Leal, João, Usos Da Cultura Popular

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COMO SE FAZ

UM POVO
Ensaios em História
Contemporânea
de Portugal

Coordenação
José Neves

LISBOA:
TINTA-DA-CHINA
MM X
Museu da 19JUN
Electricidade 19 SET

POVO - PEOPLE
Exposição
Exhibition

Este livro foi publicado no âmbito da Exposi-


ção Povo-People, organizada pela Fundação
EDP, no Museu da Electricidade, durante o
Verão de 2010.

© 2010, Fundação EDP e Edições tinta-da-china, Lda.


Rua João de Freitas Branco, 35A,
1500-627 Lisboa
Tels: 21 726 90 28/9 I Fax: 21 726 90 30
E-mail: [email protected]
www.tintadachina.pt

Título: Como Se Faz Um Povo.


Ensaios em Historia Contemporânea de Portugal
Coordenação: José Nevess
Autores: AAVV
Tradução (texto de Diego Palacios Cerezales):
Miguel Serras Pereira
Revisão: Tinta-da-china
Composição: Tinta-da-china
Capa: Vera Tavares

1.a edição: Junho de 2010

ISBN 9 7 8 - 9 8 9 - 6 7 1 - 0 4 0 - 8
Depósito Legal n.° 311975/10
índice

7 Introdução
JoséNeves

REPRESENTAÇÃO, C I D A D A N I A E P O L Í T I C A POPULAR

25 Do moderno conceito de povo em Portugal:


constituição e usos (1807 — 1850)
Fátima Sá e Melo Ferreira
41 Povo e cidadania no século xix
Cristina Nogueira da Silva
57 «Autogoverno» e «moralismo igualitário».
Política popular em Portugal no século xix
António Monteiro Cardoso
71 O soberano ausente: povo, povos, povinho, os avatares
de um sujeito mítico na cultura liberal portuguesa
Diego Valados Cerezales
85 No «século do povo» — a perspectiva liberal e romântica
de Garrett e Herculano
Luís Augusto Costa Dias
93 O movimento republicano e o povo
Maria Alice Samara
107 A religiosidade e o povo na Primeira República
David Luna de Carvalho

I D E N T I D A D E NACIONAL, CULTURA POPULAR E REVOLUÇÃO

125 Usos da cultura popular


João Leal
139 Do povo à comunidade. Os emigrantes
no imaginário português
Victor Pereira
153 Indígenas, imigrantes e outros povos
Miguel Bandeira Jerónimo, Nuno Domingos e Nuno Dias
167 Povo, nação, raça: representações da identidade nacional
portuguesa no século xx
José Manuel Sobral
183 O povo do Estado Novo
Vera Marques Alves
195 Levar ao povo o que é do povo:
as Campanhas de Dinamização Cultural e Acção Cívica
do Movimento das Forças Armadas (1974-1975)
Sónia Vespeira de Almeida
209 Povo, comunismo e autonomia
JoséNeves
227 Portugal sem destino
Silvina Rodrigues Lopes
S O C I E D A D E , ECONOMIA E QUOTIDIANO

243 Notas sobre o alto, o baixo e as danças africanas


(séculos xvii e xviii)
Diogo Ramada Curto
263 O povo de Lisboa — sociabilidades na transição
para o Portugal contemporâneo
Maria Alexandre Lousada
277 O povo como «classe criminosa»
Maria João Vaz
293 Povo, população e sociedade na investigação
económica-agrária do início do século xx
Frederico Agoas
311 No país de sol e uvas de oiro. Produção e consumo
de vinho em Portugal no século xx
Dulce Freire
325 O habitar do povo
Manuel Graça Dias
339 A banca e o povo
Ricardo Noronha
353 «A força do povo»:photomaton do associativismo popular
Daniel Melo

ARTE, ESPECTÁCULO E DISSENSÃO

371 A cidade despovoada — povo, classe e literatura moderna


Luís Trindade
385 Vamos ver o povo...
João Pinharanda
401 Retratos do povo
Emília Tavares
415 O povo no teatro de revista
Vítor Pavão dos Santos
427 O povo na televisão
Eduardo Cintra Torres
441 «Povo pop», mudança cultural e dissensão
Rui Bebiano
455 Cinema, povo e público
Tiago Baptista

469 Notas biográficas


IDENTIDADE NACIONAL,
CULTURA POPULAR E REVOLUÇÃO
Usos da cultura popular
João Leal

do historicismo alemão e um pro-


M E I N E C K E F O I UM DOS E X P O E N T E S
tagonista importante na reflexão sobre os nacionalismos na Europa.
Foi ele que propôs a distinção entre Staatsnation e Kulturnation, poste-
riormente retomada, de forma modificada, por vários autores. Entre
esses autores conta-se Anthony Smith, que distinguiu entre os mode-
los cívico-territorial e etno-genealógico de nação, o primeiro baseado
em ideias de partilha de um mesmo território e dos mesmos deveres e
direitos, o segundo assente em ideias de descendência e de partilha de
uma língua e de uma cultura comuns.
Indicando duas modalidades de definição da nação, estes dois
modelos representam também dois modos de definição do povo
enquanto sujeito da nação moderna. Num, com raízes nas Revolu-
ções Americana e Francesa, o povo são os cidadãos. Noutro, de raízes
românticas, o povo são os camponeses. Num fala-se do povo como
uma unidade política, noutro, como uma unidade cultural.
Nascida no início do século xix, esta visão do povo como unida-
de cultural — teorizada por Herder — teve um desenvolvimento rele-
vante. Do ponto de vista político, foi responsável pelo surgimento
de um grande número das nações de entre as que compõem o actual
mapa político europeu. Mas, mesmo em nações onde prevaleceu o
modelo cívico-territorial, houve fases importantes de construção do
sentido de nacionalidade, nas quais as ideias etnoculturais sobre o
povo desempenharam um papel importante.
Simultaneamente, foi a partir desta visão do povo que se cons-
truiu o conceito de cultura popular. De facto, ao serem confrontados
com a existência, na Europa, de uma óbvia diferença — que não ces-
sava de aumentar desde o Renascimento — entre a cultura dos grupos
eruditos e dos grupos populares, os românticos, investindo de valor
moral essa diferença, irão distinguir entre aquilo que, adaptando uma
{126}
C O M O S E FAZ U M P O V O

formulação de Edward Sapir, poderíamos designar como formas


«espúrias» de cultura e formas «genuínas» de cultura. As primeiras
seriam as formas da high culture: a cultura das elites, artificial, cosmo-
polita e desnacionalizada, sem raízes no passado. As segundas — as
formas da cultura popular — coincidiriam com a cultura dos campo-
neses: autêntica, nacional, antiga. A partir delas poder-se-ia pensar,
contra a herança universalista e racionalista das Luzes, a regeneração
das primeiras. Já o percurso inverso seria por definição impossível,
sendo as excepções — raras — representadas por artistas e criações
culturais que à partida se encontravam já impregnados do espírito
dessa cultura simultaneamente popular e nacional.
Tendo instituído o conceito de cultura popular, os românticos
instituíram também em seu torno uma tradição de criação e de refle-
xão erudita que irá desenvolver-se ao longo do século xix e de boa
parte do século xx. A face mais conhecida dessa reflexão é constituída
por um campo disciplinar — variavelmente designado como etnogra-
fia, folclore, etnologia, antropologia — coincidente com aquilo que
Stocking designa por «antropologias de construção da nação». Mas
assenta também num conjunto heterogéneo de tradições de ensaísmo
e de criação artística e literária que, fazendo do popular a sua maté-
ria, podem ser genericamente descritas como etnográficas. No caso
português, autores como Adolfo Coelho, Teófilo Braga, Leite de Vas-
concelos ou Jorge Dias inscrevem-se no primeiro campo. Almeida
Garrett, a saudade vista por Teixeira de Pascoaes, as discussões sobre
a casa portuguesa ou a art brut de Ernesto de Sousa fazem parte do
segundo. No primeiro caso, o projecto é declaradamente científico.
No segundo, faz-se mais sob a forma da evocação, da celebração ou da
intenção programática. Mas nos dois casos trata-se de um projecto de
natureza essencialmente etnográfica. Por isso, entre ambos os cam-
pos a circulação de ideias foi a regra.
Formulado por intelectuais que não tinham necessariamente
ligações com o aparelho de Estado, este modo etnográfico de discur-
sar a nação foi co-optado, a velocidades e segundo ritmos diversos,
pelo Estado. Em certos casos a sua presença foi discreta mas contí-
nua. Noutros casos foi fulminante e espectacular. E o que se passa,
para o caso português, com a política do SPN/SNI. Simultaneamente,
uma vez estabelecido o vínculo entre cultura popular e configurações
nacionais, tornou-se possível replicá-lo a escalas identitárias mais res-
tritas, como a regional ou a local. Foi assim que nasceram, por toda a
[127]
IDENTIDADE NACIONAL, CULTURA POPULAR E REVOLUÇÃO

Europa, tradições etnográficas locais mais ou menos articuladas com


os grandes centros nacionais de produção discursiva sobre o povo.

E S T A N D O N A origem simultânea de um modelo de nação e de uma visão

da cultura popular, o modelo da Kulturnation construiu não só uma


relação duradoura entre o campo político das identidades nacionais e
o campo disciplinar da etnografia, como foi responsável por algumas
grandes constantes que rodearam a tematização das culturas popu-
lares europeias ao longo do século xix e de boa parte do século xx.
A primeira dessas constantes é a etnogenealogia num sentido
mais estrito, isto é, uma interpretação da cultura popular que a toma
como testemunho dos processos étnicos de formação nacional. A cul-
tura popular seria uma prova da profundidade genealógica da nação.
Se a arqueologia ambicionava exumar os restos materiais dos antepas-
sados étnicos da nação, a cultura popular permitiria resgatar os restos
espirituais dessa existência: uma existência que não só atravessaria
séculos, como seria anterior à formação política das nacionalidades.
Quando constatamos o peso da argumentação etnográfica no esta-
belecimento de continuidades imaginárias entre gregos helénicos e
modernos, entre os finlandeses do Kalevala e os modernos finlande-
ses, ou entre lusitanos, invasores germânicos e portugueses, é com a
importância da etnogenealogia que somos confrontados.
A segunda grande constante tem a ver com o modo como a cul-
tura popular foi transformada numa matéria a partir da qual — na
continuidade das lições de Herder — podiam ser pensadas as parti-
cularidades — mais etéreas — da «alma nacional». Seja sob a forma de
psicologia étnica, seja sob a forma dos estudos de carácter nacional,
a tentativa de fazer assentar no solo da cultura popular a essência espi-
ritual da nação é uma das características fundamentais do modo etno-
gráfico de discursar a nação. Foi também aí que etnógrafos, ensaís-
tas e literatos se encontraram com alguma frequência, como mostra
o impacto que a saudade de Teixeira de Pascoaes teve nos Elementos
Fundamentais da Cultura Portuguesa de Jorge Dias. Mas, fora de Por-
tugal, outros exemplos poderiam ser acrescentados, desde o lugar da
doru — a saudade romena — na tematização etnográfica da identida-
de nacional na Roménia até ao modo como a literatura popular grega
foi interpretada como reveladora das qualidades de insubmissão da
alma nacional grega.
[128]
[ 1 2 6 ] C O M O S E FAZ U M P O V O

A terceira grande constante do modo etnográfico de tematiza-


ção da cultura popular tem a ver com a constituição de um elenco
de objectos populares que, a escalas mais precisas, pudessem funda-
mentar as reivindicações particularistas sobre as quais repousaram as
identidades nacionais modernas. Construindo uma etnogenealogia e
uma alma nacional próprias a partir da cultura popular, os etnógrafos
— aqui ainda mais insistentemente associados a ensaístas e criado-
res — tentaram mostrar como ambas cristalizavam num conjunto de
aspectos, traços, elementos e objectos que eram também eles popu-
lares e nacionais. Entre esses objectos começaram por ocupar lugar
de grande destaque a literatura e as tradições populares. Foi em seu
torno que se constituíram tradições nacionais de folclore baseadas
na compilação e análise do romanceiro, do cancioneiro e dos contos
populares (literatura popular) e da mitologia, festas e crenças popu-
lares (tradições populares). Mas a história da tematização do popular
na Europa é também a história do modo como, paralelamente, outros
objectos foram sendo incorporados no kit identitário da nação: da
arquitectura à arte popular, das alfaias agrícolas aos dialectos, do traje
aos hábitos pastoris. Coleccionados e estudados, estes objectos —
sobretudo aqueles que mais literalmente eram objectos — serviram
também de ponto de partida para exposições e museus. Inspiraram
o movimento folclórico — assente na tríade traje / dança / música
— e determinaram o aparecimento de um artesanato moderno. Foi
também em seu torno que puderam nascer programas de renovação
nacional das artes e literaturas. O caso da arquitectura popular portu-
guesa é significativo: foi em seu torno que nasceu, nas primeiras déca-
das do século xx, o movimento da Casa Portuguesa e, mais tarde, nos
anos 1960, foi ainda ela que esteve na origem de novas modalidades de
diálogo entre arquitectura moderna e vernácula, as quais marcaram a
chamada «geração do Inquérito». Em qualquer dos casos, o que suce-
deu em Portugal replicava o que se passava noutros países europeus.
Finalmente, uma quarta constante caracteriza o modo etnográ-
fico de tematização das culturas populares: o seu carácter polémi-
co, o modo como se articulou com controvérsias e guerras culturais,
opondo versões diferenciadas do laço entre popular e nacional. Algu-
mas dessas controvérsias eram estratégicas e diziam respeito ao pró-
prio estatuto da cultura popular. Em finais do século xix, os antropó-
logos evolucionistas contrapuseram à visão do camponês enquanto
guardião da genealogia da nação a visão do camponês como represen-
{129}
IDENTIDADE NACIONAL, CULTURA POPULAR E REVOLUÇÃO

tante moderno dos selvagens, deixado para trás pela marcha triun-
fante do progresso, preso ao véu espesso da sua ignorância e das suas
superstições. Mais tarde, as ideias que faziam do camponês o repre-
sentante por excelência do povo foram também postas em questão
por sectores da esquerda marxista que, por um lado, viam na classe
operária e no internacionalismo o futuro da humanidade e, por outro,
contrapunham à narrativa romântica da cultura popular o quadro de
miséria e privações prevalecente nos campos. Mas a esquerda mar-
xista — em particular os comunistas — não deixou por essa razão de
incluir alguns dos aspectos centrais do modo etnográfico de constru-
ção da nação nas suas práticas e propostas políticas e culturais.
A par destas controvérsias estratégicas, desenrolaram-se com-
bates mais tácticos sobre os domínios que melhor representavam a
cultura popular: se o imaterial — a literatura e as tradições populares
— se o material — as alfaias agrícolas, a materialidade da vida campo-
nesa. Nascida nos países de língua alemã — onde a escola «Palavras
e Coisas» desempenhou um papel central na descoberta da cultu-
ra material camponesa — esta controvérsia estendeu-se a Portugal,
onde à insistência dos etnógrafos dos anos 1870 na cultura imaterial
sucedeu a opção de Rocha Peixoto, primeiro, e de Jorge Dias, depois,
pela cultura material. O equilíbrio entre recolha e interpretação, de
um lado, e celebração e encenação, do outro, também foi motivo de
discórdia. Para Jorge Dias — como para a maioria dos etnógrafos que
o antecederam — a prioridade estava do lado da recolha e da inter-
pretação, mas, para os etnógrafos do Estado Novo, o importante era
a encenação. Enquanto os segundos fundaram o Museu de Arte Popu-
lar, o primeiro criou o Museu de Etnologia. Os valores fundamentais
da cultura popular eram também objecto de controvérsia: os arqui-
tectos do Inquérito à Arquitectura Popular falavam da sinceridade
do popular, contrapondo-a ao decorativismo da Casa Portuguesa de
Raul Lino. A arte popular de Ernesto de Sousa — também ela à procu-
ra de valores de sinceridade — não era a mesma de Vergüio Correia e
de outros etnógrafos da Primeira República. Mas, no essencial, estas
controvérsias tácticas não escondiam acordos mais fundamentais:
acerca da importância da cultura popular, acerca dos camponeses
como seus melhores guardiões, acerca do seu lugar estratégico como
sítio a partir do qual se podia discursar a nação.
Estes acordos fundamentais definiam tanto um campo de inclu-
sões como de exclusões. Na visão da cultura popular característica
{130} COMO SE FAZ UM POVO

do modo etnográfico de construção da nação cabiam os camponeses


mas não as cidades; apagavam-se os sinais da circulação entre cultu-
ras populares e culturas eruditas; o oral era valorizado em detrimento
do escrito; cabiam as formas puras, mas eram ignorados os sincre-
tismos; prezava-se o que parecia mais estático em detrimento das
transformações.

estas quatro constantes, o modo etnográfico de


C A R A C T E R I Z A D O POR
tematização da nação operou a partir de mecanismos generalizados
de objectificação da cultura.
Este conceito, proposto por Richard Handler, tem uma tripla
acepção. Uma primeira designa o modo como na ideologia nacionalis-
ta a nação é vista como um objecto, no sentido em que, tal como um
objecto, se supõe que a nação é uma entidade com fronteiras, fecha-
da e claramente distinguível de outras unidades similares, tal como
um objecto se diferencia de outro. Em cima desta primeira acepção,
Handler propõe depois uma segunda acepção. Nesta, a objectifica-
ção designa o modo como determinados traços da cultura popular —
dança, arquitectura popular, etc. — «são transformados em coisas dis-
cretas que devem ser estudadas, catalogadas e exibidas. Isso envolve
selecção e reinterpretação. O objectificador olha para um meio que
lhe é familiar e descobre que é composto de traços tradicionais, coisas
que ele retira de um contexto adquirido e transforma em espécimes
típicos». Quanto à terceira acepção do conceito de objectificação, visa
designar o modo como, depois de reinterpretada, a cultura popular se
transforma em património, no sentido literal do termo: algo de que
a nação tem a propriedade, um objecto que ela literalmente possui e
que é indispensável à sua existência.
Embora estas três acepções do conceito de objectificação da cul-
tura sejam importantes para pensar as tematizações nacionalistas da
cultura popular, é a segunda acepção de objectificação que merece
mais destaque. Por seu intermédio somos confrontados com o pro-
cesso que ocorre quando algo é identificado como tradicional pelos
especialistas da cultura popular. Até aí, a cultura popular estava ligada
a um contexto preciso: geralmente, um contexto local que lhe confe-
ria uma lógica social e cultural própria, ligada aos constrangimentos
do modo de vida rural. Ao aproximarem-se desses contextos locais de
existência daquilo que baptizam como cultura popular, etnógrafos e
{131}
IDENTIDADE NACIONAL, CULTURA POPULAR E REVOLUÇÃO

folcloristas vão proceder a um duplo trabalho de descontextualização


e recontextualização: os elementos culturais que atraem a sua aten-
ção deixam de significar o que significavam para passarem a repre-
sentar outra coisa diferente. De facetas da vida rural vista nos seus
próprios termos passam a ser vistos como signos da identidade nacio-
nal. De aspectos culturais objectivos — locais — transformam-se em
emblemas identitários subjectivos — nacionais. Da pequena tradição
passam à grande tradição. Como diria Manuela Carneiro da Cunha,
de cultura — sem aspas — transformam-se em «cultura» — com aspas.
Assim definida, a objectificação da cultura popular pode ser vista
nos termos das ideias defendidas por Barbara Kirshenblatt-Gimblett
acerca dos processos de patrimonialização. Esses processos injecta-
riam nos objectos patrimonializados uma espécie de segunda vida:
uma vida como exposição/ exibição de si mesmos. Esgotada a sua fun-
ção inicial — a sua primeira vida —, eles viveriam depois uma segun-
da vida, como testemunhos de algo que deixaram de ser. Passa-se o
mesmo com a cultura popular quando objectificada. A sua vida antes
da objectificação pode ser vista como a sua primeira vida. Quando a
objectificação ocorre, é uma segunda vida que se inicia. A sua primei-
ra vida era coincidente com a própria vida social e cultural tradicional
das comunidades. A sua segunda vida passa a ser vivida nos discursos
da identidade nacional moderna construídos pelos eruditos.
Em Kirshenblatt-Gimblett, a primeira e a segunda vida dos
objectos patrimonializados sucedem-se entre si. No caso mais especí-
fico dos objectos populares, essa sucessão também se reencontra. Mas
em muitos casos a segunda vida do popular pôde decorrer em paralelo
com a primeira. Os etnógrafos passavam, registavam, escreviam e as
pessoas — surpreendendo-se porventura com a curiosidade erudita
— voltavam aos seus afazeres. Entretanto, na cidade, entre as elites, os
objectos e os costumes dessas e doutras comunidades tinham já inicia-
do uma segunda vida, como símbolos da identidade nacional.

No CASO português — como em muitos outros casos —, esta segun-


da vida do popular foi uma vida longa. Vem desde o princípio do século
xix, se considerarmos os românticos, ou desde finais do século xix, se
consideramos a primeira geração de antropólogos portugueses (Adol-
fo Coelho, Teófilo Braga, Leite de Vasconcelos, Consiglieri Pedroso).
Prossegue na viragem do século xix para o xx, com Rocha Peixoto,
{132} C O M O S E FAZ U M P O V O

continua pelos anos da Primeira República, com Vergílio Correia,


e espraia-se pelos anos do Estado Novo, onde etnógrafos afectos ao
regime, Jorge Dias e a sua equipa e a etnografia de esquerda alterna-
tiva ao Estado Novo se afirmam como protagonistas de uma guerra
táctica de longa duração sobre os sentidos da cultura popular e sobre
o tipo de país que se podia discursar a partir dela. Depois de 1974, foi
ainda a cultura popular — como mostram as campanhas de dinami-
zação cultural do MFA — a fornecer o terreno para a construção de
ideias sobre povo e revolução.
Hoje em dia, esta segunda vida da cultura popular parece mais
incerta. Do lado da antropologia, os anos 1960 marcam o nascimento
de uma tradição de reflexão sobre a ruralidade que, distanciando-se
de programas identitários, se aprofundou decisivamente nos anos
1980, com uma nova geração de antropólogos chegados à antropo-
logia depois da Revolução. Nos anos 1990, com o declínio pós-rural
do país e a multiplicação de novos terrenos e objectos de pesquisa,
invariavelmente situados em contexto urbano, foi posta em questão a
própria centralidade das culturas populares de base rural no empreen-
dimento antropológico.
Do lado das políticas e representações da identidade nacional, os
usos da cultura popular já não são também tão sistemáticos. O fascí-
nio modernizador que se seguiu à adesão de Portugal à União Euro-
peia — como mostrou a Expo 98 — tornou mais difícil o uso da rura-
lidade como signo identitário. No panorama museológico, também,
tornaram-se frequentes os sinais de incerteza. No Museu de Etnolo-
gia, a exposição «O Voo do Arado» (1995) foi um último adeus ao país
rural de Jorge Dias. Mais recentemente, a longa novela em torno do
encerramento e posterior reabertura do Museu de Arte Popular tor-
nou claro o modo problemático como esta segunda vida, nacional,
da cultura popular, é agora experienciada. Julgado dispensável pela
tutela em nome do projecto cosmopolita de um Museu da Língua,
o Museu de Arte Popular foi defendido por muitos daqueles que se
opunham ao seu encerramento, não pela actualidade do seu projecto,
mas pelo valor patrimonial que esse projecto encerrava: ali estava um
testemunho — que devia ser preservado — do tempo em que cultura
popular e identidade nacional andavam de mãos dadas. As candidatu-
ras a Obra-Prima do Património Imaterial da Humanidade (UNES-
CO) surgidas em Portugal também são reveladoras. Duas delas — em
torno das Festas do Espírito Santo nos Açores e do Património Ima-
{133}
IDENTIDADE NACIONAL, CULTURA POPULAR E REVOLUÇÃO

terial Galaico-Português — foram preparadas e apresentadas à escala


regional. Outra, embora diga respeito ao fado, está a ser discutida no
âmbito — localista — de Lisboa. Em qualquer dos casos, não houve
envolvimento do governo central na promoção ou apoio a essas can-
didaturas, que ficaram entregues à sua dinâmica localista.
Há evidentemente sinais — sobretudo nas artes — que contra-
dizem este panorama. Entre as contestatárias do encerramento do
Museu de Arte Popular encontravam-se uma artista plástica — Joana
Vasconcelos — e uma empresária cultural — Catarina Portas —, as
quais continuam a discursar Portugal a partir da cultura popular. Não
são casos únicos. Mas, curiosamente, uma parte da cultura popular
a partir da qual ambas trabalham não pode ser já reduzida à cultura
popular rural dos etnógrafos portugueses nacionalizadores.

P A R E C E N D O A G O R A mais incertos à escala nacional, os usos identitá-

rios da cultura popular têm entretanto vindo a ganhar importância


acrescida a outros níveis. À escala local ou regional, de facto, são cada
vez mais importantes os indícios que atestam a vitalidade daquilo que
se poderia considerar uma outra segunda vida — não-nacional — das
culturas populares portuguesas.
Num certo sentido, trata-se de um processo que vem de trás.
De facto, ao mesmo tempo que se desenvolveu a partir dos grandes
centros, a antropologia portuguesa associou-se desde muito cedo à
emergência e afirmação de tradições etnográficas locais. Na viragem
do século xix para o século xx, por exemplo, contavam-se já etnó-
grafos isolados ou grupos de etnógrafos locais activos no Algarve,
em Serpa, em Elvas, no Minho, emTrás-os-Montes, nos Açores. E ao
longo da primeira metade do século xx esse processo de localização
da etnografia alastra para muitas outras regiões do país, originando
tradições vivazes de etnografia local que se desenvolverão de forma
articulada com outras actividades: formação de grupos folclóricos;
constituição de colecções e museus etnográficos; emergência de for-
mas de artesanato locais; emblematização de festas e rituais. A par-
tir do centro, o culto romântico das coisas populares desdobrava-se
democraticamente para a «província».
Estes usos localizados da cultura popular podem também ser
analisados com recurso ao conceito de objectificação. O traba-
lho de descontextualização promovido pelos etnógrafos locais é
{134} C O M O S E FAZ U M P O V O

bastante similar ao desenvolvido pelos etnógrafos centrais. O que


difere é o lugar da recontextualização: nas mãos dos objectificadores
locais, a cultura popular torna-se um signo por intermédio do qual
a identidade de unidades como o concelho ou a região — e já não a
nação — pode ser tematizada.
Percorrendo todo o século xx português, estes processos de
objectificação da cultura popular têm vindo a crescer de forma sus-
tentada. Dois exemplos mais elucidativos podem ser dados. Assim,
uma pesquisa recente revelou que, num universo de 2850 grupos de
música tradicional existentes em Portugal — a esmagadora maio-
ria de base local — 81 por cento foram criados nas últimas décadas.
A cobertura do país por estes grupos de música tradicional é quase
total e o número de pessoas que agregam — mais de cem mil — é
também bastante importante. A expansão recente dos museus locais
— nomeadamente, etnográficos — também se encontra documen-
tada. Assim, de um total de 770 museus existentes em Portugal em
1998 — metade dos quais de criação recente ou muito recente —
cerca de 65 por cento eram locais e, destes, cerca de 21 por cento
eram museus etnográficos. Se a estes exemplos forem somados pro-
cessos de revitalização do artesanato e de festas tradicionais ou de
desenvolvimento do turismo rural, o resultado é um panorama de
crescimento recente de processos de objectificação das culturas
populares locais.
Esse panorama fica a dever-se a vários factores. E uma conse-
quência do desenvolvimento do poder local em Portugal e, no caso
dos Açores e da Madeira, da institucionalização da autonomia. Resul-
ta também dos processos de pós-ruralização dos campos e do modo
como as culturas locais — com apoio dos fundos europeus — se tor-
naram num recurso alternativo a fontes de rendimento — prove-
nientes tradicionalmente da agricultura — que desapareceram. Seja
como for, os dados sugerem que, mesmo que seja agora mais incerta
a segunda vida da cultura popular como símbolo identitário nacional,
uma outra segunda vida — marcada pelo seu uso sistemático como
recurso identitário local — continua a manter-se em aberto. A recen-
te popularização da ideia de património imaterial — um conceito que
beneficia da esmagadora vantagem de ser uma marca franchisada pela
UNESCO — tem condições para reforçar este novo fôlego localis-
ta da cultura popular. Sob o signo da localização, a objectificação das
culturas populares vai pois continuar.
{135}
IDENTIDADE NACIONAL, CULTURA POPULAR E REVOLUÇÃO

E VAI continuar também por uma segunda razão. Mais localizadas, as


culturas populares têm vindo também a conhecer processos impor-
tantes de deslocalização e transnacionalização, ligados ao desen-
volvimento da emigração portuguesa. Nos países de acolhimento,
os emigrantes portugueses transformam-se num grupo étnico: um
grupo, inserido em sociedades culturalmente pluralistas, que funcio-
na como quadro preferencial de sociabilidade para os emigrantes e
cujos membros se vêem a si próprios e são vistos pelos outros como
culturalmente distintos. Sucede que, nos processos de emergência de
uma distintividade cultural portuguesa, as culturas populares da terra
de origem desempenham um papel central. O caso mais conhecido
é o do peso que o folclore e os grupos folclóricos têm na articulação
da etnicidade portuguesa. A par do ensino da língua portuguesa e do
futebol, é em grande medida em torno do folclore que se estrutura
um forte movimento associativo emigrante. Nas festas que juntam o
grupo étnico, ele desempenha também um papel essencial e, secun-
dando a actividade dos políticos de origem portuguesa, aparece ainda
associado a processos de empowerment do grupo étnico nas socieda-
des de acolhimento. Simultaneamente, têm vindo a multiplicar-se
pequenos museus, onde os objectos da cultura popular da terra de
origem desempenham um papel central. Dançada e exibida, a cultura
popular da terra de origem é ainda recriada por intermédio de festas e
outros rituais que se tornam importantes marcadores identitários do
grupo étnico. O caso mais expressivo é o das Festas do Espírito Santo
organizadas pelos emigrantes açorianos nos EUA e no Canadá, cujo
número total é hoje de 230.
Estes usos da cultura popular em contexto migratório encontram-
-se também associados a processos de objectificação da cultura popu-
lar. Esta é de igual forma descontextualizada e recontextualizada,
transformando-se, no decurso desse processo, num símbolo potente
da identidade étnica do grupo. Ao mesmo tempo, testemunha a con-
dição culturalmente híbrida dos emigrantes. De facto, mesmo que
alimentada por uma ideologia nostálgica de fidelidade à tradição,
a cultura popular da terra de origem é irremediavelmente afectada
pelas convenções e práticas culturais da terra de acolhimento. Esses
processos de hibridização encontram-se razoavelmente bem iden-
tificados no caso dos EUA e do Canadá. Aí, a procissão do Espírito
Santo transforma-se emparade étnica, aparecem as queens, nos clubes
as matanças do porco são animadas por DJs, etc. Entre etnicização e
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[126] C O M O SE FAZ UM P O V O

hibridação, as culturas populares na emigração ganham de qualquer


modo uma outra segunda vida. E, enquanto se mantiver a emigração
portuguesa, esta outra segunda vida também parece ter condições
para durar.

O F U T U R O das culturas populares em Portugal — mesmo que o vínculo


entre cultura popular e identidade nacional possa ser hoje mais incer-
to — parece pois estar assegurado. Tendo chegado a Portugal pelas
mãos dos etnógrafos nacionalistas, as lições de Herder — mesmo que
os activistas locais e os empreendedores étnicos não o tenham lido
ou sequer ouvido falar dele — democratizaram-se, fazendo da cultura
popular um terreno a partir do qual podem continuar a ser declinadas
as identidades das pessoas e dos colectivos.
Neste aspecto, o que se passa com a cultura popular em Portugal
não é senão o reflexo de uma tendência mais vasta que ganhou maior
evidência nas últimas duas décadas: a generalização da cultura como
idioma importante de enunciação da identidade dos grupos. Asso-
ciado a esse retorno, existe o perigo da essencialização da cultura,
geradora de processos de petrificação das identidades. Acontece que
a cultura popular — contrariamente à visão dos seus objectificadores
— é uma matéria essencialmente plástica. Imobilizada para melhor
produzir identidades demarcadas, ela sempre foi rebelde a processos
de taxonomia. A sua autenticidade — no sentido que os românticos
emprestaram a esta palavra — foi sempre duvidosa. Nela houve sem-
pre misturas: entre o povo e as elites, entre campos e cidades, entre
tradições culturais distintas. Mesmo nos casos em que parece haver
uma imobilidade do popular, ela é largamente ilusória. Nesse senti-
do, não são só as culturas populares pós-modernas que são híbridas,
como defende Garcia Canclini; mesmo as que vêm antes da pós-
-modernidade eram já muito mais misturadas e móveis. De resto,
a objectificação generalizada de que foram alvo faz ela própria parte
desses circuitos de mobilidade. Tendo já investigado bastante esses
processos de objectificação, os antropólogos têm agora diante de si
a tarefa de reconstituir outras modalidades de circulação contem-
porânea das culturas populares: perceber que novas formas culturais
estão a nascer no país pós-rural; entender de que modo as culturas
populares dos imigrantes em Portugal estão a redesenhar o campo
das culturas populares urbanas; investigar os cruzamentos entre for-
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IDENTIDADE NACIONAL, CULTURA POPULAR E REVOLUÇÃO

mas culturais locais e processos culturais globais, ligados ao turismo,


à mercantilização, ao uso de novos suportes mediáticos. Parte disso já
começou a ser feito. Mas outra parte está ainda por fazer.

SUGESTÕES DE LEITURA

Sobre cultura e identidade, leia-se: Manuela Carneiro da Cunha, «Culture» and


Culture, 2009. Sobre cultura popular e identidade nacional, Anthony Smith,
National Identity, 1991. Sobre objectificação da cultura popular, Richard Hand-
ler, Nationalism and the Politics of Culture in Quebec, 1988; Barbara Kirshenblatt-
-Gimblett, Destination Culture, 1998; e Nestor Garcia Canclini, Culturas Híbridas,
1998. Para Portugal, João Leal, Etnografias Portuguesas (1870-1970), 2000; Salwa
Castelo-Branco e Jorge Freitas Branco (org.), Vozes do Povo, 2003; Andrea Klimt
ejoão Leal (org.), «The Politics of Folk Culture in The Lusophone World», em
Etnográfica, 2005; e Jean-Yves Durand, Os «Lenços de Namorados», 2006.

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