filiação romântica e de comunicação emotiva com o real.3 No plano
teórico, Gonzaga Duque, informado sobre teóricos e artistas europeus
contemporâneos, demonstra em sua crítica o sentido de modernidade,
ao propor a dúvida contra os cânones e a análise da obra, ao invés dos
apriorismos idealistas. Mas novamente a inércia conservadora institucio-
nal prevalece. Alguns trabalhos isoladamente procuram manter o ques-
tionamento, mas são insuficientes para impedir que o conservadorismo
crescente acabe por triunfar, com a saída de Lúcio Costa da direção da
Escola Nacional de Belas Artes em 1931.
Seria necessária uma análise mais detida sobre o sentido messiâni-
co contido nos projetos de Debret e de Porto Alegre e de como o naciona-
lismo romântico repercutiu sobre este último. O sentimento de origem e
de redenção que estes projetos possuíam não serão estranhos ao Moder-
nismo. Pode-se afirmar que já emerge da Academia o substrato dos prin-
cípios modernistas do progresso (atualização) e de identidade nacional
(nacionalismo). A diferença com o Modernismo está apenas na mudança
de cânones, na troca do Neoclássico pelo Pós-Cubismo.
Algumas distinções, no entanto, devem ser precisadas. Porto Alegre
buscou, com os cursos ligados a ofícios, vincular a Academia à industria-
lização, porém numa sociedade escravagista este projeto só conseguiu
se implantar no final do século XIX, restrito a uma lógica de embeleza-
mento da produção industrial. Para o Modernismo, o racionalismo do
Pós-Cubismo era a resposta para a compatibilização entre arte e socie-
dade industrial. Seu desejo de constituir uma identidade nacional o enca-
minha a buscar no primitivismo, por sua inter-relação com o Cubismo, o
instrumento capaz de sintetizar o desejo de progresso com o de afirma-
ção cultural.
ver, também, o livro de Sheila Cabo Geraldo, Goeldi. Modernidade extraviada, Rio de Ja-
neiro: Diadorim/Adesa, 1995.
O Modernismo, na sequência de seus momentos, revela uma ten-
dência paradoxal de uma modernização conservadora. Em sua luta pela
inovação consegue apenas aparentemente levar a cultura brasileira à
modernidade. As aparências enganam, mas serviram para produzir um
exercício cultural importante, capaz de levar a sociedade a debater e
questionar seus valores simbólicos e a renovar seu sistema de produção
e circulação de arte.
Carlos Zilio
Fevereiro de 1997
“Seremos lidíssimos! Insultadíssimos. Celebérrimos. Teremos os nossos
nomes eternizados nos jornais e na História da Arte Brasileira.”
O PROBLEMA DA CONCEITUAÇÃO
CRITÉRIOS METODOLÓGICOS
O ESPAÇO MODERNO
Mondrian
Pintura II/Quadro II, 1921-25
Óleo sobre tela, 75 x 65cm
Coleção Max Bill, Zurique
32 Pressupostos à conceituação
Duchamp
Roda de bicicleta, 1913
Museum of Modern Art, Nova York
De Chirico
Retrato de Guillaume Apollinaire, 1914
Óleo sobre tela, 81,5 x 65cm
Musée National d’art Moderne, Paris
Pressupostos à conceituação 35
Magritte
As férias de Hegel, 1958
Coleção Isy Brachot, Bruxelas
De fato, a viagem, que poderia ser uma respiração para esse sis-
tema, só servia na realidade para manter sua confirmação, uma vez
que, ao chegarem à Europa, os premiados buscavam professores que
correspondessem ao mesmo modelo da escola brasileira. É verdade que
nessa rotina irão surgir aqui e ali pequenos desvios. Alguns artistas se
voltam para as orientações menos desatualizadas ou pressentem vaga-
mente as transformações que corriam fora das academias, ou ainda, vol-
tando ao Brasil, procuram adaptar a paleta acadêmica à cor local. São as
leves modificações que a pintura oficial irá sofrer com Almeida Júnior,
Visconti, Belmiro de Almeida e Timóteo da Costa, por exemplo. São mu-
danças, portanto, que não chegam a comprometer as bases dessa pin-
tura, pois ocorrem mais na aparência que propriamente como alteração
dos princípios acadêmicos.
Entre essa arte produzida, o público e o poder político havia uma
perfeita harmonia, o que dava à arte um lugar estável, enquanto legitima-
ção ideológica. A análise que Antônio Cândido faz da literatura da época
mostra bem esse caráter estabilizador que esta também possuía e que
pode ser transposto sem alterações para as artes plásticas: “Uma litera-
tura satisfeita, sem angústia formal, sem rebelião nem abismo. Sua única
mágoa é não parecer de todo europeia; seu esforço mais tenaz é conse-
guir pela cópia o equilíbrio e a harmonia, ou seja, o academismo.” (19) 19. Antônio Cândido, Literatura e socie-
dade, p.113. 20
A arte moderna surge no Brasil sem ter passado pela experiência
do Impressionismo e sem ter vivenciado Cézanne. Embora houvesse Vis-
conti no Rio e Elpons em São Paulo, estes artistas não podem ser classi-
ficados rigorosamente como impressionistas, mas apenas influenciados
pelo movimento. No entanto, ainda que nesse ambiente, eles terão (como
também os ilustradores que seguem o estilo de Art-Nouveau) o papel da
transição possível entre o academismo e o Modernismo. Di Cavalcan-
ti, por exemplo, pôde ter com Elpons um aprendizado de pintura sem a
rigidez das ‘belas-artes’, e informações sobre arte que não encontraria
entre a maioria dos artistas brasileiros. Segundo ele próprio, teria sido
por intermédio de Elpons que conheceu e apreciou Van Gogh. (20) É inte- 20. Emiliano Di Cavalcanti, Viagem de
ressante lembrar ainda o desempenho que teve o Art-Nouveau na prepa- minha vida, p.87. 23
ração do público para perceber uma nova imagem. Mesmo considerando
sua pouca presença na arquitetura e na decoração, o Art-Nouveau foi
razoavelmente utilizado na ilustração gráfica, o que possibilitou uma boa
divulgação.
Esse amplo panorama da arte brasileira corresponde ao que ocorria
no Rio de Janeiro e em São Paulo, mas mesmo assim havia distinções.
No Rio, o sistema de arte estava mais enraizado, devido à tradição de
suas instituições culturais, que remontavam ao início do século XIX, e
aqui se concentravam os principais recursos para a formação de uma
vida cultural, sempre sob o amparo direto do governo federal. Para o Rio
convergiam pessoas de todo o país e a cidade cumpria o duplo papel de
polo de atração e de modelo para as capitais estaduais. Já a importância
de São Paulo era mais recente, fruto de um rápido crescimento na pas-
sagem do século, o que implicava uma vida cultural menos estratificada,
embora baseada nos mesmos princípios daquela do Rio de Janeiro.
São Paulo vivia um período particularmente próspero. Em 1889, do
Porto de Santos exportavam-se 5.586.000 sacas de café; em 1901, este
número passava para 14.760.000 sacas. Em 1890 a cidade de São Paulo
tinha cerca de 65.000 habitantes; em 1920 sua população atinge 580.000.
Além disso, a cidade tornava-se um importante centro ferroviário comer-
40 Surgimento do espaço moderno brasileiro
é possível que alguns, como Di Cavalcanti, que ainda não havia saído
do Brasil, já conhecessem o Cubismo através de gravuras. Os trabalhos,
porém, situam-se numa faixa de transição, uma vez que, não sendo aca-
dêmicos, também não demonstravam uma compreensão real do signifi-
cado e da linguagem da arte moderna.
A exceção eram ainda os quadros de Anita Malfatti, os mesmos da
exposição de 1917. Rigorosamente, ela era a única artista moderna entre
os expositores. Se tomarmos como exemplo um de seus trabalhos ex-
postos, o conhecido Homem amarelo, de 1917, veremos que nele já estão
incorporados princípios básicos da arte moderna. A ocupação que a figu-
ra faz da tela, valorizando seu espaço, ao mesmo tempo em que cria com
o fundo, orientado no sentido oposto, uma dinâmica interna de tensão;
o desenho deformado de modo a dar um ritmo expressivo ao espaço; o
tratamento sem distinção entre figura e fundo, por meio de uma pince-
lada extremamente livre e capaz de valorizar cada pequeno pedaço da
superfície; a sugestão da luz obtida por diferentes tonalidades de terras
sem apelar para o claro-escuro. Todos estes procedimentos atestam uma
coerência que não se encontra em qualquer dos outros componentes da
Semana.*
Outro exemplo interessante de se analisar é a participação de Di Ca-
valcanti. Formado na ilustração de jornais e revistas e por uma rápida
passagem pelo atelier de Elpons, mas sendo sobretudo um eterno autodi-
data, Di seria o melhor exemplo da renovação existente. A rebeldia que o
havia impedido de ter qualquer ensino acadêmico, o espírito de boemia,
Anita Malfatti
a prática de um trabalho menos comprometido com as belas-artes, o le- O homem amarelo, 1917
variam a se afastar do academismo. É, em parte, devido à sua insistência Óleo sobre tela, 61 x 51cm
que Anita Malfatti expõe em 1917. Mais tarde, vai ser ele também um dos Coleção Mário de Andrade, IEB-USP,
São Paulo)
principais organizadores da Semana e, segundo aqueles que gostam de
precisão, teria sido de Di a ideia da realização da exposição.
O que chama a atenção na trajetória de Di Cavalcanti é podermos
verificar a dificuldade que representava querer romper com a tradição
dominante. Além dos livros de ilustração e das gravuras estrangeiras,
não havia nada que pudesse servir como informação. Salvo os poucos
pintores influenciados pelo Impressionismo, o resto era a pax academica.
Daí a importância que o Art-Nouveau, e particularmente Beardsley, iria
ter em seu trabalho. Contudo, entre 1917, quando chega a São Paulo, e
1923, ano da ida para Paris, sua produção vai ser extremamente eclética.
Os diversos trabalhos que expõe em 1922 (dois óleos, dez desenhos a
nanquim e alguns a pastel) parecem, pelas descrições feitas, revelar uma
inquietação na exploração de diversas tendências modernas, sem de-
monstrar conhecimento real de nenhuma delas. Um dos óleos expostos,
Boêmios, evidencia apenas a rebeldia de ser um trabalho fora dos câno-
nes da época. A simplificação das formas e da cor, aliada a uma tentativa
de obtenção de atmosfera, denota menos uma concepção moderna do
que um primarismo de recursos e um Romantismo mal compreendido.
Di Cavalcanti
Gala, 1920
Guache, 28 x 20cm
Coleção Alfredo Nagib Rizkallah
Di Cavalcanti
Boêmios, 1921
Pastel, 34 x 23cm
Coleção particular
Voltando para São Paulo em 1922, poucos meses após a Semana, co-
nhece por intermédio de Anita alguns dos participantes do Modernismo.
As duas vão formar com Oswald de Andrade, Menotti del Picchia e Mário
de Andrade o Grupo dos Cinco, servindo o atelier de Tarsila (o primeiro
em São Paulo construído segundo as normas técnicas para este fim) como
ponto de encontro para suas reuniões. “Grupo de doidos em disparada
por toda parte no Cadillac verde de Oswald”, como se recorda Tarsila em
entrevista a A. Amaral, “Cadillac que ele adquiriu somente por ter cinzeiro,
o que era ainda uma novidade no tempo.” [...] “Foi o tempo das corridas
noturnas no alto da Serra onde liam poemas, de reuniões na garçonnière
de Oswald, no atelier de Tarsila, na casa de Mário. A pintora não esquece
sua perplexidade diante da Paulicéia desvairada, de Mário.” (24) 24. Aracy Amaral, Tarsila: sua obra e
Foi através deste grupo que Tarsila teve um contato maior com a seu tempo, v. 1, p.46.4
arte moderna, passando mesmo a aderir às suas concepções. Essa con-
versão de um artista à arte moderna provocada pelo ambiente brasileiro,
como sucedeu com Tarsila, ou ainda, o aparecimento de um artista mo-
derno, no caso de Di Cavalcanti, mostra uma mudança importante. Até
então, o comum entre os artistas menos conformistas era que, após o
aprendizado acadêmico no Brasil, a viagem ao estrangeiro provocasse
abertura para influências mais modernas. O processo diferente de Tarsila
e de Di Cavalcanti mostra algum amadurecimento do meio cultural brasi-
leiro com o surgimento de condições locais, capazes de causar uma rup-
tura no processo tradicional de formação dos artistas. Se bem que, tanto
para Tarsila quanto para Di Cavalcanti, a arte moderna no Brasil foi mais
uma negação do academismo, visto que a transformação da linguagem
plástica em seus trabalhos só se dará com a ida para Paris.
Nos cinco meses que passa em São Paulo, Tarsila pinta algumas te-
las que demonstram sua adesão à arte moderna. Trabalhos que atestam
uma vontade de mudança e nos quais procura descobrir caminhos capa-
zes de levá-la a uma alteração do seu repertório clássico. É uma busca
que demonstra, como é normal nesse caso, a exploração das diversas
soluções disponíveis no ambiente moderno de São Paulo e que refletem,
principalmente, o contato com Elpons e Anita. O importante, no entanto,
é que, ao regressar a Paris em dezembro de 1922, Tarsila já abandonara
as preocupações acadêmicas e chega com a intenção de entrar em con-
tato direto com a produção moderna francesa.
O ano de 1923 é um mergulho intenso em Paris. Acompanhada por
Oswald, Tarsila entra em contato com Blaise Cendrars, que os introduz na
vida artística da cidade. Em pouco tempo seu trabalho se desenvolve, dei-
xando as vacilações do período passado em São Paulo, demonstrando o
efeito do aprendizado que terá com Lhote, Léger e Gleizes. Paralelamente
a essas aulas, Tarsila realizará um conjunto de telas nas quais se nota a
absorção dos princípios cubistas e o início de uma linguagem pessoal.
Dois dos trabalhos realizados nesta época já possuem nitidamente os
traços que irão marcar sua obra durante toda a década de 1920. Trata-se de
A negra e Caipirinha. (25) Essas telas vão ser praticamente modelos para as 25. Respectivamente Paris, coleção
fases “pau-brasil” e “antropofágica”, uma vez que já introduzem uma visão particular e Museu de Arte Contempo-
rânea da USP, São Paulo, 100 x 80cm;
de ordenação do espaço, a síntese de elementos e o mesmo desenho que rep. in Aracy Amaral, op. cit., v.2, p.19. 3
Tarsila iria desenvolver mais tarde. O principal nesses trabalhos é que tra-
zem a intenção de olhar o Brasil através de uma ótica contemporânea,
apresentando uma imagem distinta da europeia. Essa preocupação típica
do Modernismo (estar com sua época e ao mesmo tempo ter uma visão
brasileira) aparece pela primeira vez concretizada nestes dois trabalhos.
46 Surgimento do espaço moderno brasileiro
Tarsila
A negra, 1923
Óleo sobre tela
Museu de Arte Contemporânea – USP,
São Paulo
Surgimento do espaço moderno brasileiro 47
O NACIONALISMO
* Em francês no texto.
Surgimento do espaço moderno brasileiro 49
fazenda assim que chegar e espero na volta para cá trazer muito assunto
brasileiro.” (31) 31. Carta de Tarsila a sua família em
O entusiasmo de Paris pelas artes de diversas procedências, ao 12 de agosto de 1923, citada por Aracy
Amaral, op. cit., v.1, p.95.4
qual Tarsila se refere, é principalmente pelo primitivismo que ainda
na década de 1920 era elemento influente na arte francesa. Se para
o europeu o primitivismo representa uma fonte capaz de lhe aportar
elementos diversos daqueles da tradição greco-romana, para Tarsi-
la e Oswald ele representa a adoção de uma especificidade própria à
cultura brasileira.
Enquanto Tarsila pintava seus primeiros quadros voltados para uma
preocupação nacional e Oswald redigia a versão final de Memórias sen-
timentais de João Miramar, ela recebe a carta de Mário de Andrade que
transcrevemos aqui:
“15 de novembro – Viva a República
Tarsila minha querida amiga:
(agora a letra corrente de conversa:)
Cuidado! fortifiquem-se bem de teorias e desculpas e coisas vistas
em Paris. Quando vocês aqui chegarem, temos briga, na certa. Desde
já, desafio vocês todos juntos, Tarsila, Oswald, Sérgio para uma discus-
são formidável. Vocês foram a Paris como burgueses. Estão épatés.*
E se fizeram futuristas! Hi hi hi! Choro de inveja. Mas é verdade que
considero vocês todos uns caipiras em Paris. Vocês se parisianaram na
epiderme. Isto é horrível! Tarsila, Tarsila, volta para dentro de ti mesma.
Abandona o Gris e o Lhote, empresários de criticismos decrépitos e de
estesias decadentes! Abandona Paris! Tarsila! Tarsila! Vem para a ma-
ta-virgem, onde não há arte negra, onde não há também arroios gentis.
HÁ MATA VIRGEM. Criei o matavirgismo. Sou matavirgista. Disso é que
o mundo, a arte, o Brasil e minha queridíssima Tarsila precisam.” (32)
A carta de Mário, com um tom de humor professoral, mostra a
32. Carta de Mário de Andrade a Tar-
coincidência de posições que surgia entre os modernistas, uma vez que sila, rep. por Aracy Amaral, op. cit.,
ele desconhecia os trabalhos que Tarsila já havia realizado, justamente p.110.
dentro dessa perspectiva, alguns meses antes. O que parece evidenciar
a existência de uma base comum, solidificada nos anos de implanta-
ção do movimento, e que agora começava a se desenvolver com certa
homogeneidade, apesar da distância. Em todo caso, a partir desse mo-
mento, a pintura de Tarsila vai cumprir durante toda a década de 1920
um papel de referência. Tarsila consegue geralmente concretizar antes
dos seus companheiros literatos as ideias em gestação. Sem esquecer-
mos a moda que existia em Paris, da arte negra e mesmo da figura do
negro, (33) o quadro de Tarsila, A negra, é sem dúvida a expressão e 33. A este respeito, Tarsila em depoi-
um exemplo característico dessa sua posição. Seria interessante notar mento dado a Aracy Amaral, op. cit.,
p.104: “Lembro-me do príncipe negro
que, em 1923, quando Tarsila conhece pessoalmente Brancusi, ele já Tovalu, apresentado por Cendrars.
havia realizado a sua La négresse. Entretanto, tanto em Brancusi como Tovalu era um fetiche disputado em
todos os meios artísticos de vanguar-
em Picasso, a arte negra funciona como uma sugestão plástica. Já o da. Bem negro, com traços corretos de
quadro de Tarsila não possui nenhuma referência imediata à arte ne- raça ariana, muito perfumado, vestia-
gra. A influência é indireta e já codificada pelo Pós-Cubismo. O modelo se com elegância parisiense.” Lembrar
também o sucesso e moda Josephine
mais presente para Tarsila é a própria figura do negro, retirada dos Baker em torno de 1925.
mitos de sua infância na fazenda.
* Em francês no texto.
50 Surgimento do espaço moderno brasileiro
Surgimento do espaço moderno brasileiro 51
Tarsila interveio.
– Com esse argumento, chega-se teoricamente à conclusão de que
estamos sendo agora uns quase antropófagos.
A tese, com um forte tempero de blague, tomou amplitude. Deu lu-
gar a um jogo divertido de ideias. Citou-se logo o velho Hans Staden e
outros estudiosos da antropofagia: “Lá vem a nossa comida pulando!”
Alguns dias mais tarde, o mesmo grupo do restaurante reuniu-se no pala-
cete da Alameda de Piracicaba para o batismo de um quadro pintado por
Tarsila, Antropófago (Abaporu).
Nessa ocasião, depois de passar em revista a exígua safra literá-
ria posterior à Semana, Oswald propôs desencadear um movimento de
reação genuinamente brasileiro. Redigiu um manifesto. O plano de derru-
bada tomou corpo. A flecha antropofágica indicava outra direção. Condu-
38. Raul Bopp, Vida e morte da antro- zia a um Brasil mais profundo, de valores mais indecifrados.” (38)*
pofagia, p.40 e 41.12 Este relato confirma a importância que teve a pintura de Tarsila, fixan-
do as ideias dispersas, apontando referências. Naqueles primeiros anos do
Modernismo, depois do impacto provocado pela exposição de Anita, após
a valorização, como veículo de afirmação, das esculturas de Brecheret e, ao
fim, por meio da pintura de Tarsila, as artes plásticas seriam, utilizando uma
expressão de Oswald, a ponta de lança do Modernismo.
Tarsila
Abaporu, 1928
Óleo sobre tela, 85 x 73cm
Coleção particular
* A teoria de que o homem descende da rã e que pode com ela se comunicar foi desenvolvida
por Jean-Pierre Brisset em seu livro La Science de Dieu ou la Création de L’Homme (c. 1900).
O autor era reverenciado pela vanguarda francesa, e entre eles Apollinaire, André Breton e Mar-
cel Duchamp. Na década de 1930, Duchamp fez, inclusive, a capa do livro de Brisset, encaderna-
do por Mary Reynolds no qual utilizou pele de rã. Oswald de Andrade era bem informado so-
bre a vanguarda francesa, mas seu comentário pode ter sido, quem sabe, mera coincidência.
Surgimento do espaço moderno brasileiro 53
40. Marc Le Bot, “La peinture pure”, estabelecida. Marc Le Bot (40) traça uma analogia interessante ao mos-
in Peinture et marchinisme, op. cit.,
p.129.43
trar que assim como a classe operária consegue uma existência como
classe social autônoma, mesmo tendo a sua força de trabalho sujeita à
exploração econômica, ela – assim como a arte moderna – introduz na
sociedade capitalista um novo tipo de contradição e de conflito.
No Brasil, o percurso da arte moderna se dará de maneira bastante
original. Nascida entre uma pequena elite, ela se desenvolverá fechada
nesse ambiente, sem provocar uma reação institucional com o significa-
do da francesa, ou a repercussão comercial que terá na Alemanha. Como
vimos, as artes plásticas tinham na sociedade brasileira uma implantação
artificial. Sua modesta sobrevivência dependia basicamente do Estado e
do mercado de arte improvisado que veiculava o lugar-comum acadêmi-
co. Em São Paulo, apesar do desenvolvimento econômico, a situação era
ainda mais precária. Em carta a Tarsila, então em Paris, datada de 1921,
Anita Malfatti fala das exposições paulistas: [...] “tem havido exposições
41. Carta citada por Aracy Amaral, op. italianas, e estas vendem sempre”. (41) Tratava-se, de pintores italianos,
cit., p.41.4 geralmente de passagem, que traziam a aura do artista estrangeiro e não
fugiam à expectativa da pintura convencional. Apenas em 1922, durante
as comemorações do centenário da Independência, é que São Paulo terá
o seu primeiro Salão de Arte, antes privilégio apenas do Rio de Janeiro.
Fora estas poucas atividades, a vida intelectual em São Paulo se passava
nos salões das mansões, onde brilhava o palacete do senador e mau poe-
ta simbolista Freitas Valle.
É interessante notar que num momento em que demonstrações de
radicalidade política começavam a ocorrer, com os 18 do Forte, a Revolta
de Isidoro e a Coluna Prestes, os modernistas eram ou alheios a estes
fatos ou ligados ao poder. Somente em 1927 é que alguns deles formam
entre os fundadores do Partido Democrático, que se colocava contra a
velha oligarquia do Partido Republicano Paulista (PRP), com um progra-
ma de reformas liberais. O engajamento político modernista cresce à
medida que a Revolução de 1930 se aproxima. Em torno dessa data o
movimento sofrerá uma mudança importante, uma vez que seus com-
ponentes já podem ser divididos entre aqueles favoráveis à direita ou à
esquerda.
Contudo, esse processo foi lento e a situação típica dos primeiros
tempos do Modernismo é o Cadillac verde de Oswald, os salões das man-
sões de Paulo Prado, Olívia Penteado e Tarsila, as temporadas na fazenda
e as viagens a Paris. O bilhete enviado por Anita a Menotti del Picchia,
com o objetivo de introduzir Tarsila aos modernistas em 1923, nos dá
bem a ideia deste clima: “Veio, de Paris, pertencente à tradicional família
dos Amaral, uma pintora muito inteligente. Combinei que amanhã toma-
ríamos chá juntas no Fazoli para que você a conhecesse e a aproximasse
42. Idem, ibid., p.46. dos demais companheiros.” (42) Assim, lembra Menotti, “foi Anita Malfa-
tti quem me apresentou a artista numa confeitaria elegante onde tomáva-
mos chá. Nessa época éramos grã-finos.” Oswald, por exemplo, sempre
preocupado com os negócios de compra e venda de terrenos, cortejava
os grandes do PRP. Esta sua oficialidade o torna amigo de Júlio Prestes, e
o leva mesmo a convidar Washington Luís, já eleito presidente da Repú-
blica, para padrinho de seu casamento com Tarsila.
A familiaridade entre os modernistas e os políticos, que vai levar
Carlos de Campos, presidente do Estado, como se dizia na época, a visitar
o atelier de Tarsila e a assistir à conferência de Blaise Cendrars, faz par-
te da própria convivência social daqueles jovens intelectuais burgueses.
Surgimento do espaço moderno brasileiro 55
O ano de 1929 traz a crise internacional que leva à falência dos fazen-
deiros e é o ano que marca também o princípio do fim da predominância
política de São Paulo. É ainda o término da primeira fase do Modernismo,
quando as concepções terão que se adaptar aos novos tempos. A preocu-
pação política crescente no ambiente cultural, acompanhando a evolução
dos acontecimentos do país, torna-se o dado fundamental. Arte social e
militância política: duas opções que irão marcar esse período da cultura
brasileira, em que o Rio retoma o seu prestígio de centro cultural.
Se para Tarsila essa crise vai repercutir profundamente na sua obra,
para Di Cavalcanti a adaptação será mais fácil. Embora Di tivesse partici-
pado dos salões da sociedade paulista, sempre conseguiu manter algu-
ma independência. Desde cedo trabalha como ilustrador e quando em
1923 viaja para Paris, onde permanece até 1925, sobrevive graças a um
emprego de correspondente de imprensa. Entre os artistas modernistas
ele será o primeiro a ter uma opção política mais radical. Em dois rela-
56 Surgimento do espaço moderno brasileiro
Nessa época o Rio vai retomar sua importância como centro cul-
tural. No entanto, se a arte moderna durante os anos 1920 havia tido no
Rio algum desenvolvimento, a vida cultural continuava a ser determinada
institucionalmente. Assim, mais do que a Semana de Arte Moderna, o
que realmente vai repercutir no Rio é o discurso de Graça Aranha em
1924, rompendo com a Academia Brasileira de Letras.
Pouco depois da vitoriosa Revolução de 1930, algumas mudanças
importantes vão ter lugar no campo da arte. Lúcio Costa é nomeado para
diretor da Escola Nacional de Belas Artes e começa a promover mudanças
no seu corpo docente e na orientação do ensino, até então voltado para o
Neoclássico. A seguir, continuando as reformas, Lúcio Costa inclui moder-
nistas no júri de seleção do Salão Nacional de Belas Artes, o que resulta
no incentivo à participação de artistas modernos e na retração dos acadê-
micos. Esses acontecimentos serão seguidos de viva reação dos artistas
tradicionais, o que irá transformar a luta pelo controle das instituições cul-
turais num fato importante durante a década de 1930. A política cultural
irá, portanto, passar das mansões paulistas para os corredores e salas das
repartições culturais, como, aliás, era o costume no Rio. Em todos os con-
flitos surgidos entre modernistas e acadêmicos, é o Estado que vai servir
como árbitro, procurando manter um sistema de conciliações.
É importante ter em mente que no Rio de Janeiro se concentravam
intelectuais de todo o país, atraídos quer pela possibilidade de divulga-
ção que ali existia, quer pelas ofertas de emprego em órgãos governa-
mentais. Havia, além disso, como consequência das transformações po-
líticas que vinham ocorrendo, um aumento do espaço político e cultural
da classe média, o que foi resultar num crescimento de contingente e de
poder para o Modernismo. Desta maneira, os modernistas conseguem
avançar sensivelmente na ocupação das instituições culturais, obrigando
os acadêmicos a aceitarem soluções de compromisso, como por exem-
plo, no início da década de 1940, a divisão do Salão Nacional em duas
seções, uma acadêmica e outra moderna.
Essa situação, ao mesmo tempo em que denuncia a ambiguidade da
ideologia governamental, cria uma situação bastante original no domínio
da arte. Historicamente, a arte moderna, na sucessão de movimentos que
anunciam o seu aparecimento na França, havia representado uma inde-
pendência da arte em relação ao poder. Os impressionistas, por exemplo,
cuja própria denominação já demonstra uma maneira de desqualificação,
são artistas marginalizados que só irão começar a ser reconhecidos no
final do movimento; vivem ignorados pelo Estado, que não percebe neles
nenhuma significação dentro de uma escala cuja unidade era a ideologia
oficial. Contra estes instrumentos dominantes que significavam o reco-
nhecimento do valor, inclusive financeiro, da obra, os artistas franceses
encaminharam uma luta de recusa. Não procuraram ganhar terreno den-
tro de um sistema de arte que os ignorava; pelo contrário, a resposta
dada foi a criação de salões independentes, fora da tutela do Estado, sem
prêmio ou júris. Assim, a perda progressiva de prestígio que o tempo foi
trazendo aos salões oficiais e academias é o resultado da reação direta
que os artistas modernos foram lhes impondo.
No entanto, durante a década de 1930, na arte moderna brasileira, a
tática escolhida foi oposta à atitude dos impressionistas, tendo os artistas
brasileiros preferido renovar as velhas instituições culturais governamen-
tais, tentando conquistá-las por dentro. Isso mostra, sobretudo, o poder
do Estado no Brasil como veiculador ideológico, colocando-se de tal ma-
58 Surgimento do espaço moderno brasileiro
49. Roger Bastide, op. cit., p.207.10 Da parte francesa, essa necessidade vai encontrar, como nos diz Ro-
ger Bastide, certa disponibilidade (49): “A França, depois da guerra, viu
seus vencidos procurarem o Brasil: nobres que não aceitavam a Revolu-
ção Francesa, soldados napoleônicos que não aceitavam o retorno da mo-
narquia, republicanos que não aceitavam Napoleão III. A maioria chegou
em pleno período de urbanização do país, quando as camadas elevadas
procuram novo conforto, novas boas maneiras; novo gênero de vida. Tor-
nam-se professores de dança ou de esgrima, professores de piano e de
boas maneiras; chegaram alguns a abrir colégios, porém mais frequen-
temente promoveram o aparecimento de maior quantidade de lojas de
moda. Espalharam a língua francesa que se tornou a segunda língua da
elite, dos salões, como o inglês era a língua do comércio; disseminaram a
cozinha, o romance e a moda francesa. Uma rua inteira do Rio ficou literal-
mente tomada de lojas de chapéus, de vestidos, de perfumes, de enfeites,
mantidas por chapelarias vindas da França. Ao lado das lojas, abriam-se
cafés em que os boêmios da época discutiam Victor Hugo ou Émile Zola.”
Este trecho de Bastide poderia dar a falsa impressão de que ele quis
manter as contribuições francesas na mesma escala de uma sofisticação
superficial, quando muito, da exportação de costumes mais de acordo
com a civilização moderna, o que certamente não foi sua intenção. Pois
é sabido que, juntamente com os hábitos sociais franceses, vieram tam-
bém várias concepções filosóficas importantes para o processo político
brasileiro. No entanto, o aspecto mais relevante dessa influência cultu-
ral foi a maneira como foi assimilada pelos brasileiros. Assim prossegue
Bastide: “O que caracteriza este tipo de influência, qualquer que seja a
importância ou o valor dos franceses exilados, dos técnicos ingleses ou
dos missionários americanos, é que seus propagandistas mais ardentes
eram os próprios brasileiros; isto é, estas influências agem sobre a massa
por intermédio dos naturais do país, e não de estrangeiros. Por isso mes-
mo, os elementos de civilização assim adotados não são impostos de fora
para dentro, são selecionados, escolhidos de acordo com as necessidades
internas, concorrem para enriquecer a cultura e não para perturbá-la. Tais
elementos são também reinterpretados, transformados pela inteligência
brasileira, que a respeito deles exercita sua reflexão, pela sensibilidade
brasileira que os vive.” [...] “Não se trata mais do sincretismo por adição,
justaposição ou entrelaçamento dos traços culturais, como no caso da
imigração. Penetramos aqui no domínio das metamorfoses.”
Em arte essa metamorfose principia pela própria biografia dos artis-
tas. Assim, seria interessante verificarmos como em Tarsila, Di Cavalcanti
e Portinari, três brasileiros pertencentes a três classes sociais diferentes,
ocorreu a assimilação da cultura francesa.
Tarsila, por exemplo, pertencia a uma tradicional família paulista de fa-
zendeiros; seu avô era inclusive cognominado de O Milionário, tendo sua
fazenda-sede quatrocentos escravos. Segundo Tarsila, seu pai, que algumas
vezes chegou a possuir 22 fazendas, era republicano e protegia os escravos
antes da Lei Áurea. Criada numa fazenda do interior de São Paulo (Capivari e
Monte Serrat) nem por isso a distância impedia a cultura francesa de lá che-
50. Tarsila do Amaral, “França, eterna gar, o que a própria Tarsila relata (50) num artigo que, só pelo título, “França,
França”, in Revista Acadêmica, Rio de eterna França”, já dá uma ideia dessa influência; vejamos: “Cresci numa fa-
Janeiro, nov. 1946, p.74 e 75; rep. por
Aracy Amaral, op.cit. p.20.4 zenda de café como a cabrita selvagem, saltando daqui pr‘ali entre rochas e
cactos [...] Mas quando voltava para casa encontrava ao piano uma criatura
irradiando beleza: era minha mãe tocando Couperin ou Dandrieu [...] À hora
do almoço, meu pai, patriarcalmente sentado à cabeceira da mesa, à moda
Surgimento do espaço moderno brasileiro 63
OS BRASILEIROS EM PARIS
Picasso
Mulheres correndo na praia, 1922
Óleo sobre madeira compensada,
34 x 42,5cm
Musée Picasso, Paris
Matisse
Figura decorativa sobre fundo
ornamental, 1927
Óleo sobre tela, 130 x 98cm
Musée National d’Art Moderne, Paris
*A grafia correta do prenome do crítico italiano é Lionello, e não Leonelo, conforme escre-
veu Di Cavalcanti.
Surgimento do espaço moderno brasileiro 75
Dentre os países em que, nessa mesma época, a arte moderna iria surgir,
seria interessante, devido a alguns pontos em comum que teria com a
arte brasileira, examinarmos o aparecimento da arte moderna na Rússia.
Apesar das profundas diferenças culturais e sociais entre os dois países,
tanto um quanto outro possuíam uma cultura com outras influências
além da europeia e ambos irão entrar em contato com a arte moderna de
um modo assistemático; ainda como no Brasil, a primeira manifestação
da arte moderna russa também terá uma intenção nacionalista.
Entre 1890 e 1910, a evolução da arte russa terá como referência não
os impressionistas, mas Beardsley, Burne-Jones, Puvis de Chavannes e
Vroubel (artista russo bastante influenciado pelo Art-Noveau). Será so-
mente em torno de 1904, que conhecedores e colecionadores, com alta
capacidade crítica, irão introduzir os impressionistas e logo em seguida
a arte moderna francesa na Rússia. É curioso notar que, assim como no
caso brasileiro, os artistas russos entrarão em pouco tempo em contato
direto com vários anos de história da arte. Nessa época se formarão ex-
traordinárias coleções, como as de Chtchoukine e Morozov, com impor-
tantes trabalhos de Cézanne e as mais recentes e significativas pinturas
de Matisse e Picasso. Ao mesmo tempo em que vão tendo acesso a essas
informações, as transformações na produção dos artistas russos não tar-
dam a surgir. Os trabalhos de Gontcharova e Larionov, por exemplo, vão
evoluindo da influência pré-rafaelita para uma pintura mais simplificada
nas formas e nas cores, que em parte será determinada por uma preocu-
pação de diferenciação nacional, fazendo apelo à pintura de ícones e a
uma temática marcada por assuntos populares.
Mas, em meio a esse conjunto da produção moderna russa, irá aos
poucos surgir uma diferenciação, sobretudo na obra de Tatlin e Male-
vitch. Assim como Gontcharova, entre 1904 e 1910 eles possuem uma
fase marcada pela tentativa de síntese entre a tradição nacional e a arte
francesa. No entanto, aquilo que para Gontcharova parecia um fim em si,
em Malevitch e Tatlin cedo se mostra como uma passagem. Com efeito,
em certo período, eles tomam como centro de sua reflexão os trabalhos
de Cézanne e Picasso. Assim, pode-se notar, pelas experiências cubistas
e cubo-futuristas dos artistas russos, que a dinâmica de suas obras fará
transbordar os limites nacionais e passará a se desenvolver no plano da
76 Surgimento do espaço moderno brasileiro
Malevitch
O lenhador, 1912
Óleo sobre tela, 94 x 71,5cm
Stedelijk Museum, Amsterdam
Malevitch
Pintura suprematista, 1915
Óleo sobre tela, 101,5 x 62cm
Stedelijk Museum, Amsterdam
O ESTILO MODERNISTA NA OBRA
DE TARSILA, DI CAVALCANTI E PORTINARI
78 O estilo modernista na obra de Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari
A ICONOGRAFIA MODERNISTA
O SISTEMA DE TARSILA
Na relação do Modernismo com seus modelos, fora de referências icono-
gráficas, é preciso destacar, dada a importância que assumirá, a obra de
Picasso. Essa influência servirá como o ponto de diferenciação na relação
entre as pinturas de Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari, uma vez que Tarsi-
la não irá incorporá-la. É interessante lembrarmos que no período que
compreendeu a estada dos três artistas brasileiros em Paris, Picasso era
o grande nome internacional da arte moderna. Di Cavalcanti e Portinari
encontrarão de início uma maior afinidade com o período clássico de Pi-
casso, mas a ligação que terão com sua obra não se limitará a essa fase.
Durante todo o desenvolvimento de seus trabalhos, Di Cavalcanti e Por-
tinari continuarão atentos às modificações surgidas na obra de Picasso.
Tarsila não demonstrará qualquer ligação com a obra do artista espanhol,
o que parece assinalar a originalidade de sua opção, considerando, inclu-
sive, a influência mundial que o trabalho de Picasso exerceu. A atenção
de Tarsila volta-se principalmente para a pintura de Léger, talvez pelo fato
de ser ela, entre os três artistas brasileiros, a que irá se dedicar mais in-
tencionalmente a incorporar a dinâmica das transformações que a indus-
trialização trazia à vida brasileira.
A obra de Léger, na sua ligação com o modelo da máquina, produz
imagens objetivas ou não objetivas que representam a nova mitologia da
industrialização. Para Léger, a máquina não é o ídolo, do Construtivismo e Tarsila
Estudo (Academia no 1 ou
do Purismo, mas um instrumento representativo da sociedade moderna, La Tasse), 1923
do qual ele se utilizará plasticamente segundo um princípio de equiva- Óleo sobre tela, 61 x 50cm
lência, e não de similitude. Em sua obra, as máquinas constituem as pai- Coleção particular
80 O estilo modernista na obra de Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari
Tarsila
A gare, 1925
Óleo sobre tela, 84,5 x 65cm
Coleção particular
O estilo modernista na obra de Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari 81
Tarsila
O mamoeiro, 1925
Óleo sobre tela, 65 x 70cm
Coleção de Mário de Andrade,
IEB-USP, São Paulo
Tarsila
Segunda classe, 1933
Óleo sobre tela, 110 x 151cm
Coleção particular
Tarsila
Operários, 1933
Óleo sobre tela, 150 x 205cm Já Operários é um trabalho singular na obra de Tarsila e sua concep-
Coleção Governo do Estado de
São Paulo ção, embora aparentemente simples, possui uma complexidade única na
Palácio Boa Vista, Campos do Jordão pintura brasileira da época. Tarsila não hesita em colocar no primeiro pla-
no um conjunto de cabeças, uma quase massa monocrômica que rompe
os limites da tela, parecendo continuar como se fosse parte de uma enor-
me pirâmide. Uma pirâmide humana na qual as expressões sofridas e a
representação das diversas raças formam o lado discursivo e anedótico
da pintura. O valor desse trabalho não está propriamente na aparição da
nova temática, mas na articulação interna que a artista estabelece com
os elementos formais utilizados. Ao tratar uma situação social, o quadro
se coloca a partir da experiência perceptiva na qual essa situação ocorre.
A máquina (a indústria) ganha um valor de símbolo icônico na relação
que estabelece com o sistema em que aparece. Cada forma vai agir como
uma peça que se destaca pelo contorno e a fatura neutra, formando en-
grenagens que se completam e se opõem, numa produção significativa.
Assim, o plano criado pelo conjunto das cabeças divide a tela numa
diagonal, contrastando com a rigidez geométrica da fábrica branca e a ver-
ticalidade das chaminés metálicas que ocupam o fundo, recortadas sobre o
azul. Este conjunto ocupa a superfície da tela, determinando-a sem truques
ou ilusionismos, dando forma à ‘máquina pictórica’ que se completa na opo-
sição entre os dois planos. Ambos fazem parte da mesma mecânica, todas
são peças que se articulam, como se ‘a máquina’ reproduzisse o funcio-
namento de outras máquinas, deixando visível seu mecanismo e a sua
lógica produtiva de tudo reduzir ao estatuto indiferenciado de máquinas.
Essa tela será também o último trabalho significativo de Tarsila. A par-
tir daí, parece que suas contradições pessoais levaram-na a perder o rumo.
Tarsila não conseguiu criar uma continuidade entre seu trabalho inicial e
as novas tendências que surgiam na arte brasileira. Desse ponto em dian-
te, sua pintura, embora mantendo algumas características próprias, segue
O estilo modernista na obra de Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari 85
O SISTEMA DE DI CAVALCANTI
Se pegarmos como amostragem o quadro de Di Cavalcanti Modelo
no atelier, datado de 1925, ele revela o resultado do contato do ar-
tista com a pintura francesa. Nessa pintura, ao contrário das suas
obras anteriores, nas quais predomina uma negação desorientada ao
academismo, pode-se perceber um exercício de assimilação da lin-
guagem moderna, por meio dos ensinamentos de Cézanne e Picasso.
Embora a forma da figura revele a influência do segundo artista, a
divisão da superfície em planos mostra que Di Cavalcanti estudou os
cubistas e a presença de Cézanne se manifesta na ambiguidade do
espaço e ainda mais na maneira de determinar o objeto com o auxílio da
modelação da cor. Mas tudo isto se dá ainda no nível do estudioso que
procura na incorporação destas influências seu próprio caminho.
Em 1925, já de regresso ao Brasil, Di Cavalcanti desenvolve os primei-
ros passos na formação de uma linguagem própria, ao mesmo tempo que
adota uma temática nacionalista. Mais uma vez se faz sentir a influência de
Picasso, sobretudo na fase clássica. Além das grandes figuras femininas e
do sentido de equilíbrio, nota-se o problema típico do ‘retorno à ordem’, que
é a tentativa de conciliar duas concepções de espaço, isto é, a convivência entre
a ilusão de volume e o plano. Ao contrário do que fazia Tarsila, que destacava as
formas e construía o espaço pela organização entre elas, Di buscava outro
caminho. A geometrização das formas por ele exercida não será suficiente
para eliminar a divisão figura e fundo, levando-o a recorrer também à cor.
De início, quase que pela ausência, ou seja, buscando a integração pela mono- Di Cavalcanti
Desenho a tinta de escrever, 1927
cromia. Posteriormente, a solução será o oposto, uma vez que procurará pela Museu de Arte Contemporânea – USP
utilização crescente de uma intensa cromatização o efeito de unidade. São Paulo
86 O estilo modernista na obra de Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari
Di Cavalcanti
Modelo no atelier, 1925
Óleo sobre cartão, 82 x 78cm
Coleção particular
Di Cavalcanti
Cinco moças de Guaratinguetá, 1930
Óleo sobre tela, 100 x 64cm
Museu de Arte de São Paulo
Di Cavalcanti
Mulher e paisagem, 1931
Óleo sobre tela, 50 x 40cm
Coleção Governo do Estado
de São Paulo
Palácio Boa Vista, Campos do Jordão
88 O estilo modernista na obra de Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari
Matisse
Odalisca vermelha, 1928
Óleo sobre tela, 55 x 38cm fazem sua aparição, como se pode verificar pela posição do modelo, além
Coleção particular da adoção de determinados elementos ‘ornamentais ‘no preenchimento
das superfícies, o que demonstra uma ligação com Matisse.
O determinante, porém, nessa nova fase será a maneira de desenhar
com a cor, no sentido empregado por Cézanne ao dizer “quando a cor está
80. Conversations avec Cézanne, p.36. 25 em toda a sua riqueza, a forma está em toda a sua plenitude.” (80) Essa
característica irá intensificar-se na pintura de Di Cavalcanti, nos anos pos-
teriores a 1935, quando retorna a Paris. Em 1937, na pintura Mulher com
leque, por exemplo, os limites entre as formas são determinados pela cor,
pois o desenho quase desaparece. Além disso, a pincelada ganha uma im-
pulsividade ao preencher a superfície da tela mais livremente, o que nos
faz compreender a admiração de Di por Delacroix. Nota-se também, nos
arabescos, na utilização de linhas de cor horizontais para a ocupação dos
planos, a continuidade da presença de Matisse. Mas todas essas influências
são filtradas dentro de um sistema cuja coerência ainda é dada pelo Moder-
nismo e, mesmo que essa fase de Di esteja muito próxima à Escola de Paris,
os dados principais permanecem sendo o lirismo e a sensualidade. Pois na-
quelas cores tratadas com intensa emotividade, os contrastes fortes, os
tons avermelhados, a pele pintada como se estivesse sendo ao mesmo
tempo acariciada, cria-se uma relação entre o artista, a obra e o especta-
dor, por meio do prazer. Em que o prazer do olhar está diretamente ligado
Di Cavalcanti ao prazer de pintar.
Mulata com leque, 1937 Algumas contradições, porém, marcam a obra de Di Cavalcanti. Seu
Óleo sobre tela, 38 x 46cm
Coleção Gilberto Chateaubriand desenho, por exemplo, desde o início tão influenciado pela ilustração, vai
acentuar ainda mais a tendência para a caricatura, ao absorver o expres-
O estilo modernista na obra de Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari 89
Di Cavalcanti
Júri, 1927
Desenho a nanquim, 47 x 36cm
Coleção particular
90 O estilo modernista na obra de Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari
Di Cavalcanti
Ciganos, 1940
Óleo sobre tela, 97 x 130cm
Museu Nacional de Belas Artes,
Rio de Janeiro
O SISTEMA DE PORTINARI
Ao regressar de Paris, em 1930, Portinari encontra a arte moderna razoa-
velmente incorporada à vida cultural brasileira. Já haviam sido produzi-
das obras importantes e algumas instituições culturais começavam a ser
ocupadas pelos modernistas, tendo mesmo um pequeno público aderido
à arte moderna. Mas é também um tempo de politização da vida cultural,
que situará os artistas e intelectuais em torno de campos políticos.
O estilo modernista na obra de Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari 91
É este o ambiente cultural que será vivenciado por Portinari, que, saído
do ensino acadêmico e tendo ganho o prêmio de viagem, retorna ao Brasil
influenciado pelo contato com a arte moderna francesa. Torna-se difícil
precisar esse processo de transformação pelo qual ele passou, visto que
o mesmo se deu mais no nível da subjetividade que da produção. Nos dois
anos que permanece em Paris, Portinari fará apenas três naturezas-mortas,
que embora representem uma considerável mudança em relação aos pa-
drões da Escola de Belas Artes, situam-se basicamente próximos da pintura
pré-impressionista. Suas primeiras telas no Brasil mostrarão uma simplifi-
cação na forma e na cor, mas permanecerão ainda presas às regras conven-
cionais, como o Retrato de senhora (Maria Portinari) realizado em 1932.
Em torno de 1934, verifica-se no seu trabalho o surgimento das bases
de seu estilo. Da primeira fase do Modernismo, Portinari mantém sobretu-
do a intenção nacionalista, com a temática brasileira. Mas na sua pintura a
figura humana será dominante. O trabalhador rural, as figuras populares e
as cenas infantis seriam os seus personagens principais. Sua obra se con-
centrará principalmente em torno dos temas do trabalho e da pobreza. Mas,
à diferença da primeira fase do Modernismo, a evocação popular em Por-
tinari terá um deliberado sentido político. As origens formais de seu estilo
envolvem diversas influências. Há, por exemplo, o Cubismo, que aparece
na constância da presença de Picasso e, além disso, a influência de alguns
artistas da Escola de Paris, do Muralismo mexicano, do Quattrocento italiano Portinari
e dos ensinamentos da Escola de Belas Artes. Retrato de Maria, 1932
O estilo de Portinari compreenderá uma assimilação dessas diver- Óleo sobre tela, 101 x 82cm
Museu Nacional de Belas Artes,
sas fontes, com a predominância momentânea de uma sobre a outra, o Rio de Janeiro
que lhe trará certo ecletismo. No entanto, em termos de processo, pode-
ríamos dizer que irá haver uma tendência em direção ao Pós-Cubismo,
que se acentuará a partir de 1939, atingindo seu apogeu entre 1943 e
1944, nas pinturas para o Ministério da Educação e na série dos profetas.
Algumas coincidências, como a temática nacional e a incorporação
de procedimentos renascentistas à arte moderna, preparam a aproxima-
ção de Portinari com os mexicanos. Assim, a influência da arte mexicana
sobre ele se fará num sentido mais de objetivos gerais, tais como a afir-
mação de uma arte social e realista, e no interesse pela pintura mural. Por
fim, o expressionismo de Portinari não virá do Expressionismo alemão,
mas sim da interpretação dada pelos mexicanos e por Picasso. As dife-
renças entre o seu estilo e o dos mexicanos, no entanto, serão relativa-
mente grandes. Em Portinari, mais do que a referência a Miguel Ângelo e
ao Barroco, como existe entre os mexicanos, serão os primitivos italianos
que o influenciarão. Ao experimentalismo dos mexicanos Portinari man-
terá uma técnica mais tradicional (consta que Portinari, incentivado por
Siqueiros, teria chegado a tentar a pintura com pistola, abandonando-a
por falta de afinidade). Finalmente, ao invés da dominação da mensagem
política direta, Portinari se dirige para a apreensão do cotidiano popular.
Da Escola de Paris, além do lirismo de Chagall e de uma estilização ba-
seada nas figuras de Modigliani, aparece também na pintura de Portinari um
clima poético que provém de elementos emprestados ao Surrealismo, entre
os quais, o mais evidente, seria uma sugestão de espaço que faz lembrar Tan-
guy. O Pós-Cubismo será absorvido a partir da influência exercida pela fase
clássica de Picasso. Tal como acontecera anteriormente com Di Cavalcanti, a
concepção da forma humana, o equilíbrio harmônico e o volume escultórico
formado pelo conjunto das figuras humanas, embora recebam um tratamen-
to pessoal da parte de Portinari, são todos elementos diretamente vinculados
92 O estilo modernista na obra de Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari
Portinari
Mulher com criança, 1938
Óleo sobre tela, 73 x 60cm
Coleção particular
Um quadro como Retirantes, de 1936, pode dar ideia de uma das for-
malizações dominantes no estilo de Portinari nessa fase, que se demarca
pela tonalidade marrom dominante. O espaço do quadro é determinado
pelo sentido de profundidade dado pela linha do horizonte e, seguindo o
exemplo do Picasso clássico, o primeiro plano é formado por um grupo
de figuras humanas volumosas e harmônicas. Mas em Picasso, de modo
geral, há uma procura de simplificação do fundo, de modo a reduzir ao
máximo a divisão figura-fundo. Assim, em geral, o fundo vai-se limitar
a sugerir, pela divisão em dois planos, a linha do horizonte, ou então Pi-
casso emprega o recurso de um fundo único, quase neutro. Portinari, ao
contrário, mantém claramente a ilusão de profundidade, e mesmo redu-
zindo as cores à sobriedade em torno do marrom, ele lhes dá uma nuance
de tonalidades, sugerindo uma gradação de luz que reforça a profundi-
dade. Além disso, sua tendência ao virtuosismo irá levá-lo a se deter em
pormenores, do tipo reflexo nos fios de cabelo. Os outros elementos do
conjunto farão parte quase que obrigatória de seus quadros, tais como as
pedrinhas, o bauzinho e os pássaros voando. Esses componentes estarão
quase sempre presentes em seu trabalho, funcionando como um cenário
dos antigos estúdios de fotografia, em que só mudavam os personagens.
De 1934 até por volta de 1940, a pintura de cavalete de Portinari so-
frerá poucas mudanças, variando entre duas grandes tendências. A pri-
meira, mais realista, quando o desenho se destaca, em que a figura hu-
mana volumosa e tratada com artifícios expressionistas tem como fundo
uma paisagem minuciosamente composta e em perspectiva. São telas
como Mulatas à beira do rio, de 1934, ou O lavrador de café, de 1939.
O outro partido é o de uma pintura mais lírica, onde a cor predomina
como elemento formal, criando com o desenho uma curiosa ambiguida-
de. Essas telas, mais vinculadas ao espírito poético que aquelas da do-
minância marrom, vão ter mais desenvoltura formal, como na ocupação
do fundo por formas curvas, quebrando a rigidez da linha do horizonte.
Mas, no lirismo do artista, repete-se todo o esquema do espaço conven-
cional, os mesmos recursos de preenchimento das superfícies e o manei-
rismo dos efeitos de suavidade cromática que agradam ao olhar do senso
comum, porque dele nada exigem. Em alguns trabalhos não será nem
mesmo o lirismo fácil que se constatará, pois ao lançar mão de recursos
elementares, como o olhar infantil melancólico de que é exemplo a tela
Menina sentada, de 1943, Portinari cairá simplesmente no pieguismo. Portinari
O lavrador de café, 1939
A divisão entre essas duas grandes orientações na produção de Por- Óleo sobre tela, 100 x 81cm
tinari é um tanto esquemática, mas abrange a maior parte de sua pintu- Museu de Arte de São Paulo
ra durante o período. Evidentemente o processo era complexo. Pode-se,
por exemplo, verificar no mesmo ano um trabalho típico dessa tendência
mais lírica, como Amigas, e outro extremamente realista, como o tríptico
Floresta brasileira, ambos de 1938. Ou, ainda, em meio a essas tendên-
cias dominantes, a existência de alguns trabalhos acentuando a influên-
cia pós-cubista, como Mãe preta, de 1939, bem como outras tentativas,
como Futebol, de 1940, que seriam uma espécie de busca de síntese entre
as duas tendências principais.
Ao lado dessa produção, não se pode esquecer o Portinari pintor de
retratos e de vasos de flores. Evidentemente que se trata de uma parte
de sua obra ligada à sobrevivência. No Brasil, na década de 1930, viver
de pintar era de fato uma aventura, que Portinari consegue superar. Mas
isso não significa que o trabalho como retratista fosse algo à parte em
sua obra, pois o sucesso nesta modalidade não se dissocia das razões
94 O estilo modernista na obra de Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari
Portinari
Café, 1935
Óleo sobre tela, 130 x 195cm
Museu Nacional de Belas Artes,
Rio de Janeiro
Corbusier (ou, como se dizia na época, “sob o risco de”) foi desenvolvido por
82. Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Car- uma equipe de jovens arquitetos brasileiros (82) e reúne vários marcos: será
los Leão, Hernâni Vasconcelos, Afonso o primeiro edifício carioca concebido por Le Corbusier; dada a participação
Eduardo Reidy e Jorge Moreira.
intensa dos jovens arquitetos no desenvolvimento e nas especificações do
projeto, será também um marco da arquitetura moderna brasileira. Como
projeto, ele fazia parte de um plano mais amplo de transformação do Rio,
que compreendia a urbanização da área do Castelo e a construção de di-
versos prédios públicos. Em 1937, o edifício passou a abrigar o Ministério
da Educação e Saúde e, mais tarde, com a criação do Ministério da Saúde,
ganhou oficialmente o nome de Ministério da Educação e Cultura (MEC), e
assim ficou conhecido, embora mais tarde, com a criação do Ministério da
Cultura (MinC/1985), a sigla MEC tenha continuado a ser utilizada. Mais tarde,
Palácio Gustavo Capanema será a designação oficial do prédio.
Do ponto de vista da implantação da arte moderna no Brasil, o edifí-
cio do MEC constitui ainda um marco bastante particular. Considerando-
se a tática dos modernistas no Rio, o projeto demonstra que a política de
conquista das instituições governamentais rendia lentos mas importantes
frutos. O que significa dizer que a campanha desenvolvida contra o aca-
demismo já podia ser traduzida pela ocupação de postos na burocracia
do aparelho cultural, e que já haviam sido acumuladas forças suficientes
para a obtenção de algumas vitórias. Visto pelo ângulo governamental,
ratificava uma política de conciliação que compreendia a absorção dosada
dos modernistas, ao mesmo tempo em que mantinha o apoio às correntes
tradicionais. Dependendo da arbitragem do governo, as tendências cultu-
rais procuravam ganhar terreno de modo a conseguir influir nas decisões
do Estado. Se olharmos pela ótica do espectador médio carioca, o prédio
do MEC era um escândalo total (o que, ao se ver a cidade do Rio de Janeiro
hoje em dia, pode parecer incompreensível). Concretamente, levando-se
em consideração todos esses fatores, o MEC constituía o único dado mo-
derno, quase uma ocupação simbólica nesse novo conjunto de edifícios
públicos, em que alguns, por sua inspiração neoclássica, não conseguiam
esconder uma simpatia pela arquitetura mussoliniana.
Nos painéis de Portinari para o MEC surge uma predominância cres-
cente do Cubismo. Esta se manifesta pela incorporação mais nítida da di-
visão do espaço por planos, na série realizada para o gabinete do ministro
em 1939, e na acentuação da fragmentação no painel Jogos infantis, de
1943. Isso, no entanto, não vai ocorrer sem ambiguidades e, mesmo, de-
sorientação, dada a necessidade de tentar a conciliação entre concepções
divergentes de espaço. Tomemos, por exemplo, um detalhe trabalhado
por Portinari em três ocasiões distintas, para ilustrar melhor esta questão.
Em 1935, Portinari executa em têmpera um quadro chamado A co-
lona. Trata-se de uma mulher sentada de lado no primeiro plano, de uma
pintura cujo espaço é organizado por uma linha no horizonte que dá a
ilusão de profundidade. Este efeito é acentuado por uma casa e por uma
pequena montanha situada na linha do horizonte, ambas dentro de uma
Portinari proporção em perspectiva salientada ainda pela coloração do céu. A figu-
A colona, 1935
Óleo sobre tela, 97 x 130cm
ra da mulher situa-se como um grande volume, reforçada pelo claro-es-
Coleção Mário de Andrade, IEB-USP, curo, contra um fundo quase vazio, ocupado apenas por dois elementos,
São Paulo o que dá também um clima poético de amplitude. Em tudo isso se perce-
be uma lógica coerente na construção.
Essa mesma figura de mulher se repete no canto inferior esquerdo
do quadro Café. Tal como na pintura anterior, permanece a mesma rela-
ção entre a forma da mulher em volume e a sua situação dentro do espaço
O estilo modernista na obra de Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari 97
Portinari
Painel MEC/Café, 1936-44
Afresco, 282 x 295cm
Palácio da Cultura, Rio de Janeiro
Picasso
As flautas de Pan, 1923
Óleo sobre tela, 205 x 174,5cm
Musée Picasso, Paris
Picasso
Guernica, 1937
Óleo sobre tela, 349,3 x 776,6cm
Museo del Prado, Madri
Portinari
Lázaro, 1944
Óleo sobre tela, 150 x 300cm
Museu de Arte de São Paulo
102 O estilo modernista na obra de Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari
Portinari
Retirantes, 1936
Óleo sobre tela, 60 x 73cm
Coleção Mário de Andrade, IEB-USP,
São Paulo
Dos três quadros que formam a série, aquele que mais lembra os
aspectos radicais dos mexicanos é o Enterro na rede. A utilização do tra-
ço negro para a definição vigorosa do desenho, a cor indefinida que do-
mina o conjunto, a pincelada mais gestual e a textura dão uma unidade
quase plana à tela, o que acentua ainda mais o dinamismo e a formação
expressiva das figuras. Não se trata aqui de exigir que Portinari imitasse
os mexicanos, mas que, ao considerar a pintura deles como fonte de re-
ferência para o seu trabalho, ele tivesse feito uma leitura mais produtiva
desses artistas. Ao situar os meios plásticos mais inovadores dos mexi-
canos dentro de uma concepção tradicional, Portinari reduz a força trans-
gressora das obras mexicanas a uma série de convenções estabelecidas.
Um exemplo interessante a ser analisado, no que se refere à utilização
de fontes semelhantes às que influenciaram a pintura de Portinari, é o de
Jackson Pollock (1912-1956). Embora nove anos mais moço que Portinari,
Pollock só chegará à maturidade do seu estilo nos primeiros anos da década
de 1940, morrendo seis anos antes do artista brasileiro, o que torna os dois
relativamente contemporâneos. Tal como em Portinari, tanto o trabalho de
Picasso quanto o dos muralistas mexicanos terão uma grande importância
na determinação de seu estilo. Além dessas influências, ele também se ba-
seará na pintura dos índios norte-americanos, sem esquecermos que era
discípulo de Benton, um dos muralistas mais importantes dos Estados Uni-
dos, e que, segundo Pollock, o teria iniciado na arte do Renascimento.
É importante ter em mente que, embora o Muralismo tenha tido no
México desde o início da década de 1920 uma implantação privilegiada,
somente na década de 1930 alcançará uma repercussão mundial. Com
efeito, a esquerda em geral e sobretudo os partidos comunistas incen-
tivam a arte mural realista de temática política e social como uma arte
pública que falaria às massas, expressão, portanto, de uma arte revolu-
cionária. Desde os primeiros anos da década de 1930 o Realismo terá,
inclusive na URSS, o estatuto de estética oficial. O trânsito internacional
que adquiriu essa concepção de arte não a impedia de ter também como
projeto um caráter nacionalista, ao procurar adaptar seus princípios ge-
rais às diversas particularidades nacionais. Assim, nos Estados Unidos,
os pintores realistas irão também perseguir o objetivo de uma arte nacio-
nal capaz de liberá-los do domínio cultural europeu.
Pollock pertence a uma geração que vivencia ainda os efeitos dessa
arte mural norte-americana. Esses artistas chegam a participar do Fede-
ral Arts Projects (programa de mecenato do Estado, que na administra-
ção Roosevelt contratava os artistas para a execução de murais em pré-
dios públicos), como incorporam ainda essa vontade de independência
diante do modelo europeu. Mas essa geração também saberá usufruir do
enorme desenvolvimento do sistema da arte nos Estados Unidos durante
o século XX. Os museus americanos, por exemplo, se colocarão entre os
mais importantes do mundo, como é o caso do Museu de Arte Moderna
de Nova York, que se transforma no melhor do seu gênero. Esses museus
serão responsáveis por frequentes retrospectivas e exposições dos artis-
tas europeus mais importantes. Ao mesmo tempo formam-se inúmeras
coleções privadas de arte moderna, surgindo em função disso galerias
que estarão na base de um mercado para os artistas locais. Por fim, em
poucos anos irão concentrar-se nos Estados Unidos, devido ao triunfo
do nazismo e, logo depois, com a Segunda Guerra Mundial, a quase to-
talidade dos artistas mais importantes do século XX, entre os quais os
surrealistas, que serão particularmente notados por Pollock.
O estilo modernista na obra de Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari 105
mentais. O que houve foi uma recuperação por parte do Poder da tática
adotada pelo movimento modernista, quando o governo utilizará o apoio
a Portinari como exemplo de seu mecenato. Se, a partir do prêmio obtido
em 1935, o artista começa a se tornar um nome público, seria também
graças à repercussão alcançada pelas sucessivas encomendas do Estado
ou por iniciativas como a grande exposição do artista que o Ministério da
Educação patrocinou em 1939 no Museu de Belas Artes.
Mas se não houve uma arte oficial, não significa que o estilo de
Portinari não pudesse também ser assimilado pela ideologia do Poder.
No que se refere ao aspecto temático, se a orientação de Portinari não
correspondia a um patriotismo evidente e épico, como talvez fosse o de-
sejo do governo, não significa que não pudesse ser recuperado. A digni-
dade que o artista confere ao trabalhador, o destaque que dá ao persona-
gem popular, enfim, todos aqueles assuntos que ele abordou não podiam
ser negados por um poder para quem a questão social (mesmo que den-
tro de uma ótica populista) constituía uma das bases de sua política. Mas
se a pintura de Portinari pôde ser recuperada, foi principalmente porque
a sua concepção formal era conciliável com a estratificação simbólica de
uma ideologia conservadora.
Em 1939 a concentração de todas as atenções sobre Portinari começa
a provocar reações. A partir de um incidente banal, de indicação por parte
do governo brasileiro de nomes para uma enciclopédia de arte norte-
americana, cria-se uma polêmica provinciana. O episódio é aproveitado
por aqueles que consideravam que o prestígio de Portinari estava impe-
dindo o reconhecimento de outros artistas para atacá-lo (91). A acusação, 91. Cf. Paulo Mendes de Almeida, “Por-
se tinha algo de verdadeiro, na medida em que um artista como Guignard tinarismo” e “Antiportinarismo”, e
“O choque”, in De Anita ao Museu, op.
vivia praticamente desconhecido, não chegou nunca à análise da política cit., p.141, 149 e 155. 2
desenvolvida pelos adeptos da arte moderna ou a uma crítica da pintura
de Portinari. Mas surgiria aí, pela primeira vez, a acusação lançada con-
tra o artista de pintor do Estado Novo. Na verdade, o endeusamento de
Portinari era resultado direto da campanha que durante anos foi realizada
por todos os modernistas. Por outro lado, a acusação de pintor oficial só
seria procedente se incluíssemos nessa denominação grande quantidade
de intelectuais e artistas, entre os quais encontraremos os nomes mais
significativos do período e que direta ou indiretamente trabalharam para
o governo. Mais que uma discussão sobre o oficialismo de Portinari, o
que está em causa é a própria visão do movimento modernista no Rio, de
conquistar as instituições oficiais. Se verificarmos a evolução da relação
entre o Modernismo e o Estado, poderemos considerar que a penetração
crescente de intelectuais e artistas no aparelho governamental equivale
a um cálculo de absorção graduada feita pelo Poder. Visto que, dentro de
certa medida, a arte moderna brasileira, tal como era concebida nos anos
1930, não representava para o Poder um questionamento ideológico, po-
dendo mesmo servir como um aval simbólico da sua modernização.
112 O estilo modernista na obra de Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari
COMO CONCLUSÃO
Para considerarmos como válida a última frase deste livro, que coloca o
Modernismo como o marco zero da arte brasileira, seria necessário si-
tuarmos esta afirmação em contexto mais amplo, capaz de abranger a
produção do que poderíamos chamar de ‘antes do marco zero’. Não há
nesta visão nenhum juízo de valor além daquele de considerar cronologi-
camente a formação do sistema de arte no Brasil.
Na introdução à segunda edição, procurei mostrar a importância
do século XIX na criação do nosso sistema de arte, desde a fundação
da Academia Imperial de Belas Artes, liderada por Jean-Baptiste Debret
(1768-1848), até a ação posterior de Araújo Porto Alegre (1806-1879) como
diretor da Academia e formulador de uma história da arte brasileira (na
qual incluía o artista/artesão colonial) e também da criação de uma arte
nacional com base na pintura histórica. Os limites deste projeto são di-
tados pelas contradições culturais de uma sociedade cujo conservado-
rismo era marcado pelo regime escravocrata, conforme formulo em “As
batalhas de Araújo Porto Alegre” (Revista Ars, ano XIII, n.26, 2015).
Em artigo intitulado “O centro na margem” (Revista Gávea, n.10,
PUC-Rio), de 1993, refiro-me ao termo que Angyone Costa utiliza para
se referir aos pintores brasileiros da passagem do século XIX para o XX
como “a inquietação das abelhas” (Rio de Janeiro: Pimenta de Mello &
Cia, 1927). Neste período, desfeita a crença mais dogmática na Acade-
mia, restava a perplexidade. Antônio Parreiras (1860-1937), apesar da
desigualdade interna do seu trabalho, vai ganhar, tardiamente, maior li-
berdade; dimensões mais amplas para as paisagens e as marcas das pin-
celadas são algumas das características deste processo. De modo geral,
neste período, há um esforço no sentido da predominância da cor como
acontece com Eliseu Visconti (1866-1944), mas também a inteligência pic-
tórica de Almeida Júnior (1850-1899) no Descanso do modelo e a feliz
relação entre carnaval e transgressão de cânones nas telas O dia seguin-
te de Timóteo da Costa (1882-1922) e a surpreendente Baile à fantasia,
de Rodolfo Chambelland (1879-1967). Contudo, atuam tentando forçar os
limites estreitos das possibilidades da renovação interna da Academia.
O maior exemplo de emergência da nova qualidade no interior desta
dinâmica é João Batista Castagneto (1851-1900). Também sua obra não
possui grande uniformidade; divide-se entre trabalhos convencionais,
encomendas de ocasião e aquelas mais ‘pessoais’, como as realizadas so-
bre tampas de caixas de charuto. Algo se passa em sua trajetória que não
pode ser explicado pelo convívio com o grupo Grimm1 e que se prende
apenas ao desafio da prática pictórica. A ida para o ar livre o coloca diante
do problema da cor tropical. Castagneto percebe a impossibilidade da cor
naturalista diante de uma luz que divide a sombra sem qualquer nuance.
1
“Denominação dada a um grupo de jovens paisagistas que, a princípio, alunos do alemão
Georg Grimm na classe de Paisagem da Academia Imperial de Belas Artes, o acompanha-
ram no seu rompimento com a instituição, passando a trabalhar na Praia da Boa Viagem,
em Niterói entre 1884 e 1886 praticando pintura ao ar livre (...) o grupo era integrado por
Grimm e pelo seu compatriota Thomas Driendl, espécie de assistente eventual (…) e mais
por Antônio Parreiras e João Batista Castagneto, Domingos García y Vasquez e Hipólito Ca-
ron, Joaquim França Júnior e Francisco Gomes Ribeiro” (Cf. LEITE, José Roberto Teixeira.
Dicionário crítico da pintura no Brasil. Rio de Janeiro: Artlivre, 1988).
118 Posfácio para esta edição
2
Justo meio-termo ou, em francês, juste-millieu: expressão que designa o gosto corren-
te na pintura francesa da primeira metade do século XIX, consolidando-se como reação
conservadora às correntes contemporâneas mais inquietas do Romantismo e do Realis-
mo, e que associa elementos desses movimentos a uma fórmula neoclássica; aplica-se,
igualmente, à politica conservadora e à cultura em geral que dominou a França no período
marcado pela Restauração.
Posfácio para esta edição 119
Junho de 2021
121
Sobre o autor
Carlos Zilio nasceu no Rio de Janeiro, em 1944. Estudou pintura com Ibe-
rê Camargo no Instituto de Belas Artes em 1963 e formou-se em Psico-
logia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Participou de
algumas das principais exposições brasileiras dos anos 1960 – Opinião 66
e Nova Objetividade Brasileira, ambas no MAM-RJ – bem como de nume-
rosas mostras coletivas, como as edições de 1967, 1989 e 2010 da Bienal
de São Paulo; na Bienal de Paris (1977); e na Bienal do Mercosul (2005).
Realizou várias exposições individuais, sendo a primeira em 1974, na Ga-
leria Luiz Buarque de Holanda e Paulo Bittencourt, e em 1976, a segunda
individual no MAM-RJ.
Na década de 1970, morou na França, onde se doutorou em Artes.
Desde o retorno ao Brasil, em 1980, participou de inúmeras mostras. Den-
tre as diversas exposições individuais, destacam-se Arte e Política 1966-
1976, nos Museus de Arte Moderna do Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia
(1996-1997); Carlos Zilio, no Centro de Arte Hélio Oiticica (Rio de Janeiro,
2000), abrangendo sua produção dos anos 1990; e Pinturas Sobre Papel,
no Paço Imperial (Rio de Janeiro, 2005), e na Estação Pinacoteca de São
Paulo (2006). Suas mais recentes exposições coletivas foram: Imagine
Brazil (Oslo, Lyon, Doha, São Paulo e Montreal, 2013-2015); Possibilities
of the object: Experiments in Modern and Contemporary Brazilian Art
(Edimburgo, 2015) e Transmissions: art in Eastern Europe and Latin Ame-
rica, 1960-1980 (MoMA, Nova York, 2015), Past/Future/Present, Phoenix
Art Museum/MAM-SP (Phoenix, 2017) e Knife in the flash, PAC Padiglione
d’Arte Contemporanea (Milão, 2018).
Zilio foi professor na Escola de Belas Artes da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ). Em 2008, a editora Cosac Naify publicou o livro
Carlos Zilio, organizado por Paulo Venâncio Filho, sobre sua produção
artística.
Seus trabalhos estão presentes em diversas instituições, como os
Museus de Arte Contemporânea de São Paulo, Niterói e Paraná, na Pina-
coteca do Estado de São Paulo, nos Museus de Arte Moderna do Rio de
Janeiro e São Paulo e no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA).
122
ÍNDICE ONOMÁSTICO
R V
RAFAEL, Raffaello Sanzio 74, 107 VALLE, (José de) Freitas 54
RAMOS, Graciliano 94 VAN DONGEN, Kees 29
REGO MONTEIRO, Vicente do: ver VAN GOGH, Vincent 25-8, 39, 106
MONTEIRO, Vicente do Rego VASQUEZ, Domingos García y 117
RENARD, Emile 44 VECELLIO, Tiziano: ver TIZIANO
RIBEIRO, Francisco Gomes 117 VENTURI, Lionello 74
RIEGL, Alois 16 VILLA-LOBOS, Heitor 65-6
RIVAS, Pierre 67 VILLALTA, Blanco 67
ROMAINS, Jules 65 VILLEGAIGNON, Nicolas Durand
ROOSEVELT, Franklin Delano 104 de 68
ROSENBERG, Léonce 65 VILLON, Jacques; Gaston Duchamp,
ROSSI, Paulo 107-9 dito 70
ROTHKO, Mark 105 VINCI, Leonardo da
ROUSSEAU, Henri 36, 81 VIRGÍLIO 63
ROUSSEAU, Jean Jacques 68 VISCONTI, Eliseu (D’Angelo) 39, 117
VLAMINCK, Maurice de 28, 106-7
S VOLLARD, Ambroise 65
SALMON, André 65 VOLTAIRE, François Marie Arouet,
SANZIO, Raffaello: ver RAFAEL dito 63
SATIE, Erik 65 VROUBEL, Mikhail Aleksandrovitch
SCHMIDT, Afonso 56, 64 75
SCHWITTERS, Kurt 32
SEGALL, Lasar 60, 107 W
SEGONZAC, (André) Dunoyer de 65 WASHINGTON LUÍS (Pereira de
SÉGUR, condessa de; Sophie Souza) ver: SOUZA, Washington
Rostopchin 55 Luís Pereira de
SEURAT, Georges 10, 22 WÖLFFLIN, Heinrich 16
SHAPIRO, Meyer 16, 117
SILVA BRIT0, Mário da: ver BRITO, Z
Mário da Silva ZOLA, Emile 62
SIQUEIROS, (José) David Alfaro 59,
61, 91
SOUZA, Washington Luís Pereira de
54, 56
SOUZA LIMA, ver: LIMA, (João de)
Souza
STADEN, Hans 52
STRAVINSKY, Igor 65
SUPERVIELLE, Jules 65
T
TANGUY, Yves 91
TATLIN, Vladimir 75-6
TEMKIN, Ann 120
TIZIANO, Tiziano Vecellio ou Vecelli
107
TZARA, Tristan 72
U
UTRILLO, Maurice 29
126
BIBLIOGRAFIA
LIVROS
CATÁLOGOS
ARTIGOS DE PERIÓDICOS
62. CAMPOS, Haroldo de. Oswaldo de Andrade. Europe, Paris: n. 599, mar 1979.
62. COUTINHO, Wilson. Ainda comemos o bispo Sardinha. Arte Hoje, Rio de
Janeiro: ano 1, n. 10, abr. 1978.
64. DAMISCH, Hubert, Huit thèses pour (ou contre) une sémiologie de la peienture.
Macula, Paris: n. 2, 1978.
65. FAUSTO, Boris. Pequenos ensaios de história da República: 1889-1945.
Cadernos CEBRAP. São Paulo: 1972.
66. GREENBERG, Clement. Les textes sur Pollock; peinture à l’américaine. Macula,
Paris: n. 2, 1978.
67. RIVAS, Pierre. Modernité du modernisme. Europe, Paris: n. 599, mar 1979.
68. REVISTA DE ANTROPOFAGIA. São Paulo. Reedição.
TESE
69. FABRIS, A. Teresa. Portinari, pintor social. São Paulo: Escola de Comunicação
e Artes da Universidade de São Paulo: 1977.
A Querela do Brasil é mais que a sistematização de uma época
determinante das artes plásticas. Nesta nova edição, 40 anos
após seu lançamento, a obra de Carlos Zilio continua vigorosa
em seus alicerces conceituais. Passando pelo momento de
transição do espaço artístico renascentista para o moderno e
traçando um paralelo com a arte moderna francesa, o autor
encontra no Pós-Cubismo e, principalmente, em Picasso,
as fontes fundamentais para a delimitação do movimento
modernista brasileiro.