Leal, João, Usos Da Cultura Popular
Leal, João, Usos Da Cultura Popular
Leal, João, Usos Da Cultura Popular
UM POVO
Ensaios em História
Contemporânea
de Portugal
Coordenação
José Neves
LISBOA:
TINTA-DA-CHINA
MM X
Museu da 19JUN
Electricidade 19 SET
POVO - PEOPLE
Exposição
Exhibition
ISBN 9 7 8 - 9 8 9 - 6 7 1 - 0 4 0 - 8
Depósito Legal n.° 311975/10
índice
7 Introdução
JoséNeves
REPRESENTAÇÃO, C I D A D A N I A E P O L Í T I C A POPULAR
tante moderno dos selvagens, deixado para trás pela marcha triun-
fante do progresso, preso ao véu espesso da sua ignorância e das suas
superstições. Mais tarde, as ideias que faziam do camponês o repre-
sentante por excelência do povo foram também postas em questão
por sectores da esquerda marxista que, por um lado, viam na classe
operária e no internacionalismo o futuro da humanidade e, por outro,
contrapunham à narrativa romântica da cultura popular o quadro de
miséria e privações prevalecente nos campos. Mas a esquerda mar-
xista — em particular os comunistas — não deixou por essa razão de
incluir alguns dos aspectos centrais do modo etnográfico de constru-
ção da nação nas suas práticas e propostas políticas e culturais.
A par destas controvérsias estratégicas, desenrolaram-se com-
bates mais tácticos sobre os domínios que melhor representavam a
cultura popular: se o imaterial — a literatura e as tradições populares
— se o material — as alfaias agrícolas, a materialidade da vida campo-
nesa. Nascida nos países de língua alemã — onde a escola «Palavras
e Coisas» desempenhou um papel central na descoberta da cultu-
ra material camponesa — esta controvérsia estendeu-se a Portugal,
onde à insistência dos etnógrafos dos anos 1870 na cultura imaterial
sucedeu a opção de Rocha Peixoto, primeiro, e de Jorge Dias, depois,
pela cultura material. O equilíbrio entre recolha e interpretação, de
um lado, e celebração e encenação, do outro, também foi motivo de
discórdia. Para Jorge Dias — como para a maioria dos etnógrafos que
o antecederam — a prioridade estava do lado da recolha e da inter-
pretação, mas, para os etnógrafos do Estado Novo, o importante era
a encenação. Enquanto os segundos fundaram o Museu de Arte Popu-
lar, o primeiro criou o Museu de Etnologia. Os valores fundamentais
da cultura popular eram também objecto de controvérsia: os arqui-
tectos do Inquérito à Arquitectura Popular falavam da sinceridade
do popular, contrapondo-a ao decorativismo da Casa Portuguesa de
Raul Lino. A arte popular de Ernesto de Sousa — também ela à procu-
ra de valores de sinceridade — não era a mesma de Vergüio Correia e
de outros etnógrafos da Primeira República. Mas, no essencial, estas
controvérsias tácticas não escondiam acordos mais fundamentais:
acerca da importância da cultura popular, acerca dos camponeses
como seus melhores guardiões, acerca do seu lugar estratégico como
sítio a partir do qual se podia discursar a nação.
Estes acordos fundamentais definiam tanto um campo de inclu-
sões como de exclusões. Na visão da cultura popular característica
{130} COMO SE FAZ UM POVO
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