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IS SN 2 18 3– 6 973

REVISTA DE CIÊNCIAS DA ARTE N.º4 | SET'17


ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS
IS SN 2 18 3– 6 973

REVISTA DE CIÊNCIAS DA ARTE N.º4 | SET'17


ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS
Convocarte – Revista de Versão digital gratuita
Ciências da Arte convocarte.belasartes.ulisboa.pt
Revista Internacional Digital com Versão impressa
Comissão Científica Editorial e Revisão loja.belasartes.ulisboa.pt
de Pares
Gabinete de Comunicação e Imagem
N.º4, Setembro de 2017 Isabel Nunes e Teresa Sabido
Tema do Dossier Temático (+351) 213 252 108
Arte e Activismo Político: Teorias, [email protected]
Problemáticas e Conceitos
Desenho Gráfico
Ideia e Coordenação Científica Geral João Capitolino
Fernando Rosa Dias
Apoio à edição digital
Coordenação Científica Ricardo Vilhena, Paulo Santos e
do Dossier Temático Tomás Gouveia (FBAUL)
N.º 4 e 5 − Arte e Activismo Político
Cristina Pratas Cruzeiro Créditos capa N.º 4
Bruno Raposo Ferreira
Colaboração Científica do Dossier – Créditos capa dossier temático N.º 4
Homenagem a Rocha de Sousa Miguel Januário
Ana de Sousa
Produção Gráfica
Periodicidade inPrintout – Fluxo de Produçao Gráfica
Semestral
Tiragem
Edição 150 exemplares
FBAUL – CIEBA
(Secção Francisco d´Holanda e Área de Propriedade e Serviços
Ciências da Arte e do Património) Faculdade de Belas Artes da
Universidade de Lisboa (FBAUL)
Depósito Legal Centro de Investigação e Estudos em
418146/16 Belas Artes (CIEBA), secção Francisco
d’Holanda (FH), Área de Ciências da Arte
ISSN e do Património (gabinete 4.23)
2183–6973 Largo da Academia Nacional de Belas
Artes, 1249-058 Lisboa
e-ISSN (Em linha) (+351) 213 252 100
2183–6981 belasartes.ulisboa.pt

Plataforma digital de edição e contactos


convocarte.belasartes.ulisboa.pt
[email protected]
Conselho Científico Editorial e Pares Membros Honorários do Conselho
Académicos − N. º4 Científico Editorial (Honorary Advisory
Member of the Editorial Scientific Board)
Interno à FBAUL Michel Guérin – Professeur Émérite UAM
Cristina Azevedo Tavares — FBAUL/CFCUL James Elkins – SAIC
Cristina Pratas Cruzeiro – FBAUL/FCSH-NOVA
Eduardo Duarte — FBAUL/CIEBA-FH Abreviaturas
Fernando António Baptista Pereira – ABCA - Associação Brasileira de Críticos
FBAUL/CIEBA-FH de Arte
Fernando Rosa Dias — FBAUL/CIEBA-FH CECC/UCP – Centro de Estudos em
Margarida Calado — FBAUL/CIEBA-FH Comunicação e Cultura da Universidade
Católica Portuguesa
Externo à FBAUL CFCUL – Centro de Filosofia das Ciências
Angela Ancora da Luz – UFRJ da Universidade de Lisboa
António Quadros Ferreira – Professor CIEBA – Centro de Investigação e
Emérito da FBAUP Estudos em Belas Artes
Delinda Collier – SAIC ESAD.CR – Escola Superior de Arte e
Isabel Nogueira – UC Design das Caldas da Rainha
Joana Cunha Leal — FCSH-NOVA FBA-UGR – Faculdad de Bellas Artes,
José Francisco Alves – Membro de Universidad de Granada
ICOM e AICA FBAUL – Faculdade de Belas Artes da
Juan Carlos Ramos Guadix — FBA-UGR Universidade de Lisboa
Mário Caeiro – ESAD.CR/LIDA e CECC/UCP FCSH-NOVA – Faculdade de Ciências
Mark Harvey – UA (NZ) Sociais e Humanas da Universidade
Pascal Krajewski – CIEBA Nova de Lisboa
Raquel Henriques da Silva — FCSH-UNL FH – Secção Francisco d’Holanda do
Rita Macedo — FCT-UNL CIEBA
Sylvie Coellier – UAM ICOM – Conselho Internacional de
Museus (Brasil)
SAIC - School of the Art Institute of
Chicago
UFRJ – Professora da Universidade
Federal do Rio de Janeiro
UA (NZ) – University of Auckland (New
Zealand)
UAM - Université d'Aix-Marseille
Índice

CONVOCARTE N.º 4 — 076 — 157


Quelle efficacité pour Sortilégios artivistas. Por
— 010 l’activisme politique en art ? uma extradisciplinariedade
EDITORIAL — Sylvie Coellier monumentalmente afectiva
— Mário Caeiro
— 089
Arte e Política, “Arte — 179
— 020 Política”: Pleonasmo ou a arte Podemos levar a sério o
DOSSIER TEMÁTICO | ARTE como discurso, participação e Ecossexo? Arte e Activismo no
E ACTIVISMO POLÍTICO: resistência Século XXI
TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E — Carlos Vidal — Bruno Marques
CONCEITOS
— 107 — 191
— 022 Rumo a um novo activismo Feminismo Materialista: da
Introdução político e artístico Teoria da Arte encarnada
— Cristina Pratas Cruzeiro — Jean-Marc Lachaud e do feminino enquanto
local de resistência e radical
— 026 — 117 enunciação
Gregory Sholette – Answers Engajamento e Artivismo — Joana Tomé
for Convocarte: Art and — Dominique Berthet
Political Activism — 201
— 125 Da Arte como intervenção à
— 031 Between Creativity and Educação Artística no sentido
L’agonisme des avant-gardes Criminality: On the liminal de uma consciência social
historiques zones of art and political crítica
— Michel Guérin action — Ana Sousa
— Pascal Gielen
— 048 — 226
Déficit de croyance et déni — 139 A política social das
de représentation ? Le In Media Res: Tragic Crisis exposições de arte
moment moderne de l´art and the Artivism in the New contemporânea no espaço
révolutionnaire New Social Movements in Museu e a mostra Toda a
— Dirk Dehouck Portugal memória do Mundo, Parte I,
— Cláudia Madeira de Daniel Blaufuks
— 061 — Juan Gonçalves
Le retour de l'artiste (dé)masqué
— Bruno Goosse
— 238 — 383
HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA Rocha de Sousa, O bater das
asas de papel (ou: O escritor -
— 240 Memória e ficção)
Rocha de Sousa em Entrevista — Isabel Sabino

— 273
Rocha De Sousa, Anotações
sobre os Pressentimentos de — 398
Sísifo CONSELHO CIENTÍFICO EDITORIAL
— Hugo Ferrão E PARES ACADÉMICOS

— 286
Rocha de Sousa – um
testemunho — 402
— Margarida Calado PROCEDIMENTOS E ORIENTAÇÕES
DE PUBLICAÇÃO
— 288
Sobre Rocha de Sousa
Historiador e Ensaísta:
algumas leituras e cogitações
— Cristina Azevedo Tavares

— 295
Rocha de Sousa: de Artista
a Professor, Pedagogo e
Didacta
— Ana Sousa

— 308
O Crítico de Arte entre
«Coincidências Voluntárias»
— Fernando Rosa Dias

— 337
A Hora Zero
— Maria João Gamito
Editorial
«Dimidium facti qui coepit habet: sapere aude»
[«Aquele que começou já fez metade: ouse saber!»]
(Horácio, Epistularum liber primus, século I a.C)

«Que é esclarecimento [Aufklärung]? Esclarecimento é a saída do


homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado.
(…) Sapere aude! Tem coragem de fazer uso do teu próprio
entendimento, tal é o lema do esclarecimento»
(Immanuel Kant, Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung?, 1784)

A
pós cem anos da Revolução de Outubro e do seu impacto na história
mundial, política e cultural, do século XX, e com a experiência de uma
travessia de utopias e desastres, mergulhamos numa actualidade algo
suspensa e desconfiada de si que nos revela desafiante para pensar e discutir
Arte e Activismo Político, tema do dossier principal, com coordenação especial
da Professora e Investigadora Cristina Pratas Cruzeiro. Com essa distância se-
CONVOCARTE N.º 4 — EDITORIAL

cular podemos problematizar a relação entre as utopias e as revoluções sociais


e os processos artísticos, entre as vanguardas políticas e culturais. Não se trata
de comemorar nem recuperar. Interessa-nos a distância crítica que a história
agiliza. Mas também o seu reflexo com a actualidade, a crise dos fundamentos
das democracias ocidentais e a crise da relativamente recente tradição euro-
peia do estado social. Com a distância desses cem anos assistimos ao ocaso
de uma política nacionalista que marcou os tradicionais Estados Modernos, à
crise da sua autoridade e das ideologias que os guiavam na acção do discurso
e da decisão, deparando com um tempo global e neo liberal, onde a alta eco-
nomia financeira se infiltrou nos mecanismos de decisão e poder.

O lugar de uma revista académica não pode ser apenas o de produção científica
nas suas áreas, como quem cumpre um papel burocrático. A tradição da impren-
sa, seja dos jornais ou das revistas literárias, sempre foi de um activismo cívico,
decisivo na construção e dinâmica do espaço público na Era Contemporânea.
A nossa construção editorial sempre partiu desta premissa de preocupação
com o lugar social a partir do espaço universitário. Também observamos que
a Universidade está a sofrer transformações tão lentas, ao olhar do quotidiano,
que torna o processo pouco visível, como galopantes, ao ritmo dos processos
históricos, que também demoram a ser devidamente aferidos. Neste proces-
so assistimos ao extravio de um espírito crítico, sem reacção nem discussão
evidente. É com estas preocupações que assumimos a necessidade do tema
do dossier temático. Propomos, a partir de uma edição universitária no campo
das ciências das artes, pensar o lugar das artes e humanidades na ousadia da
execução de um editorial activista.

10
Deixamos para ulterior editorial a discussão sobre as recentes transformações
da Universidade, para lançarmos por agora algumas reflexões sobre a própria
cultura do pensamento e da verdade na actualidade. Pensar a Universidade
é pensar num dos lugares determinantes da produção intelectual no mundo
actual. E o que se passa com essa produção de pensamento? Outra pergunta
que lançamos, para entender a política actual, expandida nas redes globais
da comunicação de massas e da internet, é a seguinte: quais os condiciona-
mentos ou os novos mecanismo de controlo num tempo de crise da autorida-
de que tinham marcado os Estados Modernos? Autores como Louis Althusser
(1918-1990) ou Michel Foucault (1926-1984), ao estudarem estruturas de con-
trolo e exclusão (prisões, escolas, hospícios, etc.), lançarem luzes sobre alguns
mecanismos, mas os fundamentos eram outros, ainda marcados pela noção
modernista de Estado.

Numa das obras de referência do pensamento crítico do século XX, A Dialéctica


do Iluminismo1 de Theodor Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-
1973), que teorizava sobre uma «nova forma de barbárie» resultante da ca-
pacidade de «autodestruição incessante da Razão»2, diagnosticava-se o do-
mínio do homem sobre a natureza, sendo a razão o instrumento triunfal em

FERNANDO ROSA DIAS


dominar uma natureza desmistificada3. Não se tratava da felicidade, mas de
«dominar o mais amplamente possível a natureza»4, e com isso, também, do
homem enquanto natureza. O poder do saber servia a economia, a guerra
e a fábrica, tornando-se trabalho capital e não felicidade: «Poder e conheci-
mento são sinónimos»5.

A razão libertava a relação do Homem com a natureza da magia e da «multipli-


cidade ambígua dos demónios míticos»6, característica do ritual e do mito, e
do seu esforço de diálogo com forças ocultas e indómitas da naturezas. Com
a ciência, o mito passava a ser considerado antropomorfismo, uma projecção
da subjectividade sobre a natureza. Se a natureza é o caos, a sua síntese ra-
cional é a saúde. A razão passou a dominar no interior das suas equações e
explicações, excluindo o que não é por ela manipulável. A razão reconhece
apenas o que se reduz à unidade, ao sistema ou teorema a partir do qual tudo
é deduzido: «Para a Razão o que não é divisível por um nome, e finalmente
por um, não é mais que ilusão; (…) a divisa: Unidade. O que se continua a
exigir é a destruição dos deuses e das qualidades»7.

Para estes autores a «razão é totalitária»8, ela compara o que é heterogéneo


para o reduzir a quantidades abstractas, estabelecendo relações com essa
«confiança nos sistemas abstractos» característicos da modernidade, sublinha-
da por Anthony Giddens9. Abolindo os deuses, o espírito humano passou a
enfrentar a natureza com complexo de superioridade da razão (paradigma do
idealismo), rompendo com o seu mistério e ameaça, tornando-a desencantada

11
e sem poder – e apontamos esta passagem de uma Natureza Espiritual (mítica)
para uma Natureza-Morta10 (instrumentalizada) como a grande base ideológica
dos actuais problemas ecológicos. Negando o mito religioso, fazia-se da tec-
nologia um mito: este domínio tecnológico, não humanizado apresentava-se
como um «espírito sem finalidade» que esquecia a finalidade humana – era
um triunfo infeliz: «O mito torna-se Razão e a natureza pura objectividade. Os
homens pagam o aumento do seu poder tornando-se estranhos àquilo sobre
o qual o exercem. A Razão comporta-se perante as coisas como um ditador
perante os homens: ele conhece-os na medida em que os pode manipular.
O homem da ciência conhece as coisas na medida em que as sabe fazer. Ele
utiliza assim o seu em-si para si próprio. Nesta metamorfose, a natureza das
coisas revela-se sempre a mesma: o substrato da dominação. É esta identi-
dade que constitui a unidade da natureza»11. A ciência e o iluminismo actuam
numa dimensão quantitativa que domina sobre a qualitativa das coisas, cujos
paradigmas são: técnica, operação, eficácia, economia… As múltiplas afinida-
des entre as coisas da realidade são suprimidas por uma redução à simples
relação entre o sujeito doador de sentido e o objecto desprovido de senti-
do, entre a significação racional e o portador acidental de uma significação.
CONVOCARTE N.º 4 — EDITORIAL

Opomos a esta tese de Adorno e Horkheimer o contrapeso que alimenta


estes pensadores: as origens da razão instrumental são também as do pensa-
mento crítico, permitindo pensadores tão díspares e necessários como Kant,
um determinado Hegel, Marx, Nietzsche, os próprios Adorno e Horkheimer,
Althusser, Foucault, Baudrillard, etc. Preferimos a possibilidade (e dever) desta
dialéctica do iluminismo. O problema é quando esse pensamento crítico é o
derrotado ou esquecido da história – e achamos que a escrita de A Dialéctica
do Iluminismo, realizada em pleno exílio durante a segunda Guerra Mundial
por dois autores alemães de origens judaicas, com pensamentos neo-hege-
lianos e neo-marxistas, foi feita por homens que viviam a clara sensação de
serem os derrotados de um momento histórico da dialéctica do iluminismo.
Eis o problema dos tempos contemporâneos. Uma análoga sensação de uma
derrota histórica do pensamento crítico12 saída dos destroços da orgia de
ocasos13 da situação pós-moderna da década de 1980 e do domínio viral do
neoliberalismo no seio das tradicionais elites de poder.

Uma das questões a colocar sobre a cultura actual é como se anda a conce-
ber o saber e se produz a verdade? Assistimos a um domínio cada vez maior
do elemento quantificador, de uma acumulação e organização de dados
(data) que define o real das instituições, com implicações sociais e políticas,
em que os processos quantitativos avaliam e decidem sobre os qualitativos.
O coreano Byung-Chul Han, pensando a cultura contemporânea e a parti-
cular sobrevivência de um pensamento crítico, separa e opõe as noções de
verdade e transparência: «A transparência e a verdade não são idênticas. A

12
segunda é uma negatividade, uma vez que se põe e impõe declarando falso
todo o outro. Mais informação ou uma acumulação de informação não é por
si só qualquer verdade. Falta-lhe a direção – ou seja, o sentido. É precisamente
à falta de negatividade do verdadeiro que se desemboca na pululação e na
massificação do positivo»14. E em continuidade, acrescenta: «As coisas tornam-
-se transparentes quando abandonam toda a negatividade, quando se alisam
e aplanam, quando se inserem sem resistência na corrente lisa do capital, da
comunicação e da informação. As ações tornam-se transparentes quando se
tornam operacionais, submetendo-se aos processos do cálculo, da direção
e do controlo»15. É a partir deste ponto que se sublinha o lugar das ciências
humanísticas, estas não se determinam por suspensões em paradigmas esta-
bilizados de objectividade: o seu rigor faz-se através de uma reflexão e ques-
tionamento que dúvida da transparência.

O filósofo coreano aproxima-se de certas posições de Jean Baudrillard, nas


quais a transparência é acumuladora enquanto o verdadeiro sentido tende
à opacidade. Na sua crítica à cultura contemporânea, Baudrillard considera
que «estamos num universo em que existe cada vez mais informação e cada
vez menos sentido»16. Para este autor estamos para além da representação

FERNANDO ROSA DIAS


na proliferação de signos. Já não há ilusão para desmascarar, mas apenas re-
corrências e permutas dos signos. A luta actual já não é contra a alienação, as
trevas ou as sombras, mas «contra a transparência»17. Vivemos num excesso
de real assente numa positividade do real. Este excesso é o «curto-circuito da
realidade» e a «sua reduplicação pelos signos» que destitui toda a negativi-
dade e opacidade18. Podemos pensar numa neo-censura, já não assente na
recusa do signo, mas no seu contrário, na sua proliferação. Uma neo-censu-
ra que não anula a voz crítica, mas antes, que a integra e até anima na órbita
dessa saturação de signos, disseminando a sua voz crítica entre outras, con-
vulsas numa sucessão vertiginosa, sem suspensão de ponderação nem de
ancoragem com a realidade, portanto, sem se confrontar com a sua opacida-
de. Este novo palco da Era do Simulacro, que adita e acumula disseminando
qualquer oposição e alteridade, dificilmente sustenta um lugar activista para
o pensamento crítico.

Byung-Chul Han observa, nesse excesso de informação, a ameaça da desne-


cessidade de uma posição e produção de sentido tal como o fim da teoria –
retomando texto de Chris Anderson, «The End of Theory»19, segundo o qual
o big data tornava os modelos teóricos completamente supérfluos, criando
uma ilusão de inutilidade do porquê pela transparência do é assim20. Mas o
filósofo alerta: «É um erro supor que a massa positiva de dados e de infor-
mação, que hoje cresce até ao monstruoso, torna a teoria supérflua – (…). A
teoria da negatividade é estabelecida antes dos dados e informações posi-
tivos, e também antes dos modelos. A ciência positiva, baseada nos dados,

13
não é a causa, mas a consequência de um fim da teoria, no sentido autêntico,
que se aproxima»21. O autor coreano faz uma crítica à «razão higiénica» dos
dados: «As coisas tornam-se transparentes quando se inserem em fluxos po-
lidos de informações e de dados. Os dados têm qualquer coisa de pornográ-
fico e de obsceno. Não têm intimidade, nem reverso, nem fundo duplo. Nisso
distinguem-se da linguagem, que não permite uma nitidez total. Os dados e
as informações entregam-se a uma visibilidade total e tornam tudo visível».
A acção torna-se transacção, um «processo manipulado através de dados»22,
um processo polido e sem atrito que acelera os circuitos de aceleração de
comunicação e de capital. A verdade, contudo, não é um amontoado nem se
decide na frequência. Por isso, «um amontoado de dados» «pode fornecer
informações úteis, mas não gera nem conhecimento nem verdade»23. Uma
teoria completamente substituída por dados implica um certo fim da verda-
de, da narrativa, do espírito: «Os dados são simplesmente aditivos. A adição
opõem-se à narração. A verdade tem uma verticalidade intrínseca. Os dados
e as informações, em contrapartida, habitam o horizontal»24.

O trabalho de reflexão (como o de produção artística) é lento por excelência,


CONVOCARTE N.º 4 — EDITORIAL

obriga a um retraimento da poluição dromológica25, para se confrontar com a


negatividade da opacidade do mundo: «O espírito é lento porque se demo-
ra no negativo e o trabalha para si. O sistema de transparência suprime toda
a negatividade em busca da aceleração. A demora no negativo abandona a
corrida louca através do positivo»26.

Byung-Chul Han usa a Skholé (ócio) grega para se referir a uma preguiça, não
no sentido que uma ideologia económico-política tem alimentado nos últimos
tempos, como tempo livre e inútil, mas como liberdade perante necessida-
des, como uma desocupação da existência (do trabalho e do estar ocupado),
permitindo um exercício livre de crítica, reflexão ou criação27. A theoria nascia
dessa contemplação como amor da verdade, em imediatas analogias com o
desinteresse do gosto na estética kantiana.

Tal vai ao encontro de uma das nossas premissas: de que a política actual
age na transparência e na velocidade. Hoje a ditadura é a dos tempos (de
cronos), e já não a dos espaços (dos territórios), mas não propriamente por-
que nos retira o tempo, mas porque o enche e o satura. A pressão exerce-se
sobre os tempos de espera, de contemplação ou de reflexão, com coerções
sobre a temporalidade necessária ao exercício da reflexão crítica. Se Adorno
e Horkheimer consideraram na referida A DIaléctica do Iluminismo que foram
três as invenções que implicaram grandes mudanças em grandes campos: im-
prensa (na ciência); canhão (na guerra); bússola (nas finanças, comércio e na-
vegação) – poderíamos acrescentar o relógio, sincronizando essas várias áreas,
como o instrumento de autonomia e domínio do humano sobre os ciclos da

14
natureza. O mundo actual é o seu paroxismo. Já não se trata de instrumentali-
zação da natureza, mas da sua superação. O económico, o político e o militar
demitem-se do território, absorvido como data transparente, para lucrarem
nos registos da velocidade. O stress do tempo dromológico, sob coacção da
simultânea necessidade da eficácia e do lucro, é hoje a grande limitação da
liberdade de pensar, da theoria sustentada na Skholé.

Se Adorno e Horkheimer falavam da ciência como razão instrumental, definin-


do o que é real, outro actua nas últimas décadas, que é o fundamento do que
se costuma apelidar de neoliberalismo: vamos chamar-lhe razão económica.
Atendemos a Alan Badiou quando nos pergunta: «Ou commence la pensée?»
e como se «ajuste la pensée à une réel véritable, une réel authentique, une
réel réel ?»28. Para o filósofo francês, a tensão é entre «(…) une hipothèse sur
le réel, mais non une présentation du réel lui-même». Esta é a sua crítica à fi-
losofia demasiado racional, tentada pelo idealismo, que «manquerait de réel,
parce que dans sa façon même de commencer, elle l’aurait raturé, oblitéré,
dissimulé, sous des abstractions trop faciles»29.

Na actualidade é dominante o espaço que ocupa a economia em toda a dis-

FERNANDO ROSA DIAS


cussão sobre o real: «On dirait que c’est à l’économie qu’est confié le savoir
du réel. C’est ele qui sait». O mesmo Badiou ironiza sobre o facto de ser a eco-
nomia financeira que domina e vaticina o nosso real, enquanto nunca acerta
sobre o que acontece na sua própria área: «Elle [economia] ne sait même pas
prévoir d’imminents désastres dans sa propre sphère. Mais ça n’a quasiment
rien change. C’est encore et toujours elle qui sait le réel et nous l’impose»30.
Diríamos que é na ameaça da catástrofe, que ela diz possuir os instrumen-
tos de ultrapassagem ou alívio, que a economia, como novo apocalipse que
ocupa o lugar das utopias modernas, e colocando-se para além delas31, me-
lhor exerce a sua função. O nosso real, no qual se move a nossa política actual,
é um real intimidado por este poder instrumental, abstracto, que define os
nossos objectivos e papéis sociais. Crise não só do real, mas do seu projec-
to. Um real sem inscrição, sem desígnio que não seja o da própria economia.

Ao contrário da consistência das clássicas ideologias da modernidade, é difícil


determinar este fundo que tem dominado globalmente, e que se tem apeli-
dado de neoliberalismo, dominado as razões do real, dos seus poderes, de-
cisões e desígnios, enquanto finge que não existe, o que faz dele uma ideolo-
gia típica da Era do Simulacro. No fundo, o neoliberalismo não é mais do que
uma mera teoria económica, relativo à famosa Escola de Chicago e que tem
em Milton Friedman (1912-2006) o seu grande ideólogo, que nem nos parece
complicada32, sendo apenas complexa nos seus mecanismos, mas cujos efeitos
e alcances se tornaram globais e perniciosos. Sem ideologia clara, aproveita-
-se da crise das ideologias como que manipulando as suas ruínas. Silenciosa

15
e indolor, invadiu lentamente os processos históricos da política tradicional
moderna. Ela não é afirmativa como o foram os pesados estados modernos,
mas viral, agindo na plasticidade da sua falta de solidez ideológica, sendo es-
pantoso o sucesso do neoliberalismo nos mais diferentes regimes: depois da
experiência na ditadura do Chile, das suas várias experiências sul-americanas
(sendo grande caso de estudo a Argentina33), e o seu sucesso no capitalismo
avançado americano, nos últimos tempos ela invadiu tanto as democracias de
Estado Social da Europa, como a China dita comunista. Como um vírus cama-
leónico, parece mover-se bem nos tempos actuais, diríamos em tempos de
simulacros, de ontologias fracas34 e de sujeitos flutuantes35.

Talvez por isso, e perante as dificuldades de respostas do pensamento crítico,


seja a arte quem melhor possa lidar com esta ideologia da era do simulacro:
as respostas do artivismo nas últimas décadas assim o fazem supor, reinven-
tando o dever e as possibilidades políticas da arte, recuperando teorias esté-
ticas de uma possibilidade política da arte ou uma politização da estética no
século XX, a actuar exactamente a partir do seio da sua ludicidade e imagi-
nário, tais como as que encontramos em Adorno, Marcuse, Walter Benjamin,
CONVOCARTE N.º 4 — EDITORIAL

Guy Debord, etc.

Se defendemos atrás que a pergunta e procura pela verdade, sendo mais um es-
forço de aproximação e confronto com a sua opacidade do que a estabilização
histórica num paradigma de objectividade e transparência, é um acto político,
então a Universidade tem responsabilidades nas suas estratégias e definições.
Deixaremos em suspenso, para ulterior editorial, a reflexão sobre a Universidade,
a quem está ser retirado a autonomia do tempo de pensar, enquanto se exige
que ela se coloque aos serviços de mecanismos da economia financeira. A au-
tonomia económica obriga a universidade a pensar como empresa, portanto,
a ser também uma. A tecnocracia que a invade retira-a dos seus modos e tem-
pos próprios, sobretudo nas artes e humanísticas, onde se requere um fundo
de inutilidade (já o dizia Kant relativamente à arte) para ser devidamente útil.
Quando as artes e humanidades começam a ser obviamente úteis, podemos
desconfiar de estarem a ser instrumentalizadas e de serem instrumentalizado-
ras. A verdade deve ser criticada. Talvez essa seja uma das grandes revoluções
da filosofia de Karl Marx e uma das actualidades maiores do poder crítico do
seu pensamento: que a verdade não é um absoluto, mas um resultado históri-
co-social que a torna a voz dos vitoriosos da história. Foi com a herança de tal
consciência que Walter Benjamin se preocupou com esse passado transmitido
e caucionado como um poder sobre a memória como um espólio histórico. Mas
para Walter Benjamin se a História é «poder do mundo» e as marcas da História
são «paixão do mundo», então a História é ainda dolorosa e inacabada, como
«ruínas». Daí que nada deva estar perdido para a história e, debaixo dessas ruí-
nas da história, existem murmúrios que ecoam esperanças para o futuro. Isso

16
permite que a história possa ser constantemente refeita, permitindo a esperan-
ça de que no interior da história se possa suster a possibilidade de um acto de
redenção e de re-escrita. Para o autor «existe um entendimento tácito entre as
gerações passadas e a nossa»36. Talvez nos baste isso: saber escutar os murmú-
rios que ecoam das ruínas do pensamento crítico, reinventando-o.

Depois de termos dedicado no número dois de Convocarte uma pasta espe-


cial a Rui Mário Gonçalves, congratulamo-nos também muito com a pasta que
neste número dedicamos a Rocha de Sousa, resultante dos trabalhos dos 3ºs
Encontros com Críticos de Arte, e da sessão especial que lhe foi dedicada a 26
de Maio de 2017, com a alegria da sua presença a acompanhar por dentro os
trabalhos. Procurámos deixar um panorama tão alargado como esclarecido da
sua atividade múltipla ligada às artes, de Professor na Instituição que repre-
sentamos, com uma importância histórica na teoria e prática da didáctica das
artes visuais em Portugal nas últimas quase cinco décadas, de artista plástico
com presença actuante na nova-figuração portuguesa, de crítico de arte, com
actividade regular desde a década de 1960, de escritor, onde ficção e real se
misturam transmutados em objecto literário, ou a menos conhecida faceta de
cineasta e vídeo-artista, numa esquecida vertente experimental, além da didác-

FERNANDO ROSA DIAS


tica. Agradecemos a todos os Professores e colegas que participaram nesta ho-
menagem, em especial à Ana Sousa na ajuda da construção desta pasta, além
da elaboração da entrevista inicial que partiu dos seus trabalhos de investigação.
Sempre múltiplo, Rocha de Sousa foi sujeito de uma dimensão cívica, que não
evitou querelas, que sempre passou não por pertencer a estruturas de repre-
sentação de poder político, mas pela afirmação de uma posição, que é o da
liberdade de criar e pensar. Por isso, o acerto desta pasta que lhe dedicamos
com o tema do dossier temático, não fica, de todo, nada furtuito.

«(…) crente assim (…) na utilidade do inútil desses lugares abertos, simulta-
neamente puros e perversos, que são as obras de arte, sob qualquer pre-
texto de representação, pesquisa, ou trabalho de memórias ficcionáveis»
(Rocha de Sousa, Coincidências Voluntárias, p.34)

Fernando Rosa Dias


Ideia e Coordenação Científica Geral de Convocarte

17
Notas
1
Theodor W. Adorno, M. Horkheimer, 13
Cf. Fernando Rosa Dias, «Vanguarda e
La Dialectique de la raison – Fragments Pós-Modernidade: Do Tempo de Ruptura
philosophiques, Paris: Éditions Gallimard, à ruptura dos Tempos», in Revisitação da
1974. Retomamos algumas ideias Querela Modernidade/Pós-Modernidade
apresentadas in: Fernando Rosa Dias, (coordenação: Fernando Rosa Dias, José
«Vanguarda e Pós-Modernidade: Do Quaresma), Lisboa: Editora Ur, 2011,
Tempo de Ruptura à ruptura dos Tempos», pp.220-221.
in Revisitação da Querela Modernidade/ 14
Byung-Chul Hun, A Sociedade
Pós-Modernidade (coordenação: Fernando
Transparente, Lisboa: Relógio D’Água
Rosa Dias, José Quaresma), Lisboa: Editora
Editores, 2014, pp.19-21.
Ur, 2011, pp.162-252.
15
Ibidem, p.11.
2
Theodor W. Adorno, M. Horkheimer, Op.
Cit., p.14. 16
Jean Baudrillard, Simulacros e Simulação,
Lisboa: Relógio d’Água, 1991, p.103.
3
Ibidem, p.22.
17
Idem, O Crime Perfeito, Lisboa: Relógio
4
Ibidem, p.15.
d’Água Editores, 1996, p.95.
5
Sobre as relações entre saber e poder, 18
Idem, Simulacros e Simulação, Lisboa:
ver: Peter Slaterdijk, Crítica da Razão Cínica,
Relógio d’Água, 1991, p.39.
Lisboa: Relógio d'Água, 2011.
19
Chris Anderson, «The End of Theory:
6
Ibidem, p.24
CONVOCARTE N.º 4 — EDITORIAL

the data deluge makes the scientific


7
Ibidem, p.25 [tradução nossa da versão method obsolete», in Wired, 16 Junlho
francesa]. 2012, in: https://www.wired.com/2008/06/
pb-theory/.
8
Ibidem, p.24.
20
Cf. Byung-Chul Hun, No Enxame.
9
Anthony Giddens, As Consequências da
Reflexões sobre o Digital, Lisboa: Relógio
Modernidade, Oeiras: Celta Editora, 1992,
D’Água Editores, 2016, p.90
pp.58-61.
21
Byung-Chul Hun, A Sociedade
10
«La raison qui supplante la mimésis n’est
Transparente, Lisboa: Relógio D’Água
pas simplement sa contrepartie. Elle est
Editores, 2014, p.17.
elle-même mimesis : mimesis de la mort.
L’esprit subjectif qui fait perdre son âme 22
Byung-Chul Hun, A Salvação do Belo,
à la nature ne domine cette nature privée Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2016,
d’âme qu’en imitant sa rigidité, lui aussi pp.20-21.
devenu âme qui perde son âme». Theodor 23
Ibidem, p.70.
W. Adorno, M. Horkheimer, Op.cit., pp.71-
72. Para síntese e problematização da 24
Ibidem.
«mimesis da morte», cf. Albrecht Wellmer,
Sobre la dialéctica de modernidad y
25
Pensamos na famosa noção de
postmodernidad. La crítica de la razón «dromologia» de Paul Virilio, questão que já
después de Adorno, Madrid: Visor, nos interessou. Cf. Fernando Rosa Dias,« A
1993pp.139-148. “dromologia” de Paul Virilio e a arquitectura
contemporânea: reflexões sobre a crise da
11
Theodor W. Adorno, M. Horkheimer, “polis” e da “domus”», in Arte Teoria, Lisboa:
Op.cit., p.27 [tradução noss do francêsa]. Faculdade de Belas-Artes da Universidade
de Lisboa, nº7, 2005, pp.234-248.
12
Jacques Rancière, «As Desventuras do
Pensamento crítico», in O Espectador 26
Byung-Chul Hun, A Sociedade
Emancipado, Lisboa: Orfeu Negro, 2010, Transparente, Lisboa: Relógio D’Água
pp.37-73 Editores, 2014, p.16.
27
Idem, O Aroma do Tempo. Um Ensaio

18
Filosófico sobre a Arte da Demora, Lisboa:
Relógio d’Água Editores, 2016, pp.104-105.
28
Alan Badiou, A la recherche du réel perdu,
Paris: Éditeur Fayar, 2015, p.8.
29
Ibidem, p.9
30
Ibidem, p.10.
31
Cf. Jean Baudrillard, A Ilusão do fim ou a
greve dos acontecimentos, Lisboa: Terramar,
1995.
32
A própria obra de referência do
pensamento de Milton Friedman, muito lida
e pouco discutida, é de tom coloquial. Cf.
Milton Fridman, Capitalism and Freedom ,
The University of Chicago, 1962, 1982, in:
http://circuloliberal.org/livros/capitalismo-e-
liberdade.pdf
33
Sobre o caso da Argentina, apreciamos
o trabalho de documentário crítico de
Fernando Pino Solanas: Memória del
Saqueo (Memória do Saque) (Argentina,

FERNANDO ROSA DIAS


2004) e La Dignidad de los Nadies (A
Dignidades dos Ninguéns) (Argentina,
2005). Sobre o neoliberalismo, destacamos
o documentário de Richard Brouillette:
L’Encerclement – La Demarche dans les Rets
du Neoliberalism (O Cerco – a Democracia
nas Malhas do Neo-liberalismo) (Canadá,
2008).
34
Pensamos no pensamento fraco (pensiero
Debole), noção que ficou ligada ao filósofo
italiano Gianni Vattimo, com particular
sucesso no pós-modernismo da década de
1980. Cf. Gianni Vattimo,Pier Aldo Rovatti, Il
pensiero debole, Milano: Feltrinelli, 1983.
35
Cf. Gilles Lipovetsky, A Era do
Vazio. Ensaio sobre o individualismo
contemporâneo, Lisboa: Relógio d’Água
Editores, 1989.
36
Walter Benjamin, «Teses sobre a Filosofia
da História», in Sobre Arte, Técnica,
Linguagem e Política, Lisboa: Relógio
d’Água, 1992.

19
Arte e Activismo Político: Teorias, Problemáticas
e Conceitos
S
e a arte sempre teve uma relação com a política, nem que seja enquanto voz
dos poderes, o pensamento crítico que emergiu com a Era Contemporânea,
enquanto marca antitética do próprio Iluminismo, anunciou uma tensão
interna na relação entre cultura e poderes. Coincidente com a autonomização
da esfera artística e animada por um processo público e de democratização da
cultura, esta tensão começaria a verificar-se sobretudo a partir do século XVIII.
A meio do século seguinte, já no seio das contradições da cidade industrial e
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS | INTRODUÇÃO

burguesa, Marx denunciava que a cultura (e a arte) se tendia a estabilizar na his-


tória como espólio e voz da classe dominante. A arte perdia inocência e entre a
liberdade do individualismo romântico e o compromisso social dos realismos,
assumiu desde logo responsabilidades críticas, como Daumier, Courbet ou a
importância da caricatura no século XIX, entre outros exemplos, demonstram.

Um conjunto de tensões estavam lançadas para a cultura: entre vanguardas ar-


tísticas e vanguardas políticas; entre autonomia da esfera artística e o seu con-
texto político e social; entre produção e recepção; entre liberdade e compro-
misso; entre dimensão crítica e/ou utópica; etc.

Na actualidade, pensar a relação entre a arte e a intervenção política assume uma


nova pertinência, comprovada desde logo pelo franco crescimento de práticas
artísticas que se fundem nessa relação. O domínio globalizante do neoliberalis-
mo, com um poder tão vigoroso quanto nebuloso, dissimulado da visibilidade e
discussão pública, inseriu-se na cena política, subvertendo-a e dominando-a. E
inseriu-se de igual modo na cena artística. Sendo este um tema lato, com várias
possibilidades de reflexão, assumimos o desafio de nos concentrarmos numa
produção artística que assume a sua acção no espaço social, onde o estético se
ultrapassa por uma urgência de proeminência ética.

Trata-se essencialmente de recuperar a marca da arte que age criticamente no


seio da sociedade para lhe transformar a consciência política e que, na tradição
de autores como Hegel, Marx, Adorno, Marcuse, Althusser, Foucault, Deleuze ou
Baudrillard, entre outros, deve ser pensada para além da estrita ligação à propa-
ganda ou alienação, ou ainda à cristalização dos ismos artísticos ou políticos. O
activismo que aqui se evoca, supõe uma intervenção de dimensão pública de
confrontação política (que assumimos aqui numa acepção alargada, derivada
da etimologia fundadora de polis como lugar da cidadania e da comunidade).

O tema do dossier dos números 4 e 5 da revista Convocarte – Arte e Activismo


Político – centra a reflexão no lugar de uma arte que age criticamente na esfera
da política. Isso implica articular dimensões como o espaço público, a sua ordem
social, o jogo de poderes, o lugar da arte no seu seio, as estruturas e dinâmicas

22
de produção e recepção artísticas, com os seus regimes de crítica ou submis-
são/alienação, o modo e lugar das próprias obras e a eficácia da sua acção, etc.
Implica ainda reflectir acreca da ideia de que os artistas e restantes trabalhado-
res da cultura desempenham um papel imprescindível na sociedade, porque
as artes são também um terreno de luta, de luta pela hegemonia cultural mas
também de luta ideológica e política. Em suma, importa reflectir acerca do papel
dos artistas enquanto activistas políticos e simultaneamente acerca do seu tra-
balho artístico activista.

Os textos aqui inclusos centram-se na consideração desta situação, através


de dimensões variadas e abordagens distintas, contribuindo de forma ine-
quívoca para a compreensão de um tema que tem tanto de actual como de
complexo e abrangente.

A abrir o dossier temático nos dois números da revista, apresentam-se três entre-
vistas a artistas que dedicam o seu trabalho e acção ao activismo político. Pode-
se dizer que os três assumem o seu percurso enquanto activistas políticos, cujo
trabalho artístico, não se esgotando aí, assume uma postura activista perante o

CRISTINA PRATAS CRUZEIRO


mundo. Gregory Sholette (nº4), Pedro Penilo e Mark Harvey (nº5) responderam
a uma série de questões, colocadas pelos editores, sobre a relação entre a sua
prática artística e o activismo político. Sediados em geografias distantes – EUA,
Portugal e Nova Zelândia – as suas respostas, distintas em muitos aspectos, não
poderiam ser mais coincidentes quanto à urgência de intervenção política no
mundo e quanto ao contributo da arte para a reflexão e combate ao neoliberalis-
mo. Assumindo-se como registo de experiências vividas, posicionamentos ideo-
lógicos e percursos individuais, estas entrevistas são, em simultâneo, uma introdu-
ção ao tema do dossier e à multiplicidade de perspectivas que o mesmo exige.

No volume 4 incluem-se os textos que incidem particularmente sobre teorias,


problemáticas e conceitos relacionados com o tema. O pensamento crítico aqui
reunido contribui para a estabilização de noções e nomenclaturas, mas contribui
fundamentalmente para uma possível compilação de problemáticas, contextos
e inquirições implicadas na relação da arte com o activismo político.

A abrir o volume encontra-se a entrevista a Gregory Sholette, artista e investi-


gador sediado em Nova Iorque e com um percurso de grande visibilidade na
área da arte activista.

O texto de Michel Guérin propõe pensar as vanguardas históricas a partir do que


considera ser uma das suas principais características, o agonismo. Relacionando-o
com o «pathos do combate» e evocando autores como Renato Poggioli, Peter
Bürger ou Frederic Jameson, o autor segue o percurso do «momento agónico»
desde o seu estabelecimento e tradução numa ambição pela aproximação da

23
arte à vida, até à «traição do espírito da vanguarda», quando o próprio capitalis-
mo adopta a mesma característica como estratégia de neutralização das artes.

Dirk Dehouck questiona a possibilidade da conjugação entre arte e activismo


político poder libertar-se da noção de «revolução» enquanto conceito, levan-
tando a hipótese da existência de um défice de crença revolucionária, tanto
na Modernidade como na actualidade, suportando o seu discurso na análise
ao pensamento de autores como Foucault, Marx, Jean-Claude Milner, Michel
Guérin, entre outros.
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS | INTRODUÇÃO

Bruno Goosse incide o seu texto na questão dos contextos da arte e da políti-
ca. Partindo da tradição de descontextualização, inaugurada pelas vanguardas
históricas, o autor levanta e discute a hipótese da passagem do mundo da arte
para o mundo da política, a partir dos efeitos que essa transposição poderá ter
nos dois campos.

No seu texto, Sylvie Coellier assume como ponto de partida uma inquirição sobre
a eficácia do activismo político na arte a partir dos seus contextos geopolíticos de
implementação e desenvolvimento. Confrontando diferentes práticas artísticas,
a autora reflecte sobre o posicionamento político dos artistas assim como sobre
o sistema económico e político dos países onde trabalham, dissociando a ques-
tão da premência dos projectos da eficácia política dos mesmos, considerando
esta última mais dependente do poder económico do país do que do artista.

Carlos Vidal parte da relação entre arte e sociedade, reflectindo sobre as no-
ções de «arte e política» e de «arte política» no contexto do capitalismo actual e
dos desafios que este coloca aos artistas e à arte. Evocando Marx, Alain Badiou,
Jean-Luc Nancy, entre outros, o autor inicia o seu texto com uma análise teóri-
ca da questão para passar em seguida a uma análise do trabalho de vários ar-
tistas contemporâneos.

Segue-se o texto de Jean-Marc Lachaud, que situa a sua reflexão na emergên-


cia de novas figuras de resistência, protesto e intervenção política e artística.
Observando a coexistência de movimentos e organizações sociais que utilizam
metodologias da arte e artistas que utilizam metodologias da política, o autor
reflecte sobre as possíveis fronteiras da acção artística e da militância política.

Partindo do neologismo «artivismo», Dominique Berthet situa a sua emergência


nas práticas artísticas radicais desenvolvidas desde o início do século XX e per-
petuadas até à actualidade. Centrando-se em colectivos como o Guerrila Girls,
o Pussy Riot, o Critical Art Ensemble, o Yes Men, entre outros, o autor extrai dos
estudos de caso algumas características que poderão contribuir para a defini-
ção do termo «artivismo» na actualidade.

24
Pascal Gielen reflecte sobre intervenções artísticas que na actualidade medeiam
diferentes acções políticas, num espaço que se encontra entre «a legalidade e
a ilegalidade e entre a criatividade e a criminalidade». Para tal, o autor analisa
teoricamente noções como as de espaço público, cívico e civil, assim como a
de espaço comum.

Partindo da noção de «in media res», Cláudia Madeira aborda a relação entre
crise e artivismo nos novíssimos movimentos sociais portugueses, criados a par-
tir da instalação da crise económica e social, tais como ‘Geração à Rasca’ e ‘Que
se lixe a Troika! Queremos as nossas vidas!’

O texto de Mário Caeiro incide sobre a arte crítica e activista na sua relação com
o espaço urbano. As noções de espaço público e esfera pública são aqui evo-
cados para uma articulação diacrónica sobre o desenrolar do activismo artísti-
co até à actualidade.

O texto de Bruno Marques centra-se numa reflexão sobre a sexoecologia, uma


corrente de combina arte, activismo e ecologia, a partir do envolvimento com

CRISTINA PRATAS CRUZEIRO


a comunidade LGBTQ. Partindo da análise do trabalho que Elizabeth Stephens
e Annie Sprinkle têm realizado neste âmbito, em particular o apresentado na
DOCUMENTA 14 (Kassel), o autor questiona o impacto e a validação deste pro-
jecto enquanto manifestação política e artística.

O texto de Joana Tomé faz uma indagação entre a arte criada por mulheres
a partir da corrente teórica do feminismo materialista. A autora assume como
propósito reflectir de que forma esta relação poderá contribuir para a transfor-
mação das condições de produção, apresentação e recepção das obras que se
impõem como resistência à actual conjuntura neoliberal.

Ana Sousa traça um percurso que se inicia com a explanação de alguns exem-
plos, que no seu entender, enquadram a arte como intervenção para passar de
seguida às relações entre os estudos no domínio da cultura visual e as primei-
ras propostas de educação artística, detendo-se finalmente numa proposta de
paradigma da educação pela cultura visual.

Por fim, a rematar o primeiro volume, Juan Gonçalves reflecte no seu texto sobre
o contributo dos museus de arte contemporânea para a formação de valores po-
líticos e ideológicos na sociedade, a partir das suas programações expositivas.
Fá-lo utilizando como estudo de caso a exposição ‘Toda a Memória do Mundo,
Parte I’ (2015), de Daniel Blaufuks.

25
Gregory Sholette – Answers for
Convocarte: Art and Political Activism
July 15, 2017
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS | ENTREVISTA

The political activity is in your work For more on this premise of capitalist-na-
as an artist. Do you consider that it is tionalism and the arts, please see my re-
the political intervention that unites cent book:
all your activity? In which sense and
why? Delirium and Resistance: Activist Art
Anti-capitalist politics is the denominator and the Crisis of Capitalism (Pluto
that sits beneath the bar, cultural practice Press, 2017): http://press.uchicago.
the numerator above; at least this is how edu/ucp/books/book/distributed/D/
I would express my overall approach to bo26304430.html
what I do in the form of a mathematical
fraction. And I would like to think that yes, For a short treatise on dark matter
this calculus carries over into all of my art please see:
making, research, writing, teaching and http://www.manifestajournal.org/is-
of course activism, even though these sues/i-forgot-remember-forget/art-
practices do not always take the shape ists-embrace-your-redundancy-in-
of public interventions. For while it is true troduction-gregory-sholettes-dark
that direct action plays a key role in my
work, in fact it more often involves inves- Could you define your position
tigating what I call the dark matter of the about the commitment between art
art world as this has evolved throughout and politics and from what moment
my own lifetime: from the cold war era of did you understood that your activi-
cultural politics in the 1950s, 1960s and ty as an artist was linked with politi-
early 1970s, through neoliberalism’s cre- cal activism?
ative enterprise culture roughly from the Like many others of my generation who
mid-1970s until today when I would ar- came of age in the United States at the
gue we are now witnessing a new phase very end of the cold war I was shaped ear-
of political culture, one yet to be fully de- ly on as a teenage by mass opposition to
fined, that falls under the regime of cap- the Viet Nam War, as well as by other lib-
italist-nationalism: a seemingly improb- eration movements including Civil Rights,
able hybrid of free-market and closed though also by the more militant Black
market policies entwined with overt ele- Panthers in the late 1960s and early 1970s.
ments of xenophobia, misogyny, racism However, I really became active politically
and propagated by openly reactionary through the anti-nuclear movement in the
political leaders. late 1970s and 1980s. It was also at this

26
time that I studied at The Cooper Union Greg Sholette, Art of the Pentagon
with Hans Haacke, who offered a model (1979-1981): http://www.gregorysho-
of merging one’s political outlook and art lette.com/?page_id=11
practice, and when I first read Marx’s Das
Kapital, which was truly an eye-opener. My Fred Lonideir, Health And Safety Game
background is lower middle class and I had (1976/78): http://www.essexstreet.biz/
worked many low-paying jobs as a janitor exhibition/50
or restaurant dish washer to go to college
before moving to New York in 1977 from Peter Watkins, The War Game (1965):
the suburbs of Philadelphia. I had struck https://archive.org/details/TheWar-
out on my own educationally speaking, Game_201405
eventually becoming the only one of four

GREGORY SHOLETTE – ANSWERS FOR CONVOCARTE: ART AND POLITICAL ACTIVISM


siblings to complete anything other than Precarious Workers Pageant (2015):
high school. Though ironically, as a uni- https://vimeo.com/159525389
versity professor, my economic situation
is probably the least affluent. Global Ultra Luxury Faction (GULF)
In terms of connecting this personal back- (2015): https://www.youtube.com/
ground to the evolution of my creative prac- watch?v=OQOSezG4qb8
tice, I think the earliest attempt to make po-
liticized art –with the exception of a suite of In what ways do you consider it is im-
drawings about psychiatric patients at the portant to think of art as a form of po-
Philadelphia State Hospital where I worked litical intervention?
for a time after high school– was Art of the I would like to answer this question with
Pentagon in 1979. But this was not an “ac- three statements that are not my own:
tivist” work of art, it was instead a didactic
work that visually demonstrated the horrific Walter Benjamin: Rather than asking what
effects of thermo-nuclear weapons on the is the attitude of a [literary] work to the
human body and presented in a a cold and relations of production of its time? I
clinical manner using archival photographs would like to ask, ‘What is its position
of victims from Hiroshima and Nagasaki. Art in them?’
of the Pentagon was influenced by Peter Wat-
kins film The War Game and Fred Lonidier’s Bertolt Brecht: They won’t say: the times
The Health And Safety Game as I recall. I re- were dark. Rather: why were their po-
worked the piece a bit and publicly displayed ets silent?
it in 1981 inside the large shop windows of
Printed Matter Artists Books facing out onto GULF: We recognize that our work, our
Lispenard Street in downtown Manhattan. creativity, and our potential are chan-
So the work did have a somewhat more in- neled into the operations and legitimi-
terventionist presence for passersby, though zation of the system. We work—often
it was not the type of direct performative art precariously—as both exploiters and
action I have engaged in with such collabo- exploited, but we do not cynically re-
rations as Global Ultra Luxury Faction (GULF) sign ourselves to this morbid status
or Precarious Workers Pageant. quo. We will not allow our songs to

27
become ashes, or our dreams to be- [in order to construct] an international,
come nightmares. grass roots network of artist/activists
who will support with their talents and
If you had to define a genealogy (in their political energies the liberation
historical and political terms) regard- and self-determination of all disen-
ing to the artistic activism where you franchised peoples
define it and why?
That is a very long answer with many com- The problem in 2017 is that the deregu-
plex branches, both thick and thin, elon- lated networked economy celebrates its
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS | ENTREVISTA

gated and stubby or even broken off, all many links to micro-institutional practices
of which transverses multiple geopolitical and eccentric frames of mind so that every
locations within space and time, howev- shade of political or cultural resistance is
er, from my particular point of view if we permitted its own disconnected autono-
were to transform this genealogical archive my from politics as a whole within limits of
into a sort of hovering drone-like device course (ISIS is not tolerated for example
it would look something like this: http:// and it Germany Nazism is also banned).
exhibition.cyberartspace.net/2012/?greg- But with a few exceptions these individ-
ory-sholette uated spaces of identity not only thrive,
but they even appear to add value to cap-
We mark this year the 100th anniver- italism as an aggregate whole. I suspect
sary of the October Revolution. The that not unlike those intense intellectual
artists involved with the Revolution political debates before, during and just
started a reflection based on the con- after the Bolshevik-led revolution in Rus-
ditions of production and reception sia about the relationship between party
of the works. Do you consider that leadership and people’s democracy, we
the awareness of the social, econom- may need to begin to engage again with
ic and political model where the artist the very idea of the state as a means of
works is essential for artistic practice? providing for a population’s basic needs:
Because we artists are cultural laborers we affordable housing, water and food, en-
must address ideology in our work; and ergy, education, health-care and so forth.
because we are also laborers we must ad- Ironically, in light of the failures of the ul-
dress our own artistic working conditions tra-deregulated marketplace to manage
themselves. As part of the artists’ group these needs, it is actually certain facets of
Political Art Documentation/Distribution the far Right that appear to be giving the
(PAD/D) in the 1980s we sought to redefine idea of the state another consideration af-
our entire role within the art world, dra- ter trying to demolish it now for decades.
matically stating in a 1981 manifesto that Except that their version of the state is ul-
tra-nationalist, white, and seeks to polit-
PAD [/D] can not serve as a means ically disenfranchise large segments of
of advancement within the art world the local and global population in order
structure of museums and galleries. to protect the privileges of a minority. It’s
Rather, we have to develop new forms almost like the apartheid regime of the
of distribution economy as well as art former South Africa only now amplified

28
into a transportable racialized ideological that poses the real threat because this ex-
program. Any progressive/Left pro-state istential break or cut may lead directly to
project must navigate away from this an- another kind of experiential knowledge.
ti-immigrant model in order to reimagine So if there is an “aesthetic” dimension to
social governance in the service of the entire art activism, it would most likely be located
population while taking back power and here, in that opening, whether or not this
the accumulated affluence away from the momentary encounter is experienced as
oligarchical 1% ruling class who are now freeing, and therefore as also pleasurable
busy waging all-out class war against us. and motivating, or if it is experienced as
What sort of avant-garde art practice this terrifying, and therefore also paralyzing
program will generate I for one cannot wait or enraging.
to see, though I believe it is happening.

GREGORY SHOLETTE – ANSWERS FOR CONVOCARTE: ART AND POLITICAL ACTIVISM


Do you consider that we are in a pro-
What parameters do you consider al- cess of reaffirming the forms of polit-
lowing us to speak of artisticity in a ical and social resistance from the ar-
certain practice of political activism? tistic or cultural activity?
Do you mean what is the possibility of an I think cultural politics is dead, and has
aesthetic of political activism? Specifical- been dead for some time. Once, in the
ly in terms of activist art and the practice post-war era of the cold war, a think such
of direct intervention I have thought of as like Jean-Paul Sartre for example could
this as an event-object whose sensuality be both philosopher of existentialism and
is less about the actual occurrence of the public intellectual, shooting off opinion
work and more about the rippling wave pieces to newspapers and popular mag-
of disturbance it sends through what Fred azines, even launching Libération, his own
Jameson has termed the political uncon- daily Left paper in 1973. Today there is an
scious. Why I think authorities seek to re- ever-diminishing belief that cultural pro-
pair, punish and erase activist moments ducers bring something extraordinary to
from memory –from Courbet’s involve- the under-privileged masses via the el-
ment with the Communards and the de- evated benefits of serious and sophisti-
struction of the Vendôme Column in 1870, cated art practices. Cultural politics is be-
to Pussy Riot’s Punk Prayer against Putin coming just plain politics, and the legacy
and the Russian Orthodox Church in the of the post-war cultural turn appears to
Cathedral of Christ the Savior in Moscow– have persuaded artists that they are sim-
though always ultimately unsuccessful ply one type of producer amongst others.
has less to do with the spectacle of action One can only wonder if it is possible to
in itself, but instead is aimed at shutting rekindle, in a self-critical way, the symbol-
down the sudden disappearance of a tac- ic power art once had as an expression of
itly accepted state of un-freedom. In other freely directed labor? If so, the task is not
words, these interventionist action-objects to wield it solely for cultural producers or
effectively open-up a temporary hole or their elite audiences, but instead to turn it
gap in our day-to-day societal narrative, outwards towards whole populations that
with its implicit and “commonplace” condi- are increasingly caught in the cruel cycle
tion of repression. And it is this blank spot of precarity. This is our opportunity now,

29
but also the danger of any art practice –
politically committed or otherwise–  in a
society so asymmetrical and incredibly
separated between the very few “haves,”
and so many “have-nots.”

You have a prominent position re-


garding you intervention in nation-
al (from where you are or work) and
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS | ENTREVISTA

international cultural policies. What


substantial changes do you propose
in this context?
Together with my terrific colleague
Chloë  Bass we are working on a new
book entitled Art as Social Action that is
not only a collection of essays by leading
people involved in socially engaged art
education (SEAE) including Mary Jane Ja-
cobs, Pablo Helguera, Jen Delos Reyes,
but also a slew of actual lesson plans pre-
viously tried out primarily in a class-room
setting. Our hope is that this project will
be a thoughtful, at times critical, but also
affirmatively useful tool for future inter-
ventions in this time of incredible danger
and need. [I can send a link to this book
in a week or so if you like].

Gregory Sholette
Associate Professor Queens College CUNY
[email protected]

30
L’agonisme des
avant-gardes historiques
Michel Guérin
Professeur Émérite AMU Université d'Aix-Marseille–michelcharles.
[email protected]

Os movimentos históricos de
vanguarda na viragem dos
En hommage au livre de Renato Poggioli, séculos XIX e XX são os herdeiros
Teoria dell’arte d’avanguardia [1962] do romantismo europeu. O
historicismo e a legitimação
da ação pelo apelo ao futuro
1. Origines
substituem-se pelo princípio que
Qu’est-ce qu’une avant-garde ? C'est une pe-
funda na natureza (das coisas)
tite troupe sur le pied de guerre : la partie de l'ar- a criação clássica. Em modo de
mée, sa pointe, qui marche en avant ; elle a mission homenagem a Renato Poggioli e
d'éclairer le commandement, d'aller au contact de de um debate com Peter Bürger,
l'ennemi pour le tester, de jouer de la rapidité et de Michel Guérin destaca aqui, entre
la surprise. Tant mieux si, seule, elle peut s'emparer as principais características da
d'une position stratégique et la garder ! Le danger vanguarda (ativismo, agonismo,
qu'elle court en volant vers l'avant est d'être séparée antagonismo, niilismo) o
du gros des troupes, resté derrière ; le prix (poten- momento agónico. O pathos
tiel) à payer pour avoir nettement précédé est d'être do combate (agôn) parece
ser a marca de uma inflação
anéanti. Aussi la qualité nécessaire de l'avant-garde
controversa da subjetividade
est-elle l'audace (sa sûreté dépend de sa capacité
individual e da ambição dos
d'anticipation). Pourtant, une avant-garde qui ne
Modernos. Ele procura liderar a
fonce pas est une contradiction. Elle est faite pour emancipação da vida humana
agir, aussitôt représenté le but. e a criação de novas formas
Cette esquisse de description militaire mène à artísticas. As vanguardas históricas
l'usage qui sera fait du mot dans les domaines socio- pretendem derrubar a instituição
politique, littéraire et artistique, au XIXe siècle après da arte para aproximá-la da
la révolution de 1848. Renato Poggioli allègue trois vida prática? Por uma ironia da
sources-signes : un écrit d'un fouriériste peu connu, história, este programa parece ter
Gabriel-Désiré Laverdant, De la mission de l'art et du sido aplicado literalmente pela
«lógica cultural do capitalismo
rôle des artistes, publié en 1845, l'éphémère feuille
tardio» (F. Jameson), ainda que
d'agitation politique publiée par Bakounine en Suisse
para trair o espírito da vanguarda,
portant précisément le titre, L’Avant-garde et une for-
não sem dificuldade de
mule de Baudelaire dans Mon cœur mis à nu mention-
manutenção até os anos 50 e 60
nant « les littérateurs d'avant-garde ». Si la politique do século anterior.
et l'art s'emparent alors si vite du signifiant (qui, de

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son côté, se hâte de proposer ses services), c'est qu'il existe désormais plus
qu'une analogie entre combattre, écrire et produire des œuvres d'art : une
homologie. Sur le terrain littéraire et artistique, l'avant-garde est plus qu'une
métaphore ; le terme désigne directement la structure de la conscience et de
l'action1. Il importe de voir loin en avant et d'agir vite et avec hardiesse pour
hâter l'approche du but, la fin dernière de toute espérance.
L'écrivain et l'artiste s'éprouvent comme des précurseurs, des sentinelles
ou des avant-courriers et ils ressentent l'obligation, dussent-ils affronter la soli-
tude, l'incompréhension et l'hostilité, de brûler leurs vaisseaux pour se lancer
à la découverte du nouveau.
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

Il y a, dans la personnalité du précurseur, de l'aventurier, du militant, du


sectaire enthousiaste prêt au sacrifice (une fois la voie ouverte, d'autres vien-
dront et continueront de défricher les nouvelles terres). Eux-mêmes héritiers
de Baudelaire, Mallarmé et Rimbaud, singulièrement, sont à l'origine poétique,
éthique et mythique de ce Novum dont les avant-gardes (surtout ses dernières
vagues) se mettront à célébrer le culte. Pour la première fois, la poésie s'in-
dexe explicitement sur un secret qui ne vient pas des dieux (Mallarmé : « la
poésie veut des arcanes secrets »), sur l'inconnu et sur l’inouï. Dans sa lettre du
15 mai 1871 à Paul Demeny, dite Lettre du Voyant, Rimbaud écrit (du poète,
dont la Poésie « sera en avant »): « Qu'il crève dans son bondissement par les
choses inouïes et innommables : viendront d'autres horribles travailleurs ; ils
commenceront par les horizons où l'autre s'est affaissé ! 2»
Il est piquant de noter que l'intuition « polémique » de l'avant-garde est
d'abord une invention de poète3. La lettre à Demeny ne commence t-elle pas
par une sorte de fanfaronnade ? Elle s'annonce comme un « psaume d'actua-
lité » dont le titre, écrit en majuscules, claque : CHANT DE GUERRE PARISIEN.
À travers Rimbaud (et dans le cadre de la guerre franco-prussienne et de la
guerre sociale menant à l'extermination de la Commune de Paris), c'est un
vaste pan du romantisme qui se trouve réactualisé, revisité, rajeuni et « poli-
tisé » de neuf.

2. Le romantisme préfiguration des avant-gardes ?


La Lettre du voyant (en vérité les lettres à Georges Izambard du 13 mai
et à Paul Demeny, du 15 mai 1871), correspondance privée que la postérité
érigera en texte-clef et par soi, innove par une intensité, un pathos qui s'as-
sume expressis verbis comme morbide : le Poète voyant « devient entre tous
le grand malade, le grand criminel, le grand maudit », condition acceptée
pour être « le suprême Savant ». Car ni l'idée que le poète est un voyant4,
ni celle de la mission impérative dont il se charge ne sont à mettre au crédit
de Rimbaud ; elles viennent du romantisme allemand et français. Hugo fait
du poète inspiré – le vates – un « mage » ou un « rêveur sacré ». La question
hölderlinienne (« pourquoi des poètes en temps de détresse ? ») est le pen-
dant allemand (métaphysique) du poète « paria », marginal essentiel dont le

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portrait est dessiné par Vigny dans Stello (1832), puis, trois ans plus tard dans
Chatterton (III, 6). Celui-ci s'efforce vainement de convaincre M. Beckford, in-
carnation raide de la dureté sociale et de la bonne conscience mercantile,
que le poète est « utile » à sa façon au vaisseau Angleterre parce que, juché
tout en haut du mât, il est comme le « pilote » qui « lit dans les astres la route
que nous montre le doigt du Seigneur ». Peine perdue : « Imagination, mon
cher, réplique Beckford ! ou folie, c'est la même chose ; vous n'êtes bon à rien
etc. ». Qu'elle se décline métaphysiquement ou bien qu'elle croise une inspi-
ration orphique avec une protestation sociale et « politique » au sens le plus
large (quelle vie pourrait enfin être digne de l'humanité ?), l'idée fait son che-
min que le poète est un éclaireur d'avenir. Sentinelle sur le qui-vive, il bataille
pour plus de clarté et se présente comme avant-courrier d'un état (utopique ?)
des choses humaines dans lequel, pour reprendre Baudelaire, l'action pour-
rait devenir « la sœur du rêve ».

M I C H E L G U É R I N | L’AG O N I S M E D E S AVA N T- G A R D E S H I STO R I Q U E


Mais ce n'est pas seulement par la thématique que, par l'intermédiaire de
Baudelaire, Mallarmé et Rimbaud, la conscience avant-gardiste recueille l'hé-
ritage du romantisme ; c'est aussi et surtout que le mouvement romantique,
phénomène pluridimensionnel d'ampleur européenne, marque la rupture
avec une littérature curiale (qui plus est, réglementée par un « art poétique »)
et avec une critique d'experts patentés. La poésie, le roman, la peinture etc.
s'adressent potentiellement à tous sans intermédiaire/interprète/censeur. La
pratique de l'art (ou de la poésie), aventure spirituelle éminemment indivi-
duelle, n'est plus une profession (protégée, encadrée, portant obligation de
respecter la règle en toutes ses espèces), mais une vocation ou encore une
expérience personnelle. Cette exclamation de Stendhal en 1823 résume le
basculement d'une littérature confinée (froide parce qu'immotivée) à une pra-
tique vivante, nourrie des événements, désirs, émotions que l'auteur a pu res-
sentir au long de son existence : « Et l'on veut que cette poésie [celle de l'ab-
bé Delille] plaise à un Français [lui-même] qui fut de la retraite de Moscou! 5»
Pour la première fois, avec le romantisme, le créateur est seul face à cette entité
fuyante en voie de formation : le public. Il n'y a plus de règles pour bien dire
ou bien faire : l'écrivain ou l'artiste affronte l'inconnu, puisque, s'adressant à
«tout le monde » il ne rencontrera peut-être « personne ». Lorsque la création
n'a plus lieu en chambre et pour un auditoire sélectionné, il lui faut, descen-
due dans l'arène, élever la voix. À la compétition entre les artistes pour gagner
les faveurs d'un public capricieux, s'ajoutent le combat avec l'ange et le débat
avec soi. Le plus acclamé est-il assuré de ne pas clamer dans le désert ? C'est
du romantisme que date aussi sans doute cette amplification prophétique du
discours (que les Manifestes avant-gardistes illustrent jusqu'à la caricature),
dont l'origine tient, pour pasticher Nietzsche, au fait qu'il est pour tous et pour
personne. Se dessine déjà le paradoxe qui accompagnera désormais le cours
de l'art moderne : à compter du moment où il se destine à tous et où il doit,
pour ainsi dire, gérer lui-même sa pétition d'universalité, il se voit contraint,

33
non seulement de se contenter d'une audience limitée, voire de mettre en
place des tactiques de conquête d'un public indifférent sinon hostile. Avec
la montée en puissance des médias, la création est avisée de se munir d'un
programme, qui a fonction d'alerter quelques bons entendeurs se détachant
de la masse apathique. Universel dans son principe, l'art est nécessairement
sélectif dans la pratique, c'est-à-dire dans sa réception.
Renato Poggioli, qui voit dans le romantisme le premier des mouvements,
transversaux aux lettres et aux arts6, établit une opposition heuristique entre
l'école et le mouvement. L'école suppose un maître et, par conséquent, une
méthode, une discipline ; elle se structure depuis le principe d'autorité. Elle
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

subordonne le maître à la cause de l'art qu'il a pour devoir de maintenir dans


la durée à travers des disciples bien formés. La maxime de l'école : ars longa,
vita brevis7. Elle n'est pas une enceinte de discussion, mais d'enseignement
où se diffuse la saine doctrine. « L'école est inconcevable en dehors de l'idéal
humaniste, l'idée de culture comme thesaurus », écrit Poggioli8. Les individus
se relayent pour défendre et illustrer un art qui dépasse et estompe leurs per-
sonnalités. Au contraire, le mouvement privilégie le dynamisme présent, l'ac-
tion (même désordonnée), il n'exclut pas l'excès, l'exagération, l'affirmation
intempestive de soi et de ses humeurs et émotions, parce que celles-ci vont
de pair avec l'énergie. Le mouvement n'a pas de maître pour stabiliser la pra-
tique de l'art, il ne peut reconnaître (par la force des choses) qu'un chef de
file celui, justement, dont la personnalité et la force créatrice auront fini par
s'imposer aux autres. La subjectivité et l'individualisme sont désormais au
cœur de la création littéraire et artistique. Hugo déclarant la guerre au « vieux
dictionnaire » est l'emblème par excellence du mouvement en tant qu'il ne
peut pas ne pas vouloir déstabiliser ce que la tradition a pensé immuable.

3. Anti-humanisme ?
Renato Poggioli observe qu'Ortega y Gasset, plutôt que de parler d'« avant-
garde », préfère y voir un « art déshumanisé ». L'argument n'est pas faux, à
condition de le considérer moins comme une critique sans appel que comme
le constat (par les premiers intéressés, poètes, écrivains, artistes) que la notion
d'œuvre en tant que totalité organique et unité substantielle a cessé d'appor-
ter ses rassurantes certitudes. Ainsi que le remarque un autre interprète de
l'avant-garde, Peter Bürger, la « destruction de l'œuvre organique 9» va de pair
avec l'abandon du vieil adage de l'imitation de la nature. Tant que l'art s'est
donné pour fin la reproduction de la réalité, autrement dit s'est réglé sur la
mimèsis, le lien à la nature l'a emporté sur l'imagination subjective de l'artiste.
Reproduire n'était pas copier, mais plutôt transposer l'unité naturelle dans la
composition de l'œuvre ; celle-ci est la production du génie qui, lui-même,
est une nature. Ainsi l'œuvre pouvait être subjective tout en faisant immédia-
tement écho à l'unité de la Physis. En soulignant le rôle de l'imagination et en
exaltant, dans le génie, la faculté, comme dit Kant, de « créer sans règles », le

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romantisme se détourne de l'imitation et ne répugne pas à l'outrance, la dé-
figuration, le grotesque. Dans ce premier mouvement européen, au sens où
l'entend Poggioli, c'est aussi corollairement un topos très ancien (remontant
au plus ancien Moyen Âge) qui s'efface : celui de l'opus decens. L'œuvre, in-
dexée sur la nature (des choses) pouvait à la fois être utile et plaire, joindre le
prodesse au delectare : les classiques français (Racine, Molière) n'auront cessé
de s'y référer. Certes, le romantisme ignore le montage (quoique Schlegel,
en Allemagne découvre avec d'autres les vertus du fragment) dans lequel
Bürger voit non sans raison un caractère essentiel de l'œuvre moderne ; mais
il amorce des tendances que les avant-gardes transformeront de façon déci-
sive et irréversible. L'autonomisation de l'art, son découplage tant avec la na-
ture qu'avec une fonction sociale nettement assignée, le conduisent, par le
truchement d'un moment autocentré (l'esthétisme) à n'avoir plus de comptes
à rendre qu'à lui-même ; cette gratuité, pour ne pas dire cet arbitraire, menace

M I C H E L G U É R I N | L’AG O N I S M E D E S AVA N T- G A R D E S H I STO R I Q U E


le sens traditionnel qui l'a porté au sein de la culture.
De là ce ressenti de « morbidité » ou de malédiction (Rimbaud, que d'autres
suivront dans cette voie) qui entoure l'apparition de l'avant-garde. Comme si
la coupure du lien avec la nature (honnie par Baudelaire par dépit de sa perte
irrémédiable) avait entrainé cette mauvaise conscience ou ce sentiment de
culpabilité inséparable des transgressions avant-gardistes.
De quoi l’art moderne est-il malade ? – De l’équivocité de son autonomie,
qu'il ne peut plus, désormais, assumer que totale. Elle est signe de liberté sans
frein. Cette absence de contrepoids, c'est-à-dire de finalité ou de sens, porte
un nom : nihilisme. Le poète ou l'artiste ont beau se dégager des contraintes
que subissaient leurs prédécesseurs, ils ne savent comment évacuer un ar-
rière-sentiment de vacuité, puisque la création n'a plus d'ancrage ontologique
et a perdu en cours de route sa légitimité évidente (par et dans la nature).
Désormais la pétition de légitimation, fait moderne distinctif, n'a même plus
l'idée de revenir à la nature, il lui faut au contraire recourir à l'avenir (inven-
té, extrapolé, invoqué). Il s'agit aussi d'une inflation des mots par rapport aux
choses qui se sont éclipsées. Avec les avant-gardes, le présent moderniste est
habité par un fantôme d'avenir. Il s'écrit au futur.
Goethe, contemporain à Weimar du premier romantisme (à Iéna) et in-
timidante figure du Classique (l' « Olympien »), se tenait à bonne distance
des jeunes poètes qui auraient volontiers recherché son parrainage. On lui
doit cette sentence à l'emporte-pièce : « je nomme classique ce qui est sain
et romantique ce qui est malade ». Dans le fait, alors que Goethe avait voulu
tourner la page de sa jeunesse tourmentée de Stürmer et se convainquait du
bienfait contenu dans Les limites de l'humanité10, célébrait l'ordre (fût-ce au
détriment de la justice), la clarté (présente jusque dans la nuit romaine, « hel-
ler als nordischer Tag  11», plus claire que le jour du Nord), la forme telle que
la statuaire grecque la magnifie, pour tout dire la mesure ; au contraire l'âme
romantique12 (chez Novalis, par exemple) couvait une nouvelle intériorité faite

35
de rêve, de mystère (voire de mystique) et de nocturne obscurité ; elle révérait
la ressource de l'infini là où le rationalisme, cartésien aussi bien que kantien,
s'attachait à limites ingenii definire.
Cette augmentation de la subjectivité propre au mouvement romantique
à travers l'Europe a pour corollaire la déstabilisation de l'équilibre de l'inté-
rieur et de l'extérieur qui avait, selon Hegel, caractérisé le grand art (classique).
Même si, pour le philosophe, la catégorie de l'art romantique est de bien plus
vaste amplitude historique, il reste que le trait par quoi il le caractérise inté-
resse au plus haut point les XIXe et XXe siècles – soit la dimension intrinsè-
quement agonale de l'esprit : en d'autres termes la Négativité, qui s'attaque
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

à toute forme fixe et corrode les institutions qui se croyaient les plus solides
– et parmi celles-ci l'art. La thèse centrale de Peter Bürger affirme que c'est
contre l’institution art que se dressent les avant-gardes13.
Anti-humanisme ? Plus exactement anti-naturalisme : l'art moderne, que le
négatif fouette, rompt avec toutes les espèces d'organicité. Peter Bürger, s'ins-
pirant du concept benjaminien d'allégorie, observe que le « principe structu-
ral » de l'œuvre d'avant-garde est « la négation de la synthèse », ajoutant : « La
construction de la totalité de l'œuvre n'est plus assumée par l'harmonie des
parties singulières entre elles, mais par le rapport contradictoire des éléments
hétérogènes 14». L'Histoire prend désormais le pas sur la Nature. À l'harmonie
de la Physis succède la redondante discordance de l'Histoire, dont le moteur
est précisément le conflit des contradictions. Si l'homme moderne est malade,
c'est d'être déserté par l'ancienne summetria15 (qu'on peut rendre par pro-
portionnalité, d'où l'équilibre produit par la juste répartition des parties dans
le tout), de ne pouvoir faire la paix avec soi et avec le cosmos, d'avoir perdu
cette aptitude à la concentration que le Symbole dénotait. L'art se condamne
à l'allégorie et finit par la choisir parce qu'il sait ne plus pouvoir faire autre-
ment16. Elle est signe d'une altérité, d'un déplacement, d'un désajustement
perpétuel entre les êtres. L'arbitraire du signe ne cessera plus d'exercer son
despotisme. Une sorte de diabolos a mis un coin, comme pour empêcher les
portes du monde de s'ouvrir et/ou de se fermer nettement, entre les mots et
les choses. L'art moderne sera décidément diabolique (sumballein, rassem-
bler/diaballein, disperser, déstructurer17).

4. La typologie quadripartite de l’avant-garde selon Renato Poggioli


De souligner la signification du romantisme comme premier mouve-
ment (plus exactement sans doute comme moment historique de la transi-
tion entre l'école et le mouvement) n'autorise aucunement, s'appuyant sur
un préjugé continuiste, à exagérer la similitude avec l'avant-garde. Il serait
trop long de thématiser ici pour elle-même cette transition. Il me semble,
pour dire vite, que l'effort de l'art moderne (par Baudelaire, puis le symbo-
lisme) sera, non sans mal, de se séparer progressivement de l'idéalisme ou
plutôt du spiritualisme qui relie encore le romantisme au monde ancien. En

36
ce sens, il mettra du temps à se dégriser, tout en conservant (par exemple
dans le surréalisme, malgré ses protestations matérialistes) des traits spéci-
fiquement romantiques.
Renato Poggioli caractérise le mouvement d'avant-garde par quatre traits ou
moments : l'activisme, l'antagonisme, le nihilisme et l'agonisme. Il précise que
les deux premiers sont rationnels, les deux autres irrationnels. Chaque trait
est, bien sûr, plus ou moins accusé dans tel ou tel mouvement (par exemple,
le nihilisme est au cœur de Dada).
L'activisme signifie l'action pour l'action, la valorisation de l'action (op-
posée à la contemplation ou au discours déconnecté de la réalité). L'activiste
est comme l'Hernani de Victor Hugo, une « force qui va » (Hernani, Actes III,
scène 2), un morceau brut d'énergie ; il pourrait s'écrier comme Faust : « Im
Anfang, war die Tat ! au commencement était l’action ! » (Faust I, v. 1237). En
Allemagne, deux revues expressionnistes affichent la couleur dans leur titre :

M I C H E L G U É R I N | L’AG O N I S M E D E S AVA N T- G A R D E S H I STO R I Q U E


Die Aktion (L’Action) et Der Sturm (La Tempête) qui, peut-être, veut se souve-
nir du Sturm und Drang de la période des génies (« Geniezeit ») des années
1770. Un recueil poétique futuriste en Italie a pour titre Coups de revolver. Par
ailleurs l'exaltation du sport (sorte de combat, où l'on est d'abord son propre
adversaire), de la vitesse, de l'automobile, du train, de l'avion, montre assez
de quelle sorte d'action il s'agit plus spécialement : celle qui prône la lutte
et le dépassement de soi par la compétition. Ce qu'on révère dans l'action,
c'est une démiurgie à demi hypnotique de la force et de la vitesse conjuguée.
C'est pourquoi il est difficile de séparer le « moment activiste », comme
dit Poggioli, des moments antagoniste et agonistique. Un mélange d'anar-
chisme foncier et de sectarisme aristocratique situe l'avant-garde décidément
dans le contra. S'opposer (antagonisme) est comme un réflexe premier. Les
édifices s'offrant à la démolition ne manquent pas : l'art comme institution,
comme y insiste Bürger, la tradition, le passé, les valeurs et les maîtres – en
un mot tout ce qui fleure le respect de l'ordre établi. L'avant-garde, disons-le,
est jeuniste, les anciens sont forcément des vieux croutons. Voyez les mani-
festations surréalistes contre les écrivains « reconnus », dont Anatole France
est le parangon (mais aussi Barrès et même Paul Valéry). L'avant-garde a l'al-
lure d'une bohême aristocratique et recourt volontiers à l'infantilisme, à des
manifestations psychologiquement (et esthétiquement) régressives, car cette
coterie terriblement cultivée a vite compris la puissance subversive de la ré-
gression. D'une certaine façon, elle « en crève » de cette culture – après que
la génération de la Grande Guerre a découvert que, selon la formule célèbre
de Walter Benjamin, « il n'est aucun document de la civilisation qui ne le soit
simultanément de la barbarie  18». Le même Benjamin forge le concept de
« barbarie positive » pour qualifier la posture quasi forcée de ceux qui sortent
d'un cauchemar qui a anéanti l'esprit européen et dévasté l'expérience que
les hommes, par tradition, se léguaient de génération en génération, si bien
que la dernière ne se trouvait pas contrainte de réinventer la culture ab ovo.

37
Pour Dada, principalement, tout est à refaire, sur fond d'une pauvreté extrême
de l'expérience, qu'a précipitée non seulement le déchaînement de violence
aveugle, mais encore la démystification brutale de cette monumentale super-
cherie ayant pris le masque de la Civilisation. Benjamin écrit : « Où la pauvre-
té d'expérience mène t-elle le barbare ? Elle le conduit à commencer par le
début, à recommencer de neuf, à se tirer d'affaire avec peu, à construire avec,
et sans regarder à droite ni à gauche 19». C'est le programme du « Manifeste
de l'art élémentariste », daté de Berlin (21 octobre 1921) et signé par Raoul
Hausmann, Hans Arp, Ivan Puni et Moholy-Nagy, publié à Leyde dans De Stijl
n°10 : « Nous exigeons, comme résultat de notre époque, un art qui ne peut
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

partir que de nous-mêmes (…) Nous exigeons l'art élémentariste ! Contre la


réaction dans l'art ! 20»
L'agonisme, encore une fois, colle à l'activisme et à l'antagonisme ; il y
ajoute toutefois une nuance particulière, qu'on résumerait ainsi : on n'a pas
besoin d'ennemis extérieurs quand on peut résolument se prendre soi-même
comme adversaire. Le débat/combat avec soi qu'est l'agôn installe une ten-
sion psychologique que Poggioli décrit ainsi : « Agonisme veut dire sacrifice et
consécration : une passion hyperbolique, un arc tendu vers l'impossible, une
forme paradoxale et positive de défaitisme 21». Il en voit le paradigme subli-
mé dans le Coup de dés de Mallarmé. L'artiste se rapproche du martyr ; il est
un héros victime ou une victime héroïque. Le sacrifice s'inscrit dans une vo-
cation solitaire d'anticipation, il va de pair avec le mythe du précurseur : celui
qui n'ouvre la porte de l'avenir qu'à se perdre dans cette tâche surhumaine.
La future notion d'Impossible forgée par un Georges Bataille22 se situe dans le
droit fil de cette sorte de dévouement historico-eschatologique à la cause du
Nouveau et de l'Inouï. Baudelaire voulait que l'art eût deux « moitiés » : l'éter-
nel et le transitoire 23 ; l'avant-gardiste conséquent revendique de s'effacer au
plus aigu de la crête, là où le futur absorbe le présent ou plutôt l'engloutit : il
entend coïncider avec la transition elle-même. Son modèle est à l'opposé du
monument installé passivement dans la durée: c'est l'opération, qui (dis)paraît
dans l'acte productif. Aussi, même si l'avant-garde se constitue – de s'excepter
de l'Institution détestée – en intelligentsia triant ses membres24 ; même si elle a
des allures de secte ou de chapelle (on reprochera assez à André Breton son
despotisme autoritaire, Joseph Delteil allant jusqu'à le qualifier de « Hitler des
Lettres » !), les individus qu'un même combat rassemble s'éprouvent comme
solitaires. Suzi Gablik fait de cette solitude25 un gène essentiel du « moderne ».

5. Nihilisme et modernité26
C'est sur le « moment » nihiliste que l'analyse de R. Poggioli paraît courte ;
faute d'en apercevoir la signification philosophique et transhistorique, il en
reste aux signes extérieurs, en l'espèce à des comportements spectaculaires
et à des événements qui lui dissimulent une lame de fond pluriséculaire qui
explose, précisément, au tournant des XIXe et XXe siècles. Que Dada soit

38
nihiliste, sans doute, puisque le « rien » est au cœur de son activité destruc-
trice. Le lien avec les « nihilistes » russes, qui jettent des bombes sous les car-
rosses de la cour impériale, c'est le choc, la terreur, l'absence de frein (moral),
le choix de l'acte extrême, irrémédiable. C'est le côté événementiel et specta-
culaire d'un nihilisme d'action inspirant des desperados. Combien plus subtil
et raffiné le nihilisme d'un Marcel Duchamp, dont l' « obsession », écrit-il, était
de « réduire, réduire, réduire 27». Dans le fait, Marcel Duchamp, à sa manière
apparemment désinvolte, a procédé conséquemment à l'exténuation de l'es-
thétique et à la profanation de l'art. Ce crime discret fut éclipsé sur le moment
par les débordements dadaïstes ou d'autres artistes « radicaux ».
J'ai tenté de montrer ailleurs que nihilisme et modernité cheminaient his-
toriquement ensemble. Il serait injuste de disqualifier celle-ci au motif qu'elle
aurait couvé un monstre, un esprit de négation emporté par son propre ver-
tige. Par un autre aspect, il est impossible de méconnaître le lien étroit qui lie

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la modernité, a fortiori l'avant-garde qui en exagère les traits et les donne en
spectacle, à l'accélération du nihilisme. Que faut-il entendre par nihilisme s'il
ne se réduit pas à l'action terroriste ?
Nietzsche, on le sait, est le théoricien du « nihilisme européen » ; à ses
yeux, il s'agit d'un retour de balancier, du contre-mouvement qui ré-agit au
mouvement de valorisation incontinente pluriséculaire propre à l'histoire et
à la métaphysique occidentales. Le nihilisme est le reflux déceptif qui, tel un
boomerang, fait retour après qu'on a cessé de croire, d’ajouter foi à des va-
leurs soi-disant inscrites dans la nature des choses. Le nihilisme est une crise
du crédit, une sorte de banqueroute métaphysico-religieuse. Son scandale
est celui d'un krach. Parce que l'Être s'est vu « renforcé » par une raison d'être
et qu'on l'a conduit à coïncider avec des valeurs, à faire corps avec elles, il
se passe, lorsque celles-ci s'effritent victimes de l'érosion temporelle, qu'il
est emporté avec elles dans l'abîme. À la lettre, on appelle nihilisme le deve-
nir-nihil de l’esse. Non seulement les plus hautes valeurs se dévalorisent, mais
elles se révèlent, de surcroît dans leur imposture et le mensonge d'origine :
on a commis une faute de logique (de grammaire, dit Nietzsche) en greffant
sur l'Être des valeurs qui, par nature, ne sont que prêtées, on a absolutisé et
« ontologisé » des évaluations et des appréciations qui n'ont de signification
correcte qu'en fonction des perspectives et, surtout, que selon le comparatif
(du plus et du moins). Bref, le concept de valeur en soi est une contradiction
dans les termes – et c'est la source, lorsque se produit le grand reflux, d'une
déception irrémédiable qui prend la forme du pessimisme, du désespoir, de
la mélancolie.
Il n'y a pas que Dieu, la religion, la morale, la vérité, la justice qui sont tou-
chés ; l'art n'est pas épargné, il s'en faut, contre l'irrespect et les postures vio-
lemment démystificatrices ; d'autant plus que, la religion s'affaiblissant, l'art
s'est vite offert comme religion de substitution. Non content de poursuivre
le paradoxe de son institutionnalisation croissante par l'affirmation de son

39
autonomie, l'art s'est protégé de l'impure vanité du monde vécu ; l'esthé-
tisme, l'art pour l'art se répandent sur fond de pessimisme dans les dernières
années du XIXe siècle. Il a cru un moment pouvoir échapper au fort courant
nihiliste en s'abritant dans son réduit, comme pour offrir le moins de surface
à l'impétuosité du flot. Mais cela même ne pouvait lui éviter – au contraire –
de s'apercevoir qu'il était lui-même le juge le plus terrible de l'ensemble du
processus historique. Plus l'art se hausse jusqu'à devenir le sel de la terre, l'en-
treprise par excellence digne d'un sujet libre et maître de sa pensée jusque
dans la forme, plus il accomplit le destin d'autonomie que lui ont réservé les
modernités, et plus il se fait l'agent lucide de sa propre agonie. Pour conden-
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ser : plus on croit à l'art et plus l'artiste se crédite d'une réflexion à la mesure
de cette ambition – et moins on croira à l'art ! La mécréance artistique suit de
l'augmentation de la confiance qu'il mettait en lui. C'est, encore une fois, cette
aventure paradoxale, ironique au possible, qu'a incarné et porté au rang d'em-
blème singulier un Marcel Duchamp, l' « anartiste »28.
C'est que l'engrenage qui entraîne l'art moderne dans ses dents est la re-
cherche d'un Graal qui est moins mystique que chimique. Si l'esthétique (son
univers et ses récompenses de plaisir) est une sphère sui generis et si l'artiste
ne dépend que de son propre contrat avec son médium pour réaliser ses
œuvres en parfaite autonomie, vient le jour où chacun et tous se demandent :
Que reste t-il de l'art (par exemple la peinture, mais cela vaudrait pour la poé-
sie et la musique également) une fois qu'on a retiré, par hypothèse le mode-
lé, la perspective, l'histoire – et puis, au-delà encore, les couleurs contrastives,
le cadre, le tableau…quoi encore ? Où s'arrêtera la réduction, en l'espèce non
pas eidétique au sens de Husserl, mais formaliste au sens de Greenberg ? Si
la peinture ne consiste qu'en un plan recouvert, tout le reste n'étant que ba-
gage encombrant, dimension adventice, ne pourra t-on encore ôter quelque
chose d'inutile, au risque de réaliser que l'inutile…, c'est de peindre tout court !
À force de chercher le noyau dur et pur qui, dans un art, résiste tant et si bien
à toutes les attaques expérimentales29 qu’il identifie sa définition entière à cet
irréductible point de résistance, dont il fera désormais sa cause ; à force d'être
plus royaliste que le roi, emporté par ce catharisme nihiliste, une partie de
l'art (mais l'autre le ressent forcément) affronte le danger d'un troc extrême :
en quête de ce pur rien que l’art, elle retourne un visage macabre : au-delà
de l'art du rien, voire de l’art n’est rien30 – l’art est (le) rien. Une sorte de cache-
néant, d'illusion à peine consolatrice.

6. Art et politique – la contrainte historiciste


En vérité, seuls quelques individus décident de pratiquer un nihilisme qui,
pour la plupart, est un ressenti diffus ou mêlé à d'autres affects, y compris dia-
métralement opposés. Entre le prône du suicide et le péan pour saluer un nou-
vel âge d'or qui ne peut pas ne pas venir, toutes les nuances de l'historicisme
sont présentes dans les mouvements avant-gardistes, en cela cyclothymiques.

40
Qu'est-ce, d'un mot, que l'historicisme ? C'est moins l'idéologie qui fait de
l'histoire l'explication de toutes choses que la mentalité répandue aux XIXe et
XXe siècles qui a bâti en quasi réflexe le recours à l'évolution et, au-delà, au
progrès. Dans le cosmos ancien, on se demandait quelle était l'essence ou la
nature d'un être ; l'évolutionnisme moderne, fatal à l'ontologisme, voit le de-
venir plus que l'être. Or, si « tout évolue », selon la niaise caricature d'un juste
axiome, on finit par ne plus savoir ce qui est le sujet de l'évolution. D'intuition
principielle guidant la compréhension du vivant (Darwin), l'évolution tombe
idée reçue et fait le bonheur des Bouvard-et-Pécuchet. Métamorphose de l'évi-
dence, enfin homologuée par le discours scientifique, en trivialité fournissant
la sottise de ses redondances !
Il ne faut pas s'étonner que le siècle (le XIXe) qui a reversé le développe-
ment des sciences et des techniques dans les premières grandes applications
industrielles ait été simultanément celui du triomphe de l'histoire et de sa ra-

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tionalité progressiste. Comment eût-il éviter de confondre l'évolution des es-
pèces, la nôtre formant la pointe et la fine fleur, avec le progrès techno-scien-
tifique ? L'historicisme mettait le progrès dans le sillage de l'évolution et faisait
ainsi du temps, long d'abord puis accéléré au fur et à mesure des inventions
humaines, l'accoucheur universel. Pour les uns, il était regardé sous l'aspect
de la caducité, du déclin ; pour les autres comme le dispensateur d'un ave-
nir meilleur que l'état actuel des choses. Décadentisme et progressisme ont
constitué pile et face de la monnaie du dix-neuvième siècle finissant. Le posi-
tivisme eut comme vis-à-vis le négativisme.
Dans l'avant-garde, l'autre visage de l'agonisme (plus ou moins imprégné
de nihilisme) n'est-il pas l'utopie ? Telle est l'ambiguïté de l'historicisme qu'il
se prête également à dire que la réalité n'est rien (que passé) et qu'elle couve
un futur où l'homme sera tout, une fois délivré de ses maîtres extérieurs et des
démons qui le ruinent de l'intérieur. Le surréalisme est sans doute le premier
mouvement qui, du moins un certain temps, ait cru possible de rassembler
dans une utopie poétique la logique des classes et l'illogisme des rêves. Bien
après, le binôme Marx-et-Freud, automatisme basique des années soixante
soixante-dix du XXe siècle, présentera tous les symptômes de l'usure théo-
rique et d'une fatigue extrême de la croyance.
Mais, à la charnière des siècles et jusqu'à la seconde guerre mondiale,
comment résister au tactisme qui attirait dans un même faisceau le combat des
avant-gardes, la lutte politique pour l'émancipation et la « Tiefenpsychologie »
(la psychologie des profondeurs) dont la dynamique procédait également du
conflit (psychique) ? Chacun sait comment ces affinités se lézardèrent : comment
l'avant-garde russe (que Lénine, conservateur en art à la différence de Trotsky,
n'appréciait guère) fut liquidée, comment Breton et les surréalistes vinrent à
s'opposer au communisme, combien le « fascisme » de la deuxième généra-
tion des futuristes italiens relevait plus de l'opportunisme que de la convic-
tion. Si forte, toutefois, était alors ce que j'appellerais la contrainte historiciste

41
qu’il fallait bien que tous les engagements s'exerçant sur les différents fronts
aillent dans le même sens – celui d'un avenir à construire qui libérerait les in-
dividus comme la société de l'aliénation, de l'exploitation et du rabougrisse-
ment psychologique.
Compte tenu de l'amplitude des luttes sociales d'un siècle qui fut ponc-
tué par trois révolutions31, la dernière (1848) au niveau de toute l'Europe, et
par une insurrection devenue mythique ( la Commune de Paris, « glorieux
fourrier d'une société nouvelle » selon Marx), l'avant-garde, qui pensait révo-
lutionner l'art en trempant sa substance à même la vie, se persuadait que son
programme n'avait pas d'avenir s'il n'était étayé par une révolution plus large,
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s'attachant à produire un Homme nouveau. Affinité et solidarité lièrent ainsi


avant-gardistes de l'art et de la politique. Néanmoins, cette alliance historique
incontestable (partage, de surcroît, d'une semblable confiance en l'histoire)
dura aussi longtemps que les malentendus qu'elle dissimulait.
Si l'on approuve la thèse principale de Peter Bürger, pour qui, encore
une fois, les avant-gardes constituent « la tentative de transférer l'art dans la
vie pratique », on ne peut qu'en conclure que l'engagement ou la sympathie
marquée en faveur d'une politique révolutionnaire représente le cœur de
ce « transfert ». Pour l'auteur, pareille tentative est toutefois « passablement
contradictoire ». Dans le cas d'une obédience assumée de l'artiste à un parti,
qui aura, en cas de conflit, le dernier mot, entre la « nécessité intérieure » de
la conscience esthétique, gain séculaire de l'autonomie artistique, et le dik-
tat du commissaire politique ? L'esthétique devra t-elle se dissoudre dans la
politique, comme le décrète un peu rapidement Benjamin en simplifiant à
l'extrême le choix (entre fascisme et socialisme) ? Même si, maintenant, l'ar-
tiste se contente d'accompagner tel parti ou tel camp sans être tenu de leur
rendre des comptes, que signifie transférer l'art dans la vie sinon renoncer à
l'art pour lequel des générations ont milité pour qu'il soit vraiment autonome ?
S'évertuer à détruire l'institution de l'art, n'est-ce pas ruiner tous les efforts qui
ont été faits afin qu'il soit libre ?

7. De la néo-avant-garde au postmodernisme
Le mérite de Renato Poggioli est de nous rappeler que l'avant-garde re-
garde l'avenir (le Novum) non seulement à travers un mythe et une croyance
historiciste, mais encore et surtout dans l'ambiance d'un pathos foncièrement
négativiste. La demande d'action l'emporte sur l'offre de résultat. Le prisme
constitué par l'activisme, l'antagonisme, l'agonisme et le nihilisme manifeste
que le sens de l'action avant-gardiste est indiqué bien plus par un « contre »
que par un « pour ». Le geste premier est d'opposition, de subversion, voire
de destruction. Le but « positif » reste flou, aussi vague que peut l'être le désir
de changer la vie. C'est pourquoi ce programme en son temps s'accommode
sans trop de difficultés de ses contradictions. Que veut vraiment l'artiste, le
poète, l'écrivain ? Il veut d'abord, comme le notait Benjamin, faire place nette,

42
déblayer (aufräumen) ; après, on verra. L'ambigüité de l'avant-garde consiste
à compenser un programme sommaire (à l'image de nombre de Manifestes)
par un pathos sincère, en prise avec les tensions historico-psychologiques de
l'époque. Le ton était donné dès qu'on avait compris qu'il fallait se battre, et de
toutes les façons. Sur ce point, l'état du monde et l'état d'esprit des hommes
venaient à coïncider.
Peter Bürger est ainsi fondé à écrire : « La tentative de surmonter la dis-
tance entre l'art et la vie pratique pouvait encore, à l'âge des avant-gardes
historiques, revendiquer sans réserve le pathos du progressisme historique.
L'industrie culturelle, entre temps, a toutefois fait place à un faux dépasse-
ment de la distance entre l'art et la vie qui rend encore plus évident le carac-
tère contradictoire de l'entreprise des avant-gardes 32». Faut-il parler, comme
le fait cet auteur, d'un « échec » de l'avant-garde ? Ou se demander, comme
Suzi Gablik, « si le modernisme a failli » ? Il me semble que pareille interroga-

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tion (avec sa réponse entendue d'avance, au vu de ce qui a suivi) pèche, elle la
première, par historicisme. Y avait-il donc une autre voie, que les précurseurs
auraient manquée ? Parler d'un échec implique en effet une certaine idée de
ce qu'aurait pu être la réussite. Veut-on parler seulement d'un défaut de réa-
lisation du programme annoncé ? Dans ce cas, encore convient-il de savoir,
premièrement, si l'on interprète correctement ce programme ; et deuxième-
ment, si un artiste, quel qu'il soit et à quelque époque que ce soit, s'applique
à réaliser un programme, sachant au contraire que l'œuvre seule est témoin
et vestige de ce qu'il a voulu « dire » en tant qu'artiste.
C’est sans doute Poggioli qui voit juste quand il parle d’agonisme. La ten-
sion que les avant-gardes ont traduite (et qu'ils ont héritée de l'époque) est
en effet ce qui compte dans la manière dont la création artistique a formulé
esthétiquement son « vouloir artistique » (son Kunstwollen), en l'envisageant
souvent sur un mode sacrificiel. Elle a cherché à pousser l'activité artistique
à l'extrême, sans vraiment consentir à y renoncer. Bien entendu, les limites et
l'accent du présent propos négligent de spécifier les avant-gardes, malgré le
danger de la généralisation ; au moins peut-on leur reconnaître à toutes l'au-
thenticité de leur protestation.
Liée à une histoire tourmentée, à la fois pleine de risques extrêmes et de
folle espérance, l'avant-garde pouvait-elle se survivre ? Son agonisme même
(qui, décidément, me paraît le caractère déterminant) ne la vouait-il pas à une
fulguration sans lendemain ? Son extrémisme s'installerait-il dans la durée ? Le
pathos qui, un temps, avait permis de voiler les contradictions en les soldant
en regain d'énergie, reviendrait-il ?
Dans le fait, la néo-avant-garde des années 50-70 du XXe siècle imite
une geste qui a cessé d'être en phase avec les tendances nouvellement ap-
parues dans les sociétés. Elle n'a plus en face d'elle – contre elle – une socié-
té qui l'empêche, fait barrage à ses mouvements ; à l'inverse, celle-ci s'est
encore libéralisée, elle a établi avec rang d'institution (payée de révérence

43
muséale et patrimoniale) les œuvres de ceux qui voulaient renverser l'art ins-
titution ; bref, non seulement, la société ne relève plus l'enchère de la provo-
cation, se rit en douce des défis qu'on croit lui lancer, mais se targue – ironie
suprême – d'accomplir le programme supposé des avant-gardes historiques
en rapprochant, autant que le marché le permet, l'art de la vie concrète. On
reconnaît là le déferlement irréversible des industries culturelles et de la mé-
diatisation, entraînant l'abolition de la frontière, à laquelle l'avant-garde avait
scrupuleusement veillé, entre le grand art (high art) et l’art populaire (low art).
Dans le duel greenbergien33 entre l'avant-garde et le kitsch, c'est le second
qui l'emporte : triomphe de la mauvaise copie sur l'original, du convenu sur
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le trouvé, des sosies sur l'unique. « Dans la société du capitalisme avancé,


note Bürger, les visées des mouvements historiques d'avant-garde trouvent
leur réalisation en se changeant en leur contraire 34». Une des contradictions
de l'avant-garde historique était le contraste entre l'élitisme aristocratique de
l'art comme forme intransigeante et le désir « politique » de son extension à
la masse – dilemme resté alors à l'état de tension. Le capitalisme avancé (ou
tardif, comme dit Fredric Jameson35) a converti en logique culturelle cette
tension irrésolue qui fait, je le veux bien, l'amère victoire des précurseurs36, la
défaite dans la victoire (ou l'inverse aussi bien) des avant-gardes historiques.
La contradiction est devenue conciliation37, comme le kitsch, censément au
second degré, passe pour tendance ; comme le sérieux s'est dissipé dans le
jeu, l'ironie dans le pastiche, la quête de l'art pur en extension maximale du
domaine des « arts  38» à condition qu'ils se séparent de la beauté et laissent
l'esthétique vivre sa propre carrière en suspension dans l'air ambiant. Tout
adornien conséquent (et Peter Bürger se range dans cette cohorte) tient que
le postmodernisme a accompli, de facto, le rêve avant-gardiste, mais la réalité
par laquelle il l'a remplacé ressemble à une farce de potache que la « sorcel-
lerie capitaliste 39» a vite adoubée. En tarissant la source historiciste (donc en
prétendant avoir agi au-delà de toute espérance), le postmodernisme a ou-
vert, selon Jameson, une crise de l'historicité ; il a sanctifié le présent, mais un
présent instable et perpétuellement mouvant, aléatoire, qui n'a qu'un carac-
tère invariant – tuer dans l'œuf la mémoire et boucher la fenêtre de l'avenir. Un
jour, pourtant, de cette bonace « présentiste 40» – il faudra bien écrire l'histoire.

Michel Guérin, 19 septembre 2017

44
Notes
1
J’utilise la traduction anglaise de 9
Peter Bürger, Théorie de l'avant-
l’ouvrage de Renato Poggioli, The Theorie garde [Francfort sur le Main, 1974],
of the Avant-garde, Harvard University traduit de l'allemand par Jean-Pierre
Press, Cambridge, Massachusetts and Cometti, Questions théoriques, 2013, p.
London, 1968. Ici, p. 14. 122. D'inspiration marxiste, l'ouvrage,
tardivement disponible en français, ne
2
Arthur Rimbaud, œuvres complètes,
mentionne pas – chose étrange – le livre
Bibliothèque de la Pléiade, p. 251. Texte
de Renato Poggioli, traduit en anglais
cite par Renato Poggioli, op. cit., p. 68.
seulement quelques années auparavant.
3
Poggioli parle de « la prédilection des 10
Grenzen der Menschheit est justement
Français pour les métaphores militaires »
le titre d'un poème, qui affirme cette
(p. 10) : héritage symbolique peut-être
sentence-clef : « Denn mit Göttern/Soll sich
– c'est moi qui extrapole – de la geste
nicht messen/Irgendein Mensch » (Car il
napoléonienne, de cette grande Action
ne convient pas qu'avec les dieux aucun
(épique) que, de Victor Hugo à Musset,
homme se mesure), Goethe, Gedichte,
Vigny ou Nerval, sans oublier Balzac et

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Epen, Reflexionen, in Werke 1, Der Tempel
Stendhal, les romantiques n'ont eu de
Verlag, Berlin et Darmstadt, 1962, p. 240.
cesse de transposer et de distiller. Voir
mon livre, La Grande Dispute (Essai sur 11
Ibid., Römische Elegien, VII, p. 388. Pour
l'ambition, Stendhal et le dix-neuvième être exact, c'est, dans le poème, la lune
siècle), Actes Sud, Arles, 2006. qui luit (leuchtet) pour l’auteur heller als
nordischer Tag.
4
Une note d'Antoine Adam, éditeur
d'Arthur Rimbaud dans l'édition de la 12
Impossible de ne pas renvoyer au
Pléiade (p. 1076), indique qu'une revue classique d'Albert Béguin, L'Âme
progressiste, Le Mouvement, avait publié romantique et le rêve, José Corti, Paris,
un article en 1862 d'un certain Henri de 1939.
Cleuziou qui écrivait littéralement : « Le 13
Peter Bürger, Théorie de l'avant-garde, p.
vrai poète est un voyant ». Lui-même
82. « Les mouvements européens d'avant-
ne revendiquait pas cette découverte,
garde peuvent être considérés comme
expliquant au contraire qu'il s'agissait
une attaque menée contre le statut de
d'une conception fondamentale du
l'art dans la société bourgeoise, (…) contre
romantisme allemand. Par exemple, selon
l'institution art en tant qu'institution
Novalis, la poésie est dite « Erkenntnis des
séparée de la vie pratique des hommes ».
Grundes », c'est-à-dire connaissance du
plus fondamental. 14
Ibid., p. 133.
5
Stendhal, Racine et Shakespeare, Garnier 15
Jackie Pigeaud, L’Art et le vivant, op. cit.,
Flammarion, Paris, 1970, I, 3, p. 74. Sur la p. 309.
relation entre romantisme et modernité,
Anja Ernst/Paul Geyer (sld), Die Romantik :
16
De cette posture procède l'assomption
ein Gründungsmythos der Europäischen par Rimbaud du « dérèglement de tous
Moderne, Bonn University Press, 2010. les sens » comme instrument d'une poésie
heuristique.
6
Pensons au symbolisme et à son organe,
le Mercure de France.
17
On sait l'importance pour Goethe de
la dichotomie symbole/allégorie et la
7
Aphorisme I, 1 d’Hippocrate, voir Jackie disqualification de celle-ci en raison de
Pigeaud, L’Art et le vivant, Gallimard, Paris, l'arbitraire du lien entre le particulier et
1995, p. 35. l'universel. Ce qui caractérise au contraire
le symbole, c'est la compénétratrion
8
The Theory of the Avant-garde, op. cit.,
du particulier et de l'universel. Goethe,
p. 20.

45
Gedichte…, Werke 1, op. cit., p. 1191. Ces 29
Sur l'expérimentation propre à l'avant-
passages des Maximes et réflexions sont garde, voir Poggioli, op. cit., p. 136-
traduits par Jean-Marie Schaeffer : voir 138. L'auteur souligne que le nom
Goethe, Écrits sur l'art, GF Flammarion, Paris programmatique des mouvements
1996, particulièrement p. 105 et p. 310. (impressionnisme, cubisme, abstraction,
divisionnisme, futurisme, expressionnisme,
18
Walter Benjamin, Eduard Fuchs…,
constructivisme) indique assez, non
Gesammelte Schriften, Suhrkamp, Francfort
seulement qu'on a affaire à une
sur le Main, 1977, II, 2, p. 477. « Es ist
expérimentation à l'intérieur d'une
niemals ein Dokument der Kultur, ohne
discipline artistique donnée, mais encore
zugleich ein solches der Barbarei zu sein »
par l'appel à des facteurs extrinsèques à cet
19
Walter Benjamin, Erfahrung und Armut art (par exemple, le surréalisme n'entend
[Expérience et pauvreté], G. S., II, 1, p. 214. pas seulement modifier la poésie, il entend
bien changer la vie et agrandir l'âme
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

Ma traduction.
humaine). Pensons encore à Apollinaire
20
Cité dans La Pensée de midi n°2 qui, dans ses Peintres cubistes [1909]
(« Créations – La traversée des frontières »), subordonne les découvertes du nouvel
Actes Sud, 2000, p. 43. art pictural à l'invention, capitale pour
Renato Poggioli, The Theory of the Avant-
21 comprendre la place de l'homme dans
Garde, op. cit., p. 66. l'univers, d'une quatrième dimension, quête
qui est commune aux poètes, artistes et
Georges Bataille, L'Expérience intérieure,
22
aux hommes de science. L'art devient un
Gallimard, Paris, 1943. instrument heuristique pour requalifier la
pensée et le vécu de l'humanité, parvenue à
23
Charles Baudelaire, « Le Peintre de la
un stade des sciences et des techniques qui
vie moderne », dans Critique d’art, Folio,
lui autorise pareille audace.
Paris, 1992. Citons encore ces célèbres
propositions : « La modernité, c'est le 30
Arthur Rimbaud encore et de la manière
transitoire, le fugitif, le contingent, la moitié la plus nette : « Maintenant je sais que l'art
de l'art, dont l'autre moitié est l'éternel et est une sottise ».
l'immuable », p. 355.
31
La Révolution Française (« la Grande
24
Pour reprendre, non sans précaution ni Révolution ») appartient certes, stricto
réserves, le terme forgé par Herzen. sensu, au XVIIIe siècle, mais elle inaugure
véritablement le XIXe et fournit le modèle
25
Suzi Gablik, Has Modernism failed ?,
des révolutions qui en seront les répliques,
Thames and Hudson, Londres 1984, p. 13.
jusqu'à la révolution bolchevique de 1917.
« The legacy of modernism is that the artist
stands alone. He has lost his shadow. As 32
Peter Bürger, Théorie de l'avant-garde,
his art can find no direction from society, op. cit., p. 86.
it must invent its own destiny ». « L'avant-
garde, écrivait Poggioli, est originellement
33
Je fais allusion, bien sûr, à l'article de
un fait de culture individuelle », The 1939 « Avant-garde et kitsch », dont la
Theory…, op. cit., p. 93. traduction française se trouve dans le
recueil : Clement Greenberg, Art et culture,
26
Voir Michel Guérin, Nihilisme et Macula, Paris, 1988.
modernité, Jacqueline Chambon, Nîmes,
2003.
34
Peter Bürger, Théorie de l'avant-garde,
op. cit., p. 90.
27
Marcel Duchamp, Duchamp du signe,
Écrits réunis et présentés par M. Sanouillet,
35
Fredric Jameson, Le Postmodernisme ou
Champs Flammarion, Paris, [1975] 1994, la logique culturelle du capitalisme tardif,
p. 171. Beaux Arts de Paris, 2007 [Duke University
Press 1991]
28
Michel Guérin, Marcel Duchamp, portrait
de l’anartiste, Champ social/Lucie Éditions,
Nîmes, 2008.

46
36
Perry Anderson, Les origines de la
postmodernité [Londres, 1998], Les
Prairies ordinaires, Paris, 2010. À l'opposé
de « la baisse de niveau caractéristique
du postmoderne », « la culture du
modernisme, issue d'exilés isolés, de
minorités rebelles, d'avant-gardes
intransigeantes, était inéluctablement
élitiste. En tant qu'art coulé dans un
moule héroïque, il était constitutivement
oppositionnel : non seulement il bafouait
les conventions du goût, mais surtout il
défiait les sollicitations du marché », p. 89.
37
Suzi Gablik, Has modernism failed ?
« Negativity and opposition have been
transformed into acceptance and
collusion », op. cit., p. 57.

M I C H E L G U É R I N | L’AG O N I S M E D E S AVA N T- G A R D E S H I STO R I Q U E


38
Ibid., op. cit., p. 35. « The danger is when
everything becomes art, art becomes
nothing ».
39
Philippe Pignarre, Isabelle Stengers, La
sorcellerie capitaliste, La Découverte, Paris,
2005.
40
François Hartog, Régimes d'historicité
(Présentisme et expériences du temps),
Éditions du Seuil, Paris, 2003.

47
Déficit de croyance et déni
de représentation ? Le moment
moderne de l’art révolutionnaire
Dirk Dehouck
Plasticien et philisophe; professeur en Écoles Supérieures
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

des Arts (ArBA-Esa, ARTS2) et assistant à l’ULB


[email protected]

Pode a conjugação da arte e do


activismo político ser superada
Les réflexions qui suivent prennent leur point de não só pela palavra "revolução",
départ dans la lecture de l’ouvrage récent de Jean- do seu conceito, das suas
lógicas, da sua obsessão,
Claude Milner, Relire la Révolution, dans la thèse qu’il
mas também da crença que
développe et le geste qui l’accompagne. De la thèse
determina? Gostaríamos de
et de son argumentation détaillée il sera toutefois
examinar aqui a hipótese de um
peu question. Seule l’interrogation qu’elle soulève défice da crença (revolucionária)
et les outils conceptuels qu’elle propose retiendront como um momento constituinte
mon attention. En ce qui concerne la thèse, elle tient, da modernidade e do nosso
pour la résumer aussi simplement que possible et presente.
pour m’en tenir à ce que je crois en être l’essentiel,
dans la double affirmation selon laquelle seule la
révolution française mérite (absolument) le nom de
« révolution » et que le temps est venu de fermer
définitivement le livre de la « croyance révolution-
naire » d’en interrompre le récit et d’en abandonner
la fiction mensongère1. Quant au geste qui accom-
pagne cette thèse, il consiste à libérer le réel du si-
gnifiant « révolution » de l’imaginaire qui le voile et à
restituer les dites révolutions majeures enregistrées
par l’histoire moderne (principalement ici, la révolu-
tion française de 1789, la révolution soviétique de
1917 et la révolution culturelle chinoise de 1966) à
leur diversité irréductible, à ne plus les soumettre à
la logique d’une représentation (historique) unique
régie par un unique point de fuite.
A tout prendre, ces termes (« modernité », « ré-
volution », « croyance », « art » et « politique ») sont

48
étroitement liés les uns aux autres et c’est à leurs articulations conceptuelles
et historiquement déterminées qu’il faut se mesurer si l’on veut poser la ques-
tion d’un activisme politique et de son rapport à l’art aujourd’hui. A quelles
conditions un art sera-t-il (encore dit) révolutionnaire ou engagé ? Dans cette
parenthèse du « dire » vient se loger une double question. Celle d’une dé-
sarticulation de la croyance et du langage qui la supporte (la croyance ou
une croyance peut-elle d’ailleurs se passer du langage ? et qu’en est-il de la
croyance dans le langage et en sa force ?), et celle des gestes, des actions et
des formes plastiques et artistiques que ce même langage parvient à saisir,
nommer ou qualifier. Pour le dire de façon brève et provisoire, la question que
je voudrais examiner ici est celle de savoir si le couplage art et activisme po-
litique peut s’affranchir non seulement du mot « révolution », de son concept,
de ses logiques, de sa hantise, mais également de la croyance qu’il détermine.

DIRK DEHOUCK | DÉFICIT DE CROYANCE ET DÉNI DE REPRÉSENTATION ?


J’emprunte à ce titre à Jean-Claude Milner la formulation d’une question dont
la portée excède le cadre des analyses qui la justifient : « La révolution sub-
siste-t-elle hors de la croyance2 ? »

Le dispositif de la croyance révolutionnaire


Quelques précisions sont ici nécessaires pour entrevoir la portée d’une
telle question et ses implications pour penser l’art. Pour cela, je retiendrai es-
sentiellement du livre de Milner trois points qui sous-tendent cette première
question. Tout d’abord le constat que dresse objectivement Milner, précédé
en cela par Foucault qui en énonçait la formule dès 1978, et selon lequel le
signifiant de « révolution » a organisé, pendant plus de deux siècles, les repré-
sentations (politiques) de l’occident et qu’il en satura l’horizon3. Ensuite, l’af-
firmation selon laquelle la croyance révolutionnaire est née d’abord comme
croyance en la révolution française avant de trouver, sous la plume de Marx,
son langage et sa théorie et qu’elle devienne par là « croyance moderne » opé-
rant un renversement de son orientation. Si la révolution française voulait ré-
tablir un ordre naturel dans la société que le progrès des arts et des sciences
avait bouleversé, avec Marx, la révolution s’inscrit résolument du côté de la
modernité et du progrès. Enfin, l’hypothèse selon laquelle cette croyance (mo-
derne) révolutionnaire aujourd’hui s’épuise et décline, qu’elle est en passe de
s’éteindre absolument, tout comme son nom serait voué à disparaître.
Ces trois points soulèvent aussitôt au moins deux ordres de questions
qui appelleraient des développements bien plus conséquents. D’une part, à
supposer que la « révolution » ait bien organisé les représentations politiques
pendant plus de deux siècles, il est légitime de se demander ce qui vient oc-
cuper aujourd’hui cette place – sauf à penser que cette place est aujourd’hui
vacante ? A l’aune de quel horizon l’activisme politique (s’il en est) est-il en-
visagé ? D’autre part, à supposer que la croyance révolutionnaire décline au
point de perdre jusqu’à son langage, qu’en est-il de la croyance moderne et
de son découplage avec la première ? La question peut être formulée encore

49
autrement. Qu’en est-il en définitive d’une croyance révolutionnaire qui, tour-
nant le dos à la modernité, à sa rationalité et sa sensibilité, renouerait avec
une forme de romantisme et un refus de l’irréversibilité technique ? Opposer
le romantisme à la modernité et assimiler celle-ci à la conviction que la force
motrice de l’histoire réside dans le progrès technique n’a rien d’évident. La
croyance révolutionnaire est peut-être indissociable des oppositions entre
l’ancien et le moderne, entre la nature et le progrès technique, entre l’appro-
priation et l’aliénation (dépropriation). Le tout est d’en détailler les articulations.
Commençons donc par la « croyance révolutionnaire » telle que Jean-
Claude Milner en résume le dispositif4. Celui-ci repose principalement sur la
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

distinction entre « Idéal de la Révolution » et « révolutions idéales ». La révo-


lution est indissociable de la façon dont les acteurs d’une révolution se re-
présentent à eux-mêmes leurs propres actions en fonction d’un Idéal – l’Idéal
de la Révolution – sur lequel se règlent en définitive chaque révolution idéale
(considérée comme telle). La croyance révolutionnaire peut dès lors se dé-
finir comme un va-et-vient entre ces deux référents. Elle consiste à mesurer
une séquence de l’histoire à l’Idéal de la Révolution pour en reconnaître les
traits marquants5 et, en retour, à organiser en une représentation consistante
et unifiée les séquences disparates de l’histoire.
Dans ce dispositif, l’Idéal de la Révolution, occupe une fonction que l’ana-
logie avec le vocabulaire de la peinture permet de préciser. C’est à ce titre
que la question de la croyance est indissociable de celle de la représentation.
Cela suppose toutefois de souscrire à l’affirmation qui sous-tend l’ouverture
de Les mots et les choses dans laquelle Foucault décrit longuement le tableau
des Ménines. « Il faut, écrit Milner, y restituer une affirmation ; le texte donne à
entendre qu’un dispositif discursif, quel qu’il soit, détermine un tableau pos-
sible et qu’un tableau donné met en image un dispositif discursif.6 » Affirmer
que l’Idéal de la Révolution a organisé l’imaginaire politique et l’histoire de
l’Europe au XIXème et une partie du XXème siècle, c’est reconnaître à ce-
lui-ci la fonction du point de fuite dans une représentation (de l’histoire) qui
se donne comme un tableau perspectif. L’analogie est instructive dans la me-
sure où elle assigne à l’Idéal de la Révolution une fonction unificatrice visant
à organiser les révolutions idéales tout en excluant cet Idéal de toute forme
de représentation. Le point de fuite, comme l’Idéal, échappe à la représenta-
tion tout en s’y inscrivant7.
Mais l’analogie force aussi la question. Qu’advient-il de la représentation (de
l’histoire) lorsqu’elle n’est plus soumise à l’organisation d’un tel point-Idéal ? Si,
comme l’affirme Milner, l’Idéal de la révolution « n’impose plus sa structure de
point de fuite aux perspectives discursives ; la perspective elle-même n’a plus
lieu de régner sur les tableaux et les récits8 », qu’advient-il alors du sens et de la
fonction que revête le nom de révolution ? Qu’advient-il, réciproquement, du
sujet (de l’histoire) comme effet d’un tel dispositif perspectiviste9 ? Qu’en est-
il du sujet de la révolution, en d’autres termes, du sujet (dit) révolutionnaire ?

50
Il faut ici distinguer, avec Milner, deux sens du mot. En tant qu’elle per-
met d’accéder au plus près du réel du nom de « révolution » (c’est la thèse
de Milner), la révolution française opèrerait une coupure avec sa signification
usuelle pour la pensée politique et les représentations communes antérieures.
La notion de révolution est transformée dans le mouvement même de la ré-
volution française de sorte que sa signification nouvelle fondera la croyance
révolutionnaire. Deux modèles se laissent donc dégager. Pour le premier,
l’œuvre de Polybe sert ici de référence. La révolution y est conçue comme
une phase de transition instable entre deux régimes politiques stables10. Elle
est envisagée comme négativité, coupure et devant tendre au plus vite vers
son achèvement. C’est avec ce modèle que rompt la croyance révolutionnaire
à partir d’un renversement complet du terme sous l’impulsion de Saint-Just.
Le nouveau modèle qui commence alors à s’imposer envisage la révolution

DIRK DEHOUCK | DÉFICIT DE CROYANCE ET DÉNI DE REPRÉSENTATION ?


comme une forme politique en soi et devant s’installer dans la durée. En ce
sens, « révolutionnaire » ne qualifie plus une opération, au sens d’une conduite
ou d’un énoncé, qui contribue à l’achèvement de la révolution comme transi-
tion, mais, au contraire, tout ce qui en assure le prolongement, y compris sur
le mode d’une position subjective.

Croyance et modernité
Cette position peut se laisser qualifier du terme « d’ambition » dans la
mesure où cette passion de l’action, pour reprendre ici l’expression de Michel
Guérin, résume toute une strate de la sensibilité moderne et de la littérature
du XIXème siècle11. L’appel à la nature et au génie cède le pas à une méta-
physique de la volonté ou, pour le dire autrement, la figure du génie n’est
plus nature (comme chez Diderot et Kant), mais volonté (comme chez Balzac
ou Hugo). « La littérature, écrit Guérin, se réfléchit comme pouvoir. Ecrire est
agir12. » Pour un auteur comme Balzac il s’agira en effet d’achever l’œuvre de
Napoléon (incarnation même de l’ambition) par d’autres moyens, de sorte que
l’art romantique se laisse partiellement définir par cette confiance en sa mission
et sa puissance. Traduisant l’acte en verbe, la littérature du début du XIXème
écrit Guérin, « pouvait se pénétrer de la certitude qu’elle était elle-même ac-
tion et que les pouvoirs constitués, désormais vides d’inspiration politique,
n’étaient pas de force contre cette nouvelle puissance.13 »
La modernité ne peut toutefois se laisser réduire à cette seule « passion
du siècle », l’ambition. Le tableau doit être complété si l’on suit ici l’hypothèse
avancée par Michel Guérin dans cet essai sur la sensibilité des époques mo-
dernes. En se donnant pour tâche de comprendre comment, en quelques
décennies, les modernités, sous le coup de l’historicité, ont été conduites à
abandonner un socle de croyances métaphysiques et esthétiques, désormais
impossibles à « tenir »14, Guérin suggère en effet un découpage dont je retien-
drai ici trois moments dans la mesure où ils permettent de préciser la nature
du couplage entre croyance et modernité.

51
Le premier moment prend son ancrage dans la Révolution française. Là
aussi un constat s’impose. Je cite ici Guérin : « Il ne fait aucun doute que l’évé-
nement terrible, durablement mythique, qui a tendu êtres et choses, c’est la
Révolution française. Il y aura désormais l’avant et l’après. Récurremment, le
rappel de l’Ancien régime est vécu par certains comme nostalgie d’un naturel
perdu15 », l’histoire ayant infligé « à l’ordre des choses le trauma de l’artifice ».
Premier moment donc, la Nature a fait place à l’Histoire. Ce que résume la for-
mule « l’Etre se livre désormais comme Histoire16 ».
Dans cette fresque de la sensibilité moderne, le nom de Baudelaire fait
office de rupture et résume à lui seul le second moment où se dégage la pre-
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

mière modernité (véritablement) moderne. Résumons. Pour l’essentiel, Guérin


affirme que la coupure tient dans un « redoublement du deuil ». Baudelaire
« est dessaisi et du havre de la Nature et de la perspective de l’Histoire ». La
conséquence d’une telle débâcle se traduit par un renversement où « l’art de
l’ambition se retourne en ambition d’art ». Or, ce retournement s’accompagne
d’un déficit de croyance. Je cite cette phrase décisive : « La modernité com-
mence précisément là où le désir est laissé sans croyance. Il est renvoyé de son
propre vide au « réel en soi » ». La modernité baudelairienne s’accompagne
d’un affaiblissement du temps de l’action, c’est-à-dire du « temps comme foi
profane ». Avec Baudelaire, l’ambition est ainsi ramenée à « la passion à l’état
simple », passion pour l’âpreté du présent dans sa réalité nue. Je résumerai
donc la thèse de Guérin de la façon suivante : c’est sous le signe d’une « éthique
du présent » que l’affaiblissement de la croyance se laisse positivement quali-
fier. Il se dégage de cette interprétation que la modernité est, en son moment
constitutif – c’est-à-dire baudelairien –, découplée de la croyance.
Le troisième moment est marqué par la différence entre « modernité » et
« moderne ». Manet constitue ici le point de repère17. Suivant Guérin, la mo-
dernité baudelairienne se définit encore et négativement par rapport à cette
nature qui ne sait plus se faire aimer. Baudelaire est en ce sens (un) réactif.
« La « diabolisation » de la Nature (le grec diaballein signifie : diviser, désunir,
séparer) apparaît comme le moment indispensable, alors même qu’il reste
profondément affecté par ce qu’il dénie, vers l’indifférence qui sera celle
de Manet18 ». Plus qu’un tableau, c’est un triptyque qui se dégage de ce qui
s’apparente ici à un mouvement dialectique (ambition, diabolisation, indiffé-
rence) de la passion. Positivement, ce troisième moment est définit par trois
découplages que résume la formule de Guérin : « énoncer sans représenter,
saisir sans enfermer, témoigner sans démontrer19 ».
La peinture (entendons moderne) ne se donnerait plus pour tâche pre-
mière de représenter un réel (pour en dire quelque chose) en fonction d’une
contrainte qui lui vient d’ailleurs, mais, pour reprendre l’expression de Guérin,
de « se tenir au fait de l’énoncé comme tel, en tant qu’il ne représente rien
au-delà20 ». Cette réduction repose en réalité sur un double découplage. Non
seulement la représentation est découplée de l’exigence de vérité pour être

52
connectée à la vie (glissement d’une métaphysique de la représentation et de
la nature vers une ontologie du monde), mais l’art est simultanément décou-
plé de la logique de la reproduction et de l’imitation au profit d’un principe
de révélation du monde. Ce modernisme-là échapperait donc à l’alternative
du vide maniaque d’une picturalité pure et à l’inféodation à des causes ex-
tra-artistiques qui requièrent la visibilité du message. Ce que nous pourrions
reformuler comme l’ouverture d’une troisième voie entre le primat du conte-
nu et la simple négation de la forme, de la profondeur – et de la figuration.
Je n’ignore pas les objections que l’on pourrait adresser à cette interpré-
tation de la « modernité ». L’une d’elles – c’est la thèse de Jacques Rancière
– affirme que la notion de « modernité » occulte ce qu’il appelle le régime es-
thétique des arts au profit d’une coupure entre ancien et moderne, représenta-
tion et anti-représentation21. La modernité, selon Rancière, recouvre en réalité

DIRK DEHOUCK | DÉFICIT DE CROYANCE ET DÉNI DE REPRÉSENTATION ?


deux logiques contradictoires. L’une fait de l’art une forme de vie autonome
et l’autre envisage l’art comme un moment dans le processus d’autofondation
de la vie. Rancière a proposé d’appeler « modernitarisme » l’identification des
formes de l’art avec la tâche de l’accomplissement du destin de la modernité.
Mais la notion de régime esthétique des arts qu’il prétend opposer à celle de
modernité n’est pas étrangère à l’idée de révolution, bien au contraire. C’est
peut-être même dans le couplage de la révolution et de ce moment de l’in-
différence que Rancière entend maintenir l’effectivité de la « révolution esthé-
tique ». En effet, comme il s’est employé à le montrer, la révolution politique
chez Marx, de même que chez Schiller, passe par une révolution esthétique
des facultés humaines de sentir et de percevoir22. La révolution propre au ré-
gime esthétique des arts est ainsi caractérisée par un régime spécifique de
l’expérience sensible et par le brouillage des séparations entre des manières
de sentir relatives à des objets perçus. En cela, ce régime procède d’une re-
configuration du partage du sensible. Or, ce « sensorium spécifique » au régime
esthétique des arts repose sur un retrait de la volonté et une libre indifférence.
Rancière l’écrit explicitement lorsqu’il se réfère à la description de la Junon
Ludovisi à laquelle procède Schiller dans ces Lettres sur l’éducation esthétique
de l’homme23. Je cite ici le commentaire qu’en fait Rancière : « Ce que la « libre
apparence » de la statue grecque manifeste, c’est la caractéristique essentielle
de la divinité, son « oisiveté » ou « indifférence ». Le propre de la divinité est
de ne rien vouloir, d’être libérée du souci de se proposer des fins et d’avoir à
les réaliser. Et la statue tient sa spécificité artistique de sa participation à cette
oisiveté, à cette absence de volonté24 » qui rejaillit sur le spectateur dans le
libre « jeu » et la « suspension » de l’exercice ordinaire de ses facultés. La « libre
apparence » et la « suspension » fondent ainsi une « politique » du régime es-
thétique des arts parce qu’elles sont « la réfutation sensible de cette opposi-
tion de la forme intelligente et de la matière sensible25 », de la supériorité de
la première sur la seconde. Comme l’écrit Rancière, Schiller traduit les proposi-
tions philosophiques de Kant dans un langage anthropologique et politique et

53
instruit l’analogie qui voit dans le pouvoir de la forme sur la matière le pouvoir
de l’Etat sur les masses. La révolution esthétique telle que l’envisage Schiller
s’entend donc comme une réponse à la faillite de la Révolution française. « La
suspension esthétique de la suprématie de la forme sur la matière et de l’ac-
tivité sur la passivité se donne alors comme le principe d’une révolution plus
profonde, une révolution de l’existence sensible elle-même et non plus seu-
lement des formes de l’Etat26 ».
La thèse de Rancière consiste dès lors à renvoyer dos à dos les deux lo-
giques contradictoires évoqués plus haut comme la tension irréductible au
régime esthétique des arts et à sa « révolution ». Lorsqu’il analyse les transfor-
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

mations de l’art critique au XXème siècle et les apories des deux paradigmes
qui se sont revendiqués de l’une ou de l’autre de ces deux logiques qu’il ap-
pelle métapolitiques (soit l’art fait de la politique en se supprimant comme
art – la forme devient action – soit il fait de la politique en n’en faisant pas du
tout – la forme oppose sa résistance à l’action), Rancière se réfère au brouil-
lage spécifique au régime esthétique des arts — où « les produits de l’art ne
cessent de passer dans le domaine de la marchandise et inversement les mar-
chandises et les biens d’usage ne cessent de passer la frontière dans l’autre
sens27 » — pour diagnostiquer l’émergence d’une troisième voie, celle d’une
micropolitique de l’art où le double schème du dépassement (de l’art) et de
la résistance (de l’art) ainsi que celui que la distinction des moyens et des fins
fait place, aujourd’hui, à « ce mode de voisinage indécis entre le militantisme
politique, l’attention aux transformations des formes de vie et un monde de
l’art qui est marqué par le croisement des types d’expression et le montage de
leurs éléments plus que par des dynamiques propres aux arts constitués28 ».
A tous égards, les pratiques dans lesquelles Rancière perçoit la façon dont
se poursuit aujourd’hui la révolution esthétique se marquent davantage par
ce moment de « l’indifférence » et de la suspension que par des formes de la
croyance qui, fut-ce sur le mode ludique ou parodique, renoueraient avec la
passion de l’ambition.

Révolutionnaire sans croyance ?


Risquons une hypothèse toute provisoire en reprenant à présent la ques-
tion du sujet révolutionnaire. S’il y a lieu de parler d’une croyance révolution-
naire, force est de constater qu’elle a trouvé dans la foulée de la Révolution
française une première expression sous le signe de « l’ambition » fondée à
poursuivre par d’autres moyens, ceux de la littérature, ce que l’action politique
n’a pu apporter29. Sur ce point, il faudrait préciser. En Allemagne, c’est sur le
plan philosophique que s’approfondit une pensée de l’être comme vouloir
alors qu’en France, l’élan politique et la croyance qui l’accompagne se pour-
suivent, après la Révolution française, sur le plan poétique et artistique. Cette
orientation justifiera par la suite les critiques adressées au principe de l’art
pour l’art, par un auteur comme Sartre notamment. Dans un article de 1962

54
consacré précisément aux apories de la littérature engagée, Adorno remarque
que c’est en raison de la prégnance de ce principe en France que la référence
à l’existence et à l’engagement avait un « ton révolutionnaire », alors qu’en
Allemagne, au contraire, selon une tradition latente que Adorno fait remonter
jusqu’à l’idéalisme allemand, l’absence de finalité de l’art devait paraître sus-
pect. Selon cette tradition, écrit Adorno, l’œuvre d’art « ne doit rien être pour
soi, parce que, sinon […], elle entraînerait un relâchement des mœurs et dé-
tournerait de l’action pour l’action30 ».
Un tel déplacement qui, pour le dire en ces termes, devait conduire à
poursuivre par les moyens de l’art la réalisation d’un Idéal politique devait-il
se traduire (d’abord) par un déficit de croyance ? L’interprétation que propose
Michel Guérin de la « modernité » tend à créditer cette hypothèse. Aussi, « loin
que la conscience moderne se soit aussitôt entichée du Progrès, elle a plu-

DIRK DEHOUCK | DÉFICIT DE CROYANCE ET DÉNI DE REPRÉSENTATION ?


tôt remâché le leitmotiv d’une décadence31 ». On serait alors autorisé à dire,
au sujet de Baudelaire, qu’il répond au qualificatif de « révolutionnaire sans
croyance », à condition toutefois de l’entendre au sens polybien du terme, c’est-
à-dire comme ce qui est dit de ce qui, dans l’instabilité et le déchirement, opère
une transition. En cela, on ne s’écarterait pas de la thèse de Guérin selon qui
« la modernité baudelairienne est à tous égards intermédiaire32 » et fait fond
sur une figure de l’artiste-témoin. Un témoin toutefois étrange si l’on tient la
distinction entre attestation et protestation que propose Guérin. Dans le pre-
mier cas, le témoin entend représenter l’être dans et par la parole et se donne
pour tâche de faire correspondre sa parole à ce qui est. Dans le second, il ne
s’autorise d’aucune référence, l’absence de l’être motivant ici le témoignage.
Adorno n’est pas loin de caractériser Baudelaire dans des termes simi-
laires lorsqu’il écrit, dans la Théorie esthétique, que « Baudelaire ne vitupère
pas contre la réification [engendrée par le capitalisme montant et la marchan-
dise], il ne la reproduit pas non plus ; il proteste contre elle dans l’expérience
de ses archétypes, et le médium de cette expérience est la forme poétique33. »
Mais c’est sans doute à l’interprétation de Benjamin qu’il faudrait se me-
surer ici et à la portée théorique de son geste. Quel est-il ? Je dirais qu’il aura
consisté à faire rejaillir l’interrogation quant à la possibilité d’une telle figure
du « révolutionnaire sans croyance » comme image dialectique. On en trouve
explicitement la formulation dans l’un des fragments sur Baudelaire : « L’image
dialectique est une image qui fulgure. Il faut donc conserver l’image du passé,
dans le cas présent celle de Baudelaire, comme une image qui fulgure dans
l’instant actuel, dans le « maintenant » de la possibilité de la connaissance34 ».
On notera que cette image n’est pas étrangère à celle du conspirateur.
Les premières et les dernières pages du texte sur « Le Paris du second Empire
chez Baudelaire » établissent explicitement la physionomie conspiratrice de
Baudelaire. Benjamin entame son texte par la longue description que Marx
consacre aux conspirateurs de profession pour qui la seule condition de la révo-
lution est « l’organisation suffisante de leur conspiration » justifiant l’engouement

55
pour toutes les inventions qui permettent de réaliser « des miracles révolution-
naires ; les bombes incendiaires, les machines infernales à effet magique, les
émeutes qui doivent avoir des conséquences d’autant plus surprenantes et
miraculeuses que leur fondement est moins rationnel » et un mépris à l’égard
de tout ce qui peut contribuer à « faire prendre conscience aux travailleurs
de leurs intérêts de classe35. » A l’autre bout du texte, Benjamin avance que
Baudelaire a cherché à retrouver l’image du héros moderne dans la figure du
conspirateur, partageant avec le révolutionnaire Auguste Blanqui la force de
l’indignation et la technique du putsch qu’il sut transposer et maintenir dans le
langage poétique. C’est donc au regard de l’image de Blanqui que l’image de
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

Baudelaire – que le projet théorique de Benjamin ravive – est mise au point36.


Benjamin reprend la métaphore de la conspiration pour caractériser la
façon dont Baudelaire joue avec les mots : « les mots ont leurs places exacte-
ment définis comme des conspirateurs avant que n’éclate la révolte37 ». Mais
la métaphore qui sert à qualifier l’agencement poétique des mots va plus loin
lorsqu’elle s’attache à expliciter l’image de la création poétique chez Baudelaire
lui-même. Dans les réflexions qu’il consacre « Sur quelques thèmes baudelai-
riens », Benjamin analyse le thème de la foule dans la littérature du XIXème et
chez Baudelaire en particulier. Loin de constituer un objet qu’il dépeint dans
ses poèmes, c’est l’expérience vécue de la foule qui, selon Benjamin, éclaire
l’image de la création poétique telle que Baudelaire se l’est représentée à lui-
même. C’est dans la figure de l’escrimeur que le processus de création trouve
à s’incarner comme dans le poème « Le soleil ». Je cite Benjamin :

« Cette foule, dont Baudelaire n’oublie jamais la présence, n’a servi de mo-
dèle à aucune de ses œuvres. Mais elle a laissé sa marque secrète sur toute
sa création, et c’est elle qu’on aperçoit aussi en filigrane dans le fragment
cité plus haut38. Elle éclaire l’image de l’escrimeur ; les coups qu’il assène
sont destinés à lui frayer la voie parmi la foule. Sans doute est-ce à travers
des faubourgs vides que s’avance le poète du « Soleil ». Mais la secrète
constellation (en qui la beauté de la strophe devient jusqu’à son fond trans-
parente) doit s’entendre ainsi : en luttant contre la foule spirituelle des mots,
des fragments, des débuts de vers, le poète, à travers les rues désertées,
gagne à la pointe de l’épée son butin poétique39. »

L’importance que prend l’expérience de la foule, son émergence en tant


que sujet romanesque, poétique, littéraire, historique et théorique marque
plus largement l’imaginaire politique de l’époque. Sur ce point encore, l’op-
position que Benjamin construit entre Baudelaire et Victor Hugo – comme le
poète qui se retranche de la foule et du peuple et celui qui, au contraire, s’y
reconnaît et s’y mêle – est instructive. Elle permet en effet de dégager sché-
matiquement trois positions subjectives et critiques à l’égard du peuple et
de la foule comme « sujet révolutionnaire ». Chez Hugo, la foule est investie

56
et célébrée en héroïne d’une épopée moderne. La masse informe des pas-
sants de la grande ville est perçue comme la foule du peuple, de ses lecteurs
et de ses électeurs. A ce titre, « Hugo n’était pas un flâneur40 » écrit Benjamin.
Au contraire, comme citoyen, il entendait se mêler activement au peuple. La
figure du flâneur relève quant à elle d’une expérience de la distinction dans
l’ivresse que procure l’immersion dans la foule. Benjamin soutient qu’une telle
expérience fût rendue possible par l’existence des passages qui permettent
au flâneur de retrouver dans la ville des espaces libres et presque privés. De
plus, elle est conditionnée par les descriptions physiologiques des villes que
l’on trouve dans nombres d’écrits de l’époque et qui façonnent la fantasma-
gorie de la vie parisienne. Cependant – c’est la thèse de Benjamin – pas plus
que Hugo, Baudelaire ne s’est laissé enfermer dans cette figure du flâneur, ni
aveugler par la fascination qu’exerçait pourtant sur lui l’expérience de la foule.

DIRK DEHOUCK | DÉFICIT DE CROYANCE ET DÉNI DE REPRÉSENTATION ?


La foule – imaginairement dotée d’une âme – ne dissimule donc pas entiè-
rement aux yeux du poète la réalité sociale de la masse informe qui ne consti-
tue en rien une classe (sociale). Mais l’interprétation de Benjamin n’est pas aussi
clémente envers la lucidité de Baudelaire41. En effet, Benjamin soutient que
Baudelaire a pu opposer « un idéal aussi peu critique que la conception que
Hugo se faisait d’elle [la foule]42 ». Cet idéal est celui de la modernité même,
où le héros s’apparente au rebut – le chiffonnier, la prostituée, parfois même
le prolétaire comme autant de rôle et de place que le poète peut occuper43.
Même lorsqu’il aura «  perdu l’illusion d’une foule ayant en elle-même son mou-
vement et son âme, et dont se toquait le flâneur44 », il fera du retournement
contre cette foule évidée le ressort de son expérience poétique.
Pour terminer, je voudrais esquisser une réflexion que seule l’analogie avec
le dispositif perspectif rend peut-être possible. Serait-on autoriser à dire que
la « foule » – l’expérience de celle-ci par le poète, l’artiste – occupe la fonction
d’un point de fuite qui, tout en s’inscrivant dans son œuvre sans s’y laisser re-
présenter – en orienterait la logique ? Se faisant, elle déterminerait symétri-
quement – au titre du sujet qui lui fait pendant – cette place depuis laquelle
le poète se définit (comme héros) ainsi que l’image et la tâche qu’il s’assigne.
« En réalité, écrit Benjamin, cette image [celle de la vie de Baudelaire]
est déterminée par le fait que Baudelaire prit le premier conscience, et de la
façon la plus riche en conséquences, de ce que la bourgeoisie était sur le point
de retirer sa mission au poète. Quelle mission sociale pouvait la remplacer ?
Aucune classe sociale ne pouvait répondre45. » Peut-être cette absence de ré-
ponse est-elle la chance même d’un art où le révolutionnaire sans croyance
puisse trouver sa place.

57
Notes
1
Jean-Claude Milner, Relire la Révolution, traits communs déterminant une sorte de
Paris, Editions Verdier, 2016. Sur ces points, figure incarnée de l’Idéal de la Révolution,
voir pp. 65, 249 et 267-8. une morphologique unique. Je les
énumère ici à l’attention du lecteur, sans
2
Ibid., p. 23.
les commenter pour autant. Les conditions
3
Cf. Ibid., p. 11 et 13. Foucault écrit : auxquelles une séquence historique
« Depuis 1789, l’Europe a changé en doit répondre pour prétendre au titre de
fonction de l’idée de révolution. L’histoire révolution idéale sont les suivantes : 1.
européenne a été dominée par cette idée. Elle doit être explicitement nommée du
C’est exactement cette idée la qui est nom de « révolution » ; 2. Elle doit être
en train de disparaître en ce moment. » comparée aux révolutions antérieures et à
Michel Foucault, Dits et écrits, 1976-1979, défaut de s’y référer, se projeter dans un
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

tome III, p. 623. Sur le rapport de Foucault passé lointain ; 3. Le changement qu’elle
à la révolution, voir Sophie Wahnich, programme doit concerner les gouvernés
« Foucault saisi par la révolution », Vacarme, prioritairement, il doit être mené en leur
2014/3 (N°68), pp 138-151. DOI 10.3917/ nom ; 4. Simultanément, la révolution
vaca.068.0138. Sophie Wahnich observe doit éviter le double écueil du sacrifice
que « De ce fait, Foucault préfère parler et de l’égoïsme, c’est pourquoi elle finit
« d’insurrection » plutôt que de révolution toujours par être menée au nom de tous,
[…] » (p. 140), ce qui intéresse Foucault de l’humanité ; 5. Son échelle adéquate est
étant « plutôt une émotion : l’enthousiasme celle du groupe et non de l’individu, bien
activé par l’événement insurrectionnel » que l’exigence d’unité finisse toujours par
(p. 143). Selon Wahnich, c’est par le se traduire dans l’élection d’un chef et se
biais de cette notion qu’il est possible condenser en un nom propre (Robespierre,
d’interroger les révolutions « dans leur Lénine, Mao) ; 6. Le changement
capacité à ne pas incarner et donc figer révolutionnaire doit affecter tous les
l’insurrection politique » (p. 144). Sur ce aspects de l’existence, en ce sens il est
point, on lira également du même auteur illimité ; 7. Il doit dès lors nécessairement
La liberté ou la mort. Essai sur la Terreur et impliquer la question de l’Etat et en faire
le terrorisme, Paris, La Fabrique éditions, l’objet politique par excellence ; 8. Le
2003. En ce qui concerne la substitution changement vers l’Etat révolutionnaire doit
du mot insurrection au mot révolution faire de la superposition des gouvernés et
chez Foucault, Milner défend une lecture des gouvernants une exigence théorique
différente. Selon Milner, « ce n’est pas et promouvoir pratiquement les régimes
qu’il [Foucault] voulut abolir la croyance politiques qui y répondent le mieux
révolutionnaire. Au contraire, il voulait la (comme la république démocratique) ;
sauver à tout prix en la débarrassant de ses 9. Le recourt à la violence et à la force
anciens talismans » (Relire la Révolution, ouverte est incontournable et constitutif du
op. cit., p. 13). Foucault sauva la croyance moment insurrectionnelle que comporte
révolutionnaire « en l’épurant de la trace toute révolution.
la plus infime du signifiant révolution » 6
Milner, Relire la Révolution, op. cit., p. 26.
réduisant la première « à son noyau le
plus pur, la croyance comme telle, dont le 7
Dans un autre registre, Jacques Derrida
seul garant adéquat serait le non-sens », s’est attaché à analyser dans le discours
« l’abolition de quelque fragment de savoir des sciences humaines des années 50-60’,
que ce soit », justifiant l’attachement de sous l’effet d’un structuralisme dominant,
Foucault à l’enthousiasme des Iraniens. un décentrement du concept de structure.
Dans « La structure, le signe et le jeu
4
Je reprends ici les principaux éléments
dans le discours des sciences humaines »
avancés par Milner dans les pages, pp. 25
(1967), Derrida commençait en effet par
à 28.
rappeler que jusqu’à l’événement dont
5
Milner analyse sous le titre de « la geste ce texte entendait prendre la mesure,
révolutionnaire » un ensemble de neuf le jeu de la structure avait été neutralisé

58
par un geste qui consistait à lui conférer 16
Ibid., p. 40. Les citations et expressions
un centre dont la double fonction est qui suivent sont toutes tirées, dans l’ordre,
d’organiser un système et d’y limiter le jeu des pages 52-53 et 172-173.
des substitutions en son centre. Derrida 17
Pourquoi ici la peinture en lieu et
notait que pour une pensée classique de
place de la littérature et de la poésie ?
la structure, le centre qui commande la
Il faut restituer ici le constat qui guide
structure échappe à la structuralité dans
les analyses de Guérin et selon lequel,
la mesure où le centre est à la fois dans
la modernité littéraire après Baudelaire
et hors de la structure. En ce sens, on est
est guettée par la clôture sur le jeu
autorisé à s’interroger sur la conjoncture
des signifiants, érigeant le « rien » en
historique de la fin des années soixante
« signifiant séducteur » et en nouvel
où semble converger le début d’une
Absolu (cf. Ibid., p. 66-67)
fragilisation du dispositif de la croyance
révolutionnaire et la critique d’un certain 18
Ibid., p. 178. Je souligne.
structuralisme, indissociablement pris
19
Ibid., p. 93.

DIRK DEHOUCK | DÉFICIT DE CROYANCE ET DÉNI DE REPRÉSENTATION ?


dans une critique, en France du moins,
de l’existentialisme sartrien. Conjoncture 20
Ibid., p. 89.
historique qui voit également coexister,
comme l’ont montré Boltanski et Chiapello
21
Cf. Jacques Rancière, Le partage du
dans Le nouvel esprit du capitalisme, sensible, Paris, La Fabrique, 2000, p. 33.
la formulation d’une critique (artiste) 22
Cf. Le partage du sensible, op. cit., p. 40
de l’inauthenticité sous l’effet d’une
; id., En quel temps vivons-nous ?, Paris,
généralisation des rapports marchands
La Fabrique, 2017, p. 44; id., Malaise dans
d’une part, et, d’autre part, la neutralisation
l’esthétique, Paris, Galilée, p. 40 à 55.
de cette même critique sur le plan
philosophique par la déconstruction 23
Friedrich von Schiller, Lettres sur
des présupposés de l’authenticité, de la l’éducation esthétique de l’homme, trad. Fr.
spontanéité, etc. Sur ce point, cf. Le nouvel P. Leroux, Paris, Aubier, 1992, p. 223.
esprit du capitalisme, Paris, Gallimard, 24
Rancière, Malaise dans l’esthétique, op.
réédition 2011, p. 606 et suivantes.
cit., p. 42.
8
Milner, Relire la Révolution, op. cit., p. 67. 25
Ibid., p. 46.
9
Cf. Hubert Damisch, L’origine de la 26
Ibid., p. 48.
perspective, Paris, Flammarion, réédition
2012, plus particulièrement le chapitre VIII 27
Ibid., p. 71.
consacré à « la vue » et les pages 146 et
suivantes.
28
Rancière, En quel temps vivons-nous ?
op. cit., p. 49.
10
Cf. Milner, Relire la Révolution, op. cit., p.
90, 99, 121.
29
Cf. Ibid., p 172.

11
Cf. Michel Guérin, Nihilisme et
30
Theodor W. Adorno, « Engagement »
modernité. Essai sur la sensibilité des (1962), in Notes sur la littérature, trad. fr. S.
époques modernes de Diderot à Duchamp, Muller, Paris, Flammarion, 1984, p. 303.
Paris, Editions Jacqueline Chambon, 2003. 31
Michel Guérin, Nihilisme et modernité,
Sur l’ambition comme passion du siècle, cf. op. cit., p. 176.
p. 33 et suivantes, p. 172 et 176.
32
Ibid., p. 57.
12
Ibid., p. 40.
33
Adorno, Théorie esthétique, trad. fr. M.
13
Ibid., p. 42. Jimenez, Paris, Klincksieck, 1995, p. 43.
14
Ibid., p. 96. 34
Walter Benjamin, « Zentralpark. Fragments
15
Ibid., p. 34. sur Baudelaire », fragment 33, in Charles
Baudelaire. Un poète lyrique à l’apogée du

59
capitalisme, trad. fr. J. Lacoste, Paris, Editions
Payot et Rivages, 2002, p. 241.
35
Benjamin, Charles Baudelaire, op. cit.,
p. 27-28. Benjamin cite ici le compte
rendu que Marx et Engels consacrent
aux ouvrages de J. E. A. Chenu, Les
conspirateurs et La Naissance de la
République de février 1848 de Lucien de
la Hodde.
36
« L’image de Baudelaire se met comme
d’elle-même au point : le capharnaüm
énigmatique de l’allégorie chez l’un, le
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

bric-à-brac mystérieux du conspirateur


chez l’autre ». Benjamin, Charles
Baudelaire, op. cit., p. 33-34.
37
Benjamin, Charles Baudelaire, op. cit.,
p. 146.
38
Il s’agit des premières strophes du
poème « Le soleil » publié dans la section
des « Tableaux parisiens » des Fleurs du
mal : « Le long du vieux faubourg, où
pendent aux masures / Les persiennes, abri
des secrètes luxures, / Quand le soleil cruel
frappe à traits redoublés / Sur la ville et les
champs, sur les toits et les blés, / Je vais
m›exercer seul à ma fantasque escrime, /
Flairant dans tous les coins les hasards de
la rime, / Trébuchant sur les mots comme
sur les pavés / Heurtant parfois des vers
depuis longtemps rêvés. ». cf. Charles
Baudelaire, Les Fleurs du mal, texte établi
par Cl. Pichois, Paris, Gallimard, 1972, p.
122.
39
Benjamin, Charles Baudelaire, op. cit., p.
163. Cf. également p. 103.
40
Benjamin, Charles Baudelaire, op. cit.,
p. 99.
41
Benjamin observe ainsi que la foule n’est
pas encore chez Baudelaire ce qu’elle est
chez Poe, où la description des passants
les assimile à des automates soumis au
mouvement fiévreux de la production
matérielle et à une déshumanisation des
rapports sociaux. Cf. 83,180 sq.
42
Ibid., p. 100.
43
Cf. Ibid., p. 85, 110, 118, 141.
44
Ibid., p. 207.
45
Ibid., p. 221.

60
Le retour de l’artiste (dé)masqué

Bruno Goosse
Artiste et Professeur, Académie Royale des Beaux-Arts de Bruxelles
[email protected]

Da mesma forma que o artista,


desde Duchamp, continua a
« Le politique se révèle non pas dans ce qu’on arrancar objectos, práticas,
nomme l’activité politique, mais dans un double discursos ou documentos
do mundo não artístico,
mouvement d’apparition et d’occultation du mode
interrogando-os no campo
d’institution de la société. Apparition en ce sens
da arte, para reconfigurar
qu’émerge à la visibilité le procès par lequel s’or-
não apenas os limites, mas
donne et s’unifie la société à travers ses divisions ; também o conteúdo, as suas
occultation en ce sens qu’un lieu de la politique tensões e as suas questões, não
(lieu où s’exerce la compétition entre les partis poderemos nós considerar uma
et où se forme et s’exerce l’instance générale du passagem do mundo da arte
pouvoir) se désigne comme particulier, tandis para o mundo político? Qual
que se trouve dissimulé le principe générateur será o efeito "micropolítico"
de la configuration de l’ensemble. » do trabalho de um artista que
Claude Lefort1 integra na esfera artística
uma estrutura de trabalho
que quer ser activa ao nível
Les études actuelles concernant l’engagement
"macropolitico": um gabinete
politique de l’artiste dans le champ de l’art contem-
ministerial. E o que faz o artista
porain s’entendent pour considérer la mutation de
quando trabalha em política? A
la conception de la nature du politique, issue des arte consegue a sua vingança,
réflexions structuralistes post 68, comme inaugurant como um acto falhado (de arte)
une nouvelle possibilité pour l’art d’expérimenter que virá a revelar ao artista a
son rapport au politique et pour l’artiste son rapport sua perseverante insistência?
à l’engagement2 : le pouvoir n’est plus uniquement
identifié à ceux qui l’exercent mais est dorénavant
vu comme présent dans l’ensemble du corps social.
« Bref, tout est politique, mais toute politique est à
la fois macropolitique et micropolitique3 » écrivent
Deleuze et Guattarri. Dès lors, le modèle des avant-
gardes historiques, longtemps considéré comme
exemplaire du rapport entre art et politique ap-
paraît comme dépassé. Le glissement des artistes
vers la micropolitique4 est significatif. « Il suggère
la fin de l’héroïsme de l’art politique, plus le goût
de la relativité5 ».

61
La distinction qui apparaît entre la politique et le politique valorise le se-
cond terme alors que le premier y perd tout intérêt. « On observe ainsi une
désaffection progressive à l’égard de la politique et de l’exercice du pouvoir
mais un regain d’intérêt pour le politique entendu comme souci de soi et de
l’autre, qui se traduit par un glissement du projet révolutionnaire vers une
forme d’investissement introspectif ou communautaire et par une substitution
des experts aux maîtres à penser6. »
Désaffection de l’un au profit de l’autre, substitution, glissement, il semble
que nous soyons progressivement passés de l’interdépendance du macropoli-
tique et du micropolitique de Deleuze et Guattarri à une conception distincte,
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

créant comme deux mondes entre lesquels il y aurait à choisir. « L’art micropo-
litique devient un véritable phénomène, théorisé par Paul Ardenne, Stephen
Wright et bien d’autres, devenant l’objet d’expositions, de colloques et d’essais,
lesquels continuent néanmoins d’entretenir une soigneuse séparation entre
art et activisme, entre art et politique7. » Maintenir la séparation entre art et
politique conduit à penser ces pratiques comme deux mondes ou deux mi-
lieux étanches, dont les fonctionnements, asservissements et libertés diffèrent.
De la même manière que l’artiste, depuis Duchamp, ne cesse d’arracher
objets, pratiques, discours ou documents au monde non-artistique pour, les
interrogeant dans le champ de l’art, en reconfigurer non seulement le contour
mais aussi le contenu, ses tensions et ses enjeux, ne pourrait-on envisager une
traversée du monde de l’art vers le monde politique ? A condition, bien en-
tendu, d’envisager également le mouvement inverse. La question que je sou-
haite aborder ici est celle de l’effet « micropolitique » du travail d’un artiste qui
intègre à la sphère artistique une structure de travail qui se veut agissante au
niveau « macropolitique » : un cabinet ministériel. L’art prendrait-il sa revanche
sur l’artiste, comme un acte manqué (de l’art) qui viendrait révéler à l’artiste
son entêtante insistance ? C’est ce que nous espérons interroger.

Contexte
La première nuit passée à bord du petit bateau semble étirer le temps au
fil du fleuve dont on peine à voir dans quel sens il s’écoule. Partout, l’obscuri-
té s’étend comme une flaque brulante.
Arrivés après la tombée du jour, accueillis par une chaleur provocante,
nous avons traversé rapidement l’aéroport presque désert, suivi le groupe des
voyageurs, ou les indications du guide. Après avoir parcouru rapidement des
rues inconnues en taxi, nous avons grimpé les marches menant à une passe-
relle pour parvenir au bateau qui devait nous emmener. Dans la petite cabine,
nous sommes surpris d’avoir conscience de flotter malgré l’absence de tout
roulis. Le flottement accompagne un demi-sommeil et l’attente que ce voyage
commence enfin. Après quelques heures, lorsque le brouhaha du moteur fait
place au clapotis de l’eau, le jour s’est levé. C’est l’heure de la première visite.
Nous nous déplaçons en groupe, traversons une petite ville animée d’Afrique

62
du Nord paraissant fort semblable aux autres pe-
tites villes d’Afrique du Nord que nous connais-
sons déjà. Et puis soudain, au détour d’une rue,
une porte s’ouvre dans un mur disproportionné,
tournant le dos à la foule bruyante de la place et
son marché odorant que nous venons de quit-
ter. Nous entrons dans un autre monde. Nous
sommes dans le temple d’Horus, à Edfou, au
mois d’août 1999.
Je reçois l’écart entre les deux mondes comme
un choc violent. Il ne semble y avoir aucun lien
entre les habitants actuels d’Edfou et le temple.
Le bâtiment antique, particulièrement bien pré-
servé, donne presque l’impression d’avoir été
abandonné la veille. Son calme, ses espaces vides,

BRUNO GOOSSE | LE RETOUR DE L'ARTISTE (DÉ)MASQUÉ


dégagés, contrastent avec la vie de la ville aux
alentours, renforçant le sentiment d’un profond
désintérêt pour ce qui avait été naguère adoré,
comme s’il n’y avait aucune continuité entre le
monde d’hier et celui d’aujourd’hui. L’opposition
entre cette permanence de l’édifice et la dispari-
tion de la civilisation qui l’a bâti me bouleverse.
Tout à ma découverte naïve, je perçois l’extrême
fragilité de ce qui peut sembler pérenne.

La proposition
Quelques heures plus tard, sur le pont du ba-
teau qui remonte le Nil en direction de Louxor,
l’appel téléphonique d’un ami interrompt la
contemplation distraite du lent défilé de la végé-
tation luxuriante des berges. Je ne m’attendais ni
à cet appel ni à sa proposition : « La Ministre de
l’enseignement supérieur cherche un collabora-
teur pour s’occuper de l’enseignement supérieur Fig. 1 – « Extrait de la vidéo: FD/MP/BG/
artistique et en réaliser la réforme structurelle. av03: votre invitation à: Nocturne « Indian
Summer », 1'38'', 2013 »
Nous avons pensé à toi. » Surpris, je demande
24 heures de réflexion.
L’année précédente, j’avais participé aux ré-
unions d’un groupe d’artistes-enseignants qui
s’étaient opposés au projet du Gouvernement de
réformer l’enseignement artistique en proposant
de l’absorber dans une structure existante : celle
des Hautes écoles. Nous refusions cette absorption

63
car elle aurait conduit, selon nous, à une unifor-
misation des pratiques pédagogiques et notam-
ment à ne plus permettre le travail essentielle-
ment individuel inhérent à la transmission dans
l’enseignement artistique. Le groupe en question,
constitué de collègues de différentes écoles artis-
tiques (arts-plastiques, cinéma, musique, théâtre),
s’était organisé pour parler d’une même voix et
avait trouvé l’oreille bienveillante d’une élue qui
porta sa parole dans les discussions parlemen-
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

taires. Peut-être que cette manière de présenter


la situation est erronée. Elle donne l’impression
que nous utilisons une femme politique pour
obtenir une situation qui nous convienne. Mais
il n’est pas impossible que ce soit l’inverse, que
l’élue a trouvé dans ce groupe des informateurs
lui permettant de construire un discours politique
plus étayé, plus brillant, plus visible. Quoi qu’il en
soit, la Parlementaire, bien informée, était habile
à convaincre. Le texte de loi, qui a finalement été
voté, a été tellement amendé qu’il est l’inverse de
l’avant-projet de décret déposé par le Ministre de
l’époque. Plutôt que d’être intégré aux Hautes
écoles, l’enseignement supérieur artistique sera
autonome, doté d’une législation propre, donc
d’un fonctionnement propre. Le spectre de notre
disparition par absorption s’étant éloigné, je sup-
Fig. 2 – « Extrait de la vidéo: FD/BG/av10: posais que le groupe d’opposants-militants-usa-
votre invitation à la cérémonie du mât gers-et-acteurs-de-l’enseignement-artistique n’avait
totémique,1'42'', 2013 »
plus de raison de se réunir et j’en étais soulagé.
Le vote de ce décret eu lieu en toute fin de
législature. Les élections qui suivirent aboutirent à
une nouvelle coalition, un nouveau Gouvernement.
La Parlementaire, qui avait relayé nos proposi-
tions et qui avait si bien manœuvré, fut désignée
Ministre de l’Enseignement supérieur. C’était donc
à elle de réaliser la réforme proprement dite de
l’Enseignement artistique. Le décret voté en 1999
se contentant de dire que l’enseignement artis-
tique était classé dans l’enseignement supérieur,
il fallait encore trouver comment l’organiser et qui
allait s’en occuper. C’est du moins comme cela
que les choses étaient comprises à ce moment-là.

64
La Ministre proposa d’abord ce travail au Président de notre groupe d’ar-
tistes-enseignants. Il le refusa. Il lui fut demandé de proposer un candidat.
C’est la raison de l’appel téléphonique reçu cet après-midi d’août, alors que
je visitais l’Egypte.

Le choix
Après la visite d’Edfou, tout ce qui me semblait pérenne, même solide-
ment ancré dans une Histoire grandiose, m’apparait pouvoir n’être en réali-
té que fragilité extrême, au bord de son évanouissement. Je croyais avoir vu
le spectre de la disparition de l’enseignement supérieur artistique s’éloigner
définitivement. A tort ou à raison, je ne peux alors m’empêcher de considérer
que le risque est toujours bien là. Le travail proposé ne se résume donc pas,
pour moi, à la gestion d’un état de fait, mais est plutôt celui d’une sauvegarde,
d’une résistance et, pour y parvenir, d’un travail qui me semble être de création.
Il m’est proposé d’agir. Mais, chose nouvelle et impensable pour moi, d’agir

BRUNO GOOSSE | LE RETOUR DE L'ARTISTE (DÉ)MASQUÉ


avec le pouvoir. Jusqu’ici, il s’agissait de résister à une proposition émanant
du pouvoir et de proposer des alternatives. Même si nos propositions étaient
suivies d’effets, nous étions dans des mondes différents : celui qu’on appelle
le terrain (c’est à dire le monde des travailleurs sur lesquels la proposition lé-
gislative aura un effet) et celui de la gouvernance (c’est à dire celui des déci-
deurs, même si cette décision n’est prise qu’au bout d’un processus concerté).
Division que l’on retrouve toujours dans tout discours relatif à la sphère poli-
tique : que ce soit lorsque l’on parle de société civile (ouverture de la classe
politique à la société civile), que ce soit lorsque l’on parle du manque de
confiance des citoyens envers la classe politique (classe qui s’invente par cet
effet de discours). Donc une division. Et la proposition de la franchir. Je pense
refuser. Mais ne serait-ce pas se placer définitivement du côté de l’observa-
tion plutôt que de l’action ? Comme le journaliste ou le politologue observe
les actions des politiques. Même si on sait qu’un observateur, par sa présence
d’observateur, a un effet sur l’observation, il ne peut pas agir sans perdre ce
statut d’observateur. On le constate dès qu’un journaliste ou un politologue
décide de faire de la politique. Agir implique de choisir. La liberté de l’obser-
vateur, sa neutralité, est liée à cette qualité d’observateur et à son respect. Ici,
le travail concerne l’enseignement artistique. Je suis enseignant et artiste. Les
deux activités sont étroitement liées. L’artiste est-il plus du côté de l’observa-
tion que de l’action ? Ne peut-on comparer la situation à celle du critique ou
de l’historien d’art dans son rapport à l’art ? L’artiste, par sa pratique, fait l’art.
Peut-il en même temps en faire l’histoire comme l’historien le ferait ?
De mon point de vue, refuser m’aurait fait courir le risque de devenir l’ai-
gri que je redoute, dont rien ne peut empêcher qu’il pense qu’il aurait fallu
faire les choses autrement, mais qui n’a pas essayé. Essayer avait l’avantage
de la promesse d’une compréhension du système et de ses limites. Je sau-
rais pourquoi le dispositif est ainsi plutôt qu’autrement. Je participerais, à ma

65
mesure, à la création de la structure dans laquelle j’agis : celle de l’enseigne-
ment supérieur artistique.
Mais mon activité est également artistique. Or l’art n’a que faire d’une
structure d’accueil qui lui préexisterait. L’art produit sa structure et la déplace
sans cesse. Les deux mondes sont-ils compossibles ?
Le temps de réflexion étant passé, dans cet état d’esprit, j’accepte la pro-
position. Il s’agit d’une acceptation citoyenne, dans un contexte particulier,
celui de l’enseignement artistique. Mais cette présence de l’artiste, opérant
dans le champ politique, sera-t-elle sans effet inattendu tant pour lui que pour
le politique ?
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

Effets pratiques
Le premier bouleversement est lié à l’emploi du temps. Jusqu’ici, je par-
tageais équitablement mon temps entre le travail d’atelier et l’enseignement.
Lors de ma rencontre avec la Ministre, en vue de mon engagement, je pose
comme condition d’être libre un jour par semaine afin de travailler dans mon
atelier. Cette journée m’est accordée. Je pensais que si le politique voulait
un artiste pour faire cette réforme, il fallait bien qu’il en paye le prix et qu’il
s’adapte. Plus tard j’ai compris que ce genre d’adaptation était courante, car
nombreux sont les collaborateurs qui ont une autre activité politique, notam-
ment locale, ce qui implique certains aménagements horaires. Durant les pre-
mières semaines, cet accord m’a permis de poursuivre les projets artistiques
en cours. Je remarque après coup que cette demande renvoie de manière
explicite à la distinction entre (travail) politique et (travail) artistique. Deux
mondes différents, nécessitant deux temps de travail différents. Et entre les
deux, une négociation.
Concrètement, très vite, le temps obtenu pour le travail de l’atelier s’est
évanoui. J’ai pensé que c’était un problème comptable. Le travail du cabinet
requérait toute mon énergie et tout mon temps si je voulais lui donner un
quelconque sens, c’est-à-dire une efficace. Il y avait tout un monde à décou-
vrir, un fonctionnement à comprendre, participer à de nombreuses réunions,
en organiser certaines et surtout consulter. Recevoir les acteurs du secteur,
les écouter, comprendre dans ce que chacun dit ce qui pourrait construire
un commun. Distraire du temps de travail à cette tâche me semblait alors au
mieux un manquement, au pire une prise de pouvoir autoritaire. J’ai donc ar-
rêté de passer une journée dans l’atelier, j’ai arrêté ma pratique de l’atelier.
Que signifie pour un artiste « arrêter sa pratique d’atelier » ? Lorsqu’il ar-
rête de consacrer un temps déterminé à son art, dans un lieu identifié à cette
pratique, perd-il sa qualité d’artiste, comme l’observateur perd sa qualité d’ob-
servateur lorsqu’il agit ? L’artiste n’est-il pas artiste quelle que soit l’activité qu’il
mène. Certaines professions sont d’abord une manière d’être au monde avant
d’être un métier8 et l’on comprendrait mal qu’il n’en soit pas ainsi pour les ar-
tistes. Godard dit qu’il n’y a pas vraiment de différence entre écrire sur un film

66
ou faire un film9, ou entre voir un film et le faire10.
Selon lui, ce n’est donc pas l’activité de produc-
tion, le faire, qui détermine le cinéaste. Nombreux
sont les artistes qui ont rendu poreuse la frontière
entre l’art et la vie11. Par ailleurs, on peut aussi se
demander où va l’énergie créatrice, le désir d’art
de l’artiste lorsque lieu réservé et temps réservé
disparaissent. Il faut bien que le désir se fixe, se
construise, s’exprime ailleurs, dans d’autres activités.
Plus qu’au temps ou au lieu, la qualité d’ar-
tiste n’est-elle pas liée à l’environnement, au
champ social ? Est artiste celui qui est considéré
comme tel12.
Fig. 3 – « Note jaune FD/BG/av10:
Le fou du roi votre invitation à la cérémonie du mât

BRUNO GOOSSE | LE RETOUR DE L'ARTISTE (DÉ)MASQUÉ


totémique, 2013 »
Or, ici, au sein de ce cabinet ministériel, dès
le début, je jouissais d’un statut particulier parce
que j’étais considéré comme l’artiste. Je n’en tirais
ni prestige, ni avantage, mais il m’était reconnu
une certaine différence qui m’autorisait de ne pas
me conformer à tous les codes que par ailleurs je
ne maîtrisais nullement. D’une certaine manière,
il m’était autorisé d’être quelque peu autre, car
cette altérité pouvait être comprise, elle pouvait
être nommée sous le signifiant « artiste ». À l’in-
verse, dans le milieu artistique, travailler dans un
cabinet ministériel était plutôt considéré comme
avoir définitivement abandonné toute prétention
à l’art en lui préférant le pouvoir ou l’administra-
tion, rejoignant ainsi les positions du politique13.
Concrètement, ce statut particulier n’avait
rien de spectaculaire. On peut même le qualifier
d’anecdotique lorsque, par exemple, je n’étais pas
soumis aux codes vestimentaires qui ont une im-
portance certaine dans un cabinet. On y porte un
costume pour négocier. Les membres du cabinet
qui travaillaient uniquement dans un bureau, n’en
portaient pas. Les étudiants et les représentants
des organisations syndicales n’en portent pas
non plus. Comme s’il fallait reconnaître au pre-
mier coup d’oeil qui est qui.
Aussi, comme j’étais là parce qu’artiste (et
enseignant), je n’étais pas vraiment considéré

67
comme un militant. Je n’étais pas encarté, et on
ne m’a jamais demandé de le devenir, ni de faire
une quelconque allégeance au Parti. J’apparaissais
donc comme un élément étranger dans cette vaste
organisation militante qui se considère comme
une famille. Ma place n’était pas liée à l’identifi-
cation au groupe. Je n’étais pas obligé de penser
comme eux sans pour autant me retrouver dans
le camp ennemi.
Par ailleurs, puisqu’artiste, on m’attribuait une
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

compétence quasi universelle en matière artis-


tique. La ministre recevait des invitations à assis-
Fig. 4 – « Note jaune: FD/MP/BG/nj593: ter à des spectacles, des vernissages. On me de-
Bilan-Direction » mandait de rédiger une note sur ces spectacles
ou ces expositions. On attendait de moi une aide
à la décision : fallait-il y être ou pas ?
Surtout, je bénéficiais d’une liberté de ton,
dont je n’ai pris conscience que bien plus tard.
Sans doute cet exercice imposé (et qui n’a duré
qu’un temps) de rédiger de courts textes sur des
expositions ou des spectacles que je n’avais pas
vus, en faire un compte rendu à l’avance, jouer
les critiques en quelque sorte, en supposant un
intérêt pour la Ministre, a-t-il joué un rôle impor-
tant en autorisant un ton particulier. L’intérêt que
je lui supposais pouvait être de deux ordres : po-
litique ou artistique.
L’intérêt politique se résume à l’opportuni-
té d’être présente afin de soutenir une initiative,
de marquer son intérêt pour les personnes qui
organisent cet événement ou les possibilités de
rencontres qu’il offrira. Il n’y a pas grand-chose
à en dire. Par contre, la supposition d’un intérêt
artistique, ce pourquoi on me confiait la tâche
d’écrire sur ces invitations, interroge la nature de
l’intérêt artistique d’un homme ou d’une femme
de pouvoir. Non pas son intérêt réel, subjectif, in-
time, mais celui que nous lui supposons : d’une
part le Directeur de Cabinet et d’autres membres
du dispositif hiérarchique, en me demandant de
l’écrire, et moi, d’autre part, en l’écrivant. Pour que
je suppose un intérêt artistique à une proposition,
il fallait que je la considère comme intéressante

68
artistiquement. Contrairement à l’intérêt politique que je pouvais projeter,
imaginer du point de vue de l’autre, l’intérêt artistique ne pouvait qu’être le
mien, je devais en être affecté.
Dès lors, le statut de mon analyse était autre, mon écriture n’avait plus
grand chose à voir avec l’analyse factuelle et distanciée car il devenait essentiel
de faire apparaître par l’écrit l’intérêt dont j’étais à présent porteur. L’écriture
s’infléchissait alors en une entreprise de conviction afin de faire émerger le
désir de se rendre à tel spectacle ou de visiter telle exposition. Que l’écriture
se constitue dans un rapport au désir crée une relative intimité épistolaire, qui
autorise un ton particulier, ton qui deviendra mon mode de relation à celle
qui représente le Pouvoir.
Dans ce cabinet, le mode de communication entre les collaborateurs et la
Ministre passait par la rédaction de notes que l’on identifiait par leur couleur
jaune. Elles permettent de différer le temps de la conversation. Idéalement,
le collaborateur devrait avoir l’occasion de rencontrer la Ministre pour lui faire

BRUNO GOOSSE | LE RETOUR DE L'ARTISTE (DÉ)MASQUÉ


part de son analyse et discuter des éventuelles positions à adopter. Dans les
faits, le temps disponible de la Ministre est tellement morcelé et parfois im-
prévisible que ce n’est pas possible de faire ainsi. D’où le recours aux notes
qui peuvent être lues à n’importe quel moment. Les notes jaunes sont placées
dans un signataire. Elles sont d’abord lues et éventuellement annotées par le
Directeur de cabinet-adjoint, puis par le Directeur de cabinet et enfin par la
Ministre. La note jaune revient ensuite au collaborateur en suivant le même
chemin, chacun pouvant commenter les commentaires.
Les notes jaunes relatives à l’actualité culturelle ont d’abord suivi ce grand
trajet, puis, à la demande de la Ministre, le circuit s’est rétréci jusqu’à devenir
un circuit court : de mon bureau au sien. Elle semblait ennuyée de leur diffu-
sion et de l’intérêt que les autres membres du cabinet y trouvaient.
En jugeant qu’elles ne devaient être lues que par elle-même, elle indi-
quait une séparation entre ce qu’elle semblait considérer relever de la sphère
privée et ce qu’elle considérait relever de la sphère politique de la vie du ca-
binet. Mais cette distinction était loin d’être claire. En effet, je rédigeais ces
notes uniquement du fait que je travaillais dans ce cabinet, avec pour but la
réforme de l’enseignement supérieur artistique. Je n’ai jamais été l’intime de
la Ministre. Nous ne nous sommes jamais tutoyés. Seule l’écriture des notes
était en jeu. Je mesurais alors que la Ministre en leur attribuant une nature
privée était sensible à la dimension de l’adresse. Lorsque j’écrivais une note,
elle était adressée. Je ne pouvais faire autrement. La question de l’adresse est
présente dans tout travail artistique et on ne s’en débarrasse pas si facilement.
Impossible pour moi d’écrire depuis un point de vue général, surplombant, à
distance. Ceci produisit une modification du circuit des notes, c’est-à-dire une
modification du partage de l’information, donc une modification du rapport
au pouvoir au sein de la structure. Est introduit au coeur du fonctionnement
du pouvoir un petit élément étranger : l’intérêt artistique, singulier, échappant

69
à la manière dont le partage des informations recoupe les logiques de pou-
voir du politique. L’effet est microscopique. Pourtant quelque chose allait en
rester comme terreau d’une réactivation possible.
Cette place légèrement décalée que j’occupais dans le cabinet était par
moment comparable à celle du fou du roi, celui qui peut se permettre de dire
des choses, parce qu’il n’a pas d’importance politique. Bien entendu, ne pas
avoir d’importance politique ne signifie pas ne pas avoir d’importance tac-
tique ou stratégique. Il y avait bien un travail sur les textes, rigoureux, précis.

Politique et tactique
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

J’ai d’ailleurs cru longtemps que c’était ce qui comptait : l’habileté à


convaincre et à trouver un consensus. Le cœur de mon travail était de faire en-
tendre les logiques de l’enseignement de l’art aux autres mondes : le monde
politique, le monde de l’enseignement en université et en haute école, le
monde des étudiants, le monde des représentants syndicaux et bien enten-
du, les mondes politique, administratif et juridique. Faire entendre qu’il est
nécessaire d’envisager une différenciation. Pour cela, je devais moi-même
comprendre ces différents mondes, leurs logiques, leurs craintes et manières
de penser afin de déjouer leurs résistances et oppositions. Car on a beau être
du côté du pouvoir, rien ne se fait réellement s’il n’est accepté par toutes les
parties en présence.
Il fallait notamment, justifier en droit chaque différence par rapport au sys-
tème existant en université ou en haute école. Par exemple, l’épreuve d’admis-
sion. Nécessaire dans la plupart des écoles artistiques, cette épreuve n’existe
pas dans le reste de l’enseignement supérieur. Pour les organisations repré-
sentatives des étudiants (et pour le parti qui leur est proche), cette épreuve
était contraire au libre accès à l’enseignement supérieur, donc contraire à la
démocratisation des études supérieures. De plus, il y avait la crainte de créer
un précédent. Si on autorise certaines écoles à organiser une épreuve d’ad-
mission, on leur donne la possibilité d’être plus sélectives à l’entrée, elles au-
ront sans doute de meilleurs résultats à la sortie. Les classements n’en seront
que meilleurs. La concurrence entre établissements va croître. Toutes devront
alors organiser un filtre à l’entrée. Mais la mission générale de l’enseignement
supérieur est-elle d’offrir, aux étudiants diplômés de l’enseignement secondaire
qui le souhaitent la possibilité de se former ou s’agit-il de produire l’élite dont
la société a besoin ? L’enseignement supérieur est-il plutôt un outil d’éman-
cipation individuelle ou un instrument au service des intérêts de la société ?
Bien sûr on peut argumenter que la société a un intérêt à l’émancipation de
ses membres, mais on comprend l’exemple : deux modèles de société s’op-
posent et le but du travail de discussion est de parvenir à situer cette épreuve
d’admission en dehors de cette opposition. La réforme ne concernant que l’en-
seignement artistique il n’était évidemment pas possible d’étendre le cadre
du débat à l’ensemble de l’enseignement supérieur.

70
Les négociations visaient donc à créer des ex-
ceptions aux règles générales. Si on pouvait les
accepter pour l’enseignement de l’art, encore fal-
lait-il être certain que ce serait sans conséquences
sur la règle générale. Mes interlocuteurs accep-
taient l’exception à condition d’être certains qu’elle
reste exceptionnelle. Ils craignaient la contagion.
Cette crainte est si forte que, souvent, elle conduit
même à refuser l’exception14.
J’ai cru que mon travail consistait à trouver les
meilleures solutions, à écrire des scénarios et des Fig. 5 – « Note jaune: FD/MP/BG/lm/99-
récits – acceptables sur le plan artistique (c’est-à- NJ-032-Le but de la réforme 1, 2013 »

dire qui permettent à toutes les pédagogies par-


ticulières de continuer à s’exprimer) et suffisam-
ment nombreux pour qu’ils soient opportuns sur

BRUNO GOOSSE | LE RETOUR DE L'ARTISTE (DÉ)MASQUÉ


le plan politique en fonction des variations des
rapports de forces – que je traduisais en un texte
de loi. J’ai cru qu’il s’agissait d’ingénierie politi-
co-administrative et de subtilités juridiques per-
mettant d’éviter la normalisation inhérente à la
loi, son incapacité à s’adapter parfaitement aux
choses réelles15.
Avoir fait le choix de l’action signifiait essen-
tiellement adopter un point de vue de négocia-
tion, respecter les points de vues des acteurs, à
l’exception de ceux dont les conséquences se-
raient d’empêcher la possibilité de la diversité et
trouver les zones communes qui préservent la ca-
pacité d’invention de l’enseignement artistique.
Mais le négociateur qui cherche le consensus
n’est plus l’artiste de départ. L’art ne peut qu’être
du côté du dissensus. Où est donc passé son dé-
sir d’art ? Le négociateur déplace son désir sur la
trouvaille qui ne vaut que dans le désir des autres.
Mon travail devait aussi se situer ailleurs.

Expérience de dé-subjectivation
L’expérience du travail de cabinet consiste à
jouer sur deux tableaux : celui du secteur que je
connais et d’une certaine manière représente, et
celui de la Ministre pour qui je travaille en toute
confiance. Dans ce système, travailler pour signi-
fie travailler en acceptant de disparaître derrière

71
cet autre sujet : la Ministre. D’une certaine ma-
nière, il s’agit d’une expérience de dé-subjectiva-
tion. Ainsi, lorsque j’écrivais une lettre pour elle,
lorsque j’écrivais « je », il ne s’agit évidemment
pas de moi, mais de la Ministre. Je devais donc
penser à féminiser mes phrases. Non plus « je suis
heureux de savoir que... », mais « je suis heureuse
de savoir que... ». Ensuite, les lettres écrites à la
première personne suivent le parcours explici-
té précédemment, durant lequel elles peuvent
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

Fig.6 – « Note jaune: FD/MP/BG/lm/99-NJ- être modifiées, corrigées, parfois préalablement


032-Le but de la réforme 2, 2013 » à l’auteur officiel, puis acceptées, et enfin après
avoir été réécrites, signées. Ce « je » subissant de
nombreuses modifications devient particulière-
ment plastique.
Par ailleurs, le jeu de la représentation me
conduisait à intervenir dans des réunions au nom
de la Ministre, c’est-à-dire parfois en soutenant
un point de vue auquel je n’adhérais pas pleine-
ment ou dont le bienfondé ne m’apparaissait pas.
Bien entendu, il ne s’agissait pas de défendre une
position avec laquelle je n’étais pas du tout d’ac-
cord. Mais ce n’était pas celle qui me semblait la
meilleure. Simplement, je n’étais pas arrivé à en
convaincre la Ministre. Alors, je devais trouver
malgré tout à argumenter. Curieusement, dans
cette situation, on trouve les arguments. Puis on
se demande d’où ils viennent. On se demande
encore si c’est un mensonge avec soi-même ou
s’il s’agit du jeu de la démocratie représentative ?
Ce jeu de la représentation, où je devais en
quelque sorte me mettre à la place de la Ministre,
disparaissait dans deux circonstances : lorsqu’elle
était présente, elle n’avait alors pas besoin d’ava-
tar, et lorsque je lui écrivais des notes. Je rede-
venais alors, autant que faire se peut, le sujet de
mes pensées, écrits et paroles.
« La création puise dans le plus “subjectif“,
mais elle est l’art, simultanément de contrer le
subjectivisme en faveur d’un lieu poétique parta-
gé » écrit Michel Guérin16. Le travail d’écriture d’un
texte juridique procède d’une manière inverse.
Il est puisé dans le collectif. Le texte résulte d’un

72
processus de consultation et de concertation qui
est en fait un processus d’appropriation au cours
duquel chaque phrase, chaque mot, devient la
phrase ou le mot écrit par le Parlement lui-même,
et ce, au nom du peuple qu’il représente. La loi
n’a pas d’autre auteur que le peuple, même si
c’était bien moi qui écrivais. Il est des artistes qui
visent cet anonymat.
La fin d’une législature signe la fin d’un cabi-
net. Il faut vider les bureaux, supprimer toute trace
non officielle du travail effectué car ce travail est
considéré comme privé. On me demande expli-
citement de détruire mes notes jaunes. Je n’ai pas
obéi. J’en ai gardé certaines, celles que j’avais rédi- Fig. 7 – « Note jaune : FD/MP/BG/lm/99-
gées seul et qu’aucune secrétaire n’avait classées. NJ-032-Le but de la réforme 3, 2013 »

BRUNO GOOSSE | LE RETOUR DE L'ARTISTE (DÉ)MASQUÉ


Reprise et réactivation
Elles sont restées longtemps dans un carton,
ont été oubliées, puis ont été redécouvertes. Se
posait alors la question de leur propriété, de leur
auteur, et du droit qui pourrait y être attaché. Le
contexte historique, politique, relationnel ou lié à
une actualité ayant disparu, ne restait que le do-
cument écrit, et la trace de son adresse.
C’est en les relisant, dans cet après coup
donc, que m’est apparu l’effet de la position par-
ticulière qu’un artiste occupe dans n’importe quel
lieu. Cette manière d’adresser ce qu’il produit
comme il le fait avec une production artistique.
Une adresse qui l’implique. Ce qui est très diffé-
rent de la désincarnation de la loi.
J’ai alors envisagé d’interroger ces notes
jaunes dans le champ artistique. Les reprendre, les
citer, les ré-employer, me les réapproprier. Elles
avaient un statut particulier en ce sens qu’elles
remplaçaient ce qui aurait dû être une discus-
sion. Elles n’étaient ni vraiment de l’écrit, ni de
l’oral. Écrites à la place de la conversation qu’elles
représentaient, les réactiver oralement, en les li-
sant, impliquait de les biffer afin d’en supprimer
la lisibilité. Ainsi, cette réactivation des notes est
non seulement la dernière, mais aussi la première,
puisqu’elles n’ont jamais été lues avant, et ce en

73
pure perte, le contexte ayant disparu. L’opération a été filmée, la vidéo diffu-
sée. Mais dans ce processus, l’adresse a été déplacée : le public se retrouve
maintenant à la place qui était occupée par le représentant du pouvoir. Alors
que le politique m’avait contraint à parler en son nom, à écrire en son nom, à
argumenter en son nom, voilà que la réactivation des notes jaunes permet-
tait un ultime retournement : le public mis à la place du représentant du pou-
voir dont j’avais moi-même occupé la place. Je tenais ma revanche d’artiste :
la mise en visibilité d’un jeu de représentations, du jeu de la représentation.
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

Notes
1
Essais sur le politique, Paris, Seuil, 1986, 8
Sur le rapport structurant de l’activité et
p. 19-20. du sujet, et l’impossibilité de se mettre en
congé de l’activité voir « La Psychanalyse
2
Voir à ce sujet l’introduction de Daniel
n’est pas un lorgnon que l’on met pour
Vander Gucht à son livre  L’expérience
lire et que l’on enlève pour se promener. »
politique de l’art, retour sur la définition de
Freud, (6e Conférence.) cité par Janine
l’art engagé, les Impressions Nouvelles,
Chasseguet-Smirgel dans Pour une
Bruxelles, 2014 ; réédition augmentée de
psychanalyse de l’art et de la créativité,
Art et politique. Pour une redéfinition de
Bibliothèque Payot, Paris, 1971, p. 11.
l’art engagé, Collection « Quartier Libre »,
Édition Labor, Bruxelles, 2005. 9
« En tant que critique, je me considérais
déjà comme cinéaste ». In « Entretien »,
3
Gilles Deleuze et Félix Guattari,
Jean-Luc Godard par Jean-Luc Godard,
Capitalisme et schizophrénie, 2. Mille
cahiers du cinéma-éditions de l’étoile,
plateaux, Paris, Minuit, 1980, p. 260.
Paris, 1985, p. 215.
4
« Ce que l’on appelle la « micropolitique 10
« Aujourd’hui, c’est pareil : voir un bon
» s’intéresse plutôt aux structures de
film, c’est la même chose que faire du
pouvoir à petite échelle, disséminées,
cinéma ». In « Le bon plaisir de Jean-Luc
ainsi qu’aux mécanismes de contrôle
Godard », Jean-Luc Godard par Jean-Luc
inhérents aux activités sociales et à la vie
Godard, tome 2, 1984-1998, cahiers du
quotidienne. » Yi Junqing, À PROPOS
cinéma, Paris, 1998, p. 313.
DE LA PHILOSOPHIE MICROPOLITIQUE,
« Diogène », Presses Universitaires de 11
Voir par exemple Allan Kaprow, L’art et
France, Paris, 2008/1 n° 221, p. 58. la vie confondus, Ed. du centre Pompidou,
Paris, 1996
5
Paul Ardenne, Subversions multiples
et raffinées, in Art et activisme INTER, 12
Sur cette affirmation peu étayée et la
ART ACTUEL n°107, Montréal, p. 10. Voir difficulté de la définition de l’artiste voir
également Paul Ardenne et Christine Paul Audi, Discours sur la légitimation
Macel (commissaires), Micropolitiques, actuelle de l’artiste, Les Belles Lettres, coll. «
catalogue de l’exposition, Le Magasin, Encre marine », Paris, 2012.
Centre national d’art contemporain, 13
Voir, par exemple, le « Décret relatif
Grenoble, 2000.
au fonctionnement des instances d’avis
6
Daniel Vander Gucht, op cit., p. 11. œuvrant dans le secteur culturel » du
10-04-2003 voté durant cette même
7
Edith Brunette, Le discours micropolitique
législature, dont un des buts était de bien
: les nouveaux atours de l’art politique, [T]
distinguer parmi les experts siégeant
ex[t]o, http://espace-texto.blogspot.be/p/
dans ces instances d’avis, ceux qui sont
micropolitique_12.html

74
membres d’une cabinet ministériels et
ceux qui ne le sont pas. Art. 3, [...] « A
voix consultative même s’il est issu de
l’appel public aux candidatures : 1° le
membre d’un cabinet ministériel; [...].
[Le membre d’un cabinet ministériel]
qui appartient à une instance d’avis en
qualité de membre avec voix délibérative
cesse immédiatement de siéger au sein
de celle-ci. » Autrement dit, selon ce
Gouvernement, un artiste qui devient
membre d’un cabinet ministériel ne
peut plus représenter autre chose que le
politique.
14
Bruno Goosse, L’ordre de Bologne,
in l’art même 45, chronique des arts
plastiques de la Communauté française
de Belgique, 4e trimestre 2009, Ministère

BRUNO GOOSSE | LE RETOUR DE L'ARTISTE (DÉ)MASQUÉ


de la Communauté française, Bruxelles,
p. 8 accessible sur http://www.lartmeme.
cfwb.be/no045/documents/AM45.pdf
« La législation sur l’enseignement de l’art
en Communauté française est bornée
par deux grandes forces tendant vers
l’uniformisation  : l’égalité de traitement,
contenue dans la Constitution d’une part,
et la comparabilité des programmes,
promue par Bologne d’autre part. Contre
ces deux forces, il y a à imposer le
maintien de la possibilité de la diversité
afin de permettre la construction de la
singularité des artistes de demain. C’est
ce que promeuvent les textes et c’est une
gageure. »
15
Cornelius Castoriadis, Sur le politique de
Platon, Editions du Seuil, Paris, 1999, p. 52 :
« Il ne peut y avoir de loi qui embrasse une
fois pour toutes et à jamais tous les aspects
des activités humaines puisque l’écart
entre la loi et la réalité n’est pas accidentel,
il est d’essence. »
16
Michel Guérin, L’artiste ou la toute-
puissance des idées, Publications de
l’université de Provence, Aix-en-Provence,
2007, p. 93.

75
Quelle efficacité pour
l’activisme politique en art ?

Sylvie Collier
Professeure, département Arts d’Aix-Marseille Université
[email protected]
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

O artigo questiona a eficácia do


activismo político na arte. Esta
La question de l’art et de l’activisme politique é uma questão urgente para os
semble a priori requérir des définitions concernant artistas de países oprimidos. Mas
a sua voz é restrita; a mediação
chacun des deux termes, art et politique. Pourtant
das suas obras implica muitas
cerner de telles définitions implique d’emblée l’idée
vezes a sua simplificação quando
d’une autonomie de l’art tandis que le terme volon-
o reconhecimento financeiro
tariste d’activisme implique, lui, qu’une dimension não perverte o significado. Nos
politique puisse être « ajoutée » à l’art, ou au moins países ocidentalizados, o sistema
que l’œuvre puisse être la mise en forme, le « de- capitalista manifesta-se na arte
sign », d’un engagement politique. On connaît le através do poder do mercado
défaut d’une telle dichotomie ; voici comment la que se dirige ao coleccionador.
résume Boris Groÿs : Este é o objectivo da exposição
de Damien Hirst em Veneza em
Art activism’s attempts to combine art and social 2017, que elucida os processos
action come under attack from both of these op- de enriquecimento, conforme
descrito pelos sociólogos
posite perspectives—traditionally artistic and tra-
Boltanski e Esquerre no seu
ditionally activist ones. Traditional artistic criticism
último livro (Enrichissement,
operates according to the notion of artistic qua-
une critique de la marchandise,
lity. From this point of view, art activism seems to 2017). O activismo político
be artistically not good enough: many critics say deve consistir em inverter esses
that the morally good intentions of art activism mesmos processos, sem que
substitute for artistic quality. This kind of criticism eles levem a uma acumulação
is, actually, easy to reject. In the twentieth century, de bens, mas a uma reflexão
all criteria of quality and taste were abolished by sobre o estado do mundo: é o
different artistic avant-gardes—so, today, it makes que tenta o artista Till Roeskens.
no sense to appeal to them again. However, cri- Se o activismo que ele apresenta
ticism from the other side is much more serious é indispensável e urgente, a sua
eficácia permanece escassa em
and demands an elaborate critical answer. 1
comparação com a mediação
de que beneficia o sistema
De fait, aujourd’hui, la question de l’activisme
económico.
en art et par l’art est particulièrement complexe, ex-
cepté, certainement, dans les pays où l’oppression

76
confère aux artistes l’urgence d’agir. Nonobstant la pertinence de la remarque
de Boris Groÿs sur l’abolition des critères de qualité et de goût, personne ne
cesse de porter des jugements de valeur sur les œuvres qu’il ou elle regarde.
Certes les critères de beauté, de finition artisanale, d’harmonie de composi-
tion et de couleurs sont devenus inopérants, mais il reste possible de juger
superficielle une œuvre légitimée d’une couverture politique… Il s’agit donc
de discuter de l’efficacité des œuvres saisies d’un engagement politique à
produire sur la réception un effet physique, émotionnel, réflexif. Depuis Les
Magiciens de la Terre de 1989, et surtout depuis les discussions qui ont suivi,
les grandes manifestations artistiques et l’histoire de l’art occidentales ont cher-
ché à remettre en question l’orientation téléologique et colonialiste des évé-
nements et publications construites par elles et qui avait prédominé au cours

SY LV I E CO L L I E R | Q U E L L E E F F I CAC I T É P O U R L’ACT I V I S M E P O L I T I Q U E E N A RT ?
du vingtième siècle. Au-delà d’une salutaire et éthique révision des valeurs de
la critique, et au-delà d’une ouverture enrichissante sur des productions artis-
tiques véritablement internationales, cette intention manifeste régulièrement
un moralisme contre-productif. Cette année 2017, par exemple, la proposition
du commissaire général de la documenta 14, Adam Szymczyk, consistant à
déplacer à Athènes une partie de l’événement afin d’agir contre l’anathème
de « crise » subie par la Grèce, fut certainement une action politique réussie,
comme fut réussi l’exploit de monter la documenta sans passer par les gale-
ries qui pervertissent les sélections (les 130 mécénats furent-ils neutres ?). En
revanche, la démarche risquait qu’une partie des œuvres, venues de pays éloi-
gnés du dynamisme des métropoles artistiquement actives, soit vite oubliée.
Car le chapeau politique général de la documenta alourdissait les propos d’un
grand nombre de productions en accentuant une univocité de message, né-
cessairement « démocratique ». L’excès de moralisme politique renforçait une
simplification de l’expression formelle et retournait contre elles les paroles du
commissaire fustigeant les « formules bien connues, pseudo-compassionnelles,
moralisatrices  2 » des instances qui avaient décrété la « crise » de la Grèce.
L’extension internationale des grandes manifestations – y compris, d’ail-
leurs, des foires – aux réalisations artistiques de pays ignorés en Occident avant
Les Magiciens de la Terre3 nous met, spectateurs, en demeure de repenser à
la construction culturelle de nos critères d’approche de l’art. Pourtant, vingt-
huit ans plus tard, il reste très difficile d’ « entrer » pleinement dans une œuvre
réalisée à l’intérieur d’une culture dans laquelle nous n’avons pas été formés.
D’une façon générale, l’Occident offre ce que l’on peut nommer une liber-
té d’expression. Il est clair qu’à l’aune internationale, c’est dans les pays sous
contrainte que les artistes ont la plus grande urgence à faire de leurs réalisa-
tions de l’activisme politique — s’ils le peuvent. Exposées en Occident, leurs
formes ne sont pas toujours ressenties par le spectateur européen (qui trou-
vera la forme trop traditionnelle, ou qui ne saisira pas toutes les références).
Leur portée politique sera reçue à travers une explication discursive, leur forme
comme l’illustration d’une idée. C’est alors que se distingue le plus souvent

77
une dichotomie entre art et action politique. Il demeure que la circulation de
telles œuvres et leur réception, même partielle, apportent à notre connais-
sance et à leur efficacité. Il demeure une forte différence entre les enjeux des
pays opprimés et l’internationalisme « occidental » aujourd’hui dominé par
des questions plus insidieuses, concernant, nous le verrons plus loin, la rela-
tion à l’économie de marché.
Trois artistes iraniens nous donneront des exemples de modes d’efficacité
en relation à leur pays et à la réception occidentale. Shirin Neshat, née près
de Téhéran en 1957 dans une famille occidentalisée, a fait ses études artis-
tiques aux Etats-Unis lors de la révolution iranienne. Elle n’est pas rentrée en
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

Iran. « La politique a défini nos vies4 », explique-t-elle dans un discours pour
son exposition à Doha en 2014. Une visite dans son pays en 1990 a déter-
miné son activisme féminin : elle montre alors une série de photographies,
Les femmes d’Allah, portraits de femmes voilées dont le visage est recouvert
d’écritures, mais qui exprime aussi une détermination et une violence conte-
nue (par exemple, l’un des portraits montre le canon vertical d’un fusil parta-
geant le visage en deux). Le succès aux Etats-Unis est immédiat. Sa revendica-
tion résonne avec les mouvements féministes qui prennent de l’ampleur dans
les années 1990. L’artiste continue ensuite de développer un art critique, aux
Etats-Unis et non en Iran : elle se considère en exil5. L’attribution du Lion d’Or
de la biennale de Venise en 1999 lui donne une reconnaissance qui gagne
peu à peu son pays d’origine. Elle est exposée au Qatar en 2014. Est-ce pour
sa dimension artistique critique ou parce que la médiatisation l’auréole de
puissance économique servant le prestige que cherche ce pays ? Pour être
efficace, l’activisme artistique nécessite une visibilité. Celle de Shirin Neshat
a pu ajouter sa part au profit d’un récent adoucissement du gouvernement
iranien sous la pression de ses classes moyennes éduquées.
Sans doute le précédent de Shirin Neshat permet-il à Shadi Ghadirian
d’affirmer récemment avec vigueur : « Je suis une femme et je vis et travaille
en Iran et la seule chose que je sais faire est de la photographie”. Mais elle
dit aussi : « L’Iran d’aujourd’hui n’a jamais autant limité la créativité des ar-
tistes. Pour tout artiste qui a envie de travailler en Iran aujourd’hui il existe
des lignes rouges mais nous les connaissons tous, et je m’efforce personnel-
lement de ne jamais les dépasser, ce qui m’a permis de continuer d’expo-
ser » 6. Sa série Like every day de 2000 lui a donné une notoriété. Il s’agit de
silhouettes de femmes recouvertes d’une burqa aux motifs variés, et dont le
visage est rendu invisible par l’imposition d’un gant de ménage, d’une pas-
soire, d’une théière… Ce sont des images au message entier, à l’impact di-
rect, compréhensible immédiatement.
La performance peut prendre des aspects plus complexes, car elle s’adresse
à un public restreint (mais une photographie frappante de performance peut
en étendre l’audience). Ce mode intervient par sa force de présence et peut
défier la censure (si elle n’est pas interdite en amont par dénonciation). On

78
peut comprendre son impact politique et la force de la répression en Iran
par le simple constat qu’aucune femme ne la pratique : là est la ligne rouge7.
En revanche, la performance Fraud d’Amir Mobed en 2013 à la galerie d’art
contemporain Azad (« Libre ») à Téhéran témoigne d’une certaine possibili-
té d’action et d’une réception sans doute grandissante (les spectateurs très
nombreux sont serrés les uns contre les autres). La voici rapportée par Tara
Sadeghi :

Nous sommes invités à entrer dans une salle vide : il n’y a rien sauf une
toile blanche sur le mur du fond devant lequel est posé un lit. La salle est
silencieuse quand l’artiste entre et s’allonge sur le lit, accompagné d’un
homme en blouse blanche. L’artiste donne son sang, puis le vide dans un

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seau blanc et le jette sur la toile. L’action est très rapide. Il commence alors
à toucher la surface de la toile et petit à petit une phrase apparaît : « Au
prix d’un cheval ». L’artiste quitte la salle.8–9

Bien que l’action soit saisissante à sa lecture même, le récepteur non ira-
nien n’est pas en mesure de ressentir l’effet du sens de la phrase. Il peut de-
viner l’impact en supposant la valeur culturelle d’un cheval dans la culture ira-
nienne. Il est aisé d’imaginer l’effet du sang, de l’aspect clinique, aujourd’hui
transculturel. Sur place la présence physique, l’odeur provoquent, on le de-
vine, leur impact propre. Vu de France, nous savons replacer l’action dans
une histoire, celle des performances des années 1960-70 (les actionnistes
viennois, Michel Journiac, Burden), ce qui confère une assise de réception,
laquelle permit à un auditoire sans doute relativement informé d’atteindre
plus aisément le sens sans qu’il soit brouillé par le choc physique. Mais sans
explications, le récepteur étranger ne peut appréhender la référence de la
performance du « prix du sang » versé en 2009, lors des répressions particu-
lièrement violentes exercées sur les manifestants à Téhéran. L’activisme poli-
tique a nécessairement un aspect contingent à une situation vécue.
Ainsi l’art mobilisé politiquement doit-il choisir ses médiums en fonction
de son adresse. La performance joue de la proximité physique. La photogra-
phie, la vidéo, en captant le monde, énoncent la possibilité d’une action sur
celui-ci (sans nuire à l’imaginaire ou à l’idéalisme). L’activisme politique en art
utilise aussi souvent les images d’archives, qui produisent des contenus narra-
tifs en écho historique ou en contraste avec le présent du spectateur. Ces mé-
diums sont une façon de se battre coup pour coup contre la domination des
images, et nous pouvons admirer le courage des artistes des pays opprimés,
partager jusqu’à un certain point leur indignation. Mais cet art risque aussi la
simplification au profit de l’impact, comme le fait la publicité. Il risque l’appro-
bation convenue du spectateur, sa lassitude d’un message trop vite compris.
Car souvent, nous ne sommes que compatissants, parce que les enjeux
vécus en Occident par les artistes et qui agissent dans la vie des spectateurs

79
se situent ailleurs : avant tout, aujourd’hui, dans la relation entre art, argent
et médiatisation. C’est une question très complexe dont nous avons essayé
dans un autre texte de saisir quelques-uns des tenants et des aboutissants10.
Depuis, la double exposition de Damien Hirst, Treasures from the wreak of the
Unbelievable qui s’est tenu à Venise d’avril à décembre 2017 nous a semblé
développer l’exact contre-exemple de l’activisme politique, ou plutôt l’exemple
le plus manifeste d’un activisme politique néo-capitalistique. Son analyse nous
permettra d’en cibler les différents aspects.
Nous ne retirerons pas à Damien Hirst une forme d’engagement assez
confondante. Au vu de l’importance quantitative de l’exposition, il semble
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

que l’artiste ait pris le temps de chercher la recette d’un blockbuster, et qu’il
ait trouvé un co-producteur en la personne de François Pinault, ce collection-
neur détenteur bien connu en France d’un empire économique. Sa Fondation,
sise à Venise en deux lieux, la Punta della Dogana et le Palazzo Grassi, a of-
fert ainsi, d’avril à décembre 2017, presque 5000 m² à l’exposition Treasures
from the Wreak of the Unbelievable. Cette dernière repose avant tout sur une
narration, simple, habilement choisie, et rapportée en préalable dans le com-
muniqué de presse et sur les panneaux introduisant les espaces. Nous n’en
rapporterons que l’essentiel :

Il était une fois un collectionneur très riche, ancien esclave d’Antioche, pré-
nommé Cif Amotan II, qui vécut de la moitié du Ier siècle au début du IIème
siècle de l’Ère Commune (…). On raconte qu’une fois sa liberté recouvrée,
Amotan se mit à collectionner des sculptures, des bijoux, des pièces de
monnaie et des biens provenant des quatre coins du monde. Les historiens
affirment que ce trésor inouï fut chargé à bord de l’Apistos (l’Incroyable),
un navire aux dimensions jusqu’alors inégalées qui embarqua vers Asit
Mayor où Amotan avait fait édifier un temple dédié au Soleil. Pour des rai-
sons mystérieuses (…), le bateau sombra, emportant avec lui le chargement
d’une inestimable valeur. (…) En 2008, au large de la côte est de l’Afrique,
ce trésor légendaire, resté enfoui au fond de l’océan Indien pendant près
de deux mille ans, fut découvert et extrait des profondeurs de la mer. …

La fiction mettant en scène l’archéologie marine est un puissant stimu-


lant d’imaginaire, régulièrement convoqué par Hollywood. Ici, l’entertainment
s’allie habilement au documentaire scientifique par de pseudo-précisions
de dates. Cette fiction permet des audaces : ainsi l’exposition de la Dogana
s’ouvre sur un gigantesque calendrier aztèque, suggérant l’idée que les dé-
couvertes opérées vont modifier nos connaissances de l’Antiquité, ou véri-
fier des récits que l’on croyait fantaisistes, les objets évoquant l’Amérique
comme l’Inde ou la Chine « attestent » de la mondialisation de l’Antiquité.
De plus, la fiction archéologique autorise différents formats de présentation :
films, photographies (géantes, lumineuses), sculptures, vitrines… Elle permet

80
l’exposition d’œuvres recouvertes de « coraux », qui ajoutent leur parasitage
coloré et des matières tactiles (dont on peut s’étonner de la qualité de re-
production) aux factures antiques censées être lisses. Les œuvres « inven-
tées » sont pour les principales des groupes statuaires évoquant une action
saisie au moment prégnant, selon les critères classiques relevés par Lessing.
Elles renvoient toutes à un épisode mythologique qu’un cartel « explicite ».
Plusieurs sculptures sont de colossales dimensions – le Démon au bol dans le
hall du Palazzo Grassi s’élève à 18 mètres. D’autres sont de dimensions plus
humaines, et représentent des groupes (un minotaure violant une femme),
des statues en pied, des torses, des bustes. Cette statuaire montre des pro-
totypes - la « découverte » juste exhumée et couverte de coraux déformant
la surface et l’anatomie – et leur déclinaison en trois ou quatre versions.  Le

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« Crâne de cyclope », par exemple, qui reprend manifestement un crâne de
mammouth creusé d’un trou central, est réalisé deux fois en marbre blanc
et une fois en bronze. Au Palazzo Grassi (moins public que la Dogana) sont
privilégiées des versions miniatures, avec ou sans scories, mais faites d’or ou
d’argent, avec des pierres précieuses ou fines. Les versions offrent donc à la
fois des pièces uniques tout en démontrant l’historicité de la reproduction
en art, en ce qui concerne les « chefs d’œuvre » notamment. Enfin, une quan-
tité assez impressionnante de vitrines (21 en tout) meublent majoritairement
les espaces le long des murs. Elles présentent, classées par ordre de gran-
deur, des centaines de statuettes, amulettes, poteries, objets divers, pièces
de monnaie, bribes d’or aux formes improbables, censées avoir été érodées
par la mer. Au Palazzo Grassi, la fiction se complète d’une salle d’exposition
de pseudo dessins de la Renaissance au XVIIIème siècle, lesquels auraient été
inspirés des textes antiques ou de la transmission des modèles des œuvres
accumulées dans l’Incroyable, ce qui témoignerait ainsi de la notoriété de la
fabuleuse collection avant le naufrage.
Le spectateur est invité à se rendre complice de la fiction, tout en en n’étant
pas dupe, ce qui le flatte. Il est même expliqué que l’artiste a utilisé les « co-
raux » pour déformer les visages et les corps : le spectateur est bien devant
une figuration contemporaine, qui a depuis longtemps « dépassé » la notion
du beau classique. Cette complicité est confortée de traits d’humour : on lit
le second degré des cartels, on sourit au Mickey Mouse mangée de coraux,
au produit dérivé façon Star Wars en or et pierres fines. Le spectateur joue
à tester ses connaissances en histoire de l’art : il reconnaît ici une allusion à
Néfertiti, là une mythologie célèbre (Méduse), là encore le pied de la statue de
Constantin, un bronze célèbre du Bénin… tous ces chefs-d’œuvre dont la re-
production fait le substrat des grands ouvrages classiques de l’histoire de l’art.
Boris Groÿs relève avec justesse le caractère désormais quasi public et
populaire de l’art contemporain, fût-il desservi dans un espace privé11. De fait
le visiteur ne serait pas différemment accueilli dans un espace institutionnel
public. Le caractère grandiose des statues en extérieur, visibles du Grand

81
Canal, est un attracteur. La médiatisation de ses lieux opérée par Pinault
les ouvre sur le tourisme de masse qui affecte Venise tout en préservant sa
forme plus élitiste. Ce caractère ouvert est plus qu’assumé par la collabora-
tion Hirst/Pinault, elle est une forme supplémentaire de légitimation pour qui
s’adressent, en définitive, ces œuvres : le collectionneur.
Le collectionneur est le « héros » du récit : il fait modèle. L’accumulation
des objets de sa collection est proprement renversante. Sa qualité est indexée
à l’histoire de l’art internationale. Les œuvres sont modifiées par des « coraux »,
dont l’extinction presque programmée renforce la rareté et fait briller leur diver-
sité comme une richesse. Les vitrines, avec leurs items classés du plus petit au
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plus grand, ajoutent le plaisir du « cabinet de curiosités » à la collection dédiée


à quelques chefs d’œuvre. L’ensemble des deux expositions cible toutes les
catégories du collectionneur : le contemporain, le moderne « classique » que
les torses épurés « grecs » raviront, le comité d’entreprise qui marquera son
entrée d’un groupe statuaire, l’amateur de dessins anciens charmé des pas-
tiches très habiles réalisés à la sanguine façon Léonard ou Rubens, le branché
ne craignant pas d’acheter très cher une figurine dérivée de Star Wars mais d’or
et de pierres précieuses ; le collectionneur d’armes, de céramiques, le numis-
mate… Le collectionneur cherchant le prestige et le collectionneur simplement
obsessionnel. Le méfiant de l’art contemporain sera rassuré par le prix de l’or.
L’entreprise aimera les groupes statuaires aux scènes dominant le spectateur,
l’agressivité de l’action représentée, la férocité des animaux et des monstres,
leur légitimation par référence aux récits mythologiques. L’obsessionnel rêve-
ra de vitrines à compléter… Treasures from the wreak of the Unbelievable est
vraiment incroyable en termes d’éventail de biens marchands.
Le développement de notre propos sur cet ensemble tendrait à montrer
le pouvoir de fascination qu’exerce ce déploiement quantitatif. Mais il est pos-
sible aussi que Damien Hirst ne réussisse pas le pari de vente que nous dédui-
sons de sa visée – le collectionneur – tant les ressorts de la relation art, média-
tisation et argent sont énoncés, et partant, dévoilés. Après tout, écrit ailleurs
Boris Groÿs : «  The goal of art is not to change things—things are changing
by themselves all the time anyway. Art’s function is rather to show, to make vi-
sible the realities that are generally overlooked.12” La précision avec laquelle
Hirst a mis en place sa stratégie tient au fait qu’il bénéficie d’une perspective
dont peu d’autres artistes peuvent se targuer13. Cette stratégie nous paraît il-
lustrer le plus clairement l’étude publiée en 2017 par Luc Boltanski et Arnaud
Esquerre dans Enrichissement, une critique de la marchandise14, étude qui fut
vraisemblablement concomitante aux années de préparation de l’exposition.
Dans ce livre, les deux auteurs identifient « un changement économique en
cours, particulièrement dans les pays de l’Ouest européen » :

Sans alléguer des arguments aujourd’hui souvent repris du prestige que


confère l’art à la richesse, nous soulignerons un changement caractérisé par

82
le développement de ce que nous avons appelé une économie de l’enri-
chissement, centrée sur l’exploitation d’une source de création de richesse
qui n’avait pas été utilisée jusque-là, au moins à ce degré (…) pour nourrir
l’accumulation capitaliste (…) Cette ressource est le passé. L’économie de
l’enrichissement prend appui non pas, principalement, sur la production
d’objets neufs, mais surtout sur la mise en valeur d’objets déjà là, extraits
de gisements de choses passées, souvent oubliées ou réduites à l’état de
déchets, ainsi que sur la fabrication de choses indexées au passé…15

Autant les phases précédentes de la société capitaliste industrielle et de


consommation se fondaient sur la valeur du nouveau, de la mode qui suscite
un désir sans fin de renouvellement de la marchandise, autant le constat que

SY LV I E CO L L I E R | Q U E L L E E F F I CAC I T É P O U R L’ACT I V I S M E P O L I T I Q U E E N A RT ?
mettent au jour Boltanski et Esquerre fait appel à cette autre « moitié de l’art »
que Baudelaire décrivait dans « Le Peintre de la vie moderne »16. Si ce « Peintre »
conçoit en effet que « la modernité c’est le transitoire, le fugitif, le contingent »,
il cherche aussi à « dégager de la mode ce qu›elle peut contenir de poétique
dans l’historique, tirer l›éternel du transitoire. » Conformément à un désir d’im-
mortalité bien en résonance avec la puissance, la dernière phase (en date) du
capitalisme met à la mode « l’historique », « l’éternel et l’immuable ».
Dans leur analyse, Boltanski et Esquerre insistent sur la présentation nar-
rative, parce que « la structure de la narration rend possible la représentation
du passé et l’enchâssement au sein d’une même histoire de l’évocation du
passé et de la référence à un présent qui le remémore 17». La fiction archéo-
logique de Hirst suit exactement ce schéma. L’artiste bénéficie de la mode à
laquelle il a contribué et qui a fait d’un art contemporain considéré comme
élitiste la base d’un système culturel spectaculaire. La « force mémorielle »
dont parlent Boltanski et Esquerre et qui étayent les nouvelles stratégies de
l’enrichissement est ici réhaussée par le prestige des lieux de l’exposition qui
font vitrine, et enchâssent l’événement dans un cadre lui-même empreint de
pouvoir narratif mémoriel : Venise et ses Palais, son histoire, le personnage
même de Pinault et de ses achats retentissants qui font garantie. Hirst n’a pas
oublié en nommant son collectionneur modèle que la présentation narrative
a « pour enjeu d’attacher le nom de personnes, singulières ou collectives, [le
plus souvent mortes] à des choses18 ». L’artiste organise la mise en scène d’un
passé qui serait de l’ordre du patrimoine historique mondial dans l’actualité
de la mondialisation (des collectionneurs), car « c’est l’alliance par un récit du
présent et du passé qui permet d’accéder à « l’immortalité »19 », laquelle est
toujours ultimement le but du collectionneur. Celui-ci sera sensible à l’histoire
accompagnée de récits « mythiques » auxquels il se sentira participant par l’ac-
quisition matérielle d’un morceau de la narration. D’autre part l’exposition de
la collection d’objets et de sculptures se référant au passé a pour but, ou pour
effet, de légitimer par l’histoire l’appartenance de l’art à la catégorie des objets
de luxe, de montrer la logique de continuité entre une œuvre historiquement

83
légitimée et des objets précieux, cumulables, collectionnables. En regard de la
collection, Boltanski et Esquerre expliquent en sociologues historiens qu’elle
« s’articule à la relation ambiguë » (tantôt comble de l’inutilité, tantôt métaphore
du capitalisme) que son développement a entretenu depuis le XIXème siècle
« avec la formation d’un cosmos de la marchandise »20. Ainsi la collection se-
rait un phénomène en expansion.  Quoiqu’il en soit, devant Treasures from the
wreak of the Unbelievable le collectionneur comme le visiteur qui n’achètera
jamais de l’art sont amenés dans un imaginaire qui les extraie de la confronta-
tion au quotidien, dans leur ébahissement devant la richesse. Les ressorts de
l’art dans sa dimension critique, provoquant la réflexion à travers une émotion
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

et l’invention d’un imaginaire constructif du réel sont ici proprement évacués.


La puissance de feu d’une telle coalition (Pinault-Hirst) fait paraître bien
faibles les tentatives de résistance. Celles-ci bénéficient rarement d’un appa-
reil médiatique qui, de toute façon, en détournerait le sens. Folk Archive de
Jeremy Deller et Alex Cane, que nous avons analysé ailleurs21 fait peut-être
exception à cet égard, puisque Deller bénéficie d’une belle reconnaissance.
Folk Archive met en valeur le patrimoine populaire, gratuit, public, issu de ri-
tuels mais vif au présent, et montre ainsi une autre forme de relation au passé.
Mais nous verrons ci-après un travail récemment proposé (été 2017) par l’artiste
d’origine allemande Till Roeskens au Cairn, le centre d’art de Digne-les-Bains,
situé dans « l’Unesco Géoparc de Haute-Provence », en France. La spécificité
du lieu implique que les artistes invités produisent une œuvre en relation avec
le paysage. Les centres d’art sont des structures qui ont commencé à émerger
en France dans les années 197022 et que la politique culturelle déployée par
le ministre socialiste Jack Lang dans les années 1980 a confortées, en syner-
gie avec les Fonds Régionaux d’art contemporain. Ces politiques culturelles
destinées à ouvrir la culture à l’ensemble des citoyens, et qui défendent éga-
lement le patrimoine ancien (y compris géologique, donc), ne sont pas sans
attendre un retour sur investissement. Boltanski et Esquerre rappellent com-
ment le même Jack Lang a décomplexé le tabou des relations entre l’art et
l’économie23. Ainsi un centre d’art est-il censé travailler avec l’éducation, mais
aussi avec le tourisme, en l’occurrence lorsqu’un centre d’art, comme celui
du Cairn, est dans une zone qualifiée à cet égard. Ces obligations plus ou
moins explicites apparaissent dans les arguments des demandes de subven-
tion que ces petites institutions adressent chaque année aux différentes ins-
tances publiques (Etat, Région, Département, ville). Par contrepartie logique,
les œuvres produites sont avant tout destinées à tout public, auquel est tou-
tefois demandé depuis quelque temps une modeste contribution (de nom-
breux petits centres d’art demeurent gratuits). Il faut savoir que ce système est
régulièrement fragilisé par la demande de la part de l’Etat ou des politiques
régionales de compléments par des financements privés (20%), ce qui im-
plique des mécénats bien affichés. Une fois l’accord établi entre le centre d’art
et l’artiste sur la double modalité du caractère public de la production et de

84
la ligne défendue par le centre (ici par sa directrice Nadine Gomez), l’artiste
a une grande liberté de conception en accord avec le montant (modeste) de
production qui lui est attribué : il ne se sent pas tenu de faire des productions
matérielles collectionnables. Ainsi ces centres sont-ils assez souvent des lieux
d’expérimentations, souvent éphémères.
Till Roeskens est un artiste qui tient à son intégrité politique, il ne fait guère
de concessions au marché ou à la médiation. Mais vivre de son art, ou simple-
ment pouvoir le réaliser, nécessite une rétribution minimum, qui passe en l’oc-
currence par le système de demandes de résidences et d’aides de l’état et des
institutions culturelles. Till Roeskens n’est pas sans une certaine notoriété. Il a
bénéficié d’une résidence-bourse en 2013-2014 à la prestigieuse Villa Médicis
à Rome afin d’éditer un catalogue reprenant ses travaux antérieurs. Il se sert

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volontiers de récits, il a une qualité de conteur, qu’il émaille de photographies
ou de dessins. Au Cairn, il entreprend de marcher dans les montagnes environ-
nant la ville de Digne et d’en rencontrer les habitants. Son travail se cristallise
sur deux projets, issus de moments de discussions et d’écoute de deux bergers,
Marcel Segond et Charles Garcin. Les discussions portent sur leurs souvenirs
d’une époque révolue où ces bergers montaient à pied chaque jour à la saison
avec leurs troupeaux de brebis dans les prairies hautes. Marcel Segond a 91
ans lorsque Till Roeskens recueille ses souvenirs. L’artiste décide d’en inscrire
les épisodes sur des plaques qu’il installe lui-même sur des bornes à différents
points de l’ancien trajet du troupeau. Ces plaques et leurs narrations inscrivent
ainsi des pauses de lecture et de regard sur le lieu au cours de la montée. L’artiste
crée à partir de ce parcours un chemin de randonnée, intitulé Chemin Marcel
(environ une heure ; dénivelé 240 m). A cette fin, il s’est occupé avec la direc-
trice du centre d’art des démarches pour rendre légale la voie (avec l’accord de
différents propriétaires) afin qu’elle soit ouverte et signalée aux randonneurs.
Le second projet, issu de conversations avec l’autre berger, est intitulé
drailles, ce mot qui nomme les chemins que tracent les moutons quand ils re-
joignent les alpages. Exposé dans la salle principale du petit centre d’art, il est
d’abord le fruit d’une cartographie, celle du paysage montagneux alentour et
de tous les noms, souvent poétiques, imagés, porteurs d’histoire, et pour la plu-
part oubliés parce qu’inutilisés, des lieux, vallons, pentes, ruisseaux, coteaux,
bosquets, et que rappelle à la mémoire le berger Charles. L’exposition se com-
pose de textes écrits en chemins ondulant sur deux murs, évoquant la marche
à travers les montagnes, rapportant les petits événements et les rencontres.
S’ajoutent sur les deux autres murs plusieurs photographies, et des cartes lé-
gères, fragiles, retracées à la main avec, annotés soigneusement, les noms de
chaque chemin, de chaque lieu-dit où passaient les troupeaux, où restaient une
maison, un refuge, une source.
Les deux projets se présentent donc comme un travail d’écoute de la part
de l’artiste, comme la captation d’un patrimoine précieux mais sans matérialité,
sinon celle du paysage réel. Les œuvres prennent soin de faire état d’un partage,

85
d’une attention à la parole de l’autre. Le déroulement de la procédure de créa-
tion est horizontal dans l’échange entre l’artiste et les bergers, ce que traduisent
les réalisations – le dénivelé du chemin de randonnée lui-même matérialise un
chemin d’usage, non un parcours de découverte de spectacles naturels. Dans
l’espace d’exposition, nulle œuvre ne surplombe impérieusement le spectateur :
les feuillets, les cartes, destinées à être lues, sont à hauteur des yeux. Toute la
présentation tend à faire valoir la qualité de la rencontre, c’est-à-dire à ne pas
affirmer la part de création de l’artiste, mais à lui donner le statut de recueilleur.
Il est toutefois remarquable que les réalisations utilisent les deux notions
exploitées par Hirst, la narration et le passé. Mais les récits ne sont en rien « un-
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

believable », ils ne sont pas imaginaires. Ils ouvrent le paysage à l’imagination


du passé. Ce passé se dessine dans l’expérience au présent de la randonnée,
il résonne dans l’évocation des noms, il n’est pas sollicité pour la création d’un
enrichissement matériel, mais dresse le dessin d’une autre vie, lente, campa-
gnarde, profonde. Le Chemin Marcel est ouvert gratuitement par un accord avec
les propriétaires des terrains : un échange entre individus. Rien ne s’y achète,
les plaques sont les seules matérialisations qui perdraient leur sens à être pos-
sédées de façon privative. Dans l’espace d’exposition, les textes écrits au mur
seront effacés. Les photographies et les cartes dessinées ne sont pas encadrées
et conformément au statut des centres d’art, ne sont pas en vente. Rien ne se
monnaie à l’exception, à l’entrée, du livre réalisé à la Villa Médicis et laissé en
dépôt. Aujourd’hui tout dessin se valorise, mais ici, les réalisations ne brouillent
pas leur statut avec un bien de luxe ou de prestige. Elles ne représentent pas le
concept de l’artiste réalisé par des exécutants. Elles exposent le partage de la
création elle-même. Les dessins peuvent être achetés par un service public (le
Fonds régional d’art contemporain par exemple). Mais le prix ne pourra guère
faire plus que compenser quelques heures de travail. Cependant le marché
aujourd’hui ne néglige aucune source : l’achat institutionnel confère une valo-
risation qui permet ensuite aux galeries de solliciter l’artiste. La galerie en re-
tour aura la tentation d’exercer une pression (logistique, financière) auprès des
institutions pour augmenter encore la valorisation des réalisations en favorisant
des expositions. C’est de ce cercle même que Till Roeskens se tient à l’écart en
continuant ses démarches artistiques difficiles, impossibles ou inutiles à accu-
muler, en prenant des supports légers et reproductibles, par exemple des vi-
déos qu’il vend lui-même à un prix très bas. Dans une courte présentation, Till
Roeskens explique son intérêt pour le récit des bergers parce qu’ils rapportent
un temps et un espace « hors du monde marchand »24. L’art de Till Roeskens
est une pratique de modestie, qui est aussi une attitude politique courageuse.
Celle-ci dépend du maintien par l’Etat de politiques culturelles au service de
tous, une condition périodiquement minée.
Depuis les années 1980, de nombreuses pratiques artistiques ont eu ex-
plicitement recours au passé. C’est un mouvement qui a accompagné le dé-
veloppement grandissant de l’enregistrement et de la constitution d’archives.

86
Ces dernières constituent une accumulation exponentielle d’images accom-
pagnées de commentaires écrits ou oraux qui fait désormais partie de l’en-
vironnement constitutif de notre perception et réflexion. Ainsi l’image et sa
narration, validées par un enregistrement qui les met au passé, est la modali-
té la plus partagée aujourd’hui par la société. En art, les retours et recours au
passé connaissent une grande diversité d’expressions, depuis la reprise des
méthodes traditionnelles jusqu’aux « remakes » d’œuvres conceptuelles. Les
retours peuvent conforter les esprits peu aventureux, mais la découverte du
passé est aussi un champ quasi infini de découvertes pour les curieux lassés
du présentisme imposé par le tempo de nos sociétés. L’attractivité du patri-
moine, le tourisme du passé (refabriqué), la « force mémorielle » conférée par
les narrations qui encadrent et refabriquent leurs images sont une cible logique

SY LV I E CO L L I E R | Q U E L L E E F F I CAC I T É P O U R L’ACT I V I S M E P O L I T I Q U E E N A RT ?
de l’économie, laquelle sait en retirer les signes qui donneront l’illusion d’une
profondeur aux biens matériels. Les deux exemples que nous avons analysés
(auquel nous pouvons ajouter Folk Archive de Jeremy Deller et Alan Kane)
pointent le lieu où la force récupératrice du marché s’exerce avec le plus de
poids et d’efficacité dans le maintien du système économique dominant : c’est
là où l’activisme politique doit se porter aujourd’hui. L’activisme des artistes
des pays politiquement opprimés a d’autres urgences. Leur impact est aussi
réduit, mais aussi nécessaire, que les propositions de Till Roeskens (qui per-
forme souvent ses récits devant un public). L’activisme en art doit aussi s’armer
contre son propre succès. Comment agit l’activisme de Shirin Neshat exposant
à Doha ? Combien de randonneurs feront-ils le Chemin Marcel en comparai-
son du nombre de visiteurs de la Dogana ? L’inégalité d’impact est flagrante.

Notes
1
Boris Groÿs, “On Art Activism”, e-flux 6
https://www.bm-lyon.fr/expositions-
Journal # 56, Juin 2014. Consulté le en-ligne/shadi-ghadirian/exposition/
20/08/2017. article/propos-de-l-artiste (sans date);
voir aussi http://culturebox.francetvinfo.
2
Adam Szymczyk, “Iterability and otherness
fr/arts/photo/la-guerre-les-femmes-et-
-Learning and working from Athens”, The
l-iran-rencontre-avec-la-photographe-
documenta 14 reader, 2017, p. 21.
shadi-ghadirian-228931. Entretien par
3
Magiciens de la terre s’est déroulée au Odile Morain @Culturebox, mis à jour le
Centre Georges Pompidou et à la Grande 06/12/2016 à 06H30, publié le 09/10/2015
Halle de la Villette du 18 Mai au 14 Août à 17H53. Consulté le 2/09/2017.
1989 sous le commissariat de Jean-Hubert 7
Tara Sadeghi, « Expression de la violence
Martin. Elle inaugurait l’exposition de l’art
dans les œuvres d’Ana Mendieta, Valie
de tout pays à égalité de l’art occidental.
Export, Marie-Jo Lafontaine et de la jeune
4
http://qataractu.com/shirin-neshat-artiste- scène iranienne », thèse de doctorat, 2017.
en-resistance-4641.html. Présentation du 4 8
« 2017 .‫هُرنهای جدید و درک مفاهیم | پــــلّـه‬. Consulté
nov. 2014. Consulté le 2/09/2017.
le 2 avril 2017. http://www.pellemag.
5
Ibid. com/?p=50.

87
9
« Azad Art Gallery | Fraud, Amir Mobed ». 22
Site du ministère de la culture, consulté
Consulté le 2avril 2017. http://azadart. le 20/08/2017.
gallery/en/eventdetail.aspx?Id=15. 23
Ibid., p. 81. Dans son “fameux discours
10
Voir Coëllier, « Collectionneurs, de Mexico en 1982 », il « affirme que les
spéculateurs… », in L’art et l’argent, sous liens entre culture et économie ne sont pas
la dir. de Jean-Pierre Cometti et Nathalie scandaleux (… ) sans économie, pas de
Quintane, Paris, éditions Amsterdam, 2017, culture ».
p. 100-124.
https://www.youtube.com/
24

11
Boris Groÿs : “ the number of large- watch?v=y5grB42lOr4
scale exhibitions—biennales, triennales,
documentas, manifestas—is constantly
growing. In spite of the vast amounts
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

of money and energy invested in these


exhibitions, they do not exist primarily
for art buyers, but for the public—for an
anonymous visitor who will perhaps never
buy an artwork. “The politics of installation”,
e-flux # 2, January 2009.
12
Boris Groÿs, « The truth of art”, E-flux
Journal #71 - March 2016. Consulté le
5/9/2017
13
Nous faisons allusion ici au crâne couvert
de diamants, For the Love of God, 2007, et
surtout à sa propre vente aux enchères de
toutes ses œuvres, en 2008, qui était une
forme de test du marché.
14
Luc Boltanski et Arnaud Esquerre,
Enrichissement, une critique de la
marchandise, Paris, Gallimard, 2017.
15
Id., p. 107.
16
Charles Baudelaire, Le peintre de la vie
moderne, in L’art romantique, vol. III., Paris,
Calmann-Lévy, 1885,p. 68-69 pour les
citations qui suivent.
17
Id., p. 169.
18
Ibid.
19
Id., p. 312.
20
Id., p.. 244
21
Coëllier, « Folk Archive de Jeremy Deller
et Alan Kane : une question de valeurs »,
dans Document, fiction et droit en art
contemporain, Jean Arnaud et Bruno
Goosse, dir., co-édition ARBA (Académie
Royale des Beaux arts, Bruxelles) et PUP
(AMU), 2015, p. 146-161.

88
Arte e Política, “Arte Política”:
Pleonasmo ou a arte como
discurso, participação e
resistência
Carlos Vidal
Professor na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, artista plástico e
crítico de arte. O espectro das suas análises pretende alargar-se na História da Arte:
tem escrito sobre Caravaggio e videoarte.
[email protected]

The purpose of this text is to


essentially link what we call "art
A. Preâmbulo and politics" with what we call
O presente texto é uma uma proposta, com di- "political art". They are essential
synonymies for an analysis of
versos matizes e vias de trabalho, para reflectir a rela-
the place of the art in society.
ção entre arte e (todo, quase todo) o mundo circun-
Its protagonist is, of course,
dante, digo deste modo iniciando este texto, para
the artist. Throughout the
depois proceder a subsequentes clarificações. Ou text we will study all possible
seja, o agrupamento arte e mundo pode ter (pelo relationships between the
menos) dois sentidos: arte e natureza (ou paisagem, artist and the outside world.
porque para Georg Simmel a paisagem é a unida- Even when the so-called "outer
de natural que o homem divide em “unidades isola- world" is not part of the work
das”)1 ou arte e sociedade (arte que é “social” num of art, it – the art – aspires to be
sentido crítico, interventivo, político, revolucionário represented in this outer world
– como, por exemplo, o experimentalismo soviético (ours).
dos anos 20, na transfiguração de cada medium em
Keywords:
causa única e última).
Art, politics, society, action,
A opção por mim tomada será a de me quedar
criticism, ambivalence
nas relações entre arte e sociedade, pois se aqui,
nestes pólos (arte e sociedade), pode haver um
debate profícuo e político, já entre arte e natureza
pode dizer-se que, à entrada na modernidade (ini-
ciando-se assim o século XX), houve declarado con-
flito que perduraria (inclusive) até pelo menos à arte
minimal/conceptual anglo-americana nos anos 60
e 70 (sequência de que excluiremos alguns aspec-
tos da Land Art ou do earth work, que, nos Estados

89
Unidos, também era conflitual embora não o parecesse; seja, é fácil verificar o
quanto um artista como Robert Smithson pretendia “redesenhar” a natureza,
uma forma de “conflito”). É pois importante constatar esta relação conflitual
(e de “rivalidade”) entre arte e natureza, para melhor perceber e dilucidar o
factor distintivo da ligação entre arte e sociedade.
Quanto à citada conflitualidade arte e natureza, fiquemo-nos por um
conhecido texto de Mondrian, “The New Plastic in Painting”, de 1917, onde
lemos: “enquanto as relações equilibradas na natureza são expressas pela po-
sição, dimensão e valor da forma e da cor natural, no [modo] ‘abstracto’ são
expressas directamente pela posição, dimensão e valor da linha e do plano
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

(cor) rectangular”.2 Claramente, o que Mondrian nos diz é que entre a pintura
e a natureza há um fosso intransponível. Porque a pintura existe entre o visí-
vel e o invisível (a que chamo de “invisualidade óptica”) e a natureza, por sua
índole, presentifica-se além e aquém do olhar
Digamos que não é aqui o lugar e o momento para dilucidar este tema da
relação conflitual (ou ambivalente) entre arte e mundo natural, e que iremos
antes por outra via constitutiva do espaço circundante, como disse: o mundo
social, a sociedade e a política, sua interacção com o objecto artístico e as
redes por este criadas na sociedade.
Este universo de relações pode ter quatro formulações: podemos nomear
este tema (ou, como digo no título, um quase pleonasmo) como o das rela-
ções entre arte e política; entre arte e sociedade; entre artista e política; por
fim, entre artista e sociedade. Saber, entretanto, se estes múltiplos pólos são
uma e a mesma coisa é tarefa para outro ensaio (ou seja, se toda a arte é po-
lítica, ou se toda a arte é um momento/movimento da sociedade, então “arte
política” seria uma expressão pleonástica). Mas convém proceder a algumas
desambiguações. Em primeiro lugar, de que sociedade falamos quando usa-
mos o termo “sociedade”? Natural resposta – da sociedade capitalista, demo-
liberal. Predadora, sendo que nela a finança se sobrepõe á própria economia
– em suma, um problemático desafio aos artistas e à criação artística.
Sucintamente, o capitalismo provém de um desenvolvimento mercantil da
Europa posterior às catástrofes demográficas provocadas pela Peste Negra,
e das fomes do feudalismo. Desde esse mercantilismo até à consolidação da
Revolução Industrial da segunda metade do século XVIII, assistimos ao esta-
belecimento definitivo (??) do capitalismo. Como sabemos muitíssimo bem,
para Marx, o capitalismo é um modo de produção que desapossa os traba-
lhadores do seu trabalho, porquanto os meios de produção estão nas mãos
de uma classe exclusiva da sociedade, tornada uma comunidade fragmenta-
da. Fragmentação, desapossamento, alienação, propriedade privada, explo-
ração, mais-valia, divisão social do trabalho, produção de mercadorias e sua
fetichização, são os elementos da vida e produção capitalistas.
Diz Marx nos Manuscritos Parisienses: “(…) o produto do trabalho vem
opor-se ao trabalho como um ser estranho, como uma potência independente

90
do produtor. O produto do trabalho é o trabalho que se fixou, materializou
num objecto, é a transformação do trabalho em objecto (…).
A realização do trabalho é a sua materialização. Nas condições da econo-
mia política, esta realização surge como a dissipação do operário, uma perda
e servidão materiais, a apropriação como alienação, como despojamento.
(…) Separando o homem, 1º da sua natureza, 2º do seu ‘eu’, da sua própria

C A R L O S V I D A L | A R T E E P O L Í T I C A , “A R T E P O L Í T I C A” : P L E O N A S M O O U A A R T E C O M O D I S C U R S O, PA R T I C I PA Ç Ã O E R E S I S T Ê N C I A
função activa e vital, o trabalho alienado torna a espécie humana estranha
ao homem [sublinhado meu].”3 É isto o demoliberalismo onde se desenrola
a arte das vanguardas às neovanguardas (mais cúmplices do demoliberalis-
mo que dos totalitarismos, como erradamente julgava Jean Clair), o mundo
do homem irreconhecível diante de si mesmo. Separado do que produziu,
separado do seu “ser genérico” num processo de alienação que se alimenta
a si mesmo até à potencial eclosão de um (inevitável) processo de transfor-
mação e emancipação.
Acima de tudo, o capitalismo é hoje, cada vez mais (na “sociedade do
espectáculo”), uma máquina dupla: é um destrutivo processo de expropria-
ção, do trabalho e da vida, e uma máquina de linguagem que tende a impor
a inexistência e “impossibilidade” de uma outra forma de existir, promovendo
a impossibilidade de pensar-se outra forma de vida em comum.
Numa entrevista a Cabinet, Alain Badiou descreve melhor que ninguém
este processo e esta falsificação/inevitabilidade (que progressivamente se
manifesta na colocação daquilo que o mundo do trabalho possui, e dos ser-
viços públicos, à mercê da dívida privada dos especuladores): “1) A história
mostrou-nos que o capitalismo liberal democrático é o único regime político
e social verdadeiramente humano, o único que verdadeiramente se adequa
ao Bem da humanidade. 2) Todos os outros regimes políticos são ditaduras
monstruosas e sangrentas, completamente irracionais. 3) A prova deste facto
reside na partilha da mesma face do Mal entre todos estes regimes que com-
bateram o liberalismo e a democracia. Assim, o fascismo e o comunismo, que
aparentemente se opõem entre si, são de todo similares. Pertencem ambos
à família ‘totalitária’, que, por sua vez, se opõe à família das democracias ca-
pitalistas. 4) Estes regimes monstruosos nunca podem produzir um projecto
racional, uma ideia de justiça ou algo dessa natureza. Aqueles que alguma vez
lideraram um desses regimes (fascistas ou comunistas) foram necessariamen-
te casos patológicos: precisamos de estudar Hitler ou Estaline com as ferra-
mentas da psicologia criminal. Aqueles que alguma vez os apoiaram, e tive-
ram milhares de apoiantes, eram seres alienados pelo misticismo totalitário.
Em suma, eram pessoas conduzidas pelo Mal e por paixões destrutivas. (…)”.4
E eis a refutação de Badiou deste enunciado, ele sim enunciado totalitá-
rio: “Trata-se de ‘raciocinar’ numa pura ilusão ideológica. Primeiro, o capitalis-
mo liberal não é o Bem da humanidade. Muito pelo contrário; é o veículo de
um selvático e destrutivo niilismo. Segundo, as revoluções comunistas do sé-
culo XX representaram esforços grandiosos para a criação de uma história e de

91
um universo político completamente inovadores. A política não é a gestão do
poder de estado. A política é, em primeiro lugar, a invenção e o exercício de
uma realidade concreta absolutamente nova. A política cria o pensamento.”5
Portanto, a política cria o pensamento e não o contrário como nos tentam impor!
Que o capitalismo é selvático e destrutivo, sabemo-lo agora melhor do
que nunca no actual contexto da chamada “crise das dívidas soberanas” e
na renovada febre privatizadora que assola a Europa movida, não há muito,
pelo ritmo do bailout.
E a pergunta que aqui surge é esta: e a arte – que faz?, que fazer no seio
da criação cultural, ela própria sufocada (pois nunca o capitalismo apreciou
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

a cultura livre, outro pleonasmo, pois só há cultura livre, naturalmente)? Ora,


para o capitalismo não há arte nem cultura, apenas “indústria cultural”.
Num outro texto, diz-nos Alain Badiou que a única alternativa à delapida-
ção do capitalismo é aquilo que ele denomina “ideia”, “hipótese” ou constru-
ção revolucionária de uma sociedade comunista e de uma democracia igua-
litária, com poucos paralelismos com a sociedade actual, fantasmagórica,
pois só no acto eleitoral é capaz de simular um “igualitarismo” efémero. Uma
pergunta para um outro ensaio: como distinguir a prática artística, ou o que
dela se espera, numa sociedade socialista da sua realidade numa sociedade
capitalista? Ou seja, há “arte no capitalismo”, “arte no socialismo”, ou há “arte”,
“criação” simplesmente, coisa ontologicamente (um Ser) similar. Temos uma
definição de arte e prática artística Unas ou há uma “arte” e sequente interven-
ção artística para cada tipo de sociedade? De outro modo, talvez totalmente
genérico, há arte ou há “artes”? Jean-Luc Nancy:

As artes fazem-se umas contra as outras: esta frase deve entender-se de


várias maneiras segundo os sentidos dados ao verbo “fazer” e à proposição
“contra”. Provavelmente, toma-se o verbo no sentido de “formar-se” ou de
“exercitar-se”. A proposição pode ter um valor de oposição ou de continuida-
de. Na realidade, estas quatro modulações aqui tendem a produzir uma só: as
artes nascem de uma relação mútua de proximidade e de exclusão, de atrac-
ção e de repulsa, e as suas respectivas obras operam e se entretecem nessa
dupla relação.6

B. Casos
Para falar deste tema – arte política ou arte e política – eu procederia a um
seu desdobramento em 5 tipologias que analisarei seguidamente.

1) Num primeiro tempo, e num arco que nos leva de Malevich, Mondrian
a Pollock e Barnett Newman (meados do século XX), ou destes ao mini-
malismo, a Ângelo de Sousa ou Tania Bruguera (cujas obras não reflectem
as suas posições políticas, mas é a importância da sua obra que a faz ter
posições políticas), encontramos arte e artistas que crêem numa radical

92
autonomia (estética, formal) dos seus objectos, predominantemente alicer-
çados em formulações abstractas/geométricas (do misticismo de Malevich
às unidades de modulação/seriação do minimalismo), processos que se
julgam distantes e intrinsecamente distintos dos eventos sociais e políticos.
Contudo, muitos destes autores assumem ou atribuem-se algo que se
pode denominar “componente cívica”, intervindo na sociedade pessoal

C A R L O S V I D A L | A R T E E P O L Í T I C A , “A R T E P O L Í T I C A” : P L E O N A S M O O U A A R T E C O M O D I S C U R S O, PA R T I C I PA Ç Ã O E R E S I S T Ê N C I A
ou colectivamente, mas não artisticamente. Ou melhor, nalguns exemplos
propostos – Ângelo de Sousa e Barnett Newman –, intervêm as “pessoas”
(como artistas e cidadãos prestigiados) e não as “obras”.
2) Num segundo tempo, e através de autores como Francis Alÿs, Krzysztof
Wodiczko ou Santiago Sierra, não há obra de arte sem um olhar para a
sociedade e seus problemas, pois a política está inscrita no medium uti-
lizado (filme, fotografia, pintura, performance, etc.).
3) Num terceiro tempo (de Courbet a Alves Redol ou Álvaro Cunhal, di-
gamos), ou numa terceira forma de relacionamento entre arte e socieda-
de e política, através de linguagens predominantemente realistas, o ar-
tista vive com e partilha dos problemas do operariado ou campesinato
e as suas obras reflectem essas vidas, experiências e dramas colectivos.
4) Neste ponto, o artista não aborda directamente temas “políticos” (num
sentido estrito), mas antes eventos (ou temas) que têm e, em permanên-
cia, conduzem a uma forma de crítica social (Géricault) com consequên-
cias políticas.
5) Teremos ainda o artista que, num contexto político extremo (a barbárie
nazi, por exemplo) não procura refugiar-se nem se exila (do país), antes
permanece no que acha ser o seu lugar (em múltiplos sentidos) embora,
de modo deveras ambivalente (por vezes, pactuando selectiva e mesmo
perigosamente – para a sua “reputação” histórica), se vá ligar ao poder
político para “salvar” (é o caso ou os casos que apresentarei, sendo que
tratarei de um deles) algo que acha que deve ser “salvo” (ou ele pode
“salvar”), se necessário for a custa da sua vida, momento extremado e ad-
mitido desde o início: tomemos o caso do maestro Wilhelm Furtwängler
(1886-1954), uma figura complexa da história da arte do século XX, para
uns cúmplice do nazismo, para outros arquitecto a seu modo dessa cum-
plicidade que lhe serviria para “salvar a música” alemã, levando a sua aura
e prestígio (arriscadamente?) ao poder para lhe mostrar a necessidade de
uma excelência que supera a ideologia (veja-se a defesa de Furtwängler de
inúmeros músicos judeus) – Furtwängler (diferentemente de Heidegger)
protagoniza aqui uma “resistência ambivalente”.

Mostra como esta categoria, que eu aqui proponho, é a do artista sem medo,
porque opera no seio da barbárie que tudo destrói á sua volta, e ele intenta
sempre ver além disso, ainda que se perca nas teias da barbárie, ou estas aí o
imobilizem. Mas o seu ponto de partida é o de que a imobilidade é impossível.

93
1. Como disse, nesta primeira tipologia, o artista crê, certa ou erradamente,
na autonomia absoluta da sua obra em relação à sociedade e, como tal, poste-
riormente ele próprio – por sua conta e inadiável responsabilidade – intervém
no mundo social. Trata-se do que eu chamo o par “arte autónoma / artista par-
ticipativo com empenhamento cívico”.
Explico melhor, e com exemplos.
Proponho dois casos: um português e outro norte-americano, respecti-
vamente o de Ângelo de Sousa (há pouco falecido) e o de Barnett Newman,
nome incontornável da arte internacional de meados do século XX, um dos
mais importantes autores americanos do pós-guerra, expoente de uma espé-
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

cie de visão mística do Expressionismo Abstracto. Num e noutro há como que


uma crença, talvez condicionada pelos poderes existentes burgueses (isto é,
o mercado), de que a obra pode ser auto-reflexiva, que ela apenas se legitima
pelo sucesso de resolução dos seus problemas e invenções formais. Ou que a
obra contém os meios da sua própria legitimação, ou que o seu abstraccionis-
mo radicalizado (ou assim pensado) não fala, se não para anunciar a presentifi-
cação dos elementos estruturais da linguagem plástica (da pintura, por exem-
plo: ponto, linha, plano, gesto, cor, etc.).
Ora, para chegar a esta admissão de possibilidade de uma “pureza” for-
mal a-social houve um longo caminho nas artes e nas letras, desde o poeta
Mallarmé, desde as inovações de Rodin e do Impressionismo, caminho que
podemos chamar de MODERNISMO, e que, curiosamente, começa com uma
interessante articulação entre descobertas científicas e proposições filosóficas.
No caso, umas e outras foram sedutoras para os artistas ligados às vanguardas
a às tendências mais radicalmente afirmativas.
Paradigmático do afirmado. Em 1839, o químico Eugène Chevreul publicou
o seu estudo Sobre a Lei do Contraste Simultâneo das Cores; para ele não há
cor em si (contrariando, de certo modo, Goethe), mas antes uma cor que se lê
como “aquela” cor dependendo das circunstâncias envolventes (mutação, inte-
racção). Chevreul inventou uma gestação da cor dependente de uma mistura
aditiva, óptica, efectuada não na tela mas na retina. Esta exigência de elastici-
dade da retina (que deixara para sempre uma anterior condição de passivida-
de: seja, a retinopassividade) é coincidente com a filosofia de Henri Bergson,
exposta mais adiante, no seu livro Matéria e Memória,7 no final do século XIX.
Diremos que neste momento mais facilmente a arte se aproximou de premis-
sas científicas do que políticas ou sociais.
Foi então a partir daqui que os impressionistas inventaram um discurso
sobre a cor, no qual a cor era o mundo inteiro, formalmente, construtivamente:
desde a forma ao espaço, profundidade e perspectiva, uma vez que eles não
se interessavam pelo desenho, nem, como disse, pela marcação espacial pers-
péctica linear (uma lei vigente desde o Renascimento).
Com a evolução de um e de outro, o museu e o mercado burgueses promo-
vem esta atitude auto-reflexa; contudo, muitos artistas a ela não se confinam. Daí

94
esboçam uma bifurcação, digamos assim: laboram
na sua obra e, paralelamente, reclamam uma in-
tervenção cívica no mundo social em que vivem.
Claramente Barnett Newman tinha uma vida
cívica com acertada notoriedade. Em 1933 deci-
de concorrer a mayor da cidade de Nova Iorque,

C A R L O S V I D A L | A R T E E P O L Í T I C A , “A R T E P O L Í T I C A” : P L E O N A S M O O U A A R T E C O M O D I S C U R S O, PA R T I C I PA Ç Ã O E R E S I S T Ê N C I A
com um programa cultural, político e educacio-
nal muito concreto. O seu acto era claro, mas a
componente política, ou a leitura que ele fazia
da militância política, era um tanto ou quanto
dúbia. Deixando mesmo transparecer as limita-
ções desta dupla frente: arte auto-reflexa, inter-
venção cívica pessoal (não propriamente “artís-
tica). Newman separava o intelectual e o artista
do partido, pois dizia que o partido, ao serviço
de uma classe social, tornava o intelectual “in-
visível”. Ainda noutros escritos, nomeadamente
no seu Manifesto mais conhecido, “The Sublime Fig. 1. Barnett Newman – Programa
político para as eleições a Mayor de Nova
is Now”,8 1948, faz uma leitura política da histó-
Iorque, 1933
ria recente da América, esperançado que estava
então no futuro do New Deal; dizia: “nós aqui na
América, libertos da história europeia, fundamos
um novo mundo de emoções”.
Tinha esperanças numa sociedade mais
justa depois de Roosevelt, com as suas políticas
de combate ao desemprego, fixação do salário
mínimo, investimentos públicos, novas fórmulas
quanto às pensões, etc., mas é um facto, pelo
menos para ele, que nós não podemos averiguar
o quanto isso se manifestava na sua obra e na sua
“esperança” no “agora” e no “futuro”.
O que sabemos é o inverso: estas esperanças
não tiveram consequências na sociedade ameri-
cana, onde o capitalismo atinge proporções cada
vez mais trágicas (na aproximação de um mais do
que certo colapso social e bancarrota, numa ra-
refacção de estado social, cada vez mais longe
vão estando os tempos de Roosevelt). E, de certo
modo, a obra de Newman mantém-se, incólume
a tudo isso. Será correcta esta leitura (pode haver
uma obra isolada da sociedade)? Trata-se de uma
discussão interminável, que pelo menos aqui foi
apresentada nos seus contornos essenciais.

95
O artista português Ângelo de Sousa não estaria muito longe deste con-
texto. A sua obra sempre teve os elementos estruturais da linguagem como
referentes (cor, linha, plano, na pintura; ou o movimento, implícito e explícito
na escultura, para além de intermináveis pesquisas sobre outros media, como
a fotografia e o vídeo). Paralelamente, empenhou-se em vários combates polí-
ticos: mandatário de partidos políticos, concretamente mandatário pelo Porto
da candidatura presidencial de Jorge Sampaio, em 1995.
É complexa, esta separação entre homem e obra, tão complexa que não
podemos aqui clarificá-la por completo. Apenas indiciá-la como tópico e pro-
blema central do tema deste ensaio.
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

2. Portanto, na primeira tipologia, a anterior, há a obra e o artista: a obra


julga-se ou julgam-na autónoma, mas o artista disso não está certo nem se-
guro, digamos, por isso intervém na vida pública, não com a sua obra, mas
porque sente essa obrigação como cidadão. Deste modo, não diremos haver
uma separação TOTAL entre arte, artista, política e sociedade, mas uma sepa-
ração parcial: pois não intervém o “artista”, mas antes a sua “visão do mundo”,
que a tal o obriga.
Agora, na segunda tipologia, a situação é completamente diferente: o
artista vê vivificar-se, ou vê inscrever-se no seu MEDIUM (MEIO ou disciplina),
logo desde o início, portanto, uma razão política-social. A arte, a poesia, ou
a pintura só pode ser política, logo “arte política” é, efectivamente, um pleo-
nasmo. Gostaria de dar três exemplos:
- Aqui, artista e obra são políticos porque não podem deixar de o ser,
isto é, a obra é política porque o MEIO ou MEDIUM empregue é parte
do mundo político e social envolvente.
Os 3 exemplos são:
a) A obra Veículo para Homeless, de 1988, do polaco com carreira no-
vaiorquina, Krzysztof Wodiczko.
b) A grande acção colectiva Cuando la fé mueve montañas, para a Bienal
de Lima de 2002, Peru, de Francis Alÿs.
c) E alguns aspectos da obra de Santiago Sierra

2. a) A obra de Wodiczko tem por tema a vida e as circunstâncias da popu-


lação sem-casa, os homeless, na autodenominada cidade mais rica do mundo.
É uma obra sobre esse absurdo de não ter casa na cidade do $$$$, e sobre
a forma natural e “despreocupada” como o capitalismo vê essa situação, ou
melhor ela, a obra, é sobre o facto do capitalismo não ver aí nada de signifi-
cativo, quer dizer, no capitalismo o mais fraco deve viver na rua, e a conversa
está encerrada. Na época da realização deste projecto de Wodiczko, o home-
less era obrigado a ser recolhido em hospícios sem nenhum nível humano e
se permanecesse na rua era uma espécie de doente mental – segundo con-
siderações do mayor da cidade.

96
Mas a obra de Wodiczko é política não ape-
nas pelo seu tema, ela é política porque surge
sob a forma de um objecto e porque nos fala de
um tipo de urbanismo, muito característico das
supostamente ricas cidades americanas, onde
a exclusão é a norma, a sedução ao crédito en-

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ganador é a outra norma, e, em suma, o huma-
no posto no lixo por razões ligadas ao suposto
pomposo “reordenamento urbano”.
Por outro lado, trabalhando com objectos,
Wodiczko entra dentro do sistema dos objectos, Fig. 2 – Krzysztof Wodiczko – “Homeless
para citar uma expressão do pensador francês Vehicle”. 1988-1989

Baudrillard.
No sistema dos objectos e no sistema das
mercadorias, o valor de uso cede terreno ao
valor-imagem, objecto e mercadoria são sem-
pre fetiches:
- O objecto nada tem a ver com o sujeito
- O seu fetiche é a sua imagem de marca
- Ele não é mais real, para nada serve, é uma
fantasmagoria – problema do Design con-
temporâneo, onde tudo é signo, forma, fan-
tasmagoria, status.
- Em resumo, criando algo que não é Escultura
nem Pintura nem Literatura, Wodiczko in-
venta um objecto e, por isso, logo desde
essa escolha do objecto, ele terá de enfren-
tar estes problemas: do Design, da merca-
doria, etc. Logo, a sua obra é política NÃO
PELO TEMA (que também o é), mas desde
a CONCEPÇÃO e invenção de um novo
mundo de objectos !! Fig. 3 – Rancis Alys – “Algunas vezes el
hacer algo no lleva a nada”. 1997
2. b) A obra de Alÿs, é das mais interessan-
tes e imponentes da última década e descreve-
-se deste modo:
- O artista reuniu cerca de 500 pessoas.
- A cada uma deu uma pá, alinhou-as no
sopé de uma colina.
- Fê-las subir e descer ordenadamente es-
cavando, levantando terra.
- No final, muito pouco, mas algo a monta-
nha se moveu.

97
Em primeiro lugar, o artista criou uma comunidade de seres iguais, uma
comunidade utópica sem classes. Foi uma obra momentânea? Foi.
Mas duas coisas são aqui de destacar: em primeiro lugar, a posse da terra
para todos, a abolição da propriedade em nome de um projecto colectivo
tornou-se possível. Diremos que o mito se tornou realidade.
Diremos que o artista pretendeu fixar a hipótese dessa possibilidade na
mente dos intervenientes, daí criar uma narrativa que passasse de pessoa para
pessoa, e de geração em geração.

2. c) Falemos agora de Santiago Sierra. É um espanhol nascido em 1966


CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

e de vivência mexicana (vivência que, certamente, lhe tem feito ver o mundo
de forma muito peculiar e algo violenta).
Fora do espaço das artes, Sierra não acredita no mercado livre e mos-
tra-nos que todas as relações de trabalho são relações pagas de puro
sadismo e humilhação. No campo da arte, Sierra não acredita igual-
mente numa relação livre autor-espectador que não envolva dinheiro.
Por isso, Sierra paga aos seus figurantes para representarem situações razoa-
velmente humilhantes que ele imagina como “obras de arte”: o espectador
é uma marioneta nas mãos do autor, e ambos apenas interagem porque o
autor quer e para tal paga mais ou menos bem. Crapulice do autor-artista?
Não, exposição, acima de tudo, da falácia democrática em arte e em socieda-
de, onde o dinheiro pode comprar todo o tipo de humilhação esteticizada.
Por isso, Sierra interage, sim, mas humilha o espectador com genialidade, e
mostra que o grande desejo das democracias é ter figurantes como os seus
– passivos, obedientes e pagos (bem ou mal pagos, conforme as crises e dé-
fices orçamentais).

Vejamos agora algumas obras (em que Sierra nos baralha inclusive nos
termos em que não sabemos se faz “arte pública” se “arte com o público”,
pago para tal, é claro):
- Em 1999, Sierra desenha uma linha de 2,5m nas costas de seis pessoas
(remuneradas).
- No ano seguinte, paga a vários trabalhadores ilegais para permanece-
rem dentro de cartões.
- Em 2001, paga uma sessão e a cento e trinta e três pessoas para pinta-
rem o seu cabelo de loiro.
- Em 2002, fez várias performances em que pagava a uma pessoa para
permanecer de cara virada para a parede.
- Ainda em 2002, realiza a acção (escultura?) intitulada (de título descriti-
vo), Trinta trabalhadores remunerados, virados para a parede e ordenados
em dégradé desde a pele mais clara à mais escura.
- 2003 é o ano da sua famosa intervenção na 50ª Bienal de Veneza, no
Pavilhão de Espanha, seu país (onde não vive) e terra pela qual não sente

98
nenhum vínculo patriótico, como por nenhuma outra, naturalmente. A sua
intervenção constituía-se por um muro construído nos Giardini que obs-
truía parcialmente o acesso ao Pavilhão nacional, no qual apenas podiam
entrar cidadãos munidos de passaportes espanhóis, tal como sucede aos
imigrantes do Magrebe nas costas do sul de Espanha ou nas suas cida-
des do Norte de África. Entretanto, a palavra “Espanha” que sinalizava o

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pavilhão era tapada.
- Em 2008, realiza Grupo de mulheres sem casa pagas para se manterem
uma noite de pé e viradas para a parede.
- Em 2009, paga a três casais negros para praticarem sexo ao vivo (milime-
tricamente arrumados, postura doggiestyle) numa galeria de arte, acção
depois noutros locais alargada a um maior número de participantes e
com o título Los Penetrados.
- Desde 2009, outra intervenção paradigmática para a definição e re-
definição da ideia de arte pública crítica foi encetada pelo autor, o NO:
Global Tour.

Consiste na tournée de uma enormíssima escultura apenas formada pela


palavra NÃO (NO, em espanhol, inglês, francês…), materializada numa chapa
negra com cerca de 3,20 m de altura e 4 m de largura colocada numa camio-
neta. A intervenção foi global (isto é, a palavra percorreu o mundo) e transdis-
ciplinar: a obra podia ser uma escultura minimalista, mas uma escultura em via-
gem; por fim, essa viagem deu origem a um filme, ou melhor, a um road movie.
A obra foge simultaneamente à escultura e à linguagem, pois uma palavra em
movimento pelo mundo não é nem uma frase nem uma escultura, é cinema!
Em concreto, três “NO” percorreram o mundo: um, parte de Lucca, passa
por Berlim e por áreas habitacionais e industriais da antiga RDA; Dortmund,
Roterdão, Maastricht, Bruxelas, Londres e Greenwich (escolhas não inocentes).
Em Nova Iorque, depois de atravessado o oceano, visitou ruas e avenidas junto
à Bolsa de Valores (imprescindível passagem por Wall Street), e junto ao edifí-
cio da ONU. Depois Miami, Art Basel Miami, e Washington.
Um segundo “NO” sai de Toronto e passa por cidades operárias dos Estados
Unidos (como a deprimidíssima Detroit). Um terceiro e último “NO” sai também
de Lucca, detém-se com todo o prazer defronte do Palácio da ridícula família
Grimaldi, passa ainda por alguns eventos artísticos (ARCO, Madrid) e vai até ao
Japão, à Trienal de Aichi.
A situação deve assim ser sintetizada: mais do que uma obra de arte públi-
ca, um road movie tridimensional, uma mensagem política, uma escultura mini-
mal, uma frase, um emblema, um signo e grito para os tempos actuais, Santiago
Sierra inventou um novo medium para a obra de arte: o medium não é a ma-
téria em que a obra se concretiza, nem o filme que a documenta circulando à
volta do mundo, aqui o medium é um estado de espírito: a pura negativida-
de, a recusa de existir na sua própria existência objectual, o prazer de não-ser.

99
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Fig. 4 – Santiago Sierra – Projecto “NO”. 3. A terceira tipologia da arte política, ou da


2009 relação entre arte, política e sociedade, é talvez
a mais fácil de entender, o que não significa um
tipo de facilitismo estético: é coincidente com
aquilo que, por vezes, e desde Courbet, chama-
mos REALISMO, na literatura como na pintura.
Trata-se de obras ilustrativas de situações
de luta política e de luta por uma vida humana
digna: de cenas pertencentes ao processo da luta
de classes e das massas trabalhadoras, cenas de
luta pela dignificação do trabalho, cenas e vivên-
cias representadas que o artista experimenta di-
rectamente antes de as descrever. Álvaro Cunhal
dedica a este tipo de arte comprometida o seu
capítulo 7 de A arte, o artista e a sociedade; ele
Fig. 5 – Gustave Courbet – “Britadores de viveu interiormente este processo, como crítico
Pedra”. 1849 literário, e como pintor, por isso para aí vos re-
meto, numa teia de análises enciclopédica e de
casos paradigmáticos tão diversos como os de
Alves Redol, Homero, Bruegel, Van Gogh, Portinari,
Pomar, Vespeira, Augusto Gomes, Soeiro, Manuel
da Fonseca………………
4. Há uma quarta tipologia nas relações que
temos aqui estado a tratar entre arte, política, ar-
tista e sociedade. Aqui o artista não faz política,
mas ocupa-se de algo que, pelo modo como o

100
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trata, pode ter ressonâncias e, desejavelmente, Fig. 6 – Álvaro Cunhal – desenho. 1958
consequências políticas
É paradigmática a obra de Géricault, A
Jangada do Medusa.
Contemos resumidamente a história desta
obra e daquilo que ocorreu para o artista ter assu-
mido de forma invulgarmente dedicada (fechou-
-se no seu atelier, rapou o seu cabelo, isolou-se
do mundo) este evento.
A Jangada do Medusa é a obra de uma vida,
de proporções gigantescas, foi terminada pelo
pintor aos 27 anos de idade (nada há de mais
inadiável do que esta urgência). Trata do nau-
frágio da fragata francesa Méduse nas costas da
Mauritânia em 1816. Não se reporta a uma vulgar
narrativa de sobrevivência, mas de um atlas im-
pressionante da condição humana. Durante treze Fig. 7 – Géricault – “Jangada do Medusa”.
dias cerca de 150 pessoas vagaram pelo oceano 1819
numa pequena jangada improvisada. As que so-
breviveram viram cenas, nesse pequeno espaço,
de fome e canibalismo, desidratação e loucura.
O escândalo, e a revolta do pintor, dirigia-se à re-
centemente restaurada Monarquia francesa e à
nomeação de favor de um incompetente capitão.
O interesse público pela tragédia, leva Géricault,
indirectamente, a uma acusação política e a um
retrato dos limites do humano. Que, precisamen-
te, pelo ocorrido e pela pintura, ficamos a saber

101
não ter limites. Ilimitado é o humano, como a sua
arte. Como esta pintura: grito de revolta, ícone de
luta, símbolo de que a mera sobrevivência não
é certamente a nossa meta. Não é a nossa única
nem a última meta.9

5. Vejamos, por fim, o caso de Wilhelm


Furtwängler, enorme intelectual obviamente (ao
nível dos milhares de exilados como Thomas
Mann, Gropius ou Schoenberg), escritor e teóri-
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

co, compositor e, muito provavelmente, o maior


regente de orquestra da Alemanha, director da
Filarmónica de Berlim entre 1922 e 1945, durante
Fig. 8 –Notícia da estreia mundial da toda a II Guerra, portanto (se apenas nos ativermos
sinfonia “Mathis der Maler” de Paul às datas) o “The Devil Music Master”,10 o maestro
Hindemith. Wilhelm Furtwängler dirigiu a
Orquestra Filarmónica de Berlim.
que terá dirigido para um dos aniversários do
führer, ou o maestro que teria defendido a quali-
dade da música e intérpretes intransigentemente,
mesmo em cartas a Joseph Goebbels (e há cartas
muito “secas” dos anos 30);11 foi ele o maestro do
Reich como Riefensthal fora a sua cineasta (ou,
antes, Veit Harlan) e Richard Strauss (que sublinhou
tal ter sucedido em 1933 sem a sua autorização
e conhecimento) fora o Reichmusikkammer que
compôs mesmo o hino dos Jogos Olímpicos de
1936, e Elizabeth Schwarzkopf a figura operática
do Reich tendo filmado e cantado para Goebbels
(e sendo a militante 7.548.960 do partido)?
Entretanto, Schwarzkopf nega as ligações
com a ideologia nazi e os seus defensores sem-
pre afirmaram ter a cantora distinguido a políti-
ca da arte; Strauss trabalhou permanentemente
com judeus (Stephan Zweig) e nunca deixou de
interpretar as suas referências como Mahler ou
Debussy. Riefensthal pouco falou relevando-se daí
a sua cumplicidade absoluta com o “fascinante
fascismo” (como o demonstrou, desde o título,
Susan Sontag em conhecido ensaio).12
Voltemos a Furtwängler.
Furtwängler e Heidegger, uma comparação
(de um ponto de vista de “resistência” totalmen-
te clarificadora – e/ou abonatória - para o maes-
tro) pertinente, embora elaborada a partir de

102
personagens sem ligação. Questione-se deste modo: terá sido Furtwängler
o Heidegger da música, ou terá sido Heidegger o Furtwängler da filoso-
fia? Ou um símbolo de resistência? Em 1936, foi convidado para titular da
Orquestra Sinfónica de Nova Iorque. Não aceitou ou Göring não o permitiu?
Terá usado um lenço (creio haver um pequeno filme dessa cena) para lim-
par as suas mãos depois de cumprimentar Goebbels ou dirigiu Os Mestres

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Cantores de Wagner num dos aniversários de Hitler e para o führer?
Tudo isso ao mesmo tempo?
Para Sam H. Shirakawa,13 a atitude de Furtwängler é ambivalente, eventual-
mente naive, mas persistente na defesa da música alemã (que Furtwängler – e
aqui diverge, neste cosmopolitismo além-pátria, de Heidegger – sempre con-
siderou património europeu),14 Bach, Beethoven, Wagner ou Brahms. Sobre
música e “Europa”:

A música, parecendo a mais irreal de todas as artes, oferece-nos, mais do


que qualquer outra forma de expressão, a prova mais profunda e definiti-
va de que a “Europa” não é uma mania, nem uma invenção de um cérebro
ocioso. Em nenhum outro lugar um alemão se aproxima mais abertamen-
te de um italiano e sem reservas, nunca o compreenderá melhor do que
nas obras de Rafael, Ticiano ou Verdi. Em nenhuma outra parte parecerá
um russo mais inteligível e amável que nos seus grandes escritores e mú-
sicos. E onde é que o enigmático alemão se entende melhor a si mesmo,
ou onde será mais conhecido e … amado do que em Bach, Beethoven,
Schubert ou Mozart?15

Para Furtwängler a arte musical tem “limitações nacionais” mas não po-
líticas, porque se separa de todas as doutrinas e dos mercados: Beethoven,
Brahms, Bizet, Verdi, Debussy são “Europa”, pois mesmo que fossem apenas
admirados, ou mais admirados, nos seus países isso não poderia fazer deles
melhores compositores – portanto, a arte e a música em particular estão além
dos números e dos solos. Além disso, como disse, foi decisiva e corajosa a
sua carta a Goebbels de 1933 sobre o “carácter popular nacional alemão” e
a defesa dos músicos judeus.
Defendeu Hindemith até ao limite (mas, apesar disso, o compositor aca-
baria por partir para os Estados Unidos), arriscando tudo em 1934 para in-
terpretar a ópera, e antes sinfonia, Mathias der Maler (executada em 12 de
Março). Esta “vencida” batalha em torno de uma obra “degenerada” e “judia”,
sabe-se, teve custos e levou à ascensão de Karajan, desde 1938 protegido
por Göring, depois de um Tristan na Staatsoper de Berlim.
Com efeito, o verdadeiro combate de Furtwängler em nada se relaciona
com a “luta” de Heidegger que, no “Discurso do Reitorado”16 se propunha
(seu subtítulo) defender “A Universidade alemã frente a tudo e contra tudo ela
mesma”. A exaltação do “começo” grego em torno da “fecunda impotência do

103
saber” é, para Heidegger, “o irromper no nosso futuro” que, diferentemente
de Furtwängler, só podia ser alemão. A verdade não é pragmática, a ciência
não é eficácia e a vida não é biológica. Mas esta desconstrução da técnica e
da metafísica é um projecto alemão.
A universidade educa um “povo” naquilo que ele já é. Como se sabe, Victor
Farias17 é muito mais violento que François Fédier. Este considera o projec-
to de universidade de Heidegger oposto ao do führer, sendo o projecto de
Heidegger algo condenado desde o princípio. E o “erro” do filósofo foi ter-
-se inscrito no Partido Nacional-Socialista sem ter percebido isto mesmo. Mas
Farias vê permanentemente um Heidegger ultra-nacionalista, autoritário e an-
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

ti-semita, conservador e sacralizador da pátria, ou seja, do ser que, de certo


modo, já é. Lendo Heidegger e Furtwängler percebemos que um mergulha
no risco para mudar e resgatar e o outro mergulha na realidade em que acre-
dita (Heidegger nunca deixou de pertencer ao partido) para cimentar a sua
definição de comunidade. A sua! Mas Furtwängler tem uma outrs comunida-
de. Que nunca é a sua. Para Furtwängler, Hindemith, o compositor ameaçado,
degenerado e em fuga, foi o maior pedagogo da Alemanha.
Furtwängler, o resistente ambivalente, no fundo, nunca teve medo.

Notas
1
Georg Simmel, “Filosofia del paisaje”, 4
Christoph Cox/Molly Whalen/Alain
em El Individuo y la Libertad: Ensayos de Badiou, «On Evil: an interview with Alain
Crítica de la Cultura, trad. Salvador Mas, Badiou», Cabinet, 5, Outono, 2001, pp. 69-
Barcelona, Península, 1998, p. 176. 74 (on-line: http://cabinetmagazine.org/
issues/5/alainbadiou.php).
2
Piet Mondriam, The New Art – The
New Life: The Collected Writings of Piet 5
Ibidem.
Mondrian, trad. org. Harry Holtzman 6
Jean-Luc Nancy, Les Muses, Paris, Galilée,
e Martin S. James, Londres, Thames &
2001, p. 163.
Hudson, 1987, p. 30.
7
Ver Henri Bergson, Matter and Memory,
3
Marx, Manuscritos Parisienses citado por
trads. Nancy M. Paul e W. Scot Palmer,
Terry Eagleton, Marx e a Liberdade, trad.
Nova Iorque, Zone Books, 1991.
C. Meneses, Lisboa, Dinossauro, 2002, p.
40. Ou ainda, consequentemente: “Chega- 8
Barnett Newman, “The Sublime is Now”
se assim ao resultado de que o homem (o em Barnett Newman: Selected Writings
operário) já só se sente livremente activo and Interviews, org. John P. O’Neill, Nova
nas suas funções animais – comer, beber Iorque, Alfred A. Knopf, 1990, pp. 170-173.
e procriar, quanto muito ainda habitação,
adorno, etc. – e já só como animal nas
9
Ver a monografia de Albert Alhadeff, The
suas funções humanas. O homem torna- Raft of the Medusa, Munique, Prestel, 1988.
se o humano e o humano o animal”, 10
Citando o título da monografia de Sam
Manuscritos Parisienses ou Manuscritos H. Shiakawa, The Devil’s Music Master: The
Económico-Filosóficos de 1844, trad. Maria Controversial Life and Careeer of Wilhelm
A. Pacheco, org. Barata-Moura e Francisco Furtwängler, Oxford University Press, 1992.
Melo, Lisboa, Avante!, 1994, p. 65.

104
11
Wilhelm Furtwängler, “Arte del carácter 13
Sam H. Shiakawa, ob. cit.
nacional popular alemán – Carta a Joseph 14
Ver a Sexta Conversa, “El Compositor
Goebbels” em Sonido y Palabra: Ensayos
y la Sociedad”, em Wilhelm Furtwängler:
y Discursos (1918-1954), trad. Juan José
Conversaciones sobre música, trad. Joan
del Solar, Barcelona, Acantilado, 2012,
Fontcuberta, Acantilado, Barcelona, 2011,
pp. 69, 70. Excerto: “A arte e os artistas
pp. 63-82.
existem para unir e não para separar. Em
última instância, eu apenas reconheço uma

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15 Ibidem, p. 64.
separação, a que existe entre a arte boa e a
de má qualidade. Mas quando a separação
16
Martin Heidegger, Escritos Políticos
entre judeus e não judeus se mantém 1933-1966, org. François Fédier, trad. José
com rigor inexorável (…), descuida-se Pedro Cabrera, Lisboa, Instituto Piaget,
demasiadamente a outra separação, 1997, pp. 93-103.
a decisiva, a que existe entre bons e 17
Cfr, Victor Farias, Heidegger e o
maus artistas”. E se algo é reconhecido a Nazismo, Maria do Carmo E. Janeiro,
Furtwängler, pelos seu biógrafos, como Lisboa, Caminho, 1990.
veremos, foi o ter salvado não só vital,
mas musicalmente (impondo-os nos seus
lugares de trabalho) inúmeros judeus.
12
Clara referência a “Fascinante fascismo”
em Susan Sontag, Sob o Signo de Saturno,
trads. Albino Poli e Anna M. Capovilla,
Porto Alegre e S. Paulo, 1986, pp. 59-83.

Bibliografia

ALHADEFF, Albert, The Raft of the Medusa: EAGLETON, Terry, Why Marx was Right,
Géricault, Art, and Race,Munique, Prestel, Yale University Press, 2011.
1988.
FARÍAS, Victor, Heidegger e o Nazismo,
ATHANASSOGLOU-KALLMYER, Nina, trad. Maria do Carmo E. Janeiro, Lisboa,
Thédore Géricault, Londres, Phaidon, 2010. Caminho, 1990.

BADIOU, Alain, L’Être et L’Événement, Paris, FURTWÄNGLER, Wilhelm, Conversaciones


Seuil, 1988. sobre Música, trad. Joan Fontcuberta,
Barcelona, Acantilado, 2011.
BADIOU, Alain, Logiques des Mondes:
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106
Rumo a um novo activismo
político e artístico

Jean-Marc Lachaud
Professeur de Paris 1-Panthéon-Sorbonne
[email protected]

S’exprimant contre l’ordre
existant, refusant l’inacceptable,
«Afirmar que não há nenhuma conjuntura que l’art en appelle parfois à la
seja um estado de coisas insuperável é sustentar, résistance, à la révolte, à la
rupture (ce, sans cependant
como correlação, a possibilidade de romper com
dessiner arbitrairement
as coordenadas do que é oferecido para abrir
les possibles / impossibles
um mundo diferente; é, face aqueles que têm in-
paysages du futur, mais en
teresse em ver triunfar a resignação, argumentar esquissant au cœur du présent
que é possível uma outra escolha». ce que Ernst Bloch appelle
Véronique Bergen des images-souhaits et en nous
invitant ainsi àdéfricher
Contestar a ordem estabelecida, sonhar com un à-venir non a priori tracé
outro mundo... Ali e noutros lugares, local e global- et déterminé). L’art est ainsi
mente, aqui e agora... Certamente, hoje em França un indispensable contre-
como à escala do planeta, o fundo do ar aparente- pouvoir (selon le mot de Pierre
mente já não parece muito vermelho1. No entanto, Bourdieu), qui, bruyamment ou
sourdement, explicitement ou
várias frentes de recusa estão abertas e uma nova
souterrainement, met en péril la
geração comprometida esforça-se para manter as
brutale et arrogante domination
barricadas2. Se continuam os métodos tradicionais
du monde établi. Dans cet
de acção militante (folhetos, greves, desfiles, ocu- article, sont abordées qualques
pações de locais…)3 também se inventam novas fi- formes activistes.
guras de resistência, protesto e intervenção. Assim,
perante emergências múltiplas, experimenta-se uma
«nova arte de militância»4.
Ao mesmo tempo, certos artistas, através das
suas abordagens, práticas e produções, questionam
o mundo real e até desafiam as suas bases. Fazendo
eco às posturas e aos preconceitos críticos adop-
tados por aqueles que, no século XX, nas palavras
de Herbert Marcuse, expressaram uma «Grande
Recusa», mas sem os considerar como modelos nem
os copiar, concebem, contra o consenso dominan-
te, obras e ações polémicas, perturbando a ordem

107
pública, esboçando paisagens utópicas, gerando experiências libertadoras
e, finalmente, colocando, esteticamente, a incontornável questão política da
emancipação individual e coletiva.

Activismo de outro modo


«... uma preocupação estética minimal nunca está ausente das formas
mais rotineiras de ação coletiva», sublinha Justyne Balasinski5, fazendo alusão
à «encenação de manifestações». De facto, a imaginação dos manifestantes – a
originalidade das bandeirinhas, a poética dos slogans e as canções, o uso da
música e do teatro – demonstra isso (o efeito é obviamente reforçado quando
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

uma trupe, como a Compagnie Jolie Môme, com as suas imensas bandeiras
vermelhas e as suas músicas partidárias, participa nesses desfiles6). Jovens
activistas políticos também reativam o agit-prop7. Por ocasião das eleições
europeias de 2009, os viajantes do metro de Paris foram interpelados pelos
arautos do Parti de Gauche (Partido da Esquerda), que apontaram a orienta-
ção liberal adoptada pelas instituições europeias; esses comandos culturais
também oferecem aos transeuntes um jogo do ganso gigante, permitindo de-
nunciar a política governamental e desencadear o debate sobre a sua agen-
da política. Da mesma forma, os ativistas de L’Appel et la Pioche8, próximos
do Novo Partido Anticapitalist [Nouveau Parti Anticapitaliste], lutando contra a
precariedade e o empobrecimento daqueles que foram abandonados à sua
própria conta pela crise econômica e social, e castigando os lucros realizados
pelos grandes distribuidores, intervêm no terreno pilhando as prateleiras dos
supermercados. Após encherem alguns carrinhos de supermercado, distri-
buindo os seus folhetos e cantando os seus slogans («Eles devoram o nosso
poder de compra, vamos devorar os seus lucros excessivos!»), estes activis-
tas convidam os clientes-consumidores, numa atmosfera cúmplice e festiva, a
um piquenique improvisado (pelo menos até a intervenção dos seguranças).
Trata-se de interpelar os cidadãos e de despertar as consciências adormecidas,
trazendo ao seu conhecimento a análise e as posições do Partido (no primei-
ro caso), incitando-os a envolverem-se na luta (no segundo). Os movimentos
sociais também favorecem o surgimento de formas originais. Durante as gre-
ves universitárias contra a lei sobre a autonomia das universidades em 2009,
por exemplo, os grevistas da Universidade Paris 8 participam numa Ronda
Infinita dos Obstinad-o-s (Ronde infinie des obstiné-e-s); incansavelmente,
durante vários dias e noites, revezando-se, eles marcharam silenciosamente
em círculo pela praça do Hotel de Ville de Paris. Da mesma forma, os esclare-
cidos doutores historiadores da Universidade de Paris 1 escreveram e inter-
pretaram uma peça de teatro, insolente e facciosa, encenando o julgamento
da «bande des trois»9.
A partir da década de 1990, à margem dos partidos e dos sindicatos,
emergiram coletivos militantes, que, para agirem, inspiraram-se em directa
ou indirectamente em processos artísticos (acontecimentos, performances,

108
etc.)10. Deve-se salientar-se, no entanto, que seria errado ver aí qualquer este-
tização da política. Não há lugar para confusão; apesar de tudo este activismo
permanece ancorado no campo político. Pela acções-eventos que fomentam
(concisos, específicos, sérios ou alegres, às vezes maliciosos11, certamente
provocativos), eles procuram produzir efeitos de choque susceptíveis de per-
turbar a tranquilidade do mundo administrado. Não violento, mas não hesi-
tando em transgredir os limites impostos pela Lei, reivindicando o direito à
desobediência civil12, funcionando horizontalmente, apoiando-se em redes
mais ou menos informais, talvez algo mouvementiste (para esses coletivos, não
se trata de anunciar a «Grand Soir» (Grande Noite) nem de assumir o poder13,
mas de fazer a política de modo diferente para desmascarar os absurdos do
sistema e mudar a vida diariamente), esse ativismo quer, criando dissensões,

JEAN-MARC LACHAUD | RUMO A UM NOVO ACTIVISMO POLÍTICO E ARTÍSTICO


alertar e sensibilizar os cidadãos, criando brechas no coração da experiência,
causando a «turbulência das suas bases»14 e pressionando diretamente aque-
les que têm o poder decisório para mudar a ordem das coisas.
Desde 1989, Act Up - Paris15, considerando que a luta contra a sida não
se faz apenas com a medicina, mas «da vontade daqueles que fazem [...] po-
líticas de saúde», realiza de operações de golpe, os zaps16 (um preservativo
é colocado sobre o Obelisco da Concorde em Paris em 1993, um casamento
homossexual é celebrado na Catedral de Notre-Dame de Paris em 2005, um
Die-in17 insurge-se contra as posições do Vaticano sobre o uso de preservativos
em 2009). Outras batalhas são concebidas como a que Act Up – Paris chamou
de «acto político de pesquisa pública». Contra a homofobia, a estigmatização
e a rejeição, os militantes (militant-e-s) da Interassociative lesbienne, gaie, bi
et trans (Interassociativa lésbica, gay, bi e trans) (LGTB18) organizam, tal como
quando do último Dia dos Namorados, os Kiss in19. Os efFRONTé-e-s colocam
em causa a “ordem social patriarcal”, feministas, anti-racistas, laicas..., elas/
eles defendem também a abolição do “sistema de prostituição”20. Praticando
a educação popular, elas e eles organizam várias ações de sensibilização (pa-
radas musicais, jogos das latas, happenings21…). As Femen22, que se procla-
mam como «sextremistas», desenvolvem intervenções radicais, espetaculares
e barulhentas pelos direitos das mulheres em escala internacional. Peitos nus,
slogans pintados nos peitos, as suas imprevisíveis irrupções no espaço públi-
co desafiam os poderes (políticos, religiosos...) e os cidadãos23.
Visto que a rejeição da sociedade de consumo e o modelo produtivista
se exprime através de práticas específicas24, os Casseurs de pub25, StoPub26 e
os Déboulonneurs27 lutam contra a propaganda desviando (pela técnica de
colagem-montagem) as imagens publicitárias28, manchando os painéis sobre
os quais estão expostas ou cobrindo-as («Quando a publicidade não está lá, os
cérebros dançam!», proclama um cartaz dos Déboulonneurs colocado numa
paragem de autocarro). Outras questões (relativas à precariedade generali-
zada ou à situação dos desalojados) são, através de técnicas aproximadas,
também colocadas. Generation-Précaire (Geração-Precária)29, denunciando

109
a exploração dos estagiários, organiza manifestações-marchas (os jovens
estagiários usam uma máscara branca neutra garantindo o seu anonimato).
Recentemente, a Droits Nouveaux (Novos Direitos)30 abordou a pandemia de
Gripe P (Precária); usando máscaras sanitárias e batas brancas, equipados com
desinfectantes, os ativistas intervieram em locais públicos ou privados simbó-
licos (centros de emprego, empresas de fast food...) para proteger aqueles
que são condenados à frequentá-los ou que ali trabalham. Os agitadores da
Jeudi Noir (Quinta-feira Negra)31, contra o aumento das rendas num contexto
de crise da habitação, convidam-se ruidosamente (música, confetes, bebidas
gaseificadas...) para visitas colectivas a apartamentos para alugar ou ao Salon
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

de l’Immobilier (Salão de Imóveis).


Também podemos mencionar as farsas lúdicas e burlescas concebidas
pela Brigade Activiste des Clowns (Brigada de Ativistas de Palhaços)32, com
base num humor corrosivo («Couvre-fou obligatoire!»33) e uma ironia mordaz
(quando, em 2005, o Ministro do Interior declarou que era preciso limpar au
Kärcher da escória dos subúrbios, os militantes da BAC, com os seus narizes
vermelhos e armados com vassouras, esfregões e produtos de limpeza, irrom-
peram na sua cidade, Neuilly-sur-Seine, não respeitando a lei sobre habitação
social e purificando a fachada da Câmara Municipal). A BAC também esteve
presente numa falsa manifestação de direita (vestidos segundo o suposto look
das pessoas de direita, os manifestantes vaguearam pelas calçadas cantan-
do slogans tais como: «Trabalho, Família, Sarkozy», «Subsídio-dependente, vai
trabalhar») programada em maio de 2007 em Paris34. Do mesmo modo, de-
vemos insistir no papel desempenhado pelos internautas activistas que, nos
seus sites e nos seus blogues (ou via Facebook), desafiam os cidadãos para
mobilizações efêmeras (Flash Mob, Freeze Party ...) 35.
Para além da difícil eficácia na avaliação dessas acções, há dois desafios
a serem enfrentados por esses activistas. Por um lado, como gerir o seu rela-
cionamento com os media (em busca de uma visibilidade imediata, não acei-
taram eles o jogo exigido pela sociedade do espectáculo, mantendo uma
relação forçada com o mundo mediático que assegura a cobertura das suas
intervenções impetuosas?). Por outro lado, questiona S. Porte36, como fazer
com que, entre «criatividade e contestação», «aceitação e radicalidade», «em
cada uma dessas relações, o primeiro dos dois elementos não predomine
sobre o outro»?

Arte e política hoje


A publicação nos últimos anos de vários livros que questionam a pro-
blemática das relações complexas que existem entre a arte com o/a políti-
co/a (questão muito apressadamente considerada ultrapassada nas décadas
de 1980 e 1990) é um sintoma. Não assistiremos de facto à emergência de
«formas contemporâneas de arte comprometida»37 ? Por outras palavras, a
questão da «função crítica da arte»38, da sua capacidade de «mostrar o que é

110
intolerável (...) no nosso presente» e a «abrir uma experiência, um sentido de
futuro»39, não será ainda actual?
Dez anos antes que o rosto de Karl Marx, tempo de crise(s) a isso obriga,
não faça as primeiras páginas das revistas, duas peças de teatro, Karl Marx,
théâtre inédit (1997) 40 de Jean-Pierre Vincent e Karl Marx, le retour (1999) 41
de Howard Zinn lembraram-nos que, finalmente, a história não acabou (a ló-
gica da finitude então dominante foi, no entanto, negada, apesar do colapso
das grandes narrativas, por alguns irredutíveis da cena rebelde, como André
Benedetto e Armand Gatti). Abandonando as posturas pós-modernas do re-
lativismo, da indiferença, do recuo, da retirada narcisista…, recusando-se a
sucumbir à tentação da arte de entretenimento ou da arte de mercado, os ar-
tistas estão agora confrontados, de novo, com o mundo real (não sem ambi-

JEAN-MARC LACHAUD | RUMO A UM NOVO ACTIVISMO POLÍTICO E ARTÍSTICO


guidades, por vezes, é verdade) e, «sem ter até agora uma teoria política re-
volucionária, uma referência a um compromisso partidário, ou uma teoria da
revolução da sociedade através da cultura e as artes»42, propõem obras que
têm um poder de resistência e dispõem a sua dimensão política no sentido
em que, de acordo com Jacques Rancière43, levantam «uma mudança no vi-
sível, nas maneiras de o perceber e de o dizer, de senti-lo como tolerável ou
intolerável»”.
Muitas propostas recentes abordam a questão do trabalho (condições im-
postas aos trabalhadores, o desemprego...). Santiago Sierra recruta imigrantes
ou marginalizados e, em troca de um salário miserável, pede-lhes que rea-
lizem trabalhos dolorosos e desnecessários ou entreguem os seus corpos a
actos degradantes44. Malachi Farrell concebe uma instalação, O’Black (Atelier
clandestin) (2004), introduzindo-nos numa fábrica de confecção de roupas;
mas, se as máquinas, os tecidos e as roupas impõem a sua presença, não há
nenhum vestígio dos trabalhadores (apenas a violência intolerável dos sons
recorda a exploração de que são vítimas). Na fachada da Escola Nacional de
Belas Artes de Paris, parodiando um famoso slogan eleitoral («Trabalhar mais
para ganhar mais»), Ko Siu Lan pendurou quatro bandeiras gigantes em que
se inscreveram quatro palavras: «TRABALHAR», «MENOS», «GANHAR», «MAIS»
(2010). Julien Bouffier e a Compagnie Adesso e Sempre adaptaram em 2007
o romance de Gérard Mordillat, Les Vivants et les morts, que relata a luta dos
trabalhadores que não aceitavam ver a sua fábrica fechar (dois anos antes,
com Les yeux rouges de Dominique Féret, a companhia evocou a luta emble-
mática dos Lip de Besançon na década de 197045). Mohamed Rouabhi ence-
nou Vive la France 2 « Travail Famille Patrie » (2008), uma peça que aborda,
com um olhar agudo, a história do trabalho do ponto de vista da luta de clas-
ses. Jean-François Maurier e os palhaços-comediantes da companhia Le Crik
investigam o desenvolvimento da precariedade e do sofrimento no trabalho
em Rêve général (2009). Outras questões, a miséria social, o horror do mundo
(guerras, genocídios...), as relações de classes, género e raça, as relações de
domínio que o Centro exerce sobre as periferias, o futuro do planeta..., são

111
também apostrofadas, por via da ficção e do documentário, pela produção
artística e literatura actual.
Além disso, fora dos lugares reservados à arte, os artivistas, situam-se na
fronteira da acção artística e do activismo político, fornecendo intervenções
através das quais «murmura-se a política [...] potencialmente (re) mobiliza-
dora» de acordo com a expressão de Jade Lindgaard46. The Yes Men47, por
exemplo, revindicam com humor corrosivo, contra a «impostura neoliberal»,
uma arte de pirataria susceptível de provocar uma «consternação produtiva»
face ao absurdo do sistema. Através das suas acções brincalhonas, infiltran-
do-se nos locais frequentados pelos donos do mundo e pelos seus ideólo-
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

gos, mas também nos media informativos que releem acriticamente o seu
discurso, usam com cruel lucidez as armas do inimigo, os The Yes Men pre-
tendem desmascarar o cinismo dos poderosos e os malefícios das políticas
neoliberais que se estendem à escala planetária. No entanto, segundo eles
o ativismo artístico não está vocacionado para substituir as lutas políticas e
sociais concretas (consequentemente, eles apelam aos cidadãos que se em-
penhem no movimento anti-globalização). Muitos outros princípios e moda-
lidades de intervenção estão a afirmar-se hoje. Praticando o teatro-fórum e o
teatro-imagem, caros a Augusto Boal e ao Teatro do Oprimido, os palhaços
do Caravane Théâtre participam em fóruns sociais mundiais; para Jean-Pierre
Besnard48, o palhaço favorece a participação de espectadores, que se atre-
vem a «intervir diretamente no palco [...] para dar a sua opinião e propor as
suas soluções». Investindo na Web para desviar o domínio da propaganda
dos media, o coletivo Critical Art Ensemble49, não sem afinidade com a teoria
das Zonas Autônomas Temporárias, proposto por Hakim Bey50, pratica a arte
da guerrilha (plágio, apropriação indevida...) e a desobediência cívica (cha-
mando a atenção, por exemplo, para os riscos biotecnológicos gerados e ig-
norados pelo capitalismo global).
Em 1992, Thierry de Duve51 colocou a seguinte pergunta: «[…] a atividade
artística pode manter uma função crítica enquanto ela é atravessada por um
projeto de emancipação?». Os artistas aqui mencionados respondem positi-
vamente. Actuando por dentro ou por fora, activando várias formas, eles não
permanecem sem palavras diante da realidade do seu tempo. A complexidade
do mundo contemporâneo e as contradições que o caracterizam ressoam no
centro das suas atitudes, das suas obras e acções. Se a arte, no entanto, agora
como no passado, não pode mudar o mundo de forma concreta, as experiên-
cias às quais ela nos convida podem, apesar de tudo, agitar e perturbar a nossa
capacidade de nos revoltarmos e despertar a nossa faculdade para aspirarmos
a algo diferente do que temos. É certo que o uso de estratégias adoptadas
(a renovação agitacional, mas também a abordagem micropolítica e a para-
sitagem segundo Paul Ardenne52, o desejo de recriar vínculos sociais segun-
do Claire Moulène53, a construção de relação segundo Nicolas Bourriaud54, o
recurso ao documentário por Dominique Baqué55, e mesmo as práticas com

112
baixo coeficiente de visibilidade por Stephen Wright56...) devem ser avaliadas
estética e politicamente. Nesse sentido, atendendo às advertências dadas por
Walter Benjamin, Theodor W. Adorno e Herbert Marcuse contra os limites de
uma arte que deu prioridade ao conteúdo político da obra, André Rouillé tem
razão em lembrar que, se podemos considerar a dimensão política de uma
obra (mesmo no seu caráter militante), tal é apenas político apenas «pelo seu
modo de criar sensações capazes de experienciar, através do corpo e de todos
os sentidos, algo do mundo, fazendo ao mesmo tempo entrever outros desti-
nos do que aqueles que estão traçados pela dominação»57.

JEAN-MARC LACHAUD | RUMO A UM NOVO ACTIVISMO POLÍTICO E ARTÍSTICO


Tradução para português por Fernando Rosa Dias / Traduction en Portugais par Fernando
Rosa Dias / Translation to Portuguese by Fernando Rosa Dias

Este texto é uma reedição autorizada pelo autor, pelo que não teve revisão de pares.
Para primeira edição ver: / This text is a new edition authorized by the author, there-
fore did not undergo peer review. For first edition see / Ce texte est une nouvelle édi-
tion autorisée par l’auteur, n’ayant pas subi d’examen par ses pairs. Pour la première
édition, voir:
«Vers un nouvel activisme politique et artistique», in  Que peut (malgré tout) l’art?,
Paris : L’Harmattan, 2015, pp.95-108

Notas
1
Nós fazemos referência ao filme realizado 4
Sébastien Porte (texto) e Cyril Cavalié
por Chris Marker, Le fond de l’air est (fotografias), Un nouvel art de militer.
rouge (1977), que, a partir de arquivos Happenings, luttes festives, actions
subtilmente montados pelo realizador, directes, Paris, Alternatives, 2009.
evoca as utopias e as lutas dos anos de 5
J. Balasinski, « Art et contestation », in Olivier
1970.
Fillieule, Lilian Mathieu e Cécile Péchu (Eds),
2
 Ver o ensaio de Isabelle Sommier, Les Dictionnaire des mouvements sociaux,
Nouveaux mouvements contestataires Paris, Presses de la Fondation nationale des
à l’heure de la mondialisation (Paris, Sciences politiques, 2009, p. 72.
Flammarion, 2001) e o estudo de Laurent 6
www.cie-joliemome.org.
Jeanneau e de Sébastien Lernould, Les
nouveaux militants (Paris, Les petits matins, 7
Nota de tradução: agitação e
2008). propaganda políticas expressas em geral
através da literatura e das artes.
3
Outras estratégias, mais violentas, podem
ser escolhidas. À medida que a crise se 8
www.lappeletlapioche.org
aprofunda, os trabalhadores demitidos
não hesitam em ameaçar explodir a sua
9
Interpretada a13 de março de 2009
fábrica. Da mesma forma, pertencendo na Place de la Sorbonne em Paris, esta
a movimento autónomo, os Black Blocks peça fixa com escárnio o Presidente
praticam uma espécie de guerrilha da República e os seus dois ministros
urbana à margem das manifestações responsáveis pela Educação Nacional e
antiglobalização. pelo Ensino Superior e da Investigação

113
(daí o piscar de olho malicioso ao 17
Os ativistas deitam-se no chão e
julgamento da «bande des quatre» permanecem imóveis; as suas silhuetas
[«banda dos quatro»] organizada após podem ser traçadas com a ajuda de
a morte de Mao Zedong, em 1976, pintura.
pelas autoridades chinesas) e decifra 18
www.inter-lgbt.org
os problemas e consequências do seu
projeto (ao citar e comentar trechos de 19
Pessoas do mesmo sexo beijam-se
seus discursos). No final da apresentação, publicamente.
com humor, o Presidente da República 20
https://effrontees.wordpress.com e
está condenado a comparecer ao
a obra da sua antitriã, Fatima-Ezzahra
«despedaçamento dos seus relógios» e a
Benomar, Féminisme : la révolution
ser encerrado numa cela com a Princesa
inachevée ! (Paris, Bruno Leprince, 2013).
de Cleves (este último declarou que não
era essencial colocar no programa de
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

21
Em 2012, por exemplo, elas e eles
certos concursos do serviço público o conceberam no espaço público um
romance de Madame de La Fayette!). casamento entre duas jovens raparigas,
rodeadas por uma presidente da câmara
10
Apenas o contexto francês é aqui
mulher e um padre.
evocado (e os que não são citados aceitem
as nossas desculpas). 22
http://femen.org/fr e Galia Ackerman,
Femen (Paris, Calmann-Lévy, 2013).
11
Como a manifestação organizada pelos
cyclonudistes em Paris no ano de 2007, 23
Em 2014, por exemplo, elas
que desfilaram nus sobre as suas bcicletas manifestaram-se em Paris, na Câmara
(www.cyclonudistes.fr) para que o espaço do Senado, e pediram aos senadores
público seja dedicado «às pessoas […] para examinarem um projeto de lei
e não às máquinas e à velocidade». Ou, sobre a penalização de clientes de
ainda, quando, em 2009, as feministas prostitutas: «Vocês são MACS [diminuitivo
Les Tumultueuses tiraram o top das suas de maquereau, que significa chulo] ou
camisolas numa piscina parisiense. senadores?». No mesmo ano, em Madrid,
ocuparam o altar de uma catedral, para
12
Como José Bové e os Faucheurs
protestar contra as restrições previstas
volontaires (Ceifadores voluntários) que
pelo governo do direito ao aborto.
destroem plantas de milho transgênico.
Daí, em consequência, a repressão a que 24
Tais como o boicote a certas marcas,
são expostos esses militantes! de campanhas por um comércio justo, de
dias sem compra... (cf. Sophie Dubuisson-
13
Tese defendida por John Holloway na
Quellier, La consommation engagée, Paris,
sua obra Changer le monde sans prendre
Presses de la Fondation nationale des
le pouvoir (2002, trad. S. Bosserelle,
Sciences politiques, 2009).
Paris, Syllepse, 2008). Ver igualmente
as posições exprimidas por Miguel 25
www.casseursdepub.org e Casseurs de
Benasayag em Du Contre-pouvoir (em pub. 10 ans, Lyon, Parangon/Vs, 2009.
colaboração com Diego Sztulwarkal, Paris,
La Découverte, 2000).
26
Ver André Gattolin e Thierry Lefebvre,
« StoPub : analyse provisoire d’un rhizome
14
« Conversation avec Miguel Benasayag », activiste, Multitudes, n° 16, printemps 2004,
in Laurent Jeanneau et de Sébastien p. 85-97.
Lernoud, Les nouveaux militants, op. cit.,
p. 137.
27
www.deboulonneurs.org

15
www.actupparis.org e Act Up – Paris,
28
Para Michaël Löwy e Estienne Rodari,
Act Up – Paris : Action = vie, Paris, Jean di o «sistema de manipulação mental
Sciullo, 2009. chamado” publicidade”» responde às
«necessidades mercantis do capital» e
16
Acções executadas rapidamente usando representa «um tremendo desperdício
o efeito surpresa. dos recursos limitados do planeta». (« «La

114
publicité nuit gravement à la santé» de 35
Um grupo de cidadãos pede um dia
l’environnement », in « Ecologie critique de sem imigrantes, «24 horas sem nós», o 1
la pub », Ecologie & Politique, n° 39, 2009, de março de 2010 (www.la-journee-sans-
p. 13-23). immigres.org). Um grupo de blogueiros
lança um apelo a um dia sem Sarkozy a 27
29
www.generation-precaire.org e
de março de 2010 sob a forma de encontros
Génération Précaire, Sois stage et tais-toi,
em frente a Câmara Municipais e Juntas de
Paris, La Découverte, 2006.
Freguesia, em Paris Place de la Bastille, e por
30 Reunião coletiva de activistas de todo o mundo, em frente às embaixadas da
associações de desempregados, de França (www. no-sarkozy-day.fr).
sindicatos, de partidos da esquerda e de 36
S. Porte (texto) e C. Cavalié (fotografia),
diferentes movimentos (ATTAC, DAL…).
Un nouvel art de militer. Happenings, luttes
31
www.jeudi-noir.org e Jeudi Noir, Le festives, actions directes, op. cit., p. 139.
petit livre noir du logement, Paris, La 37
Ver Eric Van Essche (Ed.), Les formes
Découverte, 2009.
contemporaines de l’art engagé, Bruxelles,

JEAN-MARC LACHAUD | RUMO A UM NOVO ACTIVISMO POLÍTICO E ARTÍSTICO


32
Ramo francês da Clandestine Insurgent La Lettre volée, 2007.
Rebel Clown Army, que apareceu em 38
Ver Evelyne Toussaint (Dir.), La Fonction
2003 na Grã-Bretanha (www.clownarmy.
critique de l’art, Bruxelles, La Lettre volée,
org), a BAC (referência irónica às brigadas
2009.
anti-crime) intervém pontualmente, em
música e usando-os com os seus coloridos 39
Stathis Kouvélakis, « Après le capitalisme,
figurinos de uma mordaz verve burlesca la vie ! », in Y a-t-il une vie après le
(www.brigadeclowns.org); Em 2009, eles capitalisme ?, textos recolhidos por Stathis
organizaram a Operação Serre-Veaux Kouvélakis, Pantin, Le Temps des Cerises,
no seio de um restaurante universitário 2008, pp.20-21.
parisiense (foi para detectar os cérebros 40
Jacques Derrida, Marc Guillaume, Jean-
de investigadores não competitivos para
Pierre Vincent, Marx en jeu, Paris, Descartes
que eles fossem reciclados nas cozinhas
& Cie, 1997. Esta peça foi uma montagem
do restaurante) e uma contramanifestação
a partir de textos de Bernard Chartreux,
mili-terre, a 14 de julho (“Comprometei-
Karl Marx, Jacques Derrida e William
vos!”, proclamaram eles com os seus
Shakespeare.
jerrycans de banho de musgo e suas
armas de enorme gozo). Note-se que 41
H. Zinn, Karl Marx, le retour (1999), trad.
vários destacamentos de palhaços operam Th. Discepolo, Marseille, Agone, 2002.
nas províncias, como CRS (Clowns à
Responsabilités Sociales) em Clermont-
42
Chr. Ruby, « La «résistance» dans les arts
Ferrand (clomidettes.fr). Para estes usos contemporains », EspacesTemps.net, 2002
contestatários da figura do palhaço, ver (http://espacestemps.net).
Martine Maleval, « Le clown : une figure 43
J. Rancière, « L’art du possible » (2007),
transgressive ? », dans J-M. Lachaud et entrevista realizada por Fulvia Carnevale
Olivier Neveux (dir.), Une esthétique e John Kelsey, retomada in Et tant pis
de l’outrage ?, Paris, L’Harmattan, 2012, pour les gens fatigués. Entretiens, Paris,
p.197-208. Amsterdam, 2009, p.591.
33
Nota de tradução: A expressão faz 44
É óbvio que a abordagem do artista,
um jogo irónico de palavras, aludindo que consiste em aplicar as regras do
ao «couvre-feu» (que significa «toque sistema capitalista para denunciar a sua
de recolher», implicando por vezes o selvageria, é discutível.
apagamento das luzes) e opondo a
expressão feu, relativo a opressão, e fou
45
Ocupando a sua fábrica em liquidação
(louco), relativo a liberdade. judicial, os trabalhadores relançam a
produção e venda de relógios. Ver o filme
34
www.manifdedroite.com dirigido em 2007 por Christian Rouault,
Les Lip, l’imagination au pouvoir.

115
46
J. Lindgaard, « Artivisme », Vacarme,
n°21, 2005 (Os textos da obra «Techniques
de lutte » abertos por este número estão
disponíveis no site da revista: www.
vacarme.org). L’auteure n’exclut cependant
pas le risque d’une « folklorisation » de ces
formes.
47
Andy Bichlbaum e Mike Bonamo, Les Yes
Men. Comment démasquer (en s’amusant
un peu) l’imposture néolibérale, trad. Marc
Saint-Upéry, Paris, La Découverte, 2005. Ver
também The Yes Men, film réalisé par Chris
Smith, Sarah Price et Dan Ollman en 2005.
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

48
J.-P. Besnard, « Clowns vecteurs
d’espoir », Culture Clown, n° 15, 2009, p.
33.
49
Critical Art Ensemble, La résistance
électronique et autres idées impopulaires,
trad. Chr. Tréguier, Paris, L’Eclat, 1997.
50
Hakim Bey, TAZ – Zone autonome
temporaire, trad. Chr. Tréguier, Paris, L’Eclat,
1997.
51
Th. de Duve, « Fonction critique de l’art ?
Examen d’une question », in L’art sans
compas, obra colectiva sob a direcção de
Christian Bouchindhomme e de Rainer
Rochlitz, Paris, Ed. du cerf, 1992, p. 15.
52
www.arpla.fr/canal10/ardenne/
micropolitiques (« Micropolitiques ») e
« L’art contemporain a-t-il une dimension
politique ? » (www.arpla.univ-paris8.fr).
53
Cl. Moulène, Art contemporain et lien
social, Paris, Cercle d’Art, 2006.
54
N. Bourriaud, Esthétique relationnelle,
Dijon, Les presses du réel, 1998.
55
D. Baqué, Pour un nouvel art politique,
Paris, Flammarion, 2004.
56
S. Wright, « Vers un art sans œuvre, sans
auteur et sans spectateur », Montréal,
Articule Publications, 2006.
57
A. Rouillé, « Le Grand Soir des utopies
perdues », PARISart, n° 283, 26 juin 2009
(www.paris-art.com).

116
Engajamento e Artivismo
Dominique Berthet
Professeur à l’Université des Antilles (Fort-de-France) et fondateur directeur
de la revue Recherches en Esthétique
[email protected]

L’artivisme est une forme


nouvelle d’engagement
Enquanto alguns autores observavam há algum artistique, apparue au tournant
tempo um desinteresse dos artistas por tudo o que du XXIe siècle. Contraction des
mots artistique et activisme,
se referia ao político, parece que a década anterior
ce néologisme renvoie à
voltou, ao contrário, com as práticas artísticas con-
des pratiques et des gestes
testadoras, como resistência frente à sociedade neo-
artistiques liés à des questions
liberal. Essas práticas são designadas pelo termo ar- sociales, voire politiques.
tivismo, contração das palavras arte e ativismo, que Ces actions se situent dans
também se refere a uma arte de viver. Essas « ma- le prolongement d’avant-
neiras de fazer », « participam de uma redefinição da gardes artistiques radicales
função social da arte e da arte propriamente dita »1, du XXesiècle combinées avec
explicam Stéphanie Lemoine e Samira Ouardi, auto- la désobéissance civile et
res de uma obra sobre essas práticas. l’action directe non violente.
As ações realizadas pelos artivistas estão rela- Ces pratiques ainsi que leurs
cionadas a ações sociais e mesmo políticas. Trata-se modalités conduisent à une
réflexion sur le rôle de l’art dans
sempre de denunciar e de experimentar. Denúncia
la société et sur son impact.
das desigualdades, das injustiças, da violência, do
De même, ces pratiques
sexismo, etc. Experimentar outras formas de viver,
généralement insolites, souvent
outras possibilidades. Essas ações são destinadas a transgressives, résolument
mudar o relacionamento com as coisas, poder, au- critiques, sortent des limites
toridade, corpo, outros. São atos de resistência face établies de l’art, des normes et
ao que estão tentando nos impor. des codifications. Elles tentent
Essas práticas estão no prolongamento de al- de supprimer la frontière qui
gumas vanguardas artísticas como o Dadaísmo, sépare l’art de la vie et, ainsi,
o Surrealismo, os Acionistas Vienenses, Fluxus, os obligent à une redéfinition
Situacionistas, a contracultura americana dos anos de l’art ; une définition
1960, a desobediência civil, a ação direta não vio- nécessairement élargie, ouverte
à d’autres possibles. Cet article
lenta. O artivismo é transdisciplinar. Ele trespassa as
s’appuie sur quelques cas
fronteiras da arte e, além disso, procura suprimir a
de collectifs d’artistes pour
fronteira que separa a arte e a vida. A definição de
exemplifier le propos.
arte é aqui estendida até o ponto de se confundir
com a vida. Essas práticas artísticas são experiências
de vida. Trata-se de viver a contestação pela arte e de
viver a arte através da crítica. Entretanto, o objetivo

117
não se resume a contestar e a denunciar o que é inaceitável na sociedade,
mas de levar propostas, explorar utopias concretas e vivas, utopias em ato.
Dentro desse movimento observam-se formas muito diferentes de práti-
cas, mas todas se unem no questionamento sobre as formas de agir, de ga-
nhar em liberdade e em qualidade de vida. Elas se interrogam igualmente
sobre a experimentação de novas táticas, sobre novas formas de intervir no
espaço público, de estimular pensamentos, de resistir ao capitalismo domi-
nante. São práticas em situação. A ação realmente é parte do momento e não
é para durar. A dívida com os situacionistas é evidente. Sem dúvida estamos
numa concepção próxima à « superação da arte » que os situacionistas pe-
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

diam, isto é, na fusão da arte com a vida?


Dito isto, essas práticas não são necessariamente parte do projeto revo-
lucionário. É certamente uma maneira de tentar mudar as coisas, mas não na
perspectiva do Grand Soir (Grande Noite). Entre os artivistas existem duas
tendências, aqueles que têm ligação com organizações políticas e aque-
les que são cautelosos ao ponto de rejeitar às vezes o termo « política». De
qualquer forma, revolucionários ou não, esses artistas são contestadores e às
vezes subversivos.
A dimensão lúdica é um dado importante nessas práticas. Trata-se de
lutar contra o espírito sério pelo jogo, humor, escárnio. Os artivistas querem
igualmente se destacar da seriedade do militantismo tradicional, um militan-
tismo considerado como pertencente a uma era passada. O ativista Alex Foti2
explica: « Um militante sempre acredita nas grandes causas. Um ativista se
mobiliza se ele ama o que está fazendo. Um artivista não se mobiliza porque
ele deve fazer isso, nem porque “é preciso fazer”, mas porque ele sente que
ele o quer fazer »3.
Quando a arte integra a vida, quando interfere, surge a questão do sta-
tus do artista e de sua relação com a instituição? As respostas são variadas,
uns recusam o status de artista profissional, enquanto outros têm uma posi-
ção menos nítida; alguns recusam o mundo da arte e da comercialização das
obras, enquanto outros utilizam a instituição. Dito isto, em geral, trata-se de
rejeitar o mundo das galerias e dos museus, em favor de uma arte feita para o
maior número, que participa à transformação do mundo. Nesta abordagem há
a questão da assinatura. Muitos fazem a escolha do anonimato, ou ainda da as-
sinatura de vários. Se a ação é coletiva ou anônima, trata-se de rever a relação
arte e política. Assim as Guerrilla Girls ou os Pussy Riot, cultivam o anonimato
e a máscara para enfatizar a luta e não a personalidade de tal ou qual pessoa.
As Guerrilla Girls são um grupo de artistas feministas que se constituiu
em Nova York em 1985, em reação a uma exposição organizada pelo MoMA
de Nova York que apresentou um inventário das grandes tendências da arte
contemporânea4. Dos 169 participantes somente 13 eram mulheres. Depois de
terem se manifestado sem grande sucesso diante das portas do museu, elas
constituíram esse grupo destinado a combater as discriminações das quais

118
são vítimas as mulheres no mundo da arte. Usando uma máscara de gorila,
elas realizam apresentações de cartazes nas ruas denunciando a falta de re-
presentação das mulheres e das minorias étnicas nas galerias e museus. Seu
ativismo se estendeu para a crítica à indústria cinematográfica, cultura popu-
lar, estereótipos, mercado da arte, racismo no mundo da arte, sexismo. Seu
engajamento liga os domínios artístico e político. Elas militam em favor dos
direitos da mulher, por exemplo, o direito ao aborto, bem como pela política
de cotas. Uma de suas intervenções mais visíveis e ressonantes consistiu em
colar, em 1989, um cartaz sobre os ônibus de Nova York onde se podia ler : « As
mulheres precisam estar nuas para poder entrar no Museu Metropolitano ? »,
denunciando assim o fato de que « menos de 5 % dos artistas expostos na
seção de arte moderna são mulheres, mas que 85 % dos nus são femininos ».
Essa máscara de gorila cuja origem se deu por um lapso de uma do grupo
que em vez de escrever « guerrilla-guerrilha » escreveu « guorrilla-gorila », é
também uma referência a King Kong, símbolo da virilidade e da dominação
masculina e um aceno a Marlene Dietrich que em Loira Venus, de Josef von

DOMINIQUE BERTHET | ENGAGEMENT ET ARTIVISME


Sternberg, em 1932, durante um número musical (Hot Voodoo), se fantasiou
de gorila. Essa máscara, desde o início de suas ações, lhes permite guardar
o anonimato. Elas se servem de nomes emprestados de mulheres artistas ou
escritoras como Frida Khalo, Kathe Kollwitz5 (as 2 fundadoras), Éva Hesse6,
Hannah Höch7, etc., prestando assim homenagem às mulheres que tiveram
um reconhecimento.
É pelo humor e pelas imagens chocantes que as Guerrilla Girls, cujos
nomes são desconhecidos, denunciam em cada uma de suas intervenções
as descriminações no mundo da arte. Elas realizam performances, ateliers de
sensibilização e dão conferências no mundo inteiro, como em Paris, durante
um colóquio em Beaubourg em fevereiro de 20108.
Os Pussy Riot, entretanto, passaram do registro artístico para o registro
político-judiciário quando três dentre elas foram presas e julgadas dia 17 de
agosto de 2012. Duas foram condenadas a dois anos de prisão num campo
de trabalho na Rússia. Ekaterina Samoutsevitch, foi liberada em outubro de
2012. Maria Alekhina e Nadejda Tolokonnikova, após dezoito meses de pri-
são, foram beneficiadas com uma lei de anistia e foram liberadas dia 23 de
dezembro de 2014. Nadejda Tolokonnikova, depois de ter denunciado suas
condições de detenção, o terror que reinava no campo, os assédios e amea-
ças, após ter empreendido uma greve de fome, foi transferida dia 22 de ou-
tubro de 2013, para um novo campo, em Krasnoïarsk, na Sibéria oriental, a
4.400 km de sua família.
Os Pussy Riot são um grupo de punk-rock feminista russo formado em
2011 em Moscou. Esse grupo do qual não se conhece os nomes dos integran-
tes, pratica igualmente o anonimato e organiza performances artísticas para
promover os direitos das mulheres na Rússia. Em 2012, elas tomaram partido
contra o Primeiro Ministro Vladimir Poutin então candidato, novamente, nas

119
eleições presidenciais. Elas realizaram uma performance numa igreja orto-
doxa, a catedral do Cristo Salvador em Moscou que foi julgada « profana ».
Durante essa performance três dentre elas foram presas e condenadas por
« vandalismo » e « incitação ao ódio religioso ».
Os artivistas funcionam geralmente sob a forma de coletivos considera-
dos como espaços de resistência. « O coletivo não é somente para os arti-
vistas um modo organizacional ou uma tática de proteção frente à autorida-
de. Trata-se de um valor »9, explicam Stéphanie Lemoine et Samira Ouardi.
Mas de que valor se trata? Segundo os dois autores, essas práticas coleti-
vas possuem uma dimensão crítica essencial. Elas são uma « recusa do hi-
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

perindividualismo na arte », elas revelam uma « concepção democrática da


criação que não distingue o criador e o espectador e coloca a arte ao servi-
ço de um diálogo, de uma aventura de uma experiência coletiva potencial-
mente transformadora »10. Os autores dão como exemplo as performances
coletivas contestadoras, os agachamentos, as ações inspiradas no carnaval,
o TAZ (Zona Autônoma Temporária teorizadas por Hakim Bey) como tantas
outras « experiências de partilha humana e de participação »11. Esta forma
coletiva, enquanto método e tática tem, entre outras, o interesse de prote-
ger os participantes, de « ganhar em poder e em força de ataque, mesmo
que seja simbólica »12.
Transdisciplinaridade e prática coletiva são apresentadas como uma
necessidade face à sociedade, quando se trata de instaurar relações de
força. Face a uma sociedade descrita como « ultra especializada, ultra su-
pervisionada e ultra comunicacional »13, os teóricos do artivismo pensam
que a transdisciplinaridade e a organização coletiva são uma quase obriga-
ção. Dentre os diferentes tipos de grupos, evoquemos os laboratórios, tais
como o Laboratório da Imaginação Insurgente, o Laboratório das Situações
Incontroláveis (do grupo alemão Ligna), Ne pas plier (Não Dobrar), o Yes
Lab (Sim Lab) ou ainda o Critical Art Ensemble (CAE). Esses laboratórios são
lugares de reflexão, de elaboração e de invenção permanente que alimen-
tam as futuras ações. São espaços de resistência. A invenção permanente
é, de fato, um dado essencial já que a característica do artivismo é sempre
surpreender, produzir choque. Ele não pode, portanto, se satisfazer com a
repetição. Esses grupos de outro gênero tentam aliar a experiência da cria-
ção individual com a criação coletiva. Em termos de organização eles ten-
tam igualmente escapar do funcionamento hierarquizado que eles criticam.
Alguns grupos se constituem por afinidade, outros segundo uma organiza-
ção celular como o Critical Art Ensemble, que defende uma « hierarquia flu-
tuante » ou ainda uma hierarquia em alternância.
Este grupo fundado em Chicago em 1987 reúne cientistas da compu-
tação, um filósofo e artistas visuais. Para evitar que se constitua uma hie-
rarquia, o Critical Art Ensemble defende a organização celular constituída
de três a oito pessoas, cada membro possuindo uma especialidade, o que

120
supostamente evitaria rivalidades. Cada projeto envolve diferentes espe-
cialidades e é pilotado por um especialista do campo em questão. Assim o
« poder » circula em função do projeto.
Este grupo expôs nos Estados Unidos (New York, Washington, Chicago)
e na Europa (França, Grã-Bretanha, Alemanha). Ele « explora as interseções
entre arte, tecnologia, as políticas radicais e a teoria crítica » para utilizar seus
próprios termos. Ele publicou seis obras traduzidas em dezoito línguas em
que defende práticas críticas e de resistências ligadas à desobediência civil
eletrônica, desempenho virtual, biotecnologias (mais especificamente quanto
à reprodução e aos organismos transgênicos). O grupo intervém através de
performances ou de instalações cujo objetivo é aumentar a conscientização
sobre problemas colocados pelas biotecnologias, por exemplo, convidan-
do o público a manipular diretamente bactérias (naturalmente inofensivas).
Aborda o problema dos organismos geneticamente modificados (OGM)14.
Analisa as biotecnologias de maneira crítica e desenvolve o conceito de
« biologia contestatória ». Steve Kurtz, Professor na Universidade de Buffalo,

DOMINIQUE BERTHET | ENGAGEMENT ET ARTIVISME


membro do grupo Critical Art Ensemble no qual faz um trabalho de pesquisa
e de sensibilização sobre as biotecnologias, suas políticas e consequências,
em 2004, foi alvo de atenção. Foi preso por suspeita de bioterrorismo. Logo
após a morte de sua mulher, tendo chamado os serviços de urgência, os po-
liciais presentes, surpresos pelo conteúdo do atelier do artista, alertaram o
FBI que apreendeu os equipamentos biológicos bem como a documentação.
Tratava-se em realidade de uma instalação em curso, destinada ao Museu
de Arte Contemporânea em Boston. Oito artistas, membros ou próximos do
Critical Art Ensemble foram convocados a comparecer diante de um grande
júri federal. Steve Kurtz foi solto em 2008.
Entre essa galáxia de coletivos, evoquemos para terminar o Yes Men, dois
ativistas (Jacques Servin e Igor Vamos) usando o engano (a mentira) para de-
nunciar o neoliberalismo. Dentre seus objetivos: a OMC (Organização Mundial
do Comércio), Georges W. Bush, a indústria química (uma companhia ameri-
cana está na origem da catástrofe de Bhopal em 1984, na Índia), poder, etc.
Eles criaram uma mentira magistral: a difusão em 12 de novembro de 2008
de uma edição falsa do New York Times de 14 páginas, absolutamente se-
melhante ao modelo do verdadeiro New York Times. Esse jornal foi pós-da-
tado de 4 de julho de 2009, dia da festa nacional americana. Ele anunciava
« A guerra do Iraque acabou », « Bush culpado por alta traição ». Poucos dias
antes, 4 de novembro, Barack Obama acabara de ser eleito presidente dos
Estados Unidos e um dos leitores desse número, declarou : « Eu sabia que as
coisas mudariam na América, mas não sabia que seria assim tão rápido »…
Esse leitor não tinha compreendido ainda que se tratava de uma mentira.
Na realidade, todos os artigos davam falsas boas notícias, como o anúncio
da « adoção do plano nacional de cobertura médica », do voto de uma lei fi-
xando o salário mínimo, a limitação dos mais altos salários a quinze vezes no

121
máximo o salário base, a nacionalização das companhias petrolíferas destina-
das a financiar o desenvolvimento das energias renováveis, a gratuidade das
universidades, um plano econômico para banir o lobby, etc. Oito dias depois
das eleição de Obama, esse jornal parecia uma antecipação do que pode-
riam ser as primeiras ações do novo presidente.
A redação e a fabricação desse jornal foram realizadas no maior segredo
por certo número de ativistas.15. Um dos organizadores, o artista Steve Lambert,
conta que foram necessários nove meses para montar e realizar esse projeto.
Eles solicitaram a artistas, escritores, organizações, auxílio para redigir os artigos.
Tiveram mais de trinta redatores. O grupo de várias centenas de participantes
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

nomeou-se « Porque nós queremos ». A ideia era de implicar um grande núme-


ro de pessoas para dar uma verdadeira amplitude a esse projeto. O trabalho
foi feito num primeiro momento sem dinheiro, mas no momento de fabricar o
jornal, via Internet, as diferentes pessoas e os grupos reunidos nesse coletivo
fizeram apelo a seus contatos e às suas redes. Sem nada revelar sobre o projeto,
mas indicando apenas sua importância, eles juntaram mais de 15.000 dólares
que permitiram cobrir as despesas com a impressão, a locação dos caminhões
de entrega, a equipe produtora de vídeo. Sempre via Net e SMS milhares de
pessoas se inscreveram para participar gratuitamente à distribuição. Ao todo
mais de 1800 pessoas distribuíram 1,2 milhões de exemplares em Nova York,
Los Angeles, São Francisco, Chicago, Filadélfia. Simultaneamente foi colocado
em linha um clone do site do New York Times idêntico ao site oficial do jornal
que anunciava as mesmas notícias que a versão em papel.
Durante alguns instantes, antes de constatar que se tratava de uma farsa, os
americanos acreditaram no anúncio principal do fim da guerra do Iraque e se
alegraram. Para o parlamentar ecologista francês André Gattolin, essa mentira
foi « um formidável instrumento de guerrilha comunicacional, uma arma não
convencional de perturbação do discurso dominante »16. Alguns a viram como
um encorajamento ao novo presidente de manter suas promessas de campanha.
Essas práticas na sua grande diversidade, das quais apenas mencionamos
algumas, se baseiam no inesperado, na desordem, no incomum para tentar
preservar sua eficácia em termos de crítica, de despertar, de questionamen-
to, de resistência. Nós dissemos, elas não podem e não devem ser repetidas.
É preciso inventar, criar sempre a surpresa. Como explica o grupo de artivistes
Space Hijajacckers : « É preciso sem cessar reinventar as formas de protestos
para ultrapassar aquilo que facilmente pode se transformar em fórmula […], para
garantir que a resistência continue viva e desejável »17. Esta é, de fato, a condi-
ção para que essas ações se conservem um passo adiante do sistema, sempre
pronto à assimilação, à absorção, à recuperação do que o contesta, esvaziando
ou diminuindo a dimensão crítica das obras e das práticas.
A questão do engajamento do artista, hoje, surge de forma diferente que
no século passado. Outro tempo, outras práticas, outros modos de interven-
ção, mesmo que certas ações sejam inspiradas do agitprop, da performance e

122
do happening do século XX. Os artistas atuais não são menos engajados que
os do « século rebelde »18, mas eles inventam outras práticas. Como vimos,
desconfiados dos partidos políticos e dos sindicatos, eles se agrupam em
coletivos, em redes, em grupos de intervenção às vezes pontuais ou mesmo
clandestinos. A dimensão crítica não deixou a nova geração que inventa sem
cessar outras maneiras de interpelar o público através de novas formas artís-
ticas. É outro tempo. Aquele da Internet, das redes sociais e das novas tecno-
logias. Também da dominação do capitalismo planetário. Edgar Morin fala de
dois polvos aos quais precisamos resistir : « o polvo do fanatismo religioso,
nacionalista, étnico» e « o polvo do capitalismo especulador e financeiro »19.
Jean-Marc Lachaud diz de forma justa que esses artistas « concebem, con-
tra o consenso dominante, obras e ações polêmicas, perturbando a ordem
pública, esboçando paisagens utópicas, suscitando experiências liberado-
ras e colocando finalmente, esteticamente, a inevitável questão política da
emancipação individual e coletiva» 20. A arte continua sendo um espaço de
resistência onde se formula uma crítica do que é. Abandona cada vez mais as

DOMINIQUE BERTHET | ENGAGEMENT ET ARTIVISME


formas convencionais para se desenvolver em lugares públicos, na estrada,
no contato com a população, os cidadãos. Trata-se de interpelar o transeun-
te, sensibilizá-lo para uma causa, um problema social ou político. O objetivo
é de alertar, de questionar, encorajar o questionamento, abalar as certezas.
Isso também acontece através de intervenções lúdicas, ações festivas como
por provocação. Essas formas contemporâneas de arte comprometida con-
tinuam a explorar a função crítica da arte inventando outras modalidades de
emergência no espaço social e de questionamento dos cidadãos.
Essas formas de intervenção são, sem dúvida, mais dificilmente recuperáveis
pelo sistema ou, ao menos, menos rapidamente assimiladas. Evidentemente
que elas não são capazes de mudar concretamente as coisas, mas elas são
suscetíveis de despertar mentes, de provocar tomadas de consciência, de in-
fluir nos julgamentos. Elas colocam e trazem críticas ao coração da cidade,
elas exprimem esperanças de mudança. Criam fissuras, brechas, aberturas no
espaço social de onde emergem desejos de outra coisa.

Tradução Annamaria Rangel

123
Notas
1
Stéphanie Lemoine et Samira Ouardi, 17
Os Space Hijackers, entrevista com
Artivisme. Art, action politique et os autores, ibid., p. 151. O ativista está
résistance culturelle, Paris, Éditions num processo de resistência. Ele procura
Alternatives, 2010, p. 11. « criar formas culturais, ou artísticas, de
resistência ».
2
Alex Foti, é economista de formação,
editor e membro da rede italiana de 18
Emmanuel Waresquiel (dir.), Le siècle
chainworkers, que une indivíduos e grupos rebelle. Dictionnaire de la contestation au
mobilizados em torno de questões de XXe siècle, Paris, Larousse, 1999.
precariedade. Ele teve a iniciativa do « euro 19
Cf. emissão de TV : « L’invité » de
mayday », em 2004, que foi a primeira
TV5Monde, apresentado por Patrick
edição europeia de uma manifestação
Simonin, dia 14 de fevereiro de 2011.
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

festiva e ativista que reuniu entre 60 000 e


70 000 pessoas em Milão. 20
Jean-Marc Lachaud, « Vers un nouvel
activisme politique et artistique », Gaïac,
3
Citado por Jade Lingaard, « Artivisme : les
n° 2, « Pratiques de l’engagement »,
noces joyeuses de l’art et de l’activisme »,
dezembro 2010, p. 53.
in Vacarme, n° 31, primavera 2005.
4
An International Survey of Painting and
Sculpture.
5
1867-1945, escultora, gravadora e
desenhista alemã.
6
1936-1970, escultora americana de
origem alemã.
7
1889-1978, artista dadaísta alemã.
8
Colóquio « Les Normes de genre dans
la création contemporaine : reproduction/
déconstruction », Beaubourg, Paris, 5-6
fevereiro 2010. 
9
Id., ibid., p. 166.
10
Id., ibid., p. 166.
11
Id., ibid., p. 166.
12
Id., ibid., p. 170.
13
Id., ibid., p. 171.
14
Apresentação da conferência dada
por Steve Kurtz, Critical Art Ensemble, no
Beaux-Arts de Paris, dia 14 de dezembro
de 2010. http://www.lepeuplequimanque.
org/quefaire/conference-14-12-2010.
Acesso: 26 de novembro de 2013.
15
Les Yes Men, Steve Kurtz, Trevor Paglen,
Eva, Franco Mattes, Bob Ostertag, Nina
Felshin, Improv Everywhere, Steve Lambert.
16
Cf. http://poptronics.fr/un-faux-New-York-
Times-Yes-Men-we. Consultation le 28 nov.
2013.

124
Between Creativity and
Criminality: On the liminal zones
of art and political action
Pascal Gielen
Prof. Sociology of Art & Cultural Politics ARIA - Antwerp University
[email protected]

Actualmente, um crescente
número de artistas aproxima-se
Reimagining Utopias novamente do compromisso
Those who have been scouring biennales and político. Nas bienais e festivais
de arte assistimos a mais do
arts festivals over the past decade have been treat-
que simples aproximações
ed to a veritable feast of political discussions and
à teoria política radical: os
social debates. Sometimes art is hardly the topic
artisticamente comprometidos
anymore, but rather globalism, neoliberalism, pre- estão cada vez mais a arregaçar
carity or ecology, to name but a few. This political as mangas, a sujar as mãos na
discourse is mostly limited to the discursive space, construção do espaço cívico, em
which in addition hardly moves beyond the borders emendar os erros pós-coloniais,
of the parish of the already converted. Words and ou pelo menos a desafiar a
actions are still very far apart here, which means that política neoliberal. Neste artigo,
true political activism does not materialize. However, será feita uma diferenciação
this takes nothing away from the fact that the pro- analítica entre espaços públicos,
fessional art world is increasingly taking a political civis, cívicos e comuns com o
objectivo de entender melhor
role upon itself. The time-space that is skimped on
como as intervenções artísticas
in education seems to be shifting to biennales and
podem e são mediadoras em
theatres. Adding to that the thinning of the critical
acções políticas na actualidade.
debate, the cutbacks on research journalism and the O ponto de partida teórico é
commodification of the writing and speaking space o de que a acção cívica ocorre
in mainstream media, it seems sometimes that art in- geralmente no abismo entre
stitutions are among the few remaining places of ref- a legalidade e a ilegalidade
uge for public debate and critical political analyses. e entre a criatividade e a
And there is more than just room for debate. After criminalidade. Na área cinzenta
proclaiming ‘the end of history’ (Fukuyama, 1992), entre o que é permitido ou
advocating the end of ideological differences and de não, ou até o que é proibido,
facto the end of democracy, the idea of utopia as a cidadãos dão início àquilo
que ainda não foi pensado
possible political project was also buried. The intel-
por qualquer governo ou
lectual and especially academic/scientific taboo on

125
estado e para o qual não existem utopian thinking erodes the humus soil of both
mercados interessados. As acções the political and the civil space, especially that of
cívicas e os espaços comuns dizem the social imagination. The current dominance of
sobretudo respeito a domínios não ‘realism’ and pragmatism in politics (Fisher, 2009)
regulados, áreas que ainda não
as well as in philosophy deprives politics of chanc-
foram abrangidas pela lei. É por isso
es for developing a long-term vision. Nowadays,
que uma acção cívica é sempre uma
any visionary project with an eye on an ideal so-
iniciativa arriscada, na qual alguém
arrisca o pescoço e o seu próprio
ciety invariably runs aground on the Realpolitik of
posicionamento social, político e, budget policies. Politics has become policy, and
como artista, artístico. Com base governing seems to become more and more a
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

na investigação realizada para a matter of bookkeeping. This corners the imagi-


European Culture Foundation, são nation, or rather: sends it into exile to the exclu-
descritas as diferentes etapas de sive domain of fiction. Only within the walls of a
uma cadeia cívica e, com vários cinema, a theatre, a museum, or in the pages of
exemplos, é analisado o papel a novel is there still room to dream of a possibly
específico da arte e das intervenções different world. There, one can still freely specu-
artísticas no domínio político.
late about a possible future society.
Perhaps the boom in fantasy and science
fiction movies in popular culture need therefore
not surprise us. The first genre is a rosy escape
from reality, while in the second genre utopia
becomes dystopia (Berardi, 2015). Both genres
have in common that they create an image of a
truly post-political society at the end of history.
Whereas in fantasy movies all power relations
have been depoliticized—as they are dissolved in
supernatural and magical, but also highly moral
decisions about good and evil—the world of sci-
ence fiction tends to presents us with societies
that are at the mercy of terror, totalitarian regimes,
dehumanized camp-like situations controlled
by machines, or natural disasters of apocalyptic
proportions. Convincing stories about possibly
different, utopian worlds are however few and
far between. Our future is either transcendental
or catastrophic. This popular field of the imagi-
nary doesn’t seem to offer many other flavours.
The contrast with the boom in political and social
commitment in that other segment of the imag-
inary domain of fiction could hardly be sharper.
From the heterotopic project of Michelangelo
Pistoletto to the activist architecture of Recetas
Urbanas, from the political art of Jonas Staal and

126
Oliver Ressler to the economic, postcolonial interventions by Renzo Martens,
or the utopian but also highly concrete gestures of Thomas Hirschhorn – they
are all concerned with imagining a possibly different world. Admittedly, many
of them are reluctant to use the word ‘utopia’, almost always stressing the direct
relation their work has to the real world. Pistoletto, for example, does not just
imagine The Third Paradise (2010) but also laid the foundation for a real func-
tioning organization Cittadellarte. Likewise, Recetas Urbanas is building real
homes and schools that meet an acute social demand, and Renzo Martens is

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really rolling up his sleeves in Congo to build a museum and to transform the
art exchange chain between the north and the south. In short, we see here a
real praxis where actions are suited to words. Perhaps this is why these artists
are reluctant to call their practices ‘utopian’. Nevertheless, it can hardly be de-
nied that in their quest they are hoping for a possibly different, indeed, better
world. And although, alas, this is often only observed by the few in the profes-
sional art world, their actions nevertheless demonstrate the will to break out
of this confinement. Driven by their imagination they frequently jump into the
gap between legality and illegality, creativity and criminality. It is precisely this
imaginary potency that gives them the possibility to go further than debates
about politics and civil activism. Not only are artists capable of presenting an
imagined world, their skills allow them to make us also actually experience that
world. Perhaps this is where their extra political potency lies.
As will explained later, the civil space is an undecided grey zone, fallow
land on which civil actions and political activism mostly settle only temporar-
ily. However, this undecided space also provides the necessary opening that
sets a civil movement into motion and keeps it going. Especially here some-
thing has to happen because no one has seen it yet or no one cares about it.
And this brings us to the importance of art or, more broadly, the imaginary.
In order to see what no one else has seen yet, artists can deploy their powers
of imagination—powers that are being smothered in today’s Realpolitik. But,
to understand better which strategies artists can follow, it is useful to make a
more analytical distinction of the different realms in which political activism
takes shape.

Between Creativity and Criminality


It is in the gaping gulf between legality and illegality, between creativity
and criminality that the civil space sees the light of day. In the grey area be-
tween what is allowed and not or not yet allowed, civilians engage in politi-
cal actions to initiate that of which a government or state has not yet thought
(or does not want to think of) and for which there are no interested markets.
For the record: civil action does not coincide with criminal behaviour. Civil ac-
tions simply concern non-regulated domains, areas not yet covered by law.
However, within a democracy, at the end of the day it is the legislative and
judicial powers that decide whether to categorize the issue at hand as legal

127
or illegal. At the moment of the actual action itself this is still undecided: will
this practice be tolerated, embraced, or even passed into law, or rather not?
Civilians who invoke their civil rights, are in other words still uncertain about
where they will end up, how they will be judged. This is why a political action
is mostly a risky undertaking in which one sticks one’s neck out and risks one’s
own social position.

Civil and Civic Spaces


Because of this undecided nature of the space in which the civil action
takes place, it seems wise to distinguish between the terms ‘civil’ and ‘civic’.
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

Although both concepts are often used interchangeably in everyday usage,


‘civic’ mainly refers to the government, which has ‘civic tasks’ or sets these
well-defined civic tasks to persons or delegates them to places and institu-
tions. In other words, political actions in the civic place are already regulated
(by law or otherwise) whereas those in the civil space still lay open. Or, to par-
aphrase Michel de Certeau’s analytical distinction between place and space:
the civic place is a place that is established or has taken root in policies, ed-
ucation programmes, regulations or laws. By contrast, the civil space, in the
Certeausian sense, is a space that remains fluid; a realm where positions still
have to be taken up or created (Certeau, 1980).
Governments or authorities who wish to regulate civil space by, for exam-
ple, guaranteeing a public square in a city, or public cultural infrastructures
such as (national) museums and theaters, are transforming the civil space into
a civic place. Likewise, the civil movement that demands a better legal frame-
work for a certain issue, is paradoxically promoting the elimination of its own
reason for existence. It is no coincidence that civil movements, including in-
dependent subcultures and squatters often evaporate once a government
supports them. The movement comes to a standstill as it becomes rooted in
a civic law or a civic infrastructure.
Why both the true civil action and the civil space find themselves in be-
tween illegality and legality is perhaps better understood by looking at the
problem of – modern or (post)revolutionary – politics. As Hannah Arendt states
in On Revolution: ‘… those who get together to constitute a new government
are themselves unconstitutional, that is, they have no authority to do what they
have set out to achieve. The vicious circle in legislating is present not in ordi-
nary law making, but in laying down the fundamental law, the law of the land
or the constitution which, from then on, is supposed to incarnate the “higher
law” from which all laws ultimately derive their authority.’ (Arendt, 183-84, 1990).
So, the constitutive power and the constitutive body are always outside
of the constitution, since they precede it. They are therefore neither legal nor
illegal, which immediately presents the problem of authority within modern
democracies: of whom is it accepted that they place themselves outside, or
rather above the law, precisely in order to establish that law? Civil space relates

128
to civic place in a similar ambivalent manner. The former precedes the latter,
running the risk of never, ever being recognized or legalized and thus of re-
maining permanently in the sphere of illegality.

Civil and Public Spaces


Like the advocated difference between ‘civic’ and ‘civil’, also the terms
‘public’ and ‘civil’ are best kept apart rather than have them coincide. Here too,
a distinction may be productive. The civil space often requires collective initi-

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atives and organizations. People have to make an effort, organize something
or simply ‘do’ something in order to shape a civil space. By contrast, public
space is the space we can enter freely, that is or should be accessible to an-
yone. It’s the space of public opinion where people can make their more or
less idiosyncratic voice be heard, freely, and preferably with good arguments,
like in the media, in public debate or in the time-honoured salon conversa-
tions (Habermas, 1989). We can articulate the relationship between these con-
cepts as follows: whereas the public space is a space for the free exchange of
thoughts, opinions, ideas, and people, the civil domain provides the frame-
work for organizing these thoughts, opinions, ideas, and people. Within the
latter space, an opinion or idea is expressed in a public action or in the form
of an organization. The earlier mentioned political debates at biennials and
art festivals belong in that sense to the public space, but they need civil initi-
atives to organize that space for debate. In other words, civil space needs the
public domain. After all, the second constitutes the utterly vital source of inspi-
ration for the first. Public space provides, as it were, both new ideas and new
people (new citizens) but they can only claim and obtain their place in society
through self-organization in the civil domain. Vice versa this also implies that
public space is reliant on civil space, as the latter makes the public domain
possible by organizing it or claiming a place for it; for example by enforcing
the freedom of speech by legal means, but also by founding organizations and
institutions such as newspapers or other platforms, for that purpose. Simply
put, public space is all about the free word, while in the civil domain the action
takes centre stage, such as in the mentioned activities of Martens or Recetas
Urbanas. The interaction between both constitutes a praxis, where the action
is suited to the word but also where actions can and may be put into words.

Commons
Before going deeper into the role of art in political activism, there is a last
distinction that should be made clear: the realm of the commons. The concept
of the commons has won much attention in cultural and political debates the
last decade and it gained prominence both in recent philosophy (Hardt and
Negri, 2009) and in law research (Lessig, 2004). According to Michael Hardt
and Antonio Negri, guaranteeing a commons is necessary to safeguard future
cultural production. These philosophers have described the commons as a

129
category that transcends the classic contrast between public property (guaran-
teed by the state) and private property. In the area of culture, Negri and Hardt
mention knowledge, language, codes, information and affects as belonging to
the commons. This shared and freely accessible communality is necessary to
keep the economy running in the long term, to regain the balance in the eco-
logical system, and to keep our sociopolitical fabric dynamic (Hardt and Negri,
2009: viii). Also economical studies stressed already in the early 1990’s the im-
portance of the regulation of (free) access to the commons (fe. see Ostrom,
1990). For this reason the commons is defined here as the space were in fact
the access to public and private goods and services is discussed and regulat-
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

ed. And, as well known, a lot of political debate and activism revolves around
this issue: who, how many people and under which conditions can people get
access to debates in public space, to civil and civic services (f.e. public librar-
ies, museums, education, social security) often first claimed by civil actions and
later on organized by cultural grass root initiatives in civil space or taken over
by governments in the defined civic space.
In summary, the relationship between the differentiated spaces can be de-
scribes as followed: in public space ideas and proposals (f.e. alternative forms
of (sub)cultural expressions) can be articulated and discussed which can be
worked-out and organized in civil space, or they can be taken over by a gov-
ernment in civic place or by the market in the private sphere (f.e. the construc-
tion of and support for cultural infrastructure). But the discussion and regulation
about the access to those services is a matter of the commons (f.e. who and
how many people can participate, or discussions about what needs to be guar-
anteed by a government and what can be done by the private sector). Political
activism takes place in all those spheres, and art can play different roles in it. To
understand better what kind of forms artistic initiatives can take in those differ-
ent spheres, they will be related to the different phases in a ‘civil chain of politi-
cal activism’, which was developed in earlier research (Gielen and Lijster, 2016).

The Civil Chain


Civil action is born from emotion, argues the Spanish sociologist Manuel
Castells (2015). Although such actions always imply the hopeful expectation that
something in society can be improved, this initial emotion is often of a negative
nature, fed by fear, discomfort or irritation. The reasons for this can be mani-
fold. An individual may feel threatened by beggars or by drug dealers hanging
around in the neighbourhood. But they can also feel ill at ease because there
are too many policemen, soldiers or security cameras in the streets. Employees
may feel intimidated by their boss or colleagues and may also experience stress
because of a too heavy workload. In short, feelings of annoyance, frustration
or injustice can have many causes. And, as may be evident from this range of
examples, certainly not every negative emotional experience leads to civil ac-
tion and political activism.

130
Discomfort can be channelled in many ways. Those who choose therapy or
decide to hire a lawyer opt for a private and individual solution to their problem.
Indeed, communication with a therapist or lawyer has little to do with public
action or political claims. In order to ‘enter’ civil society we need to specifically
address a collective and generate public support. The initial emotion must be
recognized as a shared emotion or irritation. Civil action is only possible if we
take our personal discomfort out of the private sphere, when we ‘de-privatize’
the subject matter. However, such a step towards civil space requires an im-

PA S C A L G I E L E N | B E T W E E N C R E A T I V I T Y A N D C R I M I N A L I T Y: O N T H E L I M I N A L ZO N E S O F A R T A N D P O L I T I C A L A C T I O N
portant skill: the ability of (self)rationalization. This is required to articulate an
initial intuition or basic emotion. It is the cognitive competence of analyzing
one’s own feelings and perhaps point out possible causes. Rationalization, and
especially self-rationalization, therefore precedes communication, although the
causes of certain emotions might be further clarified in dialogue with others.
And, further, after the processes of rationalization, communication and
de-privatization, the skill of organization is required in order to set the civil
action in motion and, if necessary, keep it going in the long run. For instance,
one must organize oneself in order to write an opinion piece, but also encour-
age others to do the same. Protesting in the streets or rolling up our sleeves
to clean the neighbourhood requires at least a modicum of (self)organization.

Balancing between Emotion and Rationalization


What is important here is that those processes of self-rationalization and
of self-organization can temper the initial emotion that triggered them in the
first place. For instance, having to find one’s way through a maze of legal rules,
being obliged to study political procedures, or having to follow the long and
winding road through bureaucratic institutions in order to arrive at the right
form of (self-)organization can make one lose the energy to go on. Both pro-
cesses therefore require that we literally rationalize that initial emotion, to dis-
tance ourselves from it and in a sense ‘bureaucratize’ it (all forms of organiza-
tion presuppose setting up a minimum number of rules and procedures and
sticking to them). In themselves such processes are not dramatic and even
necessary to initiate civil action. However, this points to the fact that the basic
emotion as mentioned determines the ‘drive’ or the energy of the civil under-
taking. Or, in an analogy by Castells (2015): it is an initial fear converted into
anger that defines the engine of civil action. It is the steam that powers civil
initiatives with a civil mission. This also means that political action derives its
basic energy from very direct, mundane and mostly local human experience.
The chances of success and continuance of every civil initiative therefore de-
pend on finding the right balance between rationalizing and organizing on
the one hand and keeping up the energy that is obtained from a basic emo-
tion on the other hand. This balance is all the more urgent the more organi-
zations ‘scale up’ their activities, for instance from a local to a regional or from
the national to the transnational level. Each step up the ladder demands more

131
rationalization and organization, and thereby one risks evaporating the initial
drive and emotion, as well losing track of the local problems that started it all.

Commoning
When political activists want to reach structural change they need to act
on a more abstract systemic level (f.e. to change the ‘neoliberal’ organization
of society, work and life; or to safeguard the welfare state; or to reduce our
ecological footprint). Political activism needs to deal often with this tension
between on the one hand ‘local’ emotions and reasons to act and on the other
hand global issues and political mechanisms. The latter are often articulated
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

in the described public space where both, visionary ideas and utopias, as well
as new ideologies can be discussed in a quite abstract way. However, ideas
alone cannot produce real social change. This takes actions or acts. Citizens
take initiatives to build, for example, alternative social formations and forms
of self-organization in the defined civil space. Self-organization, however, is
again usually initiated locally and may therefore become stranded in local-
ism or what Nick Snricek and Alex Williams (2015) call ‘folk politics’. In this
case, social or ecological problems are addressed for a relatively small and
primarily closed community but do not build systemic change. In order to
make political activism effective it needs to organize structural change. For
this reason alternative social, ecological, political, economic,… models must
be distributed and shared, and at that moment the described common space
comes in. Alternative economies and forms of self-organization must demon-
strate their effectiveness to others if political activism wants to generate struc-
tural effects. This necessitates the preferably free or very cheap sharing of
information and knowledge, of materials and logistics, but also of business
models and new solidarity structures. Political activism dealing with funda-
mental and deep embedded problems should also influence institutional
bodies to have any effect. It are exactly processes of sharing, or commoning
which force governments into an alternative legislative organization, as for
example, the Creative Commons licence or the Bologna Regulation for the
Care and Regeneration of Urban Commons show.1 It is only when actions
take place on this political and legislative level that sustainable reform may
actually take place and the current social, ecological or economic problems
can be addressed in a sustainable way.
From the above we may conclude that artists who get involved in polit-
ical activism can be situated in a chain of successive, distinctive operations.
And that such activities will continuously have to take into account all the
previous stages in the chain in order not to alienate itself from its own source
of energy. Analytically, this succession of processes – which is called the civil
chain – looks like this: (1) emotion – (2) (self-)rationalization – (3) communi-
cation – (4) de-privatization (or going public), (5) (self-)organization, and, fi-
nally, (6) ‘commoning’.

132
Converting Emotions
By using the civil chain as an analytical tool to analyse the artistic involve-
ment in political activism, it’s finally possible to detect at least three transitions in
which art can play a crucial role. The first one takes place at the emotional level.
An initially negative feeling must be converted into a sense of positive energy,
of simple enthusiasm to ‘get cracking’ or at least of not resigning oneself to the
situation. Castells gives, as already mentioned, the example of fear that must
be ‘positively’ converted into outrage and hope (2015: 247-248). By ‘positively’

PA S C A L G I E L E N | B E T W E E N C R E A T I V I T Y A N D C R I M I N A L I T Y: O N T H E L I M I N A L ZO N E S O F A R T A N D P O L I T I C A L A C T I O N
we mean that outrage and hope lead to action. However negative the results
of bursts of outrage may be, they always indicate an accumulation of energy.
Through outrage, the paralyzing effect of fear changes from passive to active.
Feelings of discomfort, irritation, insecurity, injustice and the like often result in
defeatism or resignation. Especially when people feel they are alone in their ef-
forts, they tend to resign themselves to the situation. Only when a sometimes
hard to pinpoint ‘spark’ turns negative energy into positive energy does politi-
cal action become an option.
Artists or collectives such as Renzo Martens or Têtes de L’Art often mention
this defeatism when they arrive at the spot in Congo, a suburb or a local commu-
nity. Sometimes citizens undertook already several steps in civil actions but failed
to succeed. In other situations they undertake nothing because they can see the
bigger political and economic picture in which their local problems seemed un-
resolvable, or they just don’t know where to start. Artists have tools in their hands
to shift those feelings of defeatism. The most effective one here seems simple
‘doing’. Renzo Martens activated with his Institute for Human Activities local cit-
izens on a Unilever plantation to make their own chocolate art works and even
to build a white cube on the spot. By engaging people in creative processes,
stimulating and coaching them in realizing concrete things citizens get a kind
of positive energy and drive because they are involved in an interactive process
with a positive outcome such as a creative work, a theatre performance or an ex-
hibition. By taking, for example, a closer look at the activities of Les Têtes de l’Art
in Marseille we can see the same mechanisms at work. It is precisely a simple act
of making art together with others or ‘doing things’ that plays an important part.
Drive is not so much communicated in words, and energy rarely comes from a
well-articulated view in a debate, a newspaper or scientific report. Rather, they
emerge from the activities that are organized, the artistic interventions that are
staged and the actions that are undertaken. Just like the transference of emo-
tions can take place subconsciously and non-verbally through mirror neurons,
the drive and energy are primarily communicated through the actions them-
selves. Artistic activities generate a ‘mimetic effect’, which spurs others into ac-
tion. Artistic interventions and performances in public space can point out the
social issues within a group, neighbourhood or square. Cultural civil actions not
only bring to light what is not visible, but also make manifest how the surround-
ings, a space or a neighbourhood may be experienced differently.

133
In this respect, artistic activities differ from other civil actions such as pro-
tests, opinion pieces or petitions. Whereas such civil actions are generally lim-
ited to social criticism, the artistic civil action has an extra element: an alterna-
tive experience. For a little while the artists provide an often quite modest, but
possibly different, sometimes utopic world, which in most cases generates pos-
itive energy. Les Têtes de l’Art illustrates this quite literally with their initiatives
named Place à l‘Art (2007), a sort of ‘fair’ where people in the neighbourhood
can together engage in all sorts of artistic activities, producing a very positive
social dynamics in places where before drug dealers and other petty criminals
created an unsafe social environment. The outrage over an unsafe environment
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

is immediately ‘compensated’ for with a positive alternative. At the emotion-


al level, especially artistic interventions provide opportunities for converting
negative feelings into a positive energy. Conversely, for some it might be pre-
cisely this alternative experience that makes them understand that their living
conditions or precarious social environment are far from ideal. Crucial in this
is that it is ‘through’ the artistic process or the work of art itself that participants
are given an experience of alternative possibilities. A project of Les Têtes de
l’Art in Bel Horizon, a degraded building in the centre of Marseille, illustrates
this energizing shift very well. After a request of an inhabitant of this high-rise
flat, Les Têtes de l’Art organized a collective work of several months. A group
of adults and children from the tower block worked together on a script and
collectively produced a fictional video about a problematic situation that af-
fected all inhabitants. The fiction involved children and adults of the tower
block as actors. The artistic vector allowed for alternative representations to
the negative image attached to the place and encouraged the meeting of in-
habitants in the tower. After this fiction, a second project consisted in realiz-
ing five short films about the wishes of inhabitants about the rehabilitation of
the tower. At that moment a rather classic community art project resulted in
political claims and activism.
The Bel Horizon (2010) case is just one of many actions that demonstrate
how an artistic experience works within civil action. What we can observe here
is how (negative) criticism of a certain situation goes hand in hand with theat-
rical action that generates a rather positive experience of an alternative situa-
tion. This positive experience in turn evokes new criticism and civil action. Or,
as mentioned before: the artistic activity itself is what is keeping the energy
alive. If such a positive experience does no longer or not yet exist in the so-
cial reality, this actually provides artists with an interesting tool to create this
experience all the same, especially in a fictional setting. A play or film creates
a distance from the world we actually live in and precisely thereby generates
the context for an alternative world. It is this experience that can make partic-
ipants reflect on their real social reality. For them art generates — in the words
of Niklas Luhmann (1997) — a ‘second order observation’: from the artistic,
imaginary or fictional ‘second order’ experience they can better observe how

134
they live and experience their own everyday ‘first order’ reality. In the cases of
Place à l’Art and Bel Horizon we see how this experience then encourages peo-
ple to intervene in real life or at least long for and demand a different reality.

Expression
A second necessary transition in the civil chain is to be found on the level
of communication, as only through communication a transformation can take
place from the individual to the collective level. We can, for example, test

PA S C A L G I E L E N | B E T W E E N C R E A T I V I T Y A N D C R I M I N A L I T Y: O N T H E L I M I N A L ZO N E S O F A R T A N D P O L I T I C A L A C T I O N
whether we really feel what we feel by consulting a therapist, in the sense that
we can check whether such a professional recognizes our feelings as also oc-
curring in others or is familiar with them from the scientific literature. It is only
in that confirmation that an individual problem can become a collective one,
in the sense that others share our supposedly individual feeling. In the same
sense city dwellers can have a chat with their neighbours about street litter.
This is also communication in which a basic experience is shared and tested.
Only if a neighbour confirms that: ‘Yes, you’re right, there is a lot of litter here
these days’, the feeling of discomfort is collectivized and the possibility of ac-
tion emerges.
So, without collectivization there is no civil or political action at all. And,
as underlined above with the work of Les Têtes de l’Art, artistic skills such as
play and imagination are sufficient tools to express and communicate per-
sonal fears or suppressed feelings. The modes of expression which are avail-
able in the arts makes it also possible to use alternatives for words or analyt-
ical concepts to reflect on and communicate about sometimes very complex
situations. One of the reasons for this is that artists can use aesthetic tools as
aesthesis in which much more senses can be activated beyond the discursive
realm of words and concepts. Singing, dancing, performing or making vis-
uals and films are just other ways of communication which can be used to ex-
press and to ‘de-invidualize’ unclear feelings or complex social and political
issues. We just can point at the use of subversive performances by Pussy Riot
in Russia, the guerrilla architecture of Recetas Urbanas in Spain, or the use of
giants by the Hart boven Hard movement in Belgium to realize the important
role of aesthetic tools to express and to communicate in different ways. A strik-
ing example of how to express controversial political issues by artistic means
is probably the project Ausländer Raus (‘Foreigners Out’) by the Austrian art-
ist Christoph Schlingensief (2002). He had twelve asylum seekers stay in a sea
container in the centre of Vienna and had the public decide who was to be ex-
tradited through Big Brother-like voting rounds. Naturally, this performance led
to much controversy but it also made sensitive people for the immigrant and
refugee problems in a completely different way than in classical opinion pieces
or political debates. This shows again that artistic tools and fiction can play an
important part in making invisible feelings and private opinions visible and in
creating a communal space in which political discussion and activism can arise.

135
Performance
The artistic examples of collectivization by expression also illustrate that
de-individualization in itself is not enough to speak of civil action and to get to
political activism. To do so requires yet another transition, from the private to
the public sphere. As indicated earlier, feelings and issues can be shared and
therefore collectivized in both the private and the public sphere. For example,
as long as the employee suffering from stress only discusses the problem with
a therapist or only collectivizes it in a self-help group, we cannot speak of a
civil action. Only when this worker articulates the initial feeling or syndrome in
social terms does it acquire civil value. This means that, say, stress is no longer
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

only explained as a mental condition but is recognized as a structural problem


too. Stress is then not only about the irritated nerves of individual employees
or about the annoying personal character of their boss, but also about, for in-
stance, high work pressure, about increasingly precarious working conditions
such as flexible project labour, or about the decrease in long-term employ-
ment contracts and job security. In other words, in the transition from the pri-
vate to the public sphere a personal issue (being a stress-sensitive person) is
not only translated into a collective problem (a stressful environment, stressful
working conditions), but the cause of the problem of discomfort is then also
located in broader social phenomena. This is why the transformation from the
private to the public sphere implies the politicization of the initial feeling. If
‘the political’ stands for openly shaping our living together (Rancière, 2012),
this translation is an appeal to the political to articulate and address the issue.
So, to transform from the private to the public sphere one needs to be
‘performative’, and it are again artists who are very well trained to perform.
The concept of performativity is understood here in the spirit of Judith Butler
(1993). Far more than being simply a reference to or a representation of reality,
the artistic expression can be an act in itself that gives form to the social reali-
ty. One needs to organize oneself in an alternative way, and one can convince
others to share this way of organizing just by performing it. For the sake of the
latter the importance of the mentioned process of commoning comes back
into the picture. How this works concrete can be illustrated very well by the
operations of the Spanish architect collective Recetas Urbanas. They build
houses, schools and community centres wherever associations and commu-
nities deem them necessary with legal permission or not. So, Recatas Urbanas
does not cater to the free market, or to governments, but rather to citizens who
feel a civil need. In response to their requests, Recetas offers strategies to oc-
cupy public spaces to create places of agony in which the opportunity for ac-
tion, appropriation, occupation and use of a city is given back to the citizens
through architectural interventions and actual buildings. Their building pro-
jects transit often between legality and illegality, playing with the established
order to re-articulate laws and urban regulations to compose new social and
economic exchanges around their very pragmatic constructing activities. In

136
those performative acts they disarticulate at the same time existing discours-
es and praxis by offering visionary urban projects in which citizens become
the initiators of actions, appropriations and occupations as responses to their
collective needs and common necessities. Rather than a withdrawal, Recetas
Urbanas provides citizens with the tools to engage, with the authorities and
dispute their power from within. And those articulations and alternative social
compositions do not stay at the level of the local spot or community. Recetas
went beyond such folk politics by the mentioned process of commoning, by

PA S C A L G I E L E N | B E T W E E N C R E A T I V I T Y A N D C R I M I N A L I T Y: O N T H E L I M I N A L ZO N E S O F A R T A N D P O L I T I C A L A C T I O N
building a huge national and even European network (The Group for the Reuse
and Redistribution of Resources) of exchange of knowledge, (building) mate-
rials, and practices. In this network, for example, legal precedents established
in one city are communicated and used to fight for the same civil rights in an-
other city. So, the network is not only used to exchange information, but also
to develop political strategies and juridical practices.
Recetas Urbanas not just experiments with forms of resistance and political
activism, but also performs effective strategies and practices in civil space. Those
are used furthermore as testing grounds that enunciate political discourses in
order to activate possible ways of civil governance. By exploring legal systems,
alternative economic exchange practices and by finding broader public sup-
port, they experiment with processes of commoning which are very necessary
to make political activism effective on a higher abstract and structural level.

Crossing Borders
To conclude it can be stated that although the institutional space for the
imagination of theatres, museums and biennales may serve as a productive
kitchen for political debate, artists can only be really constituting a civil space if
they bet on the liminal zones between art and political action. Only when they
venture outside of the assigned civic place by crossing the border of the mu-
seum and go beyond the public domain of words and ideas, they will have the
chance to arrive in the hazardous civil space of effective political activism. This
space is hazardous because here artists step outside their acknowledged civic
role, thus risking their very status as an artist. Just like those spraying graffiti
on walls or trains, they run the risk of being criminalized, or at least not being
recognized anymore by their peers in the professional art world. It is only just
before the checkpoint of legality and civic regulated spaces that artists sketch
the contours of real political activism, in peril of never being acknowledged as
artists again. This means also that artist will not build civil space by just making
political art inside the foreseen civic or market structures of museums, thea-
tres, biennials or art fairs. They can only realize this by making their art politi-
cal, that means by reposition their art and by reorganizing themselves and the
original art institutions in society.
Now that the result of elections in the USA and Turkey made the famil-
iar liberal representative democracy shaking on its foundations, the need for

137
political activism has become clearer than ever. It only adds to the pressure
on artists to cross the boarders of the familiar artistic biotopes. If we wake up
tomorrow in a dystopia without a civil domain, we will find ourselves in a space
without freedom and without autonomous art. It therefore looks as if artists
have no choice but to hazard the jump into the unknown, outside the white
walls of the museum into political activism, if only to safeguard their own space
of imagination in the museum.
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

Notes
1
Bologna Regulation for the Care and
Regeneration of Urban Commons;
Regulation at http://www.comune.bologna.
it/media/files/bolognaregulation.pdf ;
context via https://wiki.p2pfoundation.net/
Bologna_Regulation_for_the_Care_and_
Regeneration_of_Urban_Commons

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published research report, European
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138
In Media Res: Tragic Crisis and
the Artivism in the New New
Social Movements in Portugal
Cláudia Madeira
CIC-Digital/IHA/FCSH/NOVA
[email protected]

A noção in media res ("no meio


das coisas") corresponde, na
In media res? tragédia clássica, a um
The new millennium has seen thousands of pro- momento de crise. Um
momento que escapa à mera
testers on the streets. Various social, political and eco-
sequencialidade cronológica
nomic crises have affected the global population, with
e onde o presente se “dilata”,
some focused on national issues actually triggering
misturando fragmentos do
other crises in other places, spreading like wildfire passado e pronúncios do
and with systematic global characteristics. This gen- futuro. Esta noção surge-nos
eralized sense of crisis has influenced the collective hoje particularmente operativa
imagination, bringing up – once again - questions para reflectirmos a relação
on the relationship between the tragic and Tragedy entre crise e os processos
that should be studied. This paper will, therefore, be de artivismo inerentes aos
discussing how classical Tragedy, whose main role novíssimos movimentos
was to represent the tragic experienced in people’s sociais em Portugal, tais
lives poetically when dealing with a community in como a Geração à Rasca
(2011) e Que se lixe a Troika!
a crisis (due to plague, starvation, wars, droughts
Queremos as nossas vidas
and other natural cataclysms), can contribute to the
(2012), nomeadamente, para
study of contemporary social crises and the reactions,
uma problematização sobre
namely the artivism processes, presented in the “new que "guiões" de passado,
new social movements” (Raison 2009; Gohn 2011; de presente e de futuro são
Juris et all 2011)? inventariados neste cenário.
In an attempt to provide an answer, this article
aims to explore not only some characteristics and no- Palavras chave: In media
tions of Tragedy, but also the concepts of in media Res; Crise Trágica; Artivismo;
res, hubris, chorus and masks, among others. It will Performance; Novíssimos
also address its analytical developments, both in Movimentos Sociais.
terms of greater hybridism between art and the so-
cial, as well as a greater mixture of “artistic genres”,
in Tragedy’s proximity to Comedy and Farce.

139
The notion in media res (“in the middle of things”) corresponding, in clas-
sical tragedy, to a time of crisis, will be the guideline for this study. In media
res, it is a moment that escapes the mere chronological sequence and where
the present will be “dilated” by mixing fragments of the past and pronounce-
ments of the future. This seems a key notion that is particularly relevant to an
analysis of what past, present and future “guidelines” are inventoried in this
scenario of crises and their correspondent social movements. Today, in fact,
when trying to analyse “the new new social movements”, whose principal pre-
cursors in Portugal were Geração à Rasca (The Struggling Generation) (March
2011) and Que se lixe a Troika! Queremos as nossas vidas! (The Troika can get
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

lost! We want our lives back!) (June 2012), we are obliged to ask not only where
we were in relation to the crisis at the moment it appeared but also where we
are in relation to that same crisis today.
Some years before Geração à Rasca appeared in Portugal, the crisis had
already sown seeds of disatisfaction in the population regarding the ongo-
ing political and economic scene in Europe and the USA. 2007 saw the stock
market crisis, the subprime mortgages, that affected the global market and
whose effects are still felt today, as we approach the end of 2017. This led to
social protest movements that were mainly partidarial as well as global and
with systematic characteristics, as the social networks spread through the In-
ternet broadened public space, and where the performative and artivist fac-
tor was clearly in evidence: through the profusion of almost choral claims, of
masks, of caricatures, in addition to the building of political posters and grafitti
that filled the streets (Madeira 2007, 2012, 2015a). Portugal ended up having,
rather unexpectedly, a role in spreading the wave of protest. Although it was
not one of the first countries to suffer from the stock market crisis, it was later
intensely affected economically by a set of associated factors that weakened
the fragile national economy. The integrating of Eastern European countries
in the EU and the expansion of the Chinese economy particularly affected tra-
ditional sectors of the economy, especially with regard to Portuguese exports.
At the same time as the Portuguese government was unable to come up with
policies capable of minimizing these effects, the labour market also failed to
absorb young Portuguese graduates, which led to the aggravation of unem-
ployment and precarious employment for many of these young people and
their families. Geração à rasca was the slogan previously used in the 1990s
by student movements demanding education without fees. It reemerged in
2011, bringing thousands of young people together from the most diverse
parts of society in a social movement, who held various demonstrations. The
claims of this movement were initially focused on a generation of educated
young people who had degrees but no access to employment and, there-
fore, saw a bleak future stretching before them. The movement was not, how-
ever, limited to this age group but eventually incorporated all other sections
of the population. It included all those who experienced the same problems

140
of precarious employment or the families of these young people who partici-
pated in this collective drama, causing a large group to come under the same
banner, including individuals who had never participated in demonstrations.
A year later, in 2012, as a reaction to the subprime crisis that led to the
collapse of Portuguese banks and the application of austerity measures by the
Troika, the even more all-embracing social movement Que Se Lixe a Troika!
Queremos as nossas vidas! appeared.

CLÁUDIA MADEIRA | IN MEDIA RES: TRAGIC CRISIS AND THE ARTIVISM IN THE NEW NEW SOCIAL MOVEMENTS IN PORTUGAL
If the concept in media res in these movements defines a crisis whose
focus is broader than the temporal axis in which they take place; we can also
now hypothesize that the intense mass mobilization, which continued in other
subsequent transnational movements such as Indignados (The Indignant) (Oc-
tober / November 2011) or Juntos Podemos (Together We Can) (2012)1, who
tried to occupy public squares2 and that, in the last year, have lost much of
their energy. Nevertheless, this does not mean that the crisis and the spectres
of tragedy do not remain in Portuguese society. What factors can explain the
seeming withdrawal these social movements? Alternative forms of empow-
ering demonstrators, including attempts to structure or incorporate political
parties? An effective leftist alliance (a coalition government between the So-
cialist Party / Left Bloc / Communist Party)? A mere change of ideological rhet-
oric? The emergence of alternative structures of resistance (collective projects
and social and artistic centres)? The skilled population emigrating in a wave
unprecedented in history and the international context? Reinvestment in the
tourism sector? The new world crises, such as that of the refugees that has
dominated the global public space? Is there a crisis that gave rise to these
movements that ended in Portugal (and in Europe) that has led to a decline
in demonstrations? Or, on the contrary, are we still only relating to the crisis in
media res; that is, exactly in the middle of things?

Tragedy and tragic?


If this study is to develop, it is important to underline that Tragedy’s rela-
tionship with the tragic is, to some extent, analogous to that which exists be-
tween art and life, as Tragedy is a poetic depiction of the tragic. Moreover, if
it is true that, in a specific analyse, there is still a debate today between those
who advocate the death of Tragedy and those who argue that Tragedy and the
tragic have never been so interconnected as they are in our times. We shall
see below that, in a more general analysis relating art and the social, various
authors have unequivocally stated that there is a correlation between social
manifestations – periods of crisis, revolution and anarchy, for example – and a
more interventionist kind of art.3 In From Art to Politics (1995), Murray Edelman
argues that art provides the environment for reflective thinking about the so-
cial, i.e. that art manifests itself like a kind of cloud of notions that can function
as a model or script that influences social change. For Edelman: “Works of art
generate the ideas about leadership, bravery, cowardice, altruism, dangers,

141
authority, and fantasies about the future that people typically assume to be re-
flections of their own observations and reasoning” (ibidem:3). So, the author
concludes that “art supplies the menu of models. From one perspective, that
is its essential function” (ibidem:8).
Based on this, we can hypothesize that in some artistic initiatives taking
a performative stance on the streets in the late 2000s, signs and latencies of
the social movements that were to emerge in 2011 had already germinated.
These art forms appear to be based on recurring themes in the Portuguese his-
torical imagination, such as the dilution of historical memory (of Dictatorship
and Revolution) or the practice of a discrete or semi-clandestine resistance,
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

appearing to be made through a kind of repertoire of social crisis, which was


then returning (Madeira 2007, 2012, 2015a, 2016 c, d).
One of the concepts that links art and the social to the Greeks of Classical
Antiquity is that of hubris. This concept is defined in myth as exaggeration and
insolence and canonized in Greek tragedy as the driving force behind the fall
of heroes in the face of the “blind forces” of fate (Ubersfeld, 2010). Since then,
the progressive mixture of the genres of tragedy and comedy (or drama and
farce), like their relationship with the social tragic and their presence in every-
day life, has led to various theoretical controversies about the applicability of
tragic hubris beyond the Greek origins where it was forged.
On the stages of antiquity, this concept functioned as an example of what
happened to those who exceeded or transgressed the laws of the gods or
humans. It may be noted that Athenian society even created a law on hubris,
stating that “if anyone hybrizei (commit[s] hubris) against anyone, either child
or woman or man, free or slave, or does anything illegal against any of these,
let anyone who wishes, of those Athenians who are entitled, prosecute him”
(Fischer 1976:24). On the Athenian stage, the tragic hero thus reflected a re-
markable character, usually a real representative, who acted as an intermediary
between gods and men and, through his hubris, intentionally or not, through
ignorance or pure accident, allowed people to see the staging of a difference
that endangered the group identity (Meyer 2007:15): therefore he (sometimes
she) had to be excluded or sacrificed. Crime, incest, rape, adultery, theft, as-
sault, excesses of all kinds, or merely the fact of being young, healthy, rich or
powerful and, therefore, feeling superior and invulnerable to the reverses of
fortune, while becoming unable to empathize or feel pity for those who are
not, made him a hubristes4. All these excesses were to be punished so that the
group identity and order could be restored. For this reason, there is a terminal
and, simultaneously, inaugural role (Nietzsche 2004 [1872]:105) that leads to the
crisis and tragic death being transformed into the salvation of the community.
Paradoxically, the canonization of this example in Greek tragedy leads var-
ious authors, e.g. Nietzsche, Schopenhauer or Steiner, to advocate the death
of tragedy and its impossibility in modern times, thus creating a dichotomy be-
tween a “literary and artistic conception” of the tragic and an “anthropological

142
conception” (Ubersfeld 2010) or “fundamental structure” (Domenach 1967)
of the tragic in human existence5. It is precisely these factors that have been
questioned by authors such as Jean-Marie Domenach in Return of the Tragic
(1967), Michael Maffesoli in The Eternal Moment - The Return of the Tragic in
Postmodern Societies (2001) or Raymond Williams in Modern Tragedy (2002).
According to these authors the tragic has not only not died but presents itself
in social life and in art as one of the most striking features of our time, where

CLÁUDIA MADEIRA | IN MEDIA RES: TRAGIC CRISIS AND THE ARTIVISM IN THE NEW NEW SOCIAL MOVEMENTS IN PORTUGAL
life is lived under the yoke of a “risk society” (Beck 2000) and constant threat,
which has led to the collapse of humanisms6. Other authors, however, such as
Slavoj Zizek in his book, From Tragedy to Farce (2010), pursue the idea of Ki-
erkegaard or Marx, who predicted in their time that we would be on the way
to a tragi-comedy or farce. Zizek says that even Marx in his 18th Brumaire of
Louis Bonaparte complements Hegel’s observation that all great events and
personalities in world history happen twice, the first time as a tragedy, the
second as a farce, and that, in the introduction to a new edition of the same
book in the 1960s, Herbert Marcuse says that sometimes the repetition in the
form of a farce can be more terrifying than the original tragedy (2010:10; 14).
As Raymond Williams (2002) says, the argument that there is no tragedy or
tragic sense in the everyday life of ordinary mortals, when it is so deeply root-
ed in our culture, excludes tragic suffering in the common man or woman, an
ethical content and a trademark of human action – and, therefore, such an ar-
gument can only reflect an analytical flaw or ideological censorship by some
academics.
For this reason, the author not only states that our current social trage-
dies cannot in any way be interpreted in light of the meanings given in Greek
tragedy, but also that it is necessary to identify and critically interpret the new
relationships in contemporary tragedy7 (ibidem:76). He begins by telling us
that “major tragedies, it seems, do not occur in periods of real stability or pe-
riods of open and decisive conflict. Their more usual historical scenario is the
period preceding the collapse and substantial transformation of an important
culture. The condition for them is the real tension between the old and new”
(ibidem:79). So, this – our – time of social and existential crisis cannot but re-
flect tragedy and the tragic, and it becomes necessary to identify how they are
expressed today. First, the notion of the tragic accident has changed. While
this appeared in antiquity as design, fate or providence, connected with met-
aphysical and social institutions, today this link is being diluted, with the social
disorder and crisis being produced in direct relation to the unequal order cre-
ated within the capitalist system – one that generates inequality, humiliation,
unemployment, violence, deprivation, and injustice. This tragic experience,
which does not have to finish with the real death of the hero8, who, today, can
reflect any ordinary person, should rest on clarifying the fact that, in the first
and last place, this disorder is a product of the struggle of person against per-
son. According to Raymond Williams, that represents the need for a revolution,

143
which is included in the struggle or in “man’s search to free himself or deny
the tragedy of life” (Domenach 1967), replacing it with an order that ensures
the participation of everybody in the construction of a more equal and com-
mon destiny. There, he tells us, the only really tragic danger, underlying revolu-
tion, “is a disorder that we ourselves continually re-stage” (Williams 2002:111).
However, there are few who dare to dream of this revolution, or even “dream
dreams of utopian alternatives to capitalism” (Zizek 2010:92). There are more
of those who consider that the crisis is not caused by the capitalist system itself
but secondary and contingent deviations that delay this revolution (excessively
lax legal rules, the corruption of large financial institutions, etc.) (ibidem:28).
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

Maffesoli also notes that this “return to the tragic” reveals itself in a presen-
tist and polychrome time that sees the rise of an ethic of the moment, a cul-
ture of pleasure, which produces not only new nomadic and tribal groups but
also “new heroes of post-modernity who are capable of risking their lives for
a cause that can, simultaneously, be idealistic and perfectly frivolous, taking a
risk that can be phantasmal, as a kind of simulation or with real consequenc-
es” (2001:26). In a way, this complements Jean-Marie Domenach’s perspective
– already presented by Zizek and preceded by Kierkegaard and Marx – that,
today, tragedy is manifested through the “absurd, which is sin without God”,
produced by men themselves (Domenach 1967: 219).
The capitalist system itself is a kind of replacement of the gods where trag-
edy included the fall of any noble man, a sort of new “religion of merchandise
and the show”, in the sense defined by Débord in The Society of the Specta-
cle (Débord quoted by Jappe: 2008:19). This creates a notion of chaos where,
today, any man can fall, indiscriminately, which makes people return to rela-
tive passivity in relation to destiny. For this reason, too, according Domenach,
the birth of contemporary tragedy has its origin at the opposite extreme from
tragedy itself, i.e. the comic, especially in its least noteworthy forms of farce
and parody (Domenach 1967:256).
This mixture of the various facets of the tragic and comic allow more hy-
bridization and unpredictability in the repertoire of life and art, with the reper-
toire incorporating differences in the characters’ social status (from the digni-
tary to the common mortal), the type of language (learned, vulgar), the ending
(unhappy, happy), the action (the fall, the rise), and the topic (deception/error
that is discovered or triumphant). In a farce, the characters, situations, action
and speeches are oriented according to the abstract criterion of the “in gen-
eral” (Kierkegaard, (2009[1848]): 64). Hence, the viewers’ own reactions in a
farce, where they must be active entirely as individuals, are also unpredicta-
ble. They can be in a sad mood or beside themselves with laughter (idem) or,
today, more often, indifferent – because, as Meyer told us, “Comedies have
long ceased to make us laugh or tragedies to make us cry”. This makes him
question whether “men have become insensitive to the suffering of others or
to the misfortune of their most naive fellow human beings” (Meyer 2007: 46).

144
Therefore, I will address some of the features that seem important to
contemporary performance in the new new social movements, which include
these hybrid characteristics between art and the social, as well as the tragic
and farce, such as animality, mascarede, chorus and the ghostly.
Animality was, at first, a feature of festive rituals9, in legends10, and in
Greek theatre, which was placed early on under the aegis of Dionysus, the
goat-footed satyr god who incites humans11 to assume their physicality and

CLÁUDIA MADEIRA | IN MEDIA RES: TRAGIC CRISIS AND THE ARTIVISM IN THE NEW NEW SOCIAL MOVEMENTS IN PORTUGAL
animal instincts, and leads them to fall into hubris12. In humans, animals rep-
resent ambivalent figures who share common traits with them – an expression
of how civilization has failed to tame the animal in us – as well as an alterity.
Today, however, this alterity no longer refers to an assumption of the superi-
ority of man over animals13 or acts as a metaphor of good and evil (Tesnière
and Delcourt 2004:23) but, rather, is taken by humans themselves as a rep-
resentation and critique of the dehumanization of the human (Agamben 2011)
or a “positive negation of the human” (Jorn 2012 [1988]) and as a means of
questioning social inequalities.
In one of the most important representatives of Greek Cynicism, the 4th
century philosopher Diogenes of Sinope, we find a referent for an analysis of
the role of animality in contemporary performance in social movements. This
philosopher, nicknamed the “Dog” for his decision to divest himself of his pos-
sessions and live on the streets in an empty barrel with a cup as his only posses-
sion, intentionally began to search for a “return to the animal nature” of humanity
(Sloterdijk 2011 [1983]:165). Thus, in public, he exposed his animal nature and
corporeality, just as they were, as opposed to his urbanity14. This display of his
divesting himself of objects and passions was combined with the use of “argu-
mentation” (ibidem) or a “rhetoric of confrontation”15, a sign of protest against
the opulence and corruption of Athenian society. During the day, it is said, he
came to the point, in his “cynicism”, of walking the streets with a lantern in his
hand, looking for a single reasonable person. In this way, a kind of cynicism was
established that can reflect an effective form of resistance against all the powers
that be, on the basis of laughter and irony (Sloterdijk 2011[1983]:160, Maffesoli
2001:91). Diogenes thus personifies the political animal that is searching for an
honourable place for the animal side (Sloterdijk 2011[1983]:167) of humanity.
This resource of alterity – which, in the Portuguese case, is often identified
with an active and performative, almost animal, body occupying the public
space and thus demanding a voice - is often accompanied by the mask and
mascarede of the participants. This appears as a process of de-identification
and de-individualization. The mask can be anyone and everyone, a human
and something different from a human, or neither human nor animal. It is pre-
cisely this sense that runs through the political protest performances in the
new new social movements today, e.g. the figure of Anonymous, the mimicked
film character of V for Vendetta, where more mechanical comic features are
blended, with interference, as Bergson states (quoted by Meyer 2007). This

145
“mythology of masks” thus expresses “the set of reflexes” of a discourse that
goes beyond the individual who speaks (Pavis 2005: 235).
In the new social movements, the heroes often become a collective or
chorus, returning to the primitive form of the chorus in Greek tragedy, which
was originally mainly a chorus (Nietzsche 2004 [1872]:71) consisting of a com-
munity of citizens or victims. The chorus sings, dances and speaks, and often
addresses its declarations to itself, as a participant and spectator at the same
time (Ubersfeld 2010:29). These features are often combined, especially in
performances of a political nature, with what we may call the ghosts of history
that sometimes haunt contemporary manifestations with imaginaries that are
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

decontextualized in relation to today. Examples are the mobilization of the


“ghosts of the class struggle” (Zizek 2010:25) and the imaginaries of other
revolutionary movements, through the revival of songs, slogans, etc., as well
as, according to Maffesoli, “the great ghost of [tragic] universality” (2001:31).

Tragic Overcoming?
All these features have been reworked in the new new social movements,
but have been done so through diverse forms of activism in an idea of en-
larged public space. They have taken place in squares, streets and even so-
cial networks on the Internet; and as often in abandoned spaces as in thea-
tres and conventional cultural centres.
In this process, with the crescendo of the social crisis, a new “cycle”
began, recycling the “revolutionary script” (Madeira 2007, 2012, 2015a) that
had been in force in Portugal during the Portuguese Revolution of 1974 and
which manifested itself, in the new millennium particularly, in diverse artistic
performative initiatives. In 2008, there was a performance in central Lisbon
called “À Procura da Revolução Perdida” (“In Search of the Lost Revolution”).
On 9th July 2008, contrary to what had happened on the morning of 25th April
1974 when Portuguese radio stations recommended that they stay at home,
the radio station Antena 2 appealed to the population to come to the streets.
They were asked to participate in this event - produced by the radio station
and put on by Lignha Theatre – which aimed to gather the collective recol-
lection of what came to be known as the ‘Carnation Revolution’. About 200
people were at the event. Some participants, as can be deduced from the fol-
lowing two statements16, stressed the importance of the event in reactivating
the memories of the revolution:

“It should be done every year, precisely on 25th April ... an initiative like this,
starting at the Carmo barracks and ending here at the Terreiro do Paço”.

“Maybe what we need is a revolution! We should have looked for this a long
time ago ... not just now, but anyway, we’re still on time!”

146
However, its tone was more of nostalgia than genuine belief in the possi-
bility of recovering this world and, until this performance, the moments when
there was a questioning approach to the collective memory of the revolution
and the Portuguese dictatorship were rare.
One of these rare moments and from which we here can build a connec-
tion between Tragic and Tragedy clearly emerged in 1984 in Elegia para um
caixão vazio (Elegy for an Empty Coffin) by the Portuguese writer and journal-

CLÁUDIA MADEIRA | IN MEDIA RES: TRAGIC CRISIS AND THE ARTIVISM IN THE NEW NEW SOCIAL MOVEMENTS IN PORTUGAL
ist, Baptista Bastos. The book presents the funereal image of Portugal as a cof-
fin that had been performed various times during the Portuguese revolution-
ary process to symbolize death to fascism. It had a ressurgence, with a new
meaning, in the new millennium during the period of social demonstrations.
The title of the book is justified when someone asks: “Have you noticed
that Portugal is shaped like a coffin and an empty coffin?” (59), and later we
are told: “empty because of no people; which is worse than containing corps-
es” (idem), it is is “Calvary” (65). The book deals with the bankruptcy, ten years
after, of the revolutionary ideology of the April 1974: “It is the fault of this ter-
rible time. It is the fault of this Revolution that failed” (10). He wonders if the
Revolution and the proposed liberty wasn’t just a myth: “You spend your time
longing for that impossible heroism. They believed too much in liberty as a
primordial act (...). Well, it happened on April 25th. Are they free? Are we free?
We were all freer in the time of fascism. Know why? Because hope was intact,
because we fought against every form of individual mutilation. Fascism was
there and we fought it as a group. And now?” (58). “April was not a Revolution,
but many things changed” (96); “April was not, nor could it have been, the un-
interrupted party. And we, of course, cleaned up the remains, the leftovers of
a party that was almost a revolution” (97).
The book also desects the memories of what life was like in the 60s in
Portugal, especially for those who dared to resist; as well as the imaginary fu-
ture that kept them firm in this resistance, even when they were political pris-
oners: “You lived in the Future, ignoring the present” (64). “What nourished,
stimulated that man and other men and women was an obscure, but inalien-
able sense of the future “(104). There is also a reference to historical cyclicity:
“time is circular, anti-historic, infinitely recoverable: a kind of eternal present
whose fearful texture rests on endured humiliations, on pains suffered, on im-
memorial mourning” (23), and further on, this circularity is justified through
the dates of Portugal’s emergence as a nation and democracy “138317, 182018,
191019, 197420. Dates suspended, things that were not continued, directions
that suddenly stopped, gradually obscured as if there had been absent par-
ties (26) and finally stating that

“The problem of fascism, today, no longer comes up in Portugal, in Europe.


It is a different threat, the danger has another name … Nonetheless, we
should not forget that in a country with millions of inhabitants, PIDE had

147
files on four million people, and some hundreds of thousands of agents,
informers, accomplices, sympathisers, collaboraters, legionaries. In addi-
tion to the Armed Forces, who were no more than the arrogant mimicry of
fascism. Portuguese Tragedy is moral. Furthermore, we cannot allow others
to say, at some later date: ‘Fascism? I don’t know what that is!’ Bringing the
past to light is, sometimes, painful and tricky. In our case, however, it is an
urgent pedagogical task” (110).

Immediately after 25th April, 1974, the image of the coffin was exhibited by
Clara de Menéres in her work, Jaz morto e arrefece (Lying dead growing cold):
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

a realistic statue of a dead soldier on top of a coffin, ready for the wake, which
expressed the reality of the death of military personnel in the Portuguese Colo-
nial War (Madeira 2016a). However, it generally appeared in a festive context,
as a symbol of hope, in the sense of burying a dead fascism, and its institu-
tions, to build a new future. Festa (Party) is an example of this: an event pro-
moted by the Galeria de Arte Moderna de Lisboa, in 1974, including theatre
groups, musical ensembles, choirs, poetry recitals and a collective exhibition
of 48 paintings (as many years as Portugal had lived under the dictatorship) as
a tribute to the Armed Forces Movement and to the Portuguese people. This
initiative was followed by a farce-like performance with “characters alluding to
certain prominent figures of the previous regime” and where a “Coffin” with a
flag bearing an “s” was cast into the river, and which represented fascism. This
gesture was emphasized by drumming played in the manner of 18th century
guillotine executions” (Couceiro 2004, 22). This performance, by the A Comu-
na theatre group, led to the RTP live broadcast being cut and generated the
most contradictory reactions from various sectors of society.
In the same year, in Porto, in an initiative set up by Cooperativa Árvore, the
Enterro do Museu Soares dos Reis (the Burial of the Museum Soares dos Reis)
was performed, in which a group of artists tried to “denounce the Soares dos
Reis Museum as an “inert body”, without any pedagogical or didactic action”.
At the funeral, in front of the museum, the writers Egito Gonçalves and Correia
Alves made speeches. An epitaph was placed at the door, which read: Soares
dos Reis Museum - b.1926 and died in 1974 - Here lies the former Soares dos
Reis Museum, having died of the moth, stuffiness and the yawning mouth of
tedium, to the eternal joy of those who will forget it and want a living muse-
um” (Couceiro 2004, 24).
The post-revolutionary period in Portugal was essentially marked by po-
litical art in which genuine criticism gradually dissolved into satire and even
farce, although occasionally there were moments or artists who, in the line of
Baptista Bastos, sought to break out and question this silencing or “non-in-
scription” (José Gil, 2005) of the memory that had been imposed regarding the
Dictatorship / Revolution. One of these moments came up through an act of
vandalism by the population of Beja, at a photographic exhibition by Cristina

148
Mateus, in 1997, which tried to confront the contemporary Alentejo with an
Alentejo of the past, which had played an important role in the fight against
the dictatorship. The exhibition consisted of a triptych of large black and white
screens arranged on the façade of the building housing the exhibition. The two
side screens were made up of an identical image of a silo, the only difference
being that on the left-hand screen the word “power” could be read over the
silo with “ideology” on the right screen. The central screen showed the image

CLÁUDIA MADEIRA | IN MEDIA RES: TRAGIC CRISIS AND THE ARTIVISM IN THE NEW NEW SOCIAL MOVEMENTS IN PORTUGAL
of António de Oliveira Salazar - who was the main figure representing power
during the 40 years of fascist dictatorship in Portugal.
These screens ended up taking on a performative character due to the
reaction they provoked. Even as the exhibition was being set up, the local
population began criticising the exhibition of the image of Salazar in a public
space. It was considered an insult to the collective memory. On the opening
night of the exhibition, someone burned the screen with Salazar’s image. The
next day, people passing by laughed at the “subversive act” (Cauter 2011)
that had destroyed the image of the Dictator. In Catarina Mourão’s docu-
mentary Fora de Água (Out of Water), where one can see part of this process,
ends with the phrase “a few days after Salazar’s image was burned, there was
a demonstration by an extreme left wing party, the UDP21, in the same square.
In honour of one of the Estado Novo victims, protesters placed an image of
Catarina Eufémia22 in the empty space left by the burned image.” In this spe-
cific example, paradoxically, the artistic work’s critical act was reduced to the
same extent that the performative reaction to the work was amplified by the
population, leading to the act of replacing a negative image of the dictator-
ship with a positive image of the revolution.
On a par with this initiative, the Portuguese artist who has focused most fre-
quently and to most telling effect on this area from a critical perspective is Paulo
Mendes. In particularly, through a group of works begun in 1999, in which he has
worked on the wiping of memory, of both the revolution; as well as the fascist
regime itself, and the figure of its dictator, in a series entitled S de Saudade (L for
Longing). In the former, he has directly called the event into question through
the title: O 25 de Abril existiu? (Did 25th April exist?). The latter consisted of dis-
tributing a series of stickers, creating images in grafitti, exhibitions and outdoors
— some of which were “censored” by the Lisbon City Council, who had invited
him to produce some public art. As from 2010, Mendes put together a series
of performances in which António de Oliveira Salazar was presented as “Sr. S”
(or “Mr. S”). The first of these performances was called silêncio, ordens, preces,
ameaças, elogios, censuras, razões, que querem que eu compreenda do que
eles dizem (Silence, orders, prayers, threats, praise, censorship, reasons that want
me to understand what they say). In the second, called se pudessem parar de
fazer para não fazerem nada enquanto não param de todo (If they could stop
doing it so they would not do anything while they did not stop at all), the artist
used a series of his photographs and depictions of the Estado Novo in which the

149
images were dipped in a tub of white paint and then glued to the wall. In 2011,
Mendes put on another performance: the tortura da memória (torture of memo-
ry) at the Porto Military Museum, headquarters of the former fascist police, PIDE,
in the city. Here Mendes critically evoked the repressive past and the absence of
freedom of expression, associating it with contemporary history and highlight-
ing two facts: the headquarters of PIDE, in Chiado, being turned into a luxuri-
ous condomnium and the law suit brought by the family of the former director
of PIDE, Silva Pais (1905-1981) against the author of the play, A Filha Rebelde
(The Rebellious Daughter) and other members of the D. Maria II National The-
atre, accusing them of an “offense to memory”. These performances appeared
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

to be justified by the artist himself as a symbolic act of the historical Portuguese


political memory that, in his view, continued to disappear without criticism23.
Susana Chiocca, an artist who, in 2011, produced the writing-performance
act à espera que o nevoeiro passe (waiting for the fog to pass) on the walls of
the Galeria Boavista, in Porto, alluding to the Portuguese crisis, in 2013, per-
formed in an Amsterdam square and called Não temos de morrer (We don’t
have to die), where various small Barcelos cockerels are thrown at a photo-
graph of Ângela Merkel, stuck on the floor, reflecting the political-social ten-
sion going on in Europe.
However, one of the novelties in recycling this “revolutionary script” were
the settings in which these artivist demonstrations happened that, in addition
to the streets or unconventional spaces, occupied not only the new social net-
works on the Internet but also institutional artistic spaces, such as museums,
theatres, or even EXPOS (European capital cities of Culture).
In this expanded public space, we can highlight, for example, a collective
and symbolic performance by the artist Miguel Januário in which the enterro
de Portugal or “burial of Portugal” was carried out, through the project ± POR-
TUGAL 1143-2012 ±, in the very of the “birthplace” of Portugal, as part of EXPO
Guimarães 2012. The country’s burial “procession”, symbolically represent-
ed by a black coffin in the shape of Portugal, was accompanied by mourners
lamenting the death of the country. There was also a guard of honour formed
by the Guarda Nacional Republicana (the Republican National Guard) and
the performance finishing (near the wall on which “Portugal was born here”
can be read) with the sound of gunshots in keeping with an official event. Fu-
ture actions, after this death of Portugal, would translate, according to Miguel
Januário, as the “resurrection” and “reconquest” of the country, with actions
appearing as mottoes for the Portuguese to “Self-Revolutionize” themselves.
Paradoxically, this apparently playful participation of the Guarda Nacional Re-
publicana led to an official investigation that ended with the exoneration of
the territorial commander in charge. Moreover, in the same year, a young uni-
versity artist, Élsio Manau, came up with a project in the Algarve entitled Por-
tugal na Forca (Portugal on the Gallows), which consisted of a flag hoisted on
a gallows, which led to the artist being tried in court for causing outrage over

150
his treatment of national symbols. Later however, in 2014, he was acquitted
and the work considered purely artistic.
There were new artistic demonstrations against the crisis in 2014, during
the commemorations for the 40th anniversary of 25th April: António Barros, an
artist who had been part of an experimental poetry group in the 60-70s, posted
40 visual poems – one by one – on his Facebook page in black carnations; and
then sent them to the Portuguese parliament, under the title Lástima (Pity). Rui

CLÁUDIA MADEIRA | IN MEDIA RES: TRAGIC CRISIS AND THE ARTIVISM IN THE NEW NEW SOCIAL MOVEMENTS IN PORTUGAL
Mourão, when opening a vídeo-installation at the Chiado Museum called Os
Nossos sonhos não cabem nas vossas urnas (Our dreams do not fit in your urns)
ended up producing a new artivist act by presenting a “manifesto against the
current cultural state in Portugal”, with the active participation of some visitors
and guests at the inauguration of the exhibition, who “occupied” the museum
for a night until the arrival of the police the next day. Vera Mantero presented
a conference / performance called Salário Máximo (Maximum Salary), in the
very space where the Portuguese parliamentary sessions take place. She tried
to discuss “the question of the proportion between minimum wage and maxi-
mum salary”, with Portugal being one of the most unequal countries in Europe in
terms of wages. Joana Craveiro created Um museu vivo de memórias pequenas
e esquecidas (A living museum of small and forgotten memories) - a play about
dictatorship, revolution and the revolutionary process - which explored the Por-
tuguese collective memory. At the end of the show, which was usually around
midnight (after five hours only interrupted by a “community dinner”), the direc-
tor held a debate with the audience who told their own stories and featured
subjects such as “persecution, prisons and torture” and “fears”. The “silencing
of collective memory” also featured and there was, for example, discussion on
“the plaque identifying the former PIDE building in Lisbon, which was removed
anonymously several times”.
In 2015, the experimental poet Ernesto de Melo e Castro produced a re-
signification of a performance by António Aragão, called Funerão de Aragal,
(Aragal’s Funeration), during the collective event Concerto e Audição Pictórica
(Concert and Pictorical Hearing), in 1965, characterizing it as “clear symbolism
taking into account the dead from the wars in the African colonies” (Melo e Cas-
tro 2015; Madeira 2016b).
In a recent interview24, and in order to explain this 2015 resignification,
Melo e Castro talked precisely of Concerto and Audição Pictórica having been
contextualized as an event “fully imagined in a completely open way” by Jorge
Peixinho, a “deeply politicized man” who wanted to create an event composed
of several interventions by the “also politicized” invited participants, with total
freedom to do what they wanted in a “context where freedom did not exist.”
The colonial war, metaphorically present in António Aragão intervention, was
among the other issues relating to impositions on Portuguese society, as one
of the dictatorship’s major prohibitions. Melo and Castro describes the perfor-
mance as follows:

151
“Around a table which was brought already set with plates of food, we sat
down and started to [simulate] noisy eating, chewing and banging cutlery
on plates... a pine coffin where Aragon lay was placed beside the table.
Then everyone stood up, one by one, and dumped the leftovers on top of
Aragon ‘s body. Then we lifted the coffin and went out slowly to the chords
of the traditional funeral march (2015:132)”.

Melo e Castro goes on to explain that this performance:

“1) was a clear allusion to the abundance and / or wasting of food taking
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

place in Portugal while people died; 2) showed that many young Portu-
guese were being killed in various ways, not only physically but also psy-
chically. Jorge Peixinho himself was admitted to the Military Hospital as a
mad man! He simply feigned madness to be excused service! I did not go
to war because of my age. If April 25th had not been in 1974, I would have
been sent off in the next call-up. I was psychically ready to not go to war,
but I had a family. I would have had to go into exile and leave my family
behind me, but I would go abroad. But April 25th came and my generation
was saved. However, the generation three or four years younger than I was,
among them Jorge Peixinho, would all be sent to Guinea. Jorge didn’t go
because he was crazy and so was excused military service. But there were
some who literally shot themselves in the foot, there were kids who shot
themselves not to go to war. I know a critic who mutilated himself. He cut a
finger off. It’s not a joke! Others fled and never returned”25.

This continuous “resurrection of memories of the Dictatorship, the Revolu-


tion and the Portuguese Colonial War has intensified and expanded in recent
years. Nonetheless, it has taken place in a context in which, contrary to what
happened in the revolutionary period of 1974, the burial symbol is not nec-
essarily an image of hope for the future, but rather accentuates a bankruptcy
of the idea of the future, as Baptista Bastos had predicted in Elegia para um
caixão vazio.
In fact, the ressurection that Miguel Januário proposed in his performance,
enterro de Portugal was yet to take place, despite the recent setting up - based
on these social and artistic movements and/or the atmosphere they created
- diverse projects and collective platforms occupying or re-occupying spac-
es, and social and artistic causes, generally for a fleeting time, such as hortas
comunitárias or community gardens, some of which were based on artistic
programes. This was the case with choreographer Vera Mantero’s mais pra
menos que pra mais (More for less than for more) (2014), which gave origin
to the Horta do Baldio: still going thanks to the initiaive of a group of “guard-
ians” (Madeira 2015b, 2016e). Projects have taken on the line of occupying
abandoned spaces, such as the Ocupação (Occupation) platform (2015) or

152
the Plataforma Trafaria (Trafaria Platform) (2016), which aim to develop collec-
tive artistic projects such as art shows, residences, conversations, communal
kitchens or even the creation of radios.
Under these circumstances, the return of this funereal “revolutionary script”
(Madeira 2007, 2012, 2015a, 2016a, b, c, d) has a double meaning. On the one
hand, it emphasizes the phantom-like character of the revolutions and trag-
edies of the past, which seems to corroborate the claim with which the soci-

CLÁUDIA MADEIRA | IN MEDIA RES: TRAGIC CRISIS AND THE ARTIVISM IN THE NEW NEW SOCIAL MOVEMENTS IN PORTUGAL
ologist Avery Gordon ends her book, Ghostly Matters (2008). Gordon tells us
that some people believe “that ghosts do not like new things” (2008: xix) and
so, in her opinion, if the injustices were eliminated, we would perhaps cease
to be so haunted by the ghosts of the past. In contrast, keeping ourselves in
media res as regards the crisis, allows us to develop, on a par with the uncer-
tainty of new paradigms for the future, where it is possible to overcome sce-
narios of disenchantment, precariousness, unpredictability, and disbelief in
the value of institutions that affects the belief system and values and creates a
tragic imaginary, some alternative strategies, however ephemeral, to rehearse
the future, beyond the tragic.
Perhaps this is why this tragic tone has featured on the main stages of Por-
tuguese theatrical performance. One example of this is the piece Isto é uma
Tragédia (This is a Tragedy) from Cão Solteiro & Vasco Araújo by Só Solteiro
& Vasco Araújo, which premiered recently at the Maria Matos Theatre in Lis-
bon (November 17th-20th 2016). There is no mention of social movements or
contemporary protests, nor of historical counter-memories of the Revolution,
Dictatorship, Colonial War, etc ... It speaks of everything and nothing, of the
banality of everyday life, while background noise makes it difficult for specta-
tors to hear the speeches on stage. The performers carry on talking as if it was
nothing, and even when, sometimes, dead geese fall from the sky, or even dead
men who disappear down trapdoors, the action continues on stage. Nothing
seems to interrupt this tragedy where there are no collective memories, but
only a passing life and small individual memories, as one of the characters tells
us: “How stupid, the stuff that comes into your head... This nostalgia thing. This
thing of memories appearing, as if they came to make sense of the present. But
you can’t control anything. They appear, seeming to come out of thin air, and
short-circuit the day, don’t they? Then everything seems to have the aura of a
psychodrama, it’s horrible”. However, in the Portuguese National Theatres, in
Lisbon and in Porto, the Classical Tragedy repertoire has been more intensely
re-programmed. Tragedy, in its poetic expression, carries within it the possi-
bility of overcoming the negative by the positive.

153
Notes
1
Social movements that sprang up in religious crisis, political crisis, the search
Spain and then spread to Portugal. for human identity, the question of
technique, the question of urbanism and
2
In Portugal, a number of popular
the new labyrinthine contours of city life,
assemblies appeared based on the
the new issues of genetic engineering,
Acampada do Rossio (The Rossio Camp)
and ecological issues.
(May 2011), which were decentralized to
various areas of the city of Lisbon and 7
In his own words: “Any attempt to
regions of the country. abstract these orders as definitions of
tragedy either leads us to the wrong
3
Victor Turner and Richard Schechner
conclusion or condemns us to a merely
(1989) speak of a relationship in spiral
sterile attitude towards the tragic
form between art and the social,
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

experience of our own culture” (2002:77).


where the two worlds are continuously
contaminated through non-linear 8
Though the so-called “Bomb-
influences. This process, for the authors, Menbombers” and “terrorists/martyrs”
“is responsive to inventions and the maintain this “heroic” effect today, even
changes in the mode of production in a arranging performances and media
given society. Individuals can make an spectacles before the act. On YouTube,
enormous impact on the sensibility and there are many examples of this.
understanding of members of society. 9
Where according to Bataille it
Philosophers feed their work into the
represented an entry point to the sacred.
spiraling process; poets feed poems
See Bataille quoted by Borić 2007.
into it; politicians feed their acts into it;
and so on” (idem). Long before, Richard 10
Which depict an affinity between
Wagner in Art and Revolution (1849) humans and animals based on the
and Anatoly Lunacharsky in Revolution transmutation of souls. See Grimal
and Art (1920) spoke about a zigzag 2002:34.
relationship, with the first stating that art
influenced the revolution and the second
11
Greek theatre is full of animals (horses,
the inverse. Moreover, the controversy monkeys, bulls, snakes and cocks)
between Joseph Proudhon, with his book that are also defined by hubris – and
Du principe de l’art et de sa destination aggressive and noisy.
sociale (1846), and the journalist and 12
The Bacchae of Euripides portrays this
writer Emile Zola regarding the work of image.
the anarchist artist Courbet refers to this
intrinsic and conflict-ridden relationship
13
As happened in the bestiaries of the
between art and the social (Antliff, 2007). Middle Ages, which recovered and
promoted the bestiary inherited from
4
Or, as David Cairns says, “blind over- antiquity.
valuation of oneself caused by the
experience or the illusion of excessive Therefore not hesitating to urinate or
14

prosperity” (Cairns 1996:8). masturbate in public.


5
A conception that has taken root
15
In contrast to the rhetoric of Aristotle,
especially since the 19th century, through which presupposed the assets of
authors such as Hegel, Schopenhauer, order, civility, reason, decorum and
Nietzsche, Scheler, Luckacs, and civil law (Scoot and Smith quoted by
Unamano (Ubersfeld 2010). Kennedy:1999).
6
In the current collapse of humanisms
16
Report by Paulo M. Guerrinha and
and their relationship with a reflection Carla Costa for the Sapo site. See http://
on the tragic, José Pedro Serra (2006) videos.sapo.pt/dJKjizkw3Ki8ONwZtPiZ,
sees the outcome of the extremely close last accessed 15/11/2016.
relationship between the metaphysical- 17
Interregnum.

154
18
The Liberal Revolution in Porto. 23
See the artist’s page at http://www.
paulomendes.org, last accessed
19
Implantation of the Republic.
15/11/2016.
20
25th April Revolution. 24
Interviewed by me on 24th July 2016,
21
União Democrática Portuguesa. in Lisbon.
22
A symbol of the rural Alentejo
25
Idem.

CLÁUDIA MADEIRA | IN MEDIA RES: TRAGIC CRISIS AND THE ARTIVISM IN THE NEW NEW SOCIAL MOVEMENTS IN PORTUGAL
proletariat’s resistance to the repression
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156
Sortilégios Artivistas.
Por uma extradisciplinariedade
monumentalmente afectiva
Mário Caeiro
Professor na ESAD das Caldas da Rainha, Investigador e Curador
[email protected]

The article is a reflection on the


several ways art crosses paths
Art, because we do not want to renounce neither with activism. In the context of
to that word, not (above all) to its history/ies, its urban theory, what is proposed is
a landscape of understandings of
tradition(s), to avoid its usufruct by the predom-
art as a critically rhetoric instancy
inant forms of alliance between aesthetics, state
in urban life. In this framework,
and capital.
several conceptual topics and
Dario Corbeira artistic modalities, as well as
specific artistic experiments,
Introdução – da arte crítica urbana overlap, in order to seize a
Escrevo do ponto de vista do investigador com multidimensional problematic.
um pé na Academia, onde é minha obrigação con- From the acknowledgment of
tinuamente equacionar a validade de conceitos, e diverse genealogies of political
outro na realidade da produção do acontecimen- intervention to the actualization
to artístico. Aí a experiência da arte como momen- of a critical apparatus for today,
to urbano – a noção é de Henri Lefebvre, no cerne the text promotes the idea of a
total rhetoric as the basis for the
de sua teoria da presença, fundamento da praxis
connection between artistic work
emancipatória – é da ordem de um prazer do texto
and the activist ethos. One which
– a noção é de Barthes –… da cidade. Ontem como
might be publicly appropriated
hoje continuamos a ter a responsabilidade de exer- as a technique of existence.
citar um prazer crítico da cidade como dispositivo
(Agamben) e acumulação de dispositivos urbanos.
Na epígrafe, fica patente ao que venho: da arte
como campo criticamente expandido – a noção é
de Krauss – e num espírito revolucionário – onde se
encontram a nostalgia do futuro e o desafio que é
materializar o presente. Tal revolução são muitas,
a começar pelas urbanas – a noção é de Krzysztof
Nawratek –, servindo a palavra sobretudo para afirmar
a possibilidade de as coisas mudarem; mas mais, de

157
que ao mudar nos obriguem a repensar até mesmo as designações com que
quotidianamente lidamos. Dario Corbeira, editor da obra Art y Revolución /
Art and Revolution (2007), à falta de melhor modo de formalizar os desafios
do activismo, (ar)risca na grafia um gesto performativo para comunicar as
tensões que estão em cima da mesa, colocando um traço horizontal sobre a
palavra ‘revolução’.
O assunto em análise assume, quanto a mim, muitas formas: da arte como
serviço à de interesse público, da provocação cidadã a contributos para uma
esfera pública incremental, devendo desde já ficar claro que não seria capaz
de, a priori, me preocupar em definir quando uma intervenção é arte (ou não),
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

e se é activista (ou não). Mas outra coisa é certa, perante casos concretos em
que uma estética urbana integra o desejo de mudar o mundo, vislumbro con-
catenações conscientes da ligação que aqui nos traz: a articulação em sentido
abrangente entre criação artística e activismo político. Espero na verdade que
este texto desvele uma retórica, assente no equilíbrio entre uma disposição
interventiva (ethos), a vivência de valores comunitários (pathos) e a promoção
de um modo de operar cooperativo (logos).
Recuperado as palavras de Delfim Sardo no prefácio a Arte na Cidade
(Círculo de Leitores/Temas e Debates, 2014), trata-se de pensar o problema
político (a questão da participação), um problema social (a questão da acessi-
bilidade), e um problema estético (que regime de partilha) (in Caeiro 15). No
quadro das heterotopias participatórias e comunitárias, fruto da lente rela-
cional (Rolnik 236), ligar arte e activismo passa por revelar e promover – mais
do que propriamente desvelar – contextos para a acção; e por conseguinte
de concomitantemente gerar situações que activam um horizonte social. Tal
decorre no quadro e na fragilidade de processos criativos, plásticos ou pro-
priamente artísticos, que aqui invoco na sua dimensão essencialmente urba-
na, isto é, que possamos entender como activismo na cidade, pela cidade,
no cerne da vida urbana. Ao limite, o activismo artístico que aqui evoco – um
artivismo, para usar uma expressão da artista nepalesa Ashmina Ranjit – é o
lado proactivo de uma estética dialógica sempre renovada, sobretudo nas
condições do efémero – arte do kairos. O campo, de limites difusos, pode ser
sucintamente equacionado como o da arte crítica urbana.

Da estética social ao intervencionismo molecular


Em Arte na Cidade, arrisquei esta frase: Face à imponderabilidade da in-
certeza que Marx introduz na nossa concepção de tempo urbano, uma leitu-
ra participatória quer da possibilidade, quer da concreticidade da situação, a
caminho de meios para efetivar o testemunho (Liggett) é condição sine qua
non para a participação, desde já como experiência produtiva de um sublime
social. (Caeiro 401) Na sempremergente relação (de troca) entre arte e acti-
vismo, irrompe um sentido comunitário em que a arte do social é maior que
a soma de todas as suas partes, precisamente porque aponta à existência de

158
uma economia outra que a da arte como sistema fechado (em si própria, face
à dinâmica da vida social).
Neste quadro, o foco no objecto físico da arte desloca-se para outras com-
plexidades no âmbito da relação entre agente (emissor do gesto artístico) e
público (receptor), procurando desenvolver uma reflexão acerca de questões
como as do vínculo social a formar. Este pode ser aqui compromisso de longo
termo, ali reactividade com carácter de urgência, acolá trocando eficácia ime-
diata pela ironia mais intemporal.

MÁRIO CAEIRO | SORTILÉGIOS ARTIVISTAS. POR UMA EXTRADISCIPLINARIEDADE MONUMENTALMENTE AFECTIVA


Sob várias modalidades – colaborativa, participativa, comunitária, públi-
ca… – a arte crítica activista (pode colocar-se aqui a questão de saber se toda
a arte crítica não será por princípio um activismo…) encontra o seu punctum
num sensus communis que se surpreende tanto no momento de iluminação
fugaz como no activismo de longa duração (ou lento, com lhe chamam alguns
autores). A generosidade e o compromisso podem constituir durées radical-
mente diferentes, mas hoje enfrentando decisivamente, e cito Rui Matoso a
propósito da noção de activismo cultural, esse “poder absorvente” enraizado
nas sociedades contemporâneas, uma espécie de novo totalitarismo disfarçado
de pluralismo, [que] esvazia a dimensão artística neutralizando todos os conteú-
dos antagónicos, permitindo assim que as obras e os pensamentos mais con-
traditórios coexistam pacificamente e nada valham por si mesmos (Matoso 6).
A arte crítica e activista pode então ser mais ou menos espectacular (ao
limite, quando os media lhe dão fugazmente tempo de antena, confunde-se
com a cultura dos eventos), e variar de identidade em função das problemáti-
cas que decide abordar. Com efeito, existem activismos focados em questões
directas a par de activismos envolvidos em problemáticas intrincadas, geran-
do sobressaltos com impactos muito distintos, aspirando estrategicamente a
diferentes graus de visibilidade, naturalmente que em função de imperativos
estéticos que lhes são inerentes. Donde que é bem difícil conferir, perante
tão diferentes modos, espaços e tempos de operar, em face de tão diferen-
tes sentidos da responsabilidade e da urgência, que arte cumpre o âmago ir-
redutível do activismo como praxis social enriquecedora da vida urbana – to-
cando no ponto – e qual é mero epifenómeno superficial e ao final irrelevante
de dinâmicas sociais críticas que, à falta de melhor, se sublimam em imagens
apenas aparentemente redentoras.
Esta é uma questão ligada a outra, a de como dosear-se a dimensão es-
tética do activismo (condição para a sua memorabilidade) face ao problema
do seu impacto estritamente político (resultados ao nível das transformações
sociais que possam estar em cima da mesa). Isto explica que muito activismo
acabe por ser assumidamente cosmético… e não cósmico; não que isso seja
necessariamente um problema, tendo em conta as condições dramaticamen-
te invisíveis com que o campo da arte opera – não o da ‘grande arte’ que o
Mercado acaba por afirmar, mas o da pequena grande arte (Pinson) que se
lhe escapa por entre as malhas.

159
Vejamos: Paula Rego criar uma série de
obras sobre a questão da interrupção (in)volun-
tária da gravidez («O Aborto», 1997) – que não
pode considerar-se uma obra de arte pública
activista em sentido estrito – não leva obrigato-
riamente a maior transformação social do que as
nano-intervenções performativas que encontro
em manifestações de minorias (por exemplo, o
tecer colectivo e global de uma peça em lã ver-
Fig.1 – Acção d’A Linha Vermelha melha – a maior linha vermelha do mundo – que
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

(em parceria com Tamera) contra um colectivo de activistas ambientais tem vindo
a exploração de petróleo e gás em
Portugal. Realizou-se no dia 9 de
a desenvolver durante as suas manifestações na
novembro de 2017, durante a Web cidade1). No primeiro caso, o político tira parti-
Summit. do da modalidade ‘arte’ para se fazer ouvir; no
Fotografia publicamente disponível no endereço
segundo caso – o projecto transnacional Linha
www.linhavermelha.org
Vermelha – é a ‘arte’, sob a forma da recuperação
participatória de um craft tradicional, que irrom-
pe no seio da política, no hype da oportunidade.
Em todo o caso, apenas alguma arte e algum
activismo encontram um equilíbrio genuinamente
retórico, logo persuasivo, memorável, definitivo,
entre o desejo de eficácia (desde logo, comu-
nicativa, ou não fossem política e comunicação
duas faces da mesma moeda) e de experiência
(desde logo da arte como durée capaz de digni-
ficar o humano). Resta saber se, numa altura em
que a soberania individual e colectiva cedeu pe-
rante as hegemonias das grandes corporações
e de todas as formas de dominação tecnopolí-
tica, é para Pinochet (!) que nos temos de virar
para evocar uma ideia perturbadora: por vezes
a democracia tem de ser banhada em sangue
(Stimson e Scholette). O cinismo, mesmo o pro-
dutivo, tem os seus limites, nomeadamente o
discursivo.
O problema é, no fundo, o de continuamen-
te actualizarmos a própria ideia de mediação,
no sentido que lhe dá Régis Debray num texto
cujo título é precisamente… activista, Manifestos
Midiológicos. Com Gerardo Mosquera, digamos
que a capacidade mínima da arte para a comu-
nicação e a acção social acarreta de imediato
problemas éticos para os artistas e críticos com

160
orientação política. Deverão limitar o seu traba-
lho à arte? Poderiam talvez explorar novas formas
de comunicação? Teriam antes a obrigação de
se tornarem sujeitos políticos de acções políti-
cas específicas? (Mosquera 219)
Ocorre-me neste quadro a consistência au-
toral de Miguel Januário (±) na sua continuada
apropriação da forma urbana ou o ritual de co-

MÁRIO CAEIRO | SORTILÉGIOS ARTIVISTAS. POR UMA EXTRADISCIPLINARIEDADE MONUMENTALMENTE AFECTIVA


municação do colectivo As Toupeiras em sucessi-
vas manifestações celebrando o 25 de Abril. Em
todo o caso, o que liga arte e activismo é neces- Fig.2 – Miguel Januário (±), 'Oilygarchy',
sariamente da ordem de um pensamento mágico Nuart Festival 2017, Stavanger, Noruega.
A peça foi realizada numa doca da cidade
(Seno 220) que se consubstancia sob o modelo de Stavanger, junto a um bairro de
da intervenção. Aferir da qualidade ou da inten- classe média alta. Stavanger é a cidade
sidade desta ligação arte-activismo é conferir o petrolífera da Noruega, o maior país
europeu produtor de petróleo.
potencial ou manancial de empoderamento que Fotografia cedida pelo autor.
a acção suscita. Dieu reconnaitra les siens, mas é
evidente que uma intervenção artística activista
tanto pode irromper no quotidiano como uma
importante e continuada reconfiguração do espa-
ço público e/ou da esfera pública, como apenas
constituir uma fugaz válvula de escape convivial
no seio da cultura burguesa, no quadro restrito
dos seus tempos livres, hoje espectacularmente
colonizados (para falar à situacionista). A verda-
de é que entre ambos os extremos são infinitas
as nuances e suas implicações…
Mas há fórmulas particularmente relevantes
Fig.3 – Cover photo da página de
para o actual contexto sócio-económico-polí-
Facebook do colectivo As Toupeiras, por
tico, momento de transição civilizacional que altura da redacção deste artigo (Janeiro
procura vias para articular as grandes narrativas de 2018).
(quais ‘amanhãs que cantem’) com a performan-
ce cidadã de cada um de nós. Estou a pensar
no activismo artístico como modalidade de in-
tervenção molecular (Raunig). Esta noção é es-
sencial, na medida em que parece poder redi-
mir a nossa relação ansiosa com a finitude (do
nosso próprio agenciamento, aspecto-chave da
biografia): A revolução molecular não significa
estabelecer outro poder constitutivo, outra rela-
ção hierárquica, outro aparato estatal […] emer-
ge de concatenações transversais, aberturas para
outras máquinas (Raunig 223).

161
Aspecto interessante desta paisagem de conexões é a figura do artista-in-
vestigador, mostrando que, nas actuais condições da praxis da arte e das coi-
sas do mundo, ambos os papéis acabam por ser virtualmente indistrinçáveis.
Mais, dada a matricidade histórica do assunto, cada action-researcher tem a
possibilidade de aceder a modelos filosóficos diversos, bem como a modali-
dades e dispositivos técnicos com diferentes raízes, o que faz com que hoje
estejamos perante as mais diversas intensificações do activismo artístico, das
mais discretas à mais gritantes, das de base mais tecnológica às de registo
humanista em sentido tradicional, das conviviais às ostensivamente revolucio-
nárias, e ao final sempre com uma mesma mensagem implícita.
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

Genealogias do político no seio de uma esfera pública plástica


O que o activismo… activa – sobretudo nas actuais condições de uma es-
tupidificação da esfera pública sob a hegemonia capitalista – é uma comunida-
de conversacional (Kester). Trocar ideias. Tornando visíveis certas realidades ou
problemas, e sobretudo inapelavelmente objecto de discussão. É esse o com-
promisso cultural que é estabelecido. E que, no caso da arte crítica mais dili-
gentemente focada no dispositivo (Hans Haacke), é naturalmente menos fácil
de encaixar em ideologias estabelecidas, pelo simples facto de a arte estar em
tempo real a problematizar um dispositivo social e até tecno-lógico em cons-
tante e acelerada mudança. Isso não impede – pelo contrário – que um públi-
co mais atento não encontre precisamente aspectos comuns entre activismos
artísticos oriundos de épocas distintas ou que recorram a linguagens estéticas
diversas, cada nova geração recuperando-reinventando a seu modo uma dis-
posição anacrónica (no sentido de virtualmente para além do tempo).
Em síntese e ainda com Raunig, há uma genealogia dos activismos artísti-
cos. Ora, sob a figura da já referida mecanicidade do revolucionário, existirão
quatro modos essenciais de articular a arte e a revolução (ou a mudança social,
numa terminologia soft): o modo sequencial da Internacional Situacionista (de
Courbet a Constant, passando pelos Letristas…), talvez a mais genuína redesco-
berta da história […] o sentimento de uma intervenção possível sobre a história
e sobre a irreversibilidade dos acontecimentos (Marcus 509); a concatenação
negativa do Accionismo Vienense (cuja incomensurabilidade ecoa no discur-
so punk, esse poço sem fundo de soundbites performativos); a subordinação
autodeterminada no Teatro Soviético pós-revolucionário (em que um cuidado
com as hierarquias assegura ao activismo cultural um lugar, sim, mas secundário
face à dimensão política no geral); e finalmente as práticas tranversais como as
de Yomango (que poderíamos equiparar ao activismo cool de colectivos como
os Yes Men ou Adbusters).
Carlos Vidal, interessado na história na transformação crítica da cultura a
partir de dentro (in Caeiro 50), esclarece por sua vez quatro planos do político
face à arte, ou se quisermos, quarto tipologias de arte política: a arte enquanto
atividade completamente autónoma, em que o artista participa na sociedade

162
pelo seu empenhamento cívico, intervindo na sociedade pessoal ou coletiva-
mente, mas não artisticamente; a arte que olha para a sociedade e seus pro-
blemas e depois os inscreve num medium adequado, em função da sua per-
tença ao mundo envolvente (é o caso de Alys, Santiago Sierra ou Wodiczko); a
arte comprometida, em que o artista não aborda diretamente temas ‘políticos’
(num sentido estrito), mas antes eventos (ou temas) que têm e, em permanên-
cia, conduzem a uma força de crítica social (pensemos em Géricault) com con-
sequências políticas; e por fim aquela arte que, não sendo ‘política’, veicula a

MÁRIO CAEIRO | SORTILÉGIOS ARTIVISTAS. POR UMA EXTRADISCIPLINARIEDADE MONUMENTALMENTE AFECTIVA


crítica social – o caso da community art empenhada em mudanças na esfera da
cidadania (in Caeiro 50).
Deste tipo de sínteses infiro que a arte activista de hoje tem de ‘matar o
pai’ (a arte activista de ontem). Perante a dramática redução (e, por outro lado,
multiplicação) das possibilidades participatórias da esfera e do espaço públicos
contemporâneos, a arte que é genuinamente activação social vai provavelmen-
te trocar as voltas à tradição e dissimular-se em linguagens de ironia, citação,
distanciamento ou cinismo que dificilmente permitem que ela seja simples-
mente ‘arrumada’ numa qualquer ‘gaveta’. Porque a arte enquanto racionalida-
de criativa permeia todas as esferas da vida social, também ao cruzar-se com a
consciência activista ela se torna num híbrido de mil faces e de fronteiras fluí-
das (apenas passíveis de reconhecer, talvez, do ponto de vista da ética). É neste
quadro que os outros da arte, os destinatários dos seus perceptos, podem aliás
ser continua- e renovadamente activados, por exemplo como quando Pedro
Cabrita Reis, em «Os Outros» (2010), eloquentemente coloca em cooperação,
com toda a precisão, comunidades previamente separadas.
Esta é uma questão que se encontra inscrita nas vanguardas, que sob a fi-
gura da reacção invocam diferentes outros para o seu desenvolvimento e legi-
timação históricos (no momento das lutas, que como é sabido, são momentos
para o exercício da dialéctica). E é uma questão que sofre mutação assinalável
no quadro actual em que a imagem do desenrolar da história se torna, no mí-
nimo… difusa. Desafio importante, em cada artivismo – ao final, um termo port-
manteau cuja potência metafórica se vai esvaziando, como veio acontecendo
com outras como… street art? –, é então saber escolher ou determinar os valores
que a obra activa para inscrever assertivamente o seu potencial crítico e de mu-
dança social. Pode ser hoje um desejo de informalidade convivial e redentora,
mas amanhã uma violenta demonstração cúnica do absurdo. Seja a arte aqui
uma combinação entre dispositivo e desobediência cidadã – como em movi-
mentos-surpresa como Reclaim the Streets –, e ali expressão de um fundamen-
tal ludismo táctico na era dos meios digitais, ou de tantas outras materialidades
pós-media… Nestes termos, anything goes, conquanto prevaleça no aconte-
cimento/objecto artístico um certo carácter de experimento social, no sentido
de criar-se no(s) receptor(es) a vivência de princípios críticos.
Em València, Espanha, um projecto como Portes Obertes demonstra desde
1998 esta condição gasosa do activismo artístico. Na esfera do conceito de

163
arte pública como tecnologia da amizade (para parafrasear Hannah Arendt),
o projecto impõe a questão de a arte activar um território do ponto de vista
da transformação do seu quotidiano, logo, o que não é tão paradoxal como
parece, da sua identidade socio-política. Portes Obertes é dotado de uma elo-
quência que lhe advém do facto de se inscrever como compromisso estável
com a comunidade, prolongando-se no tempo (mais de duas décadas) e no
espaço (um bairro inteiro) e com significativa diversidade estética (asseguran-
do a intersecção com um, mas também múltiplos, públicos sucessivos, quer
locais quer internacionais, quer permanentes quer efémeros). Numa palavra,
um assunto potencialmente árido – uma violência urbanística – transforma-se
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

em motivo de vida. Para Emílio Martinez Arroyo, um dos mentores da acção, o


traço característico de Portes Obertes será converter a própria textura do bairro
no cenário do evento, um suporte único, vivo e gravemente ameaçado de ex-
tinção. Em particular, utilizar as casas dos vizinhos como espaços expositivos.
Estas tornam-se espaços de vida quotidiana que albergam durante algumas
semanas obras de todos os artistas que queiram mostrar a sua solidariedade
com o Cabanyal e a sua rejeição do projeto urbanístico proposto (in Caeiro 405).
A força deste tipo de conceitos interventivos é precisamente a de encon-
trarem na forma-cidade a interface concreta para afirmarem a sua autonomia.
No projecto Portes Obertes a arte (da vida) transmuta-se em activismo (urba-
no) e vice-versa, com certos valores fundamentais e práticas específicas indo
ao encontro de modalidades expositivas consideradas adequadas para cada
edição, e com uma atenção conjugada e multidisciplinar a factores estrita-
mente estéticos mas também estritamente políticos. Neste tipo de acção hí-
brida e de teor absolutamente transversal, o compromisso cíclico com o ter-
ritório encontra ano após ano a contínua contemporanização do seu registo.
Naturalmente, uma determinada situação política, ou dois momentos dis-
tintos no continuum de uma mesma evolução de um contexto político obrigam
a diferentes activismos: a política maternal de Irina Aristarkhova responde à
‘mesma’ Rússia a que reagem as Pussy Riot, mas entre ambos os mecanismos
– no caso, feministas – há um mundo de diferenças na atitude. Activismo co-
munal vs. activismo de choque, ainda que ambos busquem o mesmo objec-
tivo radical: tirar a população da apatia. Por outras palavras, o que está em
causa tanto em Aristarkhova como nas Pussy Riot é o dar-se forma à potência
pública, por forma a aumentar-se o desejo, como sintetiza Daniel Lins d’après
Nietzsche (in Caeiro 482).
Regressando a uma personalidade que há décadas interpreta a ligação
entre arte e activismo na perspectiva do que baptizou como arte pública crí-
tica, Krzysztof Wodiczko: A mais antiga e mais comum referência a este tipo
de design é a ligadura. A ligadura cobre e trata uma ferida, mas, ao mesmo
tempo, expõe a sua presença, significando tanto a experiência da dor como
a esperança de recuperação (in Caeiro 406). O termo que define este tipo
de praxis é o de estética crítica (Holmes 198). Cuja viabilidade e efectividade

164
são precisamente aferidos pela sua conexão com o activismo. Um activismo
obrigatoriamente extradisciplinar: a ambição extradisciplinar é a de levar a
cabo rigorosas investigações em terrenos tão distantes como a arte como fi-
nança, biotecnologia, geografia, urbanismo, psiquiatria, o espectro electro-
magnético, etc (Holmes in Caeiro 197). É a estes terrenos escorregadios, seja
na informalidade de loose spaces (Franck e Stevens), seja bem no coração
da instituição museológica, que nos pode conduzir a noção vivida da crítica
imanente. Conferir a este propósito o statement processual que é o Musée

MÁRIO CAEIRO | SORTILÉGIOS ARTIVISTAS. POR UMA EXTRADISCIPLINARIEDADE MONUMENTALMENTE AFECTIVA


Précaire Albinet de Thomas Hirschhorn (2004) genuinamente um tableaux vi-
vant – como diria Suzanne Lacy (Kester 189).
Daqui poderá ainda depreender-se que se na cidade (e no mundo) há
‘feridas’, então a arte, na impossibilidade de as sarar – isso é tarefa do tempo
– delas cuidará – a tarefa do momento. Se o espírito do activismo coloca a arte
perante desafios como o da cidania criativa, porquanto implicam a acção assu-
midamente (e já não apenas lateral- ou obliquamente) política, veja-se o caso
das flâneries de Francis Alys: uma dimensão abertamente circunstancial encon-
tra sempre uma forma aforística para permanecer no imaginário social. O acto
individual passa a discurso tornado comum, precisamente como inscrição de
um acontecimento específico em que o exterior e o interior se tornam equiva-
lentes (Holert 364). Curiosamente, as flâneries de Alys são permeadas por um
certo distancimento, por via do qual o carácter de passeio filosófico (Holert
365) é o que impedirá a acção de se filiar mais resolutamente no activismo.
Tendo porém o cuidado de manter sob vigilância a naturalização de tal
tipo de acções, e para nos ficarmos por ora no campo da arte e da sua rela-
ção com as principais instituições que (supostamente) a preservam, há que
conferir se uma tradição como a da institutional critique não acaba por se tor-
nar a instituição da crítica. É que há legitimações que apesar de válidas são
ao limite politicamente inoperantes (por exemplo quando os artistas se apro-
priam em modo self-service da teoria institucional da arte, para justificar a sua
actividade), sem se poder vislumbrar uma narrativa monumental por detrás
das suas investigações.
Vejamos: ou definimos a possibilidade de uma linhagem monumental por
exemplo entre Gordon Matta-Clark e Critical Art Ensemble, entre Hans Haacke
e Christian Nold, mas também entre Pedro Penilo2 e inúmeros criadores anóni-
mos na esfera da chamada arte não autorizada, ou acabamos pulverizados
por diferenças irrelevantes para o sentido vital de comunidade que a ligação
entre arte e activismo acarreta. Isto se quisermos procurar nessa ligação uma
legitimação (mais) absoluta, ou que vá além do tropismo, do anedótico. Eis o
desafio, passar do dichote ao aforismo.
Um célebre aforismo urbano, diz tudo, no nada do seu distante contexto
(Rio de Janeiro): Gentileza gera gentileza… No melhor dos mundos, a coisa
funciona. Quando uma ideia é válida, quando uma obra de arte correspon-
de a uma mutação genuína, artigos a explicá-la na imprensa ou na TV não são

165
necessários. Transmite-se directamente, como a
gripe asiática. (Guattari in Rolnik 235). Mas não serei
por princípio tão optimista, e talvez por isso uma
reflexão sobre as possiblidades de monumenta-
lizar o activismo, desde logo a partir das trinchei-
ras da teoria, nunca deixaram de me interessar.

Horizonte sublime da comunidade


Em nome do termo ‘comunidade’ são inú-
meros os abusos cometidos (Kester 129). Seja
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

Fig.4 – Pedro Penilo, ‘8!8!8!’, Lisboa, porque perspectivada como puramente positiva
2010. Acção durante a manifestação do (graças ao âmbito pretensamente redentor dos
1.º de Maio da CGTP. O projeto ‘8!8!8!’
tem como suporte central uma série de
valores comunitários) ou inteiramente negativa
nove cartazes, que simultaneamente (a comunidade perigosamente essencializada
proclamam e desenvolvem um que as teorias da suspeita temem). Para Kester,
argumentário que sustenta uma
reivindicação política.
d’après Nancy: A comunicação, seja em que forma
Fotografia cedida pelo autor for, tem de envolver algum enquadramento on-
tológico e temporal no seio do qual se fala e se
ouve. De facto, esta identidade provisória está
implícita na convicção de Nancy de que uma das
condições definitórias da comunidade “inope-
rativa” é a percepção crítica da contingência da
própria comunidade e identidade (Kester 157).
Resta entender para que comunidade, para
que prospectiva ética e horizonte temporal apon-
ta o gesto artístico, este de que vale a pena aqui
falar. Que comunidade é criada, com que esca-
la, duração, materialidade… Em que condições
decorre, e fundamentalmente face a que ideia
concreta e operativa de se si mesma enquanto
comunidade. Ou seja, activismos há muitos, mas
a cada agente da transformação e seus públi-
cos é exigido que actualize derivas históricas em
condições sempre novas. Uma ética dialógica do
projecto, com todos os problemas da colabora-
ção (Bishop) que nela advém, pode começar por
aqui. A comunidade que (aí) vem é onde não há
uma essência da comunidade nem o medo de a
sua estratégica ausência se tornar socialmente
paralizante. É por isso que jogos de ironia ou de
ambiguidade ou de ruptura são o contraponto
activista de qualquer situação pensada como
estável, fixa ou estática. É isso que aponta para

166
o modo dialógico da identidade que subjaz à mais profunda ligação entre
a criação artística e o activismo.
Em palavras de Grant H. Kester, voltemos à pertinente instrumentali-
dade da ligação entre feminismo e praxis política: Laborei aí no âmbito do
conceito feminista de um conhecimento “processual” em que o participante
dialógico, em vez de ser conduzido pela força da lógica, procura compreen-
der o contexto social de onde os seus interlocutress falam (um contexto de-
finido pelos discursos culturais individuais e colectivos, bem como diversas

MÁRIO CAEIRO | SORTILÉGIOS ARTIVISTAS. POR UMA EXTRADISCIPLINARIEDADE MONUMENTALMENTE AFECTIVA


formas de opressão e privilégio). Esta compreensão é facilitada pela cons-
ciência empática que ocorre por via do processo de audição activa. As nos-
sas identidades existentes não se dissolvem simplesmente no contacto com
a diferença. Pelo contrário, mantém uma coerência provisória, permanecen-
do abertos à experiência transformativa dos outros, no entanto mantendo
um sentido suficientemente material do eu para que a experiência gere uma
impressão durável (Kester 158).
Com efeito, recentemente, a noção de comunidade inoperativa ou ne-
gativa (em Blanchot e Nancy) tem informado a reconstituição da comuni-
dade humana em condições particularmente difíceis (o capitalismo cogniti-
vo, a sociedade de controlo, o neoliberalismo starring T.I.N.A. – There Is no
Alternative3); mas até que ponto é que a demanda biopolítica deste espaço
público humano e espiritual, que gosto de abordar na perspectiva do que
chamo espaço público mítico, é ainda um activismo? Ou sequer ‘arte’? A ques-
tão é pertinente se tivermos, precisamente com Nancy (d’après Blanchot),
uma ideia em aberto do acontecimento comunitário.
Com efeito, para Blanchot, uma ideia empática do espaço público como
espaço vazio e aberto surge em momentos de revolta e revolução […] em
nome da aparição comum de seres humanos no espaço público. Isto é, o es-
paço é apropriado por forma a ser esvaziado, a ser apresentado como vazio,
aberto a todos (Hirsch 291). Na busca de formas para dizer e eventualmen-
te reafirmar este vazio é preciso falarmos de uma pluralidade do Nós sem
transformar esse Nós numa entidade singular. Nancy então propõe a con-
cepção de comunidade não propriamente como resultado de um estar-em-
-comum, mas como inoperosidade [désouvrement] desse estar-em-comum.
Nancy, que desconfia dos horizontes que temos projetado ao longo da
história, advoga nada mais nada menos que um desafiar do próprio hori-
zonte, para tal rejeitando a ideia de laços entre os indivíduos para substituir
tal palavra por comparição [compearence], de uma ordem mais originária.
Nesta condição sine qua non para a partilha/encontro dos Eus na vida urba-
na, a metáfora da morte (ecoando um longo diálogo com Bakhtin) torna-se
uma espécie de ‘ovo de Colombo’ da ideia de participação. Ela recorda ao
sujeito que as vias nietzschiana, aristotélica e até comunista podem convi-
ver a partir da consciência essencial da realidade da morte e a partir daí ali-
mentar tensões produtivas. Portais.

167
Em concreto, e quanto ao horizonte comunista – que hoje se redescobre
caminho para a libertação das singularidades individuais e colectivas (Negri e
Guattari x) –, e face à traição do ideal de justiça, liberdade e igualdade no comu-
nismo (dito real), Nancy nota que estes fardos são ainda talvez relativos quando
comparados com o peso absoluto que nos esmaga e bloqueia todos os horizon-
tes. É nestes termos que Badiou ou Žižek apelam a uma renovação radical da
monumentalidade comunista: Não se trata de repetir o modelo que fracassou,
mas de preservar o momento em que foi possível ter a liberdade de pensar e agir
segundo a ideia de que o capitalismo não era inevitável (Žižek in Caeiro 409).
Ora, Nancy assevera, numa operação conceptual verdadeiramente nietzs-
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

chiana, que mesmo quando assumimos que o comunismo já não é um horizon-


te inultrapassável, temos igualmente de assumir, com não menos força, que a
exigência ou demanda comunista comunica com o gesto através do qual temos
de ir além de todos os horizontes possíveis (Nancy in Caeiro 409). Num certo
sentido, vislumbrar este horizonte é impedir que a transformação emancipa-
tória se confunda com o que quer que exista, no plano de uma inclinação ou
tendência do um para o outro, do um pelo outro, ou do um até ao outro. Daí
que Nancy explicite que a perda de comunidade moderna e contemporânea
não é a perda de algo que tenha existido previamente – uma qualquer imagi-
nada Gesellschaft. […] a comunidade, longe de ser o que a sociedade destruiu
ou perdeu, é o que nos acontece como pergunta, espera, evento, imperativo no
dealbar da sociedade. (Ibidem)
Assim, na articulação entre igualdade e singularidade (Neves 321) que a arte
como nenhuma outra forma de estarmos juntos proporciona, venham todas as
experiências da estética relacional, da bio-arte crítica, da arte-como-generosi-
dade, etc., desde que entre agentes culturais e públicos se estabeleça um diá-
logo fundamental acerca do sentido e da pertinência dos seus gestos, sendo
que sem uma reflexão sobre seus princípios éticos e depois sobre seus equilí-
brios retóricos (entre as esferas ethos/pathos/logos) quaisquer ‘novidades’ do
activismo estão condenadas a ser tendências passageiras sem consequências
na conscientização colectiva. Meras bricolages. Folclore.
É aqui que a relação entre arte e estética – o problema do belo – tem de
ser afectada pela reconfiguração da problemática do sublime. Por um sublime
social: O homem torna-se então símbolo vivo porque aparece como símbolo
sempre já instituído de um instituinte simbólico que, do fundo do abismo, que
no entanto não tem um fundo à vista, leva a que nós, enigmas, nos encontremos
connosco. (Richir in Caeiro 425). A festa do activismo, como nas acções mais
criativas do Greenpeace, é um modo de fazer a política, ou de tornar política a
política. A ligação entre arte e activismo será assim um dos traços fundamentais
da arte do futuro via Richard Wagner, que em 1849 estabelece os princípios
de um Gesamtkunstwerk onde acontece – está sempre a voltar a acontecer –
essa epifânica complementaridade entre revolução estética e revolução social
(Miranda Justo in Caeiro 451).

168
Nós colectivo, o espectro radical
As modalidades de conexão operativa entre arte e activismo tocam neces-
sariamente a questão do colectivo – e do colectivismo (Stimson e Sholette) –, e
inerentemente do conceito de colectivo na sua relação com o de autonomia.
Até porque a própria noção de autonomia tem de ser procurada em terrenos
inclinados: a verdade da experiência estética na era da derisão electrónica e
da degradação humana não se encontra na sua negação niilista; nem na sua
sublimação espectacular. É na sua imersão no seu interior quebrado, e na luta

MÁRIO CAEIRO | SORTILÉGIOS ARTIVISTAS. POR UMA EXTRADISCIPLINARIEDADE MONUMENTALMENTE AFECTIVA


criativa por novas harmonias no seu medium (Subirats 259). É por isso que
tanto activismo emprega um discurso em que redescobrimos termos técnicos
como ‘plataforma’ ou ‘interface’.
Por outras palavras, e quadratura do círculo a realizar é a da ligação (tanto
quanto possível) entre a mais radical apropriação das linguagens disponíveis,
para além do cerco dos meios de comunicação de/das massas e das indús-
trias culturais. Articulações como a de Subirats demonstram o trabalho con-
tinuamente recomeçado: Theodor W. Adorno notou que as expeditas lingua-
gens da cultura do espectáculo forçaram a experiência artística a um novo
hermetismo. De Joyce a Strindbergh este hermetismo poético não isola a lin-
guagem simpatética com as coisas como num sentido mágico ou cabalístico,
como queria o Romantismo, por exemplo em Novalis, ou na forma degradada
que o realismo mágico da América Latina colocou no mercado. Nasce antes
de um distanciamento necessário da experiência estética face às linguagens
da comunicação dos mass media, e da consequente profundização reflexiva.
A semiologia do choque, os princípios da simplicidade unívoca e da infinita
repetição das mensagens, o empobrecimento e a homologação das formas,
ícones e linguagens, bem como a aceleração mecânica que governa a efi-
ciência quantitativa dos sistemas de comunicação isola as reflexões poética
e filosófica num mundo fechado. A criação artística tem necessariamente de
começar nesse reino de silêncio (Subirats 258-259). Os equívocos que esta
demanda provoca são muitos, levando a que por exemplo o campo da arte
pública seja por norma considerado incompatível com o de reflexões estéti-
cas supostamente mais profundas.
Quando penso no colectivo, em como possa a noção de colectivo per-
mear o silêncio da arte, não encaro obviamente o colectivismo na sua ver-
tente minimamente regulada, hipercapitalista, sob a forma DIY, que luta para
substituir os velhos e gloriosos ideais comunitários da Cristandade, do Islão,
do Nacionalismo, do Comunismo por “new media” extra-idealistas e novas
tecnologias (Stimson e Sholette 2), no fundo, trocando o ideólogo pelo pro-
gramador. Penso nos projectos irredutivelmente artísticos de colectivos de
arte pública como Wochenklausur, na sua plasticidade política: sempre uma
oportuna reorganização e actualização de formas e forças sociais disponíveis,
sempre uma libertação fortuita da sociabilidade da sua instrumentalização en-
quanto forma mercantil (Stimson e Sholette 4).

169
O activismo no colectivo corresponde em suma à tarefa de imaginar uma
sociedade radicalmente diferente, o que pode redundar nos termos de um
problema de design social monumental — veja-se o activismo no âmbito da
ecologia profunda. O labor incansável de um tecnólogo como Christian Nold
é em torno desta resiliência, o de dar corpo colectivo (mapas produzidos co-
lectiva- e interactivamente) a uma cultura de massas conformada com/pelas
tecnologias do controlo. O seu projecto de biomapping, activo desde 2004, é
um caso da mais inconformada intervenção crítica, já que (des)monta a geo-
grafia visual quotidiana, o modo como lidamos com os dispositivos tecnoló-
gicos e a própria durée da vida urbana, simultaneamente.
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

Também por aqui o projecto modernista continua a ser um espectro que


assombra as práticas radicais. Sholette e Stimson (citando Huizinga): Era este
o fetiche do modernismo, que o colectivismo pudesse trazer vantagens não
apenas para “greves, sabotagem, criatividade social, consumo alimentar, apar-
tamentos”, mas também a “vida íntima do proletariado, incluindo as suas ne-
cessidades estéticas, mentais e sexuais,” isto é, que libertaria e daria forma ao
potencial humano inato para a vida, a o prazer e a riqueza (Stimson e Sholette
6). Prosseguem os autores, actualizando reivindicações situacionistas: Este
é nosso fetiche agora: que o sonho do colectivismo se realize não na visão
estratégica de algum ideal futuro, ou de um modernismo revisto, ou de uma
contrahegemonia nómada, culture-jamming, mediada-até-mais-não de um co-
lectivismo depois do modernismo, mas em vez disso, com Marx, enquanto au-
to-realização da natureza humana constituída pelo cuidar do ser social aqui e
agora. Isto não significa visualizar a forma social ou ir para a batalha no campo
da representação, mas sim engajar-se na vida social enquanto produção, enga-
jar-se na vida social enquanto medium de expressão (Stimson e Sholette 13).
É naturalmente outra forma de regressarmos ao mito da ligação entre arte e
vida. Ao velho sonho do jovem Karl Marx (Marcus 61).
Aliás, quando pensamos na relação entre activismo e urbanismo, que
enforma muita da ética e da estética da arte pública, vemos então que uma
série de tensões criativas vão gerando um potencial emancipatório, ao nível
da relação entre criação artística e vida urbana: do entendimeno do festi-
val em Lefebvre ao conceito de plug-in citizen em Nawratek, o que está em
causa é agir enquanto é tempo no que diz respeito ao restaurar da expe-
riência humana no meio-cidade. Seja no plano da alteração do uso de espa-
ços, seja na transformação/transfiguração/transmutação da paisagem sim-
bólica. Reitere-se aliás esta nota sobre a importância do espaço, agora com
Malcolm Miles, a propósito de uma ligação entre Marcuse e Paulo Freire: o
problema da revolução é a sua temporalidade. Se deslocarmos o cerne do
problema do tempo para o espaço, o novo existe logo aqui ao lado, à mis-
tura com o velho (Miles 347). Pensemos nas icónicas provocações letristas,
situacionistas… ou DADA; ou olhemos para os slogans publicitados pelos
britânicos Freee4.

170
Por momentos que seja, e na lógica de uma
revolução imanente e contínua, o que surge então
são paisagens críticas: na medida em que maio
de 68 foi uma instância em que convergiram o
colectivismo, a acção política directa, e a críti-
ca grotesca do internacionalismo formalista, foi
também um notável momento de reconstituição
que testemunhou o renascimento da fraternida-

MÁRIO CAEIRO | SORTILÉGIOS ARTIVISTAS. POR UMA EXTRADISCIPLINARIEDADE MONUMENTALMENTE AFECTIVA


de entre estudantes e trabalhadores, Franceses e
estrangeiros, que já não se via desde os dias da Fig.5 – Freee, ‘The Function Of Public
“Internacional” (Stojanović 37). Noutros termos, Art For Regeneration...’, Roding Road,
Homerton High Street, Hackney, Londres,
eventos como Maio de 68 têm consequências Agosto de 2005. A obra reflecte sobre
nas epistemologias do conhecimento e ao nível a necessidade de a comunidade estar
dos modelos do(s) movimento(s) social(ais), pre- atenta à evolução dos processos de
regeneração urbana enquadrados pelas
cisamente por sugerirem novas figuras do enga-
indústrias culturais (culture-led urban
jamento. Afastando-se da arte pela arte – que é regeneration).
um niilismo (Marcus 315) – para dar corpo, sim- Fotografia cedida pelos autores.

bólico, aos desejos não satisfeitos no interior do


inconsciente cultural.
É neste quadro que decorreram as acções de
grupos como Gutai ou Hi Red Center, podendo
nós perguntarmo-nos se, quando um activista
free-lancer como Régis Perray – cujo projecto-
-processo passa pela ideia-vontade de limpar o
planeta – entra em acção, se o que está em causa
não será uma expansão dos valores colectivos
sob a forma de uma acção artística individual fo-
cada no bem comum. É por aqui que é activista
Fig.6 – Régis Perray, ‘Balayage de la Route
a performance em que Perray limpa o lixo em
Occidentale’, Gizé, Egipto, Março de 1999.
torno das pirâmides de Gizé, bem como a pro- Autoretrato, extraído do tríptico éponimo.
vocação antifascista – tão radical- quanto subtil- Colecção Frac Franche-Comté. Nas suas
viagens de descoberta, o artista deixa-se
mente irónica – de Maurizio Cattelan com o seu
impregnar pelos mais diversos lugares e
dedo provisoriamente espetado à alta finança na dos mesmos revela uma nova faceta.
Piazza Affari, em frente ao Palácio da Bolsa em Fotografia cedida pelo autor.

Milão (L.O.V.E., 2010).


Sobrando ainda outra questão: o acto ar-
tístico é mais ou menos activista em função do
progressivo enquadramento social do seu acon-
tecer. Estou a pensar na pintura urbana sobre ou-
tdoor que sobreviveu às manifestações de março
de 2012, durante meses, na Praça de Espanha.
Durante certo período, ela foi ressonância da
festa; depois, memória. E como é importante a

171
cidade manter viva a memória dos sucessivos activismos que em seu nome
ou no seu território são perpretados (aliás, não menos que esquecê-los, para
que revivam mais determinadamente). Mas comparada com o inenarrável
acto performativo de détournement de um cartaz do PSD – ‘Todos temos de
fazer a nossa [p]arte’ –, noutro outdoor imediatamente ao lado, e que ‘durou’
escassas semanas, compreendemos como são diferentes os planos da re-
presentação (a utilização do painel, oportunamente, para pintar a festa) e da
presentificação (a anónima e genial apropriação situacionista de um cartaz de
uma força política comprometida, sim, mas com o estado a que isto chegou).
Neste quadro, reforço, interessa continuamente aferir do que possa haver
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

em comum, ou sobreposto, entre coisas díspares como o activismo dos anos


60 e 70 (Art Workers Coalition, Carnival Knowledge), dos anos 80 e 90 (Jenny
Holzer, Guerrila Girls) ou a arte que, nos anos 00, é afinal política sem osten-
sivamente o apregoar. Afinal o essencial é saber se a arte se liga à vida – por
exemplo da cidade – determinadamente. Estou a pensar em obras de arte de
síntese como o reenactment The Battle of Orgreave de Jeremy Deller (2001)
em que, em registo performativo-performático, algo ou alguém é represen-
tado ou se torna um signo de si próprio, por forma a adquir reconhecimento
ou significado. Nesta extraordinária obra de Deller, a experiência do Nós e do
Outro é radicalmente encenada mas também presentificada, tornando-se um
modelo de Plastik cidadã. Como se a possibilidade de a arte poder abrir dos-
siers que a todos dizem respeito fosse o âmago da sua função social.

Reverberar os processos do pensar e do agir


Em Semblance and Event – Activist Philosophy and the Ocurrent Arts (2011)
de Brian Massumi encontro uma série de teses fundamentais para ancorar fi-
losoficamente a perspectiva que tenho vindo a propor – em que a arte acti-
vista será tanto mais efectiva quanto melhor expressão de si própria enquan-
to técnica-para-compor-com – técnicas de existência para combinar técnicas
de existência (Massumi 158). No capítulo ‘Artes da Experiência, Políticas da
Expressão: Em Quatro Andamentos’, uma série de noções explicitam dos mais
fundamentais factos que fazem da problemática do encontro da arte com o
activismo uma questão que interessa à cidade como materialização da vida
política, plateia da sua percepção, palco da acção.
Nos termos de Massumi, só será interessante aquela arte activista que,
precisamente pela sua capacidade de integrar um contexto (e de o integrar
em si enquanto acontecimento), consiga que nela o efeito de abstracção não
seja completamente abstractizável. Só assim, na sua capacidade de comuni-
car e mediar situações – mas também de manter o enigma (daquilo que está
vivo), como diria Goethe –, a arte será capaz de potenciar a capacidade de
autoorganização do mundo. Os ecos abstractos de uma ideia – como na no-
madologia de Santiago Reyes5 – intensificam a vida da cidade do ponto de
vista dos valores estéticos que inscrevem. Tenho dúvidas de que aquela arte

172
que é activista ao pé da letra seja capaz de co-
municar tão definitivamente a sua contingência
– tornando-se por isso, porque não é actualiza-
ção criativa e plástica de qualquer linguagem,
mas apenas mera comunicação… mero activismo.
Extrapolo aqui a possibilidade de um pro-
cesso montado num sítio qualquer reverberar em
toda a parte (Massumi 114), o que aliás sublinha o

MÁRIO CAEIRO | SORTILÉGIOS ARTIVISTAS. POR UMA EXTRADISCIPLINARIEDADE MONUMENTALMENTE AFECTIVA


poder que as grandes obras de arte têm de ligar
o acto criativo à agenda política – veja-se, quin-
tessencialmente, os 7 000 Carvalhos (1982-) de Fig.7 – Santiago Reyes, 'Sin título (Eric
Joseph Beuys. Eis uma obra que teve (tem tido) et moi dormant)', 2007. O projecto foi
objecto de censura institucional, tendo
uma notável posteridade, precisamente enquan- sido impedida a sua apresentação no
to monumental iniciativa colectiva para além do espaço público de Cuenca, no Equador.
gesto original. Fotografia cedida pelo autor.

Claro que, quando nos deparamos com a


febre de cobrir árvores com malhas de crochet
colorido ou quando actividades lúdico-produti-
vas como o guerrila gardening se tornam virais,
falamos de gestos activistas cuja consistência es-
tética me parece módica, dando dos temas mais
candentes uma imagem pálida. É que à arte pro-
dutivamente activista exige-se que seja encontro
urbano (Liggett) – definitivo na sua circunstaciali-
dade e na sua capacidade amodal (Massumi 109-
110) de gerar mundo – worldling. Acontecimento.
Uma arte genuinamente pública e engaja-
da, confluência de imaginação e informação, ilu-
minação e cognição, constitui afecto preciso: O
mundo não é redutível à capacidade reconheci-
da da forma objectiva para conservar a sua iden-
tidade sensual em cada uma das suas aparições
seriais em diferentes locais. Pelo contrário, tal ap-
tidão é o produto de outro poder: o de conexões
“não reconhecidas”, não sensuais, afectivas, que
juntam diferenças não locais “extremamente di-
versas” qualitativamente. O afecto aporta forma
à vida, qualitativamente (Massumi 111).
Só a arte que é então capaz de me sintonizar
diferencialmente com as problemáticas que se
impõem, e de me convidar para um evento per-
ceptivo que me leva a participar num inovador
horizonte cultural – só essa me interessa. Porque

173
só essa se me afigura como forma de vida, só essa
me individualiza como agente da minha própria
afectação, só essa me faz relacionar os factos
como um sistema de interacções mais ou menos
invisíveis que é urgente pensar. Porque só essa
me leva a experimentar a dimensão construtiva
da verdade. Porque só essa me faz… pensar e
sentir ao mesmo tempo.
Ora o que é fascinante é tentar continua-
mente perceber quando estamos perante uma
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

Fig.8 – Cristian Nold, 'I speak your genuína operação estética (para evocar o ac-
feelings’ [protótipo], 2017. O protótipo tivismo artístico de mestre Ernesto de Sousa),
apresenta uma proposta para lidar com
o ruído do tráfego aéreo e constituir
no sentido de ser realmente capaz de articular
redes de actores humanos e não- o momentum artístico-político, independente-
humanos. O objectivo é permitir aos mente de temas, escala, impacto mediático ou,
participantes experienciar e articular
novas composições infrasestruturais
claro, filiações estéticas. É isto que quanto a
que possam desafiar a governância do mim está em causa no excepcional que se torna
aeroporto de Heathrow. comum, no sentido de integrar a vida e porven-
Fotografia cedida pelo autor.
tura a memória colectiva não tanto por se tratar
de arte, ou de activismo, mas precisamente por
dar corpo a uma híbrida forma de consciência
de ambos os termos, dialecticamente. Será o
que une fundamentalmente operações extre-
mamente distintas nos seus targets: as projec-
ções não autorizadas de Krzysztof Wodiczko, as
campanhas de comunicação de Ron English – e
já agora essa obra prima do comentário que é
«Liquidated McDonalds, de ZEVS (2005) –, as ac-
ções de limpeza de Régis Perray. As esferas da
política, da saúde, do ambiente, são como que
desnaturalizadas, desancantonadas, para flori-
rem – a metáfora é franciscana — como sortilégio
da imaginação crítica. Talvez para que os 99% –
nós6 – tirem finalmente partido… da arte da vida.

Conclusão – por um regime de resiliência


retórica e crítica
Assomos persuasivos, apelo à fantasia, se-
duções irreverentes, estratégias de partilha de
informação... todo o tipo de acções individuais e
em grupo vão transformando a cidade e o quo-
tidiano num mosaico de oportunidades para a
conscientização. Mas esta confronta-se, muitas

174
vezes, com a falta de uma dimensão sistémica, estrutural, global, estratégica.
Por outras palavras, muitos projectos ganhariam em verem-se partilhados
de forma mais transversal e socialmente conectada, de modo a dar-se maior
visibilidade à sua linguagem intangível e para lá do consumo.
Em todo o caso, o que é extremamente importante é que há nalgumas
concatenações da arte com o activismo – mesmo nas mais ingénuas – uma
mais-valia ética (Behnke 347). Ela decorre de acções como as de ’acordar’
os consumidores, de criticar a cultura empresarial a partir do seu interior, de

MÁRIO CAEIRO | SORTILÉGIOS ARTIVISTAS. POR UMA EXTRADISCIPLINARIEDADE MONUMENTALMENTE AFECTIVA


enriquecer a filosofia da programação de eventos, ou ainda de reagir provo-
catoriamente à omnipresença da própria indústria da comunicação urbana.
Mas perante os despojos da arte como coisa pública (o Museu tem tra-
tado disso), e do público como forma de arte (os festivais têm tratado disso),
como recuperar – como pede a CONVOCARTE – a marca da arte que age
criticamente no seio da sociedade para lhe transformar a consciência políti-
ca? Sobretudo quando ela passa ‘abaixo do radar’ dos media, desde logo
os culturais? E mantendo vários artistas e curadores a posição de que não
seria em todo o caso do campo da arte estabelecida que poderia vir qual-
quer reconhecimento da sua actividade (Kester 188)? Se há telhados a arder,
não é na galeria que vamos apagar fogos.
Reflectir sobre arte e activismo no seio do político implica, em suma,
articular produtivamente dimensões como o espaço público, a sua ordem
social, o jogo de poderes, o lugar da arte no seu seio, as estruturas e dinâ-
micas de produção e recepção artísticas, com os seus regimes de crítica ou
submissão/alienação, o modo e lugar das próprias obras e a eficácia espe-
cífica da sua acção. Do que falo é assim de um sempremergente regime de
resiliência retórico-crítico (acervo sismográfico de gramáticas…). É a minha
forma de interpretar a tensão interna na relação entre cultura e poderes que
a CONVOCARTE identifica no seu briefing. Na prática, trata-se de concate-
nar uma certa noção de que politizar é preciso com a operatividade de uma
arte contemporânea que desde os anos 70 (com Beuys ou Kaprow, na senda
de Duchamp) se tornou oficialmente ‘pós-media’ (num sentido muitas vezes
incompreendido, pois o que está em causa nas suas operações de deskilling
(Roberts), na esfera de uma técnica social geral, é a proficiência criativa como
algo próximo do que o artista Robert Irwin define como Conditional Art.
Em suma, apenas uma certa arte é feita em condições: A ética da ‘arte
condicional’ reside no abraçar a realidade continuamente em mudança; a
abordagem artística tem início com o exame de todos os fenómenos numa
dada situação, da qual resiltam as dimensões materiais, formais, proporcionais
e temporais da intervenção. A forma artística torna-se um instrumento para
registar a complexidade de um mundo exterior continuamente em transfor-
mação. A arte e a experiência têm ao fim e ao cabo o mesmo valor (Plath 345).
Vê-se aqui como quaisquer artivismos expandidos são para mim mais
produtiva- e instrumentalmente (ir)relevantes (Agamben) que uma arte que

175
se autoexclua como serviço a uma agenda política tout court ou uma polity
que submeta a arte ao papel de instância de produção de conteúdo. Por ou-
tras palavras ainda, o que está em causa na melhor arte activista será sempre
uma dupla e profundamente contraditória dinâmica comunicacional, tradu-
zindo a urgência da política nos excessos da arte, bem como a autonomia
da arte para um agenciamento político que integre o íntimo (Bataille 175).
Impoderabilidades. Como em qualquer tradução, há aspectos irredutíveis na
operação que justificam que a acção artística activista se torne fundamental
modelo de apreender e comunicar a cidade e o mundo conforme o vamos
edificando colectiva- ou comunitarimente, enquanto membros de um povo
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

do mundo.
A questão da cultura como poder entronca aqui. No caso, a partir da noção
de cognição do meio urbano e da vida social enquanto sistema complexo.
Cada ‘peça’ que aqui refiro definem modos de operar de um espaço público
incremental que é, por um lado, contributo para uma gramática do interven-
cionismo, por outro, pura experiência, incomensurável, de uma estética da in-
tervenção pública. Resiliência a quê? A todos os dispositivos e nomeadamente
aos de um paradigma de negação do humano como totalidade consciente.
Marx, apesar das limitações apontadas por Bataille ou Lefebvre, aqui, mais uma
vez, ainda ‘serve’, já que nos casos de arte publicamente crítica a sua denún-
cia da arte como espólio e voz da classe dominante vai de encontro a formas
de superação ou sublimação com potencial emancipatório. Falar de resiliên-
cia a todos os dispositivos, ideologias (antigas e novas), é finalmente olhar de-
terminados contextos como oportunidades e determinadas situações como
condição para experimentos exemplares. Talvez se trate no activismo de a arte
reencontrar, paradoxalmente, no interesse (inter-esse), uma das suas principais
modalidades da inocência.
Ainda quanto ao desafio dos editores – repensar o lugar de uma arte que
age criticamente na esfera da política – li-o como imperativo de reflectir-se
sobre a pertinência do activismo cultural, que identifico na emergente acep-
ção de uma esfera pública criativa, que concorre com esferas públicas polí-
ticas ou activistas mais tradicionais para, nas suas franjas, elaborar uma nova
rede de relações temáticas, senão as premissas para uma tecnologia específi-
ca da acção política e social. Na feliz expressão deste convite – Trata-se essen-
cialmente de recuperar a marca da arte que age criticamente no seio da socie-
dade para lhe transformar a consciência política – vislumbro uma experiência
da arte como coisa comum e ao mesmo tempo absolutamente irredutível, ao
mesmo tempo universal- e irredutivelmente íntima, em que determinados pro-
cessos – os passos do projecto, desígnio da esperança – desenham uma ética.
Ou várias, como convém.
A relação destes experimentos com uma revolução paradigmática — inter-
venção no sistema na perspectiva de um horizonte monumental – é algo a que
aludi no final, apenas para por um lado denunciar a minha própria incapacidade

176
de imaginar como levar a arte a sair do beco em que tantas vezes é enclau-
surada; e por outro arriscar uma ideia: a arte que se assume activismo é, no
âmbito social, a resposta entrópica ao fenómeno omnipresente de negação
do humano (do ser-se humano no sentido de ser-com-os-outros-para-sermos-
-melhores). Se a isto se pode chamar activismo espiritual, tal apenas confirma
que a tradição quase invisível de um espaço público mítico é hoje como nunca
fundamental para que na relação entre arte e social novos fundamentos pos-
sam ir mais longe que movimentos (também fundamentais, mas subjugados à

MÁRIO CAEIRO | SORTILÉGIOS ARTIVISTAS. POR UMA EXTRADISCIPLINARIEDADE MONUMENTALMENTE AFECTIVA


noção de crítica) que, na consciência dos problemas, ainda não conseguiram
tecer uma mais forte rede de cumplicidades com o que fora da arte é urgente.

Notas
1
www.linhavermelha.org 4
http://www.hewittandjordan.com/freee/
2
Ver: http://oitooitooito.blogspot. regeneration/index.html
pt/2009/06/888-uma-luta-pela-conquista- 5
http://www.latinart.com/spanish/
da-vida-do.html transcript.cfm?id=95
3
‘Personagem’ levada recentemente à 6
Parafraseio naturalmente o slogan
cena no espectáculo Rumeur et petits jours cunhado pelo movimento Occupy.
pela companhia Raoul Collectif, estreado
em 2016 e apresentado no Festival de
Almada em 2017.

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178
Podemos levar a sério o
Ecossexo? Arte e Activismo
no Século XXI1
Bruno Marques
Professor Auxiliar Convidado da FCSH/NOVA FCT-Portugal postdoctoral Research
Fellow at the Institute for Art History (IHA-FCSH, Universidade NOVA de Lisboa,
Portugal) FCSH-UNL - História da Arte
[email protected]

Sexecology - or ecosexuality - it’s


a combination between art and
“We employ ecosexuality, sexecology, and public environmental activism, which
weddings to nature entities as our activist tactics. seeks to make activism "more
[…] Let’s go marry a mountain.” sexy, fun and diverse" and to
involve the LGBTQ community,
Sprinkle and Stephens, Goodbye Gauley Mountain
employing absurdist
humor, performance art and
Numa era em que se desmultiplicam os termos
sex-positivity as aesthetic
e designações sobre a nossa identidade de género and theoretical strategies.
e a nossa orientação sexual, eis que surge aqueles By bridging ecology with
que dão pelo nome de ecossexuais. Os ecossexuais sexology, ecosex conceives of
acreditam que podem salvar o Planeta copulando the earth not as a mother, but
com ele. São pessoas que literalmente se deitam e as a lover. This conceptual shift
rebolam na terra para ter orgasmos e, assim, salvar invites people to engage their
a Terra2. Há também “pessoas que fazem amor com bodies and senses in acts of
árvores ou se masturbam debaixo de quedas de environmental preservation.
Based on An Evening with Annie
água”, refere Amanda Morgan, da Universidade de
Sprinkle and Beth Stephens
Nevada (EUA), estudiosa envolvida no movimento.
and Wet Dreams Water Ritual
Ecossexuais convictas e radicais, Annie Sprinkle
(2016) – presented in the
e Elizabeth Stevens em 2013 publicaram na inter- opening of the Public Programs
net um manifesto com as seguintes directrizes: “A of documenta 14 at Parko
Terra é a nossa amante. Estamos feroz e loucamen- Eleftherias, Athens - the purpose
te apaixonadas. […] Vamos salvar as montanhas, as of this essay is to question the
águas e os céus por todos os meios necessários. impact and validation of this
Especialmente pelo amor, pelo prazer e pelos po- event, as an artistic and politic
deres da sedução”. Nesse texto, a dupla descre- manifestation, in the context of
ve-se ainda como “polimórfica e pólen-amorosa” the activism of the 21st century.
(Stevens e Sprinkle 2013).

179
Sprinkle - uma ex-prostituta e famosa estrela porno que se tornou numa
performer, sexóloga e autora do conceito de pós-porn (uma reivindicação da
pornografia numa perspectiva feminista) -, e Stephens - artista interdisciplinar,
activista e professora no Departamento de Arte na Universidade da Califórnia
em Santa Cruz, - têm realizado cerimónias onde elas e colegas ecossexuais se
casam com a terra, a lua e outras entidades naturais (McArthur, 2016).
Os ecossexuais acreditam que conceber a Terra como um amante3 é o
primeiro passo para levar o ambientalismo mais a sério. Como Morgan decla-
ra: “se irritares a tua mãe, ela provavelmente vai perdoar-te. Se tratares mal o
teu amante, ele provavelmente vai romper o relacionamento que tem conti-
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

go.”4 Esta viragem conceptual – consubstanciada na passagem da metáfora


da “Terra como mãe” para a da “Terra como amante”5 - convida as pessoas a
envolverem os seus corpos e sentidos em actos de preservação ambiental.6
Mas ao contrário do ecofeminismo, a sexoecologia (também designada de
ecossexualidade) desconsidera a existência de um vínculo intrínseco entre as
mulheres e a natureza. De acordo com Anne Archambault, algumas das limi-
tações afectas ao ecofeminismo que a ecologia sexual indiretamente abor-
da prendem-se justamente com a “dependência das mulheres em relação às
suas funções biológicas [de reprodução, de maternidade], a fim de estabele-
cer uma conexão [idealizada] entre mulheres e natureza” (Archambault 1993,
21). No que concerne mais precisamente à identidade ecossexual, Jennifer
Reed avança então com a seguinte formulação:

The formulation of an Eco-Sexual identity is a practice of an erotic eco-log-


ic, deconstructing heteronormative constructions of gender, sex, sexuality,
and nature in order to continually queer and destabilize identities, actively
form and retain spaces of lack that necessitate interdependency, and en-
gage a permeable sensuous self in perpetual sensorial reciprocity with the
sensing and sensible more-than-human environment. It is an identity iden-
tified by desire rather than a stable essence or being, and it is a desire for
the more-than-human environment in which the human subject is sensori-
ally implicit (Reed, 2015).

A sexoecologia, para além de englobar o uso de produtos sexuais sus-


tentáveis e práticas ao ar livre sem roupa, assume-se como uma combinação
entre arte, activismo e ecologia, procurando, desse modo, tornar o ativismo
ambiental “mais sexy, divertido e diversificado” e envolver a comunidade
LGBTQ. 7 O movimento convida as pessoas a tratarem a terra com amor ao
invés de encará-la simplesmente como uma fonte infinita de recursos a extrair
(Lechner 2013; Corinne 2013). Nesse sentido, o casal Annie Sprinkle e Elizabeth
Stephens promove eventos de índole educativa, como o simpósio ecosex8 e
uma série de práticas de activismo realizadas em nome da justiça planetária,
tal como a defesa das Montanhas Appalachian perante o Mountaintop removal

180
mining (MTR)9, um tipo de extracção mineira particularmente degradante para
os ecossistemas envolventes (Reed 2015). A este propósito, enquanto forma
de protesto, foi realizado, em 2013, Goodbye Gauley Mountain: An Ecosexual
Love Story, um filme documental autoetnográfico de Elizabeth Stephens com
Annie Sprinkle10. Enquanto nativa da West Virginia, Stephens regressa à sua
casa de infância para realizar um filme que envolve autobiografia, uma breve
história da indústria do carvão, um inventário das estratégias activistas, um mi-
ni-manifesto ecossexual e um exemplo de performance arte que Stephens e
Sprinkle costumam apresentar a fim de expressar a sua ecosexualidade. 11 No
filme, Stephens mostra uma comunidade a braços para restaurar o amor pelo

BRUNO MARQUES | PODEMOS LEVAR A SÉRIO O ECOSSEXO? ARTE E ACTIVISMO NO SÉCULO XXI
seu ecossistema montanhoso ante o facto da sua destruição através da MTR
acabar justamente por ser, para todos os efeitos, a base da sua economia local.
A peça explora as consequências negativas, tanto cosméticas como ambien-
tais, decorrentes da remoção do topo da montanha, e culmina na cerimónia
de casamento de Stephens e Sprinkle com a própria montanha em questão.
Para além da série de “casamentos com a terra” realizados pelas duas em
todo o mundo, a lista das suas performances e workshops incluem também os
projetos do Love Art Lab12, que, e para usar os seus próprios termos, “visam
incutir esperança, criar um antídoto contra o medo e agir como um apelo à
ação”. 13 Neste último caso, trata-se de performances sobre como se tornar
“amante da terra”, podendo as mesmas ser de antemão reservadas mediante
contacto directo com Sprinkle e Stephens, e, desse modo, realizadas a títu-
lo privado com o intuito de serem demonstrativas, informativas e “radicais”.14
Foi com esse espírito que Sprinkles e Stephens realizaram um dueto inti-
tulado 25 Ways to Make Love to the Earth (Theatre Piece) no Kosmos Theatre,
em Viena, em 2010, para demonstrar como “fazer amor com a terra”, o que
incluiu falar, cantar, dançar e acariciar objetos naturais. 15
Mais recentemente, na abertura dos Programas Públicos - 34 Exercises of
Freedom - da DOCUMENTA 14 (Kassel), no Parko Eleftherias, em Atenas, apre-
sentaram An Evening with Annie Sprinkle and Beth Stephens and Wet Dreams
Water Ritual (2016). Em colaboração com “artistas locais, activistas, músicos,
profissionais do sexo, refugiados e outros humanos e não humanos”, a dupla
lançou um convite a todos aqueles que quisessem participar nos “prazeres e
perigos da água”16, pedindo, para esse efeito, que trouxessem um pouco de
água de casa ou da cidade para o ritual. Uma reportagem de Gabriele Romeo
(disponível no canal youtube17) mostra a forma livre, espontânea, sensual,
carnavalesca, excêntrica, por vezes até algo histriónica, como várias pessoas
responderam ao convite, comparecendo ora fantasiadas ao seu belo prazer
com as cores alusivas ao elemento aquático, ora semidespidas, ora mesmo
sem nenhuma roupa. Após uma apresentação inicial proferida pelas artis-
tas acompanhada por uma projecção de imagens, e seguindo as instruções
dadas, o ritual então começou com a empenhada participação da assistência.
Balões são estridentemente friccionados e tecidos multicoloridos alegremente

181
hasteados. Pequenas porções de água são derramadas pelo chão a fim de ba-
nhar corpos próprios e alheios num espírito de comunhão, simultaneamente
sensual e espiritual. Alguns, em pose teatral, num misto de exibicionismo e
de soberba, desfilam ostensivamente, procurando, de forma lúdica, o contac-
to com outros, à medida que se cruzam entre si numa deambulação circular
permanente. Outros, de joelhos ou sentados no chão, ocupam-se em activi-
dades mais focadas no toque físico. Ouvem-se esgares e gemidos simulados.
Fazendo referência ao conceito de escultura social de Joseph Beuys,
que concebe a arte como um potencial meio para transformar a sociedade
(Beuys 1990, 2004), Stephens sublinha que o ecossexo, enquanto movimen-
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

to, “pode produzir novas formas de conhecimento potencialmente capazes


de alterar o futuro ao privilegiar o nosso desejo por uma Terra que funcio-
ne com tantos sistemas ecológicos diversos, intactos e florescentes quanto
possível”.18 Neste âmbito, para além da performance arte e da positividade
sexual19, a sexoecologia faz ostensivamente uso ainda do humor absurdo,
como estratégia estética e teórica.
Porém, perante o que foi possível perceber da performance apresen-
tada em Atenas por esta dupla de artistas, surge-nos uma inquietação que
formulamos em jeito de pergunta: Como uma acção artística particular pode
hoje “fazer a diferença”? Esta é justamente a questão que BAVO levanta num
texto intitulado “Artists, one more effort to be really political” (BAVO 2011,
288). Para este colectivo activista independente holandês, no actual contexto
histórico em que nos situamos, toda a arte que pretenda ser politicamente
relevante chega a um impasse, a não ser que consiga ligar um “activismo
artístico radical” a um “activismo político radical” (BAVO 2011, 289). Para
este fim, no âmbito da viragem para um “genuíno revivalismo (revival) da
arte socialmente comprometida das últimas duas décadas”, novos valores e
prioridades se impõem: do critério do “significado” e da “forma” passámos
para o critério do “resultado”, da “performatividade” e até do da “utilidade”.
Atendendo aos traços gerais aqui apresentados sobre as motivações e
resultados que fazem do ecossexo uma pretensa forma de activismo, cabe
perguntar: diante da urgência hoje sentida para, com o maior sentido de
impacto e de pragmatismo, fazer face às gritantes injustiças sociais que
pautam o nosso mundo, que necessidade temos realmente de “hight art
statements, preachy manifestos or sublime expressions of moral outrage”
(BAVO 2011, 289)?
Por mais que as manifestações sejam simbólicas, humorísticas, dinâmi-
cas, excêntricas, interactivas, colectivas, participativas e tornem, com efeito,
socialmente visíveis certas críticas a respeito das maiores injustiças que nos
assolam e amedrontam, quão relevantes serão essas mesmas práticas se tal
não se traduzir numa alteração imediata do estado de coisas que se contesta?
Que soluções? Que ferramentas? Que guias de conduta encontram
aqui uma tradução objectiva no que concerne a uma verdadeira alteração

182
do estado do Planeta. Até que ponto o ecossexo produz resultados emanci-
patórios? Que instantâneo e efectivo empoderamento é dado a quem parti-
cipou e/ou assistiu à referida performance? E até que ponto o seu impacto
não se resume antes, e tão-somente, a um animado e excêntrico, mas deve-
ras fugaz e inconsequente momento de entretenimento?
Tal como BAVO nos adverte, por vezes algumas acções de activismo, “can
be easily abused by the system as a sign that things are not so bad in the world
after all or to give the victims of structural social injustices the feeling that their
voices still count” (cf. BAVO 2011, 291).
Ideologicamente movidos pela sua boa vontade e curiosos por experien-

BRUNO MARQUES | PODEMOS LEVAR A SÉRIO O ECOSSEXO? ARTE E ACTIVISMO NO SÉCULO XXI
ciar eventualmente novos estímulos sensoriais (ou sexuais) que o movimento
exorta e proporciona, poderemos muito bem ficar com a sensação de que
agimos prazerosamente em nome de uma causa justa e nobre. Mas, em boa
verdade, que melhoria ao nível da saúde do planeta foi efectivamente desen-
cadeada quando, simplesmente, acabámos de fazer amor debaixo de uma
queda de água ou de nos masturbar com a ajuda de um tubérculo?
Num primeiro momento, sob um olhar entusiasta e inocente, condes-
cendentes e cheios de boa-fé, poderíamos até dizer que o projecto é válido
nas suas intenções e no seu programa: salvar a Terra. E é certo que, impli-
cando uma dimensão social, o trabalho de Annie Sprinkle e Beth Stephens
dilui as fronteiras que separam a política da cultura. No entanto, esta diluição
não apresenta à nossa vista nenhuma hipótese de terminar, subverter ou al-
terar a dominante do capitalismo no que toca à arte como sistema instalado.
No fundo, o formato, dentro da moldura institucional na qual a performance
de Atenas teve lugar, neutraliza o evento. Vítima de uma fórmula demasiado
previsível, é refém da conformidade com este tipo de consumo cultural (por
sinal cada vez mais massificado) e com o que o sistema da arte contemporâ-
nea exactamente espera20.
Escreve De Cauter:

We are all ambitious, overworked, highly disciplined and controlled paws


in the game of neoliberalism. […] Outside the shrinking heterotopian play-
ground, branding and formats rule. Everything is formatted today, packa-
ged, streamlined, standardized, neutralized, and given its ideological load:
all publicity is for capitalism, al managerial pep-talk is capitalist theology.
Every format is an echo chamber for the harmony, preconceived by marke-
ters, between what the public wants and what the advertisers need. […] If
aesthetic subversion still makes sense today, it will be in this battle against
the dictatorship of the formats (De Cauter 2011, 14-15).

Apesar das suas boas intenções, o Ecossexo resulta pedagógico, institu-


cionalizado, domesticado, convertido num produto, numa experiência próxi-
ma do turismo cultural, do lazer e da diversão.

183
Há já umas boas décadas, em jeito de alerta Jean Baudrillard falava de
uma “máquina de produzir vazio” (Baudrillard 1991, 81) para designar um
paradigma onde se expõe artistas e obras da “contracultura” a fim de os neu-
tralizar (Baudrillard 1991, 82). Se seguirmos a perspectiva de Chantal Mouffe,
devemos atender que o carácter politico da arte activista reside no objectivo
de “occupy the public space in order to disrupt the smooth image that cor-
porate capitalism is trying to spread, bringing to the fore its repressive cha-
racter.” (Mouffe, 2007, p. 5).
Mas e se, subitamente, percebermos que o activismo, também ele, se
pode tornar perversamente num dos novos rostos do capitalismo e, assim,
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

do próprio sistema? Em que medida o activismo não foi absorvido por este?
E o certo é que o projecto de Ecossexualidade de Annie Sprinkle e Beth
Stephens propõem e praticam parece não contrariar, antes reforça, esta cul-
tura da “simulação” e da “fascinação” (Baudrillard,1991, p.86). Nesse senti-
do, até que ponto faz sentido dizermos que elas são “anti-sistema”? Até que
ponto essa experiência não se torna ela própria num “produto” comodifica-
do, numa mercadoria vendável como experiência semelhante àquela que o
mercado e o turismo nos dão? Até que ponto estas operações não servem a
agenda neoliberal?
Stefanie Iris Weiss, escritora e activista estabelecida em Nova Iorque, escre-
veu em 2010 um livro sobre o uso de produtos sexuais sustentáveis intitulado
Eco-sex: Go Green Between the Sheets and Make Your Love Life Sustainable.
O objetivo principal passava por contribuir para uma necessária conscienti-
zação sobre o impacto ambiental dos produtos sexuais que actualmente usa-
mos, apresentando, nesse âmbito, “alternativas mais ecológicas”.211 Porém, ao
mesmo tempo apresenta-se como um “green sex manual and self-help book
for those in search of long-lost sexual excitement.” Na sinopse do livro é pos-
sível ler ainda o seguinte:

Eco-Sex will also draw the reader into a whole new world and community,
from shopping for organic aphrodisiac foods, to green dating sites, to out-
door carnal adventures. The perfect gift for your favorite recycler, girlfriend,
boyfriend, or politically conscious friend-friend, Eco-Sex will open new av-
enues for the health of the planet, body, and relationships.22

Num contexto descrito por Hal Foster como “elástico” e sem qualquer ideo-
logia rígida, isto é, sem “integridade ou forma fixa” (Foster 1985, 166), como
agir crítica e politicamente sem acabar por ser absorvido por esse “sistema”?

Difference is thus used productively; indeed, in a social order which seems


to know no outside (and which must contrive its own transgressions to rede-
fine its limits), difference is often fabricated in the interests of social control
as well as of commodity innovation. (Foster 1985, 167).

184
Para resistir e interromper a dominação do código afecto a esse proces-
so hegemónico perverso, Hal Foster avança com dois conceitos: o conceito
de minor desenvolvido em 1977 por Deleuze e Guattari a partir da literatu-
ra de Franz Kafka23, e o conceito de cultural revolution elaborado por Fredric
Jameson, (Foster 1985,176). Quanto ao primeiro, é justamente devido à des-
territorialização, à natureza politica e ao valor colectivo nele implicados que
a arte se pode tornar transgressora.
No que concerne ao segundo, no quadro da reflexão sobre a literatura
enquanto acto simbólico social, o autor exorta uma interpretação política do
texto literário, uma vez que, para Jameson, a revolução cultural dá-se preci-

BRUNO MARQUES | PODEMOS LEVAR A SÉRIO O ECOSSEXO? ARTE E ACTIVISMO NO SÉCULO XXI
samente no momento em que a coexistência de vários modos de produção
se tornam “visivelmente antagonistas”, ou seja, no momento em que as “con-
tradições” se tornam subitamente no “centro” da vida politica, social e histó-
rica (Jameson 2005, 84).
É a partir do encontro deste destes dois conceitos que, segundo Cristina
Pratas Cruzeiro (Cruzeiro 2014, 328), Hal Foster parece lançar um modelo de
resistência cultural no que concerne às actuais práticas artísticas críticas e de
intervenção24.
Com este pequeno pano de fundo aqui esboçado urge então perguntar:
De que forma a performance colectiva apresentada no contexto da Documenta
14 é verdadeiramente transgressora, revelando modos de produção e de re-
presentação verdadeiramente antagonistas? De que maneira ela mina a auto-
ridade, escapa ao status quo dominante e rompe com o que já é expectável?
No fundo, qual o seu potencial de desobediência? Dito de outra forma e já
sob o prisma específico que orienta este texto: de que forma a performan-
ce em apreço se traduz numa mudança efectiva do ponto de vista ecológi-
co? Neste ponto, poderíamos fazer nossas as palavras de De Cauter, quando
este afirma que:

The risk is that most of these projects will remain purely aesthetic, and ap-
pear as nothing more than amateur social work. Or worse: a lubricant for
neoliberal development. Interventing into politics is the only real option.
Temporary and fleeting subversive artistic interventions will not change the
world or save the planet. (De Cauter 2011, 16).

“Nós falamos de amor, mas não de amor estereotipado feito de normas


e convenções. Devemos abandonar as categorias antigas, a dicotomia entre
homo e hetero: o ecossexual é em si uma identidade”, refere Stephens, que
também lecciona na Universidade de San Diego na Califórnia, um estado que,
curiosamente, não admite o casamento entre pessoas do mesmo sexo. “As
nossas intervenções geram polémica, às vezes mesmo no próprio movimen-
to feminista e ambiental, mas geralmente as pessoas nos recebem porque
falamos sobre amor e sexo”25.

185
O certo é que as instâncias do Amor e do Sexo, bem patentes no discur-
so de Stephens, parecem aqui funcionar como ingredientes potencialmente
sensacionalistas. Nesse sentido, o problema do seu impacto pretensamente
transformador reside num momento em que o choque, a provocação, a pro-
cura obsessiva pela transgressão em si e por si mesma se tornaram já não só
lugares-comuns estafantes como também nos próprios valores dominantes da
cultura mainstream. Até a sua dimensão carnavalesca, ritualista e humorística,
historicamente usada por diversos movimentos artísticos anteriores de (neo-)
vanguarda como estratégia de subversão dos valores dominantes (da ordem,
do pudor, da ética burguesa), e que constituem os principais traços da per-
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

formance em questão, hoje acabam por já nada chocar ou subverter. Resulta,


antes, pouco ou nada impactante, acutilante. Apenas entretém os menos pre-
parados, redundando num desconcertante desapontamento.
Tal como Lieven De Cautier nota, a respeito de um novo paradigma que
começa a desenhar-se a partir do 11 de Setembro: “At the same time, these
reversals and transgressions, these feasts of reversal, keep the order going:
excess and transgression as relaxation, as a safety valve. Such temporary in-
version is not subversion per se” (De Cauter 2011, 12).
Num momento em que a subversão parece há muito já ter perdido o pé
(De Cauter 2011, 10)26, uma série de termos, movimentos e práticas, que com
ela faziam sistema ou que com ela estavam intimamente correlacionadas,
parecem emergir, entre si combinadas ou fundidas, em nome do Activismo.
Neste quadro, tal como ocorre com a face mais superficial da ecologia (tor-
nada cada vez mais numa retórica política destinada a seduzir eleitorado e
argumento comercial para vender uma parafernália de novos produtos su-
postamente “verdes”27), este converte-se facilmente numa designação hoje
por si só profusamente usada e explorada, tanto nos domínios mais estritos,
eruditos e da chamada contracultura, como nas esferas mais mainstream, me-
diáticas e populares, ao ponto de os fazer convergir (e confundir) numa lógi-
ca ubíqua e transversal. No fundo, ele converteu-se, tal como a própria causa
ecológica, numa moda.
Constatamos que algumas práticas artísticas, sob a bandeira oportunista
do activismo, se têm aproveitado de recentes apropriações feitas pelas má-
quinas do espetáculo e do entretenimento. Estas aparecem absolutamen-
te codificadas dentro e fora do cânone convencional. Pois, tal como Gerard
Raunig observa,

Artistic activism and activist art conditions are not only directly persecuted
by repressive apparatus because they operate in the neighboring zones of
art and revolution, they are also marginalized by structural conservatisms
in historiography and the art world. As a consequence of the reductive pa-
rameters of these conservatisms, such as rigid canons, fixation on objects
and absolute field demarcations, activist practices are not even included

186
in the narratives and archives of political history and art theory, as long as
they are not purged of their radical aspects, appropriated and coopted into
the machines of the spectacle. (RAUNIG 2007).

De forma demasiado rápida e superficial, para os ecossexuais fazer sexo


na natureza ou com recurso a elementos naturais é automaticamente assumi-
do como sendo uma acção ecológica e, por conseguinte, logo boa, sem que
haja, porém, a posteriori qualquer aferição quantitativa e qualitativa dos seus
efeitos, nomeadamente ao nível do impacto ambiental e das políticas que lhe
dizem respeito a curto e médio-prazo. Por isso, cabe perguntar: como pode-

BRUNO MARQUES | PODEMOS LEVAR A SÉRIO O ECOSSEXO? ARTE E ACTIVISMO NO SÉCULO XXI
mos levar a sério o ecossexo à luz do activismo do século XX?

Notas
1
Investigação financiada pela FCT that has become so unbalanced that
(bolsa de pós-doutoramento [RH/ it threatens our survival as a species”
BPD/93234/2013]) (Corinne 2013).
2
Os ecossexuais variam entre aqueles que 6
“PAR: Goodbye Gauley Mountain: An
usam produtos sexuais sustentáveis, como Ecosexual Love Story”. elizabethstephens.
estar desnudo na natureza, e aqueles org. Elizabeth Stephens. n.d. Consultado
que “se rebolam na sujidade tendo um em 2017-02-02.
orgasmo cobertos de terra de vaso” ou 7
“Sex Ecology”. sexecology.org. Elizabeth
que “se masturbam debaixo de uma
Stephens and Annie Sprinkle. n.d.
queda de água” (McArthur, 2016).
Consultado em 2017-08-02.
3
“Elizabeth Stephens”. Faculty List. Art 8
https://earthlab.ucsc.edu/ecosex-
Faculty UC Santa Cruz. URL: http://art.
symposium/ Consultado em 2017-08-02.
ucsc.edu/people/elizabeth-stephens.
Consultado em 20-8-2017. 9
John Amos, um geólogo de 50 anos
que chefia a pequena SkyTruth sem fins
4
“Bored of LGBTQI? Try Ecosexuality”.
lucrativos na pequena Shepherdstown, na
Breitbart. 2016-11-03. Retrieved
Virgínia Ocidental (EUA) , “foi o primeiro a
2016-12-02.
documentar o número de montanhas dos
5
“They want to replace the age-old Apalaches que tinham sido decapitadas
association of the Earth as “mother” with a devido às minas (cerca de 500) porque
definition of the earth as “lover.” Stephens nenhum Estado ou organização
and Sprinkle believe that the over-familiar governamental ou outra pessoa qualquer
metaphor of mother has produced alguma vez se deu ao trabalho de
children who take and take, resulting in descobrir. O seu trabalho foi usado pela
a planet that is weakened, drained, and Agência de Protecção Ambiental na
on the verge of collapse. By substituting decisão rara de bloquear uma importante
the term “lover” for “mother” Sprinkle and nova exploração mineira no Virgínia
Stephens want to emphasize the joy and Ocidental, decisão essa que ainda circula
pleasure of caring for another rather than pelos tribunais” (Tucker, 2013).
the centuries-old, childish assumption that 10
“After the West Virginia excursion,
we are to be cared for by “mother” earth.
Stephens was compelled to do something.
They want to remind us that we need to
She began with a photography project, but
assume responsibility for a relationship

187
didn’t feel that that would reach enough 20
Ainda que no texto de apresentação
people. She wrote about it, but hit a dos Programas Públicos da DOCUMENTA
creative roadblock. Could she disseminate 14 (Kassel), intitulados 34 Exercises of
it well enough for the masses? “It felt to me Freedom, onde a performance de Annie
that a film could reach more people than Sprinkle e Beth Stephens se insere, seja
these other art forms that I was using,” she referido o seguinte: “In the Parliament of
says.” (Archer 2013). Bodies, you will find neither individual
chairs within the building nor a fixed
11
Clemons, Tammy (2014). “Goodbye
architecture. We avoid positioning
Gauley Mountain: An Ecosexual Love
the audience as aesthetic visitors or
Story”. Journal of Appalachian Studies. 20
neoliberal consumers.” URL: http://www.
(1): 91–93.
documenta14.de/en/news/1929/34-
https://loveartlab.ucsc.edu/ Consultado
12 exercises-of-freedom-extended-program-
september-14-24-2016
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

em 25-8-2017.
13
“Assuming the Ecosexual Position:
21
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Adventures of the Love Art Lab”. net. Retrieved 2016-12-02.
anniesprinkle.org. n.d. Consultado em 22
https://books.google.pt/books/about/
25-8-2017.
Eco_sex.html?id=crrgDA8p31cC&redir_
14
“Assuming the Ecosexual Position: esc=y. Consultado em 4-8-2017.
Adventures of the Love Art Lab”. 23
A minor literature doesn’t come from
anniesprinkle.org. n.d. Retrieved
a minor language; it is rather that which
2016-12-02.
a minority constructs within a major
15
“Dirty Sexecology: 25 Ways to Make Love language. But the first characteristic
to the Earth (Theater Piece)”. sexecology. of minor literature in any case is that
org. n.d. Consultado em 6-8-2017. in it language with a high coefficient
of deterritorialization. […] The second
16
http://www.documenta14.de/en/ characteristic of minor literatures is that
calendar/1008/-25-an-evening-with- everything in them is political. In major
annie-sprinkle-and-beth-stephens-and- literatures, in contrast, the individual
wet-dreams-water-ritual. Consultado em concern (familial, marital and so on) joins
6-8-2017 with other no less individual concerns,
17
https://www.youtube.com/ the social milieu serving as a mere
watch?v=CUCiP-aLMwg. Consultado em environment or a background; (…) Minor
6-8-2017. literature is completely different; its
cramped space forces each individual
18
“PAR: Goodbye Gauley Mountain: An intrigue to connect immediately to politics.
Ecosexual Love Story”. elizabethstephens. […] The third characteristic of minor
org. Elizabeth Stephens. n.d. Retrieved 22 literature is that in it everything takes
October 2013. on a collective value. Indeed, precisely
because talent isn’t abundant in a minor
19
Para o sexólogo Carol Queen, o
literature, there are no possibilities for
positivismo sexual, "It's the cultural
an individuated enunciation that would
philosophy that understands sexuality as a
belong to this or that “master” and that
potentially positive force in one's life, and
could be separated from a collective
it can, of course, be contrasted with sex-
enunciation. (Deleuze e Guatarri 1986, 16-
negativity, which sees sex as problematic,
17; cit. p. Cruzeiro 2014, 327).
disruptive, dangerous. Sex-positivity allows
for and in fact celebrates sexual diversity, 24
E que aliás o autor desenvolverá melhor
differing desires and relationships structures, em ‘The artist as etnographer’, escrito uma
and individual choices based on consent." década depois, tornarando-se num ensaio
Queen, Carol (1997). Real Live Nude Girl: incontornável para a compreensão das
Chronicles of Sex-Positive Culture. Pittsburgh mesmas.
(Cleis Press). ISBN 1-57344-073-6

188
25
Depoimento reproduzido em: comunicação, embalagens, comércio, etc.
“El ecosexo como obra de arte”, La Termos oriundos de áreas diversas como
Républica (Jueves 30 de Junio de Greenwashing (marketing), verdolâtrie
2011 en CULTURA). URL: http://www. (paisagismo) ou L’Enfert Vert (política)
larepublica.ec/blog/cultura/2011/06/30/ conduzem, todos eles, a uma mesma
el-ecosexo-como-obra-de-arte/ ideia que é a do uso e abuso da imagem
“verde” na procura de uma imagem
26
“[…] our starting point was: subversitivy
“naturalista” imediatista e demagógica,
is in bad shape. This actitude does not
mas pouco ou nada ecológica nos seus
really exist in our world. The spirit of
fundamentos, em virtude de pretender,
negation and criticaly seems gone. The
acima de tudo, alimentar interesses
basic sentiment of our time is acceptance,
financeiros, ou, simplesmente, usá-la como
consente and conformism: we all want to
retórica “politicamente correcta” destinada
be part of the system, of the process, we

BRUNO MARQUES | PODEMOS LEVAR A SÉRIO O ECOSSEXO? ARTE E ACTIVISMO NO SÉCULO XXI
a convencer o eleitorado. No recente livro
say ‘yes’ to technology […] Just as the spirit
Eu Animal, argumentos para um novo
of experimentation and creativity has been
paradigma, cinema e ecologia (manual
absorbed by ‘the new spirit of capitalism’,
de orientação ecológica), Ilda Teresa de
culture, even subculture, has become
Castro apresenta um mapeamento das
entirely capitalism. […]”
várias linhas da ecologia (cultural). Neste
27
Não nos podemos furtar de apontar o âmbito, a autora distingue uma ecologia
dedo à imagem verde de uma ecologia de superfície - onde cabe o documentário
superficial que decorre do oportunismo Verdade Inconveniente (2006) - da “deep
apenso à capitalização e ao marketing ecology” (Castro 2015).
ecológico, hoje ubíquo nos meios de

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190
Feminismo Materialista: da Teoria
da Arte encarnada e do feminino
enquanto local de resistência e
radical enunciação política
J o a n a To m é
Doutorada em Belas-Artes (vertente Ciências da Arte)
e investigadora do CIEBA; Artista plástica
[email protected]

Offering base to a radical art


theory – politically engaged
Introdução: das coordenadas teóricas in the transformation of
Propõe-se, no presente artigo, perscrutar o modo the material conditions of
como uma crítica feminista materialista da arte po- production and reception of
the artworks by women – in
tenciará novas – e prementes – estratégias de con-
materialist feminism, we
tacto e interpretação do objecto artístico e, em par-
intend to draw an extension of
ticular, da arte (incomensuravelmente plural) criada
historical materialism to the
por mulheres, transformando de modo profundo as recognition and analysis of
condições de produção, apresentação e recepção those conditions of production
das obras enquanto efectiva resistência à presen- particular to women artists and
te conjuntura neoliberalista. Através de um radical in a feminist analysis of the
convocar da materialidade da obra e do corpo no power and production relations.
contexto da prática artística e da produção teórica Thus defending transgressive
sobre ela, contextualizado por um projecto feminista interpretation strategies –
materialista que tomará a obra enquanto processo always plural – capable of
recognizing the materiality, the
produtivo ele mesmo, se desvincula a interpreta-
body and a feminist nomadic
ção do objecto artístico de servitude a uma clássica
subject that defies (author)ity .
(autor)idade, importando o ensinamento barthesiano
da morte do autor. Aí se conhecerá espaço à trans- Keywords: materialist
gressiva inscrição de uma subjectividade feminina feminism, historic materialism,
nómada, feminista, continuamente plural, capaz de poststructuralism, nomadic
abrir a leitura da obra a emancipadoras narrativas. subjects, art theory.
Embora consolidado corrente teórica no final
da década de 1970, o feminismo materialista e o
seu posicionamento num quadro de orientações
feministas outras, estende preponderantes efeitos

191
na contemporaneidade e apresenta-se coordenada fulcral – ponto de concor-
dância ou de fuga – num desenhar de teorização feminista e, em particular,
de projecto feminista de teoria da arte. As teorias políticas feministas podem,
neste sentido, pensar-se de três fundamentais, e distintas, mutações: um fe-
minismo liberal, de “equidade” num contexto capitalista enquanto fim último,
e de consequente vínculo ao neo-liberalismo; um feminismo radical, que lo-
caliza a fonte de opressão das mulheres no masculino e no patriarcado; e um
feminismo intimamente ligado às teorizações marxistas, do qual o feminismo
materialista toma parte a par de um feminismo socialista e de um feminismo
marxista. Muito embora de manifestos teóricos diferenciados, uma clara linha
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

divisória entre práticas feministas socialistas e práticas feministas marxistas é


particularmente difícil de estabelecer.
As teorizações feministas socialistas, de especial peso no contexto norte-
-americano, desenvolvem-se numa paradoxal tensão entre o recurso a meto-
dologia marxista no tecer de crítica ao capitalismo e uma negação abstracta
do marxismo. Uma tal estratégia teórica fatalmente se traduzirá numa produ-
ção teórica a-histórica e, por conseguinte, desprovida de qualquer eficácia
prática. Empenhando, por seu lado, esforços no estender das teorizações
marxistas a um entendimento da opressão da mulher enquanto originada nas
estruturas de poder capitalistas, o feminismo marxista desenvolve Marx num
contexto de análise das condições de opressão da mulher e das divisões de
classe entre estas. O feminismo marxista, não obstante a justeza de observa-
ções, apresentará sempre dificuldade, contudo, em pensar “classe” no âmbi-
to de uma intrincada trama de eixos outros de opressão (dos quais “género”
fará parte) e não agente primeiro da opressão das mulheres. De pontos de
contacto com as teorizações feministas marxistas porém delas se distanciando
em essenciais momentos, o feminismo materialista tem génese num reformu-
lar da teoria marxista por forma a conceber a divisão de género do trabalho –
posteriormente se estendendo para lá dela. Pensando a origem da opressão
das mulheres não mais enquanto existindo fora da história e independente
dos modos de produção (qual feminismo liberalista), o feminismo materialis-
ta desenvolve o materialismo histórico para lá das suas limitações em postu-
lar adequadamente a particular opressão exercida pelo capitalismo sobre as
mulheres, e alia-o a fontes não-marxistas1 num pensar da interdependência
de eixos de opressão no sistema neo-liberalista.

1. Do feminismo materialista: a obra enquanto processo produtivo


Perscrutando um situar histórico e social das existências e experiências
das mulheres, a expressão materialista do feminismo aborda – sistemática e
materialmente – a relação das mulheres com as estruturas de poder e meios
de produção e reprodução. Neste sentido avança Rosemary Hennessy, em
Materialist Feminist and the Politics of Discourse, o feminismo materialista
enquanto derradeira resposta ao impasse em que se encontravam tanto as

192
teorizações marxistas quanto as feministas (HENNESSY, 2013: xii): o marxismo,
por força de um absoluto centrar da análise nas noções de classe e produção,

JOANA TOMÉ | FEMINISMO MATERIALISTA: DA TEORIA DA ARTE ENCARNADA E DO FEMININO ENQUANTO LOCAL DE RESISTÊNCIA E RADICAL ENUNCIAÇÃO POLÍTICA
havia-se mostrado ineficiente na análise da divisão de género do trabalho; o
feminismo apoiava-se, por sua vez, num gasto entender essencialista e idea-
lista de “Mulher”, tragicamente desligado da realidade concreta das mulheres.
Partilha-se pois, no presente artigo, do esforço de síntese de Toril Moi e
Janice Radway que, em nota de editor no número de Outono de 1994 de The
South Atlantic Quarterly, definem feminismo materialista enquanto teorização
comprometida “com uma concreta análise histórica e cultural, e com o femi-
nismo entendido enquanto uma ‘narrativa emancipatória’” (MOI e RADWAY,
1994: 750). Deste modo, um projecto feminista materialista empenhar-se-á
num profundo examinar das condições materiais sobre que constrangimen-
tos sociais, quais hierarquias de género, se desenrolam. Distanciando-se das
referidas metamorfoses socialistas e marxistas, o feminismo materialista des-
vincula-se de um pensar daquelas hierarquias de género (isto é, a produção
social do género e seus efeitos materiais) enquanto singular efeito do patriar-
cado mas, antes, parte de complexa rede de relações – do âmbito do social e
do subjectivo – que enformam o texturado tecido do momento histórico ma-
terial. O entender das contradições de classe e da análise materialista destas,
apresenta-se, pois, crucial a uma análise séria das opressões de género no
contexto de um vasto conjunto de outras inextrincáveis opressões, reconhe-
cendo-lhes necessárias histórias, contextos ideológicos e bases materiais. É
igualmente neste ponto que o feminismo materialista se distingue das abor-
dagens estritamente marxistas. Teorizações quais a materialidade da ideolo-
gia, de Althusser, embora da maior utilidade para uma perspectiva feminista,
abordam as contradições entre capital e trabalho, e entre as forças e as rela-
ções de produção, enquanto determinantes (ainda que sobredeterminadas
e tornadas historicamente específicas). Uma perspectiva feminista materialis-
ta insistirá, pelo contrário, na ausência de hierarquia causal entre formas de
opressão e desigualdade, pensando o carácter de classe enquanto apresen-
tando o mesmo grau de materialidade que as demais condicionantes mate-
riais das existências das mulheres.
O postular de um feminismo materialista plural, comprometido com uma
análise materialista da cultura e da obra de arte – informada pelas condições
de existência das mulheres a par de demais grupos marginalizados –, deve-
rá, pois, caminhar para lá do esforço de síntese entre feminismo e marxismo,
através do potencialmente valioso contributo das metodologias pós-moder-
nistas e, em particular pós-estruturalistas – aí se abrindo lugar à consideração,
não hierárquica, de novas coordenadas na discussão, quais a sexualidade, a
raça, a nacionalidade, o (pós)colonialismo, entre outros. O projecto de inter-
pretação materialista do objecto artístico que o presente artigo pretende de-
linear concebe-se, pois, dialógico resultado do encontro de pluralidade de
discursos, quais o materialismo histórico, o feminismo marxista, o feminismo

193
radical e as teorias pós-modernas e psicanalíticas do significado e da subjec-
tividade. Da aproximação – não raras vezes difícil – ao pós-modernismo e, em
particular, ao pós-estruturalismo, se permite não só tecer resposta à hierarquia
de materialidades que acima se referiu como também um premente desafio à
clássica noção de interpretação que uma teoria da arte feminista materialista
necessariamente comportará.
Pode receber, ainda neste contexto de aproximação ao pós-modernismo,
do materialismo cultural a prática interseccionista a que se almeja. Do corpo
de teorizações e práticas interpretativas que compõem o materialismo cul-
tural, datado da década de 1980 e descendente de análise materialista da
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

obra de Foucault e da influência maior da Escola de Frankfurt, o feminismo


materialista pode receber um crucial entender de cultura enquanto proces-
so produtivo, portanto, parte integrante das forças materiais e relações de
produção, como havia já esboçado o materialismo histórico. Defendendo a
inextricabilidade entre prática cultural e a sua significância política, e o seu
carácter não-transcendente face às forças materiais e relações de produção
(contradizendo abertamente as correntes idealistas), o materialismo cultural
assume – com particular vigor nas teorizações de Raymond Williams – a derra-
deira impossibilidade de neutralidade política na prática interpretativa. A uma
análise feminista materialista da obra de arte deverá notar-se, neste contexto,
consciente das implicações políticas rodeando as categorias estéticas fazen-
do-se derrotar o clássico entendimento da crítica da arte enquanto exercício
imparcial, neutro ou objectivo. Uma leitura feminista da produção artística fe-
minina afirmar-se-á, sempre, acto político de subversão.
Embora francamente próximos, a relação que entre feminismo materialis-
ta e materialismo cultural se estabelece não é isenta de risco ou controvérsia,
afirmando-se importante que esta se delimite. De relevo nesta tarefa será a
teorização de Rosemary Hennessy e Chrys Ingraham, em Materialist Feminism:
A Reader in Class, Difference, and Women’s Lives, onde se aponta ao materia-
lismo cultural uma grave denegação do materialismo histórico num analisar
pós-marxista das práticas culturais, ideológicas e políticas, isto é, um analisar
destas práticas de modo isolado da sua base material no sistema capitalista
(HENNESSY e INGRAHAM, 1997: 7). Embora não se reconheça, em presente
instância, total validade ao argumento de Hennessy e Igraham, reconhece-se
que o materialismo histórico, de facto, só se encontrará em prática num con-
ceber de cultura enquanto, não o todo da vida social, mas antes “uma arena
de produção social e, assim, enquanto apenas uma arena da luta feminista”
(Idem); partilha-se da convicção dos autores que tal somente se realizará no
âmbito do feminismo materialista.
Conceber a cultura enquanto processo produtivo acarretará uma abor-
dagem do objecto artístico enquanto produto – imediato ou mediato – da
estrutura social de base; tal implicará, como intuído pelos parágrafos prece-
dentes, tomá-lo considerando a sua existência material; e, tomá-lo enquanto

194
materialidade implicará, por sua vez, concebê-lo processo produtivo em si
mesmo e não mais irremediavelmente cárcere de transcendente significado

JOANA TOMÉ | FEMINISMO MATERIALISTA: DA TEORIA DA ARTE ENCARNADA E DO FEMININO ENQUANTO LOCAL DE RESISTÊNCIA E RADICAL ENUNCIAÇÃO POLÍTICA
ou autor, qual se conhecia caro da clássica noção de interpretação.
A interpretação clássica da obra de arte apresentava-se, até ao século XIX,
irreversivelmente amarrada a um entender da biografia do autor enquanto
explicação da obra, tomando o objecto artístico enquanto espelho do real.
Uma tal crença epistemológica na directa correspondência entre palavra e
significado, e entre imagem e realidade objectiva, fazia edificar um mode-
lo que implacavelmente neutralizava a materialidade dos textos e das obras
plásticas. Somente na modernidade, prefaciadas que estavam as teorizações
marxistas, feministas e pós-modernas num apontar para um questionar profun-
do dos clássicos processos de interpretação, tal modelo se verá contestado.
A moderna historicização do objecto a interpretar, aliada a uma recuperação
de um platónico cepticismo perante a relação entre palavra e significado, e
da profunda suspeição epistemológica nietzschiana, afirmar-se-á central ao
estruturalismo e pós-estruturalismo do século XX, edificando-se neste con-
texto a seminal teorização barthesiana da morte do autor.

2. Da recusa da "(autor)idade": a caminho de subjectividade nómada


As abordagens pós-modernas, postulando o conhecimento como cons-
trução historicamente situada e determinada por sistemas de poder, apre-
sentam-se fundamentais à desconstrução da clássica noção de autor que se
mostrava efectivo limite ao texto e à obra plástica; seguindo Barthes, “uma
vez removido o Autor, a pretensão de decifrar o texto torna-se deveras fútil”
(BARTHES, 1977: 147). Tomar por objecto de análise o discurso enquanto ma-
terial (plástico) é pensá-lo liberto agora de reverência a transcendental ori-
gem, reconhecendo-o em incessante circular por textos e contextos outros,
afirmando a obra enquanto simultaneidade de traços, citações, texturas, di-
ferenças. Um projecto feminista materialista de leitura da arte criada por mu-
lheres afirma-se, neste sentido, projecto de leitura radicalmente dissidente,
desafio último à (autor)idade. Partilha-se, ainda numa aproximação ao pós-es-
truturalismo, da convicção de Donna Landry e Gerald MacLean na utilidade
de uma perspectiva feminista materialista desconstrucionista enquanto ful-
cral crítica aos hegemónicos discursos e projecto de desmantelamento dos
mesmos (LANDRY e MACLEAN, 1993: 13b). Deste modo, o objecto artístico,
porque parte dos artefactos materiais (culturais, sociais e históricos) que criti-
camente se abordam, conhecer-se-á subversivo local de contestação política
– no qual o reconhecer de ligação da obra, no seu processo de produção e
na sua estratégia de leitura, ao corpo e a uma subjectividade não-hegemóni-
ca, será ela mesma transgressão politicamente significante.
Aí onde o significante e significado se acham agora conceitos cultural-
mente construídos, nasce aguda a consciência – preconizada por Derrida –
do infinito diferimento de significado. Resultante do desvelar da realidade

195
empiricamente demonstrável enquanto ficção, um entender do significado
enquanto não mais fixo e estável, apresenta-se afim de um entender descen-
trado do sujeito. Tomava Barthes, neste sentido, o acto de escrever enquanto
desconstrução de toda a voz e ponto de origem: construindo-se, o sujeito,
na e através da linguagem, uma linguagem (plástica) agora achada descen-
trada permitirá uma subjectividade também ela não-fixa e liberta de referên-
cia a centro. Sublinha-se, necessariamente, o vínculo entre produção mate-
rial e consciência, recebendo do marxismo um entender de linguagem (aqui
extensível à linguagem plástica) enquanto modo prático de consciência, “a
matéria que o ‘espírito’ carrega desde o princípio, pois a consciência é sem-
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

pre – e desde o início – um produto social” (MARX, 1994: 117). Uma análise
feminista materialista deve, como tal, estabelecer ligação entre os níveis eco-
nómicos e ideológicos da análise e as condições materiais que estruturam a
consciência do sujeito.
Dever-se-á recuperar, neste ponto, o entender de consciência nóma-
da, na sua génese deleuziana e profícuo desenvolvimento feminista em Rosi
Braidotti (BRAIDOTTI, 1994). A figuração do nómada afirma-se repúdio últi-
mo da noção de subjectividade fixa, integral, una, essencial e transcendental
– historicamente tomada por masculina – que se buscava na obra no âmbi-
to das clássicas estratégias de interpretação. O deserto, à margem da polis
e das lógicas de poder que a edificam, apresenta-se, em Deleuze e Guattari
(DELEUZE e GUATTARI: 2004), posição afim da experimentação linguística,
cultural e política e consequente exploração de subjectividades alternativas: a
margem é o ponto de desconstrução do centro e das lógicas que os colocam
em dicotómica oposição. O deserto representará, pois, local de emancipa-
ção crítica e individual e o nómada, modelo de subjectividade em perpétuo
deslocamento, descentrada, múltipla, não-unitária, não-dualista, não-fixa, em
incessante devir. Dever-se-á retomar de Derrida, nesta ocasião, um entender
do feminino que, porque marginal aos sistemas de representação – edifica-
dos sobre uma linguagem que não o concebe, porque falogocêntrica –, se
conhece privilegiado local de exercício da instabilidade do signo. Ora, o fe-
minino, nas suas marcas materiais, ver-se-á local nomádico por excelência: a
subjectividade nómada, porque liberta de qualquer reverência a modelo – o
masculino enquanto norma, falso neutro e universal –, é subjectividade femi-
nista. Porque formada por infindável multiplicidade de rizomáticas transições,
pontos de territorialização e desterritorialização, uma subjectividade femini-
na nómada é resistência última às hegemónicas representações subjectivas
e terreno de radical posicionamento epistemológico.
A obra de arte, agora descentrada, evade-se a essência central e a valên-
cia de todo unificado e integral no qual se veicula indiscutível mensagem da
autora: a obra é conflito e disparidade de significado, desvinculando-se as
partes a um obstinado dizer do todo. Furtando-se à pretensão de fazer falar a
obra, não se pensarão as condições materiais da produção artística enquanto

196
significação última a deduzir dela, mas apenas condicionantes que permitem
– e exigem – que se tomem as obras de mulheres enquanto obras de mulhe-

JOANA TOMÉ | FEMINISMO MATERIALISTA: DA TEORIA DA ARTE ENCARNADA E DO FEMININO ENQUANTO LOCAL DE RESISTÊNCIA E RADICAL ENUNCIAÇÃO POLÍTICA
res. Uma prática feminista materialista de análise da obra de arte existirá, pois,
no delicado ponto de tensão entre uma crucial recusa (através da materiali-
dade do objecto artístico) das clássicas noções de autoria e autoridade, e si-
multaneamente uma busca por residuais traços de subjectividade (feminina,
nómada) no objecto artístico – traços a partir dos quais exercer a instabilida-
de do signo plástico, do signo linguístico, do discurso e do próprio sistema
de representação. Assim se abrirá, a análise do objecto artístico, a uma posi-
ção subjectiva feminina, efectiva e afectiva forma de resistência num contex-
to eminentemente falogocêntrico, a ele resistindo (apontando-lhe as lacunas
e silêncios numa valiosa crítica ao cânone e discurso dominante sobre a arte)
e a ele propondo alternativa.

3. Da "inscrição" do corpo (feminino)


Uma análise materialista dos sistemas de representação terá forçosamen-
te como ponto de partida uma análise da materialidade do discurso e da sua
eminente ligação ao corpo. Assim se postulará uma teoria feminista materia-
lista da arte, continuamente plural, a partir de múltiplas e distintas expressões
discursivas historicamente situadas, em relação a corpo e contexto. O corpo,
teórica e politicamente significante, e historicamente específico, é encontro
de fluxos de energia – fazendo uso do léxico deleuziano – capazes de infindas
variações. Aí se ancora um eu cuja materialidade é codificada e processada
na linguagem – inclusivamente na linguagem plástica. Deste modo, uma aná-
lise da produção artística das mulheres deverá tomar em consideração tanto a
materialidade da situação histórica das autoras quanto a linguagem plástica,
reflexo dos aspectos simbólicos e semióticos de tal situação.
Em síntese, apresentando-se, a materialidade e, em concreto, o objec-
to artístico, enquanto local de poder e resistência, o corpo afirmar-se-á afim
desta. O corpo, palco de complexa e infindável trama de lutas e pontos de re-
sistência, é, a um tempo, local de poder e ferramenta de resistência. Ao corpo
se reporta um feminino social e individualmente disruptivo, enformado por
particulares condições materiais e relações de poder; e nele se abre a possi-
bilidade discursiva de uma subjectividade feminina nómada, força (material,
textual, plástica) de excesso e transgressão. O feminino apresentar-se-á, na
sua materialidade, local de subversão e resistência, ponto de partida para o
desenhar, na obra, de subjectividade(s) não-hegemónica(s). O inscrever, no
objecto arttístico, de forças materiais de excesso e transgressão por meio de
corpos e contextos não-hegemónicos, radicalmente transgressivos, é reali-
zar o seu potencial de base fundamental a radical crítica do cânone e discur-
so dominantes. Assim se concretizará, a um tempo, a análise dos processos
através dos quais forças sociais hegemónicas se apropriam de obras e textos
historicamente significantes inscrevendo e validando determinados valores

197
(e subjectividades) no imaginário cultural, e uma pluralidade de leituras dis-
sidentes da arte criada por mulheres, em premente desafio às instituições e
autoridade da teoria e produção artística. Numa tal teoria da arte encarnada,
corporalizada, o feminino consagrar-se-á local último de resistência e radical
enunciação política.

4. Da teoria da arte "encarnada": conclusões


Na defesa de teoria da arte feminista e anti-capitalista, de base no materia-
lismo histórico – que se acha fonte de emancipatório conhecimento necessá-
rio à concretização de projecto feminista –, se desenharam as gerais linhas de
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

tensão entre feminismo socialista, feminismo marxista e feminismo materialis-


ta, assim como entre este último e uma necessária contextualização pós-mo-
dernista da morte do autor e da resistência às clássicas estratégias de (autor)
idade. O encontro entre uma pós-moderna teoria da arte e um materialismo
feminista permite, em última análise, desenhar modelos teóricos que, ao se
debruçarem sobre o objecto artístico, concebam, a par das matérias tidas es-
tritamente formais, os devastadores efeitos do capitalismo sobre as condições
de existência e experiência – e, como tal, produção artística – das mulheres,
cimentando-se um reconhecer da importância política de uma análise, teori-
camente adequada, dos fundamentos daquelas condições. Neste sentido se
sublinhou a necessidade de abertura da teoria da arte a uma nómada sub-
jectividade feminina – afim de um conceber da linguagem plástica e da obra
enquanto descentradas – ancorada num radical reequacionar do corpo no
contexto da prática artística e da produção teórica sobre ela. Em síntese, as-
sumindo-se um projecto interpretativo já muito distante de uma clássica cor-
respondência estrita entre objecto artístico e realidade objectiva, avançou-se
a necessidade de historização do objecto a interpretar, permitindo-lhe que
diga, não mais das intenções do autor, mas dos seus contextos de produção,
recepção e de objectos outros com os quais mantém dialógica relação.
Uma tal análise materialista da produção artística, informada pelo pers-
crutar das condições de existência e agência das mulheres, deve avançar-se
inclusivamente como radical resposta, a um tempo, ao caminhar, por parte
das teorias feministas no contexto académico, a contraproducente essen-
cialismo e idealismo, e às perniciosas tendências idealistas e a-históricas em
que se vê degenerar o pós-modernismo. Um forjar de estreita relação entre
feminismo e materialismo apresenta-se, ora, da maior premência face a um
feminismo académico ainda sobejamente cárcere de um idealismo e essen-
cialismo que se exime da investigação dos efeitos do capitalismo nas condi-
ções de existência e experiências das mulheres, e dos fundamentos daque-
las condições. Igualmente face a um feminismo culturalmente dominante no
panorama contemporâneo – um feminismo marcadamente liberal, de ênfase
na identidade e diferença enquanto entidades isoladas de qualquer enten-
dimento sistémico das forças sociais que afectam as vidas das mulheres – se

198
distancia terminantemente o feminismo materialista. Tal ofensiva ideológica
vem-se notando, identicamente, no menosprezar e marginalizar, por parte da-

JOANA TOMÉ | FEMINISMO MATERIALISTA: DA TEORIA DA ARTE ENCARNADA E DO FEMININO ENQUANTO LOCAL DE RESISTÊNCIA E RADICAL ENUNCIAÇÃO POLÍTICA
quele feminismo académico, do conhecimento produzido pela ligação entre
feminismo e marxismo, e da sua frutífera contribuição para uma teoria femi-
nista e para a mobilização política. Um feminismo materialista apresenta-se,
ademais, eficiente resposta aos perigosos traços idealistas e eminentemente
a-históricos que amarram o pós-modernismo a uma parálise e ineficácia de
acção política. Uma análise materialista histórica das representações de iden-
tidade – isto é, uma análise materialista da cultura e da obra de arte, informa-
da pelo perscrutar das concretas condições de existência e agência das mu-
lheres – apresentar-se-á apta a revogar tais traços. Dos valiosos contributos
pós-modernos, as práticas interpretativas que aqui se propõem devem man-
ter-se críticas, para lá deles se devendo caminhar.
Deste modo se espera abrir a teorização sobre o objecto artístico a leituras
radicalmente dissidentes, apontando as lacunas e silêncios do discurso domi-
nante, através de materiais forças de excesso e transgressão. É inscrevendo
corpos e contextos não-hegemónicos – locais de lutas, resistência e pontos
de fuga – que uma análise materialista histórica das representações de iden-
tidade frutiferamente se aliará a um premente pensar sobre a arte. A par de
Christine Delphy se defende – apesar da insistência da autora num entender
heteronormativo da mulher – o feminismo materialista enquanto derradei-
ra teoria histórica capaz de postular a opressão enquanto material (DELPHY,
1980: 87). Somente através de uma análise feminista materialista do objecto
artístico e dos sistemas de representação se desenhará prática interpretati-
va capaz de conceber a obra de mulheres artistas em toda a sua diversidade
de contextos e condições de produção, assim como condições de recepção.
Assim se abrirá caminho, não só a uma profunda transformação do olhar sobre
a obra de arte e do assumir, aí, de posição enunciativa feminina e feminista,
mas igualmente, e em última análise, uma potencial transformação das con-
dições de produção, apresentação e recepção das obras criadas por mulhe-
res, consubstanciando a produção artística e a prática interpretativa enquanto
possibilidade de efectivo activismo político: uma tal transformação não pode
senão efectivar-se radical resistência à presente conjuntura neoliberalista que
irreversivelmente exclui as mulheres – e, em particular, as mulheres nas mais
desfavorecidas posições de classe – da recepção e produção de cultura.

199
Notas
1
Quais os estudos de género, os estudos
pós-colonialistas, os estudos culturais, a
teoria queer, entre vasta pluralidade de
outros.

Referências Bibliográfias

BARTHES, Roland (1977), “The Death of the


Author”, in HEATH, Stephen (ed.), Image
Music Text, Londres: Fontana.

BRAIDOTTI, Rosi (1994), Nomadic Subjects


CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

– Embodiment and Sexual Difference in


Contemporary Feminist Theory, Nova
Iorque: Columbia University Press.

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Mil Planaltos: Capitalismo e Esquizofrenia
2, Lisboa: Assírio e Alvim.

DELPHY, Christine (1980) “A Materialist


Feminism is Possible”, Feminist Review,
Volume 4, Número 1, pp. 79–105.

HENNESSY, Rosemary e INGRAHAM,


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Lives, Londres e Nova Iorque: Routledge.

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Londres e Nova Iorque: Routledge.

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(1993), Materialist Feminisms, Cambridge e
Osford: Wiley-Blackwell.

MARX, Karl (1994), Karl Marx: Selected


Writings, Cambridge: Hackett Publishing
Company.

MOI, Toril e RADWAY, Janice (1994),


“Editor’s Note”, The South Atlantic
Quarterly, Outono.

200
Da Arte como intervenção à
Educação Artística no sentido de
uma consciência social crítica
Ana Sousa
Professora Auxiliar Convidada, Faculdade de Belas-Artes,
Universidade de Lisboa. Investigadora lntegrada no CIEBA
[email protected]

In this article, we will begin by,


on the one hand, evoking the
Da Arte como Intervenção diversity of the interventive
É sobretudo a partir de finais do século XIX dimension of the work
que alguns artistas vêm a assumir, com maior ou developed by some artists and,
on the other hand, evoking the
menor intencionalidade, de modo mais ou menos
most recent understanding on
explícito, um posicionamento declarado ou vela-
the professor as an intellectual
do sobre questões locais ou globais e até sobre
critic, so that following that
a própria arte. Os casos que evocamos de segui- we may look at the tendency
da pretendem demostrar o quão diversa tem sido toward an artistic education
a dimensão interventiva de artistas pertencentes geared towards a social
a diferentes épocas e contextos, não se tratando conscience.
evidentemente de uma genealogia e não impli- Within this scope, we will
cando juízos de valor estético. Exemplos de obras establish relationships
ou escritos de artistas são os manifestos futuristas, between studies within the
de Filippo Tommaso Marinetti (1909) e de Almada domain of visual culture and
the first proposals of artistic
Negreiros (Manifesto Anti-Dantas, 1916); dadaís-
education through visual
ta, de Tristan Tzara (1918); e surrealistas, de André
culture, originating in the
Bréton (1924 e 1929); Ceci n’est pas un pipe, de
United States of America, in the
René Magritte (1928 e 1929), obra que vem ques- '60's of the 20th Century.
tionar a pintura enquanto ilusão da realidade; A As well as this, we will question
fonte, mais conhecida como O urinol, de Marcel the existence of a «visual
Duchamp (1917-1964), obra que coloca em causa culture prior to visual culture»
a natureza da arte enquanto objeto único e original (Ana Mae Barbosa, 2011) and
e se torna um ícone da arte concetual; as pinturas it's problematization within the
murais de Diego Rivera, Jose Clemente Orozco e national context, as preconized
David Alfaro Siqueiros que, nas décadas de 20 e by Rocha de Sousa.
30 do século XX, registam o grande movimento so- Finally, we will present the
example of a recent school
cial e político mexicano; ou ainda, o Manifesto de
practice, which we can
Istambul, no qual Leonel Moura, Henrique Garcia

201
encompass in the paradigm of Pereira e Ken Rinaldo (2011) defendem uma arte
education through visual culture: para lá da humanidade.
The Remake of the Saint Vincent No domínio da fotografia, têm sido desen-
Panels (2016), developed by volvidos alguns trabalhos que, quer pelo teor
students of a Portuguese secondary
das suas temáticas, quer pela intencionalidade
school, and we will also evoke
que lhes subjaz, traduzem visões críticas sobre a
some non-formal practices, that we
atualidade, colocando em evidência problemáti-
believe constitute «counter-culture»
movements.
cas do foro eminentemente político ou situações
que, muitas vezes, fazem parte do nosso quoti-
diano, com as quais convivemos, mas raramen-
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

te questionamos. Como exemplo das primeiras,


podemos citar o jovem artista queniano James
Mollison (1973-), autor do projeto What refugees
carry with them (2015), no qual apresenta, lado
a lado, o retrato de refugiados e de objetos por
eles selecionados [Fig. 2], muito antes de figu-
ras públicas e do cidadão comum serem inter-
pelados com a questão: “E, se fosses refugiado,
o que levarias contigo?”, cujos resultados foram
amplamente difundidos pela comunicação so-
cial. Ao mesmo autor pertence a série fotográfica,
de caráter social, intitulada Where children sleep
(2007-2009), que implicou conhecer e fotografar
crianças e os seus respectivos quartos, localizados
em diferentes locais do mundo, à semelhança do
projeto Toy Stories (2012-2014), do artista italiano
Gabriele Galimberti (1977-). Embora não se dire-
cionem para nenhum acontecimento político em
particular, estes trabalhos pretendem evidenciar
a diversidade e desigualdade que há no mundo,
neste caso, na infância, remetendo para preocu-
pações que pertencem à esfera política global.
Fig. 1 – James Mollison, Where children
sleep (2007-2009) Como exemplos da segunda categoria – si-
Disponível em http://jamesmollison.com tuações do nosso quotidiano que raramente
questionamos –, evocamos os projetos Removed
(2014-2016) da autoria do jovem americano Eric
Pickersgill (1986) e Hide and Seek (2015), desen-
volvido pelo jovem polaco Kamil Kotarba (1990-),
ambos centrados na falta de interação humana
característica da era digital.
Imersos nos contextos históricos e sociais em
que foram concebidos, estes trabalhos-manifesto
materializam pensamentos de rutura, constituem

202
ações/reações a acontecimentos do seu tempo
(as guerras, a insustentabilidade dos sistemas
políticos, a evolução científica e tecnológica, a
fragilidade das relações humanas na era digital,
entre outros) e contribuem para uma reconcep-
tualização da arte face ao mundo na qual é pen-
sada, criada e fruída, ou participada, numa rede

ANA SOUSA | DA ARTE COMO INTERVENÇÃO À EDUCAÇÃO ARTÍSTICA NO SENTIDO DE UMA CONSCIÊNCIA SOCIAL CRÍTICA
de relações que tende a aproximar cada vez mais
os seus intervenientes. São por isso obras dos
seus autores, mas também obras do mundo, de Fig. 2 – James Mollison, What refugees
todos nós, que nos questionam não apenas sobre carry with them (2015)
Disponível em http://jamesmollison.com
a arte, mas sobretudo sobre a vida.

Dos Professores como Profissionais Críticos


Os professores reflectirem sobre a sua práti-
ca também não constitui novidade. Nas últimas
décadas, o slogan da reflexividade foi inúmeras
vezes aclamado na formação de professores, o
que levou educadores, como António Nóvoa
(2001) e Kenneth Zeichner (2008) a questionar
aquilo que consideram uma «moda». Para Nóvoa
(2001), é impossível alguém imaginar uma pro-
fissão docente em que as práticas reflexivas não
existissem, sendo que estas, por si só, não cons-
tituem mudança. Mais do que proclamar a refle-
xividade, é necessário promover condições para
que esta se desenvolva:

«A experiência é muito importante, mas a


experiência de cada um só se transforma em
conhecimento através desta análise sistemá-
Fig. 3 – Eric Pickersgill, Removed (2014-
tica das práticas. Uma análise que é análise 2016)
individual, mas que é também coletiva, ou Disponível em http://www.removed.social
seja, feita com os colegas, nas escolas e em
situações de formação».

Porém, os professores refletirem e posiciona-


rem-se coletivamente, ou contribuírem para que
os seus alunos assumam um papel politicamente
situado no mundo em que vivem, não constitui
uma prática comum ao longo da história da edu-
cação. Na verdade, ainda hoje, muitos professo-
res, e muitos daqueles que estudam para vir a

203
sê-lo, continuam, como Tabachnick, Popkewitz e
Zeichner (1979-1980) constaram há quase quatro
décadas, a não conceber o ensino como «uma ati-
vidade moral ou ética» da qual são responsáveis,
mas antes como «um processo meramente técni-
co», com vista aos momentos avaliativos, assumin-
do-se como meros transmissores de conteúdos
e reprodutores de práticas que não questionam.

«Um dos resultados das nossas pesquisas foi


CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

que muitos estudantes, apesar de tecnicamente


Fig. 3 – Eric Pickersgill, Removed (2014- competentes em sala de aula, eram demasiado
2016) preocupados com passar o conteúdo de uma
Disponível em http://www.removed.social
maneira mais tranquila e organizada. Eles não
pensavam muito sobre o porquê de fazerem
aquilo que faziam, se aquilo que ensinavam
representava uma seleção de um universo
muito mais amplo de possibilidades e como
os contextos em que ensinavam facilitavam
ou não certos tipos de prática. Na maioria
das vezes os nossos estudantes não tinham a
menor ideia de onde os currículos vinham e
tampouco pareciam se preocupar com isso».
(Tabachnick, Popkewitz & Zeichner, 1980)

Para Zeichner (2008), por detrás da reflexi-


vidade, proposta na maioria dos programas de
formação de professores em todo o mundo, en-
contram-se camufladas perspectivas com inten-
cionalidades diferentes, por vezes opostas: umas
no sentido da emancipação e mudança social,
outras (paradoxalmente) no sentido do controlo
e da persistência das políticas educativas, com
vista à conservação de um determinado perfil
de cidadão e modelo de sociedade.

«Infelizmente, na minha visão, a maior parte


do discurso sobre a “reflexão” na formação
docente hoje, mesmo depois de todas as
críticas, falha ao deixar de incorporar o tipo
de análise social e política que é necessária
para visualizar e, então, desafiar as estruturas
que continuam impedindo que atinjamos

204
objetivos mais nobres como educadores. (...) O propósito de se trabalhar
para a justiça social é uma parte fundamental do ofício dos formadores
dos professores em sociedades democráticas e não deveríamos aceitar
outra coisa, a não ser algo que nos ajude a progredir em direção a essa
realização». (Zeichner, 2008, p. 548)

Para o docente e investigador americano, perante o cenário contempo-

ANA SOUSA | DA ARTE COMO INTERVENÇÃO À EDUCAÇÃO ARTÍSTICA NO SENTIDO DE UMA CONSCIÊNCIA SOCIAL CRÍTICA
râneo de uma «sociedade desigual e injusta», que se encontra «estratificada
em termos de raça, língua, etnia, género», deveria constituir uma obrigação
moral, para os formadores de professores, «não apenas prestar atenção a as-
suntos sociais e políticos, mas tornar esses assuntos, desde o início, preocu-
pações centrais no currículo dos cursos».
Numa perspectiva social-reconstrutora da formação de professores, a
reflexão é concebida enquanto indagação, isto é, não como «mera activida-
de de análise técnica ou prática», mas associada a «um compromisso ético e
social de procura de práticas educativas mais justas e democráticas» (García,
1999[1995], p. 44). Assim, a atitude reflexiva sobre a prática que Zeichner pro-
põe, ao ultrapassar a passividade do simples pensamento e (re)posicionar-
-se claramente para a acção, afasta-se de outros modos de reflexão, designa-
damente da introspecção, exame e espontaneidade, próprios de diferentes
modelos de formação.
Neste sentido formativo, os professores são entendidos como «activistas»,
pessoas comprometidas com o seu tempo e responsáveis pelo futuro da so-
ciedade, determinado pelas suas acções. Deste modo, os conteúdos dos pro-
gramas de formação orientados para a «indagação» incluem, normalmente,
conceitos como sociedade, hegemonia, poder, construção social do conheci-
mento e reprodução cultural, que servem de estrutura para o questionamento
dos processos educativos, normalmente assumidos como naturais e válidos.
A partir da reconceptualização das suas crenças, fruto de um constante olhar
crítico sobre as práticas, os professores que seguem esta orientação irão cons-
cientemente continuá-las ou modificá-las, nunca deixando de tomá-las como
objecto de reflexão e, consequente, reconstrução.
No que respeita à formação de professores de artes visuais, alguns do-
centes têm efectivamente operado no sentido de contribuir para que os alu-
nos, professores em formação, sejam capazes de estabelecer relações entre
as crenças que trazem consigo para os cursos e as práticas que já desenvol-
vem ou irão no futuro desenvolver, que se encontram imbuídas de posicio-
namentos políticos, não só em relação à arte, mas também aos sujeitos que
ensinam e aprendem e à sociedade que pretendem promover.
Kit Grauer, docente e formadora no Canadá, é autora da tese Beliefs of
pre-service teachers towards art education (1995), tema que também interes-
sou à portuguesa Margarida Rocha, autora Educação em arte - concepções e
práticas: um estudo sobre o acto educativo de professores do 2º ciclo do ensino

205
básico (2001). Para estas autoras é essencial desconstruir as relações entre
conceções e práticas no ensino das artes visuais, sendo evidente a conexão
entre o que os professores entendem por arte, ensino e aprendizagem das
artes visuais (algo que advém das suas experiências prévias) e a sua acção em
sala de aula que, por sua vez, irá condicionar as concepções dos seus alunos.
Na mesma linha de pensamento, Fernando Hernández (2005a, p. 35), do-
cente na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Barcelona, sublinha
que os professores devem questionar-se sobre o «papel» que querem exercer
neste mundo, não esquecendo que existe uma esfera que lhes pertence: a da
relação que estabelecem com os alunos. Nesse sentido, desenvolve estraté-
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

gias que levam os professores em formação, a aperceber-se das «conceções


e modelos teóricos subjacentes às suas práticas, observações e dizeres» que,
no seu entender, «atuam como lentes», condicionando o modo como inter-
pretam a realidade e orientam as suas ações.
A investigação que desenvolvemos, Novos paradigmas, novas práticas?
A didática na formação de professores de artes visuais (Sousa, 2016), centra-
-se em quatro anos de docência de Didáctica das Artes Plásticas I e II, unida-
des curriculares do Mestrado em Ensino de Artes Visuais da Universidade de
Lisboa, e vai beber precisamente às teses das autoras acima mencionadas
(Grauer, 1995; Rocha, 2001), assim como, entre outras referências, à aborda-
gem proposta por Hernández (2005a), procurando levar os discentes a esta-
belecer relações entre o ensino que experimentaram (como alunos) e o en-
sino que já desenvolvem ou começam a desenvolver (como professores em
formação), contribuindo assim para que se posicionem, de modo conscien-
te e crítico, em relação às práticas e, com elas, às concepções e valores, que
pretendem promover.
Outra autora que nos influenciou foi María Acaso, docente na Faculdade
de Belas-Artes da Universidade Complutense de Madrid que, num pequeno
vídeo intitulado Visiones disruptivas de la educación, publicado na plataforma
Youtube em Agosto de 2011, apela a que professores de artes visuais de todo
o mundo «reflictam sobre se as metodologias que utilizam para implementar
os seus projetos pedagógicos foram escolhidas livremente ou simplesmente
assimiladas a partir do sistema de reprodução tradicional». Lançando, por fim,
o desafio: «Reflectem de forma habitual sobre o vosso processo educativo?
Se sim, gostaria que me enviassem um manifesto docente». À semelhança de
Marín-Viadel (1998, p. 26), Acaso apercebe-se de que, nas escolas, os exer-
cícios de artes visuais se repetem, ano após ano, sem qualquer adaptação,
ajuste ou inovação, e expressa a sua apreensão perante aquela que considera
uma tendência acrítica de reprodução das práticas pelas quais os professo-
res foram ensinados: que «a maioria das vezes, [os professores] não gostam
delas, mas, simplesmente, por reprodução, levam-nas a cabo» (2011, 4’45’’-
4’55’), incitando os professores a questionarem o que tomam como natural
e a assumirem uma posição própria em relação ao ensino das artes visuais.

206
Este desafio viria a constituir, por sugestão dos nossos alunos, um dos exer-
cícios desenvolvidos em Didática das Artes Plásticas I, no segundo semestre
de 2010-2011 e, mais tarde, o tema central de Didática das Artes Plásticas II,
no primeiro semestre de 2013-2014, do qual resultou uma primeira exposi-
ção intitulada Manifestações pedagógicas. A arte pensa a educação (Galeria
da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, Março de 2014). De
referir ainda que esta iniciativa acabou por transformar-se num movimento

ANA SOUSA | DA ARTE COMO INTERVENÇÃO À EDUCAÇÃO ARTÍSTICA NO SENTIDO DE UMA CONSCIÊNCIA SOCIAL CRÍTICA
de «contra-cultura» participado por artistas e professores de diferentes par-
tes do mundo.

A Educação Artística no Sentido de uma Consciência Social


Até aqui procurámos evidenciar como, quer na arte, quer na educação,
e especificamente na formação de professores, com destaque para a dos
professores de artes visuais, é possível identificar práticas com intencionali-
dade de transformação social, simultaneamente reveladoras e promotoras
de uma consciência crítica. E nas escolas? E na vida escolar? De que modo
as intervenções artísticas mais recentes e as potencialidades das novas vi-
sualidades que caracterizam as sociedades contemporâneas têm influencia-
do uma outra educação? Que repercussões têm os novos paradigmas da
formação de professores nas práticas docentes? Será que o modo como os
nossos alunos são ensinados nas escolas básicas e secundárias do século
XXI tem caminhado no sentido de uma mais profunda consciência social?
Ou será que esta consciência já começou a ser trabalhada nas escolas há
muito tempo, à semelhança do que sugere Marín Viadel (1998, p. 26), atra-
vés da procura de uma maior proximidade entre arte e vida, escola e vida?
Se sim, quando? Quando é que as práticas artísticas com sentido social e/
ou o pensamento crítico sobre as práticas artísticas ou as «novas» visuali-
dades, que integram o que se considerou designar como «cultura visual»,
germinaram na vida das comunidades e começaram a ser transpostas para
o contexto escolar? Associam-se aquelas práticas e aquele pensamento a
algum movimento educativo? Teve esse movimento continuidade? Foi in-
terrompido? Com que outros se cruzou? Será que só agora retoma/encon-
tra lugar? Qual tem sido a trajetória internacional das práticas escolares que
podemos associar a uma intencionalidade de transformação social e em que
contexto surgiram no nosso país?
É no século XIX, através dos princípios das common schools, que a educa-
ção começa a ser defendida como via de transformação social. Implementadas,
tanto na Europa, como nos Estados Unidos, no início do século XX, estas
escolas eram suportadas financeiramente pelos estados e visavam a demo-
cratização do ensino. Um dos pioneiros deste sistema foi Horace Mann, que
advogava o ensino do desenho, não só como processo de apuramento da
caligrafia e de uma destreza manual essencial à atividade industrial, mas
também como meio de desenvolvimento da «força moral».

207
Porém, é durante a Grande Depressão que, nos Estado Unidos, no final da
década de vinte do século XX, se acentuam as preocupações com a recons-
trução social. É neste contexto que irrompe a corrente social-reconstrutora da
educação artística (Efland, 1990), fortemente influenciada pelo movimento da
educação progressiva (escola nova), preconizado por Francis Parker (1837-
1902) e continuado por John Dewey (1859-1952), através da disseminação
do conceito de experiência (Art as experience, 1934).

«Dewey entendia como experiência o conjunto de encontros que tor-


nam possível a reconstrução do conhecimento e, em última instância,
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

a reconstrução da própria sociedade. Assim sendo, também a arte era


por ele considerada reconstrutora, revelando-se não apenas uma mera
expressão pessoal, mas um meio de transformar a vida do indivíduo e da
sociedade. Enquadrada por estas premissas a arte era vista como uma
ferramenta com a qual seria possível resolver problemas do contexto fa-
miliar, escolar ou da própria comunidade e nesse sentido o foco estava
na arte enquanto parte integrante da actividade humana e não como um
fenómeno isolado». (Silva, 2010, p. 17).

Como reação à rigidez da escola normalizada, os social-reconstrutores


propõem uma educação assente no respeito pelo desenvolvimento natural
das crianças e jovens e no entendimento destes enquanto sujeitos que explo-
ram, mas que também podem intervir ativamente no meio em que habitam.
Para tal, a aprendizagem deveria partir, por um lado, das suas motivações e
necessidades intrínsecas, e, por outro lado, de problemas concretos, ineren-
tes à vida na comunidade.
Igualmente defensor de uma educação que respeitasse a relação natu-
ral entre arte e vida, Melvin Haggerty constitui outra figura incontornável no
contexto do movimento social-reconstrutor da educação artística, nos anos
30 do século XX. Autor de Art, a way of life (1935), Haggerty entende a arte
não apenas como algo intrínseco à vida quotidiana de todos os seres huma-
nos, mas também como um meio através do qual é possível melhorar o modo
como vivemos e nos relacionamos em sociedade.
Porém, de acordo com Silva (2010, p. 17), este primeiro ímpeto reconstru-
tor da educação artística, preconizado por autores como Francis Parker, John
Dewey e Melvin Haggerty, não teve desde logo aceitação, sendo alvo de al-
gumas críticas, nomeadamente «a alegação de que a arte se tinha tornado
subserviente de outras disciplinas, perdendo a sua autonomia para efeitos de
interdisciplinaridade» e a constatação de que os professores não estariam pre-
parados para trabalhar de acordo com um método de aprendizagem da arte
integrado pois, «além de polivalentes nos seus conhecimentos, deveriam en-
sinar num ambiente de grande cooperação com os seus pares», prática que,
como já vimos, ainda hoje não se encontra generalizada.

208
Curiosamente, Herbert Read (1893-1968), um dos pioneiros do movimento
de educação pela arte, que se inscreve, de acordo Arthur Efland (1990), numa
corrente diversa da educação artística, a expressiva-psicanalítica, centrada no
sujeito enquanto criador genuíno, também reconhece (2001 [1943], pp. 329 e
330) a dimensão política da educação e, por conseguinte, a responsabilidade
dos professores enquanto sujeitos que influenciam a sociedade, através do
modo como decidem intervir no meio onde actuam.

ANA SOUSA | DA ARTE COMO INTERVENÇÃO À EDUCAÇÃO ARTÍSTICA NO SENTIDO DE UMA CONSCIÊNCIA SOCIAL CRÍTICA
«A eficiência da nossa mediação é, até certo ponto, dependente da nossa
capacidade de modificar o meio ambiente. A educação, na verdade, é in-
separável da nossa política social como um todo. (...) [Apenas se formos]
conscientes das necessidades comuns da comunidade e dos direitos e
responsabilidades que nos tocam como cidadãos, poderemos ser bons
educadores. É duvidoso que um trabalhador de qualquer área (...) possa
trabalhar efectivamente em isolamento. (...) Mas isto é válido, acima de
tudo, para o professor».

Nos anos sessenta do século XX, a tendência reconstrutora da educação


artística ganha novo ânimo, a nível internacional, com contestações sociais e
políticas como os movimentos de defesa dos direitos humanos e de libertação
das mulheres. Nesta época, é questionada a correspondência entre o ensino
ministrado nas escolas e as verdadeiras necessidades sociais, propondo-se
redes de aprendizagem alternativas, mais democráticas e inclusivas, que ti-
vessem lugar no seio das comunidades.
É neste contexto que, segundo Silva (2010, p. 18) surge o movimento
Arts-in-Education:

«(…) a arte não era entendida como uma disciplina mas sim uma experiên-
cia potenciada pela participação no processo artístico ou testemunhando
esse mesmo processo no trabalho de artistas. A ênfase era dada às artes
no plural; à interdisciplinaridade enquanto estratégia de partilha de sabe-
res entre as artes e as restantes disciplinas; ao reconhecimento de outras
instituições, nomeadamente os museus e a própria comunidade, como
recurso para os programas escolares; e à presença de artistas profissio-
nais no espaço da escola. O objectivo deste movimento era promover a
relação dos alunos com a prática artística, sendo a acção valorizada em
detrimento da contemplação».

Para Silva, enquadram-se ainda na corrente reconstrutora duas propos-


tas de reforma educativa que surgiram, nos Estados Unidos, nos anos setenta
e oitenta do século XX: Qualitative Inquiry e Teoria Crítica. A última colocou
em causa o currículo escolar enquanto meio de reprodução e manutenção
das estruturas socioeconómicas dominantes, fundamentando-se em teorias

209
marxistas e pós marxistas. Foi precisamente no contexto da emergência da
Teoria Crítica que, em 1982, surgiu a associação The Caucus on Social Theory,
fundada por professores como Vincent Lanier (1920-1997), considerado (Tavin,
2005; Chalmers, 2005) um dos principais precursores da cultura visual na edu-
cação artística, a par de June King McFee (1917-2008).
June King McFee (1961, p. 6) foi das primeiras a reconhecer, sob uma pers-
pectiva de educação não formal, o potencial didáctico dos lugares quotidianos,
ao afirmar «uma criança ao descer a rua de uma cidade aprende visualmente
sobre a sua cultura». Para além disso, debruçou-se e pronunciou-se sobre os
efeitos da «cultura popular» nas crianças e jovens. Para a educadora artística e
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

investigadora, o contacto com esta, não só fomentava neles uma «postura acrí-
tica», como poderia revelar-se, por vezes, nocivo, razão pela qual defendeu a
sua introdução como conteúdo nas escolas.
Já Vicent Lanier (1968, citado por Chalmers, 2005) valorizava a «cultura po-
pular» como algo relevante no quotidiano das crianças e jovens, pelo que de-
fendia a sua inclusão no currículo de educação artística como uma forma eficaz
dos professores se aproximarem dos alunos, tornando assim a aprendizagem
significativa. Lanier chegou mesmo a afirmar (1969, citado por Tavin, 2005, p. 8),
em tom provocatório, que «quase tudo o que fazemos actualmente no ensino
da arte nas escolas é inútil… as aulas de arte são infrutíferas e sem significado
para a maioria dos jovens». Para o educador (1968, citado por Chalmers, 2005,
p. 9), embora muitos dos alunos não interagissem com as belas-artes conforme
estas são concebidas pelos professores, o seu fascínio por rock and roll, banda
desenhada, certos filmes e programas de televisão ou até pelo estilo dos seus
ídolos, revelava que não se encontravam assim tão alheios e insensíveis aos
aspectos visuais do mundo que habitavam. Para além da introdução da «cultu-
ra popular» na educação artística, Vicent Lanier (1970) reconhecia o potencial
expressivo e interventivo dos novos media, naquela época, a fotografia, a tele-
visão e os computadores) pelo que advogava a sua utilização, não só enquan-
to recurso didáctico, pelos professores, mas também como ferramentas, pelos
alunos, na sua prática artística. Para o professor, influenciado pela Teoria Crítica
(Efland, 1990), os benefícios da introdução da «cultura popular» nos programas
escolares não se limitavam à prevenção dos seus potenciais efeitos nocivos,
quando democratizada pelos media, como propõs June King McFee (1961).
Através da prática artística, centrando-se em questões colocadas pela «cultura
popular» e recorrendo aos próprios meios que a veiculam, os alunos podiam
posicionar-se criticamente e manifestar as suas ideias sobre o mundo. Neste
sentido, podemos afirmar que Vicente Lanier acreditava nesta abordagem en-
quanto estratégia educativa e política, com vista à emancipação dos alunos e,
por conseguinte, à mudança social, partindo de uma dimensão micro e local (a
pessoa de cada aluno, o contexto de cada escola) e estendendo-se para uma
dimensão macro e global (a educação e a sociedade num todo) ou, como diria
Fernando Hernández, das margens para o centro.

210
De acordo precisamente com este professor e investigador espanhol
(2005b, p. 13), existem tendências da cultura visual essencialmente académi-
cas, como a de Walker e Chaplin (2002), e outras de natureza política, como a
de Mirzoeff (1999, 2003). As primeiras correspondem a mudanças que ocor-
reram no interior das disciplinas, por influência do pós-estruturalismo, en-
quanto as segundas consistem numa praxis educativa-política, que visa «dotar
os cidadãos de formas de resistência», perante o domínio das novas formas

ANA SOUSA | DA ARTE COMO INTERVENÇÃO À EDUCAÇÃO ARTÍSTICA NO SENTIDO DE UMA CONSCIÊNCIA SOCIAL CRÍTICA
de representação homogeneizadoras e hegemónicas da realidade e de nós
mesmos, produzidas pelas «novas visualidades». Próximo deste último enten-
dimento, Hernández (2005b, pp. 21-25) propõe uma abordagem da cultura
visual enquanto «táctica de resistência».

«Esta noción de ‘táctica’ procede Michel de Certeau (1984), y se coloca


en el análisis que Mirzoeff (1999a, p. 8-9) realiza de la insuficiencia de la
noción del ‘mundo como imagen’ de Hidegger (1977) y de su inadecua-
ción para analizar la situación de la imagen en el mundo contemporáneo».
(Fernando Hernández, 2005b, p. 21)

A partir de uma compreensão de cultura visual como «estructura inter-


pretativa fluida, centrada en la respuesta a los medios visuales, tanto de indi-
viduos como de grupos» (Mirzoeff, 1999, p. 4, citado por Hernández, 2005b,
p.12), Fernando Hernández define a sua praxis como um modo de «explorar
las ambivalencias, intersticios y lugares de resistencia en la vida diaria postmo-
derna desde la perspectiva del visualizador», o que ultrapassa o território aca-
démico da universidade, para «interactuar con la vida diaria de las personas».
Para Maria Letsiou (2012, s/ p.), as actuais abordagens didácticas assentes
na cultura visual têm raízes na ideologia da reconstrução social:

«Parker and Dewey regarded school as a learning community where em-


phasis is put on the improvement of the individuals and the involvement of
the community itself. (…) In our days, social reconstruction was applied to
teaching in visual culture, since it was realised that critical abilities are very im-
portant in a society that is dominated by a flood of images and information».

A educação pela cultura visual, enquanto «táctica de resistência» (Hernández,


2005b, 21-25), inscreve-se assim na já «velha» procura de um «novo» paradig-
ma educativo, centrado nos interesses dos alunos, com vista a uma aprendi-
zagem significativa, realizada a partir de situações concretas, de preferência
em torno das suas experiências, no seio da comunidade, como proposto por
Parker e Dewey, na América dos anos 30 do século XX.
À semelhança da história do ensino do desenho (Betâmio de Almeida,
1961, p. 61), também a história da educação pela cultura visual, «como tudo
o que é vivo», não corresponde a «uma sucessão de momentos distintos, mas

211
antes um processo de soluções em cadeia em que cada elo liga a um que
prende o passado, e a outro que anuncia o futuro».
Considerando o pensamento da Escola de Frankfurt e designadamen-
te a proposta de substituição do tradicional ensino das artes pelo estudo da
comunicação visual, com o propósito de estimular nos alunos uma consciên-
cia crítica, a partir da qual fosse possível reagirem à crescente sociedade de
consumo, apresentada, no início dos anos 70, por Hermann Ehmer e Hein
Möller, concordamos com João Pedro Fróis (citado por Silva, 2010, pp. 76-
77) quando questiona
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

«(…) se a proximidade entre as actuais propostas da cultura visual na edu-


cação artística e as apresentadas na Europa no início da década de setenta
por Hermann Ehmer e Hein Möller, não revelam que as preocupações com
questões sociológicas, políticas, culturais ou económicas, que também a
enquadram a Cultura Visual, não estão há muito definidas na literatura da
educação artística».

No contexto português, é na voz de Rocha de Sousa (autor que se desta-


ca, enquanto artista e professor do ensino superior artístico, que desenvolve
pensamento pedagógico e operacionaliza esse pensamento em termos di-
dácticos, participando na elaboração de programas, bem como de manuais,
tanto para alunos, como para professores, orientados para níveis de ensino
anteriores e diversificados), que encontramos vestígios (os primeiros de que
temos conhecimento) de uma potencial «cultura visual antes da cultura visual»
(Ana Mae Barbosa, 2011), sendo possível reconhecer algumas semelhanças
entre as suas propostas, quer para o 2º e 3º ciclos do ensino básico (então
preparatório) e secundário, quer para o ensino superior, e as preconizadas por
autores como June King McFee (1961) e Vincent Lanier (1968, 1970).
Assim, é inevitável que estabeleçamos um paralelo entre a célebre afirmação
de June King McFee (1961, p. 6) e o discurso de abertura do tão amplamente
difundido T.P.U. 19., onde o pedagogo português distingue «olhar» de «ver»:

«Quando se fala de visão não se fala apenas da capacidade de olhar –


essa espantosa capacidade que nos permite registar as sensações e as
percepções visuais. Nós podemos passar dias seguidos numa certa rua,
sensíveis visualmente ao aspecto global dessa rua, sem tomar consciência
de muitos dos sinais e características particulares dessa parte do meio ur-
bano. De certa forma, podemos então dizer que o nosso olhar funciona ao
nível das sensações, e mesmo das percepções, mas que não tivemos uma
consciência visual profunda de lugar. Ver é mais do que isso. Ver é ir ao
encontro das coisas, a coordenação consciente dos diferentes olhares, das
diferentes sensações, das diferentes percepções, das próprias memórias
que nos informam os actos e das escolhas». (Rocha de Sousa, 1980, p. 11)

212
Para, seguidamente, associar a acção de «ver» a outras, como as de «jul-
gar», «compreender» e «escolher», chegando mesmo a reconhecer que, neste
processo, «embora o mecanismo da visão seja praticamente o mesmo em
todas as pessoas, o juízo que elas fazem do mundo em redor difere de caso
para caso», pois «nem todas as pessoas estão de posse dos mesmos dados»,
sendo condicionadas pelas experiências que viveram, as memórias que cons-
truíram e os conhecimentos que mobilizaram até então, que lhes permitem,

ANA SOUSA | DA ARTE COMO INTERVENÇÃO À EDUCAÇÃO ARTÍSTICA NO SENTIDO DE UMA CONSCIÊNCIA SOCIAL CRÍTICA
de modo mais ou menos consciente, posicionarem-se perante o que vêem e
agirem sobre o que lhes acontece.
Esta perspectiva, claramente próxima de uma abordagem reconstruto-
ra, é assumida, quer nos escritos que acompanham a reforma curricular que
ocorre na então Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa no pós 25 de Abril,
quer nos programas que Rocha de Sousa concebe para disciplinas do ensino
secundário e do ensino superior. Assim, embora o programa de Tecnologia da
Expressão e Práticas de Representação, iniciado em 1979-1980, se concentre
numa didáctica «formalista-cognitiva» (Efland, 1990), não deixa de salvaguar-
dar alguns aspectos que incitam a uma relação estreita com a comunidade e
com o meio onde a aprendizagem da disciplina ocorresse.

«Mas um programa não pode ser um manual (…) por isso ele se restringe
sobretudo a propor, abrindo organicamente caminho, sem dirigismo, à
invenção de tarefas por parte dos professores, nas quais seja mesmo pos-
sível o tratamento simultâneo de dois ou três assuntos. (…) a orientação
pedagógica da disciplina terá assim em conta, sempre que possível, os
contactos com a realidade viva, visitas a ateliers e centros de produção,
apreciação de exposições e de museus, a concordância com o ambiente
e os seus condicionamentos. (…) Estes problemas passam naturalmente,
pela análise prévia dos problemas de fundo de cada capítulo essencial e
simultaneamente por uma sensibilização no contacto com a realidade».

Estes aspectos tornam-se ainda mais evidentes num texto de apoio à dis-
ciplina, no qual Rocha de Sousa (1979, p. 1) afirma peremptoriamente que
«todo o objecto de arte é um objecto de civilização», na medida em que «o
discurso implícito naquele objecto é testemunho de um modo particular de
estar no mundo, de (…) construir a vida e a visão dela, dos processos sociais,
políticos e culturais que são (ou foram) suporte de um itinerário colectivo»,
com determinado contexto histórico. Por conseguinte, para o pintor, pedago-
go e didácta das artes visuais, «os operadores artísticos são de facto agentes
de civilização», que necessitam de articular conhecimentos e competências
várias, «para intervir interdisciplinarmente, pluridisciplinarmente, no meio
onde vivem». De acordo com Rocha de Sousa (1979, p. 2), esta (re)definição
do conceito de artista, como «ser para a sociedade», «prende-se com o de-
senvolvimento tecnológico» experimentado no século XX, que se repercutiu

213
na sua formação e no papel que passou a assumir no «espaço comunitário»,
a par de «outros operadores», contribuindo, através da sua intervenção social
e cultural, «para a melhoria da qualidade de vida».
No que concerne ao ensino superior, mencionamos alguns excertos do
programa (em vigor até 1989) de Iniciação às Artes Plásticas e ao Design,
disciplina de que foi coordenador. Assim, no início da sinopse da «unidade
audio-visual» Projecto Artístico (p. 1), podemos ler o intento de «abordar a
realidade do projecto artístico, no espaço cultural de diversos contextos e si-
tuações históricas, segundo uma perspectiva de significação e uso movente
ou relativista», expressões com as quais pretende explicar que «todo o ob-
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

jecto artístico é, com efeito, um objecto em movimento». Porém, para além


de «não [cessar] de se transformar no tempo social e no tempo histórico», o
objecto artístico, para Rocha de Sousa é também ele transformador, pelo que

«A ideia dominante desta proposta inicial viria assim a conferir à obra


de arte, fosse ela de pintura, de escultura, de arquitectura ou de outra
área de construção/expressão, uma dinâmica específica, uma dimensão
(que lhe é intrínseca) de mudança e de projecto; teríamos então objec-
to como projecto».

Propõe então a exploração de dois conceitos, «o de obra em ruptura e o


de obra integrada», evocando Apocalípticos e Integrados (1965), obra na qual
Umberto Eco apresenta uma série de ensaios sobre a cultura de massas na
era tecnológica, distinguindo «as obras que tentam escapar às convenções, às
apropriações culturalistas ou de mercado», daquelas que «se integram no fluir
das necessidades colectivas». Como método de trabalho, sugere o «processo
modular» de Munari, associado normalmente ao design e à arquitectura, mas
igualmente pertinente para o desenvolvimento de projectos de outras áreas ar-
tísticas, nomeadamente de «obras plásticas, sobretudo as de tipo construtivista».
Refere e inclui ainda o cinema, como linguagem que cruza diferentes campos
de expressão, implicando uma «interdisciplinaridade inalienável» e valoriza «a
teoria da comunicação» que, no seu entender, «permitiu colocar com mais cla-
reza a situação do receptor perante vários tipos de mensagem». Para Rocha de
Sousa este entendimento é essencial quando se trata da elaboração de pro-
jectos artísticos, não só de design, mas também de artes plásticas, pois é preci-
so reconhecer que «globalmente, há identidades à partida, mas há sobretudo
identidades subjacentes a todos os objectos de civilização». Por conseguinte,
Rocha de Sousa (p. 2) sublinha que «o operador não pode desinteressar-se das
análises sócio-culturais e histórico-geográficas que enquadram de forma de-
terminante aquilo de que se necessita, como se necessita, porquê e para quê».
No programa de Introdução às Artes Plásticas e ao Design (em vigor a par-
tir de Janeiro de 1989), esta ideologia não se desvanece, sendo reafirmada a
arte enquanto acção transformadora da realidade:

214
«A arte tem sido, ao longo dos tempos, uma das atitudes mais significati-
vas do Homem perante a realidade que o cerca. Corresponde a uma ne-
cessidade profunda de conhecer a natureza das coisas para melhor agir
com elas e para além delas. Corresponde, por isso, e por outro lado, a um
aperfeiçoamento das vias de contacto entre pessoas e grupos, envolvendo
a expressão, a comunicação, um conhecimento mútuo de códigos que per-
mitam accionar linguagens em sentidos diversos, veicular ideias, sonhos,

ANA SOUSA | DA ARTE COMO INTERVENÇÃO À EDUCAÇÃO ARTÍSTICA NO SENTIDO DE UMA CONSCIÊNCIA SOCIAL CRÍTICA
projectos, uma visão do mundo.» (Rocha de Sousa, 1989b)

Neste documento, Rocha de Sousa reforça ainda a ideia de que as prá-


ticas artísticas se constituem como respostas às diversas problemáticas que
desafiam o ser humano, possibilitando-lhe «dominar o meio e repensar-se
perante as suas próprias urgências».
Esta missão social do artista emerge também no programa do 4º ano de
Pintura (ciclo especial) da mesma época (1989c), onde se apresentava uma
visão mais dilatada da arte, com ampliação dos modos de formar e operar a
ela subjacentes. Assim, para além de evocadas e validadas propostas como
«a arte conceptual, ecológica, sociológica», com o propósito de «abrir pers-
pectivas a certos tipos de investigação que integram o processo criativo e as
suas áreas de interdisciplinaridade – apelo à imagem, ao objecto plural, ao
gesto, ao corpo, a registos visuais diferenciados ou a intervenções» (p. 1); era
exposto «o entendimento correcto» da função do artista, enquanto «opera-
dor no espaço social e de civilização», com «consciência de como e porque
contribui para a qualidade de vida em termos de criação concreta ou mesmo
de pedagogia» (p. 2).
Seguidamente, eram introduzidas (p. 3) «linhas de criação e intervenção»,
sugerindo-se ser possível ultrapassarem o espaço tradicional e assumirem a
forma de «provocação comunicativa» ou «indagação crítica sobre os fenóme-
nos dentro e fora do real». «Tendo em conta a própria exigência de prever e
preparar os caminhos susceptíveis de facilitarem o aparecimento do Homem
novo», eram então presentadas três temáticas (p. 4) que permitiriam interpreta-
ções e operacionalizações várias: a) um quadrado de chão; b) seara de ventos
e c) a cidade à margem. Da segunda, destacamos a seguinte explicação: «A
seara de ventos tanto pode ter o seu referente numa comunidade conturbada,
na conflitualidade contemporânea, como no trabalho fecundante que torna
os ventos alegoria optimista da História e do Futuro». Para o desenvolvimento
desta temática, os alunos deveriam apoiar-se na visualização do filme de en-
saio Semearam ventos, uma reflexão sobre a «crise contemporânea do existir
e do ser», da própria autoria de Rocha de Sousa, sendo incitados a investigar
visualmente sobre o «mundo em transformação», bem como sobre o sentido
histórico das situações que conduziram a essa transformação. No que respeita
à terceira temática: a cidade à margem, o artista e pedagogo esclarecia que,
tanto se podia «referir a margem da cidade como a marginalidade de certos

215
grupos sociais ou apenas de certos cenários que se degradam dentro e para
lá da cidade». A este propósito, era sugerida a visualização de Requiem, uma
montagem livre, igualmente de sua autoria, realizada a partir de «recolhas es-
porádicas em torno de uma cidade (real e humana) quotidianamente omitida
ou menos visualizada nas nossas memórias». Como alternativa, era proposto
que os alunos se deslocassem à zona portuária e recolhessem eles mesmos
excertos fílmicos daquela parte marginal da cidade.
Neste documento (p. 5), não podemos deixar também de mencionar «uma
exigência», a de que «qualquer via de trabalho e investigação [fosse] descri-
ta, interpretada e fundamentada, no sentido de que se [ultrapassasse] o sim-
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

ples mimetismo ou o facilitismo com que certos recursos [poderiam] envolver


cada escolha». Ao afirmar o trabalho artístico enquanto projecto semelhante
ao desenvolvido em qualquer outra área do conhecimento e da intervenção
humana, Rocha de Sousa alargava a dimensão operativa da arte e reivindica-
va para esta uma outra função:

«Aqui se assinalam, portanto, os percursos de infinitas variações e trans-


formações formais que é preciso ter conta para um entendimento correc-
to da arte nos nossos dias. Do happening à conceptual art, do neo-dada
à body-art, da arte antropológica, sociológica ou ecológica ao domínio
das performances, dos modos da arte-processo, está traçado um vasto
caminho de experiências e novas formulações. Há um momento em que
o suporte tradicional conta de outra maneira, em que o próprio conceito
se transforma em suporte, envolvendo em diferentes apresentações das
coisas e o comportamento do artista, o que “alarga” a especulação estética
e sociológica sobre o mundo».

Para que esta «especulação», que aliava a estética à ética, no sentido do


entendimento da arte enquanto forma de agir sobre o mundo, fosse pos-
sível, eram necessários «novos modos de formar». Assim, o que Rocha de
Sousa, no âmbito deste singelo programa, ousa ainda propor é «uma for-
mação convergente de diversas áreas do pensamento». Só através de uma
articulação de conhecimentos produzidos em diversas áreas disciplinares,
isto é, só a partir desta interdisciplinaridade, aplicada à análise e resolução
de problemas, defendida por Rocha de Sousa, à semelhança do que já o
fora por Parker, Dewey e Haggerty, seria possível ao «operador artístico, nos
nossos dias (…), projectar de facto em sociedade, para ela ou contra ela,
mas nunca de forma aleatória».
Aliás, esta noção da educação como emancipação, fruto do despertar
da consciência crítica, neste caso dos alunos-artistas (tomando-se os artis-
tas como «seres para a sociedade, criadores de objectos de civilização»), é
algo que já se encontrava presente nas propostas de alguns seguidores da
ideologia social-reconstrutora, para quem a educação deveria preparar os

216
alunos «to cleverly manage various situations in their lives» (Maria Letsiou,
2012, s/ p), e que, ainda hoje, permanece no discurso de Fernando Hernández
(2005b) sobre a cultura visual enquanto «táctica de resistência», que permi-
te aos sujeitos, quando devidamente esclarecidos e fundamentados, agir
conscientemente sobre as suas vidas e posicionar-se no e sobre o mundo:

«Quienes nos interesamos por indagar de manera crítica en torno a las

ANA SOUSA | DA ARTE COMO INTERVENÇÃO À EDUCAÇÃO ARTÍSTICA NO SENTIDO DE UMA CONSCIÊNCIA SOCIAL CRÍTICA
manifestaciones de la cultura visual, no sólo tratamos de afrontar las re-
percusiones de las representaciones visuales en la subjetividad de los
chicos y las chicas y de nosotros mismos, sino que proponemos prácticas
de resistencia en las que los individuos se autoricen y hagan pública sus
voces mediante la apropiación de referencias teóricas y metodológicas
procedentes de los Estudios de Cultura Visual». (Fernando Hernández,
2005b, p. 29)

Contudo, se nos anos 30 do século XX, durante a Segunda Guerra


Mundial, esta ideologia se traduzia na «criação de posters propagandísticas,
na sala de aula, com vista a promover a paz e a democracia» (Maria Letsiou,
2012, s/ p); e se no contexto português do período que se seguiu ao 25 de
Abril assumia a forma de acções que «rompiam as paredes da escola» (Clara
Brito, citada por Sousa, 2007, p. 155), partindo de problemas oriundos de
diversos contextos, e assentando, muitas vezes, em dinâmicas de grupo in-
terdisciplinares, com vista à transformação social (Silva, San Payo e Gomes,
1992); hoje, a abordagem educativa proposta pela cultura visual torna-se
mais sofisticada, envolvendo uma produção colectiva de conhecimento(s) e
significado(s), que ultrapassa os limites tradicionalmente estabelecidos pelo
sistema escolar, implicando uma mudança de paradigma, não só no interior
de uma área (as artes visuais), mas na educação como um todo:

«(…) muchos educadores pueden encontrar en la cultura visual una nuevo


motivo para trazar puentes entre el conocimiento de la certeza que se les
brinda el currículum compartimentalizado disciplinar y los saberes híbri-
dos y transdisciplinares (…). Entre la escolarización que cosifica al niño
y la niña o el joven convirtiéndolo en alumno y quienes lo consideran
como sujeto, con biografía, deseos, miedos y dudas, que se incorporan
como parte del proceso educativo». (Fernando Hernández, 2005, p. 28)

Assim, o que ocorre com a viragem para uma educação pela cultura vi-
sual, não se reduz à inclusão da «cultura popular» e, com ela, à ampliação
da diversidade de objectos a ser alvo de estudo e a gerar conteúdos a ser
trabalhados em sala de aula. O que a cultura visual sugere é efectivamente
um outro paradigma educativo, no qual os objetos produzidos culturalmente
deixam de ser considerados como meras representações visuais, estritamente

217
analisadas sob uma perspectiva formal, mas são
reconhecidos enquanto repositórios de discur-
sos, aos quais se encontram subjacentes atitu-
des, crenças e valores, que condicionam a cons-
trução de significado(s).
Por conseguinte, educar pela cultura visual
implica trazer à discussão, fazer confluir e arti-
cular conhecimentos pertencentes a diferentes
Fig. 5 – Imagens produzidas no mundo dimensões e oriundos de várias áreas disciplina-
nos últimos 2 meses, diagrama res, como a Sociologia, a Semiótica, os Estudos
apresentado por Paul Duncum na
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

conferência Cultura Visual e Prática


Culturais e a História da Arte, promovendo outras
Educativa, Faculdade de Belas-Artes da perspectivas teóricas e metodológicas, no sentido
Universidade de Lisboa, 2009. de um posicionamento crítico sobre o universo
Adaptado por Carolina Silva, 2010, p. 92.
visual que nos circunda.
Porém, é necessário ressalvar que, não só o
recurso a conhecimentos de outros campos, mas
também valorização de conhecimentos de outras
naturezas (nomeadamente o empírico, isto é, as
experiências dos alunos), bem como a aceitação
de objectos oriundos de universos diferentes (de-
signadamente, daqueles universos que alguns
teóricos da cultura visual entenderam designar
de «arte popular» e «arte tradicional»), não signi-
ficam a anulação de um conhecimento específi-
co das artes visuais e, muito menos, o desapare-
cimento da «arte erudita» dos programas e das
práticas escolares. Na verdade, o que acontece
é uma reinterpretação e ampliação do conceito
de «artes visuais», por parte dos autores da cultu-
ra visual. Para Kerry Freedman (2003, pp. 21-22),
por exemplo, estas incluem «belas-artes, jogos
de computador, manga, filmes, design de brin-
quedos, publicidade, programação de televisão,
pinturas, design de moda».
Para além disso, assistimos ainda a uma com-
plementaridade de perspectivas que ajudam a
compreender os objectos ou situações artísticas,
os diversos contextos da sua produção e consumo,
clarificando as convergências e divergências em
torno de um tema ou problema, que contribuem
para que os alunos se percebam e, por conseguin-
te, se posicionem, enquanto sujeitos e cidadãos,
no enredo de relações do mundo em que vivem.

218
Da Educação pela Cultura Visual a Movimentos de Contra-Cultura
Como exemplo de uma prática escolar recente, que teve lugar no contexto
nacional e podemos enquadrar num paradigma de educação pela cultura visual,
citamos o projecto Remake dos Painéis de São Vicente (2016), orientado por
Paula Penha, professora de Design Gráfico, na Escola Secundária de Cacilhas-
Tejo e ex-aluna do Mestrado em Ensino de Artes Visuais da Universidade de
Lisboa. À semelhança do que sucedeu em anos lectivos anteriores, Paula Penha

ANA SOUSA | DA ARTE COMO INTERVENÇÃO À EDUCAÇÃO ARTÍSTICA NO SENTIDO DE UMA CONSCIÊNCIA SOCIAL CRÍTICA
desafiou os seus alunos (da turma 11º L) a participar num concurso, para que,
desde logo, tomassem contacto com as dinâmicas e exigências do mercado
de trabalho, ao mesmo tempo que viam aplicados os seus conhecimentos,
no domínio das artes visuais, a projectos concretos. Desta vez, a proposta
surgiu no âmbito do concurso A minha escola adota um museu, um palácio,
um monumento…, lançado todos os anos pela Direção-Geral da Educação e
pela Direção-Geral do Património Cultural, implicou o estudo aprofundado
dos Painéis de São Vicente, com a colaboração da professora de História e
Cultura das Artes Teresa Santana, a visita ao Museu de Arte Antiga, onde viram
ao vivo esta obra-mestra da pintura portuguesa do século XV, reparando nos
múltiplos pormenores que caracterizam a sociedade da época, e a sua rein-
terpretação à luz da contemporaneidade.
Para tal, após discutirem e trabalharem o tema: a representação da socie-
dade actual, através da elaboração de retratos de figuras proeminentes (à se-
melhança do que ocorre nos painéis), constituíram grupos correspondentes
a diferentes esferas: da política ao futebol, da religião à cultura, da música ao
desporto e à moda. Cada grupo, mobilizou e articulou então conhecimentos
oriundos de várias áreas disciplinares (Desenho, História e Cultura das Artes
e evidentemente Design Gráfico, nomeadamente no âmbito da Multimédia)
para responder ao desafio de caracterizar a esfera que lhe correspondia. Assim,
este projecto desenvolveu-se em diversas fases, nas quais os alunos foram
alternando entre dinâmicas de trabalho em que cooperavam em pequeno e
em grande grupo (a turma). Partindo de algo que lhes era muito próximo: a
cultura visual que caracteriza a sociedade contemporânea, sobre a qual re-
flectiram e se pronunciaram, e recorrendo a meios de construção de imagem
que lhes são familiares, os alunos elaboraram uma reinterpretação dos painéis
com base, por um lado, nas suas experiências, isto é, no conhecimento empíri-
co e, por outro lado, no conhecimento específico da sua área vocacional. Para
além de desenvolverem competências transversais ao currículo de todas as
disciplinas, no âmbito da investigação, do sentido crítico e até mesmo inter-
pessoais, os alunos aprenderam, de modo concreto, conteúdos próprios de
cada uma das disciplinas da sua área, que tiveram ainda a oportunidade de
operacionalizar, o que tornou a sua aprendizagem mais significativa. Todo o
envolvimento e empenho dos alunos foi condensado na imagem fotográfica
abaixo, fruto de horas e horas de trabalho em pequeno e em grande grupo
(turma), nas quais foram partilhadas e alternadas diferentes funções com um

219
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

Fig. 6 – Remake dos Painéis de São propósito comum: a representação da socieda-


Vicente, Turma 11.o L, Escola Secundária de contemporânea, sob o olhar destes jovens.
de Cacilhas-Tejo, 2016 [Neste projecto
participaram Alexandra Silva, Diogo
No contexto da pós-modernidade, a educação
Casimiro, Jasmim Cotrim, pela cultura visual surge assim como «uma tácti-
Joel Fernandes, Maura Airez, Miguel Gil, ca de resistência» (Hernández, 2005), «uma outra
Pedro Veras, Sara Custódio, Margarida
maneira de viver e comportar-se» (Efland, 2005, p.
Madeira, Ricardo Almeida, Rita Rosendo,
Rodolfo Almeida, Andressa Souza, Carolina 66), no que se refere ao ensino e aprendizagem
Henriques, Daniel Tulbur, Inês Baptista, das artes visuais, coexistindo naturalmente com ou-
Joana Silva, com orientação de Paula
tras tendências, umas mais distantes e outras mais
Penha (Oficina Gráfica)
e colaboração de Teresa Santana (História próximas na linha temporal das práticas escolares.
da Cultura e das Artes) Deste modo, o que hoje presenciamos é, por um
lado, a preservação de um «legado» que permite
salvaguardar parte da identidade curricular das
artes visuais e, por outro lado, a emergência de
práticas que animam a educação artística e con-
tribuem para que parte dessa mesma identidade
se ajuste e modifique perante novas situações.

«La educación permite a las culturas perdurar


mediante la transmisión de conocimientos y va-
lores a las nuevas generaciones. Si las culturas
no consiguen transmitir su legado, desaparecen.
No obstante, una cultura es una identidad viva
que necessita tener la capacidad de adaptarse
a nuevas situaciones y de cambiar, necesita per-
sonas capaces de imaginar outras maneras de
viver y comportarse. Las culturas que no logran
desarrollar la posibilidad de imaginar, se estan-
can o desaparecen.» (Arthur Efladn, 2005, p. 66)

Porém, o entendimento de que vivemos ro-


deados de imagens e a consciência de que por
elas somos condicionados, interiorizando valores

220
e assumindo posicionamentos que interferem nas mais elementares decisões
(e ações) do nosso quotidiano, é algo que tem vindo a interessar não só artis-
tas e professores de artes visuais, que se apropriam das ferramentas comuns
à cultura visual, que fazem parte da vida diária das crianças e jovens, para
sobre ela se pronunciarem e agirem; mas também educadores e investiga-
dores, dinamizadores de movimentos de «contra-cultura» que têm transitado
das universidades para o mundo, do mundo para as escolas, das escolas para

ANA SOUSA | DA ARTE COMO INTERVENÇÃO À EDUCAÇÃO ARTÍSTICA NO SENTIDO DE UMA CONSCIÊNCIA SOCIAL CRÍTICA
as universidades e vice-versa, estimulando o cruzamento de experiências e
conhecimentos e uma enorme pluralidade discursiva.
Assim, não podemos deixar de evocar brevemente algumas destas prá-
ticas que, de modo subtil, têm transformado a sociedade, intervindo no sen-
tido da humanização dos espaços urbanos (Yarn Bombing), da mudança das
práticas escolares (Manifestos Docentes) ou ainda da democratização do acto
de nos manifestarmos visualmente (Cadernos Artivistas).
O Yarn Bombing, a prática de uma «arte menor» que, nos últimos anos,
se espalhou pelos quatro cantos do mundo, teve como percursora a artista
polaca Olek e como grande impulsionadora a norte-americana Magda Sayeg
que, entre outros, motivou alguns docentes das Belas-Artes de Franckfurt, a
desenvolver intervenções desta natureza com os alunos. O impacto e disse-
minação exponencial deste movimento, cujo propósito é humanizar os espa-
ços urbanos, é assim compreendido por Sayeg (2015):

«(…) ficámos todos dessensibilizados pelas cidades superdesenvolvidas


onde vivemos, os “outdoors” e os anúncios, os parques de estacionamento
gigantes. Já nem nos queixamos dessas coisas. Quando nos deparamos
com um sinal STOP envolvido em lã, que nos parece deslocado, gradual e
estranhamente, conseguimos relacionarmos com ele! (…) Todos vivemos
neste mundo digital e acelerado, mas ainda ansiamos por algo com que
possamos relacionar-nos.»

Os Manifestos Docentes foram elaborados em resposta ao desafio lança-


do por uma educadora e investigadora (María Acaso, 2011) numa plataforma
online, que pretendeu agitar as mentes dos professores e assim contribuir para
a mudança nas escolas. Desta iniciativa resultaram várias exposições, as pri-
meiras na Universidade Complutense de Madrid (local de origem deste pro-
jecto), e uma delas – Manifestações pedagógicas. A arte pensa a educação,
na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, em Março de 2014.
Nesta exposição, foram partilhados manifestos muito distintos (Sousa, 2016,
pp. 383-438), entre os quais uma instalação composta por um antigo quadro
negro escolar e uma carteira sobre a qual foi colocado um tablet (por contra-
ponto ao quadro), intitulada Quadro(s) de(in)formação (Tiago Pereira, 2014);
uma série de folhas de papel transparentes sobre as quais foram impressos
os horários escolares de todas as turmas de uma escola, evidenciando-se, a

221
negro, a escassez de tempo dedicada à apren-
dizagem das artes visuais, intitulada Janela de
Oportunidade (Ana Margarida Boavida, 2014); e
uma revista-manifesto [Fig. 10], o único colectivo,
intitulada Sinapse (David Caranova, Elias Nunes e
Sandra Henriques, 2014), onde foram publicadas
notícias fictícias, como Nuno Carto não enfrenta os
problemas da educação e passa a dar entrevistas
de costas e Avaliação de professores também vai
passar por likes no Facebook; cartoons que ca-
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

Fig. 7 – Sinapse: a revista manifesto, ricaturam as figuras mais marcantes no cenário


David Caranova, Elias Nunes e Sandra educativo e político português naquela época,
Henriques, 2014.
Anúncio a explicações de Artes Visuais (p. 24) e
como Ceci n’est même une ministre de l’educa-
caricaturas de Nuno Carto (p. 9) tion, e um anúncio a explicações de artes visuais,
porque a arte também se explica.
A origem do projeto Cadernos Artivistas re-
monta a 2005, quando Teresa Eça, Emília Catarino
e Anabela Lacerda, começaram a convidar amigos
para participar e intervir plasticamente no que
então designaram “livros colaborativos”. Porém,
o que começou por ser uma iniciativa entre ami-
gos, transformou-se numa proposta apresenta-
da a uma comunidade específica de professores,
membros da InSEA e veio a transpôr continentes,
transitando para contextos não formais e adqui-
rindo um carácter interventivo. As questões que
este projeto nos coloca já não passam pela pos-
sibilidade ou não de ensinar a arte, que inquietou
Gustave Courbet (1819-1877) – Peut-on enseigner
l’art? (1861), mas pela democratização do gesto
de desenhar ou de nos expressarmos e comuni-
carmos visualmente, enquanto seres humanos
que partilham experiências de vida, no seio da
mesma comunidade, convergindo ou divergin-
do, do que é produzido noutras, pois este projeto
convida-nos também a pensar o local (os locais)
no global. Na era da globalização, da alienação
mediática, da pós-verdade, da fast food artística
e cultural e das selfies enquanto exaltação do pa-
recer que, cada vez mais, nos distancia, do ser,
esta proposta convida-nos a di-vagar, no duplo
sentido, isto é, ao vagar de um tempo a sós, com
a folha de papel, e à divagação de uma linha que

222
nela se espraia, em busca de sentidos múltiplos, através do gesto da mão
que acompanha o pensamento potencialmente divergente. De vagar e diva-
gar são assim duas faces de um mesmo acto. Representam simultaneamente
pausa/atenção e ação/divagação pois, como compreendia Lagoa Henriques
(1923-2009), evocado por Margarida Boavida (Portefólio de Didática das Artes
Plásticas II, 2013): “o desenho é uma forma de atenção” e a atenção pode tra-
duzir-se em olhar crítico e intervenção, sentido último deste projeto. Assim,

ANA SOUSA | DA ARTE COMO INTERVENÇÃO À EDUCAÇÃO ARTÍSTICA NO SENTIDO DE UMA CONSCIÊNCIA SOCIAL CRÍTICA
não é de estranhar que as suas preconizadoras, que já debatiam tradição e
ruptura na educação artística formal e apresentavam projetos inovadores no
contexto não formal, pretendam, através das ações de ativismo inerentes a
este projeto e da investigação que delas decorre, contribuir para viragens no
modo como nos relacionamos, não só com a arte, mas também com a vida,
num sentido mais dilatado. Cadernos Artivistas, enquanto proposta de inter-
venção comunitária, coloca em causa os limites de autoria e identidade (indi-
vidual e coletiva), ao mesmo tempo que evidencia temas/problemas comuns
à arte e à vida contemporânea, que neles são objecto de reflexão. Esta práti-
ca convida assim os participantes a um posicionamento com contornos mais
passivos (de resistência) ou mais ativos (de intervenção), mas ainda assim po-
lítico, que se materializa em registos de cariz abstrato e subjetivo ou crítico e
interventivo, observáveis nos cadernos, com diferentes origens geográficas,
locais e pessoais, que compõem as exposições itinerantes.

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Disciplina Tecnologia da Expressão e
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225
A política social das exposições
de Arte Contemporânea no
espaço Museu e a mostra Toda a
Memória do Mundo, Parte I,
de Daniel Blaufuks
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

Juan Gonçalves
Doutorando em Ciências da Arte (FBAUL); Mestre em Museologia e Museografia
(FBAUL); Mestre em Gestão Cultural, pela Universidade da Madeira.
Membro do CIEBA-Francisco d’Holanda.
[email protected]

Through the selection, reception


and exhibition of objects,
Incitados pelas alterações socioculturais pro- contemporary art museums
vocadas pelo fim do colonialismo político europeu establish discourses that actively
contribute to the formation
e por reformulações internas, tanto de âmbito an-
of political values of moral,
tropológico como de âmbito museológico, as dis-
ideological and, consequently,
cussões centradas em torno do museu enquanto
social character. It is on this
instituição sociocultural colocavam em questão os idea of the social policy of an
aspetos ideológicos e políticos implicados nos seus exhibition of contemporary art
modos de representação – construídos por meio de in the museum space that we
suas práticas culturais: o colecionar, o conservar, o will develop the present text,
expor –, e em torno das mudanças do estatuto, das having as a case of study the
interpretações dos objetos ao serem musealizados exhibition Toda a Memória do
e do seu valor1 (Pittman, 2014). Mundo, Parte I (2015), of Daniel
Neste cenário, se por um lado a função de sal- Blaufuks.
vaguarda patrimonial se manteve como base de
ação do museu, à qual se foram associando novas
funções educativas, por outro, nas últimas décadas,
os museus têm vindo a ser confrontados com vários
desafios que questionam a sua forma de organiza-
ção, a forma de olhar as coleções, a maneira de se
darem a conhecer aos públicos e, de modo geral,
a sua atitude perante a sociedade. Inevitavelmente,
esta necessidade de conseguir mais e melhor

226
visibilidade impõe alterações na forma como os museus pensam, na forma

J U A N G O N Ç A LV E S | A P O L Í T I C A S O C I A L DA S E X P O S I Ç Õ E S D E A R T E C O N T E M P O R Â N E A N O E S PA Ç O M U S E U E A M O S T R A T O DA A M E M Ó R I A D O M U N D O, PA R T E I , D E DA N I E L B L A U F U K S
como se apresentam e na forma como comunicam (Hooper-Greenhill, 2000;
Bataille, 2004; Pittman, 2014).
É, então, sob esta renovada dinâmica que a instituição museológica passa
a ser inserida num contexto mais amplo de crítica. Uma crítica que incide
sobre a marginalização ou a exclusão das vozes de certos grupos da esfera
pública2 (Habermas, 1989; Bataille, 2004) – ou de produtos culturais como as
coleções e exposições museológicas (Gonçalves, 2015) – e pela exigência de
uma maior reflexividade e atenção ao processo pelo qual o conhecimento
é produzido e disseminado, e aos modos pelos quais esse processo acaba
por muitas vezes reproduzir diferenças e desigualdades (Macdonald, 1992;
Sandell, 2002; Tobelem, 2005).
Tais factores, fomentaram uma «crise identitária» (Faria, 2002) do museu,
que por sua vez gerou novos modelos conceituais e institucionais cujo cerne
passou pela redefinição de quem é o público do museu e como este se di-
rige a ele. Nesta medida, várias foram as discussões verificadas a partir da
década de 50 que pretenderam destacar o papel das instituições museoló-
gicas na sociedade3 (Appleton, 2007; Davis, 2007). Dentro destes debates,
parece sobressair uma atitude revolucionária face à ideia de um museu con-
temporâneo, vivo e atuante, cuja política procura questionar, acima de tudo,
o seu papel social.
Assim, a partir da evolução do conceito de museu e da flexibilidade das
instituições culturais contemporâneas, temos vindo a assistir, na atualidade,
a uma imposição de novas formas de comunicação, acompanhadas por uma
ampliação da própria cultura das exposições (Bataille, 2004). Não obstante,
os influxos da «Nova Museologia» foram, evidentemente, estimulantes para
as instituições de arte contemporânea onde, nas últimas décadas, os serviços
de comunicação têm adquirido um reconhecimento crescente, traduzido na
sua participação nas mais diversas fases dos projetos museológicos (Hooper-
Greenhill, 2000).
Consequentemente, podemos encarar o trabalho desenvolvido pelas
instituições museológicas ligadas à arte contemporânea como um ato políti-
co4 capaz de construir, veicular e catapultar determinados contextos sociais,
organizados sob a forma de «uma narrativa, que partem de um discurso que
representa em si mesmo um elemento de uma teia de significados mais com-
plexos» (Vergo, 1989:46). A abordagem narrativa procura, pois, evidenciar o
modo como os significados culturais são construídos no âmbito de práticas
sociais e relações de poder, concetualizando as práticas museológicas com
acontecimentos históricos, sociais e políticos, inspirando-se nas teorias de
Foucault (1970) sobre a governamentalização e a relação poder-conhecimento.
Neste sentido, parece-nos correto considerar que as instituições museo-
lógicas dedicadas às funções expositivas da arte contemporânea, assim como
todo o sistema cultural, têm assistido a um gradual interesse da sociedade

227
e do mercado do produto daquilo a que podemos designar por exposição
de arte. Esta arte apresenta-se, difunde-se e alcança a desejada visibilidade
mediática do circuito cultural, sendo claro o estudo das relações existentes
entre o produto final – a exposição –, os valores simbólicos desejados e atri-
buídos, os artistas, as obras de arte, o acesso aos lugares expositivos e ainda
aos processos de comunicação além do lugar expositivo (Witcomb, 2003;
Marincola, 2006).
Podendo o número de exposições de arte contemporânea que se limitam
apenas a apresentar objetos ser muito grande – já que o potencial estético
destas peças pode justificar a sua mera exibição, privada de intentos eficazes
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

de interpretação –, o certo é que a sua mera exibição não se mostra suficiente


se esta não for sustentada por um discurso narrativo que o torne compreen-
sível. Desta forma, acreditando que «a escolha dos objetos recolhidos, a sua
colocação em grupos ou conjuntos e a sua justaposição física construem nar-
rativas conceituais […]»(Hooper-Greenhill, 2000: 77), um dos principais ob-
jetivos de uma exposição será, pois, comunicar através desses mesmos ob-
jetos, construindo através de «práticas narrativas»5 um discurso que produza
conhecimento6. Como tal, partindo da transversalidade de conhecimentos
presentes num determinado espaço expositivo7, torna-se possível a compo-
sição/apresentação de uma construção narrativa, escolhida com um critério
ou uma intenção concetual prévia, para que o público possa estabelecer, a
partir dos elementos da exposição e das suas experiências, um entrelaçar de
sentidos que possibilitem a produção de significados.
A importância da narrativa como dispositivo epistemológico organizacio-
nal deriva da intrínseca inclinação que temos em contar histórias (Boje, 2001).
Assim, o conhecimento da narrativa de uma exposição poderá estar basea-
do no suposto que cada um de nós dará sentido a exposição através de uma
sequência integrada de relatos pessoais. Desta forma, a análise da narrativa,
como uma perspetiva dentro da análise do discurso como interação social,
parte da premissa que as realidades sociais tendem a ser socialmente cons-
truídas (Berger e Luckman, 2001), ou seja, que derivam da interação social que
pode ser facultada de forma quotidiana pela própria organização.
Desta forma, a discursividade, principalmente retórica e interligada com
a narrativa, passa a ser um aspeto crucial de qualquer instituição cultural de
arte (Hooper-Greenhill, 2000). Tal situação ocorre com a criação das obras e
dos discursos dos artistas, a arquitetura dos espaços e o desenho ou seleção
dos objetos e equipamentos utilizados na exposição, existindo, a cada nova
exposição, uma transformação do lugar, modificando, sempre que necessá-
rio, os processos, produtos, resultados, narrativas e modos de comunicação.
Pelas caraterísticas da produção contemporânea da arte, nos seus va-
riados desdobramentos a partir de meados do século XX, é possível alcan-
çar a ideia de que os lugares institucionais de exposição tendem a ser cada
vez menos «institucionais» e menos formais, ou formatados, dando abrigo às

228
novas formas de relação surgidas a partir do movimento de rutura com os su-

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portes tradicionais da arte e da sua aproximação (Smith, 2012). Desta forma,
os espaços expositivos estariam mais coerentes com o movimento ocorrido
na arte, evidenciado na década de 60, por artistas como Joseph Beuys, Claes
Oldenburg ou Ligia Clark e Hélio Oiticica, no qual o processo de criação ar-
tística e o seu aspeto social passou a ser enfatizado em detrimento do pro-
duto finalizado, a obra de arte.
Seguindo o ideário levantado pelo modernismo de Duchamp, o ambien-
te e o espetador conquistam um espaço privilegiado no trabalho dos artis-
tas, principiando um maior empenho em ocasionar novas relações espaciais8.
Desta forma, as obras, as formas e o espaço onde as exposições se materiali-
zam assumem um novo estatuto, a partir das novas relações propostas em re-
lação à dualidade do sujeito-objeto e da própria narrativa das exposições.
Nesta situação parecemos observar como a arte tem, por base, uma ênfase
nas relações humanas, em especial nas trocas entre indivíduos, como forma
de constituição de sociabilidades. Assim, a exposição torna-se numa espécie
de intervalo no qual as obras de arte não são produtos, mas momentos de so-
ciabilidade. Um domínio de trocas particulares que é estabelecido a partir das
instruções, ou dos objetos produtores de sociabilidade, propostos pelo artista.
Tal observação é evidenciada por Oiticica, ao afirmar que na sua «expo-
sição participativa» (Oiticica em Ferreira e Cotrim: 2006:95) o visitante já não
pretende resolver a sua contradição em relação ao objeto pela pura contem-
plação. Tal parecer acarretou uma série de transformações no campo da arte,
bem como nas práticas expositivas, sendo que muitas foram as formas de
exploração da extensão dos limites ou barreiras da arte tradicional (Moreira,
2010).
Desta forma, julgamos que a cultura dos museus e das exposições, no seu
sentido mais amplo, possibilita um terreno que oferece múltiplas narrativas de
significados, passando a ser identidades construídas através de negociações
entre o eu e o outro em infinitas e múltiplas camadas9, sem nunca descurar
que cada indivíduo alberga o seu próprio museu, a sua própria existência e
experiência. A abordagem narrativa das exposições parece, pois, procu-
rar o modo como os significados culturais são construídos, concetualizando o
desempenho museológico e curatorial como acontecimentos políticos e so-
ciais, inspirando-se nas teorias de Foucault sobre a governamentalização e a
relação poder-conhecimento (Foucault, 1970)10.
Parece-nos, neste contexto, que o caráter das exposições de arte contem-
porânea passa a ser definido não tanto pela qualidade seletivamente presen-
te em alguns objetos e/ou sujeitos, mas antes pelo resultado de um complexo
processo de política social que se conclui no ato de consumo/interpretação.
Neste sentido, a exposição passa a veicular consigo os processos sociais que
a tornam possível, incluindo aqueles que dizem respeito à relação entre a arte
e o seu discurso político.

229
Selecionar qualquer obra de arte e incorporá-la sob distintas narrativas são
atividades que requerem a presença de pensamentos curatoriais (Heinich e
Pollack, 1996). Uma ideia curatorial – uma exposição, um tema, o modo como
o espetador será envolvido, o posicionamento das obras – será, de facto, uma
genuína contribuição para a apreciação das obras de arte envolvidas. Na rea-
lidade, as recentes práticas curatoriais partilham a exigência do envolvimento
do visitante, seja através do seu caráter físico/presencial ou intelectual, pro-
pondo, assim, uma reflexão moderada sobre determinada prática artística,
tentando, ainda, comunicar valores e conceitos abstratos (Bismarck, 2011).
Neste sentido, as práticas curatoriais tendem a ser também uma forma de
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

abertura, alargando ou expondo ao exterior a discussão de conceções nor-


malmente exclusivas a círculos especializados. O pensamento curatorial abar-
ca muito mais do que simples gestos retóricos, conhecimentos e alardeadas
demonstrações de exposição, e tal é demonstrado pelo crescente interesse
das profissões orientadas estritamente para as experiências curatoriais, pelo
número de livros, jornais e artigos relativos à curadoria e pelo aumento do
número de cursos que lhe dizem respeito (Marincola, 2006).
Será, pois, através desta articulação que Jimenez (2010) defende que «a
exposição, como entidade significativa em si mesmo, é parte de um discurso
visual no qual nascem relacionamentos entre a obra e o espaço que a con-
tém, bem como todo o conjunto de factores físicos (iluminação, sinais, cor de
parede) e não físicos (publicidade, textos, tabelas). O principal objetivo de
qualquer exposição é criar uma narrativa que traduza o conteúdo em ideias
claras através da linguagem expositiva» (ibidem: 214). Tornar esta prática real
será, pois, essencial para o desenvolvimento do pensamento curatorial con-
temporâneo. Nenhuma destas formulações será relacionada unicamente com
a história ou crítica da arte per se, sendo também formulada com a história e
a teoria da curadoria e do planeamento de exposições.
Se, por um lado, todas as exposições de arte contemporânea tendem a
demonstrar que os curadores refletem sobre determinadas circunstâncias,
desenvolvendo, neste âmbito, programas de pesquisa e estimulando ideias
(Smith, 2012), por outro, acreditamos que, de modo geral, o pensamento cura-
torial relativo à arte contemporânea deverá suportar as ideias, os interesses
e a reflexão crítica dos artistas, responsabilizando-se ainda pela situação em
que é concebido: social, cultural ou politicamente.
Explorar e dar a entender as políticas inerentes às exposições, aos seus
estilos e silêncios, não é um assunto fácil. De facto, na opinião de Macdonald
(2007), as exposições tendem a ser apresentadas ao público como fatos cien-
tíficos, ou seja, como declarações unidirecionais e raras vezes como o resulta-
do de um particular processo e/ou contexto. As suposições, relações, raciona-
lidades e compromissos que conduzem ao produto final, isto é, a exposição
em si, tendem a ser, geralmente, ocultadas ao público. Nesta dinâmica, raras
são as exposições que procuram estabelecer um contexto político e social,

230
e tal situação pode representar algo que até os

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próprios agentes que organizam as exposições
tendem a ignorar.
Motivada por um universo referente ao
Holocausto, a exposição Toda a Memória do
Mundo, Parte I11 permitia ao visitante percorrer
três espaços diferentes do Museu Nacional de
Arte Contemporânea do Chiado (MNAC-MC): o
Piso 0, onde era exibido um filme sobre Terezín Fig.1 - Algumas das obras expostas no
(As If, de 2015, de 4h35m), uma biblioteca de piso nr.º 1 da exposição Toda a Memória
do Mundo, Parte I. MNAC-MC, 2015.
consulta com alguns livros de Blaufuks e de au- Fonte - Arquivo pessoal.
tores que são referências importantes para o ar-
tista – encontrando-se aqui também algumas fo-
tografias de objetos e ainda  uma estátua de um
cavalo com um homem que pega numa mulher
em movimento – e ainda uma ampla sala de ex-
posição onde se apresentou um conjunto de 22
molduras da mesma dimensão, cada uma com um
conjunto associado, como «Piles of golden teeth
and stocks of poor quality soap» (v. Fig.1 e Fig.2).
Nesta medida, os objetos aqui expostos po-
diam ser definíveis como o conjunto de meios
através dos quais materialmente se exprimiu e
ganhou forma um determinado processo reme-
morativo12. Esta é uma dimensão crucial para a
reflexão teórica sobre este tema: recordar, através
de uma exposição de arte contemporânea, um
determinado passado histórico significa exprimir
juízos de valor que falam dentro de um código
social. Nesta perspetiva, a exposição aqui descrita
tornava-se um espaço politizado que, ao adotar
e projetar diferentes leituras e descodificações,
Fig.2 - Algumas das obras expostas no
veiculava consigo valores e identidades que se
piso nr. º 2 da exposição Toda a Memória
confrontavam e se oponham constantemente. do Mundo, Parte I. MNAC-MC, 2015
A ideia de memória constituía nesta expo- Fonte - Arquivo pessoal.

sição uma espécie de refúgio onde o artista


procurava, segundo as suas próprias palavras
«seguir um percurso de formas diferenciadas
de olhar, de variações sobre a mesma temática,
colecionando e selecionando imagens de assun-
tos idênticos ou de palavras-chave similares e
arranjando-as em formas visuais» (Blaufuks em
Santos, 2014). Nesta perspetiva, Blaufuks deixava

231
clara a questão da narrativa nesta sua exposição,
atuando, pois, como um agente e negociante da
história. Os seus relatos, ora fílmicos ora literá-
rios, adotavam um discurso que nascia do real,
de histórias vividas, de misérias do quotidiano,
num diálogo permanente entre as memórias in-
dividuais e as coletivas.
Se por um lado coube ao curador a prepara-
ção da exposição, já Daniel Blaufuks conseguiu
retirar da investigação minuciosamente cientí-
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

fica e filosófica as razões interpretativas da sua


exibição pública, reencontrando um meio de
abordar os seus temas e personagens (v. Fig.3).
Neste encontro, o papel da interpretação ficou
assente, já que o espetador - ou o intérprete, se
assim o quisermos -, ganhou uma posição mais
propícia de mediador discursivo de uma história
que lhe poderia pertencer (v. Fig.4).
Fig.3 - Introdução feita pelo artista à Constatámos, assim, que ao ser acompanha-
temática da exposição Toda a Memória do da pelo ponto de vista do artista, a mostra pas-
Mundo, Parte I. MNAC, 2015
Fonte - Arquivo pessoal.
sava a ser bem mais do que uma apresentação
artística, tornando-se, também, uma clara análise
crítica do autor sobre o tema. Desta forma, atra-
vés do interesse do artista em dar a conhecer a
sua perspetiva sobre uma realidade que lhe é
particularmente familiar, a exposição parece ter
possibilitado a encenação de um relato, como
se de uma peça teatral se tratasse, onde o artis-
ta abandona o papel de protagonista e adota
a posição de observador – observa uma memó-
Fig.4 - Um dos momentos no qual o ria coletiva e corporiza-a através da exposição.
visitante é convidado a interpretar e Nesta dimensão, o discurso promovido pelo
dialogar com o artista sobre algumas das
museu enquanto espaço institucional refletiu uma
peças da exposição Toda a Memória do
Mundo, Parte I preocupação para uma determinada problemá-
Fonte - Arquivo pessoal. tica social, transformando-se então num centro
de expressão da dinâmica política e social que
trabalha a partir de referentes como a memória.
Como será fácil deduzir, o que se acaba de ex-
plicitar adquire todo o sentido já que o valor de
uma exposição, enquanto documento, represen-
tação ou recordação, depende da informação
em torno do seu conteúdo e da sua constante
interpretação por parte do público.

232
É com base nesta perspectiva, que consideramos que a mostra Toda a

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Memória do Mundo, Parte I assumiu, acima de tudo, um papel politicamen-
te social, convocando os sujeitos sociais a refletirem sobre um passado e um
presente com o potencial transformador que este ato de reflexão implica. Tal
fundamento aproxima-se do conceito da «Nova Museologia» que teve como
princípios não se dirigir exclusivamente aos objetos a conservar ou a exibir a
um público, mas sim aos sujeitos sociais. Desta forma, o próprio museu apre-
sentou-se como um meio de celebração onde a argumentação foi construída
e os debates públicos forma estabelecidos.
Consequentemente, a valoração de antigos testemunhos ou correspon-
dentes a períodos da vida social já ultrapassados por parte de uma instituição
cultural dedicada à arte contemporânea, aparentam corresponder à atenção
e tensão postas na procura atual de objetos, na sua recolha, aquisição, para
complementar uma série, ou uma coleção, que possam documentar um aspeto
da cultura, um preenchimento de lacunas ainda existentes. Esta categoria de
tempo nos museus, com mostras contemporâneas sob uma temática socio-
lógica e antropológica, com uma metodologia que implica recolha, análise e
interpretação de material de arquivo, parecem assim propor uma relação de
pertença a um território e a construção de um discurso identitário.
Através da sua representação – daquilo que foi exposto –, o princípio de
participação desta exposição pode ser considerado como um direito aliado
a qualquer visitante em participar nos processos de identificação, construção
e definição dos conceitos, dimensões e significados de uma realidade histó-
rica e cultural de um determinando coletivo. O conteúdo ajuda, desta forma,
a ilustrar circunstâncias e partilha de valores que permitem transmitir o pul-
sar mais vivo e aleatório da vida das sociedades em cada momento em que
pode ser captada; sendo também aquele que permite construir narrativas e
descobrimentos onde passam a contar mais as pessoas, as personagens, os
sujeitos e as suas vivências do que os próprios objetos. Ainda no que respei-
ta as narrativas, Boje (2001) informa-nos que o poder destas se prende com
o desenvolvimento das interações sociais já que é através das mesmas que
as pessoas apreendem e interpretam as suas experiências de vida e transmi-
tem cânones culturais que modelam as suas ações.
A partir do referido, e ao analisar a exposição de Blaufuks, entendemos
a narrativa como uma forma de conhecimento, que tem uma origem social e
histórica que se prende aos marcos interpretativos e que forma parte de uma
determinada cultura. Será então, através desta narrativa, que se desencadeiam
processos de interação social, onde não só se desenrolam atos, mas também
se expressam valores e se construem significados13.
Toda a Memória do Mundo, Parte I recolheu num só espaço uma parte de
uma memória, através de uma leitura individual pelo coletivo, demonstrando
que o espaço expositivo é um meio de armazenar e avivar memórias, contri-
buindo, de igual forma, para a ideia que os museus seguem caminhos para

233
a sua aproximação do modelo de fóruns, sítios de encontro, de diálogos, de
debates e ações museológicas comprometidas com a memória, com o pa-
trimónio e a mudança social.
Neste cenário, acreditamos ser possível interpretar a exposição de Blaufuks
como uma matéria de construção, um segmento de matéria simbólica na qual
se permearam múltiplos significados: uma fábrica de sentido e um terreno
privilegiado a atingir no sentido de pensar e nomear as subjetividades, as re-
cordações, o passado, a realidade.
De igual modo, o discurso adotado pelo espaço museu pareceu ter jus-
tificado, nesta situação, a premissa na qual se defende que a instituição tem
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

de viver em cada momento da sua história a obrigação de construir os seus


sentidos no tempo concreto da sua existência. Por isso, como qualquer outra
instituição cultural, o museu deverá revelar não apenas fortes entrosamentos
com as condições culturais, económicas e sociais das conjunturas que atra-
vessa, como também ser portador de anacronismos e desarticulações que se
prendam com um acontecimento de longa data já acontecido. Tal situação
ajuda-nos a perceber como o museu vive em constante necessidade de pro-
duzir diálogos com a sua própria contemporaneidade, sendo esta uma com-
ponente fundamental da sua afirmação enquanto instituição social.
Nesta medida, podemos abordar o espaço museu e a arte contemporânea
como um conjunto que tanto promove operações culturais e políticas como
um meio que procura destacar as inter-relações discursivas entre estes dois
polos. Assim, parece-nos correto assegurar que os museus que lidam com a
arte contemporânea não colocam simplesmente a arte em exibição: ao criarem
contextos particulares para essa arte, os museus promovem, por meio da nar-
rativa patente, a legitimação social, cultural e política daquilo que é exposto.
Ao repensar nos seus critérios políticos, nomeadamente na forma de guiar,
organizar e influenciar a opinião pública, parecemos verificar que esta mos-
tra propôs aos visitantes territórios abertos de abundantes possibilidades de
interpretação, assentes em fatos sociais que não se esgotam, mas antes com-
plexificam o seu entendimento e fruição simbólica. Assim, ao interpretarmos o
papel político e intrinsecamente social desta exposição, qualquer imagem ou
relato permite-nos reinventar outras realidades, outras ideias, outras memórias.
Através da exposição Toda a Memória do Mundo, Parte I, parecemos ter
promovido a ideia que o museu não é um espaço neutral (Smith, 2012). Neste
cenário, o trabalho desenvolvido por esta instituição pode ser perspetivado,
entre outras possibilidades, como um ato político que constrói e veicula de-
terminados valores sociais, organizados sob a forma de uma narrativa, parte
de uma realidade que representa em si uma teia de significados mais com-
plexos, que nunca se esgotam ou se encerram sobre si próprios.

234
Notas

J U A N G O N Ç A LV E S | A P O L Í T I C A S O C I A L DA S E X P O S I Ç Õ E S D E A R T E C O N T E M P O R Â N E A N O E S PA Ç O M U S E U E A M O S T R A T O DA A M E M Ó R I A D O M U N D O, PA R T E I , D E DA N I E L B L A U F U K S
1
Pittman (2014) argumenta que a opinião de janeiro a 6 de fevereiro de 1992, que
pública sobre o valor que oferece o museu teve como finalidade fazer um balanço
evolui de forma acentuada nos últimos geral da situação dos museus na América
tempos, uma vez que o seu foco passou Latina.
dos recursos (coleções, pessoal ao serviço, 4
Esta dimensão política é transversal,
entre outros) aos resultados (frequência
estando presente não só nos discursos
e alcance das exposições, programas
oficiais que são veiculados na esfera
educativos e restantes ofertas) e aos
pública, mas também num conjunto
impactos (efeitos das ofertas do museu
diversificado de elementos, como a
sobre os visitantes, sobre a aprendizagem
arquitetura e organização do espaço
e sobre as experiências que o público
(distribuição das salas de exposição, de
adquire).
descanso e zonas de lazer), os sistemas
2
Podemos definir a esfera pública de classificação utilizados, a escolha
cultural como um espaço em das temáticas expositivas, a seleção das
que se articulam organizações, políticas estratégias expositivas, a definição de
e públicos de acordo com modos atividade de animação ou a produção de
de comunicação afetiva – estética materiais de divulgação, pelo que se torna
e emocional e não só cognitiva. A importante analisar todos estes aspetos
esfera pública cultural, perspetivada como de modo a identificar os pressupostos e
resultado e instrumento de transformação intencionalidades subjacentes, e relacioná-
social, proporciona matéria para o las com lógicas e racionalidades políticas
pensamento e para as disputas mais vastas (Macdonald, 1998).
argumentativas, que terão 5
Apesar da aparente ausência da narrativa
necessariamente alguma consequência em termos
nos cânones críticos do modernismo, o
da edificação da identidade social.
fim do século XX assistiu a uma explosão
Esta identidade é
de interesses pelas designadas «práticas
constituída na apresentação e discussão
narrativas» que se estenderam por campos
pública de ideias, o que vem reforçar o
tão múltiplos como a literatura, as ciências
conceito fundador de espaço público, no
cognitivas e a arte. Tendo como origem
sentido de espaço em que os indivíduos
a «narratologia», esta abordagem tem
partilham as suas ideias, o espaço
como base a noção que a vida é, ela
do confronto argumentativo (Habermas,
própria, constituída narrativamente, ou
1989; McGuigan, 1996). 
que a realidade, para puder ser pensada,
3
Entre estas discussões destacam-se o necessita de ser ficcionada (Todorov,
Seminário Regional da UNESCO, realizado 2006).
em 1958 no Rio de Janeiro, que teve como 6
Esta preocupação em transmitir
finalidade discutir a função educativa dos
conhecimento, promovendo a emergência
museus; as ideias preconizadas na Mesa-
de propostas que se caraterizam pela
Redonda do Chile de 1972 que vieram
atribuição de uma posição central
trazer uma nova abordagem museológica,
do indivíduo e da comunidade, por
onde se discutia a relevância destas
alterações nas linguagens museográficas,
instituições como espaços privilegiados de
transformações no esquema de
educação não formal tendo um importante
comunicação e pela adoção de uma visão
papel na formação de todos no campo
global e interdisciplinar dos fenómenos
da cultura; a Declaração de Québec de
socioculturais, em articulação com o
1984 que sistematizou, por sua vez, os
alargamento do conceito de património,
princípios fundamentais do «Movimento
advém do modelo de museu herdado
Internacional para uma Nova Museologia»
pela modernidade (Anico, 2008).
(MINOM); e a Declaração de Caracas,
resultado do Seminário de Estudos
Museológicos, realizado no período de 16

235
7
Tendo como temática a arte década de 1980, ao promoverem uma
contemporânea, partimos da compreensão reconceptualização da relação entre
de que um lugar expositivo é configurado poder e conhecimento, do estatuto da
através de uma série de ações e processos verdade e da subjetividade, contestando
que envolvem a arte, o design, a uma noção linear e progressiva da história
arquitetura, a museografia e a expografia, em favor de uma história efetiva, numa
além de todas as questões ideológicas, abordagem de rejeição de imposições
económicas, simbólicas e de gestão que cronológicas, de estruturas sequenciais e
possam surgir (Moreira, 2010). que privilegia as diferenças, as ruturas e as
descontinuidades (Anico, 2008).
8
A postura diante dos espaços
institucionais do sistema de arte, a 11
Tendo a curadoria de David Santos, a
partir das vanguardas modernistas, exposição esteve patente ao público entre
sofreu uma reversão. Num primeiro 11 dezembro 2014 a 29 março 2015.
CONVOCARTE N.º 4 — ARTE E ACTIVISMO POLÍTICO: TEORIAS, PROBLEMÁTICAS E CONCEITOS

momento deu-se uma refração – devido 12


Rememorar implica desde logo
à descrença na capacidade da instituição
competir por uma certa definição social
em acolher a arte e as propostas dos
de um acontecimento (Tota, 2000). Tendo
artistas contemporâneos sem anular a sua
em atenção que o resultado de uma
liberdade de expressão e a criação, de
recordação subentende sempre uma
modo oposto ao espaço público e aberto,
avaliação do que aconteceu, em torno
que seria «neutro», que daria, em largos
deste tipo de processos condensam-se
passos, caminho a um momento mais atual
fortes tensões conflituais. De acordo com
de cooperação e procura de equilíbrio
o modo como estas tensões são encaradas
entre os agentes dos sistema de arte,
e recompostas durante o processo
dentro de um contexto mais abrangente
comemorativo, teremos definições do
que compreende as indústrias culturais
acontecimento em questão mais ou menos
e a cultura inserida numa economia de
ambivalentes. Esta ambivalência, longe
mercado.
de se manifestar em abstrato, tornar-se-á
9
Nesta medida, segundo as teorias de visível através das formas da memória
contrução de narrativas de Hooper- disponíveis naquela dada circunstância.
Greenhill, «museological narratives are 13
Por outras palavras, além de contar e
embedded in other social narratives and
interpretar determinadas ações, a narrativa
while museums and collections generate
permite a construção de realidades sociais,
specific stories that are unique to the
entre o narrador (neste caso o artista) e
particular museum, at another level they
aqueles que ouvem (os seus públicos),
have deep connections and are themselves
formando ambos parte real de uma história.
partly formed by stories that are written
Assim, durante a narração, se contam
elsewhere» (Hooper-Greenhill, 2000: 77).
acontecimentos, se fazem apreciações
10
As teorizações de Foucault em torno pessoais, se negociam significados e se
de conceitos como discurso, poder- aplicam valores morais, considerados
conhecimento ou sujeito, constituem como legítimos para os membros de uma
a influência mais significativa no comunidade (Boje, 2001).
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237
Homenagem a Rocha de Sousa
Rocha de Sousa em Entrevista
Nota: O texto que se segue parte de uma entrevista a João Manuel Rocha de Sousa,
realizada a 6 de Outubro de 2006, no âmbito da dissertação de mestrado, em Educa-
ção Artística, intitulada A formação dos professores de artes visuais em Portugal (Ana
Sousa, 2007), tendo sido adaptado e ampliado, por Ana Sousa e Fernando Rosa Dias,
com vista à presente publicação. Esta entrevista foi então (2006) complementada com
um documento de reflexão, posteriormente entregue por Rocha de Sousa, tendo sido
agora (2017) acrescentado um terceiro documento, Abordagem do espaço multidis-
ciplinar na obra de Rocha de Sousa, concebido igualmente pelo próprio, no contexto
da sua homenagem que, pelas suas características de apresentação das suas múltiplas
actividades, foi colocado no início.
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

Abordagem do espaço multidisciplinar na obra de Rocha de Sousa


(por Rocha de Sousa, 2017)
Rocha de Sousa obteve as suas graduações em áreas artísticas na Es-
cola Superior de Belas-Artes de Lisboa, tendo desenvolvido actividades
no domínio científico e pedagógico das artes plásticas, tecnologias afins,
bem como, na Universidade Aberta, enquanto formador da mesma e do-
cente, estudos de tecnologia da comunicação áudio-visual, construção de
estratégias de conteúdos, didáctica da educação visual.
Os dados correspondentes a esta síntese são os seguintes:
1. Artes Plásticas Pintura, desde fases de iniciação à linguagem, como
práticas de género e especialidade, segundo incidências ligadas ao dese-
nho, através de meios convencionais e de especialidade gráfica. Antes disso,
acedera ao estudo da banda desenhada e outras modalidades relativas à
ilustração (com ampla prática “capista”, registos técnicos ou de guionismo,
além do apoio descritivo a narrativas literárias diversas).
2. A actividade dedicada à pintura, ao desenho e às técnicas mistas
(com apoio da colagem híbrida, fotografia e letrismo) emprestou à obra
geral de Rocha de Sousa características formais de vital identificação, o
cunho de uma visão do mundo e do Homem, a perspectiva da civilização
em diferentes níveis de conflito, numa ligação à dramaturgia de certos gru-
pos sociais, contraste de épocas e sinalização metafórica acerca daquilo a
que chamou “desastres principais”.
3. Partindo do conceito de mobilidade visual e na perspectiva multi-
disciplinar, Rocha de Sousa foi ligando as artes plásticas a modalidades
como a fotografia, com a qual aproveitou a parte destroçada da realida-
de num sentido ontológico dos vários tempos civilizacionais. Nesta linha,
a fotografia foi muitas vezes autónoma, (…), pintura/colagem/desenho.

240
Uma impressiva quantidade de colagens sobre
cartão madeira, em aproximação tanto ao de-
senho como à gravura e outras performances
neste tipo de expressão.
4. Tendo em conta esta metodologia, Rocha
de Sousa, que desde muito cedo acedera ao
visionamento do cinema, tendo estudado au-
tores e feito até crítica na imprensa, começou
a ensaiar com as antigas máquinas de 8mm,
super 8,8 mm digital, conseguindo, a certa al-
tura, trabalhar uma linha de ficção alegórica
ou metafórica, com materiais diversos e acto-
res (alunas/os da ESBAL), atrevendo-se depois,
embora sem cópia de montagem, a montar os
seus próprios filmes, pelo processo de “fita in-
visível” e através de uma moviola de razoável
recurso de imagem. O vídeo veio apagar das
nossas lojas o formato 8 mm, e, embora o filme

ROCHA DE SOUSA EM ENTREVISTA


em película seja outra coisa bem diferente da
base magnética das máquinas vídeo (vários
países fizeram questão de manter os dois pro- Figs. 1 e 2 Rocha de Sousa, artista
cedimentos), o imediatismo português atirou- (vídeo), meados dos anos 70. Imagens de
fotografias publicadas no blog Artestética,
-se às camaras de vídeo e estas (na origem de de Miguel Baganha.
produção) combateram o cinema de peque- Disponíveis em: http://migbag.blogspot.pt
no formato, dilatando depressa requisitos téc-
nicos e tecnológicos espantosos, permitindo
(…) a montagem e a sonorização através dos
seus meios subsidiários. Foi com um modelo
desses que Rocha de Sousa produziu, sozinho,
filmes de reportagem e ficção, trabalhando a
montagem dentro de fora da câmara e usan-
do (música e voz) as capacidades tecnológicas
da máquina de filmar para sonorização apro-
priada. No mix (fundido encadeado) usava, a
seu tempo, as propriedades da câmara, a qual
também lhe permitia, com ou sem movimento
e mistura, trabalhar o registo de letring. A sua
passagem pela Universidade Aberta permi-
tiu-lhe estudar e operar todas as fases na pró-
pria aula que geria, no Metrado Tecnologia e
Comunicação Vídeo. No cinema, cuja obras
constam de um arquivo da FBAUL, podemos
citar obras já decisivas como A morte de Ana

241
Orwel, A praga, Memória e ficção, Ruptura no interior, Tempestade, entre
muitos outros que levantam questões sobre guerra, a obra de arte, temas
existenciais e sociais.
5. Este trabalho incluiu um livro (Ver e tornar visível), publicado pela
Universidade Aberta e obras em vídeo (didácticas) sobre a comunicação
neste campo. Este campo (integrado também pela fotografia, permitiu a
Rocha de Sousa desenvolver na ESBAL um processo de diaporama no qual
fazia as imagens e o som, bem como as misturas, tendo em vista temas de
certas unidades didácticas: sobre pintura, desenho, a mobilidade visual, as
correntes artísticas. Deve considerar-se que a visibilidade do cinema e a sua
produção, permitiram a este autor aceitar o encargo de fazer guiões para
séries culturais de arte emitidas pela RTP. Trabalhou nesse campo com José
Elyseu. Cada série implicava 12 filmes de 25 minutos. O primeiro, curiosa-
mente num tempo em que a televisão ainda era a preto e branco (Portu-
gal), chamou-se Aproximação à Pintura. Na RTP, quem iniciou o convite foi
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

Carlos Cruz. Das muitas séries desenvolvidas, algumas acentuaram diver-


sos conceitos de fundo sobre o Homem e as suas práticas culturais, entre
civilizações. Daí também foram abordados diversos artistas portugueses,
grupos, tendências, enquadramentos antropológicos. Certas perspectivas
históricas foram tema e exemplo, incluindo as vanguardas e os modos de
formar que nos legaram. Curiosamente, na perspectiva internacional, e o
último filme que as séries produziram (tendo acolhimento na representação
portuguesa à Bienal de Veneza) chamou-se: Um olhar para depois de Abril.
Nota: a informação completa, de títulos dos vários géneros de obras
de Rocha de Sousa constam de toda a informação recolhida pela Profes-
sora Maria João Gamito, incluindo sinopses e referências a modalidades
artísticas mais remotas, bem como todo o currículo multidisciplinar artís-
tico, além do didáctico-pedagógico.
6. Um dos aspectos que também percorreu a obra de Rocha de Sousa
e alcançou visibilidade nos últimos tempos refere-se à literatura e ensaio,
embora desde muito cedo, já como docente, desenvolvesse actividade
crítica em diversas publicações: crítica de arte sobretudo e alguns exem-
plos de crítica de cinema.

242
Entrevista com João Manuel Rocha de Sousa de empresas, que padronizavam muitas
(6 de Outubro de 2006) coisas, como a Cerâmica e os Têxteis, por
exemplo. Houve muitos formados, nessa
Conte-nos a sua história de entrada, altura, que foram para essas áreas todas
como professor, nas Belas-Artes. Como fazer o desenvolvimento da sua cultura
é que foi? artística de base, quer dizer, da formação
Bem, isso é uma história que tem, por um inicial, dando origem a projecções profis-
lado, um aspecto quase de ficção roma- sionais muito diversas. Isto, entre os anos
nesca, e, por outro lado, é uma entrada 50 e os anos 70 e tal, 70...
simples, normal, como era naquela altu- O que acontece é que esses mesmos di-
ra. Eu era um dos melhores classificados, plomados – como eu o fui na altura – eram
e, nessa altura, o convite para Assistentes pessoas que tinham, também, uma quali-
– porque tinha saído a reforma de 1957 e dade reconheci da pelos governos de en-
já havia essa nomenclatura, dantes eram tão – e é curioso que os governos de então
nomeados de outra maneira – era feito, fazem uma grande diferença dos de ho-
simplesmente, através das notas, e iam je, eram os governos dos consulados de
baixando o grau de qualidade dos convi- Salazar, repare-se, mas, no entanto, eles
tes, conforme as notas iam descendo e não tinham a percepção de que os artistas,

ROCHA DE SOUSA EM ENTREVISTA


havia candidatos. A verdade é que havia, assim chamando, em geral, tinham uma
de facto, muita gente que se tinha forma- grande abertura ao universo da realidade
do, desde 1932 até 1957, com altas qua- social, ao universo da realidade científica,
lificações, e que tinha sido formada pelo e, sobretudo, nas concepções superiores
espírito que era próprio da Escola, nessa do Homem, do espírito, etc. – e, portanto,
altura. Apesar das suas mazelas, dos seus essas pessoas eram metidas, muitas vezes,
defeitos, dos seus atrasos, disso tudo, ha- por convite, evidentemente, como direc-
via uma cumplicidade e uma pluralidade tores das antigas escolas técnicas que, em
de comportamentos, que permitia a saí- má hora, foram destruídas. Estas escolas
da de formados em Pintura, Escultura ou eram também muito polivalentes, com os
Arquitectura, com um leque de aberturas cursos comerciais e com os cursos indus-
muito grande, que não era propriamente triais. Era onde se aprendiam coisas que
dado pelo curso, mas pelo espírito que davam acesso a fábricas altamente quali-
se vivia dentro da Escola, uma vez que ela ficadas. Vou-lhe dar um exemplo: a Escola
ainda não tinha muitos alunos, nessa altu- Técnica de Silves – que foi uma das últimas
ra. Portanto, essas pessoas saíam com uma escolas a ser feitas nesse sentido – tinha
possibilidade muito grande de aceder ao equipamento de tal ordem, que chegou a
professorado no ensino secundário e no ter um protocolo de produção com a maior
ensino superior também, para os primeiros fábrica de maquinaria agrícola, que havia
ciclos das Artes Plásticas, evidentemente, nessa mesma cidade, e que ainda hoje
ou de Arquitectura. Para além disso, como existe, mas, enfim... definhada. Portanto,
não havia Design, os alunos tornavam-se está a ver o que era isso.
designers por curiosidade própria, indo lá Ora, eu saí da Escola Superior de Belas-
fora, tirando bolsas d e estudo... E, depois, -Artes com essas qualificações e com es-
também havia um mercado de trabalho junto ses apetites, pelo Cinema, pela Televisão e

243
pelas Artes Plásticas, em particular, embo- Nós tínhamos que fazer uma matrícula
ra não houvesse elementos fundamentais, nesse curso, que era composto por cin-
como livros e revistas, que eram trazidos de co cadeiras – se não me engano – íamos à
França, sobretudo. O Teatro também nos Faculdade de Letras tirar essas cadeiras,
interessava muito. Interessavam-nos essas a fim de anexar ao nosso currículo cientí-
artes todas, que estavam ligadas à pintura. fico, o pedagógico, para poder ter acesso
A gente fazia a interactividade nos cafés e à efectividade como professor no ensino
nos ateliers que formávamos em conjunto. secundário.
Portanto, a minha formação, esta formação
que era depois da Escola, ou entretanto Portanto, foi professor do ensino
com a Escola, permitiu-me, de facto, não secundário?
só ter uma boa nota final, 18, como ter co- Fui professor do ensino secundário duran-
nhecimentos, cultura, para poder aceder à te poucos meses. No final do curso nós fa-
Escola, mesmo que a Escola não me desse zíamos uma tese que era uma obra práti-
uma formação pedagógica ou didáctica, ca, que tinha um discurso de sustentação.
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

nesse sentido. E, se calhar, ainda bem que Era um júri que a classificava – não havia
não me dava, porque as Pedagógicas que provas públicas, classificava – e, portanto,
eu tirei na Faculdade de Letras, nessa altu- eu tive essa nota final de 18, com essa te-
ra, que eram necessárias para ser professor se. E as Pedagógicas não contavam para
no ensino eram, de facto, uma coisa que a entrada, como docente, nas Belas-Artes.
entrava por um ouvido e saía pelo outro. O que contava era a tese e a nota. Nem
Eu entrei na Escola por convite, depois de era a tese, era a nota final do curso, que
fazer a Guerra de Angola, para a qual fui a te se consubstanciava. As Pedagógicas
empurrado em 60, quando tinha acabado eram necessárias para poder ser professor
o curso. E entrei por convite, visto que os efectivo no ensino secundário, mais tarde.
19, os diplomados com 19 – que eram o
Daciano, o Manuel Baptista, e não sei se Então, frequentou as Pedagógicas an-
mais algum – foram sendo, sucessivamente, tes de ter ido para a Guerra ou depois?
rejeitados por informação da polícia po- Antes, antes. Fiz tudo antes de ir para Guer-
lítica, a PIDE, que era imprescindível para ra. Fui fazendo as Pedagógicas à medida
dar uma informação para que as pessoas que ia tirando o curso. Uma cadeira num
convidadas fossem integradas na Esco- ano, uma cadeira no outro...
la. Porque, se não houvesse informação...
E era possível fazê-lo dessa maneira?
Se não houvesse uma aprovação, di- Era possível era. Eram os chamados alunos
gamos assim. voluntários, que eram muito mal vistos na
Sim. Eles tinham as fichas preenchidas. E Faculdade de Letras, mas que os professo-
eu, por acaso, não tinha. Embora tivesse res eram obrigados a respeitar, e também a
uma opinião que não era muito favorável auxiliar com algum material, visto que eles
ao regime, evidentemente. Mas eram coi- não assistiam às aulas. Podiam assistir às
sas que a gente discutia na intimidade, nos aulas se tivessem tempo. Iam lá, uma vez
cafés, nas tertúlias, que havia muito nessa por outra, e iam-se informando, e iam len-
altura. Agora, em relação às Pedagógicas. do as sebentas que eram publicadas pelos

244
professores. Era através disso que a gente falar sobre a História da Arte. Lembro-me
trabalhava. Depois, tínhamos os exames... dos apontamentos das cadeiras dele, que
diferiam com o tempo, porque ele não era
Mas, dizia-me há pouco que as Peda- imobilista, não tinha uma sebenta para um
gógicas era uma coisa que entrava ano e, depois, para os dez anos a seguir.
por um ouvido e saía pelo outro. Ele levava aquilo a sério.
É verdade que havia professores notá-
veis, nomeadamente um, que era o Del- Portanto, quando entrou como profes-
fim Santos. Era o Professor de História da sor nas Belas-Artes, tinha como forma-
Educação, que eu hoje ainda me lembro ção inicial o curso de Pintura, não é?
e ainda cito. Foi o reformador do ensino Inicial e final. Eu matriculei-me antes da re-
secundário, no chamado ensino prepara- forma de 57. Entrei, depois, para os pro-
tório, e que foi um homem que tinha, para gramas de 57, mas matriculei-me ainda nas
a frente, uma visão! Que lhe não deixavam, sequelas da reforma de 32, que era abso-
evidentemente, efectivar, no ensino supe- lutamente incrível [tom depreciativo]. Mas,
rior. Ouvi-lo impedia que nós escrevêsse- aquilo dava, em certos aspectos da prática,
mos alguma coisa, porque a qualidade do uma capacidade artesanal muito grande!
discurso era de tal ordem, era de tal ordem Nós, por exemplo, na Pintura, domináva-

ROCHA DE SOUSA EM ENTREVISTA


fascinante, que não nos permitia escrever. mos perfeitamente as técnicas – quando
Naquele tempo havia muito os alunos es- havia talento para isso, porque há um ta-
cribas, que tinham a qualidade de escrever lento genético, digamos assim, que vem
com uma grande velocidade – também ha- connosco, que uns têm e outros não têm,
via estenografia, mas isso aprendia-se nas e uns têm mas não desenvolvem, e outros
escolas técnicas –, que chegavam a casa, sabem desenvolvê-lo melhor. Quando nos
passavam aquilo a limpo, e, depois, dacti- obrigavam a fazer técnicas de cópia de pin-
lografavam e faziam sebentas a partir dali. turas antigas, as pessoas que tinham mais
Em geral, essas sebentas eram autenticadas capacidade para fazer determinadas mis-
pelos professores. Quando acabávamos o turas, avançar, voltar para trás, ir fazendo e
curso, nós tínhamos uma ideia muito vaga imitando aquelas coisas, por aqueles pro-
dos seus conteúdos. E, mesmo que as fôs- cessos que eles nos indicavam, das nove
semos consultar, por termos algum livro, cores, numa paleta, ficavam com um trei-
ou, sobretudo, alguns apontamentos – por- no extraordinário para conseguir manejar
tanto, as sebentas – o que elas nos diziam tintas, fazer nuances, fazer valores, o que
não se reflectia, em termos didácticos e tanto se pode aplicar a uma arte académi-
pedagógicos, sobre o exercício do ensino ca – como a que nós fazíamos, por cópia,
nas Artes Visuais. Não tinham nada a ver! nessa altura – como a uma arte moderni-
Excepto a História da Educação, pela qua- zante, na altura, ou moderna já, que nós
lidade que ele dava aos conceitos à volta praticávamos, “clandestinamente” cá fora.
do Humanismo, da Renascença, e dessas
coisas todas, em que ele metia a Educação Sim. Mas, se calhar, não era muito
no húmus, no caminho, digamos assim, da aceite dentro da Escola.
Arte. Quer dizer: o Delfim Santos não con- Não. Na escola não era possível, mesmo.
cebia falar de História da Educação sem Fazer arte abstracta, por exemplo, era

245
perfeitamente impossível, nesse tempo. Era Tinham uma orientação, mas não era
proibido. Estávamos em 61/62. Mas, depois, uma orientação lectiva.
isso desapareceu tudo. Esse clima copista E era um concurso de três obras cada, so-
foi, de facto, até muito próximo de 1973-74. bre retrato, por exemplo, figura humana,
Houve uns professores que entraram para paisagem urbana, paisagem... O que era
a reforma de 57, antes, nos anos 60, que mais? Eram muitas coisas deste género.
eram pessoas muito cultas e avançadas no E estes concursos eram classificados por
domínio da Arte: Frederico Jorge, Manuel pontos. Eram uma antecipação dos cré-
Lapa, pessoas desse género, que ensina- ditos. Está a ver estas coisas, como foram
ram, ao mesmo tempo, os alunos de 57, aparecendo? [risos] E o que é que nós fa-
e os que vinham da reforma de 32 (como zíamos? Se nós tivéssemos notas iguais ou
nós), porque as aulas eram semelhantes, superiores a 14 somávamos, praticam ente,
eram parecidas. Portanto, ensinaram-nos, os pontos todos, que aquele concurso, de
através de técnicas novas, deram-nos a cabeça, de retrato... exigia. Por exemplo,
conhecer a Têmpera, o Mosaico, e outras 14 no primeiro trabalho, 14 no segundo,
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

coisas, que não faziam parte da reforma de 15 num outro, estava automaticamente
32. Assim, nós ficámos com uma formação passado. Mas isso era raro. Isso acontecia
híbrida mas, ao mesmo tempo, muito rica. aos alunos que eram mesmo muito bons.
Quem não fazia isso tinha 12, 11, 10. Tinha
Porque juntaram os aspectos positi- que repetir o concurso. Houve pessoas que
vos das duas reformas. levavam… Houve pessoas que o prolonga-
Exactamente. Portanto, saímos assim. mento foi até 1974, para as pessoas que
não tinham acabado esses concursos, para
A sua formação, quando começou quem ficou por lá... E havia uns professo-
como professor nas Belas-Artes era a res nomeados para irem julgar esses con-
formação de Pintura e as Pedagógi- cursos, que, em geral, davam valores para
cas, que tinha feito em Letras. despachar as pessoas... Mas nós acabámos
Sim. Eram três planos, por causa desse ra- por encontrar algumas dessas pessoas em
mo que vinha de 32, e que restava para nós 1975-76! Pessoas que não tinham sido ca-
também. Porque a gente podia mudar para pazes e, por tanto, desistiam durante anos.
a reforma de 57, completamente, ou não, E, não tinham, portanto, as classificações
mas aproveitámos apenas a parte pedagó- todas para ir para o ensino. Podiam ir pa-
gica e científica, e não a parte administrati- ra o ensino, mas não chegavam ao topo.
va. Por uma razão: nós estávamos quase no Mesmo para ser professor efectivo do en-
fim, e, portanto, era esquisito. A diferença sino secundário era preciso, depois disso
é esta: nós tínhamos quatro anos de Cur- tudo, mesmo tendo as Pedagógicas, fazer
so Geral e, depois, tínhamos dois anos de um Exame de Estado. Esse Exame de Es-
Curso Especial de Pintura ou de Escultura. tado era uma espécie de Doutoramento,
Esses dois anos eram feitos por concursos, algo muito pesado. No ensino superior,
que podiam não ser trabalhados na Escola, quando passámos para o regime da refor-
podiam ser em ateliers nossos. Os professo- ma de 57 – ao nível administrativo, cá está
res iam lá ver, se fosse necessário... –havia uma agregação, que era equivalente
aos Doutoramentos da altura. Havia uma

246
prova teórica, a tese, que era defensável. aquilo com o intuito de estudar a sério, fa-
O que é que havia uma especificidade. Tí- zer trabalhos de investigação, quando era
nhamos que fazer trabalhos de Pintura, que possível. Na Arqueologia existiam trabalhos
era a grande pintura, a pintura de modelo, de investigação, e na Estética também. E
e uma lição de 15 pontos tirados à sorte, eu fiz alguns trabalhos desses, com outros
que era o que acontecia na Faculdade de alunos. E, depois, a própria tese. Portanto,
Letras, só que não tinham Pintura. acedi a esse bloco de informação, que era
Quando, em 1972, o ensino mudou, com necessário se nós quiséssemos ser hones-
aquela reforma, houve um erro, que nou- tos connosco, se nós quiséssemos fazer
tro sítio, por exemplo, na América, podia-se depois o doutoramento, que não era dou-
chamar crime – e nós também o podíamos toramento, não era chamado assim, era
chamar, se tivéssemos capacidade para is- agregação. Mas, a verdade é que, se nós
so – que foi abandonar o cumprimento da fossemos chamados por uma Universida-
reforma de 57, na transformação da Univer- de, para sermos professores de qualquer
sidade. Quando se transformasse a Univer- disciplina, que tinha sido criada, com uma
sidade, as Escolas de Belas-Artes tinham base artística, eles tinham que nos vir cha-
que ir atrás, está lá escrito no regulamen- mar a nós, porque só nós é que éramos os
to. Como não transformaram os concursos especialistas dessas áreas em Portugal. Não

ROCHA DE SOUSA EM ENTREVISTA


das Escolas Superiores de Belas-Artes, mas havia mais ninguém.
sim os Doutoramentos das Universidades,
os nossos davam assistentes, que sobrevi- Como aconteceu depois, quando cria-
veram quase trinta anos, e que já não ha- ram as Escolas Superiores de Educa-
via. Havia os professores auxiliares, depois ção. Também foram as pessoas forma-
associados. E nós fomos ficando ali, sem das nas Belas-Artes que leccionar os
protestar. Fizemos uns protestos mais ou cursos nas ESEs.
menos românticos. Mas aquilo era uma Exactamente. Foram leccionar. Mas essas
coisa de tribunal, era um erro grave, uma ESEs eram escolas menores. Porque, em
falta de cumprimento da lei. Mas, enfim… boa verdade, não formavam em qualidade
o país era assim. e sentido polissémico a capacidade da pes-
soa para ensinar. Eram muito peque ninas,
Já como professor, nas Belas-Artes, muito redutoras. Portanto, daí não saíam...
complementou a sua formação a ní- Nós saíamos, e continuamos a sair, com
vel científico e pedagógico? Realizou mais formação do que esses.
outras formações, para além daquelas De maneira que eu fiz formação através,
que já tinha? digamos, de trabalhos que fazia para o ex-
Complementei, mas não fiz formações for- terior e sobre os quais tinha que estudar.
mais. Quer dizer: eu fiz, sobretudo, vários Porque, por exemplo, se eu quisesse fa-
estudos à volta dos problemas com que me zer um trabalho em azulejo, como não ti-
debatia no ensino. Porque, quando eu me nha azulejo lá na Escola, tinha que estudar
tornei professor, eu tinha uma bagagem cien- Azulejaria – tinha lá o Mosaico, mas tirando
tífica, cultural e artística que era, digamos isso... E fui criando capacidades. Onde eu
assim, menor. E só não era menor porque me especializei mais, porque tive uma en-
eu não fiz aquilo para ser professor, só. Fiz comenda de grande formato, foi Tapeçaria.

247
Trabalhei na Tapeçaria e, curiosamente, vim
a ser professor de Tapeçaria, depois. Ora,
nunca me tinham ensinado Tapeçaria. Por-
tanto, eu entrei para a Escola, para Assis-
tente da Escola, podendo ser chamado a
leccionar a cadeira de Tapeçaria, sem ter
formação em Tapeçaria, logo, tinha que ir
estudá-la, como aconteceu realmente. Por
acaso, eu já tinha estudado antes, porque fiz
um trabalho importante para Moimenta da
Beira, para um Palácio da Justiça que havia
lá, e eles usavam muito tapeçarias de Porta-
legre. Eu fui a Portalegre, estudei, e depois
fui a França ver o Aubusson…
Portanto, estas são autoformações e forma-
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

ções de carácter contínuo. Eu lia muito... Por


exemplo, a Estética: nós tínhamos uma for-
mação estética superior, mas se tivéssemos
que dar aulas era preciso “autoformarmo-
-nos”. Nós, normalmente, não éramos cha-
mados para a Estética, eram mais os profes-
sores vindos da Faculdade de Letras, mas
a verdade é que, em certos casos, éramos.
Portanto, tínhamos que ter essa qualifica-
ção, e isso só acontecia fazendo essa auto-
formação contínua.

Até mesmo para leccionar as discipli-


nas de carácter prático, a formação
estética é imprescindível.
Absolutamente. Por vezes, tínhamos mo-
Figs. 3 e 4. Capa do Boletim n.º 1 da Escola Superior mentos em que toda a cadeira prática, logo
de Belas Artes de Lisboa, 1959 (à esq.) e retrato do no início, pela nossa própria consciência,
“Professor Doutor António de Oliveira Salazar” enquanto
“figura ilustre ligada à nova orgânica do ensino de belas
assentava no conhecimento estético. Não
artes”, no interior do boletim, s/ p. (à dir.) porque o director nos obrigasse a isso – o
director era uma espécie de Salazar em
pequenino, com os mesmos hábitos, as
mesmas obsessões, os mesmos impedi-
mentos, as mesmas proibições, tal e qual a
mesma coisa. Era, aliás, um representante
do Governo. Os directores eram chamados
por nomeação política e não científica. Por-
tanto, nós fazíamos essa formação assim.

248
E todos os anos colocavam a lista dos que é que eles faziam? Tinham que fazer
alunos. uma teoria daquilo, isto é, contar como
Exactamente. Os alunos todos que havia. se faz Cerâmica! [risos] É absolutamente
O Paulino Montez teve a veleidade de fa- espantoso! Contar como se faz Cerâmica,
zer um levantamento da própria “ciência” fazer sebentas de Cerâmica, mandar vir
que enformava a constituição dos cursos. livros de Espanha (porque não havia cá)
Surgiram, já na reforma de 57, capítulos de Cerâmica, Vitral, etc. Vitral chegava-
feitos por ele, que começavam por “Da -se a fazer, mas fora, no atelier do Teixei-
formação...”, “Da ciência”... [risos], o que ra Lopes, porque ele tinha equipamento
era uma nomeação arcaica. Mas, enfim... para isso, e as pessoas iam lá ver. Eu fiz
Ele tinha artigos sobre isso e foram pu- Vitral por curiosidade, mas apenas por-
blicados, mais tarde, os debates na As- que era um colega, e entrei como irmão
sembleia Nacional, sobre a reforma de dele, par a fazermos um vitral para um ja-
57, debates que são muito interessantes zigo, uma encomenda. Portanto, era isso
de seguir, porque, nessa altura, toda essa que acontecia.
gente, mesmo as elites que formavam o A minha formação é feita, sobretudo, nos
regime – e havia elites –, não defendiam grupos de pessoas que se organizavam
a formação do professor, do artista e pro- na Sociedade Nacional de Belas-Artes, na

ROCHA DE SOUSA EM ENTREVISTA


fessor, senão como um mero adestramen- Cooperativa de Gravadores, e noutros sí-
to das capacidades da pessoa, dos seus tios... Nessa altura, eu estava cá. No Porto
dons, do grande treino do fazer, nas vá- havia a ÁRVORE, onde faziam estudos que
rias tradições artísticas, sobretudo o óleo não eram pós-graduados, mas que eram
sobre tela. Daí, derivou um preconceito, apropriações de técnicas novas, que vi-
que ficou na sociedade, ainda hoje. Um nham do estrangeiro, e que não havia cá.
cliente vai a uma galeria e pergunta: “Isto Relativamente à literatura, nós não tínha-
é a óleo?”, “Não. É a acrílico.”, “Ah! Então mos literatura nenhuma! Não tínhamos
não quero.” Há este preconceito ainda. uma História de Arte! Não tínhamos uma
As tecnologias não eram cumpridas como História de Arte de bolso! Não tínhamos
cadeiras práticas, faziam-se uns sucedâ- nada! Tínhamos que ir estudar nas biblio-
neos disso. Mais tarde, quando vieram os tecas, e mesmo assim mal. O Museu de
professores de 57, chegámos a ir a fábricas Arte Antiga tinha uma coisa muito boa:
e a fazer alguns exercícios, mas as Tecno- artes de civilizações diferentes...
logias eram estudadas como cadeiras teó-
ricas, por imposição do Paulino Montez. Isso era complicadíssimo! Sem livros,
Mosaico, Vitral, Gravura... Gravura fez-se sem nada.
porque havia uns materiais antigos, das Era uma coisa horrível! Era uma coisa, ab-
Academias, e o Teixeira Lopes fez Gravu- solutamente, horrível! E não ter a visão!
ra a sério. Mas as outras cadeiras foram Não ver! Para um artista é absolutamente
leccionadas com visitas a fábricas. Mas, necessário ver. Nós víamos algumas re-
isso, por iniciativa dos professores, que produções, daqui e dali, mas, mais tarde,
eram já os novos Assistentes. Os outros após a reforma de 57, já próximo dos anos
subiram logo, e entraram novos Assisten- 60, começaram a aparecer outras coisas.
tes. Eu fiz já parte dessa fase. E, então, o

249
Deve ter sido assim como um mundo
que se abriu...
Sim. Havia coisas extraordinárias! E, so-
bretudo, os exilados políticos que, às
vezes, conseguiam voltar, próximo do
fim dos anos 60, traz iam muitas coisas.
Muita gente ia para fora, com bolsas de
estudo, fazer estudos em França, ou em
Itália, ou em Inglaterra, depois – mais chi-
que em Inglaterra – e traziam coisas de lá.
Faziam-se cópias com meios fotográfi-
cos porque a máquina de fotocopiar não
existia, na altura – só havia o stencil, que
não dava para fotocopiar coisas – e essas
coisas andavam de mão e m mão! Eu nos
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

anos 70 já beneficiei de poder comprar


muitas coisas, até porque viajei e trouxe.
Fui das primeiras pessoas a ter o livro do
Arnheim – eu e outros, que foram lá fora,
e contactaram com o Brasil. O Brasil fez
a primeira tradução do Arnheim, que é a
Bíblia das artes e da percepção visual. O
Arnheim andava nas nossas mãos, e ser-
viu para muito. Eu acho que ainda serve.
Eu acho, curiosamente, que o Arnheim
nunca perdeu actualidade. Mesmo, hoje,
quando a gente se confronta com outras
coisas, na área do Design, ainda temos
ali uma base sólida. Sobretudo para criar
teorias à volta da percepção visual e das
artes visuais, nós podemos ir ao Arnheim
com mais segurança. Eu criei uma teoria
– foi a tese do meu doutoramento – que
Figs. 5 e 6. Capas das obras Arte e Perceção Visual, era a realidade, a percepção visual e a
Rudolf Arnheim, 1980 [1954] e T.P.U. 19 Desenho: área mobilidade visual. E esse conceito de mo-
artes plásticas, Rocha de Sousa, 1980
bilidade visual foi uma frase minha que,
depois, se foi criando, em teoria, em bo-
la de neve, e teve ligações aos conceitos
de nivelamento e de acentuação, acaban-
do por se projectar no primeiro livro pro-
pedêutico: Desenho: área artes plásticas
(1980), feito por mim.

250
Eu lembro-me de fazer o nivelamento porque eu era tido – isto não é falsa mo-
e a acentuação. déstia ou imodéstia –, como uma pessoa
Isso vinha nesse livro. E, antes disso, com muito habilitada nas especulações à volta
uma bolsa de estudo da Gulbenkian, tinha da arte, da teoria da imagem, da tal mobi-
sido feito um outro – menos bem feito, em- lidade visual. Eu fazia cinema, fazia outras
bora mais bonito como objecto – por mim coisas que não as artes plásticas propria-
e pelo Hélder Baptista, que se chamava Pa- mente ditas, e convidaram-me para ir pa-
ra uma didáctica introdutória às Artes Plás- ra a Universidade Aberta. Fui convidado,
ticas (1977). Portanto, está a ver como as e, nessa altura, é que foi preciso, pela pri-
coisas não acontecem s ó no estrangeiro? meira vez, justificar que a agregação tinha
Um livro desses, feito por portugueses, não o mesmo valor do doutoramento, porque
é? Depois, fizemos um livro de Educação eles queriam um professor, mas tinha que
Visual para a Educação Visual das Escolas. ser doutorado. Então, a Escola Superior
de Belas-Artes de Lisboa e a Universida-
Aceder ao que acontecia, quer ao ní- de Aberta analisaram as leis e provaram
vel do ensino, quer das artes visuais, por a+b que, pela agregação da Escola, a
devia ser muito difícil, também, devi- minha qualificação era igual a doutorado.
do a isso, não é? Havia essa... como E publicaram-no numa folha inteira [risos]

ROCHA DE SOUSA EM ENTREVISTA


que obstrução... do Diário da República. É claro que isso,
Obstrução e proibição mesmo. Era muito hoje, desapareceu, porque agora há dou-
difícil estar actualizado. E, curiosamente, tor amentos. Mas, quando já havia douto-
por isso é que foram os tais os artistas pa- ramentos, havia ainda uns restantes can-
ra as Escolas Técnicas. didatos a agregados na Escola Superior
de Belas-Artes, que podiam deixar isso e
As mudanças, nessa altura, deviam fazer o douto ramento, ou então fazer a
ser muito difíceis de ocorrer, porque agregação, para a qual já se haviam can-
como não havia essa comunicação didatado, e tinham planos, etc.. Portanto,
com o exterior. isso é importante, porque a formação foi
Muito poucas, muito poucas. Não havia, até lá mais à frente e, depois, teve e feitos
não havia. retroactivos, já como professor. Agora, nessa
A minha formação foi sendo feita dentro e altura, a minha formação foi feita, sempre,
depois da escola, com trabalhos, quando através das instituições que havia, inclusi-
já era possível, quando já era outro direc- vamente do Centro Nacional de Cultura,
tor e nós podíamos fazer determinados porque não tínhamos outras coisas para
trabalhos, avançar, ir ao estrangeiro, fazer fazer. Quanto às Pedagógicas, eram algo
determinados trabalhos cá fora, encomen- institucional, porque as Pedagógicas, em
das ou não, e publicar livros. No fundo, ter boa verdade, não serviam para nada, em
um curriculum vitae que justificasse a nossa relação à nossa actividade cultural.
candidatura à agregação, isto é, ao dou- Quer dizer: era mais importante entrar
toramento, e, por fim, a graus superiores para professor de formação artística na
do ensino. A nossa formação toda foi to- Sociedade de Belas-Artes e fazer aí expe-
da feita assim e, no meu caso, mais tarde, riências pedagógicas novíssimas, que ter
foi completada, amplamente completada, as Pedagógicas. Mas a gente tinha antes

251
as Pedagógicas, porque o tempo é inexo- Nós vemos um Columbano, que é muito
rável: o passado, o presente e o futuro. Há diferente de um Veloso Salgado, ou muito
formações a montante, que não poderiam diferente de um mais recente Malta, que
ter sido feitas de outra maneira – hoje, po- fazia aqueles retratos das senhoras, uma
dem –, e a jusante, que podiam ter sido fei- pintura lambida. O Columbano tem aque-
tas de outra maneira – e que eu aproveitei las manchas... Isso é a técnica do autor, no
para as fazer, claro. sentido do fazer, do criar sobre a tela...
Ele em vez de fazer deslizar o pincel, fez
E aspectos negativos da sua formação por manchas que se contrapõem umas às
nas Belas-Artes, portanto, da sua for- outras, foi fazendo, assim, os v alores. À
mação em Pintura? De que maneira é distância aquilo é de uma verosimilhan-
que isso se reflectiu na sua actividade ça extraordinária! Ao pé, nós vemos es-
docente? sa textura, e esses valores mudarem com
Veja, é uma pergunta que dá para fazer uma fronteira. É absolutamente fabuloso
um livro. Mas posso dizer coisas sobre fazer isto! Não tem sentido hoje, mas...
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

isso. Até porque há coisas muito impor- até tem. Os hiper-realistas chegaram a fa-
tantes, nesse aspecto, como aquilo de zer um pouco isto. Não. O hiper-realismo
que eu lhe falei há bocado: as pinturas a não fez isto, quiseram foi aproximar-se de
que eles chamavam cópias, não chama- um verismo, que veio por via fotográfica.
vam interpretação, chamavam pintura de Ora, nós fazíamos isto. Isto dá um treino!
modelo vivo, mas, na designação interna Que permite, depois, cá fora, profissional-
dos conteúdos da cadeira, estava cópia mente, levar isso à letra, ou não, e em con-
do modelo vivo. fronto com coisas modernas... Porque, a
Fui encontrar isso nos anos 70, no Royal Modernidade, no século XX – que foi uma
College, na Inglaterra – mais avançado –, revolução absolutamente extraordinária,
onde em Design, tinham cópia de modelo em todos os sentidos, até para a asneira
vivo. Eles faziam, na altura, muito tempo – permitiu que alguns autores, com forma-
depois – quando a gente a desprezava –, ções académicas, pegas sem na fotogra-
cópia de modelo vivo, a lápis, porque isso fia, e pegassem noutras coisas..., como a
era fundamental para conhecer a mecâni- gestualidade, e as juntassem na mesma
ca do corpo humano, as suas estruturas, tela. O que acontece é que, depois, essas
a sua relação com os objectos. Daí estu- confrontações provocavam uma vibração
darem Ergonomia e Antropometria, etc. dialéctica muito grande nas obras de arte,
A gente passou, também, a fazer isso, ali e uma significação polissémica extraor-
na Escola, com a reforma, que fomos nós dinária! Claro que essas técnicas foram
que fizemos, a partir de 1975-76. Anterior- abandonadas, mas há quem as faça, ain-
mente, na Escola, a cópia dos modelos e da, e há escolas, no estrangeiro, que têm
a manipulação dos materiais pictóricos cadeiras nesse sentido, porque percebe-
era de tal forma apertada, tinha uma ma- ram, depois do abandono que houve, e
lha tão apertada, anti-liberal, anti-liberda- até do vilipêndio sobre elas, que era ne-
de, que nos obrigava a seguir técnicas e cessário andar por aí. A arte nunca perde.
tecnologias muito estreitas, sobretudo a Eram ferramentas extraordinárias para
pintura a óleo. aquele tempo, e para os limites daquele

252
tempo. Hoje, quem tem capacidade pode Escola que, na linha de uma perseguição
usá-las – e usam-nas – na arte de vanguar- orquestrada pelo director, fiscalizavam
da! Pode criar uma vanguarda, com um as aulas, sabiam o que é que se estava a
estilo de linguagem, um discurso muito passar lá, e iam ver se se estava a passar
avançado. Nessa época era impensável! como a direcção mandava. Mais – e nós
Era impensável fazer cópia de um mode- sabíamos – nós éramos vigiados durante
lo vivo e pôr por detrás o fingimento de a noite, não por estarmos lá, mas por ter-
um quadro gestual ou abstracto. Portan- mos deixado as coisas à vista. Um serven-
to, nós seríamos capazes. Alguns de nós te, um simples servente, juntamente com
seríamos capazes, mas não era aceite. Era o tal director esquisito, ia à noite com ele
impossível, era impossível. Os mestres – visitar… e depois, junto a quem de direito,
chamava-se mestres nesse tempo – não zelar, manipular o Conselho Escolar o mais
entendiam isso. Entenderiam os tais, da possível, através desse... amordaçamento.
reforma de 57, como o Manuel Lapa... E, As pessoas eram amordaçadas, de certo
mesmo assim, com alguns preconceitos. modo, eram castradas, eram impedidas
Um aspecto positivo: a capacidade de an- de fazer certas coisas. O próprio Conselho
dar à procura de conhecimentos que não Escolar, tendo um ou outro professor mais
havia, de ir buscar um livro ao estrangeiro avançado, como o Lagoa Henriques, que

ROCHA DE SOUSA EM ENTREVISTA


por dá aquela palha, de ir descobrir, nas veio do Porto para ali... Esse ainda dizia
bibliotecas quase fechadas, como a da uma coisa ou outra: “Na Escola António
Academia Nacional de Belas-Artes, coisas Arroio já se faz isto.” Isto a propósito de
que não eram acessíveis à Escola. Isto é, algumas perseguições pedagógicas que,
o desenvolvimento de uma capacidade já no meu tempo, como professor, aconte-
de investigação, no terreno. Nós, nos ate- ciam, e que chegavam a vir nos jornais, o
liers, fazíamos já a pintura que se fazia em que foi um bocado problemático. Eu tam-
Paris, que víamos por uns bonecos [risos]. bém vivi isso. Mas ele escondia isso. Ele
Mas era só por uns bonecos, não era pe- escondia isso um bocado. Nós é que so-
la teoria. Portanto, era uma imitação pra- fríamos isso na pele e, portanto, tínhamos
ticamente só através do ver e do sentir, que fazer coisas às escondidas. O que se
mas também da conversa, das tertúlias, fazia, visto que na Escola não era possível
dos livros, dos apontamentos, e de algu- trabalhar como queríamos, era ter ateliers
mas revistas que chegava m cá, que nós cá fora. De dia nós íamos fazendo bisca-
assinávamos – a Art Vivant, a Flash Art... – tes, como se costuma dizer, e reuníamos
e que foram, de facto, importantes. Essa várias pessoas para alugar um quarto. Às
era outra formação. vezes, alugávamos uma parte de casa, que
Coisas muito más: o medo. O avanço, a era muito típico nesse tempo. Havia muito
novidade, a inovação, ali, eram chama- o arrendamento das casas, e o arrenda-
dos à pedra. Não éramos postos na rua mento de parte de casa. Hoje não há na-
porque o director tinha medo de pôr as da disso. Hoje tem que se comprar uma
pessoas na rua, mas éramos castrados, casa. Hoje é outro terror, noutro sentido.
de certo modo, na nossa criatividade, por Mas, portanto, havia isso. Íamos para esses
isso – quer como alunos, quer como pro- ateliers, onde passávamos as noites, onde
fessores, mais tarde. Havia funcionários na fazíamos os concursos, onde vivíamos um

253
certo ambiente de libertação, de cultura, Mas, evidentemente, essas coisas vinham
de transmissão de conhecimentos e de confirmar muitas coisas que a gente tinha
discussão dos problemas... inventado, tinha pressuposto ou tinha vis-
to lá fora. E, portanto, tínhamos essa ca-
Como é que transportou essas vivências pacidade, e tínhamos mais idade, mais
para a sua actividade como professor? traquejo de comunicação, pelo que po-
Bom, essas vivências dão muito material. díamos fazer um ensino um pouco orien-
A autoformação e a formação contínua de tado nesse sentido. Por exemplo, mesmo
uma pessoa que se dedica a esse tipo de que os alunos nos tivessem ainda a nós,
coisas é transportada para o ensino, de- como professores disso, já dávamos di-
pois, mesmo que esse ensino esteja ain- cas completamente diferentes. Dizíamos:
da... delimitado, porque o ensino quando “Olhe, isto por aqui está anatomicamen-
eu entrei, como professor, na Escola Su- te tudo errado, por isto, por aquilo, por
perior de Belas-Artes, era ainda impos- aqueloutro, e porque você está a ver mal.
to pelo Paulino Montez, ainda não tinha A sua visão não está adestrada neste sen
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

mudado. Portanto, eu fui convidado para tido. Porque, por aqui, começar pelo fim...
exercer docência em Pintura do Natural e dá erros. Portanto, você tem que começar
numa tecnologia que eu tive que estudar, pelo princípio e para isso, nem que seja
porque não tinha conhecimentos. em casa, você tem que trabalhar à volta
Primeiro dei Mosaico. Íamos à Covina pa- disto, com um tratado de Anatomia, ou ou-
ra aprender os truques, para se aprender tra coisa qualquer parecida. Você tem que
aquilo, a ver... Até porque não há tradição começar pelas estruturas essenciais. Você
de Mosaico em Portugal. A Covina não tem tem que pôr dentro um esqueleto, que lhe
nada a ver com as artes, é outra coisa. Mas, configure tudo isto que está aqui. Este es-
pedíamos à Covina bocados daquilo, par- queleto que tem dois ossos aqui (o rádio
tíamos e fazíamos, depois, umas coisas que e o cúbito), tem vinte e oito músculos aqui
estavam abaixo de qualquer ensino supe- à volta. Ora bem, isso tem que ser estuda-
rior. O que é que os alunos percebiam o do de outra maneira, não é começar pelos
que é que seria o Mosaico, na medida em vinte e oito músculos para pressupor que
que fazíamos, no fim do ano, visitas a Itália isso tem uma estrutura lá dentro. Porque
e a outro s sítios, onde completávamos es- isso dá coisas anómalas, como você está
sa formação, à nossa custa. Isto era já como a ver.” Está a ver? Estes truques de meto-
professor. Bom, o que é que a bagagem tra- dologia pedagógica eram usados por nós,
zida da Escola Superior de Belas-Artes me traindo uma metodologia que começava
tocou, como professor, não é? Serviu para pelo fim, pelo telhado. Portanto, nós fa-
muito pouco. Serviu p ara muito pouco, vis- zíamos isso. Mas o conhecimento das tais
to que todos os nossos alunos, nessa altura, coisas que o Columbano sabia, que o Ve-
aspiravam a uma liberdade que já viam nas loso Salgado sabia, e que muitos de nós
ruas e que já viam nas livrarias. Nós só está- sabíamos, por cópia, e por um martírio, ali,
vamos, nessa altura, a compra r e a apren- tinham a sua utilidade, para se comparar
der ao mesmo tempo que eles. Portanto, uma coisa com a outra, e, inclusivamente,
eles começavam a ter a curiosidade e nós para os alunos que queriam, de facto, tor-
começávamos a estudar, para dar força. nar verosímil uma laranja e uma pêra. Não

254
sabiam, porque eles começavam pelo fim. arrasado, como eles tentaram fazer, co-
E uma laranja e uma pêra é como o cor- mo uma guerra feita por uma artilharia
po humano! Muito menos, não é? E, aí, se potentíssima, que chega ali à Tchetché-
justifica as tais aulas de modelo vivo, que nia, e pum! acaba com uma cidade intei-
os ingleses tinham no Royal College, para ra. Não se pode fazer isso! Hoje, as pró-
designers de Comunicação, onde estavam prias guerras, apesar de condenáveis, são
todas as estruturas à vista: os esqueletos, feitas, como eles dizem, cirurgicamente.
os bonecos que s e articulavam... Nós vemos uma cidade bombardeada à
distância, e não se percebe que ela foi
Então considera que se perdeu algo bombardeada. Porque foi bombardea-
com a arte moderna? da aqui, ali e ali, através de informações,
Perdeu-se. Porque a revolução... A Arte através de uma electrónica precisa, que
Moderna cometeu erros. Cometeu erros os F16, esses aviões sofisticadíssimos (que
históricos, erros didácticos, pedagógicos, são obras de arte, de certo modo) man-
científicos... Porque a liberdade era até a dam, lá de cima, só para aquele sítio. Cla-
morte da arte, quase. Os dadaístas procu- ro, há efeitos contrários, que são muitos,
raram, de certo modo, estar contra a arte. em muitos aspectos. E há erros, também.
Eles eram anti-arte. E, curiosamente – se Veja como uma coisa destas, que é tão

ROCHA DE SOUSA EM ENTREVISTA


quiser pesquisar isso, se calhar já pesqui- terrível e contra a qual nós lutamos, muitas
sou... –, os dadaístas, ao fazerem anti-arte, vezes, tem que ver (se estivermos a dar
faziam arte, porque tinham uma cultura exemplos) com o problema da arte. Porque
artística. E, tendo uma cultura artística, o problema da cirurgia em arte, do acto
ou no terreno, ou na cabeça, porque ti- cirúrgico, também tem que ver com mui-
nham hábito de observação de obras nos tas coisas modernas que se fazem, e com
museus, eles, sem querer, quando rasga- coisas antigas que se fizeram. O Rubens
vam o papel, para o pôr em cima de uma dizia, assim, muito simplesmente: “Uma
Mona Lisa – faz de conta –, isso resultava pintura começa-se com uma vassoura e
bem. Não resultava escandaloso. Era es- acaba-se com uma agulha.” Queria ele
candaloso para o público, em geral. Mas, dizer que primeiro se davam as grandes
para nós, hoje, quando vamos ver muitas áreas, as grandes manchas, os grandes es-
dessas obras, sobretudo aquelas onde são paços... O que acontece em pintura con-
aplicadas letras, não resulta escandaloso. vencional, mas, verdadeiramente, também
Em termos formais, aquilo, por vezes, é na outra. Estrutura-se primeiro o plano.
fascinante! É fascinante! Isso não é um Eles até faziam traçado geométrico, de-
acaso, mas uma consequência de dois pois punham as grandes manchas (que,
comportamentos paralelos e complemen- às vezes, até eram os aprendizes que fa-
tares, na cabeça deles errados, mas com- ziam) e, a seguir, começavam a modelar,
plementares. E isso aconteceu em toda a puxando os valores para cima (porque a
arte do século XX, praticamente. Agora, tela era pintada primeiro), até que, a uma
o que eles fizeram foi tornar redutor o certa altura, o brilho dos olhos era dado
conhecimento mais subtil e mais qualifi- com a tal agulha. Enfim... de uma manei-
cado, que vinha das Academias. Isso não ra muito especial, claro.
devia, pura e simplesmente, ser negado,

255
Com base na sua experiência pessoal e difícil é melhor do que a outra trapalhada,
profissional, quer como aluno, quer co- quando estão muito tempo a ver, e acabam
mo professor, o que pensa ser importan- por perceber as diferenças.
te para se ser um bom professor, em tra- Portanto, a comunicação tem que ter esta
ços gerais? Um bom professor, no geral, exigência: a exigência do rigor e a exigência
sem ser nas áreas artísticas. da qualidade. E, isto, só se consegue com as
Um bom professor tem que ter a vontade e primeiras premissas que eu dei aqui há boca-
a capacidade contínua de se actualizar. Não do: a humildade, a capacidade de dialogar
pode parar num conhecimento adquirido, com as pessoas sem ânsia, sem totalitarismo.
e prolongá-lo como pedagogia pelos anos
fora. Isto é fundamental, seja que professor Isso foi o que aprendeu como alu-
for. O professor te m que ser um investiga- no, que, depois, transportou como
dor. Além de procurar novos conhecimen- professor!
tos, ele tem que saber relacioná-los, para Exactamente. Isto foi o que aprendi como
criar novas formas, novos sentidos, para as aluno, por que nós éramos vilipendiados,
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

coisas do mundo, e da arte, e do ser, e do ali, e nós vimos que o contrário é que tinha
estar. É fundamental. O professor tem que que ser adquirido. Claro que nem todas as
ser humilde, muito humilde como o artista. pessoas têm essa vocação! São arrogantes
O artista se não for humilde tem problemas por natureza, são impositivas por natureza e,
graves. Pode ser um génio, mas, em geral, às vezes, querem obrigar os outros a respon-
a relação dele com a colectividade não é fe- der sim, a uma coisa que é questionável. É
cunda. O professor, como o artista, tem que preciso questionar. Sempre que se diz que
saber que as coisas o ultrapassam, saber que uma coisa é muito boa, que é extraordiná-
está dependente delas. ria, é preciso questionar: “Mas, isto, daqui a
E, portanto, essa humildade tem que trans- mil anos, será visto da mesma forma?” Co-
mitir-se às relações com as outras pessoas. mo questionar uma Guernica projectada a
A humildade permite uma comunicação jusante, lá muito à frente, na civilização? É
mais fácil, e mais... Eu não digo mais objec- preciso questionar.
tiva, porque a comunicação não tem que
ser redutora, ela pode ser subjectiva e ser É preciso questionar e questionar-se.
qualificada na mesma. Aquilo que se faz na Exactamente, exactamente. O pressionar...
televisão, dizendo que estes bonecos to- Disse pressionar?
dos, a fazerem disparates, é o que o públi-
co quer, porque a cultura não presta, e não Não. Disse “questionar e questionar-
dá um rank viável, é um efeito da civiliza- -se”, a si próprio.
ção, e da globalização que nós temos, que Ah! O pressionar também existe. Pressionar
unindo tudo, misturando tudo, numa gran- existe, mas existe mais, não no sentido de
de caldeirada, toda a informação, montes forçar a pessoa, de prendê-la e amordaçá-
de informação para dentro das pessoas, ao -la, mas no sentido de a persuadir, de fazer
acaso, faz com que as pessoas não saibam com que ela veja, de repente, onde está a
seleccionar e, portanto, não saibam gostar maior claridade e a menor claridade, onde
de certas coisas. Não lhes educam o gosto está o valor de luz e onde está o valor de
e, por isso, só descobrem que a novela mais sombra, e a média luz.

256
Para se ser um bom professor pensa que podia ser a salvação do Mundo – ,
que também é necessária alguma pe- morrem ali milhares de pessoas, prova-
dagogia ou alguma preparação? velmente com acções humanitárias, de
É, é. Mas não o que existe actualmente. descarregar farinha e arroz, e com médi-
Quer dizer, vamos lá ver, isto é muito im- cos da AMI. Mas falta-lhes a humanidade
portante para si, para mim, e para todos verdadeira, a comunicação, a que alguns
nós. Os estudos pedagógicos e didácticos chamam o amor. Não tenhamos medo da
são necessários. Podem tomar-se em abs- palavra. Pode servir.
tracto, quer dizer: como ciências cuja ba- Portanto, eu acho que, para além da peda-
se e cujos conceitos e a sua história, a sua gogia, dada como é hoje, de uma maneira
evolução, nós estudamos, ou em concre- institucional, que dá pouco adestramento
to. O conceito de pedagogia que eu em- intelectual, manual e territorial, o que dá
preguei agora, para as qualidades como mais capacidade ao professor é extrair daí
professor de artes visuais, não tem nada uma nova área que é a metodologia. Criar
que ver com a pedagogia “científica” que métodos. Mostrar às pessoas como é que
se dava há trinta anos! Não tem. Portanto, a tal pintura, que se faz a óleo, daquela
há uma evolução nestas coisas. A ciência maneira, é útil na Modernidade, noutro
pedagógica foi uma moda. Os pedagogos ramo. Isto não é com as ciências pedagó-

ROCHA DE SOUSA EM ENTREVISTA


que invadiram, por aí, a nossa sociedade, gicas que se consegue. É com os métodos
e que, às tantas, tinham que estar em todo de comunicação, e comunicação pessoa
o lado, foram uma moda. Não é que eles a pessoa. Estou a falar no caso das artes.
sejam desnecessários e inúteis, estão é a A questão da humildade, da comunicação,
mais, por vezes. E bloqueiam a saída pa- estar junto, em proximidade das pessoas,
ra outras direcções, paralelas à psicologia para falar com elas, pessoa a pessoa. É o
ou à pedagogia. Mas havia a “invasão dos que precisa um professor que dá outras
pedagogos”, como dizia o Eduardo Prado actividades elevado à 5ª potência, sei lá!
Coelho, que fazia sobre isso uma coluna É uma coisa completamente diferente.
excepcional! Outra era a dos psicólogos, A pessoa tem que ser irmã da outra. Eu
que está e m curso. Você vê um desastre, posso estar num anfiteatro de 400 lugares,
ali na estrada, e já lá está o INEM, com en- estar a dar uma lição sobre teoria da ima-
fermeiros, para médicos, médicos e um gem, com imagem, ou sem imagem, e isso
psicólogo, que vai dar assistência psicoló- ser bom, e necessário, e conveniente. Mas,
gica às pessoas que estão traumatizadas. isto nunca servirá para nada – no caso das
Ora veja, se fizessem isso na Guerra do Ul- artes visuais, ou outras à volta – se nós não
tramar, com tantos traumatizados, como é estivermos junto da pessoa, e soubermos
que eles faziam, como é que a pedagogia distinguir a diferença, e tratar a diferença.
se fazia, ou como é que o auxílio que se A arte é um pouco solitária, na maior par-
dá às pessoas se fazia? Eu não sou contra te dos casos – a pintura, já o cinema não é
isso! Sou é contra o exagero. A propósito tanto, mas tem esse problema também –,
de tudo e de nada põe-se um psicólogo, e essa solidão só pode dilatar-se no bom
ali, a ajudar as famílias. E, a gente sabe sentido, e criar novos significados, se al-
que, na miséria mais contrastante, que se guém que se aproxima entra em empatia
está a verificar em África – um continente com essa pessoa, e são os dois parecidos,

257
mesmo que não sejam. “Você está a fazer falar das artes plásticas em geral. Porque,
uma arte que eu nunca farei, mas com- depois, o Cinema tem coisas iguais, dife-
preendo.” Eu, como professor, tenho co- rentes, mas são coisas que têm tecnologias
nhecimentos, tenho que ter conhecimen- avançadas, e têm, depois, o assistente de
tos. Posso não gostar, mas compreendo. E câmara, o montador, e... é diferente. Mas,
posso falar sobre ela, e posso dizer como em qualquer dos casos, põem problemas
é que ela se desenvolve no espaço e no interrelacionados. Há bocado, quando falei
tempo, e qual a história dela, e isso leva- na metodologia, esqueci-me de falar de uma
-me a dizer: “Olhe, você está desfasada no coisa que é importante: a intertextualidade.
que quer fazer”, por isto e por aquilo. Isto Portanto, uma coisa entra pela outra, e faz
é uma conversa a dois. significar a outra, e a outra a primeira. Ou,
Curiosamente, nas artes plásticas, hoje, aquilo que se dizia, mas que é mais lato: a
por defeito e por virtude (são duas coisas interdisciplinaridade. E, também, outra coi-
que andam ali), os alunos têm os ateliers sa, que é a multidisciplinaridade. O autor
abertos das 8 às 8. Vão à aula quando o que consegue ser multidisciplinar, que faz
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

professor os solicita formalmente, ou vão pesquisa multidisciplinar, numa só obra ou


porque vão, não vão obrigados, quer dizer: ao longo da sua obra, pode ser apelidado
há uma grande liberdade de frequência. de incoerente, de muito mutável, mas se as
Isto tem efeitos de insucesso muito gran- mutações forem consequentes umas das
des. Mas tem, também, efeitos de suces- outras, e tiver essa noção, isto está bem,
so, que é o aluno descobrir-se a si próprio. e é óptimo. Se as mutações são fruto de
E, tem, na medida em que o professor se uma anarquia...
aproxima dele, quando estão três alunos
na aula e não quarenta, e leva ali três horas Do acaso?
a falar com esses três. E vai falar com um, Do acaso, e de uma falta, até, de honesti-
com outro, e com outro, em comprimen- dade, então, o resultado é mau.
tos de onda diferentes. Veja o que é, para
um professor, a dificuldade de trabalhar Portanto, íamos naquela parte.
assim. Mas também o prazer que dá, e a Aplicação. Aplicação. Claro que sim. Ao
compensação que dá, quando os resultados assimilar estas coisas, ao fazer muitos en-
são verdadeiros, quando a pessoa muda saios sobre estas coisas, tendo-me habi-
o azimute, a brisa tocou-lhe, e ela muda, tuado a escrever crítica da arte e ensaios
porque percebeu, e quando ela descobre em revistas da especialidade e em jornais,
outro caminho, quando ela descobre que consolidei sínteses, que podem também
está à procura de uma coisa que a informa- alargar-se às proliferações que podem
ção é que lhe deu, e não, propriamente, a dar, se nós fizermos o trabalho contrário
sua pesquisa, a sua questionação. Isto dá da síntese. Primeiro, faz-se a síntese e, de-
para dias, não dá? pois, pode-se abrir aquilo como um fruto,
que, de repente, se abre e tem miolos, go-
Em que medida é que coloca ou colo- mos e sementes, como a laranja... No fun-
cou em prática esse ideal de professor? do, estava dentro de uma embalagem, a
Eu coloquei em prática esta concepção gente desembala e aquilo, de repente, é
da relação do professor das artes. Estou a um mundo cheio de coisas importantes.

258
Isto é um dos princípios que eu apliquei o 1º ano, acabou.” Bom, eu sabia como
no ensino. O mais possível não ficar a fa- era o 1º ano. O meu 1º ano não tinha sido
zer natureza morta, como queriam, no 1º nada disso, mas eu sabia como era o 1º
ano, lá na Escola, do princípio até ao fim ano naquela actualidade. E eu desenvolvi
do ano, e começando logo pela natureza metodologias de apropriação das formas,
morta, que é um telhado! Portanto – como quer elas fossem geométricas, abstractas,
há pouco eu falei –, começando por fora. orgânicas, ou inorgânicas, por este méto-
Ora, a natureza morta não se começa por do de desmultiplicação de sentido e de
aí. Estudam-se as pessoas que fizeram as evolução. Cheguei a fazer telas, em que
naturezas mortas, estuda-se a qualidade havia quadrados, fazia-se uma represen-
e a evolução da natureza morta, fazem-se tação objectiva, no início – tanto quanto o
estudos isolados de evolução de formas, aluno era capaz – e, depois, começava-se
de acentuações, de nivelamentos, etc.. E, a fazer do princípio. Isto é, desde o prin-
depois, é que se pega naquilo, é que se cípio... até chegar a um objecto novo. Ha-
mete e que se mistura... segundo várias via desconstrução e reconstrução. Havia
metodologias da expressão, da técnica, alunos que tinham muita dificuldade em
da tecnologia, até chegar a um resultado fazer isso, é evidente. Mas fascinavam-se
formal que a pessoa considera acabado, com o método! Percebiam que aquilo, para

ROCHA DE SOUSA EM ENTREVISTA


ou não. Portanto, isto é fundamental: le- eles, era uma coisa completamente nova!
var para o ensino artístico esta constante Isso foi visto pelo director, numa das tais
oscilação e desmultiplicação das coisas. noites. Como as telas estavam todas pen-
E, também, quando é preciso, um projec- duradas, tinham todas uns quadradinhos,
to que tem, como o Design, um objecti- tinham todas... ele julgou que aquilo era...
vo, que tem um início, as informações la- pintura moderna! Ele não percebeu que
terais, o eixo orientador, até chegar... a era um exercício! Julgou que estavam a
uma cadeira, faz de conta. Há objectos fazer quadros modernos! E que eu tinha
artísticos que, aparentemente, não tendo ali uma receita para eles! No outro dia, os
estas coordenadas, no fundo, podem tra- alunos quiseram fazer um abaixo-assina-
balhar-se desta maneira. E, é preciso que do, logo, cedo. E eu fui à Reitoria, e disse-
os alunos tenham noção de que não é tu- -lhes: “Vocês tenham cuidado, porque ele
do caos, não é tudo libertário, não é tudo vai-lhes tirar as isenções todas. Não vale a
liberdade. Aliás, não há liberdade sem pena! A gente arranja maneira de resolver
responsabilidade. A desresponsabilização o problema. Eu ontem estive para me de-
criou erros. Que depois se emendaram, se mitir. Ontem à noite, em casa, cheguei a
estão emendando... casa e disse..., e a minha mulher disse-me:
Portanto, eu utilizei esta metodologia. E, “Hum! Se calhar é isso que eles querem,
isto aqui dá motivo para pôr um exemplo. dá-lhes jeito. Tiram-te a ti e põem um que
Quando eu entrei para a Escola, logo no faça natureza morta, só.” E eu “Hum! Tam-
princípio, no meu segundo ano, foi-me bém não deixa de ser verdade.” E pensei:
dado o 1º ano. Foi preciso pôr um pro- “Vou arranjar um método que ele não per-
fessor no 1º ano e mandaram-m e para ceba, que ele julgue que se está a fazer,
lá. Ali não havia considerações de conhe- exactamente, o que ele quer. Isto, se não
cimentos... “Ah, não. Você entrou, vai dar me puserem na rua, claro.” Eu julgava que

259
ia ser... Mas, isso! O Conselho Escolar fa- No outro dia já andava no Nicola, um zun-
lou, falou, falaram por ali... Não tiveram zum: “O Rocha de Sousa ia ser corrido,
coragem para nada. Nunca diziam nada, porque tinha feito umas coisas, e que o
estavam amordaçados! E, por fim, veio um director...”. Usavam a minha infelicidade,
professor que estava há um mês na Escola a minha vitimização – eu havia sido vítima
e deu-me um recado! Não houve papel! – mas, vitimizavam-me mais para, a partir
Eu não fui ouvido para dizer o que é que daí, poderem atacar o director, e pode-
tinha feito, o que era aquilo, porque é que rem fazer aquilo que eles queriam – pes-
os alunos estavam a fazer aquelas coisas, soas que eram bem colocadas, em outros
quando é que se fazia a natureza morta! sítios do ensino, o Calvet de Magalhães, e
[risos] Eu não fui chamado para nada. Não outros assim – para poderem correr com o
fui ouvido – o que é uma grave ilegalidade outro, e mudarem alguma coisa na Escola.
–, mas fui acusado, em Conselho Escolar, Bom, isto, depois, não deu em nada. Isto é,
e ficou na acta, com certeza. Felizmente, deu na pior coisa possível: os alunos tive-
aquilo não conta para nada. E... ninguém ram bolsas cortadas, isenção de propinas
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

votou nada. O director perguntou aos ou- cortadas, o que ele fez durante a noite toda.
tros se concordavam que ele transmitisse No outro dia, lá estava a pauta. Mas nós, a
o recado ao Assistente, que “habilitasse partir daí, fizemos um ensino clandestino,
os alunos a fazerem natureza morta, para de determinados exercícios que eram...
o exame final, estivessem treinados, nesse que eram diferentes em todas as pessoas!
sentido.” Eles concordaram. Disseram: “Eh Todas as pessoas respondem de maneira
pá, pois, isso não tem problema nenhum.” diferente a um método igual! A gente dá
Algum disse à sua consciência: “Pois, não um método, que é levar esta bola daqui
querem que ele faça antes outras coisas.” para além. Mas, cada pessoa pega da sua
Mas, enfim... Vem-me o professor dar-me maneira! E... leva da sua maneira! Portanto,
este recado: “O Conselho Escolar deter- aqui era a mesma coisa. A diferença existia.
minou..., de forma que os alunos têm que E os resultados eram diferentes. Os resul-
ser habilitados a fazer a natureza-morta.” tados eram todos diferentes.
Portanto, o professor só faz naturezas-mor- E, acontece que os alunos faziam isso du-
tas, representação de natureza-morta, o rante a noite, depois metiam os trabalhos
que quer dizer: fazer cópia. [risos] O que é nas grandes pastas, na “Cova Funda”, que
que acontece? Acontece que isto saiu nu- era uma capela que estava abandonada –
ma notícia, maldito, e, ainda por cima, mal aquilo era um antigo convento –, e que ti-
explicado. Eles diziam que havia pressões, nha umas pedras. Às escuras, ninguém lá
que os professores eram perseguidos... É ia! Então, metia-se aquilo lá numas prate-
verdade. Mas isto tem que ser dito com leiras que a gente fez. Fizemos uns plintos,
as motivações que estavam por detrás, onde estavam as naturezas mortas, que
os problemas a montante e a jusante – lá nós próprios criámos, mesmo assim, com
está, é a mesma coisa –, para que a situa- algum cheirinho de ironia, com arenques
ção seja compreensível, senão não é. Dá fumados e alforrecas, e coisas que não
impressão que o professor discutiu, que eram assim muito... Eram mais parecidos
o professor foi ouvido, que o professor lu- com as vanitas, a natureza morta à Braque,
tou, não é? E não foi nada disso! por exemplo.

260
Ensinei-os a tornarem a realidade mais ver- «São detectáveis duas vocações funda-
dadeira, tornando-a mentirosa! Isto é um mentais nas EBA – formação de artistas
paradoxo, mas é curioso. Repare que os plásticos e formação de professores
cubistas não faziam o paralelogramo, as- (...). Ao contrário de algumas pessoas,
sim, como a gente vê, não é? Faziam visto considero que é um falso problema
de cima. E, depois, punham as coisas as- que uma e outra destas componen-
sim. O que fazia com que parecesse mais tes se excluam mutuamente ou sejam
verdadeiro, mesmo assim, porque a gente incompatíveis na sua coexistência, in-
reconhecia as coisas todas. Isto tem que terdisciplinar, científica, ou até mesmo
ver com o ensino lógico, com a represen- física no espaço incompatíveis na sua
tação lógica das crianças, que fazem uma coexistência, interdisciplinar, científica,
perspectiva aérea do plano da mesa e, de- ou até mesmo física no espaço cultu-
pois, põem as pernas todas perpendicu- ral das EBA. (...) O que parece ser o
lares nos cantos. Bom, claro, saindo desse estádio a atingir é dotarmos as EBA da
exagero... Mas, na verdade, o que se fez flexibilidade necessária que ainda não
no Cubismo foi muita coisa destas, pare- têm e que permitiria um correcto fun-
cida. Sobretudo, os planos horizontais su- cionamento simultâneo (não paralelo
periores, que se rebatiam para a frente, e note-se) de uma e de outra das voca-

ROCHA DE SOUSA EM ENTREVISTA


as coisas continuavam na verticalidade. E, ções apontadas, complementando-se
tudo aquilo tinha uma harmonia, uma di- mutuamente, não dando azo a artis-
nâmica completamente nova, coisa que o tas encerrados na “sua” arte alheados
próprio Paulino Montez engolia, como ver- dos importantes problemas que põe a
dadeiro. Mas aquilo estava errado! Havia educação artística, ou pelo contrário,
ali dois pontos de vista. Ora bem, ensinei professores de educação visual desgar-
esse truque. É um truque simples, não é? rados na sua actividade, tendo perdido
Mas, depois, dizia-lhes: “Podem fazer mais, o necessário contacto umbilical que os
ou menos, ou até totalmente. Mas, não fa- deve ligar à prática e à teoria da arte»
çam totalmente, porque isso vê-se muito.” [Pedro Cabrita Reis, “Questões que se
E, há outras coisas, que eu fui ensinando, põem”, in Arte Opinião n.º 4, Lisboa:
que são esses truques, porque a arte tem Associação de Estudantes da Escola Su-
truques. Quando os modernos vêm dizer perior de Belas-Artes de Lisboa, Março
“Ah, isso é um truque. Não tem valor, e tal. de 1979, p. 17].
Isso é um expediente”. Não. A Arte tem O professor tem que ter a tal formação
sempre truques. Nem que seja purificá-la. contínua, o que no caso dos artistas plás-
É um truque. [risos] Purificá-la é um truque. ticos deve ser também uma prática das
E é talvez uma impossibilidade. artes, nem que seja para a gaveta. Estou
absolutamente de acordo com isso. Aliás,
Gostaria que reflectisse sobre a for- subscrevo inteiramente isso. Em vez de
mação do professor de artes visuais, a fazer agora o discurso à volta disso, essa
partir de uma que saiu na Arte Opinião, é a ideia que eu tenho desde quase sem-
em 1979, da autoria de Pedro Cabrita pre. Essa é, aliás, a ideia que eu, de certa
Reis. maneira, já exprimi atrás. Já lhe mostrei,
Hum, hum. Foi meu aluno. mais ou menos, como os artistas tinham

261
uma necessidade de amplificar extraor- porque eles foram para lá e desenrasca-
dinariamente a sua cultura e acção, para vam-se, não é? Mas, se fossem formados
poderem abarcar as coisas à volta, e torná- para aquelas disciplinas e criassem os seus
-las... úteis. Funcionais, úteis e fecundas na próprios métodos, as suas interacções...
obra de arte. O artista, de certa maneira, é Porque basta dizer que a primeira cadeira
um pouco – eu diria que é bastante – mais era Introdução às Artes Plásticas e ao De-
aberto do que os da maior parte das dis- sign, e nós fazíamos... – quando fizemos is-
ciplinas técnicas, fixas, que têm currículos so bem. Eu por acaso estive à frente disso,
que não podem oscilar. Na Arte oscila tu- e fiz até um filme, que tenho em casa, com
do. E tem que oscilar, porque senão não os resultados espantosos que se tiveram.
é viva, não é criadora. Parecia que estávamos, aí, num país avan-
Os professores para ensinarem, depois, çadíssimo – fazíamos a interrelação entre
no seu comprimento de onda, têm que ter essas coisas todas, sem fazer Pintura, sem
essa fecundação, que se fez na Escola. A fazer Design e sem fazer Escultura, e fazen-
formação na Escola tem que ser feita, lo- do tudo ao mesmo tempo.
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

go, pensando nestas múltiplas direcções. O ano lectivo tinha quatro exercícios, e os
Porque não é só professor-artista. Não é só professores eram nove. E, o que é que ha-
isso! É mais! É um indivíduo que pode um via? Os alunos tinham mesas, não tinham ca-
dia ser assessor ou quadro – se fosse criado valetes... Tinham, às vezes, cavaletes, aquilo
um quadro para isso, e já devia estar criado era era utilizado de outra maneira. Os alu-
– junto das autarquias, nos gabinetes que nos tinham, de vez em quando, chamadas,
planeiam o ambiente; é um indivíduo que para fazer um ponto situação, em que o
tem que estar apto a dar ideias, ou a dar professor projectava diapositivos e filmes,
opiniões, ou a aproximar-se de problemas
do ambiente, do espaço urbano, daquilo
que ornamenta o espaço urbano, não no
sentido decorativo, etc. Portanto, este pro-
fissional que virá a ser artista, professor, as-
sessor, etc., tem que começar, na escola,
logo, a ser tudo isso, ao mesmo tempo. A
sua formação deve ter diversos vectores,
que vai tocando, aqui e ali, e vai inter-re-
lacionando, pela tal intertextualidade, in-
terdisciplinaridade. O que é, no fundo, o
que fala Pedro Cabrita Reis aí, só sobre
duas coisas. Mas, eu estou aí a acrescen-
tar – e ele subscreveria isto, também – que
é mais coisas! Nós, hoje, os artistas plásti-
cos que fundámos com a reforma... Agora
Bolonha vai dar cabo disso, mas seja como
for, se aquela reforma, que a gente fez em Fig. 7. Capa do Boletim da Escola Superior de Belas-
Artes de Lisboa: Para uma Nova Escola, 1974.
1975, tivesse tido a formação de profes-
sores, que lá estava, para cada disciplina,

262
realizar em três anos! Esses cursos têm
que começar com uma escolha muito
precoce, em níveis etários muito baixos,
porque senão nunca há um bailarino! Não
há! Não pode haver! Pode-se formar um
pintor, só pintor. Não dá a História, até,
se quisermos, não dá a Geometria Des-
critiva, não dá nada disso. É um técnico
que faz pinturas, faz frescos, faz isto, faz
aquilo, e tal, e não sei quê. É um artesão,
praticamente! Porque ele não tem cultura
até, depois, para a projectar nas formas
que faz. Mas, lá está, esse tipo não pode
ser professor, no ensino.
Pode-se fazer um professor. Então, esse ti-
po tem uma lambuzadela – foi assim que
me disseram no Norte, na tal discussão em
que eu entrei… Foi uma comissão daqui, e

ROCHA DE SOUSA EM ENTREVISTA


Figs. 8 e 9. Rocha de Sousa, professor. Imagens eu e o Hélder Baptista levámos sete horas
extraídas da reportagem Escola Superior de Belas a discutir com aqueles indivíduos! E, eles
Artes de Lisboa – Parte II: Artes Plásticas e Design,
emitida pela RTP a 18 de Abril de 1975.
não queriam nem por nada... E acabaram
Disponível em: https://arquivos.rtp.pt/conteudos/escola- por levar à frente a deles, porque a von-
superior-de-belas-artes-de-lisboa-parteii-artes-plasticas-e- tade política era maior do que a vontade
design/#sthash.5BqyqZHO.dpbs
científica. E, então, formar professores?
Então, há umas aulinhas de Artes Plásti-
cas, de Desenho, e tal...
que, às vezes, parecia que não tinham nada Mas não é necessariamente separado. E
a ver com aquilo, para eles compreenderem não é nunca. Os que não queriam ser pro-
melhor os seus problemas, e levantarem, a fessores, os tais que queriam ser artistas
si próprios, questões. Ora veja… Como é disto ou daquilo – o que é quase impos-
que um professor pode ser um indivíduo sível, em Portugal – faziam só aquilo. Mas,
desligado? depois, como não arranjavam emprego em
No tempo antigo, o tal curso que conclui, parte nenhuma, iam dar sempre aulas, iam
com a classificação administrativa de 57, era mesmo tirar as cadeiras que lhes faltavam.
um curso que tinha quatro anos, de curso
geral, e tinha, depois, dois anos, que po- Tenho conhecimento de que se em-
diam ser sete, ou oito, ou nove... penharam bastante, não só para que
as Belas-Artes integrassem a Univer-
Dependendo do resultado do concurso. sidade, mas também para que abrisse
Mas, em princípio, eram dois. Ao total uma variante ensino.
eram seis anos, era quase igual à Medici- Pois. Nós levámos treze anos a trabalhar!
na. Porque há cursos... Um curso de Mú- E perdemos trinta anos de qualificação
sica ou um curso de Dança não se pode profissional! É espantoso! E, depois, ao

263
fim de treze anos, eles perceberam... Eles treze anos.”;“Ai, meu Deus! Como experiên-
perceberam, não! A gente é que conse- cia pedagógica? E eles não interromperam
guiu que um velhinho, que não percebia a experiência pedagógica?” Era ao abri-
de nada, passasse a perceber. Os outros go de uma portaria do segundo governo,
já tinham aquele dossier no índex. A gen- provisório! E então, ele disse assim: “Não,
te ia sempre lá aos ministérios, quando vi- acabou-se. Isto vai-se fazer. Acabou-se isso
nham os governos novos. E nada! Até que tudo. Vamos nomear, aqui mesmo, já, uma
aquele velho diz: “Este dossier só precisa comissão nacional, com as Universidades e
de um despacho, e legaliza-se isso”; “Ah, é vocês, as duas Escolas, para..., não é para
que não pode ser, porque entretanto há o decidirem se, é p ara estudarem o modo
outro sector que é...” A gente pôs os mais mais rápido, eficaz e competente de se in-
dotados naquilo a falar com o homem. “Ah, tegrarem nas Universidades, no Porto, e em
sim? Então... Bom, mas eu posso resolver Lisboa.” Ele não disse: “Estudar se o ensi-
isso com uma portaria, que é extensível às no artístico deve chegar à Universidade, e
duas coisas, e vai facilitar-lhes”, e tal, e tal. Aí não sei quê.” Nós advogávamos, sempre,
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

à quarta portaria que ele inventou, porque que ele era prioritário, n as Universidades.
tinha vontade, mas, porque estava inocen- E explicámos isso muitas vezes.
te, porque senão nem nos ouvia, é óbvio. O Professor Lima de Carvalho também fazia
À quarta portaria, diz: “Eh, pá! Isto assim parte da comissão. O Lima de Carvalho era
não! Mas, vocês têm aí esses problemas muito engraçado. Ele era um tipo muito ac-
todos?!”;“Todos.”;“E não houve nenhum tivo e fez muitas coisas giras. Uma coisa que
governo, nem nenhum secretário, nem ne- ele fez, nessa reunião, porque nós tivemos
nhum subdirector geral, nem nada, que os um problema pior que o do Porto, foi que,
ouvisse nisto?!”; “Não. A gente fez-se ouvir, quando a comissão chegou às conclusões,
mas eles não ouviram. Nós falámos, mas e determinou que as Faculdades fossem in-
não ouviram.”; “Mas isso... Mas isso são coi- tegradas nas Universidades, sem comissão
sas óbvias!”, disse ele. [risos] Um velhinho instaladora, que isso era uma eternidade,
careca... Eu não sei como ele se chamava. levávamos 20 anos, não é? Pronto, era só
Devia ficar com esse nome na cabeça. E o nomearem dois indivíduos, de cada uma,
homem disse-me assim: “Bem, então por- para estudar as condições de… E isso foi
quê que vocês não vão para a Universida- feito. Só que a Escola de Lisboa tinha que
de?” A gente andava a trabalhar para isso saber qual a Universidade em que se inte-
há uma porção de tempo! Nós dissemo- grava. E, portanto, o Lima de Carvalho tinha
-lhe: “Mas, h Sr. Reitor, a nossa reforma é que ir ouvir os vários reitores, porque ele ia
toda nesse sentido, e até já foi aceite pela comunicar com eles, e nós í amos às várias
Direcção Geral do Ensino Secundário, por reitorias: da Universidade Nova, da Univer-
isso já há quatrocentos licenciados a dar sidade Técnica, que já lá tinha Arquitectura
aulas, e não são licenciados coisa nenhu- – que nos tinha traído, tinha-se ido embora
ma, são virtuais. –, e da Universidade de Lisboa. Bom, eram
“Ah, mas isso é muito grave! O Estado Portu- pelo menos três. Nós andámos por todo o
guês pode-se dar mal com isso! Quatrocen- lado. A Técnica pôs-nos logo de lado, por-
tos alunos?”;“Pois, nunca mais resolveram. que já tinha lá a Arquitectura, e disse-nos:
Há treze anos! E está a funcionar, quase, há “Nós não temos condições agora”. A de

264
Lisboa, tratou tudo muito bem, colocou sentámo-nos para beber um café, e como
um indivíduo à nossa disposição, para tra- já tínhamos decidido, mesmo, que era a
balharmos com a presença dele, porque a Universidade de Lisboa, deixámos isso. Ma
Reitoria representava-se por aquele indiví- s, em todo o caso, nós (aquela comissão
duo, e aquilo era uma coisa que tinha que que tinha ido lá) quisemos discutir aquilo
estar pronta até ao fim do ano. E pronto, ali, log o. E, então, depois de muitas pala-
assim foi. E saiu em Diário da República, vras feias, e muitas coisas no ar, que a mal-
muito anos depois, porque... E, o que é que ta disse, o Lima de Carvalho diz assim: “Es-
acontece? Acontece que o Lima de Carva- tes tipos, pá... estes tipos... não têm nóia!
lho, quando fomos à Nova, esteve sempre Não têm nóia! [risos] Não têm! Porque os
muito agitado, porque na Nova estava um tipos o que querem é comprar o alvará de
professor, que foi nosso professor também, uma lojinha, ali da esquina, uma lojinha
que era o director da secção de Artes da que vende pomadas, com um alvarazinho
Gulbenkian, e uma pessoa muito... Era o só para isso, e com esse alvará querem fa-
Artur Nobre de Gusmão, que era de Esté- zer um alvará deste tamanho!” [risos] Quer
tica e de História. Esse senhor fazia muito o dizer: eles compravam um alvará por uma
que a Madalena Perdigão queria, e o que a tuta-e-meia, que era a Escola Superior de
Madalena Perdigão queria era a tal Univer- Belas-Artes, com três licenciaturas, e iam

ROCHA DE SOUSA EM ENTREVISTA


sidade das Artes. Nessa altura, isso estava fazer vinte licenciaturas, o que era uma
muito na baila, e a Madalena Perdigão tinha coisa perfeitamente doida! A história dos
muitos lobbies, portanto, podia accionar is- alvarás, e da lojinha, é uma coisa tão gira!
so, de certo modo. Os fulanos estavam ali... É muito engraçada.
e nós começámos a pôr reservas em certas
coisas. E, daí a pouco, veio o Gusmão, que, Em 1979, há um artigo de uma aluna
sem conseguir disfarçar de onde é que lhe intitulado: “Ajustamento da estrutura
vinha aquela ideia, começou a germinar as de 74 ou contra reestruturação”, que
Faculdades, e a criar departamentos. Um a causou alguma polémica...
faculdade, em vez de ter três departamen- Ah! Esse ajustamento. Eu suponho que sei
tos e ser governável, não, tinha dez ou tinha o que é isso. Foi, de facto, uma imposição
oito. [risos] Era uma coisa esquisita. do Ministério, porque senão... Quando eles
E o que era? Não era a Universidade das aceitaram a reforma... Quer dizer: quando
Artes, mas era um núcleo, dentro da Uni- eles aceitaram aquela estrutura, indepen-
versidade Nova, com as artes todas. E nós dentemente das Universidades nos integra-
dissemos: “Não! Nós não temos essa pre- rem, antes disso estar tudo resolvido, havia
tensão, e nem achamos conveniente. Nem o Ministério, que era a tutela, a tutela das
achamos que essa relação se faça assim. Es- tutelas. E o Ministério punha uma questão,
sa relação tem que se fazer na sociedade, e que era a seguinte: a nossa estrutura era
não numa instituição.”; “Ah, mas porquê?” muito interessante, e os canadianos com-
E tal... “Porquê?” O Reitor, muito grosseiro pararam-na com uma, que eles tinham l á.
connosco, aquelas coisas. “Bom, então vo- É que havia um eixo... Olhe aqui... Não sei
cês vão pensar nisso, e dão-nos uma respos- muito bem onde, mas este livro – “Deriva do
ta.” E nós fomos para um jardinzinho, que ensino superior artístico em Portugal ou as
havia ali no Príncipe Real, uma lanchonete, reformas de papel” –, que eu fiz, tem tudo.

265
Esse artigo também referia “a criação de Superiores de Educação a fazê-lo?
dois institutos, respeitando a natureza Isso foi tudo por razões políticas e “lobbís-
curricular dos cursos e os seus proces- ticas”. Quer dizer: foi o Ministério... A for-
sos orgânicos e os seus processos orgâ- mação nas Belas-Artes era melhor, mas o
nicos”. Esses Institutos apontavam para Ministério não entendia assim.
“dois campos de formação interdisci- Nunca conseguimos porque não éramos fa-
plinar: a formação para dois campos de culdades. Não eramos e eles não deixavam
formação interdisciplinar: a formação ser. Nós íamos a reuniões e explicávamos
de profissionais de elevada competên- que era absolutamente fundamental que
cia cultural, estética...” Portanto, artistas. a formação artística acompanhasse a for-
“E a formação conjugada, com apoio na mação pedagógica, e que os professores
Didáctica das Artes Visuais e nas Ciên- formados nas Belas-Artes sempre haviam
cias da Educação, de profissionais para tido grande sucesso ao longo da história do
o desempenho de funções docentes, ensino português, nas tais escolas, com o
nos quadros que lhes correspondem no directores. Referimos o Calvet Magalhães...
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

sistema educativo”. Portanto, a forma- demos esses nomes a todos. Eles é que
ção de professores. No entanto, nunca eram uns parvalhões que estavam ali! É
houve essa formação nas Belas-Artes. que não sabiam mesmo! E tinham má von-
Não, não. Não, nunca houve porque... Isto tade, tinham má vontade. Houve um direc-
é anterior, com certeza, porque fala aí em tor geral que me disse mesmo: “Mas para
institutos. É de quando? que é que o país precisa de artistas?! Não
precisa de artistas! Design?! Mas o design
De 1979. é uma palavra estrangeira... Não precisa-
É anterior à entrada na Universidade. É da mos de design!” [risos] “Não precisamos
altura em que as pessoas andavam, ainda, de design?! O design é uma palavra es-
com os institutos na cabeça, porque não con- trangeira?! Então, mas, o senhor não sabe
seguiam sair da Reforma do Veiga Simão1. que não se pode mudar a palavra? Que já
Então, tentavam dessa maneira, porque não foi tentado, semântica e estruturalmente,
encontravam espaço nas Universidades, e que não dá? Que os espanhóis tentaram
porque o governo e outros, lá no Ministé- o risco e não conseguiram? E eles têm, há
rio, diziam: “Ainda não chegou a vontade dez anos, faculdades de Belas-Artes em to-
política. Ainda não há vontade política par a do o lado! Eles têm! Aqui ao lado! E acham
isso.” Uma vez eu respondi-lhes: “Mas, olhe que os artistas servem para alguma coisa!
que isso é um problema grave para o en- Por isso é que eles têm o Museu do Prado
sino, porque a gente não sabe onde é que e nós temos o Museu de Arte Antiga! E o
se compra vontade política.” E dizia coisas senhor tem um quadro, aí atrás da sua ca-
dessas, mesmo a directores gerais e tudo! beça!” Isto, disse-lhe eu, a ele, assim [risos].
Depois ele deve ter... Sabe quem era esse
Porque é que acha que as Escolas Su- senhor? Não faz mal gravar porque eu já
periores de Belas-Artes nunca chega- disse isto publicamente. Marçal Grilo. Foi
ram, verdadeiramente, a conseguir Ministro da Educação, depois.
formar profissionais para o ensi- O Ministério não queria, e, como não que-
no? Porque é que forma as Escolas ria, nas reuniões, a gente tentava fugir por

266
outro lado. Isso dos institutos era uma ideia
do Porto. Os institutos, depois, dariam as
mesmas qualificações que as faculdades.
Portanto, teriam também a saída ensino.
Ainda se falou disso. Mas responderam:
“Não senhor, porque está a ser formado o
espaço do politécnico, e o espaço do po-
litécnico terá que ter essa área. A formação
nas Belas--Artes será técnica, não será qua-
lificada para o professorado i r dar aulas.”
Dizia o Afonso Costa. Lembro-me perfeita-
mente. Bem, e nós ouvimos aquilo! Mas, nós
tentámos... E, chegámos a fazer isto: Hou-
ve uma altura em que uma colega nossa,
a Elisabete Oliveira, que tinha seguido as
Ciências da Educação, e que estava já co-
mo assistente na Faculdade de Ciências da
Educação, e o Albano Estrela, que era um

ROCHA DE SOUSA EM ENTREVISTA


indivíduo que achava que nós devíamos
estar unidos, se prontificaram a fazer uma
pós-graduação, igual a um mestrado, para
que essa pós-graduação, de Artes Plásti-
cas e Ciências de Educação, desse acesso
ao ensino. Eu trabalhava à brava nisso, es-
crevia à máquina, levava aquilo a sério. Eu
trabalhei que nem um cão. Por isso é que
tive de fazer uma operação [risos]. Fumava
muito... E, então, deram-nos umas pistas e
nós fizemos uma pós-graduação giríssima,
que apanhava as duas coisas e obrigava a
Educação a entrecruzar-se com a Arte.
Isso perdeu-se tudo… Eles já nem sabem
onde está. Eu tenho uns dossiers, mas es-
se... foi uma coisa que s e perdeu. E, então,
fez-se um dossier e deu-se à Educação. Fe-
z-se uma reunião e acertou-se isso com a
Faculdade de Ciências da Educação, com
o Albano Estrela. Porque foi o Albano Es-
trela, que era da Faculdade de Ciências da
Educação, que foi representar o Reitor, na
tal comissão nacional.

267
Documento Adicional à Entrevista (por Rocha de Sousa, 2006)

Em continuação da conversa na qual se desenvolveram problemas rela-


tivos à condição de aluno na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, anos
60/70, bem como ao acesso à docência nessa instituição, a par dos procedi-
mentos possíveis de ordem científica e artística, (…). José-Augusto França,
que dantes advogava a criação de ateliers livres ou Academias abertas, nas
quais os alunos escolheriam um professor de um conjunto disponível e assim
prosseguiria um trabalho artístico, pouco mais acrescenta a essa ideia, sepa-
rando claramente um curso para pedagogos de formação artística (nos níveis
primário, secundário e superior), visando também alargar os meios de apren-
dizagem ao próprio o corpo social, visitante dos produtos dessa área. Embora
considerando que tal curso faria parte (de modo universitário a estudar) do
Ensino Superior Artístico em questão, logo assinalou, de forma acentuada,
que esse critério seria bem distinto da parte directamente interessada da cria-
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

ção. O que é uma forma de não dar nenhum nome institucional e integrado,
em termos universitários, aos artistas propriamente ditos. O que releva dos
seus habituais sofismas na matéria em causa, coisa irreconhecível no século
XXI e já arrasada no século XX, quando da discussão das reformas do Sistema
de Ensino Português. Cabrita Reis e Rocha de Sousa, aliás contemporâneos
desta contenda, sobrepõem-se praticamente, cada um deles advogando en-
sino artístico pleno, bem estruturado na teoria e na prática, no qual, como
qualquer outra disciplina teórico-prática, estaria inserida, gozando mesmo de
práticas interdisciplinares, boa parte dos conteúdos respeitantes à vocação e
objectivos socio-culturais das licenciaturas. Nenhuma realidade pedagógica
se pode excluir do espaço prático que lhe respeita, nem as correspondentes
metodologias formativas podem viver desligadas de toda a poética. Em boa
verdade, esta conjugação na leitura das ideias de Cabrita Reis e Rocha de
Sousa, estabelece um guião geral aceitável para a resposta. Seria contudo
apreciável levar em conta, se o contexto nacional o permitisse, a ideia inicial
da reforma de 1976 (ESBAL) onde as disciplinas nucleares dos cursos, em se-
quência e mesmo em precedência, seriam obrigatórias estruturalmente, com
algumas outras do mesmo modo indispensáveis, enquanto um qualificado
âmbito de outras matérias de livre escolha satelizariam a massa substantiva
dos eixos principais, devendo o número de cadeiras ser procedente na quan-
tidade, apesar das dissemelhanças resultantes do esforço optativo. Esta via
abre um número muito grande de competências em leque, nas artes, na trans-
formação da sua inutilidade em utilidade, nos quadros criados o u a criar sobre
acções no espaço urbano, arquitectónico, ordenador e paisagístico. Os pre-
conceitos, ignorância e incompetência que têm minimizado uma área sem a
qual as outras não teriam sentido bastante, apontam para uma acção cultural
e política bem enraizada e de grande expansão. Em boa verdade, antes do
«plano tecnológico» que tem norteado a política actual do país, o governo

268
dever ia ter começado explicitamente pelo «plano cultural» – e na mesma
perspectiva de abrangência. Qualquer Escola deste âmbito e deste nível não
pode consentir-se, por defeito congénito incontrolável, alicerçar-se nos apro-
veitamentos de edifícios antigos, degradados, com áreas precárias em exten-
são e altura. Uma Escola de Arte do Ensino Universitário, hoje, século XXI, tem
de assentar num território adequado, desenhada segundo os modernos con-
ceitos de espaço, circulação e interactividade entretanto concebidos para os
respectivos efeitos. O que implica o seu devido apetrechamento consoante
as disciplinas e relações com o exterior. O equipamento para aulas de pintu-
ra, escultura, design, tecnologias, entre muitos índices de ferramentas e pró-
teses mecânicas, terá de ser reuni do nessas oficinas, incluindo circuitos de
imagem e circuitos em rede, para partilhas em conferência aberta de certos
pontos de efectiva interdisciplinaridade. No plano administrativo, em ligação
com o projecto e a projecção de cada curso, o problema das habilitações pró-
prias para a docência (ensino secundário) foi sempre alienado ou mal estu-
dado por um ministério (o da Educação, paradoxalmente) cuja falta de enten-
dimento do papel da formação artística na sociedade e nos quadros formativos
se agigantou e deformou com o tempo, estando ainda por cobrir na sua to-

ROCHA DE SOUSA EM ENTREVISTA


talidade. A profissionalização para o acesso ao patamar mais qualificado desse
espaço foi errante e com graves consequências sobre os licenciados habili-
tados em Belas-Artes, ao contrário do que sucedia nos anos 50, na direcção
de Escolas Técnicas polivalentes e de grande diversidade formativa. Tais Es-
colas, nos anos 60, tinham melhor apetrechamento didáctico-pedagógico,
das bibliotecas às oficinas, do que teria, na mesma altura a Escola Superior
de Belas-Artes de Lisboa. O eixo uniformizador do ensino secundário, desde
1972, com alienação de Escolas Técnicas altamente apetrechadas, e por vezes
ligada s tanto à indústria como à comunidade, acabou por forjar ilusões igua-
litárias cujo efeito se tornou desastroso, obrigando os governos a tentativas
bifurcantes de formação, além de uma confusa instalação de Politécnicos,
cujos docentes e discentes bem depressa pediram para si títulos (categorias)
iguais aos do Ensino Universitário. E, o que é ainda mais alucinante, deram-
-lhes tudo isso a breve trecho, todos os nomes que haviam reivindicado. Nas
Escolas de Belas-Artes, com novos planos de estudos já provados, o impasse
decorria dos erros cometidos em 1972, onde se apontou vagamente para
Institutos Artísticos e se avançou, pouco depois, com problemas de timing e
vontade política no estudo do papel das artes, função social, qualidade téc-
nica e científica. Mesmo ainda não contemplada com o estatuto que já lhe
pertencia por pleno direito, no seguimento da lei da reforma de 1957, a Es-
cola de Lisboa criou, com a faculdade de Ciências da Educação, um curso de
pós-graduação, idêntico em tudo a um mestrado com os mesmos objectivos,
justamente para se proceder ao entrosamento das ciências da arte com as da
educação, além de práticas metodológicas de docência nessa área. Procura-
va-se controlar o bloqueio institucional com o fim de garantir um percurso

269
docente inteiro aos licenciados em artes plásticas e design, por equivalência
indiscutível com outros níveis de formação. O Ministério não respondeu, não
discutiu, não tentou sequer esboçar alternativas neste campo tão necessário
à própria cidadania. Esta derrota anunciava derrocadas posteriores, até por-
que os governos preferiram gastar mais dinheiro para a edificação das Esco-
las de formação de professores, cujo triste perfil e falta de conteúdos todos
conhecemos. Esta confusão de privilégios e competências não passou de uma
inaceitável ou ilegítima sobreposição a licenciados cuja prática artística, só
por si, lhes conferia a mais completa habilitação para as áreas artísticas do se-
cundário. Todas as diligências efectuadas junto de governos, ministros, secre-
tários de Estado e Parlamento se revelaram kafkianamente infrutíferas. É ur-
gente tratar deste problema, apesar de tardiamente, envolvendo-o nas estruturas
e conteúdos dos cursos, com observação dos níveis da Faculdade de Motri-
cidade Humana e acordos protocolares ao nível da Faculdade das Ciências
da Educação. E isto porque cada vez há menos tempo par a estudar e elabo-
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

rar soluções alternativas, dada a falta de entendimento da tutela sobre as pró-


prias bases já imaginadas e admitidas em certos casos. A par deste trabalho,
é preciso elaborar a redacção de um Decreto-lei determinando como abertos
em diversos níveis os ateliers de criação plástica a outros canais de pesquisa
e projecto – moda e certas indústrias, acesso final a espaços autárquicos ou
museológicos. Para os licenciados das Faculdades de Belas-Artes, dado que
a sua formação é entrosada e não sedimentada num único sentido de técnica
e modo, pode relacionar-se igualmente com as obras públicas, uma embrio-
nária indústria cinematográfica e televisiva, pontos aliás ponderáveis mesmo
ao abrigo do plano de Bolonha e à abertura de percursos acentuada nos dois
anos de consolidação científica existente naquele plano. As hipóteses pon-
deráveis da criação de Escolas de Arte do Ensino Superior ou Universitário
no nosso país, dada a cada vez maior volatilidade de políticas nesse sentido,
por escassa vontade ou falta de conhecimento nas áreas técnicas e culturais
sobre o assunto ao nível dos próprios governos, dificilmente se terão espaço
intelectual e físico para contrariar um futuro nebuloso ou carregado de ce-
dências redutoras. Seja como for, lido o trabalho de Rocha de Sousa sobre a
situação do Ensino Artístico em Portugal e as reformas de papel, podemos
sentir donde vêm os anquilosamentos, os bloqueios, a falsa ordem de priori-
dades. Não são apenas figuras autoritárias, do antigo regime, que deixaram
amarelecer projectos, prejudicando carreiras docentes durante cerca de trinta
anos. Trinta anos durante os quais teriam certamente oportunidade de aplicar
ao ensino o que depois demonstraram saber. O problema reside numa raiz
cultural distorcida, na falta de debate e na concentração obsessiva noutras
questões, sobretudo as económicas o acerto de arrastados défices. O proble-
ma cultural é geral e alimentado pelo sentido cada vez mais redutor das orien-
tações para o desenvolvimento. Por isso é que o José-Augusto França dizia
que «uma nação sem arte não o é». Tomando esses «buracos negros» como

270
passíveis de contornar, o espaço à frente, aberto a novas concepções e velo-
cidades mais ponderadas, teria de ser preenchido, pelo menos à luz dos nos-
sos conhecimentos actuais e respectivos sonhos, na perspectiva atrás descrita.
A arquitectura para uma novíssima Escola Superior de Arte implica estudos
sérios de reprogramação curricular e hábil reprogramação dos espaços, con-
soante a sua utilização, relação área/aluno, e sobretudo trabalhados em ter-
mos de mobilidade. A planta de uma Escola de Arte não pode ser estática,
mas também não deve ser submetida a próteses grosseiras e restritas de ti-
jolo e cal. É preferível «pulverizar» no terreno, com ligações asseguradas, de-
terminado tipo de instalações ligadas a matérias específicas e também elas
susceptíveis de mobilidades internas, incluindo largos praticáveis acima do
plano imediato de trabalho. Os processos de pesquisa, na instalação, ceno-
grafia, equipamentos habitáveis, só por si inventariam um grande número de
próteses, suportes mecânicos, equipamento diversificado, luz modelável. A
concepção das escolas com finalidades deste tipo são unidades activas e a
sua parte curricular (Artes Plásticas, Design, Arquitectura, Ambiente, por exem-
plo) têm de trocar e partilhar meios, quer do projecto ao objecto, quer na for-
mulação de acções efémeras de outras disciplinas – teatro, cinema, televisão.

ROCHA DE SOUSA EM ENTREVISTA


Se esta for a via imaginada, mesmo que faseada, temos assim o esboço de
uma particular utilização do território que lhes for destinado, porque pode e
deve haver políticas didácticas de aproximação.
E isso permite-nos, perante a actual mediocridade, pensar em formações
onde não há fronteiras entre prática e teoria, mesmo quando certas acções
preferem, por interesse científico, aulas de audição ou a chamada relação pre-
sencial em que o professor precisa prime iro de apresentar uma ideia, uma
matéria, um projecto, uma análise verbal sobre determinado tema.

271
Notas
1
Rocha de Sousa, com Luís Filipe de
Abreu e José Cândido, por altura da
Reforma Veiga Simão (que deixou em
branco todo o ensino superior artístico)
estufaram um plano de reforma para a
ESBAL, e enviaram-no para a secretaria
daquela reforma. O silêncio foi a resposta
e o estudo foi, entretanto, publicado no
Boletim da ESBAL. Na altura do 25 de
Abril e do movimento para a reforma do
ensino superior artístico (integrado na
Universidade), formaram-se grupos e o
assunto, com frequentes visitas a ministros
e secretários de estado, acabou por exigir
uma comissão da reforma, dado o material
significativo que já existia. Essa comissão,
com representantes das Escolas Artísticas,
catedráticos das Universidades de Lisboa
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

e do Porto, e elementos do Ministério da


Educação, trabalhou em relativamente
pouco tempo. Rocha de Sousa e
Conceição Ferreira, que representavam
a ESBAL, apresentaram sempre a
perspectiva já completa da reforma da
Escola e defenderam as relações com a
do Porto, que seguira, em boa medida, o
trajecto de Lisboa. Com apuramento dos
Conselhos Científicos, essas reformas, de
76/79, foram instauradas nessa data e,
em breve, a dinâmica surgiu, apesar da
constante ruptura de apoios tecnológicos
e revisão das instalações altamente
desactualizadas. Um sistema de “castas”
permitiu a separação da Arquitectura dos
outros cursos e a rápida construção, em
Monsanto, de um edifício próprio. Adenda
à entrevista enviada por Rocha de Sousa a
Ana Sousa (2017).

272
Rocha De Sousa,
Anotações sobre os
Pressentimentos de Sísifo
Hugo Ferrão
Professor Associado de Pintura, Faculdade de Belas Artes, Universidade de Lisboa.
Investigador integrado do CIEBA
[email protected]

Rocha de Sousa (1938), significa para mim revisitar nostalgicamente me-


mórias de um tempo encantatório em que fui aluno, colega e orientando de
um «ser sem heterónimos»1 que estimo e admiro. Este artigo tem como prin-
cipais objectivos, testemunhar e dar corpo a anotações, distanciadas de emo-
ções e consagrações, que contrariem a cultura de esquecimento, que se tem
pautado pelos permanentes «deletes» de todo o legado e património artísti-
cos quer colectivo quer individual.
Escrever sobre a sua pintura, provoca uma cascata de imagens, implican-
do um grande esforço de síntese, por que é um lugar de ideias, conversas,
fotografias, textos, filmes, documentos académicos amarelecidos pelo tempo,
testemunhos persistentes de tantas derivas do ensino artístico, reconhecer re-
cuos e avanços inusitados a todos os níveis, e ser capaz de rir dos «perpétuos
recomeços» que caracterizam a «instantaneidade reformista» da cultura por-
tuguesa contemporânea em constante reload de redundâncias.
Seriam necessários vários anos de trabalho continuo com uma equipa
dedicada apenas para tratar o sector da pintura, pelo que me proponho rea-
lizar algumas incursões que julgo pertinentes no sentido da redescoberta
dos valores fundadores do imaginário do pintor. Farei breve aproximação ao
pensamento plástico que preside às obras que fizeram parte das exposições
individuais que vão dos anos 1967 a 1973, exposições essas que considero
como o primeiro ciclo e grande motor imagético.
No atelier do pintor existe uma pequena antecâmara «multiusos», banhada
pela luz natural que atravessa todo o espaço onde encontramos estantes com
livros, discos, filmes, vídeos, molduras e alguns objectos adormecidos nas mi-
tologias do quotidiano. Nas paredes procuramos localizar, por cima de um
qualquer sofá, pinturas do Luís Dourdil (1914-1989), como aquela que vimos
em sua casa, com tons pastel. Abandonamos esse propósito contemplativo
e passamos ao reconhecimento da zona de trabalho improvisada, onde por

273
vezes o equipamento informático
marca presença encarnando num
computador portátil, com as teclas
gastas indiciando as horas longamen-
te saboreadas a engendrar textos de
critica da arte, ensaios, livros, progra-
mas, guiões, colagens, montagens,
grafismos fundadores dos intertex-
tos e conectividades instauradoras
da ficção que interpenetram as ex-
periências vivenciadas pelo pintor
e se fundem nas imagens pictóri-
cas. O espaço é intimista, reduzido
mas metamorfoseia-se em palco
de todas as visões imagéticas que
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

Atmosferas intimistas do atelier de Rocha convergem na pureza das superfícies nas quais
de Sousa, povoado de memórias das se fundem imagens que balbuciam existência.
múltiplas actiividades, onde ressaltam
os instrumentos de trabalho do metier O corpus pictórico que Rocha de Sousa criou
da pintura, os quadros sobrepostos e está profundamente enraizado e é indissociável da
dispersos pelo espaço, silenciosos e vida académica e profissional, das quais emerge a
estáticos, continuam teimosamente a
inquietar-nos.
trilogia: professor- «pedagogo sem teoria peda-
gógica», investigador e artista plástico. Estes três
pilares fundadores coexistem e consolidam-se na
erudição perceptível no desenho de um progra-
ma iconográfico que expressa a vontade de codificar uma identidade feita de
testemunhos e aventuras à volta da ausência dos «mistérios simbólicos», eter-
namente insolúveis e inquietantes, mas geradores de imperativos absurdos tan-
genciais às obscuridades plenas de insondáveis e inusitadas tensões.
Albert Camus (1913-1960), é um dos autores de eleição do pintor, que dedi-
ca especial atenção ao mito de Sísifo (1942), um ensaio filosófico em que Camus
estabelece analogias entre as imagens da mitologia grega da qual destaca o
destino trágico de Sísifo, condenado a subir eternamente um morro com uma
pedra, porém ao atingir o topo esta rola encosta abaixo, tendo a entidade mítica
que repetir e tornar a repetir sistematicamente esta actividade absurda. Sísifo
representa a condição humana, em que o homem é eternamente condenado
a trabalhos forçados, monótonos, intermináveis e inúteis. Camus através desta
configuração arquetípica da condição humana, pretende confrontar-nos com
a exposição permanente às «radiações» das rotinas diárias que anulam e des-
troem o próprio imaginário, limitando-se o homem à manutenção dos gestos
e cadências mecânicas que fazem parte de um complexo industrial do qual se
desconhecem os propósitos ou destino, tornando urgente a «rebelião huma-
nista» que inverta este horror desumanizante. A incorporação mítica de Sísifo
está presente em toda a obra pictórica de Rocha de Sousa.

274
As «liturgias pictóricas» que caracterizam a amalgama de contradições
veiculadas por «avalistas institucionais» da modernidade, foram desde cedo
percebidas por Rocha de Sousa e desmontadas por palavras que nomeiam
criticamente e coerentemente (textos, ensaios, conferências, encontros, mesas
redondas), recolocando a «individualidade inalienável» do artista no centro do
pensamento estético e plástico e sendo simultaneamente capazes de discernir
sobre os «sincretismos indiscriminados» feitos de combinatórias improváveis
e contraditórias, na incessante procura da espetacularidade mediática mumi-
ficante (Mário Perniola).
As pinturas de Rocha de Sousa desvelam um todo engendrado por ima-
gens mentais enquanto representações dos impactos preceptivos resultantes

HUGO FERRÃO | ROCHA DE SOUSA, ANOTAÇÕES SOBRE OS PRESSENTIMENTOS DE SÍSIFO


da experiência do mundo. Os seus projectos pictóricos, estabelecem coorde-
nadas que convergem para lugares de onde se observam os saberes alquími-
cos da pintura que vão adquirindo a natureza das coisas despidas do sagra-
do. Estas «viagens possíveis», materializam-se na nomeação das coisas como
forma de atingir directamente sua essência (Adriano Duarte Rodrigues). São
narrativas suspensas na transitoriedade e impermanência das vivências desu-
manizadas, testemunhas do contexto civilizacional de «apocalipse now», que
reduz os seres a figurantes ocasionais de um qualquer realty show, patrocina-
dor dos «desastres principais» que caraterizam os vertiginosos holocaustos
em permanente «delete».
A territorialidade imagética das suas obras torna-se indistinta e indivisí-
vel, surge na visibilidade das imagens pintadas, como fenómeno totalizante,
capaz de encenar o lugar do próprio sujeito. Os rituais propiciatórios são tes-
tados no atelier, uma espécie de gruta onde pairam formas difusas, que se ar-
rastam pelas tintas, pelos tubos esmagados pelos dedos que nervosamente
procuram significações, alternativas criativas para a misera condição humana.
A experiência da modernidade acentua-se na interminável sectorização, no
esvaziamento do imaginário, na redução de toda e qualquer actividade hu-
mana a mercadoria, no amestramento, na alienação imposta por uma pós-hu-
manidade cibernética. A morte dos deuses anunciada pela ciência pressupõe
a vaporização do homem, tal como aconteceu aos corpos das pessoas que
se transformaram em sombras em Nagasaki e Hiroxima.
Estes cogumelos atómicos cuja luminosidade cega toda a humanidade,
implodiram a significação de todo e qualquer sentido redentor da arte. Esta
«luz cega» está presente no antromorfismo abstrato, que caracteriza as pri-
meiras obras do pintor, («expressionismo contido») ilumina a amalgama de
formas que tomam o espaço sem horizonte, sem referências. O próprio lugar
das formas necessita de marcação, feita por desenhos riscados, traços inten-
cionalmente inábeis em que a cor se desdobra em tons, sugerindo uma in-
quietante volumetria como sinal de ancestrais processos da pintura a óleo.
A carne dos corpos adquire sensualidade, temperatura, é revestida,
é ocultada e desocultada por panejamentos que flutuam, somos capazes

275
de inalar o perfume que exala da pele das mulheres que se soube amar.
Estes corpos são tacteados pelo olhar, os tons subtis despoletam sensa-
ções, espécie de nomeações poéticas da visibilidade, ausentes da densi-
dade matéria, da solidez das coisas que colidem connosco. Os ritmos grá-
ficos cadenciados transmutam-se em sons distantes que sussurram títulos
como «Lírica da Metamorfose», «Mutilações» ou «As Coisas Consumíveis»2,
estes títulos, evocam sacras conversaziones, uma espécie de portais que
dão acesso a nódulos de significação, algumas sugerem séries, linhas de
montagem imagética como «Modificações I, II e III» ou «Intimidades I, II e III»,
tornando espessa a ambiguidade e a intercessão entre a manifestação artís-
tica e a produção técnica.
Estas narrativas figuradas são «coisificadas», na materialidade da pintu-
ra, fazendo sentir a fragilidade e a efemeridade da condição humana, mas
também a violência (ideológica-política) que desmembra, que amputa, que
silencia, que é cúmplice da espetacularidade apocalíptica. Embora Rocha de
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

Sousa circunscreva e identifique a deriva de absurdos da modernidade e as


circularidades das democracias ocidentais em estado de excepção perma-
nente (demotecnocracias e cibercracias), com especial clarividência na sua
obra ensaística e literária, não deixa de colocar esta atitude questionadora
nos «travelings pictóricos» direcionados ao olhar do observador que embate
nos enquadramentos, nas escalas, nos silêncios compositivos, no desenho- ta-
tuagem que aprisiona ou liberta as formas sensuais ou as destrói na transgres-
são, cromática por vezes soturna, mas simultaneamente lírica acentuando o
destino dos «homens amputados por mil quotidianos sombrios», simbologias
sem terra nem céu, em que os seres alados já não conseguem planar sobre
os eternos retornos do sagrado.
Rocha de Sousa enquadra-se numa geração profundamente literária
(afrancesada), em que o mitema da memória recorta de um fundo caótico os
«acontecimentos apocalípticos» que fazem parte integrante da «anormalidade
da vivência», cujos impactos devastadores provocam a crescente «cegueira
consensual». O pintor intempestivamente retalha e dilacera as figurações que
deambulam pela superfície das telas, dos papeis, dos esboços num qualquer
caderno onde se regista a urgência do esquecimento instantâneo.
As suas memórias são teatralizadas na construção de «narrativas figura-
tivas» subordinadas a uma temática que cresce e matura em séries de obras
montadas cinematograficamente, de forma a testemunhar esses absurdos
ensurdecedores com os quais não se quer ser cúmplice. Esta inevitabilidade
de quem deseja deixar marcas indeléveis da sua presença autoral, permitem-
-lhe reinterpretar, destacar, ficcionar, e mesmo reconstruir algo que o impres-
sionou ou sensibilizou, utilizando a experiência do mundo urdido num contí-
nuo de tensões entre as aparências e a inteligibilidade das ideias como acto
de comunicação, que tudo e nada diz, mas rasga a superfície dos «autismos
pictóricos das modas», que se legitimam na circularidade. A questão que se

276
coloca, tem contornos niilistas: o que fazer com o desaparecimento do sen-
tido de sacralidade inerente à condição humana? Como olhar o mundo, ser
interpelado por este e responder-lhe sem o amparo dos deuses, sem esbar-
rar com a crescente incomunicabilidade entre os humanos cada vez mais en-
clausurados no fetichismo tecnológico.
Será a partir da observação de si que desenvolve experimentações plás-
ticas (pintura, desenho, serigrafia, fotografia, vídeo, digital) que se tornam ca-
pazes de expressar as «imagens dispersas», amputações, frames, recolhidos
nas postulas da carne em decomposição, ironizar e dramatizar os protocolos
de sacrifício da guerra colonial por onde passou3, a decadência das elites,
nos cogumelos atómicos, e ainda, nos textos de Albert Camus, na desilusão

HUGO FERRÃO | ROCHA DE SOUSA, ANOTAÇÕES SOBRE OS PRESSENTIMENTOS DE SÍSIFO


da «primavera do Marcelo Caetano», nos labirintos conceptuais do Convento
de S. Francisco, na juventude luminosa passada em Silves, nos silêncios do
atelier em Campo de Ourique, nas pinturas de Dourdil, que também foram
adquirindo a materialidade da visibilidade de uma «nova narratividade figu-
rativa»4. É no sentido da narratividade, inconformista que o pintor também
se conta, elaborando «lugares imagéticos», povoados de histórias poéticas,
solarizadas na luz da visibilidade dos mundos, exorcizando as danações, re-
sistindo às depressões provocadas por todos os realty shows em que a vida
se transformou, protagonizando arrancamentos aos restos da humanidade,
intensamente transmutados em «coisas indizíveis» que se sentem através dos
olhos e nos confrontam com o inexorável «nada» de inquietações, sem res-
postas tranquilizadoras.
A actividade projectual que subjaz à materialidade da obra plástica de
Rocha de Sousa, manifesta um saber fazer académico tradicional, melhorado
e adquirido numa aprendizagem de «silêncios fazedores», transmitida pela
Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa5 e simultaneamente incorporando
desde cedo, linguagens e técnicas pouco usuais (1950-60), como a colagem,
a sobreposição, a citação, a apropriação, o desenho, os processos importa-
dos das técnicas de impressão e reprodução das artes gráficas, a utilização de
montagem fotográfica, a projecção de diapositivos, as máscaras, a inclusão
de objectos, o spray, as pistolas de pintar, os aerógrafos, os rolos, a própria
construção de instrumentos não usuais à prática artística.
Rocha de Sousa tem um longo percurso enquanto pintor, participando
em inúmeras exposições colectivas e realizando exposições individuais desde
1967 até ao presente. Dos catálogos das exposições individuais consultados
estacamos um pequeno ensaio da autoria de Rui Mário Gonçalves (1934-
2014) para a exposição de pintura na Galeria Judite Dacruz em 1973 (Lisboa),
considerado por Rocha de Sousa como um dos melhores textos sobre a sua
obra, do qual destacamos:

(…) «Quanto ao que permanece de denúncia, não há dúvida de que Rocha


de Sousa, havendo toda a compreensão de uma certa ambiguidade do

277
pop-artista que pretende ser uma testemunha fiel, uma perspetiva se recons-
trói que recupera a intenção inicial. A necessidade de intervir e a de pintar
conjugam-se intimamente, não por uma opção a priori. O pintor readqui-
re aqui os seus direitos de criador de imagens. Ele sabe, ou vai sabendo,
como elas se constroem e destroem. Através disso, o próprio real social te-
ce-se, em parte cada vez maior, nas suas próprias mãos. O que me parece
interessante investigar é em que medida a recuperação de dados iniciais e
de intenções passou efetivamente pelo caminho da meditação pictórica.»6

Rui Mário Gonçalves foi um dos críticos de arte mais prometedores da


sua geração, tendo marcado o panorama artístico português sensivelmente a
partir da denominada «Primavera Marcelista» (1968-1974) contribuindo para
uma nova «cartografia artística», e desmistificando o colaboracionismo artís-
tico institucionalizada pelo Estado Novo. A sua produção ensaística influen-
ciada pela escola francesa (Pierre Francastel) gerou intertextos7 congregado-
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

res das múltiplas práticas artísticas, capazes de melhorar o entendimento da


vontade de ruptura, protagonizado pelos artistas, com especial enfoque nos
jovens pintores e nos escultores, sempre irreverentes e incapazes de se reco-
nhecerem no regime.
Os novos modos de pensar a arte interiorizaram-se através de eventos
como as «Perspectivas da Arte e da Cultura Artística em Portugal»8 descreven-
do o novo contexto artístico português (1960-1980), interpretado na tensão
territorial e estatutária latente entre artistas, historiadores e críticos de arte.
Alguns dos críticos de arte são apontados pelo pintor Fenando de Azevedo
(1923-2002) na EXPO/AICA/SNBA/19729 onde Rocha de Sousa reivindica
uma deontologia, que mordazmente articula os enquadramentos imagéticos
do crítico de arte e a sua condição de pintor, esta «coincidência», manifesta
uma atitude irreverente, capaz de afrontar poderes legitimadores e aparentes
contradições, ao apresentar apenas uma única obra (pintura) da sua autoria,
deixando alguma inquietação perante os «especialistas» que contestavam
os processos de exclusão institucionalizados, mas replicavam as mesmas
estratégias de legitimação, agregando a si uma determinada corte de artistas.
A historiadora de arte, Cristina Azevedo Tavares, investiga detalhadamen-
te a atmosfera e a política cultural na Sociedade Nacional de Belas-Artes no
livro intitulado: «A Sociedade Nacional de Belas-Artes - Um Século de História
e de Arte»10, este documento de enorme interesse, sinaliza toda a participa-
ção artística e o activismo de Rocha de Sousa nesta instituição. As temáticas
definidas para as exposições colectivas têm grande actualidade e confirmam
um programa voltado para a comunidade que se virá a intensificar no pós-25
de Abril, com as mostras «Contra a Tortura/Prisão Política e Pena de Morte»,
«Mitologias Locais», Figuração Hoje?», «Abstracção Hoje?», «Colagem-
Montagem», «O Papel como Suporte na Expressão Plástica» e «Outras Formas
– Outra Comunicação», entre muitas outras.

278
Não se poderá deixar de se referir o papel incontornável de José Henriques
de Azeredo Perdigão (1896-1993) à frente da Fundação Calouste Gulbenkian
(1956) definindo uma política cultural de grande actualidade, para o Museu
em estreita articulação com a programação das exposições temporárias, acom-
panhadas pela edição de catálogos, conferências e livros, bem como com a
atribuição de bolsas internacionais de longa duração (Serviço de Belas-Artes),
o que veio a permitir o contacto directo com os maiores centros artísticos
como Paris, Londres, Roma, Berlim, ou Nova Yorque a muitos artistas portugue-
ses. Lembramos, com emoção, a revista de Artes Visuais, Música e Bailado, a
Colóquio Artes, (José-Augusto França) que abriu um espaço de grande pres-
tígio nacional e internacional, embora com limitações, à colaboração empe-

HUGO FERRÃO | ROCHA DE SOUSA, ANOTAÇÕES SOBRE OS PRESSENTIMENTOS DE SÍSIFO


nhada dos historiadores de arte, críticos de arte e artistas.
A geração de Rocha de Sousa distancia-se das querelas tardias entre neo-
-realistas, surrealistas e abstraccionistas. Vive-se desde 1961 uma guerra nas
«Províncias Ultramarinas» que estabelece protocolos de sacrifício insuportá-
veis para qualquer mancebo recrutado obrigatoriamente, pesadelo este, que
só terminará quando se dá o derrube do regime pelo MFA (Movimento das
Forças Armadas - 25 de Abril de 1974), mas os danos colaterais provocados na
carne do corpo e da invisibilidade da alma são imensos. Internacionalmente
a Guerra Fria, plena de conflitos regionais «justificáveis» à escala planetária,
gere a «aldeia global» através de agências que programam laboratorialmente
a alienação consumista, que é ironizada pelo movimento artístico da POP
(Estados Unidos e Europa), cuja matriz sociológica «just in time», se radicaliza
e literalmente salta para dentro do discurso da arte, cada vez mais esquecida
do entendimento do mundo que a rodeia, estilhaçando, aparentemente, toda
e qualquer forma de hierarquização, legitimação e consagração.
O choque provocado pela «estética da banalidade» da POP, que se serve
dos objectos massificados, dos processos e técnicas de reprodução e impres-
são industriais da imagem, para agredir a indiferença do «observador-consu-
midor», tem protagonistas como Andy Warhol (1928-1987), Roy Lichtenstein
(1923-1997), Claes Oldenburg (1929) ou David Hockney (1937) que são admi-
rados pela intransigência estética perante uma cultura que reduziu a natureza
a stock (Martin Heidegger-Hannah Arendt) e industrializou qualquer activida-
de humana. Cá dentro, e tentando «acertar» o passo pelo que de mais actual
se realiza em todo o mundo, podemos nomear alguns artistas contemporâ-
neos de Rocha de Sousa, em que a influência da POP é declarada: Joaquim
Rodrigo (1912-1997), René Bertholo (1935-2005), José Escada (1937-1980),
Pedro Sobreiro (1947), Manuel Coutinho (1946), Lurdes Castro (1930), António
Costa Pinheiro (1932-2015), Henrique Manuel (1945-1993), António Areal
(1934-1978), Carlos Calvet (1928-2014), António Palolo (1946-2000), Paula
Rego (1935) e Álvaro Lapa (1939-2006) entre outros.
O fascínio inebriante, de boa parte das representações da POP, deve-se a
uma nova figuração mediada por desenhos e grafismos importados da banda

279
desenhada, em que as figuras surgem na sua essencialidade comunicacio-
nal, possuindo poucos artifícios técnicos, são normalmente preenchidas com
cores planas, contornadas com traços inexpressivos, não têm profundidade,
aparecem balões com textos e legendas que colam a continuidade discursiva
das bandas. O clímax industrial das décadas de 50 e 60, apresentam-nos um
«mundo-montra» em que os objectos, são na realidade «vestígios de abun-
dância» recombináveis, desnudando e vulgarizando as máquinas esventra-
das, simplificando os mecanismos e estratégias de produção e reprodução
obsoletos, capazes de gerar um fluxo permanente de imagens da «felicidade
industrializada», aleatória, em que as ideias e os conteúdos são «amalgama-
dos-vampirizados», amontoados como coisas sem sentido.
Num artigo da autoria de Rocha de Sousa, a propósito da obra do inglês
David Evans que fizera uma exposição individual na Galeria Judite Dacruz
em 1971, diz sobre a história de cada pintura e do recurso pictórico à banda
desenhada: (…)
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

«As histórias de cada pintura, concebidas na base de uma técnica de co-


municação que efectivamente vai buscar a sua raiz e a sua intencionalidade
visual aos expedientes da banda desenhada, abordam pela ironia, e com
uma certa crueldade, alguns aspectos do viver quotidiano – acentuando
a estranheza das relações, o peso aleatório das imagens, o encontro ines-
perado e perturbador de certos elementos contraditórios.»11

Será esta necessidade intervencionista «quase POP», de testemunhar e in-


tervir na a cultura ausente de si mesma que se vive em Portugal, que impulsiona
o primeiro ciclo de exposições individuais realizadas nas galerias do Diário de
Notícias (Lisboa -1967), Museu de Angola (Luanda – 1968), Quadrante (Lisboa
– 1969), Arte Moderna-SNBA (Lisboa – 1969), Galeria Judite de Dacruz (Lisboa
-1969,1972 e 1973). As telas, os papeis, as superfícies são planos onde se mo-
vimentam restos de figuras humanas que essencialmente são aparências incó-
modas, que criam desequilíbrios, tensões, movimentos e vibrações, que pai-
ram entre espaços de memórias difusas, como se estivéssemos na presença de
«naufrágios anunciados», vestígios de algo que flutua. As obras nas suas resso-
nâncias, transmitem ao olhar do observador labirintos de significações instá-
veis, de possíveis mistérios indecifráveis, transformações inacabadas do mundo.
As galerias, neste período são poucas, mas algumas delas fazem forte inves-
timento na valorização e divulgação dos seus artistas, como é o caso da Galeria
S. Mamede (Francisco Pereira Coutinho – Lisboa/1972), que reabre, após remo-
delação, com exposição composta pelos artistas Areal, Manuel Cargaleiro (1927),
Carlos Calvete, Mario Cesariny (1923-2006), Charters D’Almeida (1935) Cruzeiro
Seixas (1920) Eurico Gonçalves (1932), Jorge Vieira (1922-1998), Júlio dos Reis
Pereira (1902-1998) e Paula Rego. Esta colectiva foi acompanhada pela edição
de catálogo onde já existe a preocupação documental de colocar elementos

280
biográficos dos participantes e um conjunto de fotografias a cores e preto e
branco das obras expostas.
Os recursos conceptuais da nova figuração esvaziam o tradicional es-
tatuto do sublime na representação, devastando o carácter redentor e
moralista da obra de arte, e assim anulam a instauração da significação a
partir do real. O rizoma da solidão, profetiza a pós-humanidade como axis
mundi da existência decorrente da errância tecnológica. Torna-se urgente,
como diz Albert Camus, transpor as aberrações niilistas das sociedades in-
dustriais que apenas produzem desertos tecnológicos, por intermédio de
uma rebelião criativa em que o centro é o individuo.12
A teorização à volta da «nova figuração», é expressa e clarificada no

HUGO FERRÃO | ROCHA DE SOUSA, ANOTAÇÕES SOBRE OS PRESSENTIMENTOS DE SÍSIFO


artigo: «Figuração Hoje em Portugal», em Rocha de Sousa nos diz:

«(…) Teve então de reconhecer-se a existência positiva de novas ten-


dências de representação, geralmente agrupadas (não com inteira pro-
priedade) sob a designação de nova figuração. Esta designação é com
efeito questionável, portanto o termo figura envolve conceitos muito
mais amplos e relaciona-se com a actividade perceptiva no plano da
dicotomia do fundo e da forma. Deveria por isso falar-se em termos de
representação, pois é nessa linha que a arte dita figurativa se concebe
e se afirma, reintroduzindo a relação da obra artística enquanto signo,
como o objecto»13.

O pintor identifica e desmonta facilmente a imposição das «receitas


dos itinerários estéticos», a eleição incondicional das «superstars», as pe-
trificações institucionais, os estereótipos inabaláveis, mas esta «dissecação
saboreada», é feita com o propósito maior de abrir caminhos, aliado ao
respeito intransigente pelo outro. Não faz parte de nenhum loby artístico, é
um homem culto, capaz de revisões criticas e informadas dos movimentos
artísticos contemporâneos e das perspetivas individualizadas dos artistas.
Compilou documentos (ensaios, livros e artigos)14 nos quais tenta sistema-
tizar o estudo do processo da linguagem plástica visando contribuir para
a aquisição de um novo vocabulário, um outro entendimento para além
da instantaneidade processual do presente, convicto de que «a realidade
não é um absoluto, mas sim o resultado da colisão entre aparência (objec-
tiva) e a consciência (subjectiva)»15.
A feitura das suas obras explora a experimentação técnica, controla-
da ou acidental que leva à «coisificação» matéria, no entanto não se dá o
total abandono do modus operandi tradicional da pintura. As estratégias
conceptuais de citação, apropriação e a colagem, fundem-se criando uma
unidade coerente dentro do espaço visual circunscrito pela imagem pic-
tórica. O processo operativo convoca para a pintura, as sobreposições, as
transparências, as acentuações, as escalas diversas, «miscigenações» entre

281
montagens e composições gráficas, sugeridas
nas selecções de cor, nos pontos e nas miras,
na precisão das formas, nos acertos milimé-
tricos das peliculas. Porém esta aparente es-
tabilidade, apresenta subtis clivagens entre a
imprecisão artesanal da mão que deixa cicatri-
zes ou marcas insuspeitas do perfeccionismo
oficinal da pintura em contraponto com a pre-
cisão laboratorial, matemática dos processos
mecânicos, expandindo as «nostalgias pictóri-
cas» com o formato de anotações imagéticas
dispersas, ahistóricas.
Seleccionamos a pintura «Energia», como
um portal onde se sintetiza e confirma muito
daquilo que foi escrito neste artigo, Esta breve
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

aproximação à obra é realizada da perspectiva


do observador que percebe o dinamismo da
composição que intencionalmente cria movi-
mentos ascendentes e ritmos causados pelas
diagonais que o segmentam e fragmentam o
plano, articulando interacções e micronarrati-
vas dentro do quadro. É-se levado a percorrer
os misteriosos espaços narrativos, onde suge-
rem fantasmas que fizeram parte de todas as
Pintura e fragmentos da grande batalhas históricas, introduzindo uma tempo-
composição (tema «Energia», técnica mista ralidade dilatada associada à constante matan-
(acrílico sobre tela e spray), 150x200cm,
1972) , de uma das provas (Reforma de
ça de milhões de pessoas como personagens
57) que compunham o concurso para se anónimas que emergem momentaneamente
aceder ao título de Professor Agregado dos cenários dantescos votados ao esque-
em Pintura e assim passar-se a 1º
cimento. As figuras são retocadas por linhas
Assistente. A sua lição teórica intitulou-
se: « Mobilidade Visual, Aparência e subtilmente colocadas, ajudando à percepção
Representação». de micronarrativas, fazendo parte de um todo,
como se estivéssemos a presenciar e a partici-
par nos constantes desastres, iluminados pelo
negro alcatrão que desce do céu para a terra. O
cromatismo mate e a monotonia técnica retiram ambiguidades interpreta-
tivas, mas acentuam a ideia dos dias de chumbo, em que apenas intuímos
as formas dos corpos que encontramos ocasionalmente.
Por último, reconhecemos os silêncios inquietantes desta «cartografia
apocalíptica», que sulca e delimita espaços de memórias securizantes, de
imagens longínquas evocando tempos e luz, sons, corpos, poesia, imagens

282
de pinturas, palavras enamoradas. O olhar perscrutou o horizonte, que-
rendo ver vendo, fomos capazes de deambular por dimensões imagéticas
libertadoras e sentir o ser do pintor por breves instantes. Vislumbrámos
intensamente a nossa presença feita Sísifo nesta paisagem de sacrifícios
absurdos suavizados pela maravilhosa possibilidade de se pintar.

Hugo Ferrão
Casa das Três Colunas
Novembro 2017

HUGO FERRÃO | ROCHA DE SOUSA, ANOTAÇÕES SOBRE OS PRESSENTIMENTOS DE SÍSIFO


Notas
1
Ver o artigo intitulado: «Rocha de Sousa, 6
Catálogo da exposição «Rocha de
Ser sem Heterónimos», onde se tecem Sousa», Galeria Municipal de Arte, 1990
intertextos que permitem aproximações pp.21-26
a uma personagem tão complexa no 7
Gonçalves, Rui Mário. (1980) Pintura
panorama artístico da segunda metade
e Escultura em Portugal – 1940 – 1980.
do século XX. Ferrão, Hugo (2003). Rocha
(1ª ed.) Lisboa: Instituto de Cultura
de Sousa, Ser sem Heterónimos. Lisboa,
Portuguesa.
ArteTeoria, nº 4, 73-99.
8
Uma das temáticas discutida no Primeiro
2
Fazemos referência a obras presentes na
Encontro de Críticos de Arte Portugueses.
exposição individual de pintura na Galeria
Gonçalves, Rui Mário. (1967) Primeiro
do Diário de Notícias - 1967
Encontro de Críticos de Arte Portugueses.
3
Sousa, Rocha de (1999). Angola 61: Uma Colóquio Artes. Nº 44, 12-17.
Crónica de Guerra ou a Visibilidade da 9
Fernando de Azevedo, a propósito deste
Última Deriva. (1ª ed.) Lisboa: Contexto.
evento, refere 10 personalidades que
4
Rocha de Sousa trabalha e edita um considera como a «critica da arte» (Mário
livro sobre a obra de Luís Dourdil, onde de Oliveira, Fernando Pernes, Rocha de
pressentimos alguma contaminação pictórica. Sousa, Rui Mário Gonçalves, Egídio Alves,
Sousa, Rocha de (1984). Dourdil. (1ª ed.) José Ernesto de Sousa, José-Augusto
Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda. França, Carlos Duarte, Salette Tavares,
e Pedro Vieira de Almeida). Evocamos
5
Rocha de Sousa tem em Silves uma figura
também José Luís Porfírio, Aníbal Alves,
tutelar que é o pintor José Ricardo Júdice
Adriano Gusmão, Manuel do Rio-
de Samora Barros (1887-1986) o ingressa
Carvalho, Nuno Portas e Francisco Bronze.
na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa
Azevedo, Fernando de (Out. 1972) EXPO
dá-se em 1955 e a conclusão do Curso
AICA SNAB 1972. Colóquio Artes. Nº 9, 2ª
Superior de Pintura em 1961 com a pintura
série, 14 ano, 40-51.
intitulada: «O Morro». Em 1957 acontece
nova reforma do Ensino Artístico Superior, no 10
Tavares, Cristina Azevedo (2006). A
entanto Rocha de Sousa está abrangido pelo Sociedade Nacional de Belas-Artes - Um
curricula da reforma de 1932. Veja-se a este Século de História e de Arte. Lisboa (1ª
propósito: Calado, Margarida & Ferrão (2012) ed.) Núcleo de Desenvolvimento Cultural
Da Academia à Faculdade de Belas-Artes. In de Vila Nova de Cerveira/Fund. Da Bienal
António Nóvoa (Direc.), Sérgio Campos Matos de Vila Nova de Cerveira.
& Jorge Ramos do O (Coord.), A Universidade
de Lisboa Séculos XIX-XX (Vol. II, pp.1106-
1151). Lisboa: Tinta da China.

283
Sousa, Rocha de (1973) David Evans.
11 14
Relembro apenas o papel fundador de
Colóquio Artes. Nº 13, 2ª série, 15º ano, 9. novas pedagogias e didáticas no ensino
artístico do livro: Sousa, Rocha de., Batista,
12
Harrrison, Charles.,& Wood, Paul (Eds.).
Helder., (s.d.) Para d Didática Introdutória
(1997). Art in Teory – 1900-1990: Na
às Artes Plásticas. Lisboa: FCG/ESBAL.
Anthology of Changing Ideas. Oxford/
Massachusetts: Blackwell Publishers. 15
Sousa, Rocha de (1973). A Necessidade
615-618. do Realismo. Colóquio Artes. Nº 12, 2ª
série, 15º ano, 36-43.
13
Sousa, Rocha de (1975). Figuração Hoje
em Portugal. Colóquio Artes. Nº 22, 2ª
série, 17º ano, 33-36.

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(Eds.). (1997). Art in Teory – 1900-1990: Arteopinião. Nº 2, 2-4.
Na Anthology of Changing Ideas. Oxford/
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284
SOUSA, Rocha de (1973). A Necessidade
do Realismo. Colóquio Artes. Nº 12, 2ª
série, 15º ano, 36-43.

SOUSA, Rocha de (1975). Figuração Hoje


em Portugal. Colóquio Artes. Nº 22, 2ª
série, 17º ano, 33-36.

SOUSA, Rocha de., Batista, Helder.,(s.d.)


Para d Didática Introdutória às Artes
Plásticas. Lisboa: FCG/ESBAL.

SOUSA, Rocha de (1973) David Evans.


Colóquio Artes. Nº 13, 2ª série, 15º ano, 9.

SOUSA, Rocha de (1999). Angola 61: Uma

HUGO FERRÃO | ROCHA DE SOUSA, ANOTAÇÕES SOBRE OS PRESSENTIMENTOS DE SÍSIFO


Crónica de Guerra ou a Visibilidade da
Última Deriva. (1ª ed.) Lisboa: Contexto.

SOUSA, Rocha de (1984). Dourdil. (1ª ed.)


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Catálogo da exposição «Rocha de Sousa –


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YATES, Francis A. (2005). El Arte de la


Memória. Madrid: Siruela.

285
Rocha de Sousa – um testemunho
Margarida Calado
Professora Associada de Ciências da Arte e do Património na FBAUL; Anterior
Coordenadora da área de Ciências da Arte e do Património. Investigadora do CIEBA.
[email protected]

Quando em 1973 entrei como assistente eventual na então Escola Su-


perior de Belas Artes de Lisboa, apenas conhecia os docentes que faziam
parte do grupo de História da Arte e Estética, dirigido pelo professor Artur
Nobre de Gusmão. De facto, o horário das 8 às 10 horas da manhã em que
decorriam as aulas quase não nos proporcionava o cruzamento com os
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

outros professores que iniciavam as suas aulas precisamente às 10 horas.


Foi só na sequência da Revolução de 25 de Abril de 1974 que pude
conhecer os colegas, inicialmente em reuniões gerais que tinham lugar no
Anfiteatro que tem hoje o nome de Auditório Lagoa Henriques.
Mais tarde, e depois de resolvidas as questões do saneamento dos pro-
fessores, os alunos e professores de Escultura e Pintura organizaram reuniões
de grupo, enquanto em Arquitectura o divórcio foi radical e os professores
permaneceram totalmente afastados pelos alunos.
O objectivo fundamental do que então se designaria por Departamen-
to de Artes Plásticas e Design foi a reforma dos cursos ministrados numa
perspectiva actualizada mas em que modelos como a Bauhaus estavam cla-
ramente presentes. Os diversos grupos de trabalho durante parte do Verão
de 1974 discutiam acaloradamente o futuro da Escola e aí se começou a
distinguir Rocha de Sousa como um dos docentes que mais colaborou na
construção dos novos currículos.
Lembremos que na altura os alunos se começavam a agrupar partida-
riamente, em volta de partidos como o PCP, a UDP e o MRPP, cada um com
a sua ideia de escola e as negociações nem sempre eram fáceis.
Quando finalmente se começaram a leccionar matérias, primeiro em
regime de conferências e ateliês, e depois finalmente em cursos com as
respectivas estruturas curriculares, embora com um sólido tronco comum,
desenhou-se outra luta, que era a aprovação desses currículos pelo Minis-
tério da Educação, tendo presente que a maioria dos alunos de então se
destinava à docência no ensino básico e secundário e que na altura havia
efectivamente muita necessidade de docentes. A estrutura curricular dessa
época em grande medida devida a Rocha de Sousa, apontava para o futuro,
com um bacharelato de três anos a que se seguiam dois anos que dariam
o título de licenciado a quem os completasse, proporcionando aos alunos

286
um leque de opções bastante amplo e alguma liberdade para construir o
seu próprio currículo.
Esta estrutura aproximava-se bastante do que seria proposto anos mais
tarde pela Reforma de Bolonha, só que esta dava aos três anos, ou 1º ciclo,
a designação de licenciatura, e ao 2º ciclo de dois anos, a designação de
mestrado, embora neste caso com o pressuposto da realização de uma dis-
sertação ou relatório.
A luta seguinte travada por Rocha de Sousa e pelos outros docentes foi
a da integração dos cursos de Belas Artes na Universidade, fosse ela a Clás-
sica, ou simplesmente, de Lisboa, ou a Universidade Técnica.
Sucediam-se os ministros da Educação e as longas reuniões no Ministé-
rio e as esperas nos corredores, sempre com a esperança de que o assun-
to fosse resolvido rapidamente, acabando por ficar em suspenso e dessa
época recordamos a frustração que Rocha de Sousa testemunhava pela

MARGARIDA CALADO | ROCHA DE SOUSA – UM TESTEMUNHO


incompreensão dessas entidades que viam ainda a prática artística como
um ofício medieval e não como uma actividade intelectual que merecesse
estatuto universitário.
Só em 1992 a Escola de Belas Artes seria finalmente aceite na Univer-
sidade de Lisboa, mas esse longo percurso de luta acabou por deixar uma
profunda frustração em Rocha de Sousa, aceite como Professor na Univer-
sidade Aberta e que também se destacou pelos manuais destinados ao
ensino Básico e Secundário. Terá sido sobretudo o sentimento de injustiça
face por exemplo ao curso de Arquitectura, mais rapidamente integrado na
Universidade Técnica de Lisboa.
Depois um dia Rocha de Sousa saiu discretamente da Escola / Faculdade
que tão bem conhecia como aluno e professor e só dificilmente a ela tem
regressado. Além da pintura dedicou-se à escrita, apenas uma outra forma
de criação artística e entre realidade e ficção deixou-nos as suas memórias
do que foi a sua passagem pelo convento de S. Francisco, como em Belas
Artes. Segredos Conventuais ou em Os Fantasmas de Lisboa.
De Rocha de Sousa guardamos a recordação e o respeito e a consciência
de que é uma figura incontornável na história do ensino artístico.

Margarida Calado
Lisboa, Agosto de 2017

287
Sobre Rocha de Sousa
Historiador e Ensaísta: algumas
leituras e cogitações
C r i s t i n a A z e v e d o Ta v a r e s
Professora Associada de Ciências da Arte, Faculdade de Belas, Universidade de
Lisboa Artes e no PD-FCTAS da FCUL, Investigadora colaboradora do CFCUL, Head
de Arte e investigadora colaboradora do CIEBA.
[email protected]
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

Sem saber como, quando comecei a escrever estas palavras hesitei entre
ouvir jazz, algo do Mcoyner Trio, por exemplo ou algum clássico, e voltei-me
para Vivaldi e o Concerto das Quatro Estações. Lembrei-me então que este era
o disco em vinil que tocava no atelier de Pedro Chorão quando Rocha de Sousa
conversava com ele sobre a pintura. Coincidência voluntária?!
Ao desafio de falar sobre Rocha de Sousa e ainda para mais sobre a sua
faceta de historiador e ensaísta -ensaísta mais do que historiador no meu en-
tender e que por sugestão amigável do Fernando Rosa, em urgência do tempo
e da tarefa acolhi, procurei trabalhar quatro obras, duas das quais tive enorme
dificuldade em encontrar: Pedro Chorão 1983, Dourdil 1984, Eduardo Néry,
1990 e Coincidências Voluntárias, 2011. Também eu conheci estes três pintores
e sobre eles escrevi em pequenos ou maiores textos em várias revistas e jornais.
Reli o texto de Rocha de Sousa sobre Pedro Chorão que tinha escalpelizado em
1993, para um debate a realizar no CAM a que ele acabou por não compare-
cer... Participei nas homenagens a Dourdil que a Câmara Municipal de Lisboa
realizou juntamente com a família quando se ultimou o restauro das pinturas
do Café Império, e escrevi um texto para o catálogo então editado. Com sau-
dade revejo o Dourdil dos Coruchéus num magnífico e grande desenho a car-
vão na coleção de José-Augusto França patente em Tomar, museu onde aliás,
o Eduardo Néry, deixou a sua marca op na fachada exterior de azulejo, além de
se encontrar representado com outras obras no interior do museu e na coleção.
Atrevo-me a chamar a esta incursão modesta algumas leituras e cogitações,
pois claramente se percebe que a minha abordagem é diminuta relativamente
a uma obra tão diversificada e complexa como a de Rocha de Sousa. Cumpre-
me dizer, que é uma figura que sempre muito respeitei e admiro no contexto
da vida académica e fora dela, e foi no exterior que comecei a ouvir falar de
Rocha de Sousa como critico de arte e pintor, e aliás pela primeira vez e muitas

288
outras vezes através de meu pai, que o considerava muito. Rocha de Sousa dis-
tinguiu-se ainda como membro dos órgãos sociais da Sociedade Nacional de
Belas-Artes onde desempenhou um papel importante na sua modernização e
defesa da arte contemporânea, num tempo onde estes valores tinham de ser
conquistados com persistência e sabedoria.
Enquanto pedagogo e professor da então ESBAL, comecei a ter mais con-
tacto com Rocha de Sousa ao ingressar como assistente estagiária em 1984,

CRISTINA AZEVEDO TAVARES | SOBRE ROCHA DE SOUSA HISTORIADOR E ENSAÍSTA: ALGUMAS LEITURAS E COGITAÇÕES
tendo comprado anos mais tarde, o livro Para uma Didática das Artes Plásticas
com design de José Cândido e publicado pela FCG, em que Rocha de Sousa
partilhava com Hélder Batista o texto programático e assertivo, que eu ainda
hoje, considero ser fundamental na algibeira de qualquer historiador de arte,
e que ia ao encontro do meu interesse e leituras feitas sobre Arte e Perceção
Visual de Rudolph Arnheim que no Mestrado de História da Arte na UNL, Orlindo
Gouveia Pereira me tinha incutido, gosto que ainda hoje transmito amavelmen-
te aos alunos.
A última vez que me cruzei com Rocha de Sousa, foi na sua exposição no
Museu Militar em 2016, depois de muitos outros, no Jornal de Letras e Ideias,
júris de provas académicas, e corredores do convento.
Obviamente que outras leituras terão de ser somadas a estas para uma
visão mais reta, como os ensaios publicados em diversas revistas e jornais, além
de outros livros, e o blogue Desenhamento, mas para esta breve apresentação
pública, apoiei-me em “Coincidências Voluntárias” autobiografia sábia, auto re-
flexiva, introspetiva também, como se pretende que seja, e ao mesmo tempo,
pertinente ensaio sobre a arte e pedagogia sustentado numa história de vida
e numa crónica de afetos, onde pude encontrar pistas para ler em cronologia
inversa os textos sobre Dourdil , Néry e reler o livro sobre Pedro Chorão.
Pistas, linhas orientadoras de pensamento, estratégias ou conceitos opera-
tórios, neste diapasão de profundidades, encontrei constâncias que ritmam a
escrita de Rocha de Sousa e que estão patentes em Coincidências Voluntárias e
nas três monografias dos pintores sobre os quais escreveu para a coleção Arte
e Artistas da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, que ao tempo considerou ser
uma edição bem intencionada.
Coincidências Voluntárias apresenta uma escrita líquida com uma trama
complexa, desenvolvendo dois registos de prosa simultâneos e cruzados, um
dois quais é romance.
Mas Rocha de Sousa já não escreve, como outrora, no caderno pautado
de capa preta com 100 folhas numa mesa ao fundo da Brasileira, pois chegou
há muito tempo a era dos computadores, e quanto ao lugar, o da Brasileira e
o nosso Chiado, este é engolido por vagas de turistas que abraçam convulsi-
vamente o Fernando Pessoa de Lagoa Henriques, ou mimam o poeta Chiado
em performance assumida para registo imediato no instagram ou no facebook.
Sendo que o lugar do café desaparece nesta onda devoradora de pastéis de
nata e bicas, à míngua de Belém.

289
E dizia eu, que nesta escrita, Rocha de Sousa assinala algumas referências
fundamentais na formação do seu pensamento, que são coincidentes noutras
obras, incluindo no livro Para uma Didática das Artes Plásticas.
Referências que oscilam nos territórios sem fronteiras e que passo a citar
entre a sociologia da arte, estética, educação e pedagogia artística, filosofia
da arte, as teorias do design, da cor, da comunicação, psicologia da arte, e
ainda, mas em menor escala, a história da arte, e ficando certamente a faltar
a menção de outras...
Autores como, Munari, R. Arnheim, Paul Klee,Roland Barthes, Umberto Eco,
Abraham Moles, Baudrillard,Roger Garaudy, Gillo Dorfles, Claude Roy, Ernest
Fisher, Herbert Read, Jean Cassou, Renato de Fusco, e outros, sem esquecer
os testemunhos de Juan Gris, Picasso e Klee foram importantes na construção
de um pensamento critico, onde alguns temas como a mobilidade visual, o
realismo sem fronteiras, a pedagogia aplicada às artes são as linhas mestras.
Estas prontamente se articulam com uma determinada conceção do papel
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

do “operador estético” aproximando-o também do pensamento de Ernesto


de Sousa (1921-1988) tal é o entendimento que Rocha de Sousa tem da arte
e da política cultural, e onde a sua dimensão como critico de arte está ativa.
Quase sem nos darmos conta, no livro Coincidências Voluntárias o autor
vai fazendo uma história do ensino da ESBAL/FBAUL falando das reformas
sucessivas, (tendo eu consciência plena, e apesar da mudança dos tempos,
que a reforma do ensino desta escola , mais certeira e interessante para os
alunos e professores foi a por ele realizada com outros colegas no pós 25 de
Abril de 1974),possibilitando a sua integração na Universidade de Lisboa,
mas igualmente aproveitando para criticar algumas dimensões menos ade-
quadas das politicas contraídas.
Mais tarde num desbloquear de opacidades foi possível a Rocha de
Sousa implementar e na Universidade Aberta de Lisboa um mestrado pio-
neiro: o Mestrado de Comunicação Educacional Multimédia e lecionar as
unidades curriculares de Tecnologia do Video e de Didática da Educação
Visual, assumindo também as funções de consultor para matérias ligadas à
educação artística.
Outro aspeto muito interessante do seu texto é que contém algumas
reflexões fundamentais, por exemplo acerca do realismo e das suas formas,
mas também estabelece analogias entre alguns temas como o cinema e a
pintura, em particular o movimento da câmara, o qual permite descodificar
algumas obras da pintura moderna, dando-nos leituras singulares ao realçar
a problemática do foto realismo na produção americana e europeia,e permi-
tindo-lhe mais do que uma vez citar o Blow Up de Antonioni.
Seguindo a mesma abordagem, Rocha de Sousa estabelece uma relação
entre a pintura e a fotografia1 em que esta é considerada como uma técnica
transfiguradora da pintura. Esta leitura de processos comparativos entre o
cinema e a pintura, incluindo a fotografia, permite esclarecer o que o autor

290
entende por mobilidade visual , nomeadamente comparando-o com o tra-
velling da máquina de filmar, e permite depois aplicá-lo na leitura sobre o
trabalho dos artistas.
Mas vejamos de acordo com as palavras de Rocha de Sousa: A visão não é
um fenómeno mecânico, mas uma dinâmica com a realidade.(...) A visão pres-
supõe também uma carga de valores ontológicos, determinantes na orientação
das escolhas estéticas.2 (...) Uma obra de arte, por exemplo, é um objeto em

CRISTINA AZEVEDO TAVARES | SOBRE ROCHA DE SOUSA HISTORIADOR E ENSAÍSTA: ALGUMAS LEITURAS E COGITAÇÕES
movimento no sentido em que se transforma, por cada observação que dela
se apropria “(…).3 A mobilidade visual dirige o nosso olhar e fornece novos
instrumentos ao nosso ver.4 E neste sentido ver é julgar, (que) ver é agir.5
Esta atividade da mobilidade visual simultaneamente capta o exterior e
interior da obra de arte, indicando que em cada gesto, cada mudança da po-
sição do corpo, altera-se a observação e como tal se modifica a realidade da
obra de arte. Por outro lado, a obra enquanto realidade é refletida como uma
identidade interior, subjetiva, implícita.6
Encontramos uma articulação entre a mobilidade visual e o realismo sem
fronteiras, uma vez que a primeira fornece um instrumento para o ver, e certo
é que a pintura Demoiselles d’Avignon de Picasso exemplifica esta ideia, pois
é a demonstração da modernidade duradoura, tal, como a obra inicial de Paula
Rego, nata contadora de histórias, apresenta formas em metamorfose, ou seja
formas em mobilidade, onde a pintura, a colagem e os processos gráficos se
transmutam sucessivamente. É ainda na análise da obra de Eduardo Néry que
esta ideia de mobilidade visual é aplicável e logo no primeiro capítulo do livro
sobre o pintor se pode ler: Ao abordar a problemática do espaço trabalhando
segundo métodos rigorosos o seu ângulo de análise (Néry) inclui o conceito
de mobilidade visual, a permanente mudança dos dados percetivos, tanto no
campo operatório concreto como na fluidez das memórias que atravessam a
face equívoca dos objetos (...).7
Seguidamente o segundo capítulo intitulado Mobilidade visual e forma
plástica permite a Rocha de Sousa uma explanação acerca deste conceito, sa-
lientando que A atitude mental é inerente à visão8, assinalando depois os po-
sicionamentos teóricos de autores como Eco, Garaudy, Klee e Arnheim que
vão ao encontro desta perspetiva, assim como na afirmação da existência do
pensamento plástico, sublinhando as ideias de Pierre Francastel, e testemu-
nhando a pertinência desta perspetiva com Juan Gris, Picasso e os estudos
de Foucault sobre as Meninas de Velasquez.9
Ainda no mesmo capítulo Rocha de Sousa voltará ao tema, agora para
assinalar que o próprio Néry através do seu modo de criação, e devido à sua
atividade artística multidisciplinar ia ao encontro da mobilidade visual, quer
ao nível da mobilidade do ver e do fazer, quer (n)a confirmação de um ato vi-
sual que se abre sistematicamente à realidade.10
Podemos sublinhar este tema segundo as palavras do artista, citadas no
livro: O que procuro visar, com esta associação de imagens é o aprofundamento

291
do ato de ver.11 E Rocha de Sousa em seguida refere como as fotografias de
Néry pesquisavam a ligação entre imagem e as estruturas visuais.
As três monografias publicadas na coleção Arte e Artistas da Imprensa
Nacional -Casa da Moeda são textos diversos, mas que têm a ver com o autor-
-pintor e autor- critico de arte, já que Rocha de Sousa foi publicando ao longo
de anos muitos textos a propósito da obra de cada um deles.
No final do livro Coincidências Voluntárias e no capítulo XI , o último, in-
titulado A propósito dos artistas em exílio ou a pequenez do pessimismo sem
informação, Rocha de Sousa refere-se a Chorão e Dourdil, e passo a citar,(...)
dois artistas pelo mais nítido encontro profissional e afetivo que eles me pro-
porcionaram (...).12 E Eduardo Néry, em que Rocha de Sousa através da escrita
procurava sublinhar a sua invulgar pesquisa, nunca mais o tendo abandonado,
pois Néry desenvolveu sempre uma produção coerente e multidisciplinar, que
quebrava com o ostracismo do nosso meio.13
As escolhas destes pintores por Rocha de Sousa não são aleatórias, mas
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

revelam muito sobre o autor Rocha de Sousa: por um lado, uma aproximação
à sua pintura, à sua obra plástica, que também é fragmentada e despojada; e
o interesse genuíno por dois artistas autênticos, aos quais um terceiro, Néry se
vem juntar, como tema para o último livro que Rocha de Sousa escreveu para
a coleção Arte e Artistas da Imprensa Nacional- Casa da Moeda. A interpreta-
ção que Rocha de Sousa faz da obra e do modo de trabalhar de Eduardo Néry
vem ressaltar o seu papel como artista investigador, a relação invulgar da obra
com o espaço urbano, e também a multidisciplinaridade que sempre atraves-
sou a sua atividade artística.
Pedro Chorão, publicado em 1983, é um livro dividido em sete capítulos
com um abstract que é simultaneamente uma biografia. Segundo Rocha de
Sousa, e passo a citar, em Chorão distinguem-se três tipos de pesquisa unidos
pela componente estilística onde a cor desempenha um papel de relevo: a pes-
quisa plástica inteiramente abstrata; a pesquisa pictórica em que o jogo plástico
concede ao registo representativo o espaço essencial ao seu valor de código.14
Referência importante também é feita à aproximação com o mundo dos
objetos nas largas bandas, portadas, entradas, etc, assim como as colagens mais
significativas dos anos 80, com embalagens desmontadas, papeis recortados
ou rasgados, havendo aqui uma proximidade com a pop, e recorrendo tam-
bém à fotografia como base para a colagem.
Dourdil livro publicado em 1984, é o segundo texto publicado na coleção,
dividido em cinco capítulos com um abstract e incluindo uma biografia do pin-
tor. A reflexão que Rocha de Sousa elabora acerca de Dourdil aponta para al-
gumas ligações ao cubismo francês de André Lothe e Villon que se manifes-
tam sobretudo na importância que o plano adquire na obra, assim como várias
componentes do expressionismo. O desenho tem um protagonismo muito forte
na obra de Dourdil, que Rocha de Sousa assinala como reflexão estruturante e
gestual da pintura.

292
Rocha de Sousa, evidencia também Dourdil enquanto pintor muralista, e
as perdas já então havidas na sua obra, desde os painéis a carvão (1942) des-
mantelados nas Companhias do Gaz e da Eletricidade, assim como, o afres-
co do Restaurante Monsanto de 1967, adulterado e quase perdido, no seio
de outras obras nas quais se destacam o afresco a têmpera do Café Império
de 1955, em que Rocha de Sousa entende a pintura como um plano de se-
quência do cinema.

CRISTINA AZEVEDO TAVARES | SOBRE ROCHA DE SOUSA HISTORIADOR E ENSAÍSTA: ALGUMAS LEITURAS E COGITAÇÕES
Para o autor do livro, Dourdil (...) desenvolveu um sistema de representa-
ção ao mesmo tempo coerente e fragmentário, um espaço binário singular, o
sentido da medida e da ambiguidade verdadeiramente adaptado ao discurso
da sua arte figurativa aberta.(Dourdil, pág.84)
Eduardo Néry publicado em 1990 na mesma coleção é o livro mais ex-
tenso com onze capítulos além de uma biografia e abstract.
Rocha de Sousa evidencia que o centro comum da obra de Néry consiste
na noção de espaço, que depois se articula na equação espaço-cor-luz. Este
percurso inicia-se nas pinturas de registo caligráfico da década de 60, mas é
na multidisciplinaridade que se consolida a obra do pintor. Pois Eduardo Néry
vai da pintura vai ao espaço urbano, fazendo integração cromática de facha-
das e urbanizações, e desenhos para o chão das praças (plano integrado de
Almada; estação do metro de Lisboa; Faleiras, Redondo e Câmara Municipal
de Lisboa) através da passagem pela Op arte. Salienta na totalidade da obra
de Néry o lugar da colagem, do azulejo, da fotografia e da tapeçaria, pautan-
do-se este sempre por uma investigação incessante dos processos e materiais.
O escritor também insiste nas questões do espaço e do ver, exemplifi-
cando com as representações em duplas perspetivas, absurdos dando lugar
à série dos cubos que pareciam flutuar no vazio. E a dado momento carateri-
zando Néry afirma que o (...) artista desloca constantemente o seu horizonte
percetivo para melhor entender o mundo (isto é: para melhor o revelar e trans-
formar) (...).15, tema que recebeu maior desenvolvimento no livro Coincidências
Involuntárias de 2011,mas que igualmente se aplica ao seu autor. Isto é, Rocha
de Sousa, um artista multidisciplinar, onde a pintura, o cinema, a fotografia,
a escrita e a pedagogia se cruzam. Coincidências involuntárias, permita-me
esta apropriação, não sei...

293
Notas
1
Ver de Rocha de Sousa, Coincidências
Voluntárias páginas 52 a 54.
2
In Coincidências Voluntárias, pág.43.
3
In Coincidências Voluntárias pág.69.
4
In Coincidências Voluntárias pág.100.
5
In Coincidências Voluntárias pág.68.
6
In Coincidências Voluntárias ,pág.69.
7
In Eduardo Néry, pág.11.
8
In Eduardo Néry, pág.32.
9
Ver de Eduardo Néry págs 32a 34.
10
In Eduardo Néry, pág.36.
11
In Eduardo Néry, pág.64.
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

12
In Coincidências Voluntárias, pág.146.
13
Idem, ibidem.
14
In Pedro Chorão, pág.12.
15
In Eduardo Néry, pag.35.

Referências Bibliográficas

SOUSA, Rocha, Coincidências Voluntárias,


Ed. Edita-me, Porto, 2011.

SOUSA, Rocha, Dourdil, Ed. Imprensa


Nacional_Casa da Moeda, Lisboa, 1984.

SOUSA, Rocha, Eduardo Néry, Ed.


Imprensa Nacional_Casa da Moeda,
Lisboa, 1990.

SOUSA, Rocha, Pedro Chorão, Ed.


Imprensa Nacional_Casa da Moeda,
Lisboa, 1983.

DESENHAMENTO rochasousa.blogspot.
com/ URL: https://www.google.pt/
search?q=desenhamento&rlz=1C1GGRV_
pt-PTPT751PT751&oq=desenhamento&aq
s=chrome..69i57.10722j0j7&sourceid=chr
ome&ie=UTF-8 (consulta a 20/9/17)

294
Rocha de Sousa: de Artista a
Professor, Pedagogo e Didacta

Ana Sousa
Professora Auxiliar Convidada, Faculdade de Belas-Artes,
Universidade de Lisboa. Investigadora lntegrada no CIEBA
[email protected]

Neste artigo procuramos esboçar o perfil do professor e reformador do


ensino superior artístico português, evidenciando os momentos em que a
sua acção foi determinante nesta esfera e as repercussões que a sua obra
alcançou no ensino básico e secundário das artes visuais, estabelecendo
um paralelo entre a didática que disseminou e as práticas que ainda hoje
prevalecem nas escolas, revelando uma adesão massiva ao que Arthur
Efland designa de corrente formalista-cognitiva da educação artística mas,
simultaneamente, o prenúncio de uma perspetiva crítica, construída a par-
tir da desconstrução das imagens produzidas pelos media, que só muito
mais tarde viria a constituir-se como campo de investigação e prática: a
educação pela cultura visual. Assim, se por um lado, podemos situar Rocha
de Sousa num movimento formalista da educação artística, que entende
a arte como linguagem, à qual está associado um conhecimento próprio,
por outro lado, não podemos deixar de reconhecer na sua acção esta ten-
dência mais recente na história do ensino formal e não formal das artes
visuais. Para além disso, numa perspetiva mais global, podemos ainda
questionar-nos se, ao articular as dimensões acima mencionadas, Rocha
de Sousa, ainda que inadvertidamente, não constituirá um dos primeiros
exemplos de a/r/t-grafia em Portugal.

O Homem Completo
Nunca é demais relembrar as múltiplas dimensões em que João Manuel
Rocha de Sousa (Silves, 1938) actuou e actua, num permanente desdobra-
mento como artista, pintor, cineasta, crítico, professor, pedagogo e, mais
recentemente, sobretudo escritor. Pensador de discernimento audacioso,
Rocha de Sousa congrega capacidades vulgarmente entendidas como dis-
sociadas e até incompatíveis, numa articulação prática-teoria que encarna, a
nosso ver, a descrição de «homem completo» formulada por Fernando Pessoa,
quando, em 1926, abriu com estas “palavras iniciais” a Revista de Comércio
e Contabilidade (vol. 1, n.º 1, pp. 5-6):

295
«Toda a teoria deve ser feita para poder ser posta em prática, e toda a prática
deve obedecer a uma teoria. Só os espíritos superficiais desligam a teoria
da prática, não olhando a que a teoria não é senão uma teoria da prática,
e a prática não é senão a prática de uma teoria. Quem não sabe nada dum
assunto, e consegue alguma coisa nele por sorte ou acaso, chama “teórico”
a quem sabe mais, e, por igual acaso, consegue menos. Quem sabe, mas
não sabe aplicar, isto é, quem afinal não sabe, porque não saber aplicar é
uma maneira de não saber, tem rancor a quem aplica por instinto, isto é, sem
saber que realmente sabe. Mas, em ambos os casos, para o homem são de
espírito e equilibrado de inteligência, há uma separação abusiva. Na vida
superior a teoria e a prática completam-se. Foram feitas uma para a outra».

Em Rocha de Sousa, como define o poeta: «teoria e prática completam-


-se, foram feitas uma para a outra». Desde modo, ao pensarmos o professor e
pedagogo, estabelecemos inevitavelmente conexões com o artista, primeiro
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

pintor, depois cineasta, fascinado com a construção das imagens, dos planos
e dos vários entendimentos que daí germinam. É a partir da sua prática artís-
tica, nos domínios da pintura e do vídeo, continuamente articulada com a sua
enorme sede de conhecimento teórico, saciada em leituras complexas, com
repercussões na crítica da arte que assumidamente desenvolve, que Rocha
de Sousa começa a estruturar um pensamento pedagógico consistente, que
contribuirá para enformar as reformas educativas, no âmbito do ensino ar-
tístico e da educação visual e, mais tarde, dará origem diversas obras didác-
ticas, que constituem referências incontornáveis na história portuguesa da
educação artística.
Neste artigo, procuramos esboçar o perfil do professor e pedagogo que
assumiu, por vezes, um posicionamento também ele político, não só nas
reformas do ensino superior artístico português pós-revolução, mas tam-
bém no processo de integração das Belas-Artes na Universidade de Lisboa.
Estabeleceremos ainda um paralelo entre a didática que disseminou e as prá-
ticas que ainda hoje prevalecem nas escolas.

O professor
A partir de um anterior posicionamento seu: «O professor é um agente
de dinamização dentro da aula e nenhum manual de receituários pode subs-
tituir a sua capacidade de intervenção e o modo particular como adapta o
estudo dos problemas ao material humano com que se depara.» (1979a), pe-
dimos a Rocha de Sousa que voltasse a definir o que é para si um professor,
com base na sua própria experiência, ao que nos respondeu, numa conversa
informal, a 10 de Maio de 2017:

«O professor não é só um dinamizador. O professor é um camarada, é um


colega, é um amigo. É uma pessoa que tem que, além de levantar questões

296
(que são depois explicadas como uma ciência), entrar no interior de uma
pessoa, saber inquirir, no bom sentido (não no da inquisição), para ver
até que ponto é que ela dá respostas. (...) Para isso, não pode haver 90
alunos numa sala, as turmas devem ser pequenas. (…) As dinâmicas que
se abrem nas aulas devem proporcionar um grande espaço de liberdade
para as pessoas puderem iniciar… (…) E a partir de certa altura começam
a aparecer certas coisas que são obras primas. De cartolina, de colagem,
de pintura, seja do que for... Eles vão tendo essa liberdade (…) Não é: “Eu
vou fazer porque tenho uma encomenda.” Não. As coisas têm de fluir, como
a amizade entre duas pessoas». (Rocha de Sousa, 10 de Maio de 2017).

Mas atenção, como afirma o próprio, em Deriva do ensino superior artísti-

ANA SOUSA | ROCHA DE SOUSA: DE ARTISTA A PROFESSOR, PEDAGOG E DIDACTA


co em Portugal ou As reformas de papel (1996): «Uma escola de arte não tem
viabilidade de existir apenas a funcionar numa espécie de teologia da liberda-
de. Tem que saber em que direção ou em que direções trabalha.» Nesse sen-
tido, o professor não pode assumir uma postura passiva, de mero facilitador,
mas deverá antes ser alguém que mobiliza os seus conhecimentos no sentido
de orientar, de modo fundamentado e construtivo, o projecto de cada aluno.

«Eu como professor tenho que ter conhecimentos. (...) Posso não gostar, mas
compreendo. E posso falar sobre a obra, e posso dizer como é que ela se
desenvolve no espaço e no tempo, e qual é a história dela, e isso leva-me a
dizer: “Olhe, você está desfasada no que quer fazer”, por isto e por aquilo.»
(Rocha de Sousa, 6 de Outubro de 2006, in “Entrevista a Rocha de Sousa”,
por Ana Sousa, 2007, Anexos, p. 23, citado por Ana Sousa, 2007, p. 384).

Por conseguinte, Rocha de Sousa sublinha a necessidade de o professor


investigar e ser capaz de transpor a sua investigação para o ensino que pra-
tica, mostrando que investigação e prática pedagógica são indissociáveis.

«Um bom professor tem que ter a vontade e a capacidade contínua de se


actualizar. Não pode parar num conhecimento adquirido, e prolongá-lo
como pedagogia pelos anos fora. Isto é fundamental, seja que professor
for. O professor tem que ser um investigador. Além de procurar novos
conhecimentos, ele tem que saber relacioná-los, para criar novas formas,
novos sentidos, para as coisas do mundo, e da arte, e do ser, e do estar.»
(Rocha de Sousa, 6 de Outubro de 2006, in “Entrevista a Rocha de Sousa”,
por Ana Sousa, 2007, Anexos, p. 20, citado por Ana Sousa, 2007, p.391).

Ao tomar este posicionamento, Rocha de Sousa aproxima-se de uma


“orientação académica de abordagem compreensiva” (Pérez Gómez, 1992),
na qual o professor não é entendido exclusivamente como um especialista da
matéria, mas sobretudo como um intelectual, que compreende a estrutura, a

297
história, a epistemologia e os modos de ensinar aquela matéria, sendo capaz
de transformar o “conhecimento do conteúdo” em “conhecimento didáctico
do conteúdo” (Shulman, 1986), isto é, em conhecimento de como ensinar/
fazer aprender o conteúdo (Sousa, 2011).
Para além disso, ao apontar não só a actualização, mas também a produção
de conhecimento, como condições essenciais para que o professor seja capaz
de criar continuadamente «novos sentidos», Rocha de Sousa assume um en-
tendimento do professor como autor, que ajusta e modifica as suas práticas em
função do contexto dos alunos, das escolas, das regiões e culturas onde actua.

Nenhum “receituário” de estratégias (…) pode substituir a própria inven-


ção do professor consoante a natureza e o quadro cultural da população
alvo com que se relaciona, diferente de escola para escola, de região para
região. A contextualização de qualquer estratégia pedagógica tem assim
uma importância decisiva no sucesso dos meios operativos disponíveis ou
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

a acionar. (Rocha de Sousa, 1995, p. 61).

Para Rocha de Sousa, ao invés de limitar-se a desempenhar um papel de


mero consumidor ou técnico, que aplica conhecimento gerado por outros, o
professor deve ser capaz de produzi-lo e transformá-lo em matéria de apren-
dizagem, assumindo uma atitude transformadora perante o ensino.

O Pedagogo e Didacta
Foi possivelmente este entendimento que levou Rocha de Sousa, desde muito
cedo, a reconhecer a urgência de traçar caminhos, sistematizar e operacionalizar
conhecimentos, com o propósito de tornar possível e agilizar a aprendizagem das
artes visuais. Neste sentido, não se limitou a ser professor, foi também e simultanea-
mente pedagogo e didacta. A partir do entendimento da arte como linguagem,
presente na sua obra artística, construiu toda uma gramática que fundamenta e
consolida o pensamento visual, sendo preconizador de uma nova escola, muito
concretamente através da divulgação de diversas obras de carácter didáctico.
Ao folhearmos Para uma didáctica introdutória às Artes Plásticas (Rocha de
Sousa e Hélder Baptista, [1977]), onde é apresentado «um conjunto de introdu-
ções didáticas a certos problemas de conceção e formulação plásticas, incluindo
protótipos de exercícios básicos, decorrentes de experiências feitas em educa-
ção visual» (p. 7), e ao determo-nos sobre o índice, a teorização dos processos
artísticos, as imagens que acompanham cada capítulo: plano (1), linha (2), tex-
tura (3), valores (4), cor (5), forma (6), colocação-peso-equilíbrio (7), composição
(8), espaço (capítulo 8), e movimento-ritmo-tempo (9), assim como as muito úteis
propostas de operacionalização plástica, concluímos que podemos situar esta
obra [Fig. 1] no movimento formalista-cognitivo da educação artística (Efland,
1979, 1995), que entende a arte como uma linguagem à qual está associado um
conhecimento próprio.

298
Verificamos também a correspondência dos Figs. 1, 2 e 3 – Capas de Para uma
seus conteúdos com os definidos nos programas didáctica introdutória às artes plásticas
(Sousa & Baptista, [1977]), Ver e tornar
de Educação Visual que antecederam a sua edi- visível (Sousa, 1992) e Didáctica da
ção (1972, 1975) e se mantiveram nas reformas educação visual (Sousa, Coord., 1995)
seguintes, encontrando-se ainda hoje presentes

ANA SOUSA | ROCHA DE SOUSA: DE ARTISTA A PROFESSOR, PEDAGOG E DIDACTA


nos manuais do 2.º e 3º ciclos do ensino básico.
Parte destes conteúdos já haviam começado a ser trabalhados por Betâmio
de Almeida na obra A educação estético-visual no ensino escolar, publicada
no ano anterior (1976), mas resultante de um percurso investigativo mais di-
latado, uma vez que alguns dos capítulos consistem na reedição de artigos
publicados na Revista Palestra. No mesmo ano (1977) em que publica Para
uma didática introdutória às artes plásticas, Rocha de Sousa surge também
ao lado de Betâmio de Almeida, e outros, na edição de uma obra constituída
por três volumes, destinada a clarificar os propósitos da Educação Visual. De
acordo com Brito (2014, p. 201):

«Trata-se de uma coletânea de textos de diversos docentes, alguns dos


quais na Escola de Belas-Artes de Lisboa, envolvidos na instauração da
disciplina de Educação Visual: Betâmio de Almeida, Carlos Sardinha,
Elisabete Oliveira, Júlio Tuna, Moreira de Sousa, Pedro Fialho e Rocha de
Sousa, e diretamente envolvidos na redação dos programas, quer em 73,
quer após o 25 de abril, provando que existe um trabalho de continuida-
de que acompanha as mudanças introduzidas pela revolução. Contudo,
esta obra não nos parece propriamente destinada aos alunos, ou a algum
ano da escolaridade em particular, nem se nos afigura essa a intenção dos
seus autores. Consideramo-lo, no entanto, como a primeira expressamen-
te dedicada ao esclarecimento das novas questões colocadas pela disci-
plina de Educação Visual, e pela qual certamente os professores, e até os
futuros autores de manuais escolares, poderão ter vindo a orientar-se em
termos teóricos».

299
À semelhança do que ocorrera nas décadas de 60 e 70, com a difusão
da obra de Betâmio de Almeida, e muito especialmente do livro de bolso,
da coleção Biblioteca do Educador Profissional já mencionado (A educação
estético-visual no ensino escolar, 1976), à medida que dobramos os anos 80
e entramos nos anos 90 do século XX, a influência de Rocha de Sousa, assim
como dos autores em que baseia a sua obra pedagógica, entre os quais se
destaca Rudolph Arnheim, torna-se cada vez mais evidente no panorama
nacional do ensino e da formação de professores de artes visuais.
Na sequência da coletânea já referida, o didacta é convidado a publicar
Desenho TPU 19 (1980), por encomenda da Direção Geral do Ensino e edi-
ção do Ministério da Educação, obra que vem a constituir efectivamente uma
orientação útil, não só aos professores de Desenho do ensino secundário,
a quem se destinava, mas também aos professores de Educação Visual dos
ciclos anteriores, circulando pelas mãos de ambos os grupos e sendo hoje
reconhecido como um marco na formação de professores de artes visuais en-
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

quanto objeto de estudo e debate coletivo, desde os anos 80 do século XX.

«O manual com o título Desenho, publicado pelo Ministério da Educação


em 1980 para a Área das Artes Plásticas do Ensino Secundário, é con-
siderado pelo autor, conforme a nota prévia aí inscrita, o trabalho que
melhor sintetiza as publicações anteriores. Ainda que o título da obra
corresponda a uma designação programática oficial, na verdade a sua
intenção foi apresentar um conjunto de textos e imagens visando os
dados essenciais da perceção visual, no que chama de “Introdução à
problemática básica das artes visuais”, onde assume a recorrência a dois
conhecidos trabalhos de Rudolf Arnheim: Arte e Percepção Visual e Para
uma Psicologia da Arte». (Brito, 2014, p. 200).

Precisamente a meio dos anos 90 do século XX, uma outra obra [Fig. 3]
vem juntar-se às primeiras, passando a fazer também ela parte do elenco
bibliográfico dos programas de didática específica dos cursos de formação
de professores, quer nas faculdades de psicologia e ciências da educação,
quer nas escolas superiores de educação. Em Didática da educação visual
(1995), coordenada por Rocha de Sousa e participada por alguns professo-
res da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa nas várias es-
pecialidades que a compõem, constatamos uma continuidade ao nível dos
conteúdos, nos domínios da perceção e da comunicação visual, apresenta-
dos em Para uma didática introdutória às artes plásticas ([1977]), desta vez
ampliados às áreas do design e das novas tecnologias, o que faz jus à alte-
ração do título para educação visual, em vez de artes plásticas.
Para uma didática introdutória às artes plásticas ([1977]), Desenho TPU 19
(1980) e Didática da educação visual (1995), publicações que, as primeiras da
última, distam quase vinte anos entre si, são obras estruturantes, com carácter

300
explicitamente operacional, que ainda hoje continuam a ser coerentes com o
pensamento pedagógico subjacente aos documentos oficiais que regulam o
ensino-aprendizagem das artes visuais. Como exemplo, da bibliografia des-
tas obras fazem parte autores, como Rudolph Arnheim, que contribuem para
a sistematização das artes visuais enquanto conhecimento científico e ainda
hoje continuam a constituir referência nos programas oficiais de Educação
Visual do ensino básico e de Desenho do ensino secundário.

«O Arnheim andava nas nossas mãos e serviu para muito. Eu acho que
ainda serve. Eu acho, curiosamente, que o Arnheim nunca perdeu atuali-
dade. (...) Eu criei uma teoria que era a realidade, a perceção visual e a mo-
bilidade visual. E esse conceito de mobilidade visual, foi uma frase minha

ANA SOUSA | ROCHA DE SOUSA: DE ARTISTA A PROFESSOR, PEDAGOG E DIDACTA


que, depois, se foi criando, em teoria, em bola de neve, e teve ligações
aos conceitos de nivelamento e de acentuação, acabando por se projetar
no primeiro livro propedêutico: “Desenho: área artes plásticas”, feito por
mim». (Rocha de Sousa, 6 Outubro 2006, in “Entrevista a Rocha de Sousa”,
por Ana Sousa, 2007, Anexos, p. 11, citado por Ana Sousa, 2007, p. 73).

Porém, encontra-se ainda presente, no discurso pedagógico de Rocha de


Sousa, uma dimensão humana e até o prenúncio de uma dimensão crítica. Senão,
vejamos o já mencionado e tão emblemático Desenho T.P.U. 19 (1980), um ma-
nual muito útil, pela forma como está estruturado e organizado, onde define,
ponto por ponto, cada um dos conceitos considerados essenciais à aprendiza-
gem das artes então designadas plásticas, mas que vai além do estritamente
“científico”. Para o demonstrar, partilhamos a primeira página na íntegra:

«Quando se fala de visão não se fala apenas da capacidade de olhar –


essa espantosa capacidade que nos permite registar as sensações e as
percepções visuais. Nós podemos passar dias seguidos numa certa rua,
sensíveis visualmente ao aspecto global dessa rua, sem tomar consciên-
cia de muitos dos sinais e características particulares dessa parte do meio
urbano. De certa forma, podemos então dizer que o nosso olhar funciona
ao nível das sensações, e mesmo das percepções, mas que não tivemos
uma consciência visual profunda de lugar. Ver é mais do que isso. Ver é ir
ao encontro das coisas, a coordenação consciente dos diferentes olhares,
das diferentes sensações, das diferentes percepções, das próprias memó-
rias que nos informam os actos e as escolhas. Ver é escolher e é julgar.
Ver é compreender.

Se ver pressupõe um somatório de dados em torno de um certo aspecto


do real, é preciso dizer, desde logo, que nem todas as pessoas estão de
posse dos mesmos dados. Psicologicamente, reagimos de maneira dife-
rente perante uma mesma aparência. Não só porque diferimos ao nível da

301
própria fisiologia, mas sobretudo porque temos informações diversas, uns
mais do que outros, e possibilidades várias de organizar as percepções,
os julgamentos e as memórias. De facto, duas pessoas, observando aten-
tamente o mesmo objecto, têm dele uma visão diferente. Isto quer dizer,
como se referiu, que, embora o mecanismo da vista seja praticamente o
mesmo em todas as pessoas, o juízo que elas fazem do mundo em redor
difere de caso para caso. E mais: em certos casos e em certas condições,
uma mesma pessoa retira da realidade conclusões visuais diversas, con-
soante a alteração da sua atitude psicológica ou cultural, consoante os
meios de apoio de que possa dispor, consoante o tempo que decorre
entre duas análises». (Rocha de Sousa, 1980, p. 11).

Para Rocha de Sousa, vivemos «num mundo riquíssimo em formas naturais


e objectos de civilização, o que condiciona os comportamentos e a formação
dos modos de ver. Cada um de nós vê as coisas de modo diferente. E essa di-
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

ferença vai determinar, na prática, uma variedade significativa de modos de


fazer. Isto é: uma variedade nas soluções que cada um de nós encontra para
transmitir aos outros a experiência do mundo que nos rodeia». Assim, ainda
que «todo o processo artístico» surja «intimamente ligado ao processo visual»,
no sentido fisiológico, ele associa-se também inevitavelmente «à capacidade
de ver», que permite ao ser humano «formular juízos sobre as coisas».
Dentro do mesmo paradigma, na introdução de Didática da Educação
Visual (Rocha de Sousa, Coord., 1995), podemos ler:

«Os estudos e programas didácticos desenvolvidos nas últimas décadas


no âmbito da educação visual têm registado algumas mudanças quanto
às orientações estratégicas, mas não se afastaram, em essência, de dois
objectivos fundamentais: o de aprofundar, na sua mobilidade intrínseca,
a capacidade de um ver crítico, culturalmente sustentado, e o de alargar
o espaço técnico-criativo do indivíduo na sua relação com o meio, com
a exemplaridade das proposições artísticas ou funcionais, tendo em vista
melhorar o seu acesso ao fazer, à invenção, à leitura e uso qualificados
dos instrumentos comunicativos de que pode dispor enquanto ser social
e agente de civilização».

Nesta obra didáctica, por si coordenada, além dos capítulos destinados


à compreensão da percepção visual e representação, problemática da cor,
linha e textura, entre outros, surge um primeiro, sobre “A criatividade ou o
Homem em aprendizagem”, da sua autoria, e um último, sobre “Realidade,
comunicação visual e capacidade crítica”, da autoria de Isabel Sabino, com
temas como «a comunidade», «os media» e «crítica e juízo» e subtemas/pis-
tas de observação como «a nova inércia», «eu, me, mi, migo», «o shopping»
e «prazo e validade».

302
Regressando agora à sua influência na construção de uma outra escola
e cultura das artes, que claramente aqui propõe, a partir da investigação que
realizámos no âmbito do nosso doutoramento (Ana Sousa, 2016), podemos
afirmar que a sua obra e discurso pedagógico teve um inolvidável efeito no
ensino e aprendizagem da educação visual nas escolas portuguesas.
A adesão massiva aquilo que Arthur Efland (1979, 1995) designa de cor-
rente formalista-cognitiva da educação artística, em Portugal, nos anos 80 e
90 do século XX, foi contributo em grande medida daquelas obras em que
Rocha de Sousa traduziu em termos didáticos a “bíblia”, palavras suas, de
Rudolph Arnheim. Também a obra de Rocha de Sousa, e muito especialmen-
te o Desenho T.P.U. 19, constituiu uma Bíblia para os professores e estudantes
portugueses nas últimas décadas do século XX.

ANA SOUSA | ROCHA DE SOUSA: DE ARTISTA A PROFESSOR, PEDAGOG E DIDACTA


Porém, por tudo o que até aqui expusemos, não podemos deixar de reco-
nhecer na sua obra o prenúncio de uma perspetiva crítica, construída a partir
da desconstrução das imagens produzidas pelos media, que só muito mais
tarde viria a constituir-se como campo de investigação e prática: a educação
pela cultura visual, um dos paradigmas mais recentes na história do ensino
formal e não formal das artes visuais.

O Reformador
Para além dos três livros de carácter didático já mencionados, a par de
outros como Ver e tornar visível (1992) [Fig. 2], uma iniciação e sistematização
das práticas do cinema e do vídeo, videocassetes didácticas sobre Tapeçaria
e ainda programas televisivos que, numa perspetiva não formal, também as-
sumiram uma função educativa; não podemos deixar de mencionar a contri-
buição de Rocha de Sousa na reforma do ensino superior artístico e na dis-
cussão da formação dos professores, nos anos 70 do século XX.
Nos textos introdutórios da reforma de 1975, Rocha de Sousa afirma como,

«Lugar e função da arte: «a necessidade de aprofundamento formativo e


de investigação dos diversos operadores plásticos, tendo em vista o lugar
e a função da arte no tempo presente, conduz a uma mais adequada pon-
deração da natureza dos estudos artísticos, não sendo possível ignorar a
evolução dos conceitos sobre o artista enquanto agente de civilização,
aquilo que produz através de relações interdisciplinares complexas, nem
o seu processo de participação num projecto social actualizado, isto é, in-
dispensável ao conjunto de actividades do Homem moderno, ao uso de
certos bens materiais e culturais, à resposta de progresso que um país dá
a si próprio e ao mundo em geral».»

Sobre esta mesma reforma, mais de 20 anos depois, Rocha de Sousa


(1997) reflecte:

303
«Um dos maiores triunfos da reforma de 1975 residiu no seu carácter
aberto, tanto na construção, incluindo dificuldades, como na sua flexível
fruição. É preciso não esquecer que, apesar de significativas cargas teóri-
cas, hoje indispensáveis à formação superior, actualizada, de operadores
plásticos ou de designers, as licenciaturas de 1975 não eram obrigatoria-
mente iguais para todos os discentes. De facto, como não podia deixar
de ser, havia eixos contínuos de cadeiras nucleares e complementares
obrigatórias. Mas, a par da estrutura rígida, caracterizante da área da li-
cenciatura, as outras vertentes formavam um menu flexível, a criação do
plano de estudos global era, em grande medida, da responsabilidade do
aluno: ele tinha regras semi-abertas de escolha».

No final da década de 70 do século XX, é ainda de destacar Formação de


professores para as disciplinas de índole artística: aspectos do ser e do fazer, do-
cumento publicado no âmbito de um Seminário sobre Formação de Professores,
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

organizado pelo Sindicato dos Professores da Grande Lisboa (pp. 69-79). Foi atra-
vés desse texto, consistente e profundo, no qual crítica a falta de maturidade ine-
rente a uma formação politécnica de professores de artes visuais, na qual edu-
cação e arte surgiam, no seu entender, divorciadas, sendo insuficiente o tempo
para uma aprendizagem profícua da arte, modelo de formação que então se
perspectivava em Portugal, que demos início à nossa investigação de mestrado
(Ana Sousa, 2007).
Ainda que a formação de professores não tenha sido uma problemática de
eleição ao longo do seu percurso, constituiu sem dúvida um dos posicionamen-
tos políticos que tomou, entre outros, sobre temáticas bem diversas, como a for-
mação dos próprios artistas plásticos e designers e o mito da «desnecessidade
social da arte».
Por infelizmente continuar a revestir-se de uma enorme actualidade, não po-
demos deixar de referir, neste contexto, o depoimento Deriva do ensino superior
artístico em Portugal ou As reformas de papel, trabalho desenvolvido no âmbito
da sua licença sabática no ano letivo de 1995-1996.
Mais de duas décadas depois, continua a ser pertinente evocar, a título de
exemplo, pequenos excertos bastante elucidativos, como: «a Escola de 1957 con-
servava-se mais próxima de 1932 do que de si mesma»; «guetos intransponíveis,
regressões pedagógicas, a impossibilidade (pelo medo) de agregar assistentes»;
«muitas destas coisas explicam atrasos quase insuperáveis, reformas mutiladas»;
«hoje mesmo, parte das classes cultas conferem à pintura ou à escultura meno-
res estatutos ornamentais»... Culminando com a frase: «O próprio Estado, como
vimos na integração das Escolas Superiores de Belas-Artes na Universidade,
deixa-se envolver em influências deste tipo, aliás mais fortes neste campo pela
ideia sobre a desnecessidade da arte, que está longe de nos abandonar de vez».
A este propósito conta a história de um funcionário do Ministério da
Educação que minimiza o papel da arte, «falando de uma secretária, atrás da

304
qual se encontrava uma bela pintura
paisagística aparentemente de um
dos nossos mestres das primeiras
décadas do século».
Para justificar esta situação re-
fere «o analfabetismo cultural que
favorece diversas ideias equívocas
atribuídas ao papel do artista – em
geral um habilidoso produtor de
objectos representativos e visto-
sos que as famílias colocam aqui
e além, em cima dos móveis, depois de have- Fig. 4 – Cruz Serra com o gabinete que
rem apetrechado até ao parafuso a casa toda». pertenceu a Marcelo Caetano, com
uma tapeçaria de Rogério Ribeiro atrás.
Tendo em consideração as recentes e actuais Legenda conforme notícia Nem um super-
políticas da Universidade de Lisboa em relação homem conseguia gerir uma universidade
à Faculdade de Belas-Artes, ao visualizarmos a destas de forma centralizada, Entrevista
ao Reitor da Universidade de Lisboa, por
imagem de «Cruz Serra no gabinete que per-

ANA SOUSA | ROCHA DE SOUSA: DE ARTISTA A PROFESSOR, PEDAGOG E DIDACTA


José Cabrita Saraiva, Semanário Sol, 7 de
tenceu a Marcelo Caetano, com uma tapeçaria Janeiro de 2017, p. 38.
de Rogério Ribeiro atrás» (“Nem um super-ho-
mem conseguia gerir uma universidade destas
de forma centralizada”, Entrevista ao Reitor da Universidade de Lisboa, por
José Cabrita Saraiva, Semanário Sol, 7 de Janeiro de 2017, p. 38), questio-
namo-nos se esta não continuará a ser uma problemática premente.

A/r/t grafista?
Rocha de Sousa, a partir dos anos 60 do século XX, altura em que con-
tacta com as ideias de Rudolph Arnheim pela primeira vez, não se limita a
veiculá-las mas, a partir daí, cruzando esse conhecimento com o seu pró-
prio, enquanto criador e pedagogo, inventa e dissemina uma série concei-
tos, como o de mobilidade visual, que vêm a ser implementados no ensino
básico e secundário das artes visuais em Portugal. Numa abordagem se-
melhante à levada a cabo por autores do formalismo americano, Rocha de
Sousa é autor de uma “didáctica investigativa” das artes visuais, que nasce
simultaneamente do conhecimento do conteúdo e da sua prática enquan-
to professor e artista, que acaba mais tarde por ter efeitos ao nível da “di-
dáctica curricular”, sendo enfim transposta, sobretudo a partir dos anos 80
do século XX, para a didática profissional de inúmeros de professores que
se formaram a partir dos seus manuais ou a eles recorreram para estruturar
as suas práticas.
Assim, parece-nos apropriado evocar e associar a pessoa e obra de Rocha
de Sousa ao conceito de a/r/t-grafia que, de acordo com a investigação univer-
sitária com raiz no Canadá, realizada nos últimos 40 anos, consiste numa me-
todologia de pesquisa derivada da “investigação baseada nas artes”, ou seja,

305
é uma prática da “investigação baseada nas artes”, igualmente de perspectiva
narrativa, que parte do acrónimo a/r/t, “a” de artist, “r” de researcher e “t” de
teacher, associados ao termo graphy que, na sua etimologia grega (γράφειν =
graphein), significa escrever, representar graficamente.
De acordo com Dias (2009, p. 3177), a a/r/t-grafia é uma modalidade de
investigação conduzida por alguém que desempenha concomitantemente a
função de professor e artista. «É uma forma de representação que privilegia
tanto o texto (escrito) quanto a imagem (visual) (...) incentivando novas manei-
ras de se pensar, abordar e interpretar questões teóricas como um pesquisa-
dor, e práticas como um artista e educador».
Na a/r/t-grafia, decorre um diálogo entre o fazer (artístico e docente), a
compreensão e a produção de conhecimento sobre esse fazer (investigador),
que depois reverte sobre as práticas. Trata-se de um processo contínuo, onde
saber e fazer se fundem, criando uma linguagem híbrida, pelo que nos questio-
namos se, ao articular as dimensões elogiadas, aquando da sua homenagem,
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

por diferentes pessoas, mas que Rocha de Sousa reuniu numa só, não consti-
tuirá o artista, professor, pedagogo e didacta, ainda que inadvertidamente, um
dos primeiros exemplos de a/r/t-grafia em Portugal?
Voltando ao início deste artigo, consideramos que em Rocha de Sousa teo-
ria e prática completam-se. A sua pintura é poética, gera entendimentos, signi-
ficados vários. Nos seus filmes existem essas duas dimensões, são simultanea-
mente pictóricos e poéticos, vestígios da pintura e da escrita. Desde cedo, fez
também crítica de arte, ou seja, foi um homem que não se dedicou apenas às
acções, supostamente “práticas”, de pintar e fazer filmes, mas sempre refletiu
sobre o que fez e sobre o que outros fizeram. Foi sempre alguém que pensou
com profundidade e soube colocar o seu olhar/pensar crítico sob a forma de
palavras. Para além disso, escreveu livros didácticos, ou seja, foi capaz de teori-
zar sobre práticas, transformá-las em linguagem verbal (enquanto professor) e
escrita (enquanto pedagogo). E ainda foi mais longe, pois (como didacta), teo-
rizou e propôs formas de operacionalizar essas práticas, de ensiná-las ou fazer
aprendê-las. Hoje, os seus livros, romances literários, sendo compostos por pa-
lavras, são também profundamente visuais. Ao pintar cenários e personagens,
dá-lhes vida de um modo que um escritor comum, que não seja também pintor
e cineasta, jamais o fará. Mas também de um modo que revela o observador/
pensador, que sempre foi, dos seres com quem conviveu e das situações que
partilharam. Assim, concluímos que concreto e abstracto sempre andaram de
mãos dadas na sua obra. Nele, prática e teoria são efectivamente complemen-
tares, «feitas uma para a outra». As coisas e as palavras (título de uma exposi-
ção sua e de Maria João Gamito) sempre se misturaram, no movimento híbrido,
contínuo e fluído de indissociavelmente fazer e pensar, pensar e fazer, pintar
com palavras e escrever com imagens.

306
Referências

BRITO, Clara (2014). As disciplinas de SOUSA, Ana (2016). Novos paradigmas,


desenho e de educação visual no sistema novas práticas? A didática na formação
público de ensino em Portugal, entre 1836 de professores de artes visuais. Tese
e 1986: da alienação à imersão no real. de Doutoramento em Belas-Artes, na
Tese em Belas-Artes, na especialidade especialidade de Educação Artística,
de Educação Artística, orientada por apresentada à Universidade de Lisboa
Margarida Calado, apresentada à pela Faculdade de Belas-Artes.
Universidade de Lisboa pela Faculdade de
Belas-Artes. SOUSA, Ana (2011). Building pedagogical
content knowledge in visual arts
DIAS, Belidson (2009). Uma epistemologia curricular didactic: an empirical study.
de fronteiras: minha tese de doutorado Procedia - Social and Behavioral Sciences,
como um projeto a/r/tográfico. Actas [Edição Elsevier], 11, pp. 136-140.

ANA SOUSA | ROCHA DE SOUSA: DE ARTISTA A PROFESSOR, PEDAGOG E DIDACTA


18º Encontro da Associação Nacional Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.
de Pesquisadores em Artes Plásticas, sbspro.2011.01.048
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anpap.org.br/anais/2009/pdf/ceav/ professores de artes visuais em Portugal.
belidson_dias_bezerra_junior.pdf Dissertação de Mestrado em Educação
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Teachers College Press. desenvolvido no âmbito da licença
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32(4), pp. 21-32. Didáctica da Educação Visual. Lisboa:
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(área: artes plásticas): T.P.U. 19. Lisboa:
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transformar la enseñanza. Madrid: Morata. de professores para as disciplinas de
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SHULMAN, Lee (1986). Those who Artes Plásticas. Lisboa: Tipografia Manuel
understand: Knowledge growth in A. Pacheco.
teaching. Educational Researcher, 15 (2),
pp. 4-14.

307
O Crítico de Arte entre
«Coincidências Voluntárias»

Fernando Rosa Dias


Professor Auxiliar de Ciências da Arte e do Património na FBAUL, Investigador
do CIEBA, Responsável do 3.o Ciclo das Ciências da Arte e coordenador do
Mestrado de Crítica, Curadoria e Teorias da Arte.
[email protected]

A arte é essencialmente intervenção ou é sufocação e decadência. Um


CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

só caminho para a arte: dizer o indizível e… pedir o impossível.


(Rocha de Sousa, Opção, nº52, 21-27 Abril 1977)

Este estudo deseja apresentar o percurso de crítico de arte de Rocha de


Sousa (n.1938), tendo sido dividido entre uma travessia mais biográfica dessa ac-
tividade, seguindo-se o destaque de algumas querelas em que se comprometeu:
1) perante a sua afirmação da «coincidência voluntária» de ser simultaneamente
crítico de arte e artista plástico; 2) a querela que envolveu também questões de
ensino artístico em torno dos cursos de Joaquim Rodrigo e do seu método de
«pintar certo» na SNBA; 3) com Ernesto de Sousa em torno da Alternativa Zero;
4) e ainda expomos alguns posicionamentos críticos perante as mudanças da
década de 1980, com uma nova geração de críticos e artistas, ou em torno da
arte moderna e de vanguarda.
Rocha de Sousa cedo juntou com regularidade uma prática artística com uma
teórica, esta última sobretudo no âmbito da crítica e da pedagogia autonomia.
Em 1964 era contratado como docente na Faculdade de Belas Artes de Lisboa,
onde iniciava uma prática pedagógica que teria importância na sua orientação
(e ética) teórica. Os volumes que editou de carácter pedagógico seguiam uma
linha estruturalista proposta em «dizer a visibilidade»1, procurando sistematizar a
linguagem plástica e a sua gramática, numa marcação formalista herdada da pe-
dagogia da Bauhaus (Kandinsky, Itten ou Klee) ou da psicologia da Forma (Gestalt)
na linha de Rudolf Arnheim (Arte & Percepção Visual), mas sempre com preocu-
pações de uma operatividade prática e criativa. Tendo sido membro da secção
portuguesa da AICA pouco depois da renovação dinamizada por José-Augusto
França (1967)2, onde desempenhou as funções de Secretário da Direcção, tendo
representado a secção em diversos júris e comissões de trabalho3.
Iniciou cedo uma prática de escrita que o acompanharia, com cons-
ciência interventiva que se estendeu a uma prática muito regular de crítica

308
cultural, com natural domínio das artes plásticas, definindo um lugar pró-
prio na história da crítica de arte portuguesa desde os inícios da década de
1960. Entendo já a pluralidade do seu percurso, compreende-se que a acti-
vidade de crítico de arte se faz entre múltiplas, caso raro e que interessaria
comparar à figura impar de Almada Negreiros (que, embora tendo outras,
não teria aquela que certamente deixava mais estigmas à pluralidade de
Rocha de Sousa, que era a de professor). Assim, enquanto crítico de arte,
Rocha de Sousa foi também pintor, desenhador, escritor (ficção, semi-docu-
mentário, teatro e contos), teórico da arte e da educação artística, professor,
cineasta experimental, de documentários e de filmes sobre arte, com teoria
também na área; além dos vários media que nesta pluralidade atravessaria.

FERNANDO ROSA DIAS | O CRÍTICO DE ARTE ENTRE «COINCIDÊNCIAS VOLUNTÁRIAS»


O próprio reconhecia:

«Quero por isso assinalar, aliás de acordo com o método do meu próprio
desdobramento, que a necessidade de ser diverso, à clara luz do dia, me
envolveu num trajecto de recorte multidisciplinar»4.

Desde cedo a escrita fez parte dessa multidisciplinaridade. Ainda estu-


dante da Escola Superior de Belas Artes5 começou a colaborar em periódicos
algarvios, sua região natal. No jornal Comércio de Portimão efectuou uma
primeira crónica sobre a região6. No Correio do Sul de Faro realizou primei-
ras crónicas de crítica cultural, no caso de teatro, vertente que lhe interes-
saria em várias colaborações7. Nesses mesmos anos escrevia ainda para o
Jornal do Algarve (jornal semanário de Vila Real de Santo António) um arti-
go sobre a paisagem do Algarve e a pintura8, periódico para quem enviaria
mais tarde uma crónica semi-literária e semi-biográfica da sua estadia em
Angola9. Na Voz do Sul (jornal semanário republicano de Silves) publicaria
ainda um artigo sobre uma companhia de teatro ambulante10. E em tom de
intervenção publicaria texto na Voz de Silves já em 199011.
Em Luanda, para onde partiu12 logo após terminar o curso para cum-
prir serviço militar, tendo feito parte das primeiras mobilizações da primeira
Guerra Colonial13, Rocha de Sousa deu continuidade à colaboração em vá-
rios jornais. No Diário de Luanda publicava um primeiro artigo sobre África,
numa reflexão literária em que citava Camus14. No ABC – Diário de Angola
(Luanda) colaborou com vários artigos de crítica de arte em 1963, em torno
da exposição colectiva «Exposição 10x3», na qual participava15, da pintora
Helena Justino16, em primeira exposição individual, e de alguns artistas es-
trangeiros em passagem por Luanda17. Mais tarde voltaria a colaborar neste
jornal, com uma entrevista, na condição de membro do Júri no segundo Salão
de Arte Moderna de Luanda, representando a Sociedade Nacional de Belas
Artes18. Nesta segunda estadia em Angola também efectou pontuais críticas
de arte no jornal Notícias de Luanda (Semanário de Luanda) 19, a tempo de
se envolver ainda em reposta polémica ao pintor Neves e Sousa20.

309
Com o regresso a Lisboa era logo de imediato convidado para leccionar
na Escola Superior de Belas Artes, retomando também a actividade de críti-
co cultural no jornal Cartaz, com crónicas muito regulares entre Fevereiro e
Setembro de 1964, onde conjugou a crítica de artes plásticas, de cinema, de
teatro, o ensaio, efectuou pequenos contos literários e ainda realizou algumas
entrevistas. No ano seguinte tem colaboração pontual na revista A Esfera21,
com a qual voltaria com grande regularidade à prática de crónicas de crítica
de artes plásticas ao longo do ano de 1967.
De Lisboa fazia crónicas para o suplemento Ao Km Zero (do nº1 de 6 Abril
de 196822 até ao nº30 de Março de 197223) do jornal reconquista de Castelo
Branco,, onde colaboravam também nomes como Lima de Freitas e Francisco
Bronze, suplemento cultural do jornal regional Reconquista, de Castelo Branco,
colaboração esta entre a crítica de arte e o ensaio sobre artes plásticas, por
vezes de sabor didáctico, sobretudo sob a rubrica «Temas de Arte».
Em 1968 substituía Francisco Bronze como crítico regular no Suplemento
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

Literário do Diário de Lisboa, com crónicas de crítica de arte regulares entre


1968-197224 (apenas com pontuais colaborações anteriores e posteriores),
com as quais adquiria um papel de destaque na crítica artística portuguesa
da época marcelista. Participara esporadicamente neste jornal em artigo de
1964 sobre uma visita de estudos da escola, que assinava enquanto assisten-
te da Escola Superior de Belas Artes de Lisboa25. Mas seria a partir do ano de
1968 que começava o exercício regular acompanhando muitas das exposi-
ções do tempo, sobretudo de Lisboa, mas trabalhando por vezes temas cul-
turais sobre crítica de arte (11 Setembro 1969, 30 Outubro 1969), «Mercado
artístico» (31 Outubro 1968, 3 Setembro 1970 e 9 Janeiro 1972), ou os qua-
dros da Brasileira do Chiado (2 Julho 1971). Surgiria ainda na edição de em
Junho de 1969 em mesa redonda sobre a função social da arte26 e através
das páginas do jornal entraria em algumas querelas. A última crónica regular
de Rocha de Sousa seria a 19 de Maio de 1972, sendo as crónicas críticas re-
gularmente retomadas no mesmo suplemento literário por José-Luís Porfírio,
em finais do mesmo ano. Rocha de Sousa reaparecia mais tarde, em breves
situações avulsas, com algumas intervenções próximas da crítica de arte27 ou
num inquérito sobre literatura infantil28. Esta colaboração fornecia à época
um protagonismo especial a Rocha de Sousa na esfera da crítica de arte em
Portugal, como o próprio reconheceria, numa mistura de nostalgia e ironia:

«(…), alcancei por mero acaso a área do poder, transitando do “& etc”,
do “Jornal do Fundão”, para um jornal da tarde, o “Diário de Lisboa”. A
verdade, neste caso, não aconteceu a partir do território dos habituais
tráficos de influência – e, ao aproveitarem-se para cobrir a página inteira
dedicada às artes plásticas, porventura esperando por melhores oportu-
nidades, forneceram-me uma importante ferramenta com a qual poderia
contribuir, sem pressões nem salões, para a redigir, relativamente à arte

310
moderna portuguesa, textos eclecticamente justos, oferecidos à história
sem depender dos prémios, nem de rixas entre abstractos e figurativos,
superando o excesso de rasuras e de notas revisoras, de número para
número daquele combativo “Suplemento Literário”. Foi um bom tempo
de aprendizagem, sob a vista afiada do Vítor Silva Tavares e do escritor
José Cardoso Pires – vista, sim, não olhares paternalistas. Esta sorte, com
meios menores de iniciado e senhor da minha identidade, envolveu al-
guns malefícios o destino»29.

Nos meses anteriores à revolução de 25 de Abril de 1974 colaborava com


regularidade na Seara Nova, entre Janeiro de 1973 e Março de 1974, acom-

FERNANDO ROSA DIAS | O CRÍTICO DE ARTE ENTRE «COINCIDÊNCIAS VOLUNTÁRIAS»


panhando as principais exposições de Lisboa nestas datas.
Nos primeiros anos de pós-revolução dos cravos (25 Abril 1974) desta-
cam-se as colaborações na revista Opção de Lisboa e a continuidade nas cola-
borações nas revistas & Etc de Lisboa e Revista de Artes Plásticas do Porto. No
quinzenário & Etc (Lisboa) Rocha de Sousa colaboraria ao longo da duração
da revista (1973-1974) com vários ensaios (por vezes críticas ou com relação
com as exposições), ao centro da paginação da revista, acompanhados com
crítica de exposições em bandas laterais. A revista criada pouco mais de um
ano antes da revolução dos cravos, com o primeiro número em Janeiro de
1973, duraria poucos meses à mesma. Na Revista de Artes Plásticas do Porto
(1973-1975), projecto editorial algo curto mas de prestigiada qualidade di-
rigido por Egídio Álvaro, foi responsável pelas crónicas regulares de críticas
das exposições de Lisboa. Também com grande regularidade foi o crítico de
arte mais presente durante a existência no semanário Opção (1976-1978) fa-
zendo crónicas regulares de crítica de arte, mas também problemas de en-
sino artístico (nº16, 26, 98, 102, etc.) e de política e ética da cultura (nº14, 27,
30, 33, 39, 52, 71, 84, 105, 107, 111, 124, etc.), várias vezes desenvolvidos de
crónicas críticas de exposições, e algumas querelas como a que desenvolve
em torno da exposição Alternativa Zero (1977) com Ernesto de Sousa, que
adiante abordaremos. Entrando noutra polémica em 1977 criticará a «obstru-
ção desencadeada relativamente à exposição O Erotismo na Arte Portuguesa
Contemporânea, de início no Estoril, depois no Porto, com intervenção inqui-
sitorial das autoridades e uma resistência de defesa da cultura por parte da»
SNBA «em documento enviado aos poderes locais e aos órgãos de comuni-
cação», projecto de Eurico Gonçalves que sofrera tão surpreendente como
matreira censura30.
Colaborava ainda no Jornal Novo, criado por Artur Portela Filho em 1975,
com alguns artigos ao longo do ano de 1976 em torno de problemáticas do
ensino artístico31 e algumas críticas de exposições na Escola Superior de Belas
Artes de Lisboa32.
Nas colaborações seguintes nas revistas Sema, ABC – Portugal, Colóquio
Artes e Artes Plásticas (nova e distinta série, iniciada em 1990), colaborou com

311
um modelo mais perto do ensaio e com outra liberdade de escolhas de temas –
mais liberto das exposições correntes, com ligeira excepção na Colóquio Artes.
Nas páginas da revista trimestral Sema, que duraria apenas 4 números
(1979-1982), abordaria temas de fundo da cultura portuguesa, numa fase em
que se transitava dos tempos de pós-revolução e se abriam os do pós-moder-
nismo e da retoma dos mercados e galerias. No nº1 abordou o confronto dos
funcionamentos culturais do país antes e depois do 25 Abril, numa avaliação
da política cultural com incidência no ensino artístico33. No número seguinte
abordou com pertinência de apreciação histórica recente, as oscilações do
mercado da arte, antes e depois da revolução. Depois de apontar que em
«termos de mercado (e não apenas) somos todos mais ou menos vendedores
ambulantes», avaliava o crescente processo de aparecimento de galerias da
década de 1960, destacando as galerias emergentes de livrarias (Divulgação,
111, Quadrante, Buchholz, Diário de Notícias). Apontando a crescente infla-
ção, quando um quadro de um artista vivo [O Retrato de Fernando Pessoa
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

dos Irmãos Unidos por Almada Negreiros] chegava a mil contos, e dois artis-
tas, um em Lisboa outro no Porto, realizavam em exposições individuais, «de
uma só vez, cerca de dois mil e três mil contos de vendas», considerou natu-
ral, como corolário histórico, que o «mercado artístico se desmoronasse em
poucos meses, senão mesmo em poucas semanas. Galerias como a Diprove,
a Emenda, a Judite Dacruz, a Prisma, a S. Mamede, a Ottolini, fecharam em
pouco tempo as suas portas, seguidas aliás pela Quadrante e pela Buchholz».
As «bolsas de resistência» foram a SNBA, Gravura, 111 e o «apego à causa»
da directora da Quadrum, mas tal «esclareceu a importância do processo as-
sociativo e cooperativo»; e de reaberturas: S. Mamede; o Grupo Alvarez inau-
gura a Tempo, a Opinião «reassumiu-se no seu âmbito específico, lateral ao
mercado; a Grafil reestruturou-se». Referiu ainda o caso da Galeria Nacional
de Arte Moderna da SEC, em Belém, com alerta a «virtudes descentralizado-
ras, assente também na tónica da investigação por grupos de operadores ar-
tísticos». Afinal: «Encher as Galerias de pérolas e espalhar pedras pelo país
inteiro não parece futuro para qualquer projecto sócio-cultural»34. Com texto
mais lírico, oferecia no nº4 um destaque à função e responsabilidade do artis-
ta: «Os artistas são os únicos operários capazes de pensar de facto o futuro»35.
Na revista ABC – Portugal, de finais da década de 1980, deixaria sobretu-
do ensaios de reflexão, embora mais de âmbito sociocultural, com interesse
sobre o sistema da arte, abordando questões como o exercício da crítica, do
mercado ou do recente fenómeno das feiras de arte36. Logo no nº1, reflectin-
do sobre o exercício da crítica de arte, escrevia:

«O acto de escrever sobre artes plásticas – hoje, em Portugal – deveria in-


serir-se num projecto, simultaneamente estético e ético. Um projecto que,
ao abrir os objectos principais, o fizesse de acordo com as raízes do seu
lugar, garantindo a construção aceitavelmente correcta da História. (…).

312
É verdade que, durante algum tempo, eclético e sonhador, combati os
pequenos deuses da gíria lisboeta. Convencera-me de que o famoso
multi-retrato da Brasileira do Chiado era, antes de mais, um acto de
humor sobre o poder conjuntural, princípio ou fim de uma confraria
destinada a perder-se sob o fumo impiedoso dos cigarros (…) que se
envelhece depressa entre nós»37.

Na Colóquio Artes, destacada revista da Fundação Gulbenkian dirigi-


da por José-Augusto França, colaborou com alguma regularidade entre
1973 e 1979, onde a crítica de arte, com artigos mais longos e de fundo,
se misturava com o ensaio, com vários artigos monográficos sobre artistas

FERNANDO ROSA DIAS | O CRÍTICO DE ARTE ENTRE «COINCIDÊNCIAS VOLUNTÁRIAS»


activos em Portugal tais como David Evans (nº13, Junho 1973, pp.9-10),
Manuel Baptista (nº18, Junho 1974, pp.51.54), Virgílio Domingues (nº21,
Fevereiro 1975, pp.55-58), Henrique Manuel, (nº22, Abril 1975, pp.32.35),
Luís Dourdil (nº23, Junho 1975, pp.22-24), Querubim Lapa (nº35, Dezembro
1977, pp.48-52), Carlos Carreiro (nº38, Setembro 1978, pp.28-32), ou ainda
ensaios sobre os 20 anos da Sociedade Cooperativa de Gravadores (nº29,
Outubro1976, p.45-50), «A necessidade do realismo» (nº12, Abril 1973,
pp.38-43), ou a Nova Fotografia (nº42, Setembro 1979, pp.22-29).
Nos primeiros números da revista Artes Plásticas apresentou alguns
textos mais ensaísticos, sempre em torno de temas de interesse pessoal,
tais como «Fotografia e Pintura» (nº1, Julho 1990), «Vanguarda e actuali-
dade» (nº2, Agosto 1990), «Obra de arte: a única regra é dizer a verdade»
(nº4, Outubro 1990), de ensino artístico («Belas Artes na Universidade de
Lisboa  :  dados para a história secreta do ensino superior artístico», nº7,
Janeiro 1991) ou mais sociológicos e da cultura portuguesa, tais como «A
propósito de representações portuguesas no estrangeiro» (nº3, Setembro
1990) «Aspectos da Função Social da Obra de Arte» (nº5, Novembro 1990)
ou «Linguagem despoletada», (nº6, Dezembro 1990), com reflexões sobre
a arte portuguesa após 25 abril, com particular referência ao painel em
Belém (na Galeria de arte Moderna) pelo Movimento Democrático dos
Artistas Plásticos. Apresentou ainda alguns artigos de fundo sobre artistas
portugueses em exposição: Carlos Botelho (nº9, Março-Abril 1991), João
Hogan (nº11, Junho 1991) ou Júlio Resende (nº12, Julho-Setembro 1991).
Publicou ainda no Diário de Notícias de Lisboa vários artigos de opi-
nião, com responsabilidade de intervenção e cidadania, no caso centrado
nas questões da Escola de Belas Artes de Lisboa ou de ensino artístico38, ou
ainda questões culturais nacionais39. Na mesma linha publicaria artigo no
semanário Expresso, em torno da SNBA e em resposta a artigo de Leonel
Moura e Cerveira Pinto40. No Novo Século intervinha com Carta ao direc-
tor, datada de 29 de Março de 1982, em resposta a crónica de Manuel do
Chiado de ataque pessoal. Em artigo de opinião em O Dia, comentava a
«Carreira docente esquecida» no «Ensino Superior Artístico»41.

313
Finalizemos este levantamento de colaboração em periódicos com
aquela que foi a mais longa e até tempos mais recentes colaboração re-
gular de Rocha de Sousa como crítico de arte, no Jornal de Letras, Artes e
Ideias, mais conhecido por JL. A colaboração começou com regularidade
em meados de 1992até aos primeiros meses de 2017. Esta saída, terá sido
resultado pela recusa de fazer a redução de caracteres nos textos para 3000
caracteres (regateado ainda até 4500), que para Rocha de Sousa seria um
«anúncio» e já não um exercício de crítico de arte, tudo culminando na re-
dução de um texto já escrito, que não chegaria a ser publicado. Tal revela
uma posição ética que encontramos no seu percurso de crítico de arte – e,
ao mesmo tempo, o sinal de uma crise que a prática tradicional da crítica
de arte atravessa em tempos mais recente.
Refira-se ainda a colaboração em edições periódicas da Escola Superior
de Belas Artes de Lisboa (ESBAL), ou da futura e actual Faculdade de Belas
Artes da Universidade de Lisboa (FBAUL). No Boletim da FBAUL publicou
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

um texto sobre planificação, gerência e realização de viagens de estudos


ao estrangeiro (1966, pp.26-27), um texto sobre a «Intervenção produzida
no Colóquio sobre a Reforma do Ensino Artístico promovido pela Fundação
Calouste Gulbenkian» (1972, pp.8-9), ou ainda um ensaio sobre «Picasso,
uma forma de combater» (1972, pp.34-38). Publicou ainda estudos em re-
vistas da Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, como na ArteOpinião
42
ou na ArteTeoria, esta última já revista da instituição enquanto Faculdade.
Complemente-se ainda o trabalho de crítica de Arte de realizado por
Rocha de Sousa na rádio, com produção de textos para o programa da
Radiodifusão Portuguesa: «Forma e Conteúdo», regular pelo menos entre
Março 1980 a Abril 198643, dominada por juízos sobre arte e artistas portu-
gueses contemporâneos, em geral acompanhando exposições desses anos.
Para a RTP colaborava em filmes e programas sobre artistas portugueses,
destacando-se, por vezes acompanhando exposições, como no programa
Perspectiva, com José Elyseu e o crítico de arte José-Luis Porfírio. Nas sé-
ries Artistas Portugueses (1983-1984), escreveu e realizou sob a responsa-
bilidade técnica de José Elyseu, programas de cerca de 30 minutos sobre
Amadeo de Souza-Cardoso, Jorge Barradas, Almada Negreiros, Martins
Correia, Júlio Resende ou Júlio Pomar. Colaborou ainda em filmes sobre
José Escada, Carlos Botelho e Almada Negreiros.
Vários foram também os textos de catálogo realizados por Rocha de
Sousa desde a década de 1960, em exposições colectivas e individuais,
numa pluralidade de artistas e medias artísticos no âmbito das artes vi-
suais44. Também era normal escrever textos de entrada para as suas pró-
prias exposições45.

314
Coincidências Voluntárias

«Significar, de certa maneira, é estar vivo»


(Rocha de Sousa, Coincidências Voluntárias, p.61)

Rocha de Sousa, assumindo uma espécie de


certidão de responsabilidade cívica de artista e
intelectual, não se desviava da posição crítica das
suas posições e das querelas daí advindas. Várias
foram as suas posições em artigos em modo de
carta aberta sobre questões de educação artís-

FERNANDO ROSA DIAS | O CRÍTICO DE ARTE ENTRE «COINCIDÊNCIAS VOLUNTÁRIAS»


ticas, que apontámos, mas não desenvolvemos
por ser outra extensão ao seu lugar de crítico de
arte, sendo mais a de professor, com papel activo
em processos de reforma no âmbito das artes, e
com várias e importantes publicações na área de
ensino artístico – por enquadramentos próprios
de querela, embora abordando problemas de Fig.1 – Carta de Rocha de Sousa à
educação, desenvolveremos a que se abriu na sequência A.I.C.A., publicada no Diário de Lisboa
(24 Dezembro 1970, p.17)
dos cursos de Joaquim Rodrigo na SNBA. Encontramos
uma primeira polémica na referida carta ao pintor Neves
e Sousa publicada no Notícias de Luanda46. Outras que
apontámos e que não desenvolveremos, pela menos profundidade da polé-
mica, foi o confronto com a censura à exposição O Erotismo na Arte Portuguesa
Contemporânea ou a lançada no semanário Expresso, em torno da SNBA e
em resposta a artigo de Leonel Moura e Cerveira Pinto47.
O seu posicionamento na crítica de arte procurava uma profissionali-
zação que poderia servir de alternativa com a posição defendida por José-
Augusto França e os que lhe estavam mais próximos. Se estes, na defesa de
uma profissionalização específica do exercício da crítica de arte, se orienta-
vam por uma formação com bases nas ciências sociais e humanas, que partia
da escrita para a imagem (com relativa excepção de Rui Mário Gonçalves),
Rocha de Sousa orientava-se segundo a sua formação na Escola Superior de
Belas Artes, portanto da imagem a requerer a escrita. À orientação sociológi-
ca de José-Augusto França, Rocha de Sousa defendia antes o predomínio de
uma linguagem visual como determinante na correcta formação do crítico.
Esta posição, nem sempre salientada, fazia assim alguma oposição às orien-
tações da AICA. A sua querela com José-Augusto França, em torno de ques-
tões pedagógicas, consequentes à exposição de Joaquim Rodrigo, foi reve-
ladora dessa diferença. Por outro lado, também não alinhava directamente
com Ernesto de Sousa – de quem, contudo, adoptou durante tempos o uso
corrente da noção de «operador plástico» em substituição de «artista plásti-
co» – com quem teria outra querela em torno da exposição Alternativa Zero.

315
Estas últimas abordaremos mais adiante.
Para Rocha de Sousa era importante a participação do artista plástico no
julgamento crítico ou no crivo da arte, colocando-se «contra os críticos que
procuram impor um comportamento criativo aos artistas»48. Contudo, esta
orientação do artista plástico como crítico, se apresentava a virtude de convo-
car alguém habituado à linguagem das imagens, colocava o problema ético
da escolha. Se um artista plástico tinha o seu próprio projecto com as opções
pessoais dessa produção, esta tinha que se confrontar na teoria crítica com
uma necessidade de heterogeneidade e distanciação da sua própria prática
artística. Se do ponto de vista do domínio de uma linguagem plástica, a for-
mação numa Escola de Belas-Artes parecia apresentar pertinente sentido, a
questão ética logo a perturbava, como que convidando à anulação de uma
prática própria. Tal obrigou a Rocha de Sousa ter que marcar o seu lugar pró-
prio de crítico de arte, na difícil sobreposição desta actividade com a de ar-
tista plástica e a de (com os seus estigmas, que outros usaram nos seus argu-
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

mentos, como veremos) de professor.


Rocha de Sousa já tinha um percurso de crítico de arte quando José-
Augusto França, Rui Mário Gonçalves e Fernando Pernes protagonizam a re-
novação da secção portuguesa da AICA, e este processo é pouco antes da
sua colaboração regular no Diário de Lisboa que lhe daria destaque. Rocha
de Sousa elogiara essa renovação, e tornou-se membro dessa renovada sec-
ção, mas o seu lugar trazia essas marcas próprias associadas à marca pessoal
de intervenção – de política mais cívica que ideológica ou partidária, subli-
nhamos. Contudo, a sua integração na AICA (secção portuguesa) foi hesitante
e, quando decidida, foi acompanhada de uma carta a José-Augusto França,
publicada no Diário de Lisboa, onde era crítico de arte, sob um dos habituais
«folhetins artísticos» de José-Augusto França. A ilustração de uma pistola a
apontar para o observador, colocada por decisão editorial a acompanhar a
sua carta, dava-lhe um particular tom belicoso. Rocha de Sousa apresentava
seis pontos críticos49, que justificavam tanto a sua recusa até então, tal como,
reflectidos a partir das diligências da recente renovação, justificavam a sua
actual adesão. O ponto cinco reconhecia, a partir da sua dupla situação de
crítico de arte e de artista criador, que esta coincidência voluntária era uma
questão sensível, e que a queria salvaguardar na sua adesão de sócio à AICA.
Assim, podia asseverar que:

«ao aceitar a minha candidatura, [a secção portuguesa da AICA] passa a


admitir de forma iniludível a capacidade intelectual dos artistas para a ac-
tividade crítica e os artistas, por seu turno, podem realmente contra com a
possibilidade de melhor se representarem num organismo de tal natureza»50.

Uma das marcas dessa renovação foi a presença de membros da AICA


em júris de arte, sobretudo em actos mecenático de empresas e bancos que

316
então despoletaram. Numa terceira intervenção mecenática de destque (depois
do Prémio GM67 – General Motors – de Artes Plásticas ou Salão de Vanguarda
GM67, com exposição na SNBA, Janeiro 1968; Prémio Guérin, com o tema «A
Máquina», no 50º aniversário da fundação da empresa, exposição no stand
da Wolkswagen, Novembro 1968), do Banco Português do Atlântico51, que
aproveitava a comemoração dos seus 50 anos com um concurso-exposição
de Artes Plásticas (a exposição decorreu na SNBA, estando aberta ao público
a 28 de Maio e até finais de Junho de 1969), Rocha de Sousa levantava polé-
mica, apontando que estas acções apenas satisfaziam «necessidades episó-
dicas das próprias empresas na medida em que constituem um veículo es-
pectacular com o grande público, podendo em paralelo emprestar ao acto

FERNANDO ROSA DIAS | O CRÍTICO DE ARTE ENTRE «COINCIDÊNCIAS VOLUNTÁRIAS»


de propaganda uma dignidade imprevista». Sem regularidade, não resolvia
questões estruturais, silenciando momentaneamente os artistas das suas rei-
vindicações, ou até distraindo-os dos seus reais projectos, para responderem
«amadorìsticamente ao apelo do mecenas, para respirar episodicamente o
ar de esperança que lhe fornecem através de um aparelho de competição»52.
No mesmo processo de acção renovadora da secção portuguesa da AICA,
surgiram as exposições da AICA-SNBA, em que os próprios críticos eram uma
espécie de curadores. A primeira exposição (Exposição AICA-SNBA/72), logo
dominada por uma heterogenia de posições num espaço de opções domina-
do pela arte moderna, referia essa «panorâmica da crítica», que se efectuava
a partir do «retrato individual de cada escolhedor», fazendo um importante
diagnóstico e auto-retrato da crítica de arte portuguesa53, após cerca de uma
rica década de actividade com intencional e assumido profissionalismo, e uma
renovação da secção portuguesa com poucos anos.
Esta subjectividade radicalizava-se em intencional parcialidade assumida
com a atitude do crítico Rocha de Sousa, que escolhia a obra do pintor Rocha
de Sousa, reivindicando «a sua condição de pintor, afirmando desse modo a
coincidência possível das suas funções» – na verdade Rocha de Sousa preferia
a expressão de «coincidência voluntária» que seria título de um livro relevan-
te sobre as suas memórias de teórico no campo das artes e importante fonte
para recuperação do entendimento desta atitude: Coincidências Voluntárias
(2011). A atitude não deixava de ser provocatória a um questionamento sobre
a ética da prática crítica, e a inevitabilidade da parcialidade em qualquer acto
crítico. O crítico-pintor explanou-nos assim a narrativa:

«Eu tinha exposto uma série de «Personagens» na galeria Judite Dacruz,


sendo um deles um retrato quase realista de ma velha, panos retos, fundos
vermelhos, e um pouco à frente e em baixo as mãos pálidas e ossudas dela
enlaçando-se num conjunto de raízes. A parábola não é difícil e o quadro
só podia ser de um pintor que sabe escrever pintura, formar deformar.
O quadro foi exposto, isolado, como minha participação (enquanto mem-
bro da AICA) na II exposição desse organismo na SNBA. Tinha por baixo

317
uma legenda nítida que dizia: «Eu, Rocha de Sousa, sou por formação,
pintor, e apresento esta pintura, que também se lê, como coincidência
voluntária»54.

Com ela o crítico assumia a coincidência voluntária de ser pintor além de


crítico, e de ser condição simultânea do seu ser, ou da sua identidade e que
uma não renega a outra. A situação não era nova, tendo na cultura portugue-
sa existirem vários artistas plásticos que apresentavam essa dupla condição:
Diogo de Macedo, António Dacosta, Júlio Pomar, Fernando de Azevedo,
Eurico Gonçalves, entre outros. Mas, até então, nenhum confrontava tão di-
recta e simultaneamente essa condição, nessa sobreposição do facto de se
executarem os dois exercícios num mesmo «encontro» do crítico «com o pró-
prio pintor»55 – e em que um (crítico) escolhia o outro (pintor) de um mesmo
(Rocha de Sousa). O escritor (outra condição sua) assumiria essa sobreposição
já em jogo de memórias reflexivas, assumindo a expressão de Coincidências
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

Voluntárias, referido título do livro, onde recuperava ponderações sobre o


caso: «Durante as minhas incursões em diferentes campos operativos de ca-
rácter artístico, assumi na Primeira Exposição da AICA (Secção Portuguesa) a
condição paralela de pintor e crítico de arte, pela base demonstrativa de um
quadro meu baptizado com o título “Coincidências Voluntárias”. (…). Referia
ainda um estudo de Maria João Gamito, onde se «(…), declarava considerar
que “um autor de autores, sem heterónimos” era caso difícil, ou mesmo raro,
e reclamava o objectivo da análise acima referida, crente de que esse esforço
não resultaria como mera curiosidade, antes poderia abrir a outros um primei-
ro traçado para que fosse aprofundada a minha vontade de fazer coincidir,
por forma voluntária, em vários». E afirmava a sua posição:

«Apurar a consciência deste problema, e saber ao mesmo tempo que os


artistas plásticos são por vezes notáveis críticos de arte, ao contrário da
teoria que afirma a impossibilidade de tal acontecer, teoria mais ou menos
neurológica, estranhamente mal sustentada, sobretudo por José-Augusto
França, apesar dos factos e de os artistas acederem a vários projectos con-
tamináveis, estabelecendo também pontos de analogia entre eles, um arti-
culado de especiais modos de formar e a fecundação comprometida num
discurso aberto. No meu caso, autor entre autores, todos com o mesmo
nome, prolongava-se assim um combate contra a anunciada impossibili-
dade de os pintores analisarem criticamente obras de outros criadores, e
as suas próprias, alcançando voluntariamente a prática de procedimentos
paradoxais, idênticos na diferença. Esta condição, como notei atrás, foi por
mim efectivamente ilustrada com um quadro de minha autoria, apresenta-
do no II Salão da AICA. O quadro era portador de certa carga sociopolítica
pertencente ambiciosamente a uma série articulada nesse sentido – o que
era, segundo os modelos estabelecidos, mais um abuso e não uma eventual

318
vontade de engagement. Se o salão representava os críticos, para afirmar
com textos e obras plástica, a sua especialidade aparentemente intrans-
missível aos operadores de outras áreas criativas, um membro da Secção
Portuguesa daquele organismo, reconhecido como tal, eu próprio, achou-
-se no direito de vir propor, quiçá provar, uma “tese nova”: a de que um
artista pode reunir capacidades para estabelecer publicamente o parale-
lo plausível, e porventura vantajoso, de uma dupla condição – a de artista
plástico, ali aceite, e de crítico de arte, também aceite, coincidência assu-
mida voluntariamente»56.

Ou mais adiante:

FERNANDO ROSA DIAS | O CRÍTICO DE ARTE ENTRE «COINCIDÊNCIAS VOLUNTÁRIAS»


«(…): uma pequena tese dedicada à minha obra em geral, já citada atrás, cha-
mava para título a frase que eu usara na 1ª Exposição da Secção Portuguesa
da Associação Internacional dos Críticos de Arte – “Rocha de Sousa, as
Coincidências Voluntárias” – frase pela qual, irónica e paradoxalmente, eu
procurava significar, contra José-Augusto França, a inteira possibilidade de
o artista assumir, por vezes com vantagem, essa função analítica e reflexiva.
Ler aquele texto foi uma descoberta simples e fascinante. Mas tratava-se de
um texto que se revestia porventura de uma certa estranheza para o grande
número de estrangeiros que me faziam estrangeiro, de outra latitude, no
meu próprio país; e, em particular, para todos os que, de súbito rigorosos,
científicos, ou infinitamente académicos, queriam negar a hipótese de um
autor ser vários sem o recurso metamórfico aos heterónimos»57.

A experiência desta curadoria de críticos repetia-se em Janeiro de 1974


(exposição AICA-SNBA/74), onde os críticos davam alguma continuidade às
opções anteriores, por vezes procurando radicalizá-las. Rocha de Sousa, que
na exposição anterior tinha escolhido apenas a sua obra, escolhia agora ape-
nas um pintor português que admirava e que era a grande referência da sua
própria produção: a pintura de Luis Dourdil, seu amigo e mestre. A parcialida-
de reassumia-se ao escolher outro pintor (já não ele próprio como pintor), que
era a grande influência do seu próprio percurso como pintor.
As múltiplas condições, voluntariamente, subtraem tempo de dedicação
umas às outras, retiram a exclusividade a uma carreira, mas aditam a cumpli-
cidade, o enriquecimento mútuo, onde o sujeito e cada uma dessas partes se
completa (mais do que complementa). As coincidências voluntárias assentavam
numa defesa do pintor, ou do artista plástico, enquanto pensador, de uma teo-
rização que não exclui as outras, mas que deve ter o seu espaço, até pela pers-
pectiva particular que pode e deve trazer. Sem ela seria empobrecer o espaço
cultural das artes e o seu debate. Há uma ideia do artista enquanto investiga-
dor58 que interessa a Rocha de Sousa, que se lança no espaço sócio-cultural na
necessidade da defesa do artista enquanto teórico:

319
«Mais por essa altura, e por decreto falado a partir do reduto da crítica,
aconteceu uma das mais perturbadoras descobertas, creio que pelo
génio de Augusto França: a de que os artistas, pintores e escultores, es-
tavam limitados, por «estruturas mentais específicas», na análise crítica
de obras plásticas, circunstância que lhes vedava aceder ao patamar da
crítica de arte. Porque lhes faltava, verdadeiramente, o espírito científi-
co, o rigor do conhecimento sobre as disciplinas de índole filosófica, a
capacidade de se exercerem pelas metamorfoses de vanguarda. E José-
Augusto França, disfarçadamente acompanhado pelos outros, ele que
já pintara ao tempo do surrealismo em português, mantinha-se, naquela
matéria, feudal e universitário, supostamente acompanhado pelo coro
da A.I.C.A., secção nacional, bradando o bíblico anátema»59.

Num dos números da Opção deixava uma reflexão sobre as relações


entre o artista e o crítico que era a sua dupla condição:
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

«Durante alguns anos, na euforia com que assumiram publicamente


as suas funções, os críticos de arte tentaram, do alto da sua capela de
súbito mais visitada, decretar (sem parlamento) a especificidade e ina-
cessibilidade do seu trabalho. Era uma hora de privilégio social, os jor-
nais descobriram as artes plásticas, os suplementos dados à cultura fa-
ziam-se concorrentes, o mercado artístico esboçava os seus primeiros
passos»; «(…)a formação actual do artista plástico deve passar pelo uso
de metodologias de crítica que lhe permitam dilatar o campo de cons-
ciência do seu papel social e cultural»; «o artista plástico, para ser verda-
deiramente eficaz e responder às urgências da revolução cultural, tem
de apoiar a formação de um ver crítico em disciplinas complementares
onde avultam a sociologia, a psicologia aplicada às artes, a estética, a
história da arte. (…). Artistas e críticos, hoje, em Portugal, têm de des-
cobrir que trabalham para o mesmo fim – e têm de descobrir, juntos, as
melhores formas de romper o silêncio que se abateu sobre eles», den-
tro de «um projecto novo de intervenção artística, integrando-se num
projecto social também novo»60.

A opção não era uma escolha de exercício do crítico, não se tratando


de o crítico Rocha de Sousa preferir obras do pintor Rocha de Sousa, mas o
facto de, no acto polémico dessa escolha, o crítico assumir poder ser tam-
bém pintor. Neste sentido, a sobreposição antecede a escolha, porque já está
inevitavelmente no ser do crítico. A questão era determinante para Rocha de
Sousa. Com tudo isto estava a defesa do artista (ou operador plástico) en-
quanto pensador da arte, e da defesa de uma exclusividade na área das hu-
manísticas: «Mais ou menos por essa altura, e por decreto falado a partir do
reduto da crítica, aconteceu uma das mais perturbadoras descobertas, creio

320
que pelo génio de Augusto França: a de que os artistas, pintores e escultores,
estavam limitados, por “estruturas mentais específicas”, na análise crítica»61.
A polémica era assim dirigida a José-Augusto França: se este defendia
que a autoridade de tal exercício crítico estava numa boa formação nas ciên-
cias sociais e humanas, que partia da escrita para a imagem, numa orientação
sociológica e culturalista, Rocha de Sousa opunha uma via segundo a sua for-
mação na Escola Superior de Belas Artes, portanto da imagem a requerer a
escrita, num predomínio da linguagem visual como determinante na correcta
formação do crítico (de arte). A coincidência era, por isso, fatalmente necessária.

«Por volta dos anos 60, em pleno Chiado, um dos mais conceituados críti-

FERNANDO ROSA DIAS | O CRÍTICO DE ARTE ENTRE «COINCIDÊNCIAS VOLUNTÁRIAS»


cos de arte residente em Lisboa, sustentou comigo, durante várias horas,
a tese de que a pintura em si era por natureza abstracta, evolução irrever-
sível já consagrada em livro por Gillo Dorfles. Viva-se na crista dessa onda
que José-Augusto França também cavalgava e o provincianismo portu-
guês aplaudia, numa insensatez guerreira, contra toda a figuração e os
pintores da queda ilustrativa, mesmo que pintassem naturezas mortas tão
bem como Braque ou ardis visuais calorosos como Matisse.
Ora nada disso tinha qualquer razão de ser: porque, ao domínio das artes
em geral, não se pode decretar o fim seja do que for, nem condicionar li-
berdades ou dogmatizar os caminhos do fazer. Trata-se de um campo cuja
identidade passa pelo saber livre, por não se viver o imaginário em termos
de ideologia, nem a decisão do discurso submetida a dogmas. (…)»62.

Em torno do «pintar certo» de Joaquim Rodrigo

A obra de arte é um objecto difícil, no fazer e no ser.


(Rocha de Sousa, & Etc, Lisboa, nº21, Março 1974, p.16)

Entre Outubro de 1977 e Junho de 1979 Rodrigo interrompia a prática da


pintura para experimentar uma docência do seu «pintar certo», como sistema
universal, desafio lançado mais à sua teoria que à sua prática. A questão da
sua pedagogia situava-se na articulação entre um sistema universal e a sub-
jectividade individual, entre um sistema director de regras e a liberdade do
sujeito, uma espécie de «cartilha natural» para pintar63. Esta acção de forma-
ção impulsionada por José-Augusto França, culminaria com uma exposição na
SNBA. Cerca de 50 alunos pintaram quase 200 quadros, tendo-se exposto 120.
A experiência pedagógica de Rodrigo não era bem recebida por parte
da crítica, sobretudo por Rocha de Sousa que, contudo, tinha antes entendi-
do e elogiado a pintura de Rodrigo quando da retrospectiva de 197264. Sem
evitar que se notasse a coincidência do professor de Belas Artes, e um dos
casos relevantes do pensamento da educação artística em Portugal, com vá-
rias publicações na área65, Rocha de Sousa criticava a defesa de José-Augusto

321
França da experiência pedagógica de Rodrigo, Rocha de Sousa observou neste
«uma receita parcelar, impositiva», que anulava a «liberdade individual», um
academismo que na situação contemporânea só podia ser «uma história de
Kafka». A pedagogia universal de Rodrigo só podia produzir «dezenas de re-
petidores de si próprio»66.
Contudo, a pedagogia de Rodrigo não pretendia académica, mas univer-
sal, não para descobrir artistas plásticos, mas para qualquer um poder praticar
a criação plástica67. Não se tratava, portanto, de imitar a pintura de Rodrigo,
mas de alinhar no interior do seu sistema (como orientação conceptual), não
de o repetir, mas de percorrer o seu sistema. No fundo a crítica de Rocha de
Sousa a Rodrigo esclarecia o antagonismo de duas perspectivas: uma que as-
sentava no mito da personalidade do autor; outra que pretendia um sistema
universal que servisse de orientação para iniciar um processo criativo. Se um
defendia a individualidade de uma linguagem, que só podia ser encontrada
após um longo processo de experiência pessoal, cujo resultado final seria a
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

formação de um artista com um processo criativo que era apenas o seu, por-
tanto, em que cada qual encontrava a universalidade da sua personalidade, o
outro procurava iniciar qualquer indivíduo a uma linguagem, como que uma
cartilha da pintura, em que cada um fazia a sua passagem individual no interior
de uma universalidade. O equívoco que Rodrigo preparou estava nos limites
em que colocava, por um lado, a universalidade do sistema e, por outro, a
subjectividade da passagem de cada um no interior desse sistema – ou seja,
entre a absoluta ausência de liberdade de uma e a total liberdade de outra.
Para Rocha de Sousa a universalidade era a de cada um e só se definia en-
quanto produção artística (e não sistema), pelo que a sua não-aceitação da
pedagogia de Rodrigo estava no facto de a dimensão universal deste estar
prévia à passagem individual, não aferindo que essa universalidade não era
ainda uma produção pictórica e que esta só se concretizava após essa pas-
sagem. Para um a pedagogia era a descoberta de um criador como autor,
para outro era a possibilidade de cada um poder criar. Para Rocha de Sousa
a criação só poderia existir depois de se descobrir a personalidade do autor,
sendo a pedagogia o processo dessa descoberta. Rodrigo pretendeu forne-
cer uma gramática sem autor-criador subjectivo, no interior da qual a criativi-
dade pudesse acontecer no mero itinerário da sua concepção. Daí que José-
Augusto França afirmasse que os alunos «chegaram lá rapidamente, Rodrigo
lentamente», para concluir que, «felizmente, Joaquim Rodrigo não tem dis-
cípulos, tem alunos»68 – afinal, não descobrira personalidades nem autores,
apenas ensinara uma gramática.
Mais tarde, Rocha de Sousa revivia a questão nas memórias reflexivas
das Coincidências Voluntárias, apontando esse «(…) apoio dado a Joaquim
Rodrigo para reger um curso de iniciação à pintura cujo fim consistia em obter
de cada aluno não a dor de um percurso pessoal e criativo, mas a passagem
obediente e acrítica para a cópia dos sinais e figuras do mestre, as suas cores,

322
a sua composição, numa sinistra clonagem vinda da última série das obras
dele». Uma «transcendente experiência pedagógica» dos que «zurziam na
“cópia de modelos” das antigas Escolas de Belas-Artes»; e assim considera
Rocha de Sousa «uma das mais espantosas farsas alimentadas (porque sim)
entre nós»69. Ou mais adiante:

«Razão teria Joaquim Rodrigo, segundo um crítico conceituado, porque


o seu processo pedagógico poupava o aluno à dor da aprendizagem,
oferecendo-lhe a possibilidade, embora unilateral, de fazer um arco de
círculo sobre tudo isso, desatento da indignidade mimética, sem revolta
nem descoberta pessoal. Os ossos sobejantes estavam ali, oferecidos a

FERNANDO ROSA DIAS | O CRÍTICO DE ARTE ENTRE «COINCIDÊNCIAS VOLUNTÁRIAS»


alguma ludicidade, bastava que cada aluno os copiasse pelo léxico de
Rodrigo, operando à semelhança dos quadros dele, consagrados, deci-
didamente publicados na história»70.

A querela centralizara-se em questões da educação artística, mas expu-


nha-se e desenvolvera-se no espaço próprio da crítica de arte e entre críticos
em acção. Se na anterior coincidência voluntária o crítico Rocha de Sousa so-
brepusera-se ao pintor Rocha de Sousa, agora o mesmo crítico sobrepunha-se
(e, de novo, fatalmente de modo voluntário) ao professor/pedagogo Rocha
de Sousa. A distância histórica informa-nos interpretações. A experiência pe-
dagógica de Joaquim Rodrigo ficara na sua performace efémera de pedago-
gia, sem continuidade e sem fornecer artistas nem discípulos, mas essa tam-
bém não era a sua função nem a sua consequência. Diríamos ainda que ela
só poderia funcionar como a condução do próprio Joaquim Rodrigo, tendo
pouco sentido (ou universalidade) póstuma – afinal, a cartilha do fazer certo
era tão universal como sua, portanto, pessoal.

Alternativas à Alternativa Zero

Uma vanguarda está sempre a repensar-se nunca a copiar-se. (…). O ob-


jecto de arte é capaz de assumir na história e de renascer a cada leitura,
anunciando sempre outras formulações possíveis. Cada acto criador é
passado, presente e futuro – e transporta-se na evidência da própria mo-
bilidade do espírito humano.
(Rocha de Sousa, Opção, 25 Novembro 1976, nº31)

Querela marcante foi a desenvolvida com Ernesto de Sousa em torno da


exposição Alternativa Zero que este último organizara, naquela que foi uma
das mais míticas curadorias de toda a história da arte moderna portuguesa71.
Numa primeira crítica, Rocha de Sousa considerou que a Alternativa Zero é
«uma exposição e um espaço cultural», um «acto interventivo e um apelo à par-
ticipação», sendo uma «iniciativa e oportuna», bem subsidiada e com «coisas

323
expostas e propostas» em «muitos casos importadas». O tom era, num pri-
meiro plano, de elogio à iniciativa:

«porque levanta interrogações atrás apontadas, porque reanima uma


catividade cultural em perigosa recessão, porque desperta a controvér-
sia e estimula um ver crítico, porque aponta às forças governamentais o
espectro da criatividade e as suas complexas relações com o mundo em
termos que não são os do hábito e os de uma propaganda cheia de pa-
lavras-de-ordem mais ou menos poluídas»72.

Mas tais palavras não se concebiam sem antes lançar questões que anun-
ciavam dúvidas sobre a defendida e apregoada noção de vanguarda que,
segundo Rocha de Sousa, era importada por Ernesto de Sousa, «intérprete e
intermediário, entre nós, daquilo a que lá fora se chama vanguarda»:
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

«(…) o trabalho dos nossos artistas deverá prioritariamente ligar-se à trans-


ferência mais ou menos estreita da vanguarda internacional ou, de outro
modo, acertar-se com a nossa realidade para a reinventar e renovar em
termos que, sendo novos e enraizados, se exportem ao encontro de uma
universalidade necessária?» 73.

Se para Rocha de Sousa, «as “coisas” propostas em Belém não são coin-
cidentes com as urgências da nossa transformação sócio-cultural», ela tam-
bém «levantam a necessidade de questionarmos a dimensão e a qualidade
do nosso projecto». Daí a conclusão, para Rocha de Sousa, que se podia re-
tirar da exposição:

«a de que o artista ajuda à precipitação dos temas do nosso quadro de


valores e das nossas necessidades, podendo dessa forma constituir-se
como ser para a sociedade, oscilando dialecticamente entre a hora so-
litária em que inventa e o encontro solidário em que oferece aos outros
uma realidade nova - e uma realidade sem a qual não é possível progre-
dir nem saber o caminho mais curto para o futuro»74.

Ernesto de Sousa não responderia a esta crítica, ainda de leitura ambí-


gua, que tanto elogiava como censurava, ficando claro que a própria dis-
cussão provocada pela exposição a justificava e enriquecia, mas Rocha de
Sousa voltava à questão, em crónica reactiva a ciclo de conferências sobre
Almada Negreiros, criticando a associação de Almada Negreiros à exposição
Alternativa Zero e confrontando o nacionalismo moderno de um e o interna-
cionalismo cultural do outro. Rocha de Sousa referia ainda como Ernesto de
Sousa aproveitara a sua anti-conferência para fornecer respostas a críticas à
sua exposição, da «elegante reflexão de José-Augusto França, ao ‘comentário

324
oportuno» de Eduardo Prado Coelho, e às suas no anterior artigo na Opção
ou ainda em programa para a televisão em que também tinha colaborado. E
utilizando Almada Negreiros insistia na «questão das importações» culturais:

«Mas Ernesto de Sousa havia de associar a sua iniciativa da Exposição


da “Alternativa Zero” à grande e antecipada alternativa que foi a obra
global de Almada Negreiros, um criador que deveríamos sobretudo
estudar ao nível da nossa identidade antes de o confundirmos (dema-
gogicamente?) com os internacionalismos culturais onde certos valores
específicos, e necessários ao próprio sentido do universal, perdem às
vezes a sua verdadeira ressonância»75.

FERNANDO ROSA DIAS | O CRÍTICO DE ARTE ENTRE «COINCIDÊNCIAS VOLUNTÁRIAS»


Tratava-se de pensar essa opção entre «importar correntes feitas e ilus-
trá-las ou, pelo contrário, se deverá reflectir de dentro para fora, estudan-
do e formulando a relação dos nossos sinais com o sentido de contempo-
raneidade»? Rocha de Sousa não via inconveniente «que os artistas e os
operadores estéticos importem cultura», mas insistia «que esse caminho é
importante que se concentre nas metodologias e não no mimetismo dos re-
sultados», na defesa de «um desenvolvimento que não pode ser sinónimo
de sujeição» através do «uso particular de métodos em ordem à descoberta
de comportamentos novos, de formas novas, de interrogações diferentes; e
tal «trabalho passa por uma verdadeira investigação nos contextos da nossa
realidade»76. E encontrava em Almada Negreiros exemplo desse encontro
da «nossa identidade» com uma dimensão universalista.
Era a esta segunda crónica de Rocha de Sousa, na qual que abordou
mais indirectamente a Alternativa Zero, que Ernesto de Sousa reagia violenta-
mente, embora a resposta acabasse por ser às duas crónicas críticas anterio-
res. Dirigindo-se maliciosamente a Rocha de Sousa como «Artista, Professor,
Crítico de Arte e talvez Operador Estético», Ernesto de Sousa acusava-o de
um «evidente sindroma do medo»77, e insistia mais adiante (a partir da in-
vocação de Rocha de Sousa de que a pintura deveria «dizer a verdade») na
situação «privilegiada» de classe «dos universitários, dos Doutores»; e reagia
a «dois falsos problemas» (que se estendiam em alguns mais).
O primeiro centrava-se na acusação de Rocha de Sousa relativamente à
importação de correntes, ao que Ernesto de Sousa comparava com a reac-
ção de um crítico em 1916 perante a obra de Amadeo de Sousa-Cardoso78.
A comparação permitia atacar este «falso problema» como um atávico «de
que se servem sempre, e em todas as presentes conjunturas, os inimigos
do moderno». Mais adiante, o organizador da exposição reagia à acusada
«escolaridade mimética da maior parte das experiências», apresentando
uma listagem de artistas em exposição que considera coerente e que só o
desconhecimento por «tais novidades» os pode considerar mimetismo de
novidades «da estranja»79.

325
Ernesto de Sousa reagia ainda à crítica à ausência de artistas com mais
profunda capacidade de se interrogarem, retorquindo sobre «quem decide
quem». E defendia-se com orientações do catálogo da exposição: de que era
«uma escolha crítica; aquela que em dadas condições de espaço e tempo
permitia perspectivar e perspectivar melhor», no seu entendimento crítico
enquanto organizador, «e com a possível objectividade, o que tem sido e, em
parte, o que poderão vir a ser as “tendências polémicas da arte portuguesa
contemporânea”»; e, assumindo a dimensão de «ensaio» ou «estudo, crítico
e assinado», defende a intenção de que «deveria haver vários níveis de leitu-
ra, desde os mais superficiais aos mais profundos», acrescentado ainda que
«não se hesitou numa escolha problemática se ela era necessária para mos-
trar ou provocar determinado ponto»80.
Em resposta, nas páginas do número seguinte da Opção, Rocha de Sousa,
estranhando com ironia o excesso reactivo ao «direito à crítica, mais ou menos
animada, mais ou menos atrevida», devolvia a acusação de professor e, sobre-
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

tudo, a do medo, «que o faz ouvir gritos onde há palavras e insultos onde há
medidas críticas e opções. A cada um o seu fantasma». Rocha de Sousa foi-se
defendendo em vários pontos, tando das acusações pessoais como dos seus
argumentos críticos: que não há falta de deontologia nem muro das lamen-
tações; que considerou o ciclo de conferências sobre Almada Negreiros de
mérito; esclarecia ainda que utilizara para si a designação de «operador esté-
tico» por ironia ao «ênfase» a que o próprio Ernesto de Sousa tinha «empres-
tado» o termo, e devolvia a pluralidade de sobreposições de que tinha sido
acusado, apontando as dimensões de «Cineasta, Crítico, Escritor, Animador
Cultural (sem K), Professor, Investigador e Operador Estético», qualificações
«que não é preciso que sejam universitárias»; que está longe de si «se frechar
à compreensão do outro para dizer grandes mentiras», acusando a compara-
ção com o crítico de 1916; insistia no direito a considerar que foi infeliz a as-
sociação entre a exposição sobre Almada Negreiros e a Alternativa Zero, tal
como insistia no direito de a considerar «importação de cultura e importação
de metodologias», sem colocar em causa o mérito dos artistas; considerava
também, contra observação da carta de Ernesto de Sousa, que tem acompa-
nhado bastante em várias crónicas críticas a produção actual, tal como tem
escrito e problematizado a questão da «vanguarda» que lhe interessa; faz al-
guma ironia com a dimensão de espectáculo e festa com a qual a exposição
foi conjugada; que o caso de Amadeo lhe dava razão, porque exactamente
«casa o internacionalismo cultural com os tais nossos sinais»; e reconhece que
o Ernesto de Sousa poderá fazer a «Alternativa» que quiser, que «até poderia
convidar apenas artistas “conservadores” para fazerem experiências de vanguar-
da», e se, com direito, considerava que o Ernesto de Sousa cometeu «alguns
erros de escolha e critério», «isso não retira o mérito global do seu trabalho»,
insistindo no mimetismo de algumas propostas; e reagia ainda aos «diplomas
gratuitos» («pior é a gratuitidade dos diplomas de muitos auto-didactas»), para

326
terminar afirmando que preferia mais interrogar-se (individualmente) do que
afirmar-se (publicamente)81.
Nas memórias de Rocha de Sousa o confronto com a posição de Ernesto
de Sousa esclarece-se a partir de uma perspectiva de manipulação das van-
guardas como efémero espectáculo.

«(…) “Alternativa Zero”, exposição que se esforçava por ser polémica e se


enchia de pequenos desvaneios em nome da vanguarda»82.

De facto, nas suas reflexões é possível encontrar várias críticas ao van-


guardismo efémero, feito e arrastado no jogo da moda dos ismos e sem ter

FERNANDO ROSA DIAS | O CRÍTICO DE ARTE ENTRE «COINCIDÊNCIAS VOLUNTÁRIAS»


atenção ao espaço social no seio do qual se actua e comunica:

«O que eu faço, na forma plástica, nunca é tão-só pela vanguarda. Não


pertenço por inteiro ao circunstancial. De certo modo, o hiper-realismo
já foi vanguarda depois de coisas como a pintura de acção. A vanguar-
da não tem fronteiras: pode corresponder a uma necessidade abstracta
de revolucionar as formas, mas pode também corresponder à necessi-
dade objectiva de dizer o que é preciso e quando é preciso, recorrendo
a experiências aparentemente consumadas. Ou sejam a vanguarda não
se distingue de nenhuma arte autêntica que a distância e o tempo tor-
naram antiga»83.

Apontado o fundamentalismo de certas modas dos ismos como a «vanguar-


da como recusa da representação», ou «tudo pela arte conceptual» (quando
«toda a arte é conceptual»). Numa primeira instância, a vanguarda é dinâmica
e favorece a ultrapassagem de fronteiras, estimulando a prática artística num
«tempo/vertigem aparentemente paralelo à actualidade»; mas, por outro lado,
«é também um «limite» que «também se confronta, insegura e imobilizada,
com o muro das ortodoxias». Além disso, dentro do tempo «actual» «ocorrem
entretanto transformações tão rápidas que nem sequer a mutação alucina-
tória das vanguardas consegue acompanhar». Rocha de Sousa considera «a
rebeldia do artista maior do que a rebeldia, cheia de transferências, da van-
guarda»84. E de modo esclarecedor sobre o seu posicionamento acrescenta:

«As obras que parecem conservar a actualidade, oferecidas inteiras à


passagem do tempo e dos modos, são certamente as que dilatam, no
espírito da sua revolta, para além do tempo polémico, rompendo com a
“eternidade” sacrifical de Sísifo ou Prometeu.
Parece conveniente, mesmo perante limites e dúvidas, começar pedago-
gicamente a distinguir as obras de vanguarda (precedência do ser) das
obras claramente actuais (essência do ser)»85

327
Dos anos 80 – crítica aos novos pós-modernos
Se Rocha de Sousa tivera algumas querelas com críticos da sua geração,
muito menos lhe escaparia a atenção à nova geração emergente na década
de 1980, que surgia ao tom da moda pós-moderna. Sem ter sido uma que-
rela, por não ter havido debate directo, e porque se misturava com um olhar
mais abrangente de Rocha de Sousa perante o que emergia nessa década,
as observações que foi deixando sobre as dinâmicas de uma nova geração
de críticos revelam interesse sociológico-cultural, tanto para entendermos o
seu posicionamento pessoal, como o modo como se relacionou com essas
mudanças, não escapando a marcas de mudança geracional. O aviso era
dado logo na sua reacção à exposição Depois do Modernismo (SNBA, 1983):

«Contra o modernismo que já não agrada aos mentores da iniciativa, contra


o ser de vanguarda que já não conduz a nada, contra a falta de teorização
por parte de uma crítica igualmente acusada de omissões, contra a insti-
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

tucionalização dos modernos e de um pós-modernismo que não se sabe


o que seja, eis, enfim, uma acção colectiva (com debates e espectáculos)
de que é justo esperar o encontro de dados teóricos, autores diferentes
com perfil para um tempo depois do modernismo, fuga ao institucional
e ao sistema burocrático, redescoberta da individualidade e da subjecti-
vidade postas sistematicamente de lado pelo que, modernistas ou afins,
já entraram em bancarrota. Tudo isto se deduz das declarações vinda a
lume, embora seja difícil enquadrar num espaço de coerência e de luta.
(…): um não-ser que não sabe nem se assume como tal»86.

De modo mais retrospectivo, deixaria memórias reflexivas sobre a nova


geração de críticos de arte emergentes nessa década87, de «novos novíssimos»
que se dividiam «em grupos, em tribos ou sensibilidades, um pouco à maneira
dos partidos políticos»88, ao que chamou «o assédio da chamada nova crítica»:

«(…) – um surto de jovens privilegiados que assaltou, nos anos 80, tudo
o que restava das colunas de comunicação social e nos canais de troca
de influências, incluindo sub-departamentos de Estado. Eram rapazes
super-dotados, leitores de revistas estrangeiras e livros inovadores nem
sequer traduzidos em português. Tudo o que não era alinhável pelas for-
mas divulgadas nos anos 80, era pouca coisa ou mesmo nada: os autores
divulgáveis, tutelados desta maneira, recentes também, vinham todos, ou
quase todos, de uma colheita daquele tempo. Autores de grande prestí-
gio e obra verdadeiramente significativa, mas anteriores à década referi-
da, podiam ser omitidos de forma liminar. Muitos outros, a montante do
percurso desviado em 80, com respeito por Júlio Pomar e Paula Rego, fi-
cavam votados à maior das opacidades ou referidos como restos, disfar-
çados ou não, das catacumbas de S. Francisco»89.

328
«Depois dos anos 80, com uma nova vaga de críticos, amnésicos quanto
às décadas anteriores, os métodos de selecção de artistas conheceram
novas logísticas. Um jovem autor, que brilhou numa exposição colectiva e
tinha de facto talento, desalentado com o sequestro e ostracismo que se
seguiram, foi falar com um crítico também jovem, poderoso no estrelato
da corporação, e pedir-lhe um acompanhamento mais ou menos infor-
mal. O crítico, puxando de um cigarro, começou por lhe dizer que, nou-
tras circunstâncias, teria muito gosto em seguir-lhe a obra, analisando-a
e propondo eventuais acertos formais. No entanto, era-lhe impossível re-
ceber mais gente, pois já orientava onze jovens artistas»90.

FERNANDO ROSA DIAS | O CRÍTICO DE ARTE ENTRE «COINCIDÊNCIAS VOLUNTÁRIAS»


E em narrativa que olhava a memória com a ironia da distância e o artificia-
lismo de gestos e poses revividas, ilustrava com o mesmo prazer essa geração:

«Nas artes plásticas, um número já considerável de pintores e de esculto-


res tende a trabalhar em nome da orgulhosa radicalidade das vanguardas,
com frequência sob o patrocínio da crítica nascida nos anos oitenta e a
coberto do marketing agressivo de muitas galerias e lobbies promíscuos.
Gera-se aí, eventualmente um comércio já visível, mesmo se por vezes
arrancado a ferros, quarenta ou cinquenta por cento sobre cada peça
vendida, e na submissão à bazófia dos novos-ricos e a um jogo obscuro
de cotações que eles comandam, em direcção aos patamares do pres-
tígio e do lucro. Alastra nesses meios, com efeito, um comércio especu-
lativo, feito de pequenos sobressaltos à superfície de pequenas bolsas.
(…). Afirma-se o “reacionarismo provinciano das técnicas tradicionais” e
o discurso artístico ganha em presença inflacionária (consumível) o que
perdem autêntica vontade de pesquisa e de comunicação»91.

Em corolário, diríamos que o lugar de Rocha de Sousa enquanto crítico


de arte, no seu lugar tão múltiplo como isolado, definia o seu lugar através
destas querelas. Na declaração das coincidências voluntárias assumira o seu
plano pessoal de crítico de arte, e com ele defendera que o artista, sendo um
investigador nas artes, também tem a legitimidade de a pensar teoricamente.
Por outro lado, no entendimento que fazia da geração emergente na década
de 1980 confrontava o que já não podia ser uma coincidência voluntária, pelo
jogo de interesses que sobrepõe no mesmo acto, exactamente porque não
se exercem apenas sobre o seu próprio lugar ou o seu próprio ser, mas sobre
um plano institucional da arte que se vê cercado, decidindo carreiras alheias.

«Sempre me situei contra os críticos que procuram impor um comporta-


mento criativo aos artistas, certamente aos mais jovens, proclamando o
que devem fazer e como; sempre tentei, na razão da aventura individual,
e por isso mesmo, não me confundir com a crítica das “palmatoadas” e

329
dos “prémios”, sempre sublinhei as atitudes de uma intervenção limpa,
a desalienação das actividades artísticas, a sua extensão social e portan-
to política, advogando até à recorrência as nossas próprias realidades
“provincianas”»92.

«Olhar o mundo é saber-lhe os nomes»


(Rocha de Sousa, Coincidências Voluntárias, p.164)

Notas
1
Rocha de Sousa, cit. in Hugo Ferrão, Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas
«Rocha de Sousa. Ser sem heterónimos», Artes, 2008, sobretudo volume III. Contexto
in Arte Teoria, Lisboa: Faculdade de Belas 2: Os Críticos de Arte e a renovação da
Artes, nº4, 2003, p.90. Das suas edições secção da AICA portuguesa, p.21-42;
destaque-se Para uma Didáctica Introdutória
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

Ana Luísa Barão, A Profissionalização da


às Artes Plásticas em co-autoria com crítica de arte portuguesa (1967-1976),
Hélder Batista (sem data, edição apoiada Tese de Doutoramento em Arte e Design,
pela FCG), adaptado e desenvolvido Faculdade de Belas Artes da Universidade
posteriormente para a disciplina de do Porto, 2015.
Desenho do ano Propedêutico (1979- 3
Cf. Rocha de Sousa: Curriculum Vitae,
1980). Cf. Ibidem, pp.89-90. Para estudo da
FBAUL, 1996, [documento policopiado da
actividade e pensamento pedagógico de
biblioteca e arquivo da FBAUL; cota: TES 44]
Rocha de Sousa, cf. nesta pasta o texto de
Ana Sousa: «Rocha de Sousa: de artista a 4
Rocha de Sousa, Coincidências
professor, pedagogo e didacta». Voluntárias, Porto: Edita-me, 2011, p.13.
2
O próprio Rocha de Sousa deixaria pouco 5
Rocha de Sousa deixaria em livro um
depois da renovação, em 1968, elogios misto de memórias e ficção em torno dos
à nova dinâmica da crítica de arte: Rocha seus tempos na Escola Superior de Bela
de Sousa; “Acção da crítica”, in Diário de Artes de Lisboa, dividindo em duas partes:
Lisboa, 11 Setembro 1969. A renovação da uma enquanto aluno; a outra enquanto
secção portuguesa da AICA em 1967 foi um professor. Rocha de Sousa, Belas-Artes e
momento marcante da história da crítica de Segredos Conventuais, Chaves: Edições
arte portuguesa do século XX. Foi decisivo Tartaruga, 2008.
o I Encontro de Críticos de Arte Portuguesa, 6
«Presença do Algarve», Jornal Comércio
realizado entre 28 e 31 de Março de 1967 de Portimão, 30 Junho 1960. Nesta crónica,
no Centro Nacional de Cultura, iniciativa Rocha de Sousa reflecte sobre um Algarve
de José-Augusto França e de Rui Mário mal explorado, da crise das conservas, da
Gonçalves, após repto a Adriano de agricultura mal aproveitada, da anemia que
Gusmão. Os estudos mais aprofundados abala a indústria corticeira, «sem turismo
são ainda de teor universitário: Cf. Rita e sem projectos», sentenciando: «Apesar
Macedo, Artes Plásticas em Portugal. disso, entre nós, o turismo é planta que
Período Marcelista. 1968-1974, Dissertação ainda não gerou».
de Mestrado em História da Arte
Contemporânea, Universidade Nova de
7
Rocha de Sousa, «Arte Brasileira», Correio
Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e do Sul, Faro, 2 Fevereiro 1961; idem,
Humanas, 1998; Fernando Rosa Dias, A «Teatro O Rinoceronte», Correio do Sul,
Nova-Figuração nas Artes Plásticas em Faro, 5 Janeiro 1961; idem, «Teatro. Os
Portugal (1958-1975) (3 volumes), Tese Fantasmas», Correio do Sul, Faro, 23 Março
de Doutoramento em Ciências da Arte, 1961. O interesse pelo teatro continuaria

330
pouco depois no primeiro livro de autor 11
Rocha de Sousa, «Estética e
que editava, uma peça de teatro escrita em Funcionalidades do Espaço Urbano. Silves
Angola no ano de 1962, com a sua máquina Entretanto», Voz de Silves, 16 Julho 1990
de escrever portátil. Com o título Amnésia, 12
Curiosamente, como disse Rocha de
era sobre um pintor (Leo), que perdera
Sousa em sessão pública, levando não os
quase totalmente a memória, tornando
pincéis do pintor (apenas de desenho),
inútil o seu gesto de pintor e a relação com
mas a sua máquina de escrever portátil
a sua companheira (Sara), processo que o
na bagagem. Em conversa com Rocha de
alienava até à loucura: «Nada. Faço gesto e
Sousa [moderação de Fernando Rosa Dias],
nada (pausa). As tintas são esta pasta que
no âmbito das sessões: Ensino Artístico –
apetece comer. Nada». Rocha de Sousa,
Conversas com Memória [integrado nas
Amnésia. Teatro, Lisboa: Edição de E.
comemorações dos 175 anos da Academia
Fernandes de Matos, s.d. Esta relação com
de Belas Artes de Lisboa], 11 Novembro
o teatro continuaria noutras colaborações
2011 (17 horas), Capela da FBAUL.
como crítico, destacando-se a colaboração

FERNANDO ROSA DIAS | O CRÍTICO DE ARTE ENTRE «COINCIDÊNCIAS VOLUNTÁRIAS»


no jornal Cartaz em 1964 onde, além
13
Rocha de Sousa esteve na Guerra
das críticas regulares de artes plásticas e Colonial Portuguesa nos primeiros anos da
cinema, se juntava a de teatro. mesma, entre 1961 e 1963, acompanhado
e uma máquina de escrever portátil com a
8
«O pintor e o Algarve», Setembro 1960,
qual escreveria crónicas (e cartas) editadas
p.1, 6. O artigo baseava-se em poema de
em 1999. Cf. Rocha de Sousa, Angola 61,
João Brás sobre a luz do Algarve, e Rocha
uma crónica de Guerra, Lisboa: Contexto
de Sousa desenvolvia: «não está descoberta
Editora, 1998. Para fortuna crítica, cf. Maria
pela actual pintura portuguesa, com efeito,
Leonor Nunes; “Rocha de Sousa. O pintor
a beleza do nosso litoral, no seu colorido
que foi à Guerra”, in Jornal de Letras,
habitual, nem a graça cubista das nossas
Artes e Ideias, Lisboa, 2 Junho 1999, pp.8-
casas brancas, suspensas sobre o mar».
9. As cicatrizes e memórias da Guerra
A «graça cubista» retoma a ideia de «vila
Colonial, as marcas pré e pós 25 de Abril,
cubista» que foi a epíteto criado para Olhão
misturavam-se com reflexões sobre arte
nos inícios da década de 1920. A expressão
num quotidiano de encontros amorosos
nascia do uso de «casas cubistas» em
e eróticos no ensaio-romance: Os Passos
conferência de Francisco Fernandes Lopes,
Encobertos, Porto: Figueirinhas, 1986.
Sobre o poeta João Lucio – Conferência
lida no sarau realizado em 8 de Abril de
14
Rocha de Sousa, «O equívoco na
1921 na Sociedade Recreativa Olhanense subversão contemporânea», Diário de
em homenagem à memória do Poeta, Faro: Luanda, 25 Março 1963, p.1, 11.
Tipografia União, 1921. Ver ainda: José 15
Rocha de Sousa, «Exposição 10x3
Dias Sancho, Deus Pan, 1925, com capítulo: – O Diálogo Mutilado e as modernas
«Olhão, Vila Cubista» (originalmente tendências», ABC – Diário de Angola,
publicado in Correio do Sul, nº88, 15 Luanda, 18 Maio 1963.Exposição colectiva
Novembro 1921). Para síntese, cf. Mário no Palácio do Comércio com artistas da dita
Lyster Franco, O Algarve, Lisboa: Imprensa «metrópole» e de Angola: Cruzeiro Seixas,
Nacional, 1929, pp.32-33. Eduardo Pires Júnior, Rocha de Sousa,
9
«Crónica de Luanda», Jornal do Algarve, Fernando Rodrigues, Vaz de Carvalho,
18 Maio 1963. Esta crónica antecipava o Manuel tavares, Ruy de Carvalho, Joaquim
modo literário de Rocha de Sousa, onde do Carmo, Paulo Bacelar e Dorindo
a biografia e a ficção se entranham numa Carvalho,
cumplicidade literária: sublinhamos títulos 16
Rocha de Sousa, «Na exposição de Lena
como: Angola 61, uma crónica de Guerra Justino», ABC – Diário de Angola, Luanda, 5
(1998), Belas-Artes e Segredos Conventuais Julho 1963.
(2008), Coincidências Voluntárias (2011).
17
Rocha de Sousa, «Artistas brasileiros
10
Rocha de Sousa, «Homenagem à expõem em Luanda», ABC – Diário de
Companhia de Rafael de Oliveira», Voz do Angola, Luanda, 31 Maio 1963 [os artistas
Sul, Silves, Março 1961. eram Ademir Martins e Isabel Pons]; idem,

331
«O ABC viu: A exposição de Hirosuke Nacional de Belas-Artes. Entrevista
Watãnuki», ABC – Diário de Angola, Luanda, conduzida por Soledade Martinho Costa»,
17 Julho 1963. Diário de Lisboa, 23 Junho 1979.
18
«A actividade artística em Angola. Rocha 29
Rocha de Sousa, Coincidências
de Sousa expõe claramente, algumas das Voluntárias, Porto: Edita-me, 2011, p.34.
suas ideias» (entrevista a Rocha de Sousa), 30
Rocha de Sousa, «Arte indesejável.
ABC – Diário de Angola, Luanda, 16 Agosto
Silêncio, censura ou réplica violenta põem
1968, p.1, 10. Exposição no Palácio do
em causa a necessidade e a liberdade da
Comércio de Luanda, com 50 trabalhos de
arte», Opção, nº71, 1-7 Setembro 1977,
17 autores.
pp.52-53.
19
Rocha de Sousa, «Na semana de 31
Rocha de Sousa, «Subsídio para a história
inauguração da exposição 10x3: Confronto
trágica do ensino superior artístico em
– Artigo de Rocha de Sousa», Notícias
Portugal», Jornal Novo, Lisboa, 21 Janeiro
de Luanda, nº185, 15 Junho 1963; idem,
1976.
«Tribuna Livre», Notícias de Luanda, 24v
Outubro 1964.
32
Rocha de Sousa, «Cultura. Na ESBAL. O
cartaz da Polónia», Jornal Novo, Lisboa, 23
20
Rocha de Sousa, «Rocha de Sousa
Janeiro 1976; idem, «Cultura. Exposição
responde à nossa chamada – “Neves e Sousa
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

na ESBAL. “Dizer por todos a Liberdade»,


não resiste a qualquer crítica informada”»,
Jornal Novo, Lisboa, 31 Janeiro 1976 [sobre
Notícias de Luanda, 19 Agosto 1963.
exposição de Rogério Ribeiro].
21
Rocha de Sousa, «Um século de Pintura 33
Rocha de Sousa, «Aspectos das Artes
Francesa», A Esfera, Lisboa, Abril 1965.
Plásticas em Portugal: 1974/78», in Sema,
22
Rocha de Sousa; “Artes Plásticas. 1967, Lisboa, nº1, Primavera 1979, pp.2-5.
um ano revelador”, Ao Km Zero (suplemento 34
Rocha de Sousa, «Ascensão e queda
de Reconquista), Castelo Branco, nº1, 6 Abril
das Galerias de Arte em Portugal, in Sema,
1968.
Lisboa, º2, Verão 1979, pp.9-11
23
Rocha de Sousa, «Temas de Arte 35
Rocha de Sousa, «Amanhã as artes que
(11). O Espaço da Pintura», Ao Km Zero
nos consentem», in Sema, Lisboa, nº4, Maio
(suplemento de Reconquista), Castelo
1982p.92-94,
Branco, nº30, Março 1972,
36
Rocha de Sousa, «Artes Plásticas. As feiras,
24
A primeira vez que o seu nome
os feirantes e os outros», ABC – Portugal,
aparece nos colaboradores principais
Lisboa, nº4, Maio 1988, p.9 [artigo sobre
do suplemento literário é no nº526, de
a Feira Arco em Madrid, comentando
29 agosto 1968, com crítica sobre a II
crónicas de Pomar (Expresso) e Pinharanda
Exposição de Arte de Luanda.
(JL)]; Rocha de Sousa, «Artes Plásticas.
25
Rocha de Sousa, «Visita de estudo a Mercados e Mercadores», ABC – Portugal,
Espanha dos alunos da Escola Superior de Lisboa, nº6, Agosto 1988, p.6 [sobre a Feira
Belas-Artes de Lisboa», Diário de Lisboa, 19 de Arte no Forum Picoas, que considerou
Março 1964. cópia de congéneres no estrangeiro em
moda ou modelo pós-moderna, com
26
«A função social da crítica. Mesa-redonda
o perigo de deixar o mundo da arte na
em que participaram Alberto Ferreira,
dependência «do arbítrio das galerias, do
Eduardo Prado Coelho, Fernando Conduto,
“espírito do corpo” de certas instituições
Mário Castrim, Natália Correia e Rocha de
particulares e oficiais, sem nenhum efeito
Sousa», Diário de Lisboa, 27 junho 1969,
regulador de associação de artistas, para-
p.3-4.
sindicais ou outras, e grupos isolados,
27
Rocha de Sousa, «O Folhetim artístico inclusive de coleccionadores»].
de Joaquim Rodrigo», Diário de Lisboa, 20 37
Rocha de Sousa, «Artes Plásticas.
Junho 1979, p.3.
Contingência ou morte», ABC – Portugal,
28
«Literatura Infantil – Inquérito. Responde Lisboa, nº1, Novembro 1987, p.7
o pintor Rocha de Sousa da Sociedade

332
38
Rocha de Sousa, «Artes Plásticas. (Lisboa: SNBA, 1972); Gil Teixeira Lopes
Ensino Superior Artístico e o edifício (Lisboa: Galeria Opinião, 1972; Porto:
que ri» (15 Agosto 1985); «Convento Galeria Diprove, 1973); Luís Pinto-Coelho
de São Francisco: após o terramoto os - Pintura (Lisboa: Galeria Judite Dacruz,
ventos de um despacho» (19 Março 1986, 1973); Tomaz Vieira (Lisboa: SNBA, 1973);
p.8) [reagindo a intenção de desalojar Desenhos de José Cândido (Prisma 73,
ANBA, ESBAL e Museu Chiado]; «Ensino 1974); Luís Dourdil - Pintura (ESBAL,
Superior artístico/Lei de bases do sistema 1975); Manuela Pinjeiro (Museu de Angra
educativo. Manualidades, universidades e do Heroísmo, 1976); Arte Portuguesa
obviedades» (16 Junho 1986, p.8); «Escola (ESBAL, 1976); Jeune peinture portugaise
de Belas-Artes. Existência e Essência (12 (FCG, Paris, 1976); I Exposição Nacional
Abril 1987, p.VII). Ver ainda: Rocha de de Gravura (Lisboa: FCG, 1977); Lagoa
Sousa, «Ensino Superior Artístico. Quem Henriques - desenho (Lisboa: SNBA;
Bloqueia o seu Futuro e porquê?», in O Galeria Jornal de Notícias, Porto, 1977-
Jornal, Lisboa, 10 Junho 1980. 1978); Teresa Gancedo - pintura/objecto/

FERNANDO ROSA DIAS | O CRÍTICO DE ARTE ENTRE «COINCIDÊNCIAS VOLUNTÁRIAS»


desenho, (Lisboa: SNBA, 1978); Bartolomeu
39
«Galeria de arte moderna ardeu em duas
Cid - gravura (ESBAL, 1978); Justino
horas – um tempo escasso para os longos
Alves, Pedro Chorão (Paris: FCG, 1978); A
anos em que timidamente se adquiriu
Árvore nas artes plásticas e na fotografia
o património artístico nele empilhado».
(Lisboa: SNBA, 1979); Gil Teixeira Lopes
Rocha de Sousa, «A cultura portuguesa
(Lisboa: FCG, 1979-1980), Carlos Carreiro
está a arder?», Diário de Notícias, Lisboa, 3
(Lisboa: SNBA, 1980); 200 anos da Casa
Setembro 1981.
Pia - Artistas Casapianos (Lisboa, 1980);
40
Rocha de Sousa, «Polémica. Uma crise de Convenções do Dizer (Lisboa: SNBA,
perfil ideológico ou as ideologias em crise», 1980); Gil Teixeira Lopes - gravura, desenho
Expresso, Lisboa, Novembro 1981, 22-R. (Casa da Cultura das Caldas da Rainha;
Rocha de Sousa fará mais tarde referência a Lisboa: Galeria Tempo, 1980; Coimbra:
esta querela com Leonel Moura e Cerveira Galeria Presença, 1981); Manuela Justino
Pinto: Cf. Rocha de Sousa, Coincidências - tapeçaria e desenho (Lisboa: SNBA,
Voluntárias, Porto: Edita-me, 2011, p.225. 1980); Gente dos Testeis - José Reis -
41
Rocha de Sousa, «Opinião. Ensino fotografia (Lisboa: FCG, 1981); Margarida
Superior Artístico. Carreira docente Lino (1981); Carlos Guerra (Lisboa: SNBA,
esquecida», O Dia, Lisboa, 14 Fevereiro 1981); Lima Carvalho (Porto: Galeria do
1980, p.5. Jornal de Notícias, 1981); Matilde Marçal
(Lisboa: Galeria S. Francisco, 1981); Graça
42 Rocha de Sousa, “O objecto estético e o Antunes (Lisboa: SNBA, 1981); Rogério
objecto quotidiano”, in ArteOpinião, Lisboa, Ribeiro (Lisboa: Casa do Alentejo, 1981);
nº2, Janeiro 1979, pp.2-4. Pedro Chorão - pintura (Lisboa: SNBA,
43
Segundo a nossa pesquisa no espólio 1981); Exposição de Arte - 5º Congresso
de Rocha de Sousa que tem os textos da Universidade Clássica de Lisboa
dactilogrados entre estas datas. (1981); Lima Carvalho (Porto: Galeria do
Jornal de Notícias, [1982]); Nelson Dias,
44
A lista é extensa: João Paulo (Lisboa:
exposição de desenho (Lisboa: SNBA,
SNI, 1965); Hilário Teixeira Lopes - Pintura
1982); Mário Roseira (Lisboa: SNBA, 1982);
(Lisboa: SNI, 1965); Dorinda Carvalho -
Lagoa Henriques - desenhos - objectos
pintura (Lisboa: Galeria Diário de Notícias,
(Lisboa: Galeria Diário de Notícias, 1982);
1967); Miguel Arruda - escultura (Lisboa:
Maria João Gamito (Lisboa: SNBA, 1982);
SNBA, 1969); Gonçalo Duarte (Lisboa:
Exposição de Pintura, inauguração do
Galeria Judite Dacruz, 1971); Isabel
novo Casino do Estoril (Espinho: Galeria
Laginhas - Tapeçaria (Lisboa: Galeria
Solverde, 1982); Luís Dourdil (Lisboa:
S. Francisco, 1971); Josepha d’Óbidos
Galeria Diário de Notícias, 1982); Gil
(Óbidos: Galeria Ogiva, 1971); Criner
Teixeira Lopes - desenho/pintura (Lisboa:
Y Dintel (Lisboa: SNBA, 1970; Lisboa:
Galeria do Diário de Notícias, 1982);
Galeria Opinião; Madrid: Galeria OSMA,
Gil Teixeira Lopes: Retrospectiva de
1971-1972); Lagoa Henriques desenho

333
Gravura, (Galeria de Arte do Casino Estoril, Eduardo Nery. Exposição Retrospectiva
[1983]); Exposição de Cerâmica MEALHA (Lisboa: Museu Nacional do Azulejo; Lisboa:
(Cascais: Galeria Diagonal,1983); Marília Museu da Água; Porto: Museu Nacional de
Viegas (Lisboa: Galeria S. Francisco, 1983); Soares dos Reis, 2003-2004); Gil Teixeira
Exposição de desenho (ESBAL, 1983/84); Lopes. Pintura – Escultura (Torres Vedras:
Helena Sampayo (Sintra: Hotel Tivoli, 1983- Câmara Municipal, 2006).
1984); Mário Rita (Galeria Espaço, 1984); 45
Exposições individuais de Rocha de
Exposição de fotografia/objecto Evergon
Sousa com textos da sua autoria: Lisboa:
(ESBAL, 1984); João Paulo (Lisboa: Galeria
Sociedade Nacional de Belas Artes, 1982;
S. Francisco, 1984); Menez (Lisboa: Galeria
Lisboa: Galeria S. Francisco, 1982; Almada:
111, 1985); 5 Escultores. António Trindade.
Galeria Municipal de Arte, 1990; Lisboa:
João Duarte. Jorge Vieira. José Aurélio.
Galeria João Hogan, 1991; Silves: Museu
Vergílio Domingues (Setúbal: Museu de
Municipal de Arqueologia, 1992; Lisboa:
Setúbal, 1984; José Cândido (Galeria do
Galeria 111, 1999; Lisboa: Galeria 111,
Casino do Estoril, 1985); Eduardo Nery
2002; Lisboa: Cidi Arte Galeria, 2007.
(Lisboa: Galeria Quadrum, 1985); Gil
Teixeira Lopes. Gravura (Lisboa: Galeria
46
Rocha de Sousa, «Rocha de Sousa
de São Bento, 1985); Gil Teixeira Lopes. responde à nossa chamada – “Neves e Sousa
Gitelo (Palmela: Pousada do Castelo; Viana não resiste a qualquer crítica informada”»,
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

do Castelo: Centro Cultural do Alto Minho, Notícias de Luanda, 19 Agosto 1963.


Galeria Barca d’Artes,1986); Alice Jorge 47
Ver nota 40.
(Lisboa: Galeria Bertrand, 1986); Dourdil
(Lisboa: Galeria Bertrand, 1986); Eduardo
48
Rocha de Sousa, cit. Hugo Ferrão, “Rocha
Nery (Lisboa: SNBA, 1986); Margarida de Sousa. Ser sem heterónimos”, in Arte
Cepêda (Lisboa: Galeria S. Francisco, Teoria, Lisboa: Faculdade de Belas Artes,
1986); João Paulo (Porto: Galeria Árvore); 2003, p.95.
Luísa Gonçalves (Árvore, 1984 ou 1988), 49
1) «A indefinição profissional da
Tapeçaria. Eduardo Nery (Lisboa: Museu actividade crítica no nosso País e a
Nacional do Traje, 1987); Helena Sampayo discutibilidade dos usados pela A.I.C:A.»
(Lisboa: Forum Picoas, 1988); Rogério para impor as «atribuições e qualificações»
Ribeiro (Porto: Galeria Nasoni, 1989); Mário necessárias; 2) A ausência fomento de
Dionísio (Porto: Galeria Nasoni, 1989); um «verdadeiro espírito de equipa»; 3) A
José Aurélio. Escultura (Almada: Galeria incapacidade «para superar os habituais
Municipal de Arte, 1989); Rogério Ribeiro litígios com a classe dos artistas»; 4) A
(Porto: Galeria Nasoni, 1990); Renato orientação da A.I.C.A. para um «dirigismo
Cruz - pintura (Lisboa: Galeria de Arte Y cultural indefinido na concepção de
Grego, 1990); Rui Cunha (Porto: Galeria modernidade e alheio às verdadeiras
da Praça, 1991); Lima Carvalho (Porto. exigências da sociedade portuguesa
Galeria EG Associados, 1991); Rogério actual»; 5) «A minha condição de artista,
Ribeiro (Paris: Galerie Magellan, 1992); que reivindico antes de qualquer outra»,
Ana Pimentel (Coimbra: Galeria 5, 1993); que alguns sócios consideram inibidora
José Cândido (Almada: Câmara Municipal, de «uma verdadeira actividade crítica,
1993); Margarida Lino - escultura (Lisboa: esclarecida, capaz e independente» 6) o seu
Galeria Municipal Gymnásio, 1994); Gitelo «natural sentido de independência perante
(Caldas da Rainha: Galeria Osíris, 1995); grupos ou organismos» em defesa de
Isabel Sabino (Lisboa: Galeria Enes Arte isenção à margem de pressões. Rocha de
Contemporânea, 2001); Arman (Lisboa: Sousa, «Carta à A.I.C.A.», in Diário de Lisboa,
Galeria Valbom, 2002); Permanência dos 24 Dezembro 1970, p.17.
Afectos e da Voz. Gil Teixeira Lopes / Rocha 50
Ibidem, p.17.
de Sousa / Matilde Marçal (Caldas da
Rainha: Galeria Osíris, 2002); Maria Velez 51
Pela primeira vez, o júri era composto por
(Lisboa: Galeria Valbom, 2003); Francisco membros da renovada secção portuguesa
Ariztía (Lisboa: Galeria Ara, 2003); Eduardo da AICA. Assumindo uma nova ética e
Nery (Lisboa: Galeria Valbom, 2003); profissionalismo, as actas do júri foram

334
«postas à consulta do público» e em parte arte. A arte moderna não tem o carácter
publicadas em periódicos (Cf. “Notas e de um jogo solitário e gratuito e pode
Comentários”, in Pintura & Não, noº2, Junho ser estudada e compreendida como
1969). O Jurí foi constituído por: José- transformadora de ambientes», in Opção,
Augusto França (presidente), Fernando Lisboa, nº46, 2-9 Março 1977.
Pernes, Rui Mário Gonçalves, Henry Galy- 59
Rocha de Sousa, Coincidências
Carles, Fernando Guedes, arquitecto Nuno
Voluntárias, Porto: Edita-me, 2011, p.189.
San Payo, arquitecto João Castelo-Branco,
Eduardo Anahory e o pintor Fernando
60
Rocha de Sousa, «O artista e o crítico
Azevedo (estes dois últimos sem direito e o silêncio. A possível união de dois
a voto). Sem número de prémios fixo (in)conciliáveis – artista e crítico – na
(segundo o regulamento) foram premiados descoberta de formas de romper o silêncio
António Costa Pinheiro, Joaquim Rodrigo, que sobre eles de abate», Opção, Lisboa,
Eduardo Nery e Vasco Costa. nº39, 20 Janeiro 1977, pp.51-52.
Rocha de Sousa, Coincidências

FERNANDO ROSA DIAS | O CRÍTICO DE ARTE ENTRE «COINCIDÊNCIAS VOLUNTÁRIAS»


61
52
Rocha de Sousa, “Prémio Guérin de
Artes Plásticas. Um salão vazio”, in Diário Voluntárias, Porto: Edita-me, 2011, p.189.
de Lisboa, Lisboa, 21 Novembro 1968, p3 62
Rocha de Sousa, «O Guardador de
(suplemento). Uma espécie de resposta a Rebanhos», texto sobre Carlos para
esta crítica (ou apelo) surgiria através do «Forma e Conteúdo», programa da
prémio Soquil, com outras características Radiodifusão Portuguesa [consultado em
e regularidade. Cf. Rita Macedo, Artes texto dactilografado no espólio de Rocha
Plásticas em Portugal. Período Marcelista. de Sousa]
1968-1974, Dissertação de Mestrado
em História da Arte Contemporânea,
63
«Ensinei apenas a cartilha maternal
Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de – preferia dizer a cartilha natural (único
Ciências Sociais e Humanas, 1998.60-63. código universal) – indispensável para ler e
escrever. A liberdade e a responsabilidade
53
José-Augusto França, “Expo-Aica- da leitura e do escrito pertencem ao aluno».
SNBA-1972”, in Diário de Lisboa, 27 Joaquim Rodrigo, O Complementarismo
Julho 1972, p.7 (suplemento) (reed. in em Pintura. Contribuição para a Ciência da
Quinhentos Folhetins. Volume 1, Lisboa: Arte, Lisboa: Livros Horizonte, 1982, p.94.
Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1984,
pp.332-335.
64
Rocha de Sousa; “Retrospectiva de
Joaquim Rodrigo”, in Diário de Lisboa, 14
54
Informação de Rocha de Sousa em Abril 1972. Rocha de Sousa retomaria a
conversa com o autor, 2017. questão anos depois: Rocha de Sousa, “A
55
Rocha de Sousa, «Artes Plásticas. Negação da Dor”, in Artes Plásticas, Lisboa,
Exposição AICA 74. Sociedade Nacional nº6, Dezembro1990, pp.25-27.
de Belas-Artes», Seara Nova, nº1541, Março 65
Cf. Hugo Ferrão; “Rocha de Sousa. Ser
1974, pp.35-36. sem heterónimos”, in Arte Teoria, Lisboa:
56
Rocha de Sousa, Coincidências Faculdade de Belas Artes, 2003, pp.73-99.
Voluntárias, Porto: Edita-me, 2011, pp.12-14. 66
Rocha de Sousa, “O Folhetim artístico de
57
Ibidem, pp.60-61. Joaquim Rodrigo”, in Diário de Lisboa, 20
Junho 1979, p.3.
58
Encontrámos primeira utilização de Rocha
de Sousa da expressão em crónica de
67
Retomamos ideias nossas anteriores: Cf.
crítica de arte sobre Alberto Burri. Citando Fernando Rosa Dias, A Nova-Figuração nas
Francastel para diferenciar pensamento Artes Plásticas em Portugal (1958-1975)
técnico e pensamento científico, e o seu (3 volumes), Tese de Doutoramento em
reconhecimento de pensamento plástico, Ciências da Arte, Universidade de Lisboa,
defendia uma investigação dos próprios Faculdade de Belas Artes, 2008, sobretudo
meios da arte, liberto do conteúdo, sem volume III. Contexto 2: Os Críticos de
perder responsabilidade ética. Rocha de Arte e a renovação da secção da AICA
Sousa, «A investigação do domínio da portuguesa, p.21-42. Sobre esta querela,
ver também: Pedro Lapa, Joaquim Rodrigo:

335
a contínua reinvenção da pintura, Tese de mentiras, talvez inconscientes», «insiste
Doutoramento em História, Faculdade de em dar palmatoadas e classificações
Letras da Universidade de Lisboa, 2013, professorais», e termina afirmando que «ao
pp.262-264. mesmo tempo V. diz coisas encantadoras
e cómicas». Ernesto de Sousa, «Resposta
68
José-Augusto França, “Folhetim artístico.
(polémica) de Ernesto de Sousa a Rocha de
Joaquim Rodrigo e os seus alunos”, in Diário
Sousa», in Opção, Lisboa, nº63, Julho 1977.
de Lisboa, 7 Junho 1979.
78
Publicado em 1916, a crítica anónima
69
Rocha de Sousa, Coincidências
lamentava que «a doença futurista tivesse
Voluntárias, Porto: Edita-me, 2011, p.175.
transposto as fronteiras do nosso lindo
70
Ibidem, p.176. Portugal» (A Lucta, Lisboa, 7 Novembro
71
Para ver a fortuna crítica a esta exposição 1916). A questão marcou a discussão da
remetemos para o levantamento in catálogo modernidade portuguesa, tendo lugar
da exposição: Perspectiva: Alternativa Zero, relevante nos anos de 1920. Cf. Patrícia
Porto: Fundação de Serralves, 1997, pp.171- Esquível, Teoria e Crítica de Arte em
285. Para problematização da fortuna Portugal (1921-1940), Lisboa: Edições
crítica a esta exposição, incluindo esta Colibri, 2007, pp.21-31.
querela, cf. Isabel Nogueira, «A exposição 79
Ernesto de Sousa, «Resposta (polémica)
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

Alternativa Zero: Tendências Polémicas na de Ernesto de Sousa a Rocha de Sousa», in


Arte Portuguesa Contemporânea (1977), Opção, Lisboa, nº63, Julho 1977.
os seus 40 anos e a sua Recepção Crítica»,
80 Ibidem.
in Convocarte – Revista de Ciências da
Arte, Lisboa: Faculdade de Belas Artes da 81
Rocha de Sousa, «Resposta (sem
Universidade de Lisboa: FBAUL-CIEBA, nº3, polémica) de Rocha de Sousa a Ernesto
Dezembro 2016, pp.309-323 [disponível: de Sousa: ainda e sempre Almada é tema
http://convocarte.belasartes.ulisboa.pt/]. de polémica», Opção, Lisboa, nº 64, 14-20
Julho 1977, p. 64-47.
72
Rocha de Sousa, «Alternativa Zero. Para
além das más assimilações e saloismos, 82
Rocha de Sousa, Coincidências
o mérito de lançar a polémica», Opção, Voluntárias, Porto: Edita-me, 2011, p.130.
Lisboa, nº46, 10-17 Março 1977, p.54. 83
Ibidem, p.63.
73
Ibidem. 84
Cf. Ibidem, pp.198-201.
74
Ibidem. 85
Ibidem, p.201.
75
Rocha de Sousa, «Almada e o número da 86
Rocha de Sousa, «Depois do
nossa identidade. O sentido internacional
Modernismo», «Forma e Conteúdo»,
da arte só é concebível sem a destruição
programa da Radiodifusão Portuguesa,
das diversas culturas humanas. Ernesto de
Janeiro 1983 [consultado em texto
Sousa e José Augusto França falam sobre
dactilografado no espólio de Rocha de
o pintor das gares-marítimas no ciclo de
Sousa]
conferências de aproximação audio-visual
que decorreu na Sociedade Nacional de
87
Rocha de Sousa, Coincidências
Belas-Artes de Lisboa», in Opção, Lisboa, Voluntárias, Porto: Edita-me, 2011, p.82,
nº61, 23-29 Junho 1977, p.54-55. 123, 173.
76
Ibidem.
88
Ibidem, p.198.
77
Para explicitar este síndroma Ernesto
89
Ibidem, p.82.
de Sousa apontava alguns pontos, 90
Ibidem, p.183.
onde se centrava num ataque pessoal,
assumidamente dirigido a você («V.»):
91
Ibidem, p.173.
«comete faltas deontológicas», «precipita- 92
Ibidem, p.12.
se irremediavelmente», «comete
irregularidades administrativas», fecha-se à
compreensão do outro para dizer grandes

336
A Hora Zero
Maria João Gamito
Professora Catedrática de Arte Multimédia, Faculdade de Belas Artes,
Universidade de Lisboa. Investigadora integrada do CIEBA.
[email protected]

A hora de homenagem pode ser também, de algum modo, a hora zero. É


uma hora fácil e uma hora difícil. Homenageiam-se, no caso de alguém que
se notabilizou, e antes de tudo, os factores irreversíveis do mérito, a obra ou as
qualidades que nos legaram marcas culturais indeléveis, o sentido maior da
presença e da permanência num percurso vital [in]comum. (Sousa, 1988, p. 72).

Rocha de Sousa escreve este texto para o livro «… o risco inadiável». O


caderno do desenho, no contexto da homenagem que a Escola Superior de Belas-
Artes de Lisboa prestou a Lagoa Henriques por ocasião da sua aposentação em
1988. Trinta anos mais tarde (e vinte depois da sua própria aposentação) cabe a
Rocha de Sousa ser homenageado, no pleno direito das palavras que dedicou a
Lagoa Henriques. Pela segunda vez, e de novo por iniciativa de Fernando Rosa
Dias, participo no tributo que a Faculdade de Belas-Artes da Universidade de
Lisboa presta a Rocha de Sousa, desta vez com a tarefa de abordar o trabalho
que desenvolveu nos domínios do diaporama, do filme e do vídeo.
«Escapar à tentação da objectividade dos dados, à tentação da notícia, à
tentação da crónica, à tentação do elogio, à tentação do texto, à tentação da
imagem. Escapar, levando alguém de quem se gosta a escapar da vocação ico-
nófila de tudo o que se oferece à contemplação, tornando-se objecto do discur-
so dos outros», escrevi então, então como agora a tentar furtar-me à asfixia das
tentações que recuam à razão etimológica dos tributos ou à inclinação memo-
rialista dos monumentos que transformam o mundo no gigantesco comentário
que, de cada vez, simula fazê-lo surgir pela primeira vez, e em que ele se infiltra
para ser recordado. Porque falar de Rocha de Sousa é ainda ouvi-lo enquanto
sujeito que discursa, investido da responsabilidade do humano. Mesmo que
seja de um humano intransigentemente cultivado no absurdo e mesmo que o
discurso se torne incómodo nas suas obsessões. E se, por um lado, é na múltipla
coincidência construída nos domínios disciplinares que atravessa, que reside a
singularidade do legado intelectual de Rocha de Sousa, por outro, é no firme
propósito da sua voluntária solidão que encontramos o princípio solidário que
as torna coincidentes, a partir de uma história que nunca pôde ser apenas (a)
sua, ainda que tenha sido eleita como uma espécie de mundo reduzido ao seu
claustrofóbico centro gravitacional.

337
Neste sentido, ouvir Rocha de Sousa é perscrutar uma obra que insiste em
sobreviver no alheamento amnésico do presente. Porque afinal será no desafio
das visibilidades em risco que se inscreve a justiça das homenagens e a glória
das imagens habitadas por um excesso de memória. Mais ainda quando, nesse
excesso, elas só nos podem dar a ver a inconstância de tudo o que a elas adere
na passagem dos dias, e que as palavras tentam resolver no balbucio dos ca-
dernos em que se ensaiam textos como este. Por isso, e pelo carácter transitivo
que lhes está associado, designei por ‘Caderno’ cada um dos grupos em que
se estrutura a actividade de Rocha de Sousa ao nível do diaporama, do cinema
e do vídeo: materiais didácticos; séries e programas televisivos, e documentá-
rios; cinema de ensaio.

Caderno 1: materiais didácticos


Na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa (ESBAL), onde inicia funções
docentes no dia 2 de Outubro de 1964, Rocha de Sousa contraria o entendi-
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

mento, defendido pela Direcção da Escola, de um ensino cegamente desviado


dos objectivos específicos das disciplinas de natureza tecnológica, desenvol-
vendo estratégias e metodologias pedagógicas dirigidas ao contacto directo
com materiais e técnicas e à dimensão projectual dele decorrente1. Mas esse
desígnio só parcialmente pode ser cumprido:

Excluindo a gravura … e dispersas tentativas de iniciação à tecnologia da


madeira, … a Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa nunca foi, como de-
terminava a reforma de 1957, apetrechada com equipamentos destinados
ao cumprimento científico e artístico de aproximações aceitáveis ao vitral,
ao mosaico, à tapeçaria, à pedra, ao gesso, à madeira, à própria gravura.
Nesta altura da sua vida, a Escola não dispunha de um simples projector de
diapositivos, conservando um retroprojector antiquíssimo que fumegava a
trabalhar por pequenos períodos. (Sousa, 1997, p. 8).

No seu programa de voluntárias coincidências, de outro modo escreverá


este desvio na obra de ficção Belas-Artes e segredos conventuais:

… era possível, com instrumentos rudimentares ou adaptados de outras


funções, realizar integralmente gravura (como depois aconteceu), cerâmi-
ca, com incidência no tratamento pictórico do azulejo, exploração diversa
das madeiras e dos metais, projecto e tecelagem de tapeçaria, sobretudo
numa perspectiva das matérias, materiais e processos … e quase tudo o que
o elenco das cadeiras propunha. Tais cadeiras ocuparam apenas o lugar de
disciplinas caducadas, não foram alteradas nem apetrechadas segundo a
nova organização, tendo sido inseridas nas oficinas existentes, praticamente
de «vão de escada». O próprio Director … nunca negociou de facto a sua
fixação na ideia de que as tecnologias eram cadeiras teórico-práticas nas

338
quais o aluno acedia ao projecto e, na medida do possível acompanharia a
sua execução por operários especializados. … Embora as pessoas ligadas
à reforma de 57 advogassem a necessidade do artista aceder aos materiais
e ao ensaio das suas articulações formadoras naquele âmbito, realizando aí
mesmo alguma investigação e frequentando, em museologia de imagens,
a história dos vários procedimentos …

Dois ou três professores travaram uma batalha clandestina no grupo das ca-
deiras de tecnologia, procurando, a par dos normais e indispensáveis enqua-
dramentos teóricos, gerir directrizes práticas, iniciadoras da capacidade para
manipular os materiais de cada meio estudado. Essa base . permitiria que os
alunos pudessem aceder de algum modo ao projecto. A metodologia, ins-
taurada com propriedade na gravura, dado haver na Escola prensas antigas
recuperáveis, abriu espaço propedêutico ou de completamento científico a
artístico numa das caves mais híbridas, tratando primeiro o estudo dos meios
capazes de fornecerem visibilidade ao caminho do projecto — diferente de
tecnologia para tecnologia — e orientando depois a mobilidade técnico-ex-

MARIA JOÃO GAMITO | A HORA ZERO


pressiva dos alunos …

… os efeitos deste esforço … tiveram repercussões imprevistas, de trabalho,


a descoberta simultânea de bons autores e belíssimas gravuras. Esse facto
contribuiu para dinamizar outros grupos, turmas que inventaram teares ex-
perimentais e estudaram práticas de tecelagem em tapeçaria, ou pequenas
equipas, por exemplo, cujo interesse pela cerâmica os impeliu para o estu-
do das pastas, incluindo suportes que logravam cozer e pintar no exterior.
(Sousa, 2009, p. 83-84).

Rocha de Sousa não tenta apenas suprir as carências que inviabilizam o


normal funcionamento das tecnologias previstas na ‘Reforma de 57’. No quadro
mais amplo da pedagogia artística — que entende como invenção poética por
considerar que não há pedagogia à margem do imaginário artístico (Sousa, 1986)
—, insiste na necessidade de uma formação que mobilize uma maior diversidade
de meios, como a fotografia, o diapositivo ou o filme de 8 mm, imprescindíveis
à expansão dos procedimentos técnico-artísticos, por sua vez indissociáveis da
qualidade poética do ver e do fazer em arte.
Em carta (com carimbo de entrada de 17 de Maio de 1974) dirigida ao
então Director, Professor Escultor Martins Correia, e invocando um contacto
pessoal prévio, expõe e propõe o seguinte:

1. No âmbito da actual pedagogia artística, e dentro de critérios técnicos


que na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa se têm desenvolvido, o
uso da imagem (estampas, diapositivos, cinema) assume uma importância
fundamental.

339
2. Como complemento da comunicação pelo diapositivo, e ao mesmo tempo
como campo de experiência visual, o cinema seria da maior utilidade nas aulas
dos cursos de Escultura e Pintura. Seria possível assim desenvolver técnicas
de apropriação da realidade, fazendo pequenos filmes didácticos de 8 mm
e projectando-os como apoio do ensino e base de discussão. Entre os temas
que se poderiam abordar nos filmes contam-se as cadeiras de Tecnologia
de Escultura e Pintura, problemas de composição, educação visual, etc.

3. Proponho, portanto, que a Escola adquira o seguinte material de que dou


possíveis estimativas de custo, segundo as informações gerais que obtive

a) Câmara de filmar Super 8, zoom automático, eléctrica = 9.000$00


b) Projector correspondente = 8.000$00
c) Lâmpada de interiores = 2500$00
d) Coladeira = 3.000$00
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

4. Os professores poderiam, com os alunos, encarregar-se de programar e


executar os filmes, devendo a experiência ser extensiva a vários grupos con-
forme as matérias. Nesse sentido, proponho-me tratar o tema da Tapeçaria e
da Iniciação da Pintura, bem como um estudo semiótico do Largo da Escola,
entre outras coisas possíveis.

A resposta nunca terá chegado e a concretização da proposta ficaria adia-


da até à implementação dos planos de estudos dos cursos de Artes Plásticas
e de Design, saídos da Reforma de 1974-19752. Como escreve ainda Rocha
de Sousa na obra citada:

Houve então, entre outros, alunos mais tardios que vieram … gerar condi-
ções efectivas de aquisição de fornos eléctricos, arranjo de novas prensas,
montagem de um estúdio fotográfico com laboratório geminado, além da
aproximação ao vídeo por meio de um mini-atelier polivalente, duas câma-
ras, régie, reforço de edição. (Sousa, 2009, p. 84).

É no contexto dessa implementação que, no elenco das disciplinas prá-


ticas de opção, e mais especificamente no contexto das disciplinas de matriz
tecnológica, surgem a Fotografia e as Técnicas Áudio-Visuais3, ambas com
três níveis — iniciação, desenvolvimento e investigação —, à semelhança do
que acontece com as restantes tecnologias. Nos novos planos de estudos,
Rocha de Sousa passa a leccionar Pintura (4.º ano), Tapeçaria I, II e III e, por
um breve período, Introdução às Artes Plásticas e ao Design, disciplina do 1.º
ano, comum aos quatro cursos, na altura existentes: Artes Plásticas – Pintura,
Artes Plásticas – Escultura, Design de Comunicação e Design de Equipamento.
Com uma prática pedagógica instituída na interdisciplinaridade entre as Artes

340
Plásticas, o Design e a Comunicação Visual, entendida em sentido lato, é nela
que testa e consolida os conceitos de «mobilidade visual», «forma plástica in-
tegrada» e «novos modos de formar», que informam essa prática nos vários
domínios em que a exerceu.
A «mobilidade visual» é indistinguível da «mobilidade geral da consciência»
(Sousa, 1986, p. 36) e inseparável dos conceitos de aparência e representação.
Na esteira de Roger Garaudy (Um Realismo sem fronteiras), «olhar é um acto»,
uma operação de rastreio do mundo, comum ao artista e ao observador — o
mundo e a arte como «obra aberta» nos termos em que a enuncia Umberto
Eco — , comum também a qualquer prática pedagógica porque é esse mundo
estilhaçado e movente que o professor enfrenta num espaço subtraído à esta-
bilidade e às hierarquias, «um espaço plural» e múltiplo, descentrado, «ponta
emergente de qualquer coisa em contínua definição, da qual a parte maior é
a invisível» (Sousa, 1986, p. 37). Perante uma realidade que apenas se revela
na múltipla circunstância das suas aparências — elas próprias construídas como
modelo da realidade — , a mobilidade visual é, então, a empenhada condição
do ver e do fazer, ambos desdobrados no tempo e nas operações técnicas

MARIA JOÃO GAMITO | A HORA ZERO


que desmontam a realidade. Neste sentido, o artista é tanto o criador da sua
própria técnica como o autor das máscaras4 que desvela, sendo nesse des-
velamento que se prefigura a solidão solidária atribuída por Camus (1958)
ao pintor Jonas, aí se inscrevendo também a singularidade do combate que
o artista trava com o mundo, como afirmava Picasso, retomado por Rocha de
Sousa («Picasso uma forma de combater»).
«Forma plástica integrada» considera os dois conceitos — o da ruptura e
o da integração — propostos por Umberto Eco (1970), para, tanto referindo as
obras que subvertem as convenções próprias das «apropriações culturalistas
ou de mercado», como as que se integram nas «necessidades colectivas» do
espaço público, questionar a relação interdisciplinar, ao nível do projecto e da
construção à escala desse espaço, dos objectos em transformação no tempo
social e histórico.
«Novos modos de formar» recupera a expressão «modos de formar», en-
tendidos por Umberto Eco (1971) enquanto actos discursivos, expandindo-a
às possibilidades construtivas/expressivas das obras realizadas à margem dos
processos e formulações convencionais.
Se nas Artes Plásticas, sobretudo em Pintura, estes conceitos se conjugam
na abordagem de questões como as da construção, reconstrução e represen-
tação no e do espaço pictórico, para problematizar um real sempre em fuga5,
no Design o questionamento recai sobre a organização do espaço envolvente
e os equipamentos urbanos, cabendo à Comunicação Visual a problematização
dos sistemas visuais e audiovisuais, no âmbito da fotografia, do diaporama, do
vídeo e do cinema.
Enquanto coordenador da disciplina Introdução às Artes Plásticas e ao
Design, Rocha de Sousa produziu e apresentou unidades didácticas no formato

341
de diaporama e vídeo que consubstanciam estes conceitos, e aos quais se vêm
juntar as metodologias projectuais, propostas por Bruno Munari (1978, 1979,
1981), o conceito de «pensamento plástico», desenvolvido por Pierre Francastel
(1965), e as formulações de Rudolph Arnheim (1976) relativas à estruturação
do campo visual e aos elementos que o compõem. Na sua maioria desapa-
recidos, de alguns deles sobram os roteiros, cujo início aqui se apresenta:

Projecto artístico
Esta unidade tenta abordar a realidade do projecto artístico, no espaço
cultural de diversos contextos e situações históricas, segundo uma pers-
pectiva de significação e uso movente ou relativista. Ou seja: cada obra
de arte, produto de certas concepções e meios operativos, teria sempre
uma condição inacabada ou um destino significante a fazer-se. Todo o
objecto artístico é, com efeito, um objecto em movimento, um objecto
que não cessa de se transformar no tempo social e no tempo histórico …
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

A ideia dominante desta proposta inicial viria assim conferir à obra de


arte, fosse ela de pintura, de escultura, de design, de arquitectura ou de
outra área de construção/expressão, uma dinâmica específica, uma di-
mensão (que lhe é intrínseca) de mudança e de projecto; teríamos então
o objecto como projecto de si mesmo. («Roteiros/Textos diaporamas»).
Outros modos de formar
Este série de diapositivos propõe uma abordagem visual, sem uma
ordenação específica e sem imperativos cronológicos, sobre a proble-
mática dos novos modos de formar — de outros modos de estabelecer
comunicações expressivas …
E, quando falamos de novos modos de formar (ou de outros modos de
formar) queremos referir certo tipo de acções, certo tipo de projectos
formais, que se afastam deliberadamente dos géneros plásticos tradi-
cionais. («Roteiros/Textos diaporamas»).
Forma plástica integrada
A formação artística mais adequada às solicitações do nosso tempo
deve permitir, da parte dos operadores, duas opções aparentemente
opostas ou pelo menos distintas: o caminho dos apocalípticos e o ca-
minho dos integrados.
Esta perspectiva polémica e dialéctica, proposta por Umberto Eco, re-
verte lucidamente para um “não-sistema” dicotómico de intervenção
estética no mundo ou nas sociedades actuais. Os artistas apocalípticos
renunciam ao concerto com as soluções consumistas ou ou com a cons-
trução de apelo tradicional, integrável num universo culturalista que as
arquitecturas económicas vão produzindo. São os recusadores. São os
que, introduzindo no espaço cultural modos de formar de ruptura, anun-
ciam a necessidade de substituir os valores (mesmo dito modernos) já
institucionalizados.

342
Os artistas de integração, longe de recusarem as aquisições da cultura
contemporânea, procuram entender a forma plástica em novos sistemas
de aplicação e integração. Não se trata de uma cedência pura e simples
às pressões de mercado embora isso aconteça com frequência — mas
de uma maneira de tornar útil, no bom sentido da palavra, o acerto das
formas artísticas com a perspectiva de um universo comunitário cuja
humanização passa, cada vez mais, pela envolvência estética e pela sua
integrada função pedagógica. («Roteiros/Textos diaporamas»).

Na Sociedade Nacional de Belas-Artes, cuja Direcção e Conselho


Técnico integra entre 1968 e 1980, Rocha de Sousa partilha com Luís Filipe
de Oliveira a leccionação de uma cadeira de Educação Visual no âmbito do
Curso de Formação Artística. Aí são testados e desenvolvidos os princípios
gerais que virão a informar o livro Para uma didáctica introdutória às artes
plásticas, posteriormente adaptado à disciplina Desenho: área Artes Plásticas
(1979)6. É neste contexto que, a convite de Armando Rocha Trindade, na al-
tura Presidente do Instituto de Tecnologia Educativa, Rocha de Sousa — com

MARIA JOÃO GAMITO | A HORA ZERO


colaboração de Helder Batista e realização de Eduardo Martins — planifica
e grava uma série de catorze lições em vídeo, organizadas em torno das
dinâmicas da percepção visual e dos elementos estruturais da linguagem
plástica. Com uma duração média de vinte minutos, delas se apresentam as
sinopses das treze de que há registo:

Desenho (Artes Plásticas)


• 1.ª lição — Introdução. A visão
Sumário: «Introdução. Conceito de visão: olhar e ver. Psicologia da visão.
Visão e representação. Leitura de obras: modos de representar».
• 2.ª lição — Elementos estruturais da linguagem plástica
Sumário: «Introdução. Visão: o ponto e a linha como elementos da reali-
dade e da obra plástica. Formulação pelo ponto e pela linha. Tipos de
linha e seus valores expressivos: modelação, colocação, estabilidade,
dinâmica, espaço, ritmo».
• 3.ª lição — Elementos estruturais da linguagem plástica: textura
Sumário: «Texturas naturais. Texturas artificiais regulares e irregulares.
Estampagem e construção. Texturas normalizadas e industriais. Leitura
em obras de arte».
• 4.ª lição — Cor/Valor
Sumário: «Percepção visual, luz e espectro solar. Sistemas ordenadores
das cores; cores primárias, secundarias, intermédias; misturas aditivas
e subtractivas; complementaridade, contraste e harmonia. Noção de
valor: intensidade cromática e relações cromáticas. Escalas. Aplicações».
• 5.ª lição — Cor/Valor (cont. da 4.ª lição)
Sumário: igual ao da 4.ª lição.

343
• 6.ª lição — Simplificação/Acentuação
Sumário: «Relação entre percepção visual e representação; testes de sim-
plificação e acentuação; simplificação por nivelamento e por acentuação;
ver e exprimir; análises sintéticas de casos típicos».
• 7.ª lição — Rotação/Sobreposição
Sumário: «Mobilidade visual e rotação como via de entendimento das for-
mas; rotação e colocação; colocação e significado; a visão cubista; a so-
breposição e o espaço; a sobreposição e a expressão».
• 8.ª lição — Construção/Representação
Sumário: «Aspectos estruturais e construtivos da forma plástica. O plano e
a sua estrutura. Condicionantes. Tipos de representação».
• 9.ª lição — Movimento/Ritmo
Sumário: «Conceito de movimento. Movimento real ou explícito; movimen-
to implícito; movimento potencializado. Ritmo enquanto modulação e
modelação do movimento. Técnicas exemplificativas da expressão de
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

movimento e de ritmo».
• 10.ª lição — Espaço
Sumário: «Espaço real e espaço plástico. Espaço bidimensional tridimen-
sional. O espaço na escultura. Sobreposição, perspectiva como efeitos
criadores de espaço. Tipos de espaço na pintura e processos de o variar
e dinamizar».
• 11.ª lição — Agrupamentos/Partes
Sumário: «As partes e a composição. Noção de peso. Reso e equilíbrio. A
parte pela relação analógica das formas. A parte como agrupamento de
formas, sua ordenação e identificação. A parte na obra plástica».
• 12.ª lição — Forma pictórica
Sumário: «Forma pictórica, processos de fazer específicos de cada autor.
Alargamento do conceito de forma plástica, técnicas mistas e interven-
ções. Resolução documentada: o pintor e o visível».
• 13. ª lição — Forma escultórica
Sumário: «Abordagem geral de esculturas de carácter geométrico e abstrac-
to. Comentário tecnológico. Representação ao nível do retrato. Modelação
e interpretação».

É também com produção do Instituto de Tecnologia Educativa que Rocha


de Sousa realiza em 16 mm, Forma Plástica, «narração fílmica comentada em
“off” sobre o processo de instauração de uma pintura», utilizado nas lições do
Ano Propedêutico. (Sousa, 1996, p. 12).
Na sequência dos programas elaborados a convite da Direcção Geral
do Ensino Secundário, em 1992 é convidado pelo Gabinete de Educação
Tecnológica, Artística e Profissional a elaborar o programa de Tecnologia
do Vídeo (Fotovídeo), disciplina que integrava o plano curricular do Curso
Tecnológico de Artes e Ofícios.

344
O reconhecimento da actividade desenvolvida no Instituto de Tecnologia
Educativa, da experiência dos programas televisivos e dos filmes de ensaio
entretanto realizados, bem como da sua colaboração ao nível de progra-
mas, manuais e apoio pedagógico a diversas iniciativas promovidas a nível
do ensino básico e secundário, Rocha de Sousa é «nomeado, em regime de
acumulação, afecto às actividades do Núcleo de Estudos de Tecnologia do
Ensino a Distância do Instituto Português de Ensino a Distância» (IPED), por
despacho da Secretaria de Estado do Ensino Superior (6 de Maio de 1981).
Em 1982 volta a ser convidado por Armando Rocha Trindade, então
Presidente do IPED, para pertencer, como Professor Auxiliar Convidado, ao
Núcleo de Tecnologia desse Instituto onde, em 1989 — e já como Universidade
Aberta — virá a ser membro do Conselho Científico.
Na acta da reunião do Conselho Científico-Pedagógico desta instituição
em que — sob parecer dos Professores Lagoa Henriques, na altura Presidente
do Conselho Científico da ESBAL, Helder Batista (ESBAL) e Maria Emília Ricardo
Marques, responsável pelo Núcleo de Estudos de Tecnologia de Ensino a
Distância do IPED — a proposta de convite é aprovada por unanimidade, consta:

MARIA JOÃO GAMITO | A HORA ZERO


Em síntese destes pareceres, concluiu o conselho que a individualidade
referida tem manifestado como Professor da Escola Superior de Belas Artes
de Lisboa uma singular capacidade de programação e ao nível da constru-
ção e da estética da imagem.

A sua acção tem-se desenvolvido, com nível científico, técnico, pedagó-


gico e artístico, em áreas como as da comunicação visual, problemas tec-
nológicos da imagem, pintura, cinema, televisão, crítica de arte, ensaio e
docência nas disciplinas de índole artística. Revelou sempre capacidade
notável, em tais campos, de abertura a novas experiências, procurando ex-
plorar e manipular conceitos em ordem a respostas teóricas e práticas que
o meio social – e a pedagogia artística – vêm solicitando. Independente,
com marcado cunho pessoal nas suas opções estéticas e outras, leva para
as relações humanas de tipo profissional o sentido de descobertas actuais
no domínio de novos conceitos de percepção/representação, sendo de
destacar os seus trabalhos áudio-visuais de carácter pedagógico, no cine-
ma de ensaio e em divulgação artística através da televisão.

O perfil do Doutor Rocha de Sousa, complementado com o que o contacto


directo revela, permite afirmar a existência de uma total adequação do que
foi observado e ou inferido à competência específica que se deseja para a
sua participação no grupo de estudos de tecnologia de ensino a distância,
no que respeita a problemas de mensagem icónica, dentro da necessária
diversidade de canais e suportes e dando particular relevo a fenómenos
imagéticos d(e) referência, conotações sócio-culturais, etc.

345
Cumpre ainda referir, dentro do trabalho feito para o ano propedêutico, a
facilidade comunicativa de um discurso didáctico que, apesar de o ser, não
abandonou preocupações estilísticas fortemente persuasivas e que apela-
vam com êxito para a atenção e memória dos discentes. (Sousa, 1996, p. 8).

Na Universidade Aberta exerce funções docentes no curso de Mestrado


em Comunicação Educacional Multimédia onde lecciona, com regência, a
disciplina de Tecnologia e Discurso Vídeo7. É ainda na Universidade Aberta
que inicia a cadeira de Didáctica da Educação Visual, para a qual elaborou
um manual homónimo8 e escreveu o guião de quatro vídeos, cuja realização,
em 1995, a cargo de Ana José e Ana Parente, supervisionou:

Didáctica da Educação Visual: Criatividade ou o Homem em Aprendizagem


Descrição: «… procura, de acordo com o manual da “Educação Visual”, afir-
mar e aprofundar a decisiva importância de um ver cultural na formação
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

do indivíduo como agente de civilização e criador do mundo».


Didáctica da Educação Visual: Percepção Visual e Representação
Descrição: «… procura colocar em termos práticos e pedagógicos os pro-
blemas gerais de relação entre a visão e a representação, conjugando
a aprendizagem do ver com a aprendizagem do ser, na integração do
Homem como agente de civilização».
Didáctica da Educação Visual: A Invenção do Ver
Descrição: «Tratamento de problemas relativos à superação do ver e da
representação corrente: os temas de escolha, as linguagens visuais e
a sua reinvenção, a carga do mundo do consumo, ruínas, memórias, o
paradoxo das suas belezas, verdades e mentiras. A força ordenadora e
poética do ver».
Didáctica da Educação Visual: Memórias para o Desenho do Mundo
Descrição: «Diferenças do espaço edificado. As assimetrias do mundo
construído. Importância da referencia patrimonial, relação antigo/novo:
conservação da memória cultural do mundo, compatibilização cresci-
mento/desenvolvimento. Educação visual e reformulação humanista do
desenho do mundo».

No contexto da actividade desenvolvida na Universidade Aberta, são ainda


de destacar as seguintes unidades didácticas em vídeo, nas quais Rocha de
Sousa participa como autor e/ou realizador:

Tapeçaria Portuguesa de Portalegre9


Descrição: «Arte, técnicas, materiais e história da tapeçaria de Portalegre».
Tapetes de Arraiolos (1985)
Descrição: «Noções etnográficas e abordagem histórica. Execução e res-
tauro dos tapetes de Arraiolos».

346
Com a escultora Luísa Gonçalves, é autor de:

A Laranja: Ver; Refazer; Inventar10


Descrição: «Experiências de aprendizagem no domínio plástico. Os exem-
plos apresentados mostram a imensa via exploratória que um simples
fruto, a laranja, de forma elementar, pode sugerir».
O Pássaro: Ver, Refazer, Inventar (1997)
Descrição: «Utilizando uma longa tradição de construção de objectos arte-
sanais em papel, por dobragem, suscita-se uma diversa e expressiva ex-
ploração desse espaço do ver, do refazer, do inventar, misturando referen-
cias e abordando dimensões poéticas e pedagógicas aos usufruidores».

Participou ainda na concepção e realização de unidades didácticas em


vídeo, sobre temas como a poesia e a literatura portuguesas, destinadas a li-
ções presenciais ou de ensino a distância, de que aqui se deixa o registo de
duas: O dia em que nasci e Moinho sem velas11.
Caderno 2: Séries e Programas Televisivos, e Documentários

MARIA JOÃO GAMITO | A HORA ZERO


Entre 1973 e 1988, Rocha de Sousa é autor de diversas séries e programas
televisivos, na sua maioria com realização de José Elyseu. Em estreita relação
com a actividade crítica que desenvolve em diversas publicações periódicas
nacionais12, e contando com depoimentos de artistas, críticos, historiadores
de arte e galeristas as temáticas destes programas estabelecem com elas uma
estreita relação, mantendo também uma linha de continuidade com grande
parte das questões que informam a sua didáctica e a sua pedagogia, nomea-
damente as que se referem à mobilidade visual, aos elementos estruturantes
da linguagem gráfica e aos processos construtivos do fazer em arte. De acor-
do com a informação disponibilizada pela RTP, os conteúdos constantes nas
fichas técnicas dos programas são os seguintes:

Perspectiva (1973-1975)13
Com colaboração de José Luís Porfírio, a série aborda «temas de
arte e reportagem sobre as mais significativas exposições presentes em
Lisboa» (Sousa, 1996, p. 57).
• A encomenda (Emissão: 30.01.1974)
«… a pintura religiosa e a influência que a encomenda e respectivo con-
trato detinham no trabalho do artista/pintor e as exposições de escultura
de José Aurélio e Alfredo Queiroz Ribeiro, artistas plásticos, em Óbidos
e Lisboa respectivamente».
• Max Beckmann (Emissão: 21.02.1974)
«… a vida e a obra do pintor expressionista alemão Max Beckmann, as
obras do pintor José Cândido e a exposição dos grupos artísticos espa-
nhóis “El Paso” e “Equipo Crónica”, patente em Lisboa».
• Expo AICA SNBA 74 (Emissão 27.02.1974)

347
«… a 2ª edição da “Expo AICA 74” apresentada pela Associação Internacional
de Críticos de Arte (AICA), e patente na Sociedade Nacional de Belas
Artes, com depoimentos de artistas e críticos envolvidos na iniciativa».
• Arte Espontânea: Arte Marginal (Emissão: 13.03.1974)
«… a vida e obra do pintor e professor francês Gustave Moreau e as ex-
posições dos artistas plásticos Ana Vieira, Zao Wou-Ki e Manuel Jardim,
apresentadas em Lisboa».
• Exposições culturais em Lisboa (Emissão: 10.04.1974)
«… a exposição colectiva “Salão de março”, organizada pela Sociedade
nacional de Belas Artes (SNBA), a criação de gravuras na Escola Superior
de Belas Artes (ESBA) e a exposição de serigrafias e gravuras inglesas,
patente na Galeria [Judite Dacruz] em Lisboa».
• Exposição de Victor Vasarely em Lisboa (Emissão: 24.04.1974)
«… a percepção da realidade e a ilusão óptica, a propósito da exposição do
artista húngaro Victor Vasarely, patente em Lisboa, cuja obra está associada
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

ao movimento artístico “Optical Art”, também conhecido por “Op Art”».


• Exposições culturais em Lisboa (Emissão: 16.05.1974)
«… as exposições individuais do artista sueco Bengt Lindström e do ar-
tista plástico Rogério Ribeiro, em Lisboa, e a exposição colectiva assente
no dadaísmo, movimento cultural antiartístico criado num contexto de
instabilidade social e cultural provocado pela Primeira Guerra Mundial».
• Novas perspectivas (Emissão: 22.05.1974)
«Programa … conduzido por José Luís Porfírio e Rocha de Sousa, críticos
de arte, sobre as acções de repressão e censura que afectaram a elabora-
ção dos programas anteriores, e a ampliação das potencialidades tendo
em conta a revolução do 25 de Abril».
• Novas formas de realismo (Emissão: 06.06.1974)
«… o desenvolvimento de variantes do realismo, movimento cultural que
retrata a vida, problemas e costumes da sociedade, nomeadamente o pop
art e hiper-realismo, e entrevista ao pintor José Vaz Vieira».
• Fernand Léger e Étienne Hajdú (Emissão: 20.06.1974)
«… a utilidade dos museus e a sua relação com o público em geral e
as exposições de pintura do artista holandês Karel Appel e de gravuras
“Desastres e misérias de guerra: de Dürer a Picasso”, patentes em Lisboa».
• Arte contemporânea e painel do 25 de Abril (Emissão: 17.07.1974)
«… a necessidade de criar um museu de arte contemporânea em Portugal,
com entrevista a José Augusto França, historiador e crítico de arte, e a
criação do painel comemorativo do 25 de Abril de 1974 por vários artis-
tas portugueses, numa iniciativa do Movimento Democrático dos Artistas
Plásticos na Galeria de Arte Moderna de Belém».
• Arte contemporânea e Paula Rego (Emissão: 31.07.1974)
«… a necessidade de criar um museu de arte contemporânea em Portugal,
com entrevista a Pedro Vieira de Almeida, arquitecto, Eduardo Nery, pintor,

348
e Manuel Costa Cabral, pintor e director do Centro de Arte e Comunicação
Visual (ARCO), e a pintura de Paula Rego a propósito da sua exposição
patente na Galeria da Emenda em Lisboa».
• Virgílio Domingues (Emissão: 14.08.1974)
«… a obra artística de Virgílio Domingues, ilustrado [o programa] com en-
trevista ao escultor no seu atelier, a participação do pintor João Nascimento
na exposição colectiva “Diálogo 74” e a exposição individual do pintor
Jorge Martins, patentes em Lisboa».
• Manuel Baptista (Emissão: 28.08.1974)
«… a produção artística e as características técnicas da obra gráfica do
artista plástico Manuel Baptista e a relação entre a escrita e a pintura no
geral e a sua importância na obra do artista João Vieira em particular».
• Luís Dourdil (Emissão: 11.09.1974)
«… a vida e obra artística do pintor Luís Dourdil, com a entrevista ao artista
no seu atelier, e as exposições individuais e colectivas de arte moderna e
contemporânea ocorridas em Lisboa entre 1973 e 1974, incluindo expo-
sições dos artistas plásticos Victor Vasarely, Ana Vieira, Manuel Cargaleiro,

MARIA JOÃO GAMITO | A HORA ZERO


José Cândido e Bengt Lindstrom».
• Aspectos da arte na cidade (Emissão: 25: 09.1974)
«… a arte na cidade de Lisboa e a presença do espaço urbano e da música
na obra artística da pintora Maria Helena Vieira da Silva».
• Ensino Superior Artístico (Emissão: 09.10.1974)
«… o ensino superior artístico em geral e o processo de reestruturação
científica e pedagógica da Escola Superior de Belas Artes de Lisboa
(ESBAL) em particular, com declarações de docentes e membro discente
da Comissão de Gestão».
• Elementos da linguagem plástica: o plano (Emissão: 23.10.1974)
«… a importância do plano na linguagem plástica e a forma como os
elementos se organizam e são percepcionados e a exposição “Pompeia:
vida e arte nas cidades do Vesúvio” organizada e patente na Fundação
Calouste Gulbenkian em Lisboa».
• Situação do mercado artístico (Emissão: 08.11.1974)
«… a situação do mercado de arte nacional e a influência do 25 de Abril
de 1974 no mercado, no público e nos artistas, ilustrado com depoimen-
tos de críticos de arte, galeristas e artistas plásticos».
• Ruy Leitão (Emissão: 22.11.1974)
«… a obra do pintor Rui Ribeiro da Fonseca Leitão, a propósito da sua
segunda exposição individual de pintura na “Galeria 111” em Lisboa».
• Elementos da linguagem plástica: a forma (Emissão: 06.12.1974)
«… a análise da linguagem plástica, a sua forma, as regras perceptivas da
sua apreensão e a sua representação e o trabalho do fotógrafo Adolfo Paulo,
a propósito da sua exposição na Galeria de Arte Moderna da Sociedade
Nacional de belas Artes».

349
• A obra gráfica de Joan Miró (Emissão: 22.12.1974)
«… a obra gráfica e a linguagem plástica do pintor catalão Joan Miró i
Ferrà, a propósito da exposição que a Fundação Calouste Gulbenkian lhe
dedicou entre 25 de Novembro e 31 de Dezembro de 1974».
• Elementos da linguagem plástica: a linha (Emissão: 08.01.1975)
«… a importância da linha na linguagem plástica enquanto forma de
expressão e comunicação através de formas e imagens de caráter rtísti-
co, estético e poético».
• Exposição coletiva de artistas portugueses (Emissão 25.01.1975)
«… a exposição coletiva de artistas portugueses, nomeadamente Marília
Viegas, Fernanda Pissarro, Maria Rolão, Assunção Venâncio e Pedro Sobreiro,
patente na Sociedade Nacional de Belas Artes de Lisboa».
• Nikias Skapinakis (Emissão: 07.02.1975)
«… retrospectiva da carreira artística de Nikias Skapinakis, pintor portu-
guês de ascendência grega, com destaque para os temas, influências e
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

os movimentos estéticos adoptados pelo pintor».


• Elementos da linguagem plástica: a oposição claro-escuro (Emissão 21.02.1975)
«… Programa dedicado aos elementos da linguagem plástica, apresentado
por Rocha de Sousa, sobre o jogo claro-escuro e a forma como a menor
ou maior luminosidade influi na percepçãoo da cor, das linhas e das for-
mas nas artes plásticas em geral e na pintura em particular».
• Exposição “Figuração-Hoje?” (Emissão: 07.03.1975)
«… Programa apresentado por Rocha de Sousa sobre a exposição
“Figuração-Hoje?” organizada pela Sociedade Nacional de Belas Artes;
inclui visita guiada à exposição, com comentários de Rocha de Sousa às
obras expostas e às características da produção dos artistas representados».
• Soulages e o gesto (Emissão: 21.03.1975)
«… sobre o gesto enquanto forma de comunicação humana e a presença
deste na obra do pintor abstracionista francês Pierre Soulages, por oca-
sião da organização da exposição “Soulages” pela Fundação Calouste
Gulbenkian».
• Aspectos do Cubismo (Emissão 04.04.1975)
«… Programa apresentado por Rocha de Sousa sobre a pintura cubista e
as inovações técnicas e estéticas propostas pelos artistas pertencentes ao
movimento, com particular destaque para o caso do pintor Pablo Picasso».
• A intencionalidade da arte e exposição de Naum Gabo (Emissão: 18.04.1975)
«… Programa apresentado por Maria João M. Rodrigues sobre a intencio-
nalidade comunicativa da arte e dos artistas e a sua presença na forma,
conteúdo e tema em obras de Pablo Picasso, Edvard Munch, Piet Mondrian,
Edward Hopper e Naum Gabo; inclui excerto de entrevista com Naum
Gabo e uma panorâmica da exposição a ele dedicada, que esteve paten-
te na Fundação Calouste Gulbenkian entre Janeiro e Fevereiro de 1972».
• Tapeçarias de Jacques Douchez e Norberto Nicola (Emissão: 02.05.1975)

350
«… Programa apresentado por Rocha de Sousa sobre a tapeçaria como
arte e forma de intervenção social, as inovações técnicas e estéticas da
tapeçaria contemporânea e geral e em particular nas obras dos artistas
Jacques Douchez e Norberto Nicola, por ocasião da exposição “Tapeçarias
de Douchez-Nicola” coorganizada pela Fundação Calouste Gulbenkian
e pela Embaixada do Brasil em Lisboa, entre Março e Abril de 1975».
• Componentes da linguagem plástica: o peso (Emissão: 16.05.1975)
«… Programa apresentado por Rocha de Sousa sobre o peso enquan-
to componente da linguagem plástica, a forma como este é percebido
pelo ser humano e a influência da localização no plano, da massa, da
cor, do perfil, da direcção e da natureza das formas representadas na
sua percepção».
• Cartazes: um espectáculo que nos conta todos os dias (Emissão: 30.05.1975)
«… Programa apresentado por Rocha de Sousa sobre o cartaz e o mural
de expressão política, a sua grande utilizaçãoo e divulgação durante
os acontecimentos franceses do Maio de 1968 e o modo como estes
foram vistos e usados como forma de comunicação paa as massas no

MARIA JOÃO GAMITO | A HORA ZERO


pós-25 de Abril».
• Experiência aberta (Emissão: 13.06.1975)
«… Programa apresentado por Maria João M. Rodrigues sobre a estéti-
ca e o belo, o carácter subjectivo da sua percepçãoo e apreciaçãoo, o
carácter aberto da experiência estética vistos a partir da análise da apre-
ciaçãoo da natureza e do espaço urbano, e ainda da pintura Hieronymus
Bosch, Rocha de Sousa e Robert Rauschenberg».
• Exposição “Nova Pintura em França” (Emissão: 27.06.1975)
«… Programa apresentado por Rocha de Sousa sobre a exposição “Nova
Pintura em França”, promovida pela Embaixada de França em Portugal e
pela Fundação Calouste Gulbenkian, e o significado plástico das peças
expostas e das propostas artísticas representadas».
• Mercado do povo: uma experiência de intervenção urbanística revolucionária
(Emissão: 21.09.1975)
«… Programa apresentado por Rocha de Sousa sobre o projecto de in-
tervenção cultural sobre o edifício baptizado de Mercado da Primavera,
aquando da exposição do “Mundo Português” de 1940, e rebaptizado
“Mercado do Povo” a seguir ao 25 de Abril, levado a cabo por colectivo
de professores e alunos da Escola Superior de Belas Artes de Lisboa
(ESBAL), a convite do Movimento das Forças Armadas; inclui depoimen-
tos de professores e alunos intervenientes no projecto».
• Notícias recuperadas de exposições realizadas em Lisboa (Emissão: 03.10.1975)
«… Resumo apresentado por Rocha de Sousa, do conjunto de reporta-
gens anteriormente apresentadas sobre as exposições da obra gráfica
de Joan Miró na Fundação Calouste Gulbenkian, do pintor português de
ascendência grega Nikias Skapinakis, na Galeria 111, e das exposições

351
colectivas “Tapeçarias de Douchez-Nicola” co-organizada pela Fundação
Calouste Gulbenkian e pela Embaixada do Brasil em Lisboa, e “Figuração-
Hoje” organizada pela Sociedade Nacional de Belas-Artes».

Aproximação à Pintura (1977)


A série Aproximação à Pintura debate os problemas da estruturação
da linguagem pictórica que, segundo Rocha de Sousa, recupera a me-
todologia usada parcialmente no livro Para uma didáctica introdutória às
artes plásticas.
• Aproximação à pintura (Emissão: 17.01.1977)
• Aproximação à pintura (Emissão: 24.01.1977)
• Forma real, forma plástica (Emissão: 07.02.1977)
• Parte, peso e equilíbrio — 3 componentes a atender na pintura (Emissão 14.02.1977)
• Aproximação à pintura (Emissão: 21.02.1977)
• Movimento, ritmo, tempo (Emissão: 07.03.1977)
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

• Aproximação à pintura (Emissão: 14.03.1977)


• Aproximação à pintura (Emissão: 21.03.1977)
• Representação e imagem (Emissão: 28.03.1977)
• Aproximação à pintura (Emissão: 04.04.1977)
• Aproximação à pintura (Emissão: 11.04.1977)
• Aproximação à pintura (Emissão: 18.04.1977)

Intervenção Artística (1977)


A série de doze programas Intervenção artística incide sobre «temas
da actualidade artística em Portugal, nomeadamente exposições colecti-
vas e individuais» (Sousa, 1996, p. 57).
• O erotismo na arte portuguesa (Emissão: …)
• Querubim Lapa, um certo realismo (Emissão dupla: 01.01.1977)
• Exposição Alternativa Zero (Emissão: 03.06.1977)
• Demarcações do gesto (Emissão: 17.06.1977)
• Sá Nogeira, o tema na pintura (Emissão: 01.07.1977)
• João Cutileiro, o feitiço da pedra (Emissão: 29.07.1977)
• Vieira da Silva, espaço da memória e do imaginário (Emissão: 12.08.1977)
• Fotografia na pintura, Cruz Filipe (Emissão: 09.09.1977)
• David Hockney (Emissão: 23.09.1977)
• Equipo Crónica, uma intervenção peculiar (Emissão: 07.10.1977)
• Intervenção artística (Emissão: 21.10.1977)
• Almada Negreiros, um dos inventores da arte portuguesa (Emissão: 04.11.1977)
• Lagoa Henriques, do lugar à linguagem (Emissão: 02.12.1977)

A Arte e as Coisas14 (1978-1979)


A série A arte e as coisas aborda «a relação entre o mundo concre-
to e a arte, sobretudo a pintura, procurando abrir leituras novas e uma

352
compreensão das funções da arte nos nossos dias» (Sousa, 1996, p. 57).
• As formas que habitamos (Emissão: 11.11.1978)
• O artista e o visível (Emissão: 09.12.1978)
• O movimento em aparência (Emissão: 06.01.1979)
• Os dedos e a lã (Emissão: 08.02.1979)
• O rosto das paredes (Emissão: 03.03.1979)
• A margem: percurso de um olhar (Emissão: 28.04.1979)

Artistas Portugueses (1983)


• Amadeu de Souza Cardoso: um descobridor da modernidade (Emissão: 15.11. 1983)
• Almada Negreiros: se não for por arte não serei de outro modo (Emissão: 22.11.1983)
• Jorge Barradas: uma poética para a cerâmica (Emissão: 29.11.1983)
• Martins Correia: uma poética meridional (Emissão: 06.12.1983)
• Júlio Resende: o amor da pintura (Emissão: 13.12.1983)
• Júlio Pomar: sabedoria do ver e do fazer (Emissão: 27.12.1983)

Portugal Contemporâneo, A Arte Possível (1984-1985)

MARIA JOÃO GAMITO | A HORA ZERO


A série Portugal contemporâneo, a arte possível aborda «a arte portu-
guesa entre 1900 e 1974, desde a pintura, a escultura e a arquitectura ao
próprio cinema, relacionando os acontecimentos e as obras com o que
se passava no estrangeiro e com a história portuguesa desse período».
(Sousa, 1996, p. 58).
• Humoristas e modernistas (Emissão: 09.10.1984)
• Futurismo e Amadeo (Emissão: 16.10.1984)
• Os anos 20 (Emissão: 23.10.1984)
• A primeira geração (30.10.1984)
• Quem constrói o quê (06.11.1984)
• Arquitectos e estatuários (Emissão: 13.11.1984)
• As imagens convenientes (Emissão: 20.11.1984)
• O Neo-Realismo (Emissão: 27.11.1984)
• O Surrealismo (Emissão: 04.12.1984)
• Figuração e abstracção (Emissão: 11.12.1984)
• O espaço urbano (Emissão: 18.12.1984)
• O consumo da arte (Emissão: 04.01.1985)
• Um olhar para depois de Abril (Emissão: 05.01.1985)

A Mão: O Homem em Projecto (1987-1988)


Série de programas dedicada à exploração informativa e à análi-
se técnica, estética e sociológica de certas áreas do trabalho humano,
numa tentativa de mostrar aspectos menos comuns das manualidades
como conceito alargado – desde a criação artesanal à tecnologia de
ponta, desde os instrumentos singelos aos mais complexos, passando
por diferentes documentários ou documentos capazes de exprimir o

353
homem enquanto criador de objectos de civilização e do seu próprio
destino (Sousa, s.d., n.p).
• O espírito e o registo (Emissão: 20.10.1987)
• A mão e os instrumentos (Emissão: 27.10.1987)
• O homem e a terra (Emissão: 03.11.1987)
• Arquitectura das navegações (Emissão: 10.11.1987)
• O homem e o espaço habitável (Emissão: 17.11.1987)
• As modelações sensíveis (Emissão: 24.11.1987)
• Memória de uma indústria (Emissão: 01.12.1987)
• O testemunho dos fios (Emissão: 15.12.1987)
• Tempo recuperado (Emissão: 05.01.1988)
• Um espaço de rigor e ficção (Emissão: 12.01.1988)
• As mensagens consumíveis (Emissão: 19.01.1988)
• A mão e a arte (Emissão: 26.01.1988)
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

Contando ainda com a realização de José Elyseu, Rocha de Sousa é


também autor de três programas para a RTP:
• José Escada: breve testemunho de uma sensibilidade (Emissão: 06.04.1981)
• Carlos Botelho: um olhar na cidade (Emissão: 05.05.1982)
• Almada, português e mito (Emissão: 01.05.1985)

Paralelamente a estas séries e programas televisivos, Rocha de Sousa é


autor (texto e guião) e realizador de documentários que versam temas tão di-
versos como exposições individuais e colectivas15 — Exposição de homenagem
a Lagoa Henriques (ESBAL, 1988), Exposição Convenções do Dizer: constru-
ção reconstrução (SNBA, 1980), Exposição de Querubim Lapa (…, 1984) —,
artistas e obras — João Hogan (1986-1987), Rogério Ribeiro (1987), Teixeira
Lopes, Lima Carvalho, Isabel Sabino, Fátima Mendonça, Inez Winjhorst ou
Helder Batista (acompanhamento do processo de construção do monumen-
to a Pina Manique, encomendado ao escultor pela Casa Pia de Lisboa)16 — e
instituições — ESBAL (Imagens de imagens), SNBA (1980?), Creche e Jardim
de Infância Dr. José Domingos Barreiros (Eles crescem assim).
É também autor do texto do filme As ruas após o 25 de Abril que, uma
vez mais com realização de José Elyseu, integrou a participação portuguesa
à Bienal de Veneza de 1976:

É um trabalho especial integrado numa rubrica de extensão cultural da


Radiotelevisão Portuguesa. Ele prolonga um ensaio feito anteriormente
e procura ser veículo de expressão quer das intervenções do povo e dos
artistas plásticos em termos de comunicação no panorama revolucionário
aberto pelo 25 de Abril de 1974, quer das transformações do ambiente e
do quadro urbano, pelo uso do cartaz e da pintura mural Trata-se de um
trabalho conduzido por um guião-texto em que os valores de informação

354
e divulgação se ligam aos valores poéticos da imagem e dos actos produ-
zidos. Assinala, de resto, aspectos particulares da intervenção de rua em
Portugal ao longo do processo revolucionário e do espectáculo global em
mobilidade que a partir daí se tem obtido.

O comentário escrito e a banda sonora procuram sublinhar a dinâmica da


montagem e esta procura abrir a visão comum sobre o tema. De resto, o
filme integrou uma programação mais ampla no aniversário do 25 de Abril,
já no ano de 1976. (Portugal …, 1976, n.p.).

Caderno 3: Cinema de Ensaio


O cinema de ensaio de Rocha de Sousa constitui o longo cerco a uma
condição humana marcada por um pessimismo essencial, por uma violência
física e psicológica constante, por uma conflitualidade recorrente e por uma
burocracia labiríntica, em que se reconhecem as presenças tutelares de Camus,
Kafka ou Ionesco. Tudo isso filtrado por uma dimensão individual que revisita
obsessivamente fotografias de família que lentamente se afundam no papel

MARIA JOÃO GAMITO | A HORA ZERO


em que quase anónimas se dão a ver, ou que, a custo, sobrevivem nos gestos
que lentamente as manipulam nos vários filmes em que aparecem, sempre as
mesmas na alteridade dos sentidos a que se confiam.
Num dos seus textos Rocha de Sousa afirma que ninguém existe como é
visto, e é desse clarividente duvidar da representação — tanto a que a palavra
estabelece como a que imagem determina — que os outros emergem como
figuras do imaginário, que mais não é do que a capacidade de fazer retratos. É
assim que as pessoas, como as imagens, são lugares que se visitam, uma e outra
vez, na espectativa do retrato que as há-de devolver a uma história que nunca
pôde ser apenas a sua e que, de cada vez, as resignifica na indizível verdade
que faz de Cristina, Ana ou Daisy, a aventura poética de um reconhecimento
falhado. E falhado, não no sentido do que se frustrou, mas no sentido do que
escapa, do que escapará sempre para que se continuem a amar as imagens:

Cristina, que é personagem de OS PASSOS ENCOBERTOS, sugere-se


como realidade concreta, explicando inspirações e derrocadas, para se
tornar, enfim, Ana ou Daisy. Essas outras nomeações vêm referir, por um
lado, a inevitável perda do sonho, destacando-se, por outro lado, como
metamorfose dolorosa do ser amado (e da obra) no espaço que sempre
foi suporte ou fronteira de um destino sisifiano — memória de Kafka, ideia
convocada da resistência de Béranger, Jonas também, ainda pintor diante
da tela vazia, já incapaz de distinguir, no brilho da sua estrela em declínio,
a solidariedade da solidão. (Sousa, 1990, p. 9).

Cristina, Ana e Daisy, protagonistas de sucessivos desastres assistidos na


sucessão dos nomes e de uma só condição: a da impermanência dos seres

355
na paisagem humana de um só homem. Nessa paisagem, que a ficção inven-
ta, nela pousando o tempo contemporâneo, o mundo reduz-se à distopia de
uma cidade de restos, todos iguais a todos porque, como acontece nas foto-
grafias, que obsessivamente se repetem nos filmes, ou nas páginas de jornais,
papéis rasgados e páginas de cadernos que os personagens distraidamente
manuseiam ou, ainda, nas paredes velhas das ruínas, aquilo que se toca é a
pele comum das coisas. É por essa pele que se vagueia, no desencontro com
as memórias dos lugares e dos amores antecipadamente sem posteridade. É
à sua superfície que as relações humanas são postas em causa porque, perdi-
das das suas referências, se deixam encenar na errância neurótica da cultura
a que se acede apenas na cedência ao abandono e à ininteligibilidade dos
lixos que compulsivamente se amontoam, asfixiando homens e bichos, casas
e paisagens, nos espaços anónimos das metrópoles, alienadas em rituais de
nascença obsoletos que sobrevivem num presente desejado eterno. Nesse
presente, onde a solidão se concentra na lógica dos nevoeiros pacientes, a
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

morte chega pela mão de Ana Orwell, incapaz de se libertar da artificialidade


do sistema vascular que a subtrai ao futuro que nunca lhe pertenceu. De outros
modos chegará depois porque é possível ter saudades de um personagem
como se tem saudades de uma pessoa.
Fotografias, papéis, tecidos, redes, paredes e charcos são os elementos
recorrentemente utilizados por Rocha de Sousa para povoar os cenários,
tão desolados como claustrofóbicos, dos seus filmes e vídeos. Muitos deles
realizados na ESBAL e no seu atelier, os filmes e vídeos de Rocha de Sousa
integram-se no corpo labiríntico e idêntico das passagens que abrem para
passagens, lugares em trânsito no mapa em que o autor desenha a bifurcação
dos caminhos que o levam ao encontro com as imagens.
É nesse mapa, e nas entradas múltiplas que ele permite, que as obras
surgem em cruzamentos sucessivos que põem em contacto as sinopses, os
textos lidos em “off” nas suas bandas sonoras, e a ressonância da sua presen-
ça em diversos livros de ficção:

Por um Cidadão Desconhecido (1977)


Sinopse: "Aproximação alegórica a uma [sociedade] vigiada ou a memó-
ria, por transferências simbólicas, de um estado de repressão e tortura física
e psíquica: os presos (políticos?) anónimos que (não) foram sacrificados em
nome de equívocos valores de ordem e autoridade." (Sousa, 1996, p. 60).
Apresentado na SNBA.

356
Encontro no Século XXI (1977)
Sinopse: Exploração metafórica em torno de um mundo «sem paisagem»,
sobrecarregado de gestos, ferros, máquinas completamente inutilizadas, onde
duas personagens «marcadas» circulam, revisitando (nos destroços e no de-
sencontro) a memória histórica de lugares, coisas, notícias, funções perdidas.
A verificação final do encontro é a verificação do caminho impossível para um
amor antecipadamente estéril e sem futuro. (Sousa, 1996, p. 60).
Apresentado na SNBA e na ESBAL.

Semearam Ventos (1978)

MARIA JOÃO GAMITO | A HORA ZERO


Sinopse: "Reflexão sobre a impossibilidade da relação humana num mundo
destituído das suas referências. A civilização ressurge como ruína, os seres
movem-se em «círculos», sem objectivo, arrastando marcas de uma alienação
que se perde solitariamente no interior de uma espécie de neurose, no silên-
cio dos restos, entre símbolos culturais arrancados ao seu contexto. Inocentes
ou não, só as crianças partilham um horizonte de fuga." (Sousa, 1996, p. 60).
Apresentado na ESBAL e no Festival de Cinema não Profissional de Coimbra.

Peregrinação (1978)
Sinopse: "Alegoria sobre os percursos culturais do «intelectual urbano»
e a indignada ruptura com eles. Uma tentativa de regresso ou diálogo com
a memória mais autêntica das raízes: os livros que se rasgam e se recusam,
num exorcismo de despojamento, não podem ser substituídos; e as classes
que não tiveram acesso a eles apenas os tocam como coisas abandonadas e
já sem decifração." (Sousa, 1996, p. 61).
Apresentado na SNBA.

357
A Casa Revisitada (1979)
Sinopse: "Meditação sobre a solidão e a velhice, um olhar no interior de
uma casa antiga, gente morta nas fotografias sépia, o tempo e a memória, a
memória e a ficção, os sinais que ficaram, o quotidiano vulgar de uma perso-
nagem que ainda permanece na sua espera ignorada." (Sousa, 1996, p. 61).

Vai devagar, mãe, como naqueles dias em que tudo parece lento, a chuva,
até os sonhos, os teus passos.
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

Ela foi, em sombra, ao longo do corredor atapetado com os belos mosai-


cos de antigamente e a cabeça levantada na direcção da luz, assim, a per-
der-se na coagulação dos verdes alinhados rente rente ao limite baixo do
muro que a cal repintara lá atrás, salpicado de pequenos seres vegetais,
plantas minúsculas cuja vida escassa, austera, se revelava nas suas cores
baças. Uma vez bastou, para essa viagem de tantas viagens semelhantes,
um mergulho na claridade, as compras, a cozinha, o corredor fresco, vazio
e triste durante curtos instantes. (Sousa, 2011, p. 7).

Agora chegaste ao teu pequeno jardim.


Eu? (Sousa, 2011, p. 8)
Mas a ideia é apanhar os teus gestos quando falas com as plantas.

358
Eu não falo com as plantas, penso nelas e nas pessoas.
É o bastante.

MARIA JOÃO GAMITO | A HORA ZERO


Vem até aqui, senta-te nesta cadeira.
Para quê?
Para acariciares as plantas, as pétalas das flores.
Está bem — e sorriu desprendida, encolhendo os ombros.
...

A câmara apoiada em mim, no ombro … era uma prótese dos meus olhos,
apontada ao núcleo da imagem … a moldura do visor aprisionando a
dança doce dos dedos ao tocarem brevemente várias partes das plantas,
porventura a repetirem outros tratos … Esquecida de fingir um acto quo-
tidiano perante o olhar do filho, já levantada, debruçada sobre os vasos
de louça pobre, a minha mãe nem sequer murmurava o mais simples dos
seus pensamentos. Nenhum nome de pessoa ou bicho, nada que ligasse
cada gesto a cada ramo oscilante. (Sousa, 2011, p. 8).

359
Olha mãe, agora vamos fazer outra coisa.
Já acabaste? Vamos fazer o quê?
Ali na sala, junto da janela.
Então vamos lá.
Ficas aqui, sentada na cadeira de balouço.
Ai, homem, que ideia.

Sentou-se devagar, aconchegada na sua bata preta, os cabelos grisalhos


um pouco soltos, olhando em sossego o tripé reajustado, os meus gestos,
a câmara, a luzinha ali ao lado. Estava pronta.

Agora, assim bem reclinada na cadeira, faz-te embalar por ela. Não se vê o
leve movimento dos pés. Deixa a cabeça pousada no espaldar. Não preci-
sas mudar nada no teu rosto. Basta que pareças estar pensativa, como se
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

a figura afectuosa de alguém enchesse a tua memória. Para facilitar, podes


imaginar o teu outro filho em África, a trabalhar, os netos, coisas assim.
Ah, isso está muito bem, mas fico triste.
Não faz mal, desde que não chores. (Sousa, 2011, p. 10-11).

O real inventado, reinventado, naquela cadeira que não batia certo com a
casa. … Eu já começara a fitar as costas da cadeira, a cabeça da mãe recli-
nada, entretanto apenas vista de um ponto da sala bem atrás. Da sombra
para a meia luz, a objectiva regulada, mostrando apenas o que importava,
menos de tudo, certamente, e por vezes só o entrançado da palhinha, a
orelha a deslocar-se para a frente e para trás, com cabelos brancos, lumi-
nosos, rodeando (suspensos) as suas cartilagens ainda firmes no desenho.

Se o pai continuasse a olhar-nos da porta da cozinha, assim mais longe, es-


taria travado por meia janela e pelas plantas mais altas reflectidas no vidro.
Seria, porventura, um ângulo a explorar no fim desta sequência, contida,
magoada, a senhora entretanto vista num quadro maior, com outra ampli-
tude, os olhos quase fechados, grandes pálpebras meio descidas, a boca
fina mas lassa, um nariz recto, narinas estreitas, ainda a moldura negra do
vestido e a trave da janela, a mão levemente ossuda, em baixo e à frente,
numa pose clássica, com dois dedos apoiados no braço da cadeira e os
outros estreitamente abertos, suspensos em leque.

Quando mudava de plano, operando sem que ela percebesse o sentido da


mudança, eu próprio imaginava-me ali … (Sousa, 2011, p. 11).

Estás a dormir, mãe?


Claro que não, ora essa.

360
Parecia.
Então não me disseste para ficar aqui, empurrando a cadeira sem se notar,
o pensamento a voar para fora de mim, em lugares que não sei como são,
talvez os meninos na relva do jardim.
Fizeste uma grande viagem, afinal.
Antes assim do que a fazer caretas, já me bastam estes cabelos desalinha-
dos e a maldita da bata preta.

Podes crer que ficaste linda.


Olha lá, ajuda-me a sair daqui. (Sousa, 2011, p. 12).

MARIA JOÃO GAMITO | A HORA ZERO


Depois perdi-me pela casa, preso aos objectos dos vários tempos e funções
… Era preciso passar os olhos por aquele escritório, na altura já arrumado
e silencioso … (Sousa, 2011, p. 12-13).

Agora que és actriz tens mais responsabilidades, mãe. Vais ajudar-me a en-
trar neste escritório. O pai está sentado aí, na cadeira, à secretária, classifi-
cando as rolhas que vai despachar pelo correio para farmácias de Lisboa.

Eu estava ali, de férias, procurava reaver o sentido daquele lugar, das coisas,
retratos, velhas paredes caiadas a rigor, no mínimo duas vezes por ano …

Enquanto eu removia várias caixas de papelão e os velhos papéis do cos-


tume, passando a minha mãe os elementos apropriados para a secretária,
um cansaço inexplicável rondava-me os olhos, os dossiers perdiam senti-
do, aquela escrita, os certificados das finanças e até algumas fotografias,
tudo isso nunca serviria para encontrar o perfil do meu pai. É verdade
que não era esse o meu intuito final, mas a casa e os seus sobreviventes
deveria ressurgir no ecrã com alguns dados históricos apreciáveis e
o resto dos documentos visuais possíveis. E quando as coisas ficaram
bastante desarrumadas, em especial sobre o tampo da secretária, o meu
entusiasmo começou a resfriar, dedos rígidos para refazer a imagem da-
quele escritório como era lembrado por nós. Mas resolvi fazer os pedidos
previstos e colocar as luzes de forma a recuperar em boa medida o re-
corte simultaneamente fascinante e perturbador do tempo em que meu
pai ali governava já não sei propriamente que objectivos ou que restos
de trabalho e lotes dispersos de rolhas.

361
Isto é uma tristeza, filho.
Deixe lá, depois arrumamos tudo e as imagens serão bem o reflexo do pai
e da sua vida.
Tu lá sabes. E o que é que eu faço aqui?
Apenas o que fazias quando eu procurava pôr a tua ordem nesta ordem.
Precisava ouvir o pai ralhar depois disso, porque deixava de encontrar as
coisas.
É isso mesmo, começa a fazer o que fazias.
E tu?
Eu vejo daqui, através da máquina. (Sousa, 2011, p. 14-15 e 16).

Divulgado no 1.º Encontro Internacional de Cinema Experimental do Funchal, no Festival Internacional


de Cinema não Profissional de Coimbra (1982) e no Festival de Lisboa 84.
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

O Prisioneiro (1980)
Sinopse: "Alegoria sobre o homem contemporâneo, os seus fantasmas e o
seu aprisionamento no espaço degradado que ele próprio criou e encheu de
restos de notícias ou de embalagens perdidas. Uma resistência pelas formas
de expressão ainda disponíveis e o suporte do corpo. Viver para uma perma-
nência, sem explicar coisa nenhuma, sabendo fazer a ficção (ou o futuro) atra-
vés da memória que a obra de arte reabsorve e significa." (Sousa, 1996, p. 61).
Divulgado na ESBAL e no 3.º Festival de Cinema não Profissional de Coimbra.

O Véu dentro da Cidade (1981)


Sinopse: "Exploração de duas projecções, um tempo da memória e um
tempo presente em que essa memória (e a «liturgia» do passado) se confun-
dem artificialmente (pela ficção). O peso dos grandes silêncios contemporâ-
neos como bloqueio para uma viagem criativa em torno dos restos." (Sousa,
1996, p. 61-62).
Divulgado na ESBAL e no 4.º Festival Internacional do Filme Amador de Coimbra FIFAC, onde
obteve uma menção honrosa. Participou ainda no Festival Lisboa 84 e na mostra 10 Anos de Super
8 no Mundo, tendo sido selecionado para o Rencontre Mondiale des Cinéastes non Professionels —
Unica 83, em Saint Nazaire.

362
O Corpo Inútil (1981)
Sinopse: "Os artistas e a difícil exploração do visível. O corpo do modelo
vivo, sucumbindo e inutilizado para a pose de uma memória académica, passa
por riscos sem contorno representativo e pelas ruínas envolventes, sangra a sua
morte para de novo voltar às mortalhas do apodrecimento." (Sousa, 1996, p. 62).
Momento antecipado da palavra e nem sequer urgência dela. Os herdei-
ros da representação do visível já não sabem o visível para reproduzir. … O
que eles fazem é raspar esse destino, nem falso nem verdadeiro, e procuram
ainda num corpo morto vivo, inutilizado quase, a apropriação visível dele,
aparente até amanhã. … A cultura visual de ontem, por cada fio de sangue

MARIA JOÃO GAMITO | A HORA ZERO


que escorre, escapa às novas perplexidades. … As mãos hesitam quanto ao
futuro dos gestos. As poses convenientes são antecipações da morte. … O
corpo inútil fica submerso e abandonado nos lençóis sangrentos, alegoria
de uma renúncia e de um recomeço. O mundo contemporâneo, quem sabe,
talvez seja tudo isto, deste ou de outro modo.
Divulgado na ESBAL.

A Palavra Encoberta (1981)


Sinopse: é um filme experimental, feito por artistas plásticos, que procura
abordar, entre a metáfora e a alegoria, o processo de busca do acto criador.
Processo que assenta tantas vezes nos objectos ou na sombra deles, que
mergulha profundamente na memória, e que envolve, quase sempre, uma
espécie de deambulação do autor em torno de si mesmo.
Este filme, com este tema, foi escolhido para complementar uma expo-
sição de desenho: porque, embora seja uma obra aberta e permita várias
leituras, propõe um olhar singular sobre a condição do artista (solitária ou
solidária) e sobre certos aspectos da sua luta interior. Não é uma ilustração
nem um discurso didáctico: compromete-se com a linguagem que é pró-
pria do cinema, embora sem explicitações narrativas ou cronológicas, e faz

363
sucessivas pontes com as artes plásticas, com o risco de criar e o risco em si.
Partindo de uma citação de Albert Camus … o filme dá-nos a ver o mundo de
um pintor dividido pelos seus espaços de memória, pelos seus quadros, pelos
objectos que o rodeiam, pela cidade cinzenta que se anuncia nesses objectos
e do outro lado das janelas. O actor não representa senão na medida em que
se expõe, em que toca numa realidade descontínua, percorrendo os longos
corredores da sua procura, debatendo-se com os símbolos da civilização que
o cerca. O actor sugere portanto a imagem do artista que sabe ter de vigiar
um discurso em marcha, aliás marcado pelos quadros já produzidos, e que
sabe também estar condenado ao impossível, como dizia Picasso. Ou seja:
que sabe haver sempre um novo imaginário entre as coisas, entre os restos,
entre as memórias, e que sabe igualmente a urgência de o dizer. Mas de o
dizer apesar da sua solidão, de o dizer em solidariedade.
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

Ruptura no Interior (1982)


Sinopse: "Alegoria sobre a perda da individualidade nas grandes mono-
tonias do trabalho massificante. Partindo de um lugar em nada semelhante a
uma fábrica ou a uma cadeia de montagem … o filme leva ao excesso a re-
petição (absurda) de um certo trabalho — e, por fim, a silenciosa ruptura que
a individualidade impõe a essa longa submissão." (Sousa, 1996, p. 62).
Divulgado no Festival Internacional de Cinema não Profissional de Coimbra (1982).

A Morte de Ana Orwell (1984)


Sinopse: … Colocada (ou movendo-se num sector de 90 graus, a câmara, em
geral ligeiramente picada, aproxima-se cada vez mais de uma teia crescente de tubos
de plástico onde duas mãos se perdem – na vida que lhes resta ou para a morte
que talvez representem. Verdadeiramente, não há planos gerais. E os elementos
objectivos da tecnologia clínica vão sendo desmentidos na sua funcionalidade ha-
bitual. Isto é: a realidade do filme não passa pela condenação do filme à realidade.

364
Ana Orwell morre presa na teia dos tubos que habitualmente salvam,
que habitualmente conduzem plasma e vida aos corpos morrendo. Mas de
início, no pré-genérico do filme, todas as Anas vivas caminham para nós, elas
ou outra, tanto faz: o problema da identidade é, neste caso, uma questão de
universalidade.
No leito de morte, Ana desprende-se e prende-se, recomeça como Sísifo,
enquanto o espaço se povoa de estridências, de restos de melodias, de ruídos
… Assim, tudo se torna excessivo, o massacre da imagem e do som, o tempo
que se arrasta para além do possível. Ou seja: tudo nos indica que a realidade
daquela realidade é outra, pode acontecer depois ou fora do campo, pode
ser o mundo, a opressão, o encobrimento, a morte institucional e não a morte
representada enquanto isso. Orwell, com “1984”, talvez tenha associado ape-
nas sintomas cuja parte representada no livro era menos importante do que
os seus pressupostos fora dele.
No filme …, e por fim uma notícia vulgar (embora estranha como tantas
outras) vem reduzir tudo à banalidade do quotidiano. Mas a multidão que
sobra no último longo plano, movendo-se em dois sentidos, será o mundo

MARIA JOÃO GAMITO | A HORA ZERO


de Orwell, será Sísifo recomeçando em revolta e condenação, ou será a pró-
pria banalidade do quotidiano subitamente revelada como monstruosidade
sem destino?

Apresentado no contexto de um Seminário de Vídeo, na Universidade Aberta, o filme foi selec-


cionado para a mostra 10 Anos de Super 8 no Mundo, sendo nestes termos referido por João Paulo
Ferreira, na Revista Cineasta:

No final. Apenas uma voz off explica o filme. «Ana Orwell desaparecida
em 1984, foi encontrada 3 anos depois. A morte ocorrera contudo, poucas
horas antes e o corpo apresentava-se completamente esvaziado do próprio
sangue. Apesar disso, as autoridades falaram apenas de traumatismo crania-
no em consequência de uma queda.»
A interpretação da metáfora não será por conseguinte muito difícil. O
apelido da personagem (Orwell) e data em que o caso se desenrola reme-
tem-nos imediatamente para George Orwell e o seu 1984.
Num futuro, neste caso não muito longínquo, o ser humano estará à mercê
de forças anónimas que o envolvem e lhe sugam a vida e a vontade própria.
Leitura imediata e simples para um filme cuja principal qualidade é pre-
cisamente a riqueza de leituras. Todo um imenso manancial sócio-político se

365
esconde por detrás desta morte anunciada apresentado com um rigor fílmico
e uma sobriedade de meios como raramente tenho visto em obras nacionais.
(Ferreira, 1983, p. 32).

Memória e Ficção (1985)


Sinopse: "Abordagem, através de restos e memórias dispersas por fotogra-
fias antigas, de um processo que ficciona o real, ou seja: não há memória sem
ficção e não há ficção sem memória. A memória dos retratos sobre as rendas
sépia é afinal, na sua aparente objectividade, um mundo subjectivo — e um
mundo que alguém reinvente para a ficção de novas relações de forma e de
conteúdo." (Sousa, 1996, p. 63).
Cheguei ontem e apetece-me ficar. Ficar assim olhando, um gesto entre
palavras. Alguém morreu no quarto ao lado. Ficaram os objectos, coisas, ros-
tos de papel. Um acaso dos dias nas marcas sobre postais ilustrados. Alguém
morreu desse modo. Ana, Ana! Ontem ou a palavra tornando-se estranha.
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

Ontem, tão perto das coisas que vejo. Tão longe na memória delas porque
se confundem a infância e a última viagem. Ana escolhendo flores murchas
no fim de tarde do meu cansaço agora. As paredes dizem a sua própria mu-
dança. Envelheceram. Foram repintadas. Votaram a sofrer bolores e fendas
caprichosas. Ficar como? E se Ana não vem? Passo as fotografias uma a uma
entre os dedos. O menino sério aparece e desaparece na ordem do acaso.
Há velhos e velhas lado a lado. Um cão a olhar para mim como as pessoas e
alguém que acena a dizer que está ali, que percebe tudo, que é tudo a fingir.
A realidade move-se, eu dentro dela. E por isso, as coisas readquirem os seus
nomes e a sua vida plausível. Como s retratos baços, em monte nas gavetas.
Basta que escolha alguns entre todos. O menino sério talvez. As meninas ves-
tidas de branco, Um velho solitário ali, enquanto os rostos passam entre os
dedos da esquerda para a direita e se detêm, fixando-me.
À medida que eu crescia, nesses anos de crueldade, as fábricas foram
ardendo meticulosamente, uma após outra. E os senhores delas, simulando a
dor e o desastre, partiam para o norte ou para o centro, abandonando, discre-
tos, homens e ruínas. No rio prestes a morrer ao avanço da lama que ninguém
removia, as grandes barcaças vinham carregar os últimos fardos de aparas
nas últimas viagens da decadência. E eu lembrava-se do uso colectivo desses
cascos de madeira. Maio festa, velho costume de flores e farnéis, grupos em
cacho nos convés, rio abaixo, pequenos portos nas hortas de bilhete-postal.
Acampava-se nas margens, ainda jardim, entre laranjeiras. As lanchas da nossa
viagem, imaginariamente maior, como peças de uma aventura à Salgari. A
procissão voltava à cidade na maré da tarde, tac-tac dos motores, os cestos
repletos de ramos ornamentais que ficariam muito tempo presos nas paredes
das nossas casas, um laço de papel segurando as hastes decepadas.
Restam algumas fotografias porque, breve na minha adolescência tudo
se degradou. Homens, fábricas, crianças, o rio. E as noites de cada incêndio,

366
marcando a fogo o próprio retrato político do país, banhavam a soturnidade
das últimas mortes espectáculo após espectáculo que eu seguia com uma
espécie de gosto comovido, um terror e uma ternura não sei porquê ou por
quem, o espanto a misturar-se do mesmo modo com o apelo repulsa dos gri-
tos, enquanto percebia, sob as cicatrizes, como o sofrimento pode em certa
medida empolgar-nos. Fiquei gostando irremediavelmente das ruínas, em-
bora seja mais fácil ver nelas a morte do que a vida.
Súbita aparição da gente sem nome. A genealogia impraticável de bisa-
vós e avós, mães de mães e primas e tias olhando abortos o olho misterioso
da câmara. Olham por dentro da sua paralisia, constroem o instante que lhes
dizem. Retratos de família. Meninas de pé, fitas descaídas na cintura, meias
brancas, sapatos de presilha. Um menino em baixo, sério, solene, convicto
da grandeza que o descobre, como se estivesse na igreja, a preto e branco,
assim vertical, o mundo desses estranhos parentes deixa-se aprisionar diante
de mim. Os rostos já não sei. Nem o meu próprio olhar que talvez me esteja
fitando no interior de algum destes rectângulos baços. O menino sério quem é?

MARIA JOÃO GAMITO | A HORA ZERO


O Mundo Ausente Ensaio para um Olhar (1986)
Sinopse: "Viagem sobre (através) de espaços habitáveis, agora vazios, agi-
tando os elementos de referência à sua memória humana, significado e ao
«desaparecimento» da sua realidade." (Sousa, 1996, p. 63).

De Passagem entre Memórias (1986)


Sinopse: "Alguém que retoma, entre os destroços, os objectos e as foto-
grafias de uma casa antiga, o fio de condução à memória das significações
do passado e da sua corporizaçãoo no presente, entre a chuva e os véus sub-
mersos." (Sousa, 1996, p. 63).
De passagem entre memórias. … Manuscritos, gravuras, utensílios, mar-
cas. E um espaço de coisas velhas em volta. O rosto de Ana a preto e branco.
Cheguei ontem mas não chovia. Já não sei quando choveu, ontem não foi.
Fecharam a casa. Sobraram poucas coisas. Há sinais de Ana um pouco por
todo o lado. Agora sim, ela tornou-se definitivamente ficção. Se chover ama-
nhã será bom. A chuva muda os retratos, enche tudo de reflexos, como num
espalho ou num sítio onde a água escorre.
O cão morreu preso à corrente. Estava muito velho. Quando o fomos en-
terrar, arranjei flores do monte e espalhei por cima da terra. Há cães assim que

367
parecem família nossa. Morrem humanizados na memória das suas fidelida-
des. O loendro está enorme, cresceu muito. Todos o acham lindíssimo. Ontem
cozemos o pão e aqueles bolos de que a tia tanto gosta. Andámos a apanhar
figos e a tratar dos animais. … temos de arranjar outro cão para nos guardar.
Um cão que nos conheça a todos, que saiba ver quem entra e sai … De pas-
sagem entre memórias ou a aventura de um rio da infância já sem referências
particulares. O que fica depois da chuva é um rosto sem fala, um véu sem …
um olhar flutuante. O que fica em suma, é um olhar escorrendo pelos vidros e
um despejar de coisas em câmara lenta.
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

Memória (1987)
Sinopse: "Viagem pelos sinais de um mundo de infância, cuja memória
se perde na voragem da envolvência contemporânea." (Sousa, 1996, p. 64).

A Pedra (1987)
Sinopse: "Reflexão sobre a vida dos objectos inorgânicos, numa relação
metafórica com os acontecimentos do mundo real e a sagração do irreal."
(Sousa, 1996, p. 64).

A Carta. A Hora Zero. O Fim do Cenário (Trilogia) (1987?)


Sinopse: "Trabalho sobre o amor e a violência no mundo contemporâneo."
(Sousa, 1996, p. 64).

A Carta
Junta os dedos sobre a mesa e olha para o que resta de mim. Alguém
morreu no quarto ao lado. Jonas perdeu-se entre o dever da solidariedade
e o direito à solidão. Já não posso realizar o que me pediram que realizasse
e agora ninguém se lembra de me pedir seja o que for. Sou a antecipação
do que penso do mundo … Cruza os dedos Daisy e pensa que já não sabes
quem sou. … Cruza os dedos Cristina, cruza os dedos Daisy e finge que não
conheceste Béranger nem Jonas e as suas últimas telas brancas.
Quem eu conheci foi Cristina, humaníssima e apaixonada. Se Ana me
visita entretanto com os olhos muito abertos, Cristina ou Daisy são a histó-
ria. E contudo, agora que percebo os anos de encontro, as vidas de utopia,
a longa aprendizagem que fiz de Cristina, Cristina torna-se Daisy, escapa-
-se entre distâncias, roendo as flores da madrugada. Penso o retrato de Ana

368
contra o teu rosto Cristina. Contra a tua passagem a Daisy, mas o que vejo
ao espelho, sobre cartas abandonadas, é a imagem improvável de um ser
que me ficou na pele. Em certo sentido, toda a representação do mundo,
angélica e fascinante no seu traço inconclusivo … é sempre admiravelmen-
te monstruosa. …
O teu rosto perdeu-se na bruma dos ruídos. Transformada em ficção e
realidade levavas as flolhas e as flores na boca, correndo silenciosamente
para o fim do mundo.
Apresentado no Encontro Nacional de 1988, no Fórum Picoas.

A Hora Zero

MARIA JOÃO GAMITO | A HORA ZERO


Posso recomeçar tudo, escrevendo as mesmas palavras de há séculos. …
Sou apenas a testemunha que sobrou das escaramuças de uma civilização a
perder-se, antes de mais para a escassez planetária. Sou apenas, por outro
lado, o ficcionista das metáforas, mensageiro que não quer lavar as mãos como
Pilatos, e que não sabe fingir uma só desculpa perante o assassínio da ino-
cência. … Da inocência, aliás, só penso esse arrastamento entre vazios. Posso
recomeçar tudo, como há séculos …

O Fim do Cenário
Os cenários do amor, da vida ou da morte refluem vagarosamente na
memória. São de papel e pano, folhas mortas, jornais perdidos, alegoria do
efémero para uma ilusão de passagem. Vistos assim, sem a protecção do
discurso, parecem outros e são os mesmos. … Alguém morreu aqui, antes
das folhas secarem, mas ninguém veio matar o cenário. …
Oiço passos, não sei distinguir entre realidade e ficção. Vivi com perso-
nagens como Cristina, Ana, talvez Daisy. Alguém morreu aqui, já sem nome.
… Daisy ignora a imobilidade de Cristina. É de novo silhueta branca com
os estigmas da representação, ficcionada como testemunha ou Ana, perso-
nagem breve para recolher as outras memórias, as outras ficções, os retratos
impossíveis e as cartas inúteis de um tempo cristalizado. Só ela pode destruir

369
o cenário, fechar um ciclo e morrer em paz para que o futuro aconteça quo-
tidiano. O enigma da vida é não sabermos quem somos.

A Praga (1989)
Sinopse: Alegoria em torno da expansão dos poderes totalitários numa
sociedade de pós-guerra. (Sousa, 1996, p. 64).
Eu vi os gafanhotos chegarem. Vieram aos poucos, dois a dois, devagar,
e deixavam-se apagar pela ternura das crianças da aldeia. Não comiam nem
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

dormiam, mantinham-se imóveis e rígidos, de olhos cegos, à espera. Ao fim


de três semanas, surgindo sempre da mesma maneira, o número de gafa-
nhotos aumentara assustadoramente e os velhos camponeses lembraram
as pragas de outros tempos, as searas destruídas, a terra devastada. Alguns
deles, mais decididos, começaram a lançar sobre as suas culturas, uma fari-
nha esquisita que espalhava no ar um cheiro a rosas podres. Foi então que
chegaram os outros gafanhotos. E eram milhões e milhões, cruzando-se no
ar em nuvens negras, batendo as asas num ruído imenso, cobrindo tudo:
os campos, as searas a despontar, os próprios instrumentos de trabalho.
Comendo devagar, de um modo enganador, pacífico e lento, devoraram
todos os vegetais, as rações do gado, as reservas dos celeiros, w até mesmo
as folhas das árvores, fosse qual fosse a sua natureza. Mas os gafanhotos
não ficaram saciados, nem o seu número parou de crescer. E foi assim que
passaram a devorar tudo: raízes, bichos, as primeiras pessoas suficientemente
desprevenidas, na mais metódica das fúria colectivas. Invasores imparáveis,
os artrópodes tornavam-se cada vez mais arrogantes e mais resistentes aos
ataques químicos, ao fogo do desespero. Entravam nas casas por fendas
invisíveis, com grande alarido de asas, devorando folhas, flores, cereais,
troncos, a carne que sobrava nos pratos. E por último, concentrados com
mais força e engenho, os próprios habitantes mal defendidos, as crianças,
as mulheres, os velhos.
Lembro-me da fuga da população para as montanhas e de ouvir dizer
que a praga se estendera por milhares de quilómetros em redor. Passaram
muitos anos antes que os gafanhotos abandonassem aquela terra e muitos
outros antes que a terra voltasse a ser fértil. Havia desenhos exorcistas, quase
emblemáticos, um pouco por toda a parte. Gafanhotos que pareciam gri-
los ou baratas, máquinas de guerra, marcas da obsessão e do terror. Ainda
hoje, entre ruínas e grafismos persistentes, ninguém ousa aproximar-se do

370
mais indefeso gafanhoto que apareça nesta região. E todos nos limitamos a
venerar, num cemitério de nomes e velhas fotografias esmaltadas os túmu-
los sombrios dos desaparecidos ou dos que morreram aos bocados num
horrível sofrimento.

Missa Negra (1989)


Sinopse: Vídeo sobre o sentimento de perda e o valor contingente da obra
de arte. (Sousa, 1996, p. 64).
Lugar perdido e achado da infância, aqui estou, cheguei ontem, decidi
ficar. Não sei porquê, todos os mortos morreram a seu tempo, outros que me

MARIA JOÃO GAMITO | A HORA ZERO


foram próximos desapareceram em vida, estou só como se acabasse de nascer.
Toda a fecundidade é complementar da morte. A geometria do eterno
é tão breve como um espelho que se quebra. Depois vieram as chuvas e os
espelhos quebraram a imobilidade da luz. La Tour tornou-se agitado. Vela
breve de estearina queimada. Chama lenta dos nascimentos do medo, com
medo, crianças que nunca se reconhecem ao espelho e nada sabem da
peste, memória opaca, só amnésia e rosas negras. O menino homem vamos
enterra-lo na lama, à luz das velas de La Tour, leite fecundo derramado para
sempre no chão das nossas lembranças estilhaçadas.
E a limpidez dos gestos também. E o risco, a graça, a entrega, tudo além
de tudo, mesmo quando nos encontrávamos na maior intimidade, após a
chuva, a chave rodada na porta contra o improvável assalto do mundo.
O homem menino adoece de fumos e de indiferença, com a nossa res-
ponsabilidade e o pensar vagaroso que enche as esplanadas de antes do
anoitecer. Lentas canções, lamentos, ventos de quase nada. Ninguém sabe
o que é morrer tão cedo e tão tarde pelo nascimento, entre os signos do
império e a peste. Béranger foge (apavorado) dos mutantes, Daisy come
as flores da metamorfose e da perda, numa espécie de inocência branca.
Jonas já não sabe conciliar a solidão e a solidariedade, desfeito no grande
vazio da espera.
Papéis que sobram, estarei morto entretanto. Não quero legar nada a nin-
guém Toda a fecundidade é complementar da morte. A geometria do eterno
é tão breve como esta escrita sem destinatário. Queimem-na em fragmentos,
como sempre fui. A chama fará o resto — e a dança da inocência coroada de
branco, mas agitando a bandeira negra, deixará no ar um ritual de simulação
e cinzas. Sem epitáfio. Sem data. Sem memória.

371
Portanto os retratos, sobrepostos como cinzas, queimados em sépia, pela
luz secreta das gavetas.

A Máscara (199…)
Sinopse: "Vídeo … versando a problemática da construção da obra de arte
e o modo como nela o autor se serve de diferentes máscaras para afirmar a
sua visão do mundo." (Sousa, 1996, p. 64).
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

Projecto K (1989)
Sinopse: Vídeo que projecta, em alegoria, o tema de O CASTELO, de Kafka,
e o tema de 1984, de Orwell. (Sousa, 1996, p. 65).

A Tempestade (1991)
Sinopse: "Vídeo sobre a realidade conflitual contemporânea, entrosando
documentos reais com ficção e ligações de carácter alegórico." (Sousa, 1996,
p. 64).
Chovia sobre os primeiros mortos. Alguém acendera velas perto do san-
gue meio dissolvido. Apesar da brisa do princípio da noite, as velas mantive-
ram-se acesas durante muito tempo. Sob a chuva de cinza, rodeadas de flores
definitivamente húmidas.
Alguém acendera velas perto do sangue meio dissolvido. Apesar da brisa
do princípio da noite, as velas mantiveram-se acesas durante muito tempo.
Sob a chuva de cinza, rodeadas de flores definitivamente húmidas.
O Outono, pintado em sépias, apanhou os mortos na encosta da mudança,
entre demolições imprevistas. Ninguém soube dizer de que lado soprava o
vento. A chuva de cinza embranquecia os corpos como no limite de um suave
milagre. As máquinas haviam parado à entrada do mundo, cobertas de flores.
As lagartas tropeçavam nas pétalas já sangrentas, que sangravam mais. E os
olhares passavam além, sob as janelas. E só havia murmúrios na costa, tão

372
longe. Como nas praias iniciais, ou debaixo daquela chuva que viria agitar
lentamente as chamas do protesto e da dor. Rostos desfocados, ranger de
ferros na praça ao fundo, e assim os fogos dos impérios todos, esbatendo a
transição violácea da noite para a madrugada.
As flores e as velas traçaram um exorcismo contra as máquinas da morte.
A vida que sobra defende-se nas bandeiras de amanhã. Após a morte dos
mitos, consagrada pelas vítimas daquele Outono trágico, o fogo e a água po-
derão representar uma nova esperança para o mundo com novas fronteiras.

Auto-Retrato (1991)

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Lírica Do Desassossego (1993)
Sinopse: "Vídeo de ensaio em torno da psicologia do comportamento da
juventude actual, anunciação metafórica do passado perdido e das grilhetas
de um presente sufocante." (Sousa, 1996, p. 65).

Vozes (199…)

373
Névoas Em Abril (Incompleto) (19…)
Sinopse: "Vídeo de ensaio evocativo da realidade histórica do país após 1974.
Abordagem por via essencialmente alegórica e poética." (Sousa, 1996, p. 65).

Sinais (199…)
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Ventos (199…)

O Túnel (199…)
Sinopse: Vídeo rodado no Hospital dos Capuchos: um pavilhão degra-
dado e a precariedade dos sinais onde a vida ainda se manifesta. (Sousa,
1996, p. 64).
Mas nas ruínas laterais do hospital onde esperava a hora da visita a
minha mãe, erradicado do comércio o filme pistável, fazia com o corpo de
uma câmara de vídeo, operava cenas tristes dos destroços, alimentando um
enlevo suspeito no movimento da objectiva, panorâmicas laterais capazes
de colarem portas sujas a paredes com restos de tinta, travellings à frente,
no hábito ou treino das mãos vogando por cima de longas traves racha-
das, crivadas de pregos enormes, escurecidos variadamente pelo efeito da
ferrugem. A beleza quase insustentável destas coisas acabou um dia por
solicitar personagens, figuras femininas em derivas anónimas, encontros e
desencontros nas montanhas de ferros e chapas torcidas de cemitérios de
automóveis, passos sobre portas a fazer de chão, o bater dos arames nos tú-
neis amolgados de fuselagens inteiramente perdidas. (Sousa, 2010, p. 290).

O Pó (199…)
Sinopse: "Vídeo de ensaio, envolvendo a noção da passagem do tempo
através dos objectos e do modo como uma figura de jovem toca, passando
a saber, esses materiais." (Sousa, 1996, p. 65).

374
Rocha de Sousa: Obra Multidisciplinar
Depoimento prestado por ocasião da exposição individual realizada na
Galeria Municipal de Arte, em Almada (1990):
Talvez seja necessária uma apresentação deste tipo porque o que se mostra
nas imagens é realmente um conjunto de tentativas de comunicação que põem
mais esse objectivo como linha de força de toda uma acção do que propriamen-
te da pintura em si ou do vídeo como experimentação em si. Um dos problemas
que tenho enfrentado com mais frequência é justamente esse: o de saber que
limites são os da pintura … O que eu pretendo é vencer os limites que se foram
colocando à pintura … e se nessa conformidade seria possível ensaiar um con-
junto de imagens que, … se dirigissem elas próprias aos outros e que envolves-
sem determinados dados, determinadas mensagens que pudessem ser recebi-
das. …através dessas mensagens os outros poderiam partilhar comigo um certo
número de ansiedades, um certo número de reflexões, qualquer coisa que não
sendo propriamente uma ilustração, ou sendo-o …, se projectasse no campo
da consciência … Esta preocupação é nítida também nas imagens que se refe-
rem a extractos de vídeos, que não são representados senão em pequenos frag-

MARIA JOÃO GAMITO | A HORA ZERO


mentos para ir dando ideia de um conjunto de obras e referências que fazem a
minha preocupação e não propriamente o meu retrato completo como produ-
tor de formas, como criador. … O que tentarei fazer com este jogo de imagens é
pontuar elementos da composição pictórica na sua fase expressiva, na sua fase
fragmentária, que é francamente baseada no mundo contemporâneo, na actua-
lidade, nas memórias da guerra … e também de um outro tipo de relações da
pintura com o real, a que chamei frequentes vezes «As personagens ilustradas»
… na tentativa da caracterização de arquétipos … que nos aparecem assim, em
pleno estado de paradoxo … pondo em relevo muitos dos aspectos que carac-
terizam a nossa contraditória civilização.
De resto são os personagens que da pintura passam ou se fixam dessa ma-
neira mas são também, por outro lado, aqueles que mais me fascinam, na lite-
ratura e no vídeo ou no cinema, os personagens que tenho podido arrancar ao
meu convívio para uma representação partilhada sobre temas que na pintura
teriam difícil tratamento e que aqui [no vídeo], levantam problemas …, põem
novamente em questão o sentido das coisas, até que ponto a realidade é per-
ceptível, plausível ou absurda e também, das relações de sentimentos, das rela-
ções de memória que nós temos com os objectos, com as coisas e com as nos-
sas raízes. No fundo são um conjunto de problemas à volta destas questões …
Faço este depoimento na primeira pessoa do singular … porque em geral
não tenho quem se debruce sobre os meus problemas … não tenho nem estou
propriamente muito interessado em ter. Às vezes mais vale o pouco que dize-
mos, sabendo da nossa consciência, do que o mundo que dizem sobre nós
inventando o que nunca dissemos.
Neste depoimento residirá a dimensão mais negligenciada e também a
mais fundamental das tantas vezes citadas «coincidências voluntárias» de Rocha

375
de Sousa. Porque o que emerge dessa dimensão é a urgência da comunica-
ção, apesar dos media, que entre eles faz transitar o labirinto de idênticos em
que ela se concretiza. Sobre o filme A casa revisitada, Rocha de Sousa escreve
no blogue a nostalgia que vem com o contrário das horas (Construpintar02,
segunda-feira, setembro 12, 2011). E é ao contrário das horas que o labirinto
se fecha, tão implacável como as viagens que gravitam em torno dos centros,
na espessura das coincidências entre tempos e lugares, memórias e ficções,
gente talvez assim, atravessada pela coexistência das aparências, desconhe-
cida e insinuante, que permanece no olhar assombrado de um homem para
quem «o deserto, paisagem terminal de todos os silêncios, parece humanizar-se
quando os passos do homem se gravam nas suas areias». (Sousa, 1996a, p. 8).
Jonas e Béranger, Rocha de Sousa vive na clausura das convicções indi-
viduais e na urgência de as dizer. Ou mostrar porque, neste contexto, dizer
é sobretudo dar a ver, e a distinção esbate-se quando as palavras circulam
entre livros e filmes e vídeos e pinturas também. Só assim é que as imagens,
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

reféns desse dizer que sistematicamente as precede, podem ensaiar, de cada


vez, um recomeço que mais não será do que o voluntário regresso à hora zero
de todas as coisas.

Conclusão
Mas a hora zero tem as suas dificuldades. Por um lado (e pela minha parte)
porque o reconhecimento do valor afirmado já se fez enquanto o artista se
expôs e nos provocou, em suportes diversos, no limite do desastre, na supera-
ção dos equívocos, na polémica ou na poética do discurso oral. Estive presente,
testemunhei, fiz pelo lugar da obra, segundo a linha da costa, a viagem que
alcança a geometria da estrutura, o contorno da fronteira, a relatividade de
toda a grandeza. O difícil, na hora zero, é levantar outras questões, fazer uma
última pergunta, retomar o homem onde o artista se convoca e se prolonga.
Este país é pequeno, de memória entorpecida, as homenagens passam,
as perguntas diluem-se, a História escreve-se através de retratos amnistiados
e de exílios apaziguados. Assim, como parece banal no domínio dos vários
desenvolvimentos, as querelas do poder, incluindo as do prestígio artístico,
subvertem os modos na moda, criam ídolos logo fracturados e toscos, omi-
tem, censuram, abreviam no mais espantoso silêncio dos homens bons, obras
raras, longas persistências de testemunho e denúncia moral. Entre nós, ao
cabo de liturgias apressadas de novidade e banimento, permanecer vivo, útil,
empenhado, é coisa quase inviável, contra o tempo e a vertigem dos sucessos
alheios. A onda da negatividade e da substituição submerge, sem fragor, as
mais finas estratégias de sobrevivência. (Sousa, 1988, p. 72)
É assim com as suas palavras que lhe devolvo a homenagem por ele
prestada a Lagoa Henriques. Nesse texto a pergunta era: «como sobreviveu
Lagoa Henriques?». Mas no mesmo texto não cabe agora qualquer pergunta
porque «Viajante solitário, pluridisciplinar, [que se afasta] e [se aproxima] dos

376
seus portos, das suas memórias», como se quer nas Coincidências voluntárias,
Rocha de Sousa encaminhou-se voluntariamente para o labirinto que o olhar
procura ou que programaticamente frequenta: o olhar habitado pela lúcida
mobilidade que pressente que a espessura do mundo mais não é do que a
sobreposição sempre enganadora das aparências, que a cada momento emer-
gem da surdez de uma clandestinidade incapaz de se libertar da sua incons-
tância e que, afinal, nela acaba por encontrar as razões da sua sobrevivência. E
porque o que é clandestino no mundo é o próprio mundo, homenagear Rocha
de Sousa passará sempre pela entrada na brandura dos afectos duradouros
ou dos segredos jamais revelados. Mundo dito, escrito e mostrado de muitas
maneiras, visto de todos os lados, na quase serena mobilidade visual que os
perscruta e os devolve no lirismo que contradiz os seus lados mais sombrios,
como de resto acontece aos mundos impossibilitados de fugir ao seu denso
centro gravitacional, ou às palavras, sobretudo suas por serem suas e virem a
nós no contrário das horas.

MARIA JOÃO GAMITO | A HORA ZERO


Notas
1
Até à Reforma que institui os cursos de e paleta de cores), a partir dos quais as
Artes Plásticas e Design (1974-1975) — aprendizas exercitavam o ofício.
reconhecida pelo Ministério da Educação, 2
Em funcionamento desde 1974-1979,
por despacho de 8 de Janeiro de 1976,
e objecto de uma nova reestruturação
mas apenas publicada pelo Decreto
nessa data, os planos de estudos dos
do Governo n.º 38/83 (DR, I Série, n.º
ciclos básicos e dos ciclos especiais destes
126, de 1 de Junho) — Rocha de Sousa
cursos vêm a ser publicados, pela Portaria
leccionou Iniciação à Pintura, Pintura
n.º 836/84 (DR, I Série, n.º 251, de 29 de
Decorativa, 1.ª e 2.ª Partes, Pintura do
Outubro).
Natural, 1.ª, 2.ª e 3.ª Partes, Composição
de Pintura, 1.ª e 2.ª Partes, Tecnologia da 3
Mas de novo, se a disciplina de
Pintura – Vitral e Mosaico e Tecnologia da Fotografia tem início no primeiro ano de
Pintura – Cerâmica e Tapeçaria, integradas funcionamento dos novos cursos (1975-
nos planos de estudo promulgados na 1976), será necessário esperar até 1983
designada ‘Reforma de 57’, pelo Decreto- para que o mesmo se verifique com a de
Lei, n.º 41 363 (DR, I Série, n.º 258, de 14 Técnicas Áudio-Visuais.
de Novembro). É relativamente às duas
últimas que, tendo em vista a superação
4
Recorrentemente utilizado por Rocha
da inexistência de oficinas e espaços de de Sousa — por ex., «O visível e o invisível
experimentação específicos, que Rocha entre máscaras: mobilidade visual,
de Sousa desenvolve estratégias que aparência e representação», «Ver para
permitem aos alunos contactarem com além do visível», Ver e tornar visível:
contextos reais de trabalho, como o atelier formulações básicas em cinema e vídeo
de Gil Teixeira Lopes, onde existia uma — o conceito de máscara decorre da
mufla para Vitral, a Fábrica de Cerâmica afirmação de Klee, «o artista não reproduz
Constância, onde os estudantes realizavam o visível, torna visível» (s.d.), do mesmo
moldagem e pintura de peças, ou a modo se relacionando com o invisível que
Manufactura de Tapeçarias e Portalegre, a representação torna visível, abordada
para a qual executavam cartões (desenho por Rudolph Arnheim (1976).

377
5
A questão do «Real impossível», associada se, em certos aspectos, de um trabalho de
à mobilidade visual indispensável na mera aproximação a problemas de ordem
indagação das aparências, percorre técnica e de índole expressiva, com base
toda a obra de Rocha de Sousa. Muitas em conhecimentos ou procedimentos
vezes retomada em textos ensaísticos, iniciadores, citados de aprendizagens
didácticos e de ficção, na pintura, em conhecidas, de manuais publicados, de
diaporamas, vídeos e filmes, ela é desde observações quotidianas. A sua eventual
logo enunciada no tema escolhido para inovação … releva sobretudo de um
a lição de síntese proferida no contexto projecto mais vasto, ainda só aflorado no
das provas de agregação prestadas para discurso aqui implícito: e essa inovação, por
obtenção do título de Professor Agregado vezes contrariando o império dos efeitos
do 5.º Grupo –Pintura, pela ESBAL (Diário publicitários, a persuasão vertiginosa
da República – II Série, n.º 3 de 5 de Janeiro da televisão comercial, concentra-se
de 1971): «Mobilidade visual, aparência principalmente na ideia de que o projecto
e representação». A mesma questão didáctico-pedagógico não dispensa a
constituirá o tema da lição de síntese que qualidade poética». (Sousa, 1992, p. 9).
Rocha de Sousa — o primeiro docente 8
Editado pela Universidade Aberta em
da Faculdade de Belas-Artes a requerê-
1995, Didáctica da Educação Visual, no
las — prestou no contexto das Provas de
quadro da acção didáctico-pedagógica
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

Habilitação ao Título de Professor Agregado


no domínio da Educação Visual ao nível
no 3.º Grupo – Pintura e Projecto (Modos
dos ensino básico e secundário, retoma
de Formar), no dia 7 de Janeiro de 1997:
dois objectivos, deste modo apresentados
O Real impossível: pintura, outros modos
na Introdução: «Os estudos e programas
de formar. Este «real impossível» virá a
didácticos desenvolvidos nas últimas
focar-se no tema da impossibilidade do
décadas no âmbito da educação visual
retrato, também ele desenvolvido em
têm registado algumas mudanças quanto
ensaios, de que se destacam «Memória de
às orientações estratégicas, mas não se
Daisy ou um exercício de reflexão sobre o
afastaram, na essência, de dois objectivos
retrato impossível» e «O retrato impossível:
fundamentais: o de aprofundar, na sua
heterónimos enganadores», e muito
mobilidade intrínseca, a capacidade de
particularmente no vídeo Auto-retrato.
um ver crítico, culturalmente sustentado, e
6
Este livro segue um critério semelhante o de alargar o espaço técnico-criativo do
ao adoptado em Para uma didáctica indivíduo na sua relação com o meio, com a
introdutória às artes plásticas. Como refere exemplaridade das proposições artísticas ou
o autor, «Há na obra uma aproximação funcionais, tendo em vista melhorar o seu
desenho, pintura e escultura, em acesso ao fazer, à invenção, à leitura e uso
correlação com outros campos criativos qualificado dos instrumentos comunicativos
como o design, a arquitectura ou o cinema de que pode dispor enquanto ser social e
e a fotografia. A partir de um conceito agente de civilização. (Sousa, 1995, p. 9).
de visão “em mobilidade”, bem como do 9
Este filme integra o acervo de filmes em
“isolamento” clarificador dos elementos
depósito na Cinemateca Portuguesa -
estruturais da linguagem plástica, encara-
Museu do Cinema.
se o campo expressivo de forma mais
sustentada e através de uma espécie 10
Apresentado em encontros de formação
de “desmontagem” assim decidida: docente promovidos pelo GETAP, sendo
simplificação/acentuação; rotação/ também apresentado internacionalmente.
sobreposição; construção/representação;
movimento/ritmo; espaço; agrupamentos/
11
Não foi possível aceder à informação
partes». (Sousa, 1996, p. 13). relativa a estas unidades.

7
Uma parte destas lições constitui a matéria
12
Boletim da Academia Nacional de Belas-
do livro Ver e tornar visível: formulações Artes; Boletim da Escola Superior de Belas-
básicas em cinema e vídeo. Na Nota de Artes de Lisboa; Colóquio/Artes: revista de
Introdução, Rocha de Sousa escreve: «Trata- Artes Plásticas; Revista Sema; Revista Sinal;
Revista Notícia; Revista Opção; Revista

378
Seara Nova; Revista & etc: Suplemento online daquela instituição, constam ainda
Literário do Diário de Lisboa; Semanário «A poesia e o visível», «Caminhos do
O Jornal; Ao Km 0, Jornal Novo; ABC — imaginário», «Traçados da nossa espera»,
Portugal; JL — Jornal de Letras, Artes e «Espaço real, espaço virtual», «Poética do
Ideias. protesto», «Os silêncios do consumo», «A
arte e o silêncio» e «Museu encoberto».
13
Não foi possível aceder à informação
relativa aos programas iniciais da série 15
De acordo com o Curriculum (1996), e
(datados de 1973), emitidos nos dias hoje desaparecidos.
24.01; 19.02; 24.10; 07.11.; 29.11; 16
Exceptuando os de Rogério Ribeiro e o
05.12. Do mesmo modo não se acedeu
de Inez Winjhorst, não foi possível aceder
à informação relativa aos programas da
a qualquer um dos outros, referenciados
série, datados de 1975, emitidos nos dias
no mesmo Curriculum, o mesmo se
11.07; 25.07; 16.08; 07.09.
verificando relativamente aos que se
14
A informação disponibilizada pela referem às instituições.
RTP incide somente sobre estes seis
programas. No entanto, nos Arquivos

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CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

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Filmografia e Videografia
Programas didácticos

ANTUNES, Elisa (real.). Entre nós [Em de Sousa; colab. Helder Batista. Lisboa:
linha]: entrevista a Rocha de Sousa, entrev. Instituto de Tecnologia Educativa, cop.
Raquel Santos; tecnóloga Ana Maria 1979 (+/- 20’): cor: son.
Parente; prod. Universidade Aberta para
Sousa, João M. Rocha de (real., guião e
a RTP. Lisboa: Universidade Aberta, cop.
coment.). Forma plástica [Registo fílmico],
2002 (31’ 43’’): cor: son.
com part. de Lima Carvalho. Lisboa:
Conversa entre o Professor Rocha de Sousa Instituto de Tecnologia Educativa, cop.
e a professora Luísa Gonçalves; prod. [S.d.] (?). 16 mm: cor: son.
Universidade Aberta. Lisboa: Universidade
——. (real.). A laranja [Registo vídeo]: ver,
Aberta, cop. 1997 (29’ 40’’): cor: son.
refazer, inventar, autores Luísa Gonçalves
MARTINS, Eduardo (real.). Desenho e Rocha de Sousa. Lisboa: Universidade
[Registo vídeo]: Artes Plásticas, texto Rocha Aberta, cop. 1992 (19’ 42’’): cor: son.

380
SOUSA, João M. Rocha de; COELHO, locução Fialho Gouveia; prod. Couceiro
Eduarda Leal; SANTOS, Manuela Novais Neto; prod. RTP. Lisboa: RTP, cop. 1985 (45’):
(aut.). Tapetes de Arraiolos [Registo vídeo]. cor: son.
Lisboa: Núcleo de Estudos de Tecnologia
——. A mão o homem em projecto [Registo
de Ensino a Distância (NETED); Instituto
vídeo] (12 programas), texto Rocha de Sousa;
Português de Ensino a Distância (IPED),
prod. RTP. Lisboa: RTP, cop. 1985 (+/- 25’):
cop. 1985 (18’ 50’’): cor: son.
cor: son.
TRINDADE, Ana José (real.). Didáctica
——. Artistas portugueses [Registo vídeo] (6
da educação visual [Registo vídeo]: a
programas), texto Rocha de Sousa; prod. RTP.
invenção do ver, autor Rocha de Sousa;
Lisboa: RTP, cop. 1983 (+/- 25’): cor: son.
tecnóloga Ana Maria Parente. Lisboa:
Universidade Aberta, cop. 1995 (19’ 45’’): ——. As ruas após o 25 de Abril [Registo
cor: son. fílmico, 16 mm], texto Rocha de Sousa, arg.
Rocha de Sousa e José Elyseu; fot. António
——. Didáctica da educação visual [Registo
Hipólito; mont. Beatriz Sanches; mont. Mus.
vídeo]: criatividade ou o homem em
Albano da Mata Diniz; assist. real. José
aprendizagem, autor Rocha de Sousa;
Victório; anot. Romana Santos; prod. RTP.
tecnóloga Ana Maria Parente. Lisboa:
Lisboa: RTP, cop. 1976 (?): cor: son.
Universidade Aberta, cop. 1995 (20’ 26’’):
cor: son. ——. Aproximação à pintura [Registo vídeo] (12
programas), texto Rocha de Sousa; prod. RTP.
——. Didáctica da educação visual [Registo
Lisboa: RTP, cop. 1977 (+/- 24’): p/b: son.
vídeo]: memórias para o desenho do

MARIA JOÃO GAMITO | A HORA ZERO


mundo, autor Rocha de Sousa; tecnóloga ——. Intervenção artística [Registo vídeo] (13
Ana Maria Parente. Lisboa: Universidade programas), texto Rocha de Sousa; prod. RTP.
Aberta, cop. 1995 (20’ 46’’): cor: son. Lisboa: RTP, cop. 1977 (+/- 20’): cor: son.

——. Didáctica da educação visual [Registo ——. José Escada: breve testemunho de uma
vídeo]: percepção visual e representação, sensibilidade [Registo vídeo], texto Rocha
autor Rocha de Sousa; tecnóloga Ana de Sousa; depoimentos José Escada, Rui
Maria Parente. Lisboa: Universidade Mário Gonçalves, Carlos Amado; prod. Maria
Aberta, cop. 1995 (19’ 45’’): cor: son. Helena Cardoso; prod. RTP. Lisboa: RTP, cop.
1981 (29’): cor: son.
——. O Pássaro [Registo vídeo]: ver, refazer,
inventar, autores Luísa Gonçalves e Rocha ——. Perspectiva [Registo vídeo] (47
de Sousa; tecnóloga Ana Maria Parente. programas), texto. Rocha de Sousa; prod.
Lisboa: Universidade Aberta, cop. 1997 RTP. Lisboa: RTP, cop. 1973-1975 (+/- 25’):
(18’ 42’’): cor: son. cor: son.

TUDELA, José Manuel (real.). Tapeçaria ——. Portugal contemporâneo a arte possível
portuguesa de Portalegre [Registo vídeo], [Registo vídeo] (13 programas), texto Rocha
texto Rocha de Sousa; imagem Pedro Efe; de Sousa; prod. RTP. Lisboa: RTP, cop. 1984-
locução Ana Zanatti. Lisboa: Universidade 1985 (+/- 40’): cor: son.
Aberta, cop. 1983 (21’ 40’’): cor: son. SOUSA, João M. Rocha de. O amanhecer
de Inez Wijhnorst [Registo vídeo], part. Inez
Wijhnorst. [S.l.: s.n.], cop. [S.d.] (24’56’’): cor:
Séries e programas televisivos, e documentários
son.
ELYSEU. José (real.). A arte e as coisas. ——. Rocha de Sousa: obra multidisciplinar
[Registo vídeo] (? programas), texto Rocha [Registo vídeo], part. Rocha de Sousa. [S.l.:
de Sousa, locução Eládio Clímaco, prod. s.n.], cop. [S.d.] (44’37’’): cor: son.
Fernando Ávila para a RTP1. Lisboa: RTP,
cop. 1983 (‘/- 18’): cor: son. ——. Rogério Ribeiro: o atelier do pintor
[Registo vídeo], part. Rogério Ribeiro e Rui
——. Almada, português e mito Moutinho. [S.l.]: Univídeo, cop. [S.d.] (20’45’’):
[Registo vídeo], texto Rocha de Sousa; cor: son.
depoimentos, Vítor Pavão dos Santos,
David Mourão-Ferreira e Lima de Freitas;

381
Filmes de ensaio ——. Névoas em abril (incompleto) [Registo
vídeo]. [S.l.: s.n.], cop. [S.d.] (12’34’’): cor: son.
SOUSA, João M. Rocha de. A casa revisitada
[Registo vídeo], part. Maria Rosa Rocha de ——. O corpo inútil [Registo vídeo], part. Lima
Sousa, Maria Emília Carneiro de Sousa e Carvalho, Helder BatistaManuela de Sousa,
Pedro Bravo. [S.l.: s.n.], cop. 1979 (19’03’’): Marília Viegas, Maria João Gamito, Ana
cor: son. Vidigal, Altina, José Branco e Manuel Branco;
assist. real. Lima Carvalho; anot. Maria João
——. A carta. A hora zero. O fim do cenário Gamito. [S.l.: s.n.], cop. 1981 (34’11’’): cor:
(trilogia) [Registo vídeo], part. Ana Machado. son.
[S.l.: s.n.], cop. [S.d. 1987?] (23’33’’; 18’32’’;
17’30’’): cor: son. ——. O mundo ausente: ensaio para um olhar
[Registo vídeo], part. [S.l.: s.n.], cop. 1986 (?):
——. A máscara [Registo vídeo]. [S.l.: s.n.], cop. cor: son.
[S.d.] (?): cor: son.
——. O pó [Registo vídeo], part. Daniela Rocha
——. A morte de Ana Orwell [Registo vídeo], [S.l.: s.n.], cop. [S.d.] (?): cor: son.
part. Maria João Gamito. [S.l.: s.n.], cop. 1984
(16’22’’): cor: son. ——. O prisioneiro [Registo vídeo], part. Lima
Carvalho e Helder Batista [S.l.: s.n.], cop.
——. A palavra encoberta [Registo vídeo], part. 1980 (23’47’’): cor: son.
Lima Carvalho. [S.l.: s.n.], cop. 1981 (27’41’’):
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

cor: son. ——. O véu dentro da cidade [Registo vídeo],


part. Carla Batista, Maria João Gamito e
——. A pedra [Registo vídeo]. [S.l.: s.n.], cop. Pedro Batista. [S.l.: s.n.], cop. 1981 (24’22’’):
1987 (?): cor: son. cor: son.
——. A praga [Registo vídeo], part. Ana ——. O túnel [Registo vídeo]. [S.l.: s.n.], cop.
Machado e Fátima Mendonça. [S.l.: s.n.], cop. [S.d.] (19’28’’): cor: son.
1989 (26’02’’): cor: son
——. Peregrinação [Registo vídeo], part. Lima
——. A tempestade [Registo vídeo], part. Carvalho e Helder Batista. [S.l.: s.n.], cop.
Fátima Mendonça. [S.l.: s.n.], cop. 1991 1978 (27’26’’): cor: son.
(26’21’’): cor: son
——. Por um cidadão desconhecido [Registo
——. Auto-retrato [Registo vídeo], part. Ana vídeo], part. Lima Carvalho, Helder Batista e
Machado. [S.l.: s.n.], cop. 1991 (13’28’’): cor: Pedro Fialho. [S.l.: s.n.], cop. 1977 (17’35’’):
son cor: son.
——. De passagem entre memórias [(Registo ——. Projecto K [Registo vídeo], part. Fátima
vídeo], part. Maria João Gamito. [S.l.: s.n.], Mendonça. [S.l.: s.n.], cop. 1989 (40’59’’):
cop. 1986 (13’47’’): cor: son. cor: son.
——. Encontro no século XXI [Registo vídeo], ——. Ruptura no interior [Registo vídeo], part.
part. Lurdes Robalo, Lima Carvalho e Helder Maria João Gamito e Rocha de Sousa. [S.l.:
Batista. [S.l.: s.n.], cop. 1977 (20’44’’): cor: s.n.], cop. 1982 (25’43’’): cor: son.
son.
——. Semearam ventos [Registo vídeo], part.
——. Lírica do desassossego [Registo vídeo], Manuel Teixeira, Albertina Sabino, Maria
part. Isabel Rocha. [S.l.: s.n.], cop. 1993 Emília Carneiro de Sousa, Teresa Ferrand e
(22’43’’): cor: son. Lurdes Robalo, com col. de Lima Carvalho,
——. Memória [Registo vídeo]. [S.l.: s.n.], cop. Helder Batista e Pedro Fialho. [S.l.: s.n.], cop.
1987 (?): cor: son. 1978 (28’08’’): cor: son.
——. Memória e ficção [Registo vídeo], part. ——. Sinais [Registo vídeo]. [S.l.: s.n.], cop.
Maria João Gamito [S.l.: s.n.], cop. 1985 [S.d.] (23’15’’): cor: son.
(17’10’’): cor: son. ——. Ventos [Registo vídeo]. [S.l.: s.n.], cop.
——. Missa negra [Registo vídeo], part. Ana [S.d.] (7’55’’): cor: son.
Machado e Fátima Mendonça [S.l.: s.n.], cop. ——. Vozes [Registo vídeo], part. Isabel Rocha
1989 (33’36’’): cor: son. [S.l.: s.n.], cop. [S.d.] (19’56’’): cor: son.

382
Rocha de Sousa,
O bater das asas de papel
(ou: O escritor - Memória e ficção)
Isabel Sabino
Professora Catedrática de Pintura, Faculdade de Belas Artes, Universidade de Lisboa.
Investigadora integrada do CIEBA.
[email protected]

“o tempo visita a casa toda como se fosse pela primeira vez”1

Falar e, agora, escrever sobre a faceta de Rocha de Sousa autor de fic-


ção, exige, da minha parte, algum atrevimento (ou mesmo leviandade) para
uma incursão num terreno evidentemente fora da minha área de conforto.
E requer, por parte de quem me ler, a benevolência que eventualmente
merece quem o faz, sobretudo, pela amizade, admiração e imensa gratidão.
De facto, se há pessoa a quem devo muito do que aprendi e muitas
chaves para o que depois pude ir aprendendo é, precisamente, este autor
plural. Inseparavelmente da criação artística e do ensino, tem produzido
escrita abundante de expressão aparentemente fácil e natural, em coe-
rência total com o pensamento bem estruturado e o discurso oral fluído
e seguro com que me habituei a vê-lo responder às exigências teóricas,
críticas e didáticas, bem como às necessidades políticas e institucionais (e
até burocráticas) que a prática pedagógica no ensino superior tem acar-
retado cada vez mais.
Autor (e autoridade) afirmado na pintura, nos filmes, em diferentes fa-
cetas da escrita, em tantos assuntos por si vistos sob a lupa e à distância
conveniente à objectividade necessária da teoria, ele revela-se-nos tam-
bém como pessoa em tudo o que faz.
Os seus livros de ficção publicados ocupam uma estante e sem dúvi-
da que mereceriam aqui uma apresentação mais especializada e extensa
de cada um deles. Mas, se, num percurso visual com imagens, uma curta
apresentação é viável quando reduzida a pouco mais do que as capas dos
livros, nas palavras sobre eles o tempo alonga-se, pelo que opto por uma
aproximação pouco métrica ou proporcional, assumidamente muito pes-
soal, tratando apenas de colher algumas ideias que pareceram evolar-se
do papel dos seus livros, vindo mais diretamente ao meu encontro.

383
Evocando a perspectiva visual intuitiva a que se chamou voo de pássaro, e
invocando algumas palavras adaptadas das do próprio autor, vislumbro o bater
das asas das palavras de papel como eco possível para uma aproximação a uma
totalidade de uma obra que continua em caminho, e afloro assim, ao sabor de
uma brisa caprichosa, alguns dos seus voos na ficção e na memória.

1962
Amnésia
Trata-se de uma peça de teatro escrita em Angola, durante o serviço militar,
e que chegou a ser lá representada na altura, na rádio. O prefácio de Julião
Quintinha apresenta o autor como jovem pintor que, de facto, deveria ter uns
24 anos, resumindo o texto como a história de um artista que está a perder a
memória de tudo, inclusive da esposa e da sua própria arte, convivendo gra-
dualmente com o mergulho nas “trevas da loucura”.
O primeiro ato passa-se num atelier no qual são visíveis equipamentos nor-
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

mais e telas de costas para o espectador. Ali trabalha Léo, o protagonista pintor,
quando a sua esposa Sara chega e conversam. Hartly vem entrevistá-lo para um
jornal de artes. O artista mostra-se amargurado perante a falta de memória que
principia a sentir, acabando por afirmar a sua desistência da pintura e a recusa
do seu próprio reconhecimento como pintor.
No segundo ato, o atelier está povoado de telas brancas. Sara não quer
permitir a renúncia de Léo. O casal de amigos, Márcia e Keil, arquitecto, falha
nas tentativas de convencê-lo a não ceder à nova realidade que o obceca e
seduz, o afundamento na amnésia. Nenhum dos visitantes seguintes (Kirov,
Lima, Berenice, Vicente) tem também qualquer sucesso e ele acaba mesmo
por recusar receber mais visitas.
O 3º ato passa-se na penumbra do consultório para doentes mentais do
Dr. Hess, que pretende que ele se lembre de coisas a que ele resiste sistemati-
camente. Nega conhecimento da sua história pessoal, não se reconhece como
pintor, não se lembra da esposa nem sequer dos sonhos, a cidade em que
vive não faz sentido e ele apenas reage aos argumentos imediatos do médico
na reafirmação da recusa em lembrar-se do que quer que seja, estranhando
contudo o amor da esposa a um “corpo sem alma”2. No final, Sara cede a Léo,
que poderá ficar ali internado e ela estará junto dele, ao que ele responde,
de modo neutro, que “as catedrais estão vazias”. E além disso, termina, “Nada.
Absolutamente Nada.”3

1986
Os passos encobertos
Os Passos Encobertos é um texto construído no fio de um misto de mo-
nólogos e diálogos na interpelação de personagens femininas que represen-
tam diferentes classes sociais e acontecimentos reais ou ficcionados em certos
meses do ano.

384
O texto acaba por afirmar a necessidade de sobrevivência no final, mas o
cerne é a travessia pela relação entre a utopia e a perda, mantendo esse pa-
radoxo nos farrapos do real de paisagens diversas que transitam do campo
ainda presente, com fábricas na distância, já fechadas, para as casas onde se
acumula a poeira da nostalgia, os sinais de uma revolução breve e do mundo
em transformação, a cidade que se esvai nas ruas, nas escolas, nas reparti-
ções e nos cafés.
Porque, desvenda o próprio autor, “A estética que aprendi saiu direta-
mente das paredes queimadas, do arder da cortiça, perdeu-se para a geo-

ISABEL SABINO | ROCHA DE SOUSA, O BATER DAS ASAS DE PAPEL (OU: O ESCRITOR - MEMÓRIA E FICÇÃO)
metria que sobeja dos quotidianos rectilíneos”4.
Há um olhar que recorda Antonioni, cineasta de mulheres ou, melhor
dizendo, de personagens femininas, vistos como seres complexos e inespe-
rados de beleza diversa, no erotismo da aproximação, da sedução possível,
da rendição à sua autonomia e estranheza.
Luísa, Cristina, Helena, Paula, mas também Teresa e Joana, são nomes
que surgem e regressam alternadamente, retratos de mulheres subenten-
didas, interrompidos e entrevistos nos desvendamentos e ocultações. Uma,
talvez pintora, talvez militante revolucionária depois de abril; outra, muito
antes disso; outra ainda, sempre presente nas despedidas e regressos; esta,
a que escreve; aquela, protagonista da inflamação e suspensão do desejo;
e, em todas, de certo modo, a sua consumação diversa.
A presença da pintura e dos seus quadros referenciais é outra constante
intermitente, invocando Magritte, Chirico e outros, na aproximação semi-o-
nírica aos lugares nos ambientes expressivos. E talvez o texto seja estrutu-
ralmente, na conversão do espaço à narrativa, uma pintura ao modo cubis-
ta, pintada com palavras.

1987
Memória de Daisy ou um exercício sobre o retrato impossível
Neste caso não se trata evidentemente de ficção, mas de um ensaio sobre
a ideia de retrato em pintura, no qual, como noutros casos de escrita de Rocha
de Sousa, os géneros literários coexistem em caleidoscópio e a ficção irrompe.
Esse é também o caso de Belas Artes e os Segredos Conventuais, publicado
mais tarde, livro no qual a memória da realidade é revestida de alterações es-
trategicamente ilusionistas, poupando uma identificação demasiado inconve-
niente face a protagonistas vivos ou desconfortável para o autor.
Aqui, a pergunta inicial “Quem é Daisy?”5 ilude a verdade do nome de
um rosto, uma figura num quadro, recordando a fugidia realidade dessa
Daisy primeira, inquietante devoradora de flores de O Rinoceronte (Ionesco,
1960) e da personagem fantasmática de O retrato de Jennie (filme de William
Dieterle, 1948).
A inacessibilidade feminina é, certamente, paradigma do seu mito mais
profundo pela afirmação do desejo negado, e ela serve de pano de fundo a

385
este texto que, não sendo ficção, ficciona a escrita sobre o retrato, em espe-
cial em pintura, e sobre a pintura em si. É, de resto, um excelente exemplo da
escrita ensaística de Rocha de Sousa, na qual há sempre, para bem de quem
lê, um desvio da obra ou tema analisados que, ao assumir uma dimensão fic-
cional híbrida, confere espessura e polifonia ao texto, assim enriquecido nas
suas ressonâncias e na sua capacidade de captura do leitor.

1999
Crónica de Guerra. Angola 61
“Este homem, ao meu lado, chora.”6; “ O mar está calmo e ele afoga-se”7,
está escrito quase no início deste livro, quando a mulher com quem casou
antes da partida, Joana (nome obviamente ficcional com que re-baptiza a es-
posa real, companheira de sempre), se despede dele no cais da Gare Marítima
de Alcântara e ele, no Vera Cruz a 21 de julho de 1961, vê o cais distanciar-se.
Aqui a figura central só pode ser João, o Rocha, quando “Fala o Rocha!”
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

“Um pintor perdido no meio de um filme” (...) que, na primeira pessoa, diz que
“nesse caso faço cinema, descrevo coisas em plano geral e recorro, quando ne-
cessário, ao close-up”8ou “são cada vez mais...pintura e cinema”9.
Trata-se de uma narrativa baseada em factos reais, durante a comissão de
serviço militar de Rocha de Sousa em Angola, bem no início na guerra, quando
atravessa locais descritos vividamente, num trajeto que se desdobra em pontos no
tempo e no mapa: Luanda, Puto, Grafanil, Caxito, Zala, Ambriz, Nambuangongo,
Colonato do Vale do Loge, Inga, Quito, Caipemba, Songo, Camabatela.
Por vezes, a selva mostra-se densa, outras vezes a paisagem é como “as
imagens do oeste mítico da América de John Ford”10; e há crianças de olhos
imensos que mergulham no lodo para apanhar caranguejos, velhos que dizem
menino ou que dizem senhor, animais que se ouvem quase sempre, macaqui-
nhos brincalhões, escaravelhos vermelhos que devoram ratos, pássaros que
fazem todos os sons e batem asas como panos.
Em Crónica de Guerra. Angola 61, o prefácio do autor é um documento
de lúcida síntese e explica-nos que as razões do texto estão para além do pes-
soal, pois “o país precisa de tais ajustes de contas”11, no caso concreto sobre a
guerra perdida nas ex-colónias portuguesas.
“Senti a realidade desse salto no abismo, entre 1961 e 1963, e trouxe de
Angola exaustivos apontamentos sobre ações concretas de toda a comissão.
São infernais e fascinantes deslocamentos, a precariedade inicial de tudo. São
retratos de vivos e notícias dos mortos, a lassidão e o medo, o afundamento
numa espécie de lucidez revelada, perguntas entretanto resolvidas por diversas
concordâncias, o sentido dos factos esclarecendo-se a todo o comprimento de
noites regadas a café, iluminadas de insónia”12.
Assim regressam pessoas como Armando o Capitão, de alcunha “Zbringa”,
o cabo Santos que morre de um tiro acidental (e cuja organização do es-
pólio e carta para enviar à família ficam a cargo de Rocha de Sousa, que o

386
capitão acha “talhado para o efeito”13), o furriel Costa e Silva, o primeiro-sar-
gento Toscano, o cabo Freitas, o Valverde, o Hernâni, o Maçanita, o Rocha,
o “Cinturinhas”, o Cabo Frias, o Serpa, o 311, o Caracol.
Há os fragmentos das cartas a Joana e o telegrama dela chegado no
dia de aniversário (que ele nem recordava), no conforto dos aposentos so-
litários improvisados numa casa abandonada e da escrita dactilografada na
olympia. Depois é o episódio dos soldados ladrões de galinhas que caiem
numa emboscada entre as galinhas que fogem, quando o Fernando morre
com um tiro e depois é esquartejado e queimado pelos guerrilheiros da

ISABEL SABINO | ROCHA DE SOUSA, O BATER DAS ASAS DE PAPEL (OU: O ESCRITOR - MEMÓRIA E FICÇÃO)
UPA, sob os olhos do Serpa, escondido a maior parte da noite “a menos de
vinte metros”14.
“Vá carvão!”: Escreve, e é como se os gritos ainda se ouvissem.
“Vá carvão!” “Paca-paca”, diz sempre o Zbringa. Tiros de Breda e Kalashnikov.
Depois as patrulhas vão chegando cada vez mais abatidas e desgasta-
das, há o desânimo que se instala, a descrença não apenas no sucesso da
guerra mas na sua própria razão de ser, tudo agravado pelas falhas no abas-
tecimento alimentar e pela degradação das infra-estruturas que permitem,
por vezes, algum alheamento confortável do real, entre as imagens de pe-
sadelo queimadas com aguardente de medronho. A evacuação das mulhe-
res presentes (dos oficiais e outras) vem revelar-se imperativa não apenas
pelo perigo crescente mas também pela necessidade de moralização, o que
assinala o limiar de uma nova fase de consciência da extensão do conflito.
Apesar disso o autor ainda se confronta com uma revelação, quando
do encontro com um jovem casal “emblemático” que, em Sambacajú, sabe
que aquele é o seu lugar e o seu mundo e encontrou modos de viver com
a sua realidade em mudança, no caminho para um país futuro - o que lhe
ensina que também ele, afinal, poderia ficar, alinhando outra vida noutra hi-
potética (e equívoca) utopia.
Porque, em certos locais, “Angola não está em guerra”15.
E porque, no final, depois do bater das asas de panos dos pássaros do
medo vindo do negro da mata, é possível dizer que “Angola deixou de exis-
tir” 16, como se, nas cicatrizes da violência incorporada, alguma vez se re-
gressasse de certos lugares.
Em todos os outros livros, aliás, Rocha de Sousa voltará sempre aos acon-
tecimentos de Angola 61, em especial em Narrativas da Suprema Ausência,
de que falarei mais adiante.

2004
A casa revisitada
Esta é uma história fortemente autobiográfica que evoca um pouco o es-
trangeiro de Camus. Um homem, antigo professor após uma vida que per-
corre o país, chega a uma casa onde se confronta com o seu passado, dando
azo a uma narrativa que evolui em flash-back.

387
“Alguém morreu no quarto das bonecas. Alguém morreu no quarto ao lado”.17
Há na narrativa uma mulher da alta burguesia, uma mãe, um padre, os ra-
cords cinematográficos que subvertem a linearidade do tempo, inúmeras re-
flexões pessoais que se cruzam com uma história mais ou menos pessoal, uma
cultura, o seu tempo.
Ana, objecto fio condutor é o reflexo do narrador como num espelho, jogo
de opostos e de coincidências: “Durante algum tempo, Ana teria sido essa me-
nina do arco, no quadro de Chirico, que se aventura (inocente) pela território
da ameaça”.18
Mais, tarde, “Volto a lembrar-me: ela chegou e mal pediu para ficar, com
efeito: e entrou e dormiu no quarto das bonecas como se nunca de lá tives-
se saído, e acordou para rever tudo, e assim foi permanecendo sem explicar
porquê, sem ternura nem desamor, leve, diáfana, pálida, talvez à espera de um
destino inventado por mim.”19
O espaço funde a memória e o onírico, plasticiza-se na irrealidade que a
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

vida cria a partir da dor contida nos fragmentos vívidos patentes no mais con-
creto das coisas.
“Esse tempo de ficar, nunca mais o cerco: retorno sem exílio, regresso sem
deserções anteriores – tudo a seu tempo, como diz o povo. Se Ana viesse para
me revisitar, para rever os lugares de uma parte significativa da sua descoberta,
eu deixaria a porta encostada – a que horas chegava o comboio da noite? Este
desejo de ficar, abri ontem a casa, vejo os objectos com uma ternura amarga. É
assim o futuro daquela tarde de Verão? É assim a hora que nunca soube imagi-
nar completamente, pétala a pétala nos dedos da vida, ontem-ontem há tanto
tempo? Vou e venho pelo corredor dos mosaicos rosa-lilás. Alguém morreu no
quarto ao lado, a luz oblíqua da tarde anuncia na porta ao fundo a brevidade
dos dias de inverno.”20

2006
A CULPA DE DEUS para um ensaio sobre o livre arbítrio
Neste caso, as cenas, onde a dor é palpável, passam-se num sanatório, num
hospital, num bloco psiquiátrico, num instituto de oncologia, numa casa de ve-
lhos e em outras casas, quartos, clínicas, sacristias, numa biblioteca do sanatório
e, por último, num atelier, lugar que coloca a suspeita de que o nosso cicerone
pode ser, afinal, não um jornalista, antropólogo ou cientista, mas, de facto, um
artista em busca de algo impreciso que se vai talvez desvendar. O ambiente é
frequentemente o de uma espera branca, entre diálogos e muitas perguntas
que ficam no ar. Os personagens surgem, meio descolados do real, nas suas
verdades oriundas de idades e temporalidades diversas, numa vertigem lenta
que funde a realidade, a memória e o onírico.
Os fragmentos irrompem de geografias longínquas, frases ou outros ecos.
Angola, de novo, a guerra, o vale do Loge, Lisboa e o sul de Portugal, entre a
lúcida reflexão sobre a existência, a sexualidade crua ou implícita, restos de

388
uma revolução, questões profundas sobre a hipótese de Deus e a possibilida-
de do livre arbítrio.
Como acreditar em Deus? Como crer na liberdade? No fim, alguém diz:
“Deixem tudo isso, as feridas e os erros, o desalinho dos destinos, tudo,
todo o sofrimento, todos os equívocos, meninos mal nascidos, sem olhos ou
sem coração; deixem tudo isso porque eu já decidi responsabilizar-me, em de-
claração universal, por esse horror. Bem sei, só posso estar louco, louco e lúcido
como o pobre Léo, esse que dizia viver em paz no jogo paradoxal de cultivar a
revolta. Godot falhou ao encontro, abandonou-nos junto à raiz da árvore que

ISABEL SABINO | ROCHA DE SOUSA, O BATER DAS ASAS DE PAPEL (OU: O ESCRITOR - MEMÓRIA E FICÇÃO)
floresce e se despe das folhas todos os anos, ao correr do tempo, para sem-
pre. Deus está morto, nem o corpo do filho foi encontrado. A terra vai ficando
inóspita e silenciosa. Mas podem serenar, eu não vivo de ninguém nem para
ninguém. E como é preciso haver Deus, mesmo culpado ou a quem podemos
perdoar, eu fico no lugar Dele.” 21
O peso está ali, no lugar do autor.

2008
A casa
A alegoria da história adopta um protagonista que vive novamente num lar
de idosos e aí se confronta com a sua realidade cada vez mais precária, os ou-
tros e as memórias que tudo contaminam, confundindo os tempos e as coisas.
Num certo momento, o personagem afirma que “Gostava de escrever acerca do
modo de vida neste lugar, das camisas escuras, sobretudo desse impossível nojo
aos velhos, se esta é a palavra própria para gente abandonada assim (e tenho
as maiores dúvidas), depois de ter vivido a vida das ruas e a urgências dos com-
bates pela justiça.”22
Entre vedações que se sucedem, há uma boa biblioteca e estranhos interlo-
cutores, mortes consecutivas de modos diversos, suicídios, esforços de resistên-
cia. É um lugar da dor, da tristeza, da solidão e do abandono, que os bolos não
compensam, talvez apenas o Mar da Tranquilidade imaginado no tecto do quarto.
Gradualmente, o protagonista narrador vai perdendo conhecidos e compa-
nheiros, mantendo contudo a curiosidade que o leva a fazer perguntas e a de-
parar com um vazio crescente.
“Ela estremeceu, mas resmungou, com os olhos baixos:
- Disso não sei nada. Não sei julgar uma pessoa só de olhar para ela, não lhe
vejo a idade, nem os ressentimentos.”23
Os outros (nós mesmos), são talvez apenas “um fio da história e o caso fica
arrumado?”24, os outros “perderam o nome, são o et cetera da história.” 25

2011
Coincidências Voluntárias
Na apresentação do livro em 2011, eu mesma escrevi: “O texto (destas
coincidências) chega-nos de 2003 e 2004, com visitas recentes para os acertos

389
necessários. A estrutura revela-se em capítulos, mas o mais importante é que
entretece dois olhares fundamentais: um que narra episódios passados fazen-
do história e refletindo sobre o mundo, a arte, o ensino e a criação artística,
incluindo a sua; e outro, que coabita com a sua própria existência, que se ob-
serva como narrador, distanciado de si próprio e, ao mesmo tempo, colado a
si. A tecelagem do texto é contudo, muito mais complexa e profunda do que
isso, seja na forma da própria escrita, seja em termos narrativos.
Revisitação ou recomeço, o impossível da representação ou do retrato, a
cumplicidade entre visível e invisível, consciência e mundo, mobilidade visual,
aparência, testemunho, convenções do dizer, o exílio dos artistas, a condição
heteronímica, o/s silêncio/s, a dor, o esquecimento, a arte e os seu bons ofí-
cios, a permanência dos afectos e da voz, são alguns títulos parciais dos de-
zoito capítulos referidos, que oferecem abrigo a reflexões cruzadas de tempos
diversos, ao correr da memória que, como sabemos, tem os seus caprichos e
adensa enredos ficcionais. Nomes, muitos nomes, vão sendo desfiados, abra-
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

çados ou interpelados de diferentes modos, a começar pelo seu próprio e a


acabar em Picasso, “pintor de espírito”26 . “
Como eu já disse antes quando apresentei o livro, o real espreita, e não é
não só na chuva miudinha que cai sempre lá fora e encharca a alma, não é só
nos sinais da pele que envelhece, nos buracos do céu azul da Madeira ou dos
prédios de Cabul ou Londres. Há uma dor inegável, o sentimento de esque-
cimento, abandono e solidão, tristeza, uma melancolia permanente que atra-
vessa tudo. Se a casa permite suportar isto e, assim, é aí que mora, está laten-
te na toalha branca e limpa com padrões florais, femininos, que forra a mesa.
O auto-retrato nessa dor surge fragmentado nos textos, cortados pela
memória e sob consentimento de toda a teoria artística do espaço posterior
ao modernismo – se é que assim podemos dizer.
O sofrimento, a que uns fogem e a que os estóicos impõem disfarce, pois
“quem não tenta contornar as ruínas, o sangue, a morte?”27, pode camuflar-se
no humor, como refere relativamente a Batarda e Henrique Manuel28 ou em
estereótipos diversos, incluindo os visíveis em “processos pedagógicos que
poupam o aluno à a dor da aprendizagem”29.
Mas no caso concreto de Rocha de Sousa, a expressão quer pela escrita
quer pelas formas artísticas não recusa a dor que é determinante e, mesmo
sem desejar racionalmente, resiste a qualquer forma de optimismo, numa es-
pécie de hedonismo perverso.

2011
Talvez imagens e Gente de um Inquieto Acontecer
É um livro centrado numa mais clara arqueologia pessoal, no correr da
vida, a origem remota e os seus espaços e lugares, as perdas e o papel da arte
na convocação dos regressos, na qual a presença da família e, talvez mais do
que noutros textos, a figura da mãe, se revela essencial.

390
Pai, irmão, tias, amigos e conhecidos participam também na narrativa,
sustentada por uma tessitura de fragmentos diversos e climas que advém
dos espaços e, sobretudo, da fidelidade visual plena de ternura e nostalgia
com que são evocados. “Todos os cães mordem, mas há cães que mordem
de ternura; eu já não tenho cão, eu sou o próprio cão.”30
Os lugares, as casas, os objectos, por vezes algo tão prosaico como
peças de vestuário recordadas ou testemunhadas em fotografias, a ex-
pressão de um olhar ou alinhamento do cabelo, a luz de uma sala ou de
um caminho exterior, povoam-se de vozes e surgem-nos como um álbum

ISABEL SABINO | ROCHA DE SOUSA, O BATER DAS ASAS DE PAPEL (OU: O ESCRITOR - MEMÓRIA E FICÇÃO)
do qual foram subtraídas as imagens do arquivo pessoal, que o pudor res-
guarda, apenas revelando os fragmentos de frases tal como foram ditas
e os ecos de tudo, que incluem, também, inúmeras informações sobre a
mutação dos contextos ao longo do tempo, do mais pessoal e íntimo ao
acontecer do mundo.
“talvez a avó Angélica soubesse mais da vida do que eles todos, tal-
vez fosse habitada por essas imagens e essa gente do princípio do século,
vivas até mais tarde, mortas entretanto – e o medo de as sentir no meu co-
ração batendo forte, sem nada saber sobre o que foram e se esta memória
revela alguma causa palpável, modelo de sentir, ou aparências do esque-
cimento irreparável que também sulcou o meu atormentado acontecer”31

2012
Lírica do desassossego
Também aqui o título coincide com um filme do autor. Também aqui
existe um dispositivo em flashback que inicia com a observação da própria
morte e percurso de vida por Luísa, a personagem feminina central, mu-
lher de inteligência invulgar mas pouco produtiva desde a adolescência,
atravessando três casamentos desde África a Portugal (Nacala, Lourenço
Marques / Maputo) para descambar no álcool e na decadência.
“Morrer não apaga tudo: no fundo da minha sepultura, alguém vive
por mim quem eu fui”32, avisa-nos ela, quase no início. É a mesma Luísa le-
vada a recuperar os estragos de uma boneca que destruiu mas com que
nunca brincou, que vive a confortável e livre vertigem da juventude bran-
ca burguesa nas ex-colónias antes da emancipação destas, recordando
algumas das notas de Luanda e de Ambriz do autor, da sua estadia mili-
tar, que passa pelos ateliers de Belas Artes, que pinta por vezes uma certa
pintura abstracta, potencialmente elegante, ou depois bichos do seu pró-
prio desassossego.
A intriga está instalada num abismo existencial: Quão funda é a nossa
experiência do que vivemos? Acaba a arte por ser uma suspensão e um
desvio? Porque vivem os outros a vida que fomos ou somos?

391
2013
Narrativas da suprema ausência
Há que concordar com uma ecologia das imagens que implique distinguir
as que são necessárias das que não o são, e podemos alargar esse princípio,
que Susan Sontag estabelece para as imagens fotográficas, às que a escrita
sempre potencia com maior ou menor sentido de ekphrasis.
No caso do livro de Rocha de Sousa sobre a Guerra em Angola em 1961,
é inequívoca a necessidade do que escreve. Há que recordar e aprofundar
os factos, as pessoas e as verdades, para o luto da história imprescindível a
um honesto cumprimento da modernidade (incompleta), de preferência sem
o atabalhoamento da sua substituição por erros maiores num novo tempo.
Talvez isso implique também, como confessou em Sarajevo uma mulher pe-
rante a reação dos vizinhos europeus durante a Guerra da Bósnia, que é nor-
mal e humano” pensar “Oh, que horror” e mudar de canal?” 33, o que é, ape-
sar de tudo, um grau de emoção ainda antes da indiferença, do tédio, ou do
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

cinismo que proliferam nas gerações mais novas perante a realidade sobre a
qual o sarcasmo se admite e cultiva.
No caso deste livro, é o próprio autor que nos caracteriza o texto escrito
em dois meses a partir da leitura diária dos jornais durante a guerra da Síria,
com os espectros das crises no Líbano, no Paquistão e no Afeganistão e as
perplexidades da observação do fundamentalismo inerente, à mistura com a
deriva de um casal de sobreviventes pela arte:
“São narrativas, efectivamente: são a trágica viagem por um mundo sem
razão, rupturas da própria modernidade e seus mais nobres conceitos, cravan-
do as mais diversas contradições e guerras num capitalismo ciclónico, selva-
gem, contra-natura. A milenar evolução da Humanidade começa a desagre-
gar-se, perdendo o sentido de antigas culturas.”34
Na leitura depara-se com inúmeros relatos sobre os conflitos referidos,
oriundos de vários jornais e outras fontes de informação, que se cruzam com
memórias vívidas do passado na guerra de Angola, cuja descrição e análise
aprofunda em excertos, como por exemplo o referente ao massacre em que
esteve envolvido o batalhão 11435, logo em 1961, que neste livro desenvolve
mais do que no anterior dedicado à guerra colonial, já aqui referido.
Surgem, ainda, fragmentos de conversas e escritas recentes sobre arte e
até comentários sobre textos do próprio autor pela mão de amigos e conhe-
cidos, porque “atrás de cada forma, há sempre vários fantasmas” 36.
Há ainda irrupções de outras dimensões do real de um mundo como guer-
ra permanente, entre a “lei suprema” dos talibãs e o carnaval dos soldados
Americanos com fragmentos de cadáveres, o afundamento da Grécia na crise
financeira, Merkel e a austeridade na Europa ideologicamente debilitada, a
escalada da direita e da filha de Le Pen, ou ainda a consagração futebolística
do Porto “como maior potência do século XXI” ou os homens azuis do povo
Tuareg do Saara, as mortes de Fernando Lopes e Miguel Portas, entre outros.

392
E está sempre Picasso, Magritte e o autor, ele próprio, que se revê como
o Gregor Samsa de Kafka, que se dissolve feito um “contabilista da perda”37
numa praia que não é a da investigação, mas de “uma experiência de moni-
torização dos conflitos sociais e afins”38.

2014
Os fantasmas de Lisboa
Este livro conta a história de um jovem que vem estudar Belas Artes e vive
no edifício da escola e na cidade uma série de acontecimentos, entre conver-

ISABEL SABINO | ROCHA DE SOUSA, O BATER DAS ASAS DE PAPEL (OU: O ESCRITOR - MEMÓRIA E FICÇÃO)
sas intermitentes com um funcionário, o Felício, que oscila entre a lucidez e
a loucura. Enquanto o jovem amadurece na sua nova vida e realidades, ten-
tando pensar e ver por si próprio (o olhar é uma perspectiva fundamental na
narrativa que passa para os títulos dos capítulos) a vida e a pintura em arti-
culação com outras dimensões da cultura, o edifício da escola é atacado por
uma estranha doença que o corrói por dentro e a estrutura vai desabando por
fases. Enquanto isso, surgem cada vez mais na cidade inusitados habitantes
de comportamento circunspecto e aspeto quase albino, que falam mal por-
tuguês e que revelam uma origem misteriosa.
João (?), Elisa, Felício, Arminda, o Telmo, e os estranhos “albús”39, são
nomes inventados para personagens em parte reais de um lugar talvez tam-
bém real em tempos, fantasmas de uma história por fazer.

Conclusão
O texto do próprio Rocha de Sousa que surge como prefácio em Os Passos
Encobertos é exemplar para compreender o significado do seu investimento
literário paralelo ao pictórico quando diz que “A pintura imobiliza o mundo. É
sua a necessidade de tornar visível o lado profundo das aparências que o mo-
vimento desfoca ou encobre. Poderá dizer-se que a linguagem das palavras
realiza o mesmo esforço, a mesma metáfora da imobilidade paradoxal, mas a
sua natureza depende sobretudo de relações concretas e subjetivas do tempo.
Descrever um quadro é tentar devolvê-lo à hipotética sequência temporal das
sua formas. Descrever um quadro é, portanto, e de certa maneira, sair dele.
Com as palavras acontece um pouco o contrário. Quando trabalhamos
com elas (precariamente ou assim-assim, tanto faz) construímos um tecido
de ligações significantes que se temporaliza através da própria leitura de su-
perfície. Surgem desse modo situações ou sequências que nos impelem para
dentro do seu espaço, como na vida, como nas linguagens em que o factor
tempo é estrutural e vivencialmente irrecusável. Descrever uma história é
reescrevê-la. Descrever uma história é, portanto, e de certa maneira, entrar
nela, ser cúmplice dela.”40
Penso que nestas palavras de Rocha de Sousa se revela muito o autor que
é, talvez podendo colocar-se a hipótese de ser a ficção o espelho mais nítido
do autor, neste caso. Talvez, a partir das suas personagens reais e inventadas,

393
lugares, ideias, a partir das palavras de papel, seja possível reconstituir um
retrato ou, pelo menos, alguns traços distintivos para um retrato em que se
vislumbra um padrão com um modo de ver e de pensar.
Por outro lado, a escrita irrompe da imagem e, por sua vez, a imagem ir-
rompe sempre por dentro da escrita - o que pessoalmente me ajudou a com-
preender como funcionar, eu própria, numa faceta da escrita académica, a que
toma um perfil ficcional e poético, permitindo colocar em prática a hipótese
de pintar como se escreve e escrever como se pinta e, desse modo, dar
forma transtextual à apresentação de um processo de investigação.
A narrativa deste autor funciona, como já se disse, de modo pictórico e
cinematográfico. Sobrevoa em voo de pássaro, afunda-se em close-up, avança
e recua, funde espaços e tempos para fragmentá-los de novo, enrola-se sobre
si própria e novamente expande-se como uma pintura all-over, assim possibi-
litando nessa mobilidade (e exigindo) interpretações abertas.
Na sua visão evidencia-se a realidade fracturada que tenta entender e re-
CONVOCARTE N.º 4 — HOMENAGEM A ROCHA DE SOUSA

gistar como se para religá-la, contudo assumindo melancolicamente a frac-


tura sem remédio, o regresso ao trauma e estado de ruínas que caminham
para a catástrofe intravável, coerente com uma visão plástica do modernismo
existencialista. A sua escrita “menos ensaística”, que se desenrola entre a me-
mória e o ficcional, envolve-nos assim num quadro pessimista, quase sempre
fundindo as dimensões do real, da distância da África em guerra ou utopia
impossível, dos fantasmas dos conventos e da criação artística.
E, recordando a voz off do filme A Casa Revisitada: “tudo para relembrar
ao contrário das horas”, já que “o tempo visita a casa toda como se fosse pela
primeira vez”, regressamos ao princípio.
Porque a amnésia é a doença que corrói as casas, os monumentos, os con-
ventos, as instituições, e que soterra os fantasmas dos Felícios e das Felícias,
como os jovens estudantes que já fomos e alguns são agora, como Arminda ou
Armindo, como Telmo ou Telma, como Teresa ou Maria, ou de novo da Felícia
que posso ser eu, tal como Daisy, aquela cujo retrato continua impossível. E
os “albús” somos nós, turistas e espiões da vida que desconhecem origem
e causas de si mesmos, como Léo na sua ilusão e crença de que a vida sem
memória é a verdadeira vida, em plena leveza.
Fico a ouvir o bater das asas, de pano ou de papel, como as dos pássaros
que vinham da alta parede negra de árvores da floresta assustadora, fosse
ela a selva da memória ou a ilha do mortos de Arnold Böcklin, um abismo ou
página lisa de um livro de Camus, Beckett ou Ionesco.
Consigo ouvi-lo, a esse som, aqui. É de nós que se alimentam esses pás-
saros da amnésia, enquanto não chega o Messias que, por sinal, é o nome do
próximo livro de Rocha de Sousa.
Venha, pois, esse Messias, no bater das asas das palavras de papel.

394
Notas
1
Sussurra a voz off no filme de Rocha de 27
Idem, p. 59.
Sousa “A Casa Revisitada”. 28
Idem, p. 171.
2
Rocha de Sousa. Amnésia. Lisboa: Edição 29
Idem, aqui referindo-se ao trabalho
de E. Fernandes de Matos, p. 141.
pedagógico de Joaquim Rodrigo na
3
Idem, p. 143. SNBA, p. 176.
4
Rocha de Sousa. Os passos encobertos. 30
Rocha de Sousa. Talvez imagens e Gente
Porto: Ed. Figueirinhas, p. 18. de um Inquieto Acontecer. S. Mamede de
Infesta: Edium Editores, p. 310.

ISABEL SABINO | ROCHA DE SOUSA, O BATER DAS ASAS DE PAPEL (OU: O ESCRITOR - MEMÓRIA E FICÇÃO)
5
Rocha de Sousa. Memória de Daisy ou
um exercício sobre o retrato impossível. 31
Idem, p. 310.
Lisboa: Edição do autor, 1987. 32
Rocha de Sousa. Lírica do Desassossego.
6
Rocha de Sousa. Crónica de Guerra. Lisboa: Editora Universus, p. 25.
Angola 61. Lisboa: Círculo de Leitores, p. 7.
Susan Sontag. Olhando o Sofrimento dos
33

7
Idem, p. 8. Outros. Lisboa: Quetzal, 2015.
8
Idem, p. 337. 34
Rocha de Sousa: “Livros polémicos
de Rocha de Sousa. Desastres
9
Idem, p. 341.
principais ou um mundo sem razão”.
10
Idem, p. 330. 14 de fevereiro de 2014. Em http://
livrospolmicosderochadesousa.blogspot.
11
Idem, p. 6. pt/2014/02/desastres-principais-ou-um-
12
Idem, p. 5. mundo-sem_14.html (Acedido a 12 de
março de 2016)
13
Idem, p. 57.
35
Rocha de Sousa. Narrativas da suprema
14
Idem, p. 91. ausência. Chaves: Ed. Tartaruga, p. 111.
15
Idem, p. 359. 36
Idem, p. 127.
16
Idem, p. 360. 37
Idem, p. 181.
17
Rocha de Sousa. A casa revisitada. 38
Idem, p. 189.
Lisboa: Edição do autor. 1ª edição 1999 e
2ª edição em 2004, p. 209. Rocha de Sousa. Os fantasmas de Lisboa.
39

Cascais: Rui Costa Pinto Edições, 2014.


18
Idem, p. 22.
40
Rocha de Sousa. Os passos encobertos
19
Idem, p. 137. (...), obra citada, p. 7, 8.
20
Idem, p. 21.
21
Rocha de Sousa. A Culpa de Deus. Para
um ensaio sobre o livre arbítrio. Chaves:
Ed. Tartaruga, p. 355.
22
Rocha de Sousa. A Casa. Lisboa: Círculo
de Leitores, p. 140.
23
Ibidem.
24
Idem, p. 250.
25
Idem, p. 251.
26
Rocha de Sousa. Coincidências
Voluntárias. Porto: Edita-me, p. 235.

395
Conselho Científico Editorial e Pares Académicos
Conselho Científico Editorial e Pares Académicos
do N.º 4 e 5 de Convocarte

Pares Académicos Internos à FBAUL:


• Cristina Azevedo Tavares – Professora Associada e coordenadora da área
de Ciências da Arte na Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas Artes, e no
Programa Doutoral de Filosofia das Ciências, Tecnologia, Arte Sociedade do Centro
de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa, Investigadora integrada do
CFCUL, Head de Arte e Ciência, investigadora colaboradora do CIEBA.
• Cristina Pratas Cruzeiro – Professora Auxiliar Convidada de Ciências da Arte na
Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas Artes; Bolseira de Pós-Doutoramento
CONVOCARTE | CONSELHO CIENTÍFICO EDITORIAL E REVISÃO DE PARES

IHA-FCSH/NOVA.
• Eduardo Duarte – Professor Auxiliar Convidada de Ciências da Arte na
Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas Artes, Investigador do CIEBA,
Responsável do 2.ºCiclo das Ciências da Arte e Coordenador do Mestrado em
Museologia e Museografia.
• Fernando António Baptista Pereira – Fernando António Baptista Pereira:
Professor Associado da FBAUL; investigador integrado do CIEBA (onde coordena
uma linha de investigação); investigador colaborador do Laboratório Hércules;
Adjunto do Ministro da Cultura para os Museus e Património (desde 2017).
• Fernando Rosa Dias – Professor Auxiliar de Ciências da Arte na Universidade
de Lisboa, Faculdade de Belas Artes, Investigador do CIEBA, Coordenador
do Mestrado em Crítica, Curadoria e Teorias da Arte, Presidente da Comissão
Científica do Doutoramento em Artes da Universidade de Lisboa e do Instituto
Politécnico de Lisboa, Coordenação Científica Geral da Revista Convocarte.
• Margarida Calado – Professora Associada de Ciências da Arte na Universidade
de Lisboa, Faculdade de Belas Artes, Investigador do CIEBA.

Pares Académicos Exteriores à FBAUL:


• Angela Ancora da Luz – Historiadora e Crítica de Arte, vice-Presidente da ABCA,
Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
• António Quadros Ferreira – Professor Emérito da Faculdade de Belas Artes da
Universidade do Porto.
• Delinda Collier – Ph.D. Associate Professor and Director of Undergraduate
Studies Art History, Theory, and Criticism, School of the Art Institute of Chicago.
• Isabel Nogueira – Doutorada em Belas-Artes, em Ciências e Teorias da Arte
(FBAUL) e pós-doutorada em História e Teoria da Arte Contemporânea e Teoria
da Imagem (Universidade de Coimbra e Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne).
Professora Universitária, Investigadora de Arte Contemporânea e Curadora
independente.

398
• Joana Cunha Leal – Professora Auxiliar do Departamento de História da Arte
da Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas.
Directora do Instituto de História da Arte da FCSH-NOVA.
• José Francisco Alves – Doutoramento em História da Arte, curador
independente e membro da Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA)
e do Conselho Internacional de Museus (ICOM). Curador-Chefe do Museu de
Arte do Rio Grande do Sul (2011-2013) e Professor de Escultura do Atelier Livre
da Prefeitura de Porto Alegre.
• Juan Carlos Ramos Guadix — Artista plástico, Gravador, Professor Titular,
Departamento de Dibujo, Faculdad de Bellas Artes, Universidad de Granada
• Mário Caeiro – Professor na Escola Superior de Arte e Design das Caldas da
Rainha, Curador, e Investigador no LIDA – Laboratório de Investigação em
Design e Artes e no CECC – Centro de Estudos de Comunicação e Cultura da
Universidade Católica Portuguesa.
• Mark Harvey – Professor na University of Auckland, New Zealand, Artista
Performer.
• Pascal Krajewski – PhD in Art Sciences; Master Degree in Aerospace
Engineering. Member of the Ciberarte Laboratory (CIEBA-FBAUL) / Docteur en
Sciences de l'art; Diplôme d'ingénieur en Aérospatiale. Membre du laboratoire
Ciberarte (FBAUL-CIEBA).
• Raquel Henriques da Silva – Professora Associada da Universidade Nova de
Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Directora do Instituto de
História da Arte FCSH-UNL.
• Rita Macedo — Professora Auxiliar do Departamento de Conservação e Restauro
da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa.
• Sylvie Coellier – Professeure, département Arts d’Aix-Marseille Université – UAM.

Membros Honorários do Conselho Científico Editorial [consultivo]


• Michel Guérin – Agrégé de philosophie, Professeur émérite à l’Université d’Aix-
Marseille et membre honoraire de l’Institut  Universitaire de France.
• James Elkins – Department of Art History, Theory and Criticism, at the School of
the Art Institute of Chicago.

399
Procedimentos e Orientações de Publicação
O Espírito da Revista Convocarte
A revista é de suporte digital e pretende convocar para discussão especialis-
tas de temas das artes, a partir de diferentes formações das artes e humanísticas:
historiadores de arte, filósofos da estética, críticos e teóricos da arte, curadores,
museólogos, de áreas afins interessadas pelas questões da arte, tais como antro-
pologia, sociologia, psicologia e psicanálise, estudos da linguagem e do signo,
etc… ou os próprios artistas. O seu princípio é ter um Tema, em torno de questões
da arte, que domina cada número e que é o centro de uma Convocação para a
reflexão e discussão.
A Convocarte assume o português como língua base, estendendo a recepção
de textos a línguas tradicionais no mundo universitário português: espanhol, inglês e
francês. O Conselho Científico Editorial trabalhará nessas diferentes línguas sempre
que necessário, com envio dos textos de modo ajustado a essas competências. Os
textos podem ser enviados escritos em cada uma destas línguas, defendendo-se
CONVOCARTE | PROCEDIMENTOS DE PUBLICAÇÃO

pluralidade, mas com a preferência de que cada autor escrevesse e pensasse na


sua linguagem de formação base. Se a FBAUL é o seu natural centro de edição e
convocação, o seu alcance é plural e cosmopolita.
É uma revista com Leitura e Revisão de Pares (peer review), sem chamada de
textos (call for papers) mas com base na discussão e sugestão. A principal função
é criar um espaço de discussão e publicação de questões múltiplas do mundo
(plural) das artes.

Processos Editoriais
O controlo científico e editorial do Dossier Temático, que especifica cada nú-
mero da Convocarte, com colaborações de fundo mais alargadas, funciona a partir
de textos solicitados por convites directos aos autores, a partir de uma Coorde-
nação Geral e em consulta do Conselho Científico Editorial constituída para cada
número, que coordena cada dossier temático e que constituirá o painel de Revi-
são de Pares (Peer Review). Neste sentido não será efectuada nenhuma chamada
aberta de textos (Call for Papers). Contudo, investigadores interessados poderão
apresentar textos à revista, com consulta prévia através de curriculum científico e
explicitação da questão a abordar, que serão depois apreciados pelo Conselho
Científico Científico (cada tema é anunciado no número anterior).
Não há submissão de textos, e é nesse espírito que deve actuar o Conselho
Científico Editorial. A relevância deste método de revisão de pares (com espírito de
discussão de pares) é criar um espaço de debate e partilha científicos pré-editorial,
que pretende ser uma forma aberta e dialogante entre especialistas das Ciências
da Arte em geral. Por isso, a revisão não é duplamente cega, mas apenas para os
autores. Qualquer membro do Conselho Científico Editorial que apresente texto
para o Dossier Temático, terá que colocar o seu trabalho também em processo de

402
revisão. Nenhum elemento do Conselho Científico Editorial faz revisão do seu texto
ou de um autor que tenha proposta. É apenas a Coordenação que tem a função
de organizar e distribuir os textos para revisão.
Com rigor e partilhas científicas, pretendemos encontrar uma plataforma de
revisão de pares mais ajustada às áreas humanísticas e artísticas relativamente ao
modelo dominante, muito anglo-saxónico e mais apropriado às Ciências Exactas
e Tecnológicas.
Os trabalhos do Conselho Científico Editorial centram-se apenas no Dossier
Temático, mais alargado e central em cada edição. As restantes pastas da revista,
resultam de trabalhos no âmbito de ciclos de formação da FBAUL em articulação
com linhas de investigação do CIEBA, cabendo a sua revisão a coordenadores
de linhas de investigação do CIEBA e à Coordenação Geral. Contudo, em casos
específicos, a Coordenação poderá, relativamente a um destes textos, fazer uma
consulta a membros do Conselho Científico Editorial.

Funções do Conselho Científico Editorial:


1. Sugestão de investigadores especializados do Dossier para colaborarem no
número correspondente.
2. Apreciação de textos/ensaios, através de breve texto com os seguintes parâ-
metros e critérios:
a) Ajustamento do texto/ensaio à política editorial da revista, enquanto revista
Universitária no âmbito das Artes e Humanidades.
b) A adequação do texto/ensaio ao Tema do Dossier.
c) Originalidade do objecto da investigação ou da reflexão.
d) Linguagem especializada, competente e adequada aos problemas em foco.
e) Qualidade científica e metodológica na pesquisa e investigação, tal como
na escrita e argumentação.
f) Competência argumentativa e crítica.
g) Domínio de conhecimentos artísticos, históricos, estéticos, e filosóficos.

3. Sugerir melhorias de alterações em forma de breve comentário, se considera-


das necessárias, em função dos parâmetros anteriores ou outros afins (máximo de
1000 caracteres).
Cada texto do Dossier Temático será apreciado por dois revisores do Conselho
Científico Editorial.
As propostas são sempre distribuídas por elementos do Conselho Científico
Editorial que não estão na origem da indigitação dos candidatos ou que não cor-
respondam aos próprios.
Sendo um sistema por convite de investigadores especializados, e centrado
em sugestões, o processo de revisão de pares não será feito sobre os abstracts,
mas sobre o texto final.
Reserva-se à Coordenação, com base nas apreciações das considerações do
Conselho Científico Editorial, a recusa de edição de algum dos textos, seja por

403
desajustamento ao Tema, ao défice científico ou à recusa em efectuar alterações a
partir das sugestões de leitura do Conselho Científico Editorial.
A Coordenação pode consultar o Conselho Científico Editorial, ou alguns dos
seus membros, para questões específicas, de dúvida e com carácter de excepção,
que surjam ao longo dos trabalhos.

Formato dos textos candidatos ao Dossier Temático:


1. Texto geral de c.30.000 (ou entre 20.000 e 35.000) caracteres sem espaços.
2. Um resumo (abstract) em inglês ou francês de c.850 caracteres sem espaços.
3. Utilização coerente de princípios universitários de indicação das fontes documentais
e bibliográficas (o sistema e norma adoptados serão da opção de cada autor, mas
o Conselho Científico Editorial pode pronunciar-se sobre a sua adequação e rigor).
4. Relativamente à redacção dos textos em português a Coordenação deixa a cada
autor a liberdade e responsabilidade de escolha da utilização o último acordo orto-
gráfico ou da anterior ortografia [a actual coordenação geral de Convocarte reser-
va-se, apenas para os seus textos, a não seguir o mais recente acordo].
CONVOCARTE | PROCEDIMENTOS DE PUBLICAÇÃO

5. Os textos podem ser apresentados nas seguintes línguas, adequadas à origem e


formação dos respectivos autores: português, espanhol, francês ou inglês.
6. Inclusão, até ao máximo de 8 imagens para reprodução ao longo do texto (as
imagens poderão ser a cores; os processo de autorização e a responsabilidade
dos direitos de reprodução das imagens são da responsabilidade do autor do
texto). As imagens que acompanham os textos devem ser enviadas em pasta
própria denominada Imagens. Todas as imagens terão de ser de alta qualidade
para impressão com resolução de 300 dpi e em formato tiff ou jpg. Um documento
de texto individual deverá ser enviado com a descrição das legendas. Os nomes
atribuídos às imagens devem ser iguais aos usados na referência de localização no
texto que acompanham e, caso seja necessário, os respectivos créditos. As imagens
devem estar por ordem com o nome antecedendo a respectiva legenda (ex: Figura
1 - legenda da imagem 1 + créditos de imagem 1). À Coordenação Geral reserva-se
o direito de excluir as imagens que não cumpram os critérios descritos.
7. Direitos de autor: dentro do abrigo das edições da Universidade de Lisboa. Cada
autor será responsabilidade por qualquer acto de plágio ou de indevida autoriza-
ção de reprodução de imagens ou trechos que escapem à supervisão do Conselho
Científico Editorial.
Qualquer outra excepção será apreciada pelo Conselho Científico Editorial e
fará parte do seu comentário. A decisão final dessas excepções caberá à Coorde-
nação Geral e ao Coordenador do Dossier Temático.
A Convocarte é uma revista digital pública da FBAUL. Os autores cedem os
direitos a essa publicação através do mundo universitário. Os direitos específicos
de publicação e divulgação dos trabalhos da Convocarte passam, por inerência,
a ser propriedade da Universidade de Lisboa, segundo os seus regulamentos, à
qual pertence a FBAUL.

404
Sequência e processos de trabalho:
Determinado o Conselho Científico Editorial para cada número, segue-se a
seguinte sequência de trabalhos, cada qual com data limite, segundo calendário
a definir em cada proposta de trabalhos na preparação de cada número.
1. Sugestão de autores/ensaístas por parte do Conselho Científico Editorial e re-
cepção de propostas de textos exteriores por parte da Coordenação (a selecção
inicial das propostas exteriores são da responsabilidade da Coordenação Geral e
do Dossier Temático, com consulta de membros do Conselho Científico Editorial,
se considerado necessário).
2. Convocação dos textos finais aos autores em data a calendarizar para cada número.
3. Envio dos textos ao Conselho Científico Editorial, com princípios e grelha de
apreciação (dois para cada texto).
4. Recepção das apreciações da Coordenação e reenvio para os autores para al-
terações ou correcções, a partir das sugestões do Conselho Científico Editorial.
5. Envio dos textos alterados e/ou corrigidos para a paginação. A paginação ain-
da será devolvida aos autores para últimos acertos (já não de alteração do texto).
6. Lançamento
Os comentários do Conselho Científico Editorial são devolvidos aos autores
tal como chegam à Coordenação Geral e Temática, mantendo-se todas as opções
pessoais da apreciação qualitativa. Embora sejam sugestões, sublinha-se uma sua
leitura atenta por parte dos autores. Pretende-se depois que, perante estas análises
críticas, estes ponderem necessárias alterações: revendo, corrigindo, justificando,
cortando, acrescentando, deslocando, etc. A principal intenção da apreciação
qualitativa, destaque-se, é a melhoria qualitativa dos textos através de um plano
intersubjectivo de funcionamento.

Proposta externa de texto/ensaio para a revista Convocarte


A coordenação pode aceitar, para o Dossier Temático, propostas de trabalhos
exteriores ao processo de convites do Conselho Científico Editorial. Para isso, a
proposta deve ser enviada para a Coordenação através do email da revista Convo-
carte [[email protected]], acompanhada dos seguintes elementos:
a) Curriculum Vitae académico e de investigação, sobretudo centrado em tra-
balhos relativos ao tema do Dossier.
b) Um resumo até 1000 palavras sem espaços da proposta do seu trabalho.
c) Carta ou email de motivação.
A proposta deve seguir as orientações de cada tema apresentadas no final
de cada número de Convocarte.
Sendo aceite pela Coordenação, os trabalhos seguem os processos gerais dos
outros textos, para leituras e sugestões do Conselho Científico Editorial.
Também podem ser propostos textos para as restantes pastas da revista Con-
vocarte, ficando neste caso à responsabilidade da Coordenação Geral, com pos-
síveis consultas a membros do Conselho Científico Editorial ou a Coordenadores
de linhas de investigação do CIEBA.

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