A Encomenda. O Artista. A Obra

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A Encomenda.

O Artista. A Obra.
Coordenação
NATÁLIA MARINHO FERREIRA-ALVES

A Encomenda.
O Artista. A Obra.
Título A Encomenda. OArtista. A Obra.

Coordenação Natália Marinho FERREIRA-ALVES

Edição CEPESE - Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade


Rua do Campo Alegre, 1055 – 4169-004 Porto
Telef.: 22 609 53 47
Fax: 22 543 23 68
E-mail: [email protected]
www.cepese.pt

Capa Luís Melo

Concepção gráfica

Impressão e acabamentos

Tiragem 500 exemplares

Depósito legal 318054/10

ISBN 978-989-8434-03-6
Introdução
Natália Marinho FERREIRA-ALVES

IV Seminário Internacional Luso-Brasileiro


A Encomenda. O Artista. A Obra
(Bragança, 15-17 de Outubro de 2009)

O Grupo de Investigação Arte e Património Cultural no Norte de Portugal


(CEPESE), tem desenvolvido nos últimos cinco anos uma pesquisa que, obedecendo
a uma rigorosa programação, pretende contribuir para um conhecimento aprofundado
do importante legado artístico desta região no contexto do Mundo de Expressão Por-
tuguesa. Assim, nas várias vertentes estabelecidas para o desenvolvimento das nossas
investigações (organização de inventários de artistas e artífices vinculados ao Norte
do país, estudo da sua mobilidade interna e externa, análise da sua produção laboral e
levantamento das técnicas utilizadas no desempenho das respectivas tarefas oficinais),
demos um particular relevo aos eventos científicos que têm permitido congregar
diversos especialistas, nacionais e estrangeiros, sendo a sua maioria investigadores
ou colaboradores do CEPESE, em torno de um tema inserido nos nossos objectivos.
No seguimento do Porto, Salvador e Rio de Janeiro, locais onde se realizaram os
Seminários Internacionais Luso-Brasileiros anteriores, a cidade de Bragança foi escolhida
como ponto de encontro de investigadores portugueses e brasileiros, contando-se
com a presença de colegas espanhóis, que gentilmente acederam a colaborar com
comunicações ligadas à temática do IV Seminário Internacional Luso-Brasileiro A
Encomenda. O Artista. A Obra.
De 14 a 17 de Outubro de 2009, os participantes tiveram oportunidade de analisar
questões de grande importância para a historiografia da arte do mundo português
numa das regiões do Norte de Portugal que, pela sua riqueza patrimonial, merece o
reconhecimento que lhe é devido pela comunidade científica.
O evento foi uma iniciativa do CEPESE – Centro de Estudos da População, Eco-
nomia e Sociedade, com o apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT),
tendo participado professores de várias universidades portuguesas (Porto, Coimbra,
Minho), brasileiras (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Pontifícia Universidade
6 Introdução

Católica do Rio de Janeiro, Universidade Federal da Bahia, Universidade Federal


da Paraíba) e espanholas (Universidad de Santiago de Compostela, Universidad de
Extremadura, Universidad da La Laguna – Tenerife), bem como outras instituições
autárquicas e diocesanas ligadas à área da cultura, sendo igualmente significativa a
afluência de público designadamente do foro académico.
A sessão oficial de abertura do Seminário contou com as intervenções do Presi-
dente da Câmara Municipal de Bragança, Engº António Jorge Nunes, do Presidente
do CEPESE, Prof. Doutor Fernando de Sousa, e da Coordenadora do Grupo de
Investigação Arte e Património Cultural do Norte de Portugal, Profª. Doutora
Natália Marinho Ferreira-Alves. As sessões científicas foram iniciadas com uma
conferência inaugural proferida pelo Prof. Doutor Fernando de Sousa, que versou o
tema Bragança no século XVIII.
Foram efectuadas visitas de estudo que, em função da temática desenvolvida nas
sessões de trabalho do seminário, serviram de complemento às reflexões suscitadas
pelas trinta e quatro comunicações. Para além do percurso obrigatório ao núcleo antigo
de Bragança, com visita à Igreja do antigo Colégio dos Jesuítas, Museu do Abade
de Baçal, Igreja de Santa Maria do Castelo, Torre de Menagem, Domus Municipalis,
Igreja de São Bento, Igreja de São Vicente, e Igreja da Misericórdia, foi feita uma
deslocação especial à Igreja do Santo Cristo de Outeiro.
A realidade artística contemporânea não foi esquecida, tendo sido programadas
duas visitas específicas: a primeira, para dar a conhecer a colecção particular da
Caixa Agrícola, com um magnífico conjunto de trabalhos da artista trasmontana
Graça Morais; e a segunda, ao Centro de Arte Contemporânea Graça Morais (da
autoria do arquitecto Eduardo Souto de Moura), que reúne um acervo notável de
obras da referida artista, tendo havido a possibilidade de apreciar uma exposição
temporária de pintores e escultores contemporâneos portugueses. A escultura urbana,
exemplificativa da qualidade da expressão plástica da nossa época foi também objecto
de análise cuidada, já que em Bragança se encontram representados alguns dos vultos
nacionais mais reputados, cujas obras pontuam de forma significativa a paisagem da
cidade, tais como: José Rodrigues (Tear e tecedeira e 25 de Abril); José Pedro Croft
(Imagens reflectidas); Barata Feyo (Grupo escultórico alusivo à actividade rural);
António Nobre (Esculturas da Rotunda das Cantarias e do Urbanismo e Planea-
mento); Manuel Barroco (Cão de gado trasmontano); Rui Anahory (Homenagem
ao Lavrador); Teixeira de Sousa (Escultura alusiva ao Comércio Tradicional).
O tema do IV Seminário Internacional Luso-Brasileiro A Encomenda. O Artista.
A Obra foi tratado de forma aliciante, tendo sido apresentadas comunicações do
maior interesse, versando umas unicamente um dos elementos propostos, enquanto
que outras analisaram os três vectores inerentes à produção artística: o cliente (figura
individual ou colectiva, pertencendo ao mundo laico ou ao eclesiástico, oriundo
dos vários estratos da sociedade), que se encontra na génese da obra através da sua
encomenda, e cujo papel muitas vezes não se limita a um mero esquema passivo mas,
pelo contrário, se transforma numa força actuante e decisória sob o ponto de vista
artístico; o artista que, por vezes, é um vulto de renome ou, pelo contrário, ainda
Introdução 7

permanece no anonimato, será o responsável pela execução da obra, sendo-lhe dado


aquilo que hoje apelidamos de “liberdade artística” ou, pelo contrário, espartilhado
por cláusulas rígidas que lhe formatam a criatividade; por fim, a obra, objecto último
de análise, tratada em várias comunicações, nos seus aspectos polifacetados, desde
arquitectura, pintura, escultura, talha, azulejo e ourivesaria, muitas vezes sem se saber
o nome do seu autor ou daquele que a encomendou, mas que é o fulcro de toda a
pesquisa da História da Arte.
Para a concretização deste nosso encontro científico muito contribuiu o significativo
apoio da Câmara Municipal de Bragança, na pessoa do seu Presidente, Eng. António
Jorge Nunes, por parte de quem sempre recebemos resposta positiva a todos os nossos
pedidos e sugestões. Cumpre-nos fazer aqui um agradecimento na qualidade de
responsável científica do evento, mas também a título pessoal, às várias instituições
locais que gentilmente deram o seu generoso contributo, manifestando, desta forma,
uma adesão ao projecto de levarmos as nossas realizações até terras trasmontanas: à
Brigoffice; ao Agrupamento dos Produtores de Mel do Parque; à M. Coutinho Motors,
na pessoa do Engº Delfim Batouxas; à Caixa Agrícola, na pessoa do Dr. Maurício
Domingues; ao Centro de Arte Contemporânea Graça Morais e seu Director, Dr.
Jorge Campos; e ao artista plástico Luís Melo, também ele trasmontano, a quem se
ficou a dever o belíssimo cartaz que deu uma visibilidade condigna ao Seminário, e
que muito nos honrou com a sua colaboração.
Uma palavra especial de reconhecimento aos nossos colegas da Comissão
Executiva, Joaquim Jaime B. Ferreira-Alves, Manuel Joaquim Moreira da Rocha,
Paula Cardona e Paula Barros, e particularmente Luís Alexandre Rodrigues, pela
dedicação sem limites para com a sua terra natal, e que sempre nos distinguiu com
a sua amizade. Uma lembrança com muita estima para o Secretariado do CEPESE,
Ricardo Rocha, Bruno Rodrigues e Diogo Ferreira, pelo seu profissionalismo e
dedicação, acompanhando-nos ao longo do percurso, que hoje damos por cumprido,
com a dignidade que Bragança merece.
Introduction
Natália Marinho FERREIRA-ALVES

IV Internacional Luso-Brazilian Seminar


The Order. The Artist. The Work
(Bragança, 15-17 October 2009)

The Research Group of Art and Cultural Heritage in the North of Portugal
(CEPESE – Centre of Studies of the Population, Economy and Society) has carried out
over the past five years a rigorous scientific research aiming at rendering a significant
contribution for the knowledge of the important artistic legacy of this region in the
context of the Portuguese speaking world.
Therefore, in the several levels defined for the development of our researches (the
organization of artists and artisans’ inventories related with the North of Portugal,
the study of their internal and external mobility, the analysis of their production and
the inventory of the workmanship techniques) we gave a special importance to the
scientific events where both Portuguese and foreign researchers, almost all of them
members of the research team or collaborators of CEPESE, were able to discuss a
matter concerning our precise objectives. Following Porto, Salvador and Rio de
Janeiro, the cities where the previous international seminars took place, Bragança
was in 2009 the meeting point for Portuguese and Brazilian researchers, with the
presence of Spanish colleagues who kindly accepted to cooperate by presenting papers
related with the central theme of the IV International Luso-Brazilian Seminar – The
Order. The Artist. The Work.
From 14 to 17 October 2009 we had the opportunity to debate some important
matters for the Portuguese Art historiography in one of the regions of the North of
Portugal which deserves the acknowledgement of the scientific community due to
its very rich cultural heritage.
The event was a CEPESE’s initiative, with the support of the Foundation for
Science and Technology (FCT), and had the participation of teachers of several
universities from Portugal (Porto, Coimbra, Minho), Brazil (Federal University of Rio
de Janeiro, Pontifical Catholic University of Rio de Janeiro, Federal University of Bahia,
10 Introduction

Federal University of Paraíba) and Spain (Universidad of Santiago de Compostela,


Universidad de Extremadura, Universidad of La Laguna - Tenerife), as well as other
municipal and diocesan institutions linked to cultural areas; it was also significant
the participation of the public in general and particularly the academic one.
The inaugural session started with the speeches of Bragança’s Mayor, Engº António
Jorge Nunes, of CEPESE's President, Professor Fernando de Sousa, and of the Research
Group of Art and Cultural Heritage in the North of Portugal Coordinator, Professor
Natália Marinho Ferreira-Alves. The scientific sessions began with Professor Fernando
de Sousa’s conference Bragança in the XVIII th. century.
The programme included studying visits organized according the scientific themes
developed in the thirty four communications being a remarkable complement and
allowing important reflexions on the several subjects presented in public. Beyond
the obligatory walk through Bragança historical centre, visiting the Jesuit College
Church, Abade de Baçal Museum, Santa Maria do Castelo Church, Donjon, Domus
Municipalis, São Bento Church, São Vicente Church, and Misericórdia Church, there
was also a special visit to the Santo Cristo do Outeiro sanctuary.
The contemporary artistic reality was not forgotten having been programmed
two specific visits: the first one, to make the Caixa Agrícola’s private collection
known because it gathers an important set of works of the painter Graça Morais,
one of the most famous Portuguese artists, born in Trás-os-Montes region; and the
second one, to the Centro de Arte Contemporânea Graça Morais (a well-known
work of the Portuguese architect Eduardo Souto de Moura), where we had the
opportunity of appreciating a temporary exhibition of Portuguese contemporary
painters and sculptors, besides the permanent exhibition of another important set
of Graça Morais’ paintings. Urban sculpture, a most significant expression of our
contemporary plastic quality was also contemplated, since in Bragança some of the
most remarkable Portuguese artists are represented through their sculptures that
strongly punctuate the city landscape, such as: José Rodrigues (Tear e tecedeira e
25 de Abril); José Pedro Croft (Imagens reflectidas); Barata Feyo (Grupo escultórico
alusivo à actividade rural); António Nobre (Esculturas da Rotunda das Cantarias
e do Urbanismo e Planeamento); Manuel Barroco (Cão de gado trasmontano);
Rui Anahory (Homenagem ao Lavrador); Teixeira de Sousa (Escultura alusiva ao
Comércio Tradicional).
The subject of the IV International Luso-Brazilian Seminar The Order. The Artist.
The Work was carried out with the presentation of very interesting communications,
some of them analysing only one element, while others looked upon two, or even
the three vectors concerning the artistic production: the client (individual or
collective personality, belonging to the secular or the ecclesiastic world, arising from
the several layers of the society), who is always in the origin of the work through its
order, and whose role very often is not only confined to a project in a passive way,
but on the contrary he becomes an active and decisive power from an artistic point
of view; the artist who sometimes is a famous one, or who still remains unknown,
will be responsible for the execution of the work being given to him what we call
Introduction 11

nowadays “artistic freedom”, or having his creativity restrained by severe rules; and
finally the accomplished work, the last theme to be analysed, was studied in several
communications from architecture, to painting, sculpture, gilded woodcarved retables,
and decorative arts, many times without knowing the author's or the client's name,
but in the end the most important subject for the History of Art researches.
In order to accomplish this scientific meeting we counted on the the most
significant support of the Bragança Town Hall, through President Eng. António
Jorge Nunes, from whom we always received positive reply to all our requests and
suggestions. As scientific responsible for the event, but also in our personal name,
we must express our sincere gratitude to all the local institutions that gave us a
generous contribution allowing the achievement of our project in Trás-os-Montes:
to Brigoffice; to Agrupamento dos Produtores de Mel do Parque; to Engº Delfim
Batouxas (M. Coutinho Motors); to Dr. Maurício Domingues (Caixa Agrícola); to Dr.
Jorge Campos (Centro de Arte Contemporânea Graça Morais); to the trasmontano
artist Luis Melo the author of the excellent poster which gave a remarkable visibility
to the Seminar, and who gave us the honour of his contribution.
A special word of gratitude to our colleagues of the Executive Board, Joaquim
Jaime B. Ferreira-Alves, Manuel Joaquim Moreira da Rocha, Paula Cardona and Paula
Barros, and particularly Luis Alexander Rodrigues, for his devotion without limits
towards his native region, and who always distinguished us with his friendship. We
also hold in high regard the CEPESE’s secretariate members, Ricardo Rocha, Bruno
Rodrigues and Diogo Ferreira, for their professionalism and devotion, following us
all the time along the process accomplished today with the dignity that Bragança
deserves.
IV SEMINáRIo INTERNACIoNAL
LuSo-BRASILEIRo
A Encomenda. O Artista. A Obra

Bragança, 15-17 de outubro de 2009


Artistas portugueses
en las Islas Canarias
Alberto Darias Príncipe

La consideración de Canarias como un territorio políticamente polémico deriva


de la confluencia de intereses en la zona entre portugueses y castellanos. En realidad,
Canarias entraba dentro de la zona de expansión portuguesa. Sin embargo, Castilla
consiguió arrebatársela gracias a una maniobra diplomática. Con todo, los castellanos
no pudieron impedir que una buena parte de su repoblación se hiciera con lusitanos,
tanto de Madeiras como del continente, y eso, a pesar de que Castilla intentó regular
y controlar mediante una norma estricta ese flujo migratorio. Los inmigrantes clan-
destinos recurrieron a tretas fáciles de llevar a cabo sin mayores consecuencias, como
la hispanización de sus apellidos (de Soares a Suárez, por ejemplo), o sencillamente
mediante la adopción de otros de raíz castellana1.
Por tanto a la estética castellana, se deben añadir los portuguesismos derivados
de una inmigración imposible de controlar, lo que unido al aislamiento al que se
vieron sometidas las islas durante siglos, dio como resultado un arte con suficientes
peculiaridades que diferenciaron a las islas del resto del territorio español. Hoy en
día, no solo detectamos la aportación portuguesa en el arte sino que también ha
permanecido en el propio léxico, tradiciones y costumbres.
No obstantes, debemos aclarar que no fueron sólo portugueses quienes poblaron
las islas junto con los conquistadores andaluces. Los organizadores del territorio recién
incorporado encontraron serios problemas para la repoblación, puesto que tenían dos
fuertes competidores, sumados simultáneamente a la Corona de Castilla en 1492: se
trata del antiguo reino de Granada, por una parte, y del continente americano, por
otra, mientras que la última isla será conquistada en 1496. En consecuencia, después
de varios intentos fracasados durante el siglo XV por conseguir la repoblación, será
en los primeros años de la siguiente centuria cuando se consigan atraer a pobladores,
seducidos por las ventajas comerciales, fiscales o territoriales.
Con este aliciente, se instalará una población multinacional que configuró un
conjunto de lo más diverso. Además de andaluces y portugueses, arribaron a las

1 DARIAS PRÍNCIPE, 2003: 141.


16 Alberto Darias Príncipe

islas extremeños, montañeses, castellanos nuevos, catalanes... y fuera de la Península


Ibérica, italianos, flamencos, franceses, etc. Por su parte, los señores obviaban o
atenuaban ordenanzas, pragmáticas o cualquier orden del Concejo de Castilla para
conseguir así el poblamiento necesario en el menor tiempo posible.
En definitiva, las siete islas se fueron conformando con una población multicultural
que aportaba costumbres y tradiciones de lo más variadas. Cuando éstas resultaban
válidas para el territorio se aceptaban y cuando nò se olvidaban. Surge así una cultura
sincrética que no tomaría cuerpo definido hasta finales del siglo XVI y que, hasta
entrado el siglo XIX, marcaría unas pautas artísticas con una identidad singular
respecto al territorio hispano.

Arquitectura
Quizá es en este género donde sea más evidente la presencia portuguesa en
Canarias. Una de las razones de esta similitud podría ser el uso habitual de la ventana
de guillotina, traída a este lugar por los portugueses, pues aunque procede del norte,
no fue una aportación flamenca, como se creyó durante mucho tiempo, sino aceptada
y puesta en práctica por Portugal.
Pero no es solamente este elemento; siempre hemos defendido que la arquitectura
tradicional canaria se formó aceptando las diferentes soluciones que las migraciones
de distintas nacionalidades fueron proporcionando desde una base de profundo
pragmatismo. Pues bien, si repasamos la cuantía de préstamos lusitanos quedaría
claro que es la mayor dentro de las múltiples aportaciones generales2:
El uso del baquetón torso, de origen manuelino, está presente en las Islas hasta
la cuarta década del quinientos (portada central de la iglesia de Nuestra Señora de
la Asunción en la villa de San Sebastián, isla de La Gomera).
Portadas individualizadas dentro del conjunto de la fachada de modo que conforman
una banda central en medio de los paramentos encalados y las esquinas mostrando la
piedra (fachada del palacio Lercaro en San Cristóbal de La Laguna, isla de Tenerife)
Las torres ochavadas rematadas por chapiteles, durante un tiempo adjudicadas
al gótico levantino hasta que descubrimos que en esta región son aportaciones de
historicismos decimonónicos (basílica de Nuestra Señora del Pino en la villa de Teror,
isla de Gran Canaria).
Los pilares interrumpidos por anillos ya sea siguiendo modelos más arcaicos del
sogueado gótico o también con el complemento de perlas provenientes del estilo
Reyes Católicos (columnas de la catedral de Las Palmas de Gran Canaria).
La utilización del alpender, término que en Canarias se utiliza para denominar
un cobertizo, que se acopla a una parte de los muros perimetrales de los templos
(ermita del Amparo de en Icod, isla de Tenerife).

2 HERNANDEZ PEREIRA, 1958: 73-74.


Artistas portugueses en las Islas Canarias 17

Los perfiles quebrados y ondulados que rematan la fachada de las construcciones,


resguardados por cornisamentos de piedra (iglesia de San Francisco en Santa Cruz
de Tenerife).
Las cadenetas o esquinas de piedra que además de cumplir con una funcionalidad
constructiva ayudan al ornamento de los frentes, tanto en la arquitectura civil como
en la religiosa (Casa Matos en Las Palmas de Gran Canaria).
Miradores en lo alto de las viviendas de las ciudades marineras (casa Ascanio en
la villa de San Sebastián de La Gomera).
Lo que en Canarias llamamos techos a la portuguesa y no son otra cosa que faldones
lígneos pintados con motivos que van desde las falsas perspectivas arquitectónicas a
los conjuntos iconográficos, pasando por los más antiguos que adornan las planchas
con motivos meramente ornamentales (capilla mayor de la iglesia de San Juan del
Farrobo en la villa de la Orotava, isla de Tenerife).
Podríamos continuar pero sería una relación excesivamente prolija y el trabajo lo
encaminamos más a los referentes de los artistas que al estudio de los portuguesismos
en los diferentes géneros artísticos.
No es extraño por tanto que, cuando se decide levantar el edificio más importante
del archipiélago, la catedral de Las Palmas (1500) se recurra a un maestro portugués,
Diego Alonso de Montaude, definiendo una fachada y una planta consecuente con
las tradiciones portuguesas3. Pero estos portuguesismos pueden incluso llegar de la
mano de un técnico castellano. Cuando Juan de Palacio, maestro trasmerano de la
zona de Santander, toma la dirección de las obras de la seo canaria la solución que
ofrece es de origen manuelino: las columnas ceñidas por arandelas. En efecto, el
técnico venía de trabajar en la construcción del monasterio de Belén y a la solución
del cuerpo columnario lisboeta él le confiere una solución personal pero inspirada
en Belén; interrumpe los fustes de las columnas con anillos a los que aplica sarta
de perlas4. De este modo funde lo portugués, manuelino, con lo castellano, Reyes
Católicos, dando una personalidad propia al nuevo diseño que hoy se conoce como
gótico atlántico5.

Retablística
La complejidad del conjunto de este género, es la consecuencia de las tres fuentes
que dan pie a un modelo propio. Las influencias provienen otra vez de Portugal,
Andalucía y América. Partiendo de la base de la singularidad del retablo ibérico con
respecto a Europa, las islas asimilan mejor el modelo portugués, como diría el Marqués
de Lozoya, el primer investigador que da a conocer la fuerza del arte portugués en
las Canarias: la decoración (...) menos ampulosa que la española y con un trabajo más

3 DARIAS PRÍNCIPE, 2003: 143-144.


4 DARIAS PRÍNCIPE, 2003: 144-148.
5 DARIAS PRÍNCIPE, 1998: 69-79.
18 Alberto Darias Príncipe

refinado y pequeño, o lo que es lo mismo una talla más prolija y cuidada6. Como en las
tipologías lusitanas prefiere un sentimiento más calmo que le hacía huir de quiebros e
incurvaciones, además del abundante uso del pan de oro en toda la superficie posible7.
Para este historiador del Arte, la presencia portuguesa en la retablística insular tiene
tal peso que a causa de la configuración de los retablos barrocos, el aspecto interior de las
iglesias canarias se asemeja más a las portuguesas que a las españolas8.
Como en la escultura, en Canarias residen ensambladores y diseñadores de
formación sevillana, pero en cualquier caso, y como ocurrió en el capítulo de la
plástica, poco a poco el lenguaje va mutando hacia el preciosismo portugués como
se aprecia en la ampulosidad que proporciona la utilización exhaustiva del pan de
oro en las obras de mayor envergadura.
Dentro del campo del retablo encontramos dos caminos de idéntico origen pero
diferente desarrollo: el retablo de talla plana y el de talla abultada. Su desarrollo
podemos ubicarlo en la última década del siglo XVII, iniciándose con la pieza que
preside el presbiterio de la iglesia del Hospital de Dolores, en la ciudad de La Laguna
(Tenerife). En palabras de Alfonso Trujillo, el codificador del retablo barroco en
Canarias es éste Uno de los ejemplares en que más se patentiza el afán lusitano de la
plenitud y minuciosidad decorativa9. Su autoría es indudable, Antonio Estéves. Aparte
de las connotaciones lingüísticas de su apellido, interesa especialmente comprobar
la proximidad entre Portugal y Canarias en cuanto a la traza del ornamento que va
desde los extremos hacia el centro en una progresiva estilización de modo que el
preciosismo de la talla se hace más refinada, complementándose con un excelente
trabajo de dorado y completado con un cromatismo sobrio que aún hoy se mantiene
inalterable.
La otra vía es la del retablo mas corpóreo, y cronológicamente dentro del
ciclo conocido como el Barroco Pleno, se inicia una década más tarde del modelo
comentado con el retablo mayor de la iglesia de los Remedios de La Laguna cuyo
autor, Antonio Francisco de Orta, descubierto por la profesora Margarita Rodríguez
González, es también a nuestro juicio portugués. Aunque una posterior remodelación
incurvó las calles laterales, fue concebido con la superficie plana propia de los retablos
portugueses10. La rotundidad de la talla y el rico y correcto tratamiento del pan de
oro hacen recordar, salvando la distancia que puede haber en el tratamiento de la
talla entre el epicentro y una escuela de producción periférica, aspectos de la obra
del convento de San Francisco de Oporto.
El modelo portugués perviviría durante las siguientes décadas de esa centuria
sobre todo por la voluntad de los artistas. Así ocurrió en el retablo mayor de la
iglesia del monasterio de Santa Clara en La Laguna donde, llegado un momento,
los comitentes exigen al autor una mayor premura para la terminación de la obra

6 LOZOYA, 1945: 217.


7 Citado por TRUJILLO RODRÍGUEZ, 1986.
8 LOZOYA, 1970: 3-10.
9 TRUJILLO RODRÍGUEZ, 1986: 86.
10 RODRÍGUEZ GONZALEZ, 1986: 71-73.
Artistas portugueses en las Islas Canarias 19

(sin superfluidades, como decía el documento), pero aun así el artista continuó con
el estilo detallista y minucioso a la portuguesa. Estamos seguros de que esta manera
de actuar de Andrés de Castro tiene que ver con el parentesco que unía al autor
con Antonio Francisco de Orta11, su suegro.
Esta minuciosidad va a dar lugar a un fenómeno más bastardeado pero igualmente
característico de las islas, el retablo plano canario. La consecuencia del empleo de
estos trabajos a la portuguesa conllevaba un costo que la mayoría de los templos
no se podían permitir; por ello, se recurre a un sucedáneo del trabajo de la talla, la
pintura. Gracias a las perspectivas fingidas, el espectador era víctima de la ilusión
óptica de un trabajo semejante. Esta fue la solución más común hasta que la efímera
moda de los retablos neoclásicos e historicistas terminó por desterrar paulatinamente
una manera que llevó al arte de la retablística canaria a su apogeo.

Orfebrería
En la orfebrería, como en otros géneros, tenemos que luchar con el problema del
anonimato. En pocas ocasiones se menciona la procedencia, de modo que citamos,
por ejemplo, a plateros franceses, mejicanos o peruanos pero con los portugueses
mantenemos una cautelosa aproximación pues desconocemos las referencias vitales
que permitan aseverar con seguridad su origen. Por ello, además del lenguaje
artístico, buscamos otros parangones más inmediatos en sus apellidos; y a pesar de
ello, Portugal es un referente ineludible en la platería canaria. Referente que hace
que incluso algunas soluciones se adelanten a las modalidades andaluzas, otra de las
fuentes importantes de inspiración de las islas.
Se ha constatado la importación de piezas provenientes de Portugal, como el
hostiario de plata, fechado en 1634, que se conserva hoy en la parroquia de Haría, en
la isla de Lanzarote, con una inscripción que dice: Lovado seia o Santisimo Sacramento
o trese de Ivlio de 163412. Por ello no son de extrañar las coincidencias en algunas
tipologías, como la predilección de los canarios por los sagrarios revestidos de plata,
o los frontales de altar por delante de los de Juan Laureano de Pina, uno de los
introductores de esa solución en Sevilla13.
Los documentos no son excesivamente explícitos porque no mencionan nombres
en los primeros años. El primer platero constatado documentalmente como un orífice
portugués es Ambrosio Gonzáles Braga, activo en la ciudad de La Laguna entre los
años 1548 y 1580, y a partir de él continúan apareciendo apellidos lusitanos hasta el
siglo XIX: Freire del que solo se conoce este nombre, contratado por la catedral de
Las Palmas entre 1585 y 1589; Mateo Piñero, 1601, 1610; Manuel Duarte de Silva,

11 RODRÍGUEZ GONZALEZ, 1986: 708


12 HERNANDEZ PERERA, 1955: 317.
13 HERNANDEZ PERERA, 1955: 248
20 Alberto Darias Príncipe

1672, 1674; Ildefonso de Sosa, 1734; Benito Joao Martin, 1821, 1832 o Eleuterio
Freitas, 182514.
El barroco canario es sin duda el momento de mayor esplendor de la orfebrería
insular y está indudablemente marcado por los talleres de Oporto. De ellos procede
asimismo el gusto por el repujado que no decrece en Canarias hasta el agotamiento
de la escuela platera insular, mediado el siglo XIX.
Durante el barroco, el mundo sevillano sigue teniendo peso en Canarias, pero con
ciertas limitaciones, ya que la abundancia de artistas portugueses en el Archipiélago
hace que soluciones isleñas se adelanten a trabajos traídos de la catedral hispalense.
De Portugal se toman las reproducciones que los orfebres hacían en las planchas de
plata, un trabajo minucioso, esmerado y pulcro, copiando diferentes patrones lusos
con la misma delicadeza que, por esos mismos años, se hiciera en los retablos.
La plata elaborada de importación fue mayoritariamente hispalense, si bien su
influencia no menoscabó los modelos portugueses. De hecho portugués fue el orfebre
que llevó el barroco canario a sus más altas cotas, Ildefonso de Sosa. Se le atribuyen
varias obras pero una de ellas está firmada, caso excepcional en las Islas (Ildephonsus
de Sosa me fecit anno 1734). Se trata de la custodia que hizo para el convento de los
dominicos de La Laguna, siguiendo el diseño del pintor y escultor José Rodríguez de
la Oliva. La obra sienta un precedente en la tipología de las custodias, al consolidar
la mutación del ástil por un tenante, pues los ejemplos conocidos hasta entonces
eran estereotipos provenientes de América. Fue además el que introdujo la seña
de identidad más peculiar de la orfebrería canaria, la tembladera. Consistían estos
aditamentos en la aplicación de flores de plata o plata sobredorada, cuyo vínculo
de unión con el ostensorio era un tallo conformado por un hilo arrollado de forma
helicoidal, al final de cual, en la corola, se incrustaban una o varias piedras preciosas,
que el movimiento de la custodia hacía oscilar, produciendo irisaciones con el impacto
de la luz en las gemas.
Finalmente fue también un portugués el que supo rematar el ciclo de la platería
canaria con la dignidad de un excelente artista. De Benito Joao Martín se conserva en
el archivo de la catedral de Las Palmas un excelente boceto de un copón. Estudiando
el planteamiento del croquis se trata de una propuesta que sirve de puente entre dos
generaciones, por cuanto abandona la sobriedad neoclásica para buscar la gracia ya
cercana al dibujo romántico.

Algunos artistas portugueses que han trabajado en Canarias

Arquitectos
Miguel Alonso: El historiador ilustrado José Viera y Clavijo hace referencia a él
por primera vez en la Historia General de las Islas Canarias (1776) del siguiente modo:
Puesta la obra a cargo de Miguel Alonso, arquitecto portugués, por aposte entre él y Pedro

14 HERNANDEZ PERERA, 1955: 365-368.


Artistas portugueses en las Islas Canarias 21

de Vergara, alguacil mayor y mayordomo de la fábrica15. No era una obra de grandes


dimensiones pues se trataba de levantar solo la capilla mayor de la primitiva ermita
de Los Remedios con un costo de ochenta mil reales, llevándose a cabo en los años
siguientes a 1515 según la tradición gótica; pero era el templo que el Adelantado
Alonso Fernández de Lugo, conquistador de la isla, quería levantar como referencia en
contraposición a la primera parroquia que había surgido con un carácter espontáneo
y comunitario16. Alonso era un maestro de obra que se había ganado una excelente
reputación al levantar las capillas laterales de la iglesia de San Juan Bautista de Telde,
la iglesia mayor de la segunda ciudad de la isla de Gran Canaria.
Su vinculación con la primera figura de la Isla le proporciona otras obras; por
esas mismas fechas y por encargo del alguacil mayor de la isla de Tenerife, Pero
López de Villera, construye el hospital e iglesia de San Sebastián (La Laguna) obra
de la que se sabe dibujó la traza del arco mayor y la portada. Finalmente, trece años
después levanta la ermita de Gracia (La Laguna), un templo votivo por la victoria
de Fernández de Lugo sobre los aborígenes. Fue su última obra; después de 1530 su
nombre desaparece de las Islas. Mantuvo siempre el lenguaje gótico porque la manera
al romano no entra hasta el segundo tercio del siglo XVI17.

Diego Alonso Montaude: Técnico que es citado por Pedro Agustín del Castillo
mediado el siglo XVIII. Su adjudicación lusitana está basada en el lenguaje utilizado
en la parte que le tocó llevar a cabo en la construcción de la catedral de Las Palmas.
Las obras se iniciaron en 1500 y a él le toca realizar la traza de la planta del templo
y de la fachada oeste, la más importante, hoy desaparecida. Aunque al final sólo
realizó la cimentación y la construcción del frontis comentado puesto que, a causa
de la existencia de la primitiva catedral ubicada al este, que debía mantener el culto,
las obras se iniciaron por los pies. Las dos torres, de planta ochavada y rematadas
por un chapitel, las torres de los caracoles, además de la tradición escrita delatan su
tradición portuguesa18.
Pedro Hernández Benítez le atribuye, sin justificación, su intervención en la
construcción de la iglesia de San Juan de Telde. El año 1504, el Cabildo Catedral
contrata la continuación de la obra de la seo al maestro Pedro de Llerena, residente
en Sevilla, lo que hace suponer que, en esa fecha, Alonso de Montaude había partido
de la isla o había fallecido pues no vuelve a aparecer en ningún documento19.

15 VIERA y CLAVIJO, 1971: 678.


16 DARIAS PRÍNCIPE, PURRINOS CORBELLA, 1997: 40-42.
17 TRUJILLO RODRIGUEZ, 1964: 426-428.
18 Hernández Perera en su brillante investigación sobre Los primeros arquitectos de la catedral de las palmas, mantiene

las dos posibilidad de una procedencia levantina o portuguesa (PERERA, 1960: 255-304). Sin embargo no debemos
olvidar que la fachada de la catedral de Palma de Mallorca fue rehecha en el siglo XIX y fue entonces cuando se
les añadieron las torres ochavadas. Por eso creemos oportuno desechar la procedencia levantina del modelo. Ver
DARIAS PRÍNCIPE, 2003: 143-143.
19 TARQUIS RODRIGUEZ, 1964: 428-432.
22 Alberto Darias Príncipe

Lope Hernando: Cantero y albañil. Aparece trabajando en La Laguna a comienzos


del siglo XVI. Conocemos sus existencia gracias a una clausula del testamento de
Pero Lopez de Villera, donde se lee: Mando que den a Lope Hernando, albañil portugués,
treinta e cinco reales e que se los de la hacienda antes de que parta20.

Diego Dias: Maestro cantero. Trabaja en la isla de Tenerife en el cambio del siglo
XVI al XVII, de modo que podemos dar por terminada su actividad en torno a 1630.
Fue vecino de La Laguna y allí fue donde dejó la única obra que le conocemos, la
extracción y el labrado de la cantería para la casa del capitán Pedro de Vergara Alzola,
que se estaba levantando en 1614, ubicada en la actual plaza del Adelantado, antigua
plaza mayor y hoy desaparecida. El compromiso consistía en entregar quinientos cantos
azules (piedra basáltica, considerada la de mejor calidad y difícil de trabajar por su
dureza), extraída de la cantera de San Marcos en Tegueste (cerca de La Laguna).
No sabemos si, por esas fechas, el Cabildo de Tenerife le encargó ( o bien fue a otro
cantero del mismo nombre) devastar el antiguo muelle de Santa Cruz y aprovechar
la cantería para la construcción de un nuevo embarcadero21.

Gaspar de Fleitas: Hermano de Diego Días y también maestro de cantería, si bien


por el texto deducimos que era su segundo. Lo conocemos trabajando con su hermano
en la extracción y tallado de la piedra para la casa de Pedro de Vergara en los años
1819 y siguientes. Como a Diego Días se le paga un tostón por cada canto. Ésta era
una moneda de plata portuguesa, aunque de uso común en Canarias22.

Manuel Penedo, “El Viejo”: Uno de los grandes constructores de la primera mitad
del siglo XVII en la isla de Tenerife. Fue tanto cantero como alarife o constructor.
Residió en La Laguna desde comienzos del siglo XVII, pues las primeras referencias
que se hacen de su obra datan de 1607 al concertar con Diego Benítez Zuazo la
construcción de una portada de cantería para la casa que tenía en la Plaza del
Adelantado. A partir de ese momento se convierte en el constructor más prolífico
de la primera mitad del siglo.
A comienzos del 600, consolidada la importancia de La Laguna como capital de la
isla, los hidalgos de la ciudad se dispusieron a engalanar sus viviendas tal como en el
siglo anterior se había hecho en las casas principales (Casa del Corregidor o Palacio
Lercaro). Uno de los maestros a los que se recurrió con más frecuencia fue a Gaspar
Fleitas. La mayoría de estos edificios han desaparecido pero Tarquis le atribuye la
casa de Alvarado Bracamonte, aún en pie23. Quizá este ejemplo permita hacerse una
idea del empaque alcanzado. Su estilo gustó hasta el punto de que cuando Carrasco
Ayala pide colocar una portada en su casa, solicita que sea idéntica a la del Capitán
Fonte Espinel, levantada poco tiempo antes, si bien marcando algunas diferencias

20 TARQUIS RODRIGUEZ, 1964: 487


21 TARQUIS RODRIGUEZ, 1964: 255-258.
22 TARQUIS RODRIGUEZ, 1964: 260.
23 TARQUIS RODRIGUEZ, 1978: 221-222.
Artistas portugueses en las Islas Canarias 23

como cuando advertía que fuera hecha sin “aquellos bonetillos que cuelgan”; Espinel
pide además otros aderezos, como la portada de la sala, dos ventanas y postigo de
cantería24.
Penedo trabajó también para la iglesia. Pablo Machado Becerril pide que lleve a
cabo la construcción de una capilla en el convento del Espíritu Santo de los agustinos,
antes de 1614. Poco tiempo antes, el prior de esa comunidad concertó con él una serie
de obras indeterminadas para el convento. Para la iglesia de los Remedios ejecuta el
coro, conjuntamente con su yerno Jorge de Silva, de quien pensamos, sin apoyatura
suficiente, su filiación portuguesa ya que la colonia lusitana mantenía fuertes lazos de
unión entre sí en las Islas. Para este mismo templo inició la construcción de la torre,
hoy desaparecida al levantarse la fachada neoclásica del siglo XIX, terminándola su
hijo Diego. En colaboración con Domingo Acosta, terminó la torre de la Concepción
que hubo de ser reconstruida a finales de siglo por haber cedido su estructura25.
En la arquitectura religiosa continúa y consolida la tradición del orden toscano
que se define en Canarias en el último tercio del siglo XVI.
En la arquitectura civil, presenta una especial predilección por el uso del almo-
hadillado en portadas e incluso en algunos arcos de triunfo de templo.
El cúmulo de trabajo no lo hace descuidar la zona norte de la isla de Tenerife.
Desde 1614 aparece reformando la portada principal de la parroquia de Santa Ana
en Garachico que el maestro Bartolomé Díaz había realizado en el siglo XVI, confi-
riéndole una delicadeza que la introducía en el manierismo, efectuando también una
portada nueva en la nave de la epístola. En la misa Villa levanta el arco de triunfo
de la capilla principal del convento dominico de San Sebastián.
Construye igualmente las capillas mayores de la epístola y el evangelio en las
parroquias de los pueblos de Santa Úrsula y La Victoria de Acentejo, así como la
capilla del Rosario que el mayordomo de la cofradía le había solicitado.
Finalmente, en el pueblo de Candelaria, pero por encargo del Cabildo de La Laguna,
lleva a cabo la Casa de Apeo, hecha para descanso de la corporación en los días de
fiesta de la Patrona de Canarias. Aquí también trabajó con su yerno Jorge de Silva.

Retablistas
Antonio Estéves: Trabajó asiduamente en el taller de Juan González de Castro
Illada, uno de los artistas más polifacéticos de su tiempo pues no sólo fue carpintero
entallador, sino que llegó a diseñar la fachada del Palacio Salazar (La Laguna, Tenerife).
Sabemos que colaboró con su maestro en el retablo para el santuario de la Virgen de
Candelaria, desaparecido en un incendio el año 1789. Su labor se desarrolla en la
segunda mitad del siglo XVII, pues fallece en 1703. Obra especialmente destacable

24 TARQUIS RODRIGUEZ, 1964: 426-428.


25 TARQUIS RODRIGUEZ, 1964: 426.
24 Alberto Darias Príncipe

es el retablo del Hospital de Dolores, en San Cristóbal de La Laguna (Tenerife), si


bien quedó inacabado26.

Antonio Francisco de Orta: Nacido posiblemente en torno a 1655, se afincó en


San Cristóbal de La Laguna donde tenía instalado su taller. Los primeros datos de su
vida datan de 1684; el 20 de octubre de ese año da poder al capitán Andrés Sánchez
para que cobre en Fuerteventura un dinero que se le debía procedidos de diferentes
mercadurías. Casi rondando los cincuenta años se localiza en La Laguna, donde debía
ser muy conocido porque se encuentra en diferentes escrituras como testigo.
Pasado los cincuenta años (1709), le llega el encargo de la gran obra de su vida,
la elaboración del retablo mayor de la parroquia de Los Remedios en La Laguna. Un
año antes, los fieles de la parroquia se habían comprometido a pagar un nuevo retablo
por las pésimas condiciones del que estaba, impropio para contener a la Patrona.
El artista se compromete a dedicarse en exclusiva a este encargo. Debía además
confeccionarlo de manera que se pudieran colocar los cuadros del antiguo retablo,
una pinturas manieristas de Peter de Vos de extraordinaria calidad. Sus honorarios
fueron de 30.000 reales, además de tener la madera gratis. Debió estar terminado en
1715 pues esa es la fecha que aparece en el remate. Las obras que en 1746 se estaban
haciendo en la capilla mayor obligaron a desmontarlo; cuando seis años después se
intentaron recolocarlo se encontraron con la sorpresa de que su anchura era mayor
que la de la nueva capilla, por lo que tuvieron que disponerlo achaflanando sus calles
laterales, labor de la que se encargo el carpintero Juan Bermejo. Sin embargo Orta
no vio esta remodelación pues falleció en 151727.

Andres de Castro: Nacido en torno a 1681. Yerno de Antonio Francisco de Orta,


al contraer matrimonio con su hija Leonor, aunque desde antes acudía a su taller
para aprender el oficio. De su vida apenas tenemos noticias y solo conocemos una
obra, el retablo mayor del monasterio de San Juan Bautista, ocupado por las monjas
claras. No sabemos la fecha del inicio. La primera noticia de esta obra data del 1720,
año en que los patronos, impacientes por la marcha de la obra, exigen que concluya
el cuerpo bajo. Las tensas relaciones entre comitente y autor se ponen de manifiesto
cuando se compromete a tenerlo terminado en un año ante escribano público. Sin
embargo los patronos debían estár complacidos con los planos trazados por Castro
como hacen constar en la escritura. Castro no vio terminada la obra, falleció antes
encargándose a Francisco Antonio la finalización de la misma28.

26 RODRÍGUEZ GONZALEZ, 1986: 700.


27 RODRÍGUEZ GONZALEZ, 1986: 701-705.
28 RODRÍGUEZ GONZALEZ, 1986: 708.
Artistas portugueses en las Islas Canarias 25

Orfebres29
Ambrosio González Braga: El primer platero que se denomina con su nombre y
apellidos en la ciudad de San Cristóbal de La Laguna, el año de 1548. Consta que
se establece de manera definitiva en esta ciudad, aproximadamente dieciséis años
después, dejando de tener conocimiento de su persona en 1580.
Sólo conocemos unos pocos datos de su vida familiar. Contrae matrimonio en La
Laguna en 1548 con Isabel Sala viuda de Pablo Villafaña, cuyo recibo de dote firmó el
24 de abril de dicho año ante el escribano J. Del Castillo, y hace testamento ante Lucas
Sarmiento, escribano lagunero30.

Mateo Piñero: A pesar del tiempo que llevaba funcionando este oficio en la catedral
de Las Palmas de Gran Canaria es a él a quien se le da a conocer como el primer
platero de esta institución. En principio el cometido de este cargo solo conllevaba
el tener dispuesta, limpia y lista en todo momento las piezas que poseía el templo,
pero Piñero recibió abundantes encargos de la corporación para arreglar piezas en
mal estado o hacer otras nuevas, por lo cual se le abonaba según contrato un importe
ajeno al sueldo, que termina por ser de 6.999 maravedies en 1609.
No sabemos cuando entra al servicio del Cabildo, pero en 1601 se le encargaron
las primeras piezas, unos candelabros. A partir de entonces y correlativamente todos
los años hay encargos, pero preferentemente de restauraciones o adiciones. Estuvo a
punto de elaborar la gran obra que todos los orífices del templo hubieran deseado, la
gran lámpara de plata que debería iluminar el presbiterio, pero el encargo se dilató
ante el cambio ocasionado por el crecido donativo que el obispo Cristóbal Vera hizo al
Cabildo con tal fin. Por esta razón primero piden que elaborara, a manera de prueba,
una lámpara para la capilla de Nuestra Señora de la Antigua. El artista no pudo
llevar a afecto ninguna de las dos, pues falleció poco después, en septiembre de 1610.

Manuel Duarte de Silva: Abrió su taller en Las Palmas de Gran Canaria a comien-
zos del último tercio del siglo XVII, pero sus referencias concretas solo abarcan un
corto periodo entre 1672 y 1674. En ese bienio, sin pertenecer a la plantilla fija de
la catedral de Santa Ana, recibió diferentes encargos de la seo canariense. En 1672
figuran en el libro de Cuentas de Fábrica: 82 reales a Manuel Duarte de Silva, platero,
quarenta de plata y quarenta y dos de oro y hechura para un relicario que hizo para el
sagrario de esta S. I. Ese mismo año repara la cruz mayor del templo, aderesar y soldar,
además de la confección de otras piezas como una llave para el sagrario, un cirial
y una ampolleta. Las últimas noticias aparecen también en el libro de Cuentas de
Fábrica, dos años después, con un nuevo encargo, pero ahora conjuntamente con
otro orfebre, Pedro Rodríguez, para restaurar la lámpara que se ponía en el crucero
del templo la noche de Navidad31.

29 La confección de estas breves notas han tenido como matriz la obra ya citada de HERNANDEZ PERERA, 1955.
30 HERNANDEZ PERERA, 1955: 408.
31 HERNANDEZ PERERA, 1955: 394
26 Alberto Darias Príncipe

Ildefonso de Sosa: Solo conocemos con total seguridad una obra de este artista,
pero de calidad suficiente para considerarlo el mejor orífice de Canarias. Se trata
de la custodia que hizo para el convento dominico de San Cristóbal de La Laguna
(Tenerife), que presenta la peculiaridad de ser el resultado de una colaboración
entre dos artistas, el pintor-escultor José Rodríguez de la Oliva e Ildefonso de Sosa,
diseñador y realizador. La obra aúna la orden de Predicadores con la iconografía
eucarística al disponer diferentes símbolos; el perro con la antorcha en la boca,
alegoría del fundador, con la figura de Santo Tomás de Aquino, el cantor de la
Eucaristía, pero también ofrece una visión trinitaria al definir el viril con una forma
trilobulada. El astil antropomorfo era una novedad, hasta pasado cinco años no llegan
los siguientes modelos, ahora importados de América (Puebla de los Ángeles). En
realidad eran estereotipos copiados de los ángeles esculpidos en Nueva España, pero
con un tratamiento esquemático y expresionista, totalmente alejados de la estética
figurativa. La autoría comentada se confirma al inscribir los nombres de los autores
en la escultura; en el borde del pie se lee: ILDEPHONSUS DE SOSA ME FECIT
ANN(O) DE 1734. Por su parte el diseñador deja su rastro en la orla del manto:
JOSEPH RODRIGUEZ INV(ENT)OR.
Hernández Perera, basándose en la semejanza de la traza, atribuye al mismo
platero la custodia de la parroquia de San Telmo en Las Palmas de Gran Canaria. Si
el viril es idéntico, el astil es sustituido ahora por un águila. El pie repite elementos
ornamentales semejantes, pero muestra un elemento caracterizado por su originalidad,
como figuras tenantes utiliza las ruedas de un carro y leones, posible remembranza del
carro del profeta Ezequiel. No obstante creemos que el elemento más atractivo, por
su trascendencia es la utilización por primera vez de la tembladera, que pronto se va
a convertir en una de las señas de identidad de la orfebrería canaria. Este préstamo
portugués, en cuyo país también se usa como un adorno para la cabeza, tendrá un
éxito tan rotundo que perduraría en las custodias canarias hasta que la platería de
las Islas cerró su largo ciclo baroco32.

Benito Juan Martín: Este artista plantea el problema del bilingüismo con que
escribe su nombre, portugués y español. La carencia de fecha en uno de ellos agrava
la duda que se puede resolver analizando el lenguaje artístico del dibujo. De ese modo
se llega a la conclusión que se trata de la misma persona que hace uso de su lengua
natal cuando llega a las Islas y una vez afincado en ellas y aprendido el castellano,
también hace uso de él.
En el primer caso se trata de un boceto diseñado para la catedral de Las Palmas,
consistente en un copón con distintas opciones para su ornamentación. Su filiación
portuguesa no presenta dudas al firmarse como Bento Joao Martin, añadiendo en la
lámina, también en portugués, Diferente forma cada metade. La pieza, que no se llevó

32 HERNANDEZ PERERA, 1955: 232-233, 349.


Artistas portugueses en las Islas Canarias 27

a cabo, está sin fechar pero por el lenguaje, tanto formal como decorativo, podemos
ubicarlo cronológicamente entre la segunda y tercera década del ochocientos33.
Por su parte en la documentación de los bienes requisados con motivo de la
desamortización, aparece en La Laguna (Tenerife), un platero de nombre Benito
Juan Martín, al que Salvador Clavijo, Comisionado de la Caja Nacional del Crédito
Público le pide el peso y valoración de la plata inventariada del convento de San
Diego del Monte en San Cristóbal de La Laguna, y dos años después lleva a cabo la
tasación de otro cáliz de uno de los conventos suprimidos en el obispado de Tenerife34.

Eleuterio Freitas: Lo encontramos en Garachico (Tenerife), en 1825, reparando


un cáliz de uno de los conventos suprimidos que debía ser entregado a la iglesia de
San Juan del Farrobo, en La orotava (Tenerife). Al estar la firma en aquel lugar se
plantea la duda de si es una localización circunstancial, pues la villa de Garachico
había quedado prácticamente arrasada y su puerto anegado, después de la erupción del
Teide un siglo antes; en consecuencia, la población no se recuperó quedando anulada
del concierto de los grandes núcleos de la Isla. Cuando se decretó la desamortización
de los conventos, dos de los tres cenobios fueron cerrados por lo que pensamos que,
dada la fecha, se debió tratar de uno de tantos plateros encargados por el Estado de
la tasación de sus bienes o por la Diócesis de la valoración de las piezas a repartir
por las diferentes parroquias35.

Figura n.º 1 – Alpender de la ermita del Amparo en Icod – Tenerife

33 DoRTA, 1964: 52, 88.


34 DoRTA, 1964: 425-426.
35 DoRTA, 1964: 402.
28 Alberto Darias Príncipe

Figura n.º 2 – Baquetón torso en la fachada central de la iglesia de la asuncion de la gomera

Figura n.º 3
Boceto de copón de Benito Joao Martín
– Catedral de Las Palmas
Artistas portugueses en las Islas Canarias 29

Figura n.º 4 – Cadeneta en esquina – Palacio Lercaro

Figura n.º 5 – Catredal de Las Palmas


30 Alberto Darias Príncipe

Figura n.º 6
Columna anillada de la
Catedral de Las Palmas

Figura n.º 7
Custodia de Santo Tomás en
la iglesia de Santo Domingo
en La Laguna
Artistas portugueses en las Islas Canarias 31

Figura n.º 8
Fachada de la Iglesia
de San Francisco
en Santa Cruz de Tenerife

Figura n.º 9
Mirador en la casa Quilla
en San Sebastián
de La Gomera
32 Alberto Darias Príncipe

Figura n.º 10
Portada individualizada
– Palacio Lercaro
en La Laguna

Figura n.º 11
Primera Fachada de la
catedral de Las Palmas
Artistas portugueses en las Islas Canarias 33

Figura n.º 12 – Retablo de las Claras en La Laguna


34 Alberto Darias Príncipe

Figura n.º 13 – Retablo de los Remedios en la catedral de La Laguna


Artistas portugueses en las Islas Canarias 35

Figura n.º 14
Techo del presbiterio de
la iglesia de San Francisco
en Santa Cruz de Tenerife

Figura n.º 16 – Ventana de guillotina

Figura n.º 15
Torre ochabada
Basílica del Pino en Gran Canaria
36 Alberto Darias Príncipe

Bibliografía
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Darias PRÍNCIPE, Alberto, Purrinos CORBELLA, Teresa, 1997 – Arte, religión y sociedad.
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Tarquis RODRIGUEZ, Pedro, 1964 – “Arquitectos, alarifes y canteros que han trabajado en
la Islas Canarias”, in Anuario de Estudios Atlaánticos, 10. Madrid-Las Palmas.
A ornamentação cerâmica da Casa do Chão Verde
Ana Margarida Portela Domingues

Introdução
A ornamentação cerâmica aplicada a edifícios de influentes “brasileiros” do período
romântico variou bastante, em função de épocas, contextos sociais e económicos,
características de personalidade e outros factores, requerendo abordagens mais amplas
do que aquelas que têm sido feitas até ao presente. Por tal razão, iremos aqui analisar
uma casa que já foi, mais do que uma vez, citada como exemplo paradigmático da
chamada “casa de brasileiro”: a Casa do Chão Verde. Veremos como, em certos
aspectos, pode-se afirmar que é uma casa excessiva e extravagante. Porém, não tanto
como o perfil do encomendador poderia fazer supor1.
A Casa do Chão Verde, em Rio Tinto (arredores do Porto) foi a habitação dos
últimos anos de vida de António Lourenço Correia (30 de Março de 1828 – 31 de
Outubro de 1879). Ora, António Lourenço Correia era um dos mais conhecidos
“brasileiros” de torna-viagem da cidade do Porto e um dos mais extravagantes, tendo
sido imortalizado pelo personagem camiliano Arara, em “A Corja”, romance publicado
no ano que se seguiu à sua morte:
Cavalos relinchavam, fazendo no macadame sonoro, com as patas, uma toada dura com um
ritmo pomposo. Chegava a caleche descoberta dum brasileiro purpurino, coruscante, de cores
arreliosas, oftálmicas, delirantes, duma garridice espaventosa. Era o Arara, um triunfador daqueles
tempos em que a casaca azul e o colete amarelo não dispensavam uma gravata vermelha, luvas
verdes e calças cor de alecrim com polainas cinzentas. O Arara, a quem outros chamavam o
ripada, (...) muito refastelado nos coxins cor de gema de ovo com franja azul (...)2.
Supomos que esta descrição esteja algo empolada, como convinha ao estereótipo
que se pretendia ilustrar, tendo também em conta que Camilo Castelo-Branco não

1 Esta comunicação é a adaptação de um dos capítulos da nossa tese de Doutoramento, intitulada “A ornamentação
cerâmica na arquitectura do Romantismo em Portugal”, para a qual se remete, embora tencionemos publicar ulteriormente
um estudo mais aprofundado e apenas dedicado à Casa do Chão Verde. Expressamos os nossos agradecimentos à
família Sá, proprietária da Casa do Chão Verde, por todas as facilidades concedidas, quer ao nível da recolha de
imagens, quer ao nível da consulta de documentação familiar.
2 Citado por DANTAS, 1998: 25-27.
38 Ana Margarida Portela Domingues

procurou ridicularizar apenas o novo-riquismo de muitos “brasileiros” de torna-


-viagem. Tudo leva a crer que António Lourenço Correia, também conhecido como
“O Lâmpada”, não era extravagante por ser um “brasileiro” de torna-viagem, mas
sim por característica de personalidade. Aliás, numa carta datada de 1857 dirigida
ao seu amigo e conterrâneo Félix Las Casas dos Santos (Visconde de Las Casas),
António Lourenço Correia refere:
Principio por dizer alguma coisa a respeito do meu sistema de trajar; que não tem nada de
novo ao meu costume daí; por isso o que aqui reparam e alguma coisa dizem, para mim não
é novidade, porque já de lá [Brasil] vinha habituado aos tocadores de rebeca; e então pouco
se me dá disso, porque embora tenha o costume de andar com vestuário de cores claras ou de
qualquer feitio ou moda do meu gosto, eu creio que com isso não ofendia pessoa alguma, nem
a moral pública, nem tão pouco julgo que um tal vício (se merece tal nome) possa desmerecer
o meu conceito aos olhos da sociedade em geral ou dos meus amigos em particular; isto é (já se
sabe) quando se sai de casa para dar um pas­seio sem destino ou para fora da cidade3.
Este excerto sugere que António Lourenço Correia tinha noção do risco de ser
ridicularizado pelo modo como vestia, não correspondendo inteiramente, portanto,
ao estereótipo do “brasileiro” de torna-viagem pouco instruído mas desejoso de copiar
os hábitos e adereços das elites, fazendo-o de forma inadequada ou desfasada das
modas em vigor.
Tratando-se de um “brasileiro” de torna-viagem abastado e com gostos bizarros,
seria de esperar que a casa que António Lourenço Correia concebeu reflectisse isso
mesmo e que fosse ainda mais espampanante do que aquela que é descrita por Camilo
Castelo-Branco no romance “O Senhor de Paço de Ninães”:
nos sai de rosto uma casa de dois sobrados, caiada, azulejada, com suas colunas pintadas de
verde e como de papelão grudado à parede, com as bases amarelas e os vértices escarlates. Vão-se
os olhos naquilo! Esta maravilha arquitectónica devem-na as artes ao gosto e génio pinturesco
de um rico mercador que veio das luxuriantes selvas do Amazonas, com todas as cores que lá
viu de memória, e todas aqui fez reproduzir sob o inspirado pincel de trolha4.
Porém, não foi bem isso que encontrámos na Casa do Chão Verde, cujas principais
bizarrias foram mantidas na face mais privada da casa. De facto, olhando a frontaria
em toda a extensão, ao longo da estrada do Porto a Valongo, podemos ver uma
casa de habitação alinhada com a rua. Embora tendo azulejaria de fachada, não se
apresenta esta com cores espampanantes ou com uma disposição ilógica e caprichosa.
Na Casa do Chão Verde, entre o mirante a sul e a casa de habitação, interpõe-se
um corpo térreo praticamente cego para a rua, o qual servia de cocheira e seus anexos.
É precisamente nas paredes deste corpo arquitectónico, assim como em volta, que
existe a decoração mais deslumbrante da Casa do Chão Verde. Apesar disso, não
se vê do exterior, pois esta decoração foi concebida apenas para quem entrava no
3 DANTAS, 1998: 25-27.
4 Disponível na internet em: <http://www.museu-emigrantes.org/Pormenores.htm> e <http://www.museu-emigrantes.
org/literatura-brasil.htm>.
A ornamentação cerâmica da Casa do Chão Verde 39

terreiro da casa. Trata-se, afinal, de uma mera e típica opção decorativa de carácter
romântico, ao contrário da ornamentação profusa existente – e apenas a título de
exemplo – no Palacete da Granja, em Paredes, a qual mostra-se apenas nos alçados
que são visíveis da rua, mesmo estando separados desta por um pequeno jardim. O
caso do Palacete da Granja, ao invés do que sucede com a Casa do Chão Verde, tem
de ser entendido como sinónimo de vaidade ostentada perante todos.
O caso de um palacete de “brasileiro” em Paredes evidencia como, com menos
ornamentação cerâmica, pode-se conseguir um efeito mais marcante, dependendo do
modo como esta é aplicada. Este princípio tem de ser bem entendido na abordagem
às chamadas “casas de brasileiros”, de modo a que não se coloque a questão da orna-
mentação cerâmica nos termos simplistas de ter ou não ter determinados artefactos.
António Lourenço Correia não foi o único membro da família que viveu no
Brasil. Teve, pelo menos, um tio que era comerciante no Rio de Janeiro, para quem
mandou erigir um túmulo no Cemitério do Prado do Repouso, no Porto – o do
jazigo n.º 33/385. Sabe-se também que António Lourenço Correia fez uma viagem
pela Europa em 1857, passando por Londres, Paris e Roma, tendo escrito memórias
relativas a essa viagem. Terá sido nesse périplo que se inspirou para conceber a sua
habitação em Rio Tinto.
Segundo um actual descendente da sua família6, a intenção de António Lourenço
Correia era residir ao Poço das Patas (ou Campo Grande, junto ao actual Campo 24
de Agosto), erguendo ali uma casa com fachada de mármore. Porém, terá desistido da
ideia de recorrer ao mármore, depois de receber uma carta de um canteiro de Lisboa,
informando que tal obra ficaria muito dispendiosa. Sabemos que, em 1858, António
Lourenço Correia pediu licença à Câmara Municipal do Porto para ali erguer uma
casa, onde possuía um terreno. O risco da casa a erguer correspondia a um alçado
neogótico, com ameias, tratando-se de uma casa de gosto romântico. Sendo assim,
António Lourenço Correia teve duas habitações, cuja construção terá sido iniciada
sensivelmente na mesma época. Uma situava-se numa zona do Porto que estava em
rápida transformação em meados do século XIX e a outra casa ficava fora do bulício
da cidade, sendo precisamente a Casa do Chão Verde, em Rio Tinto.
Em 1865, António Lourenço Correia morava no Bonfim, talvez na referida casa,
que ficava perto da entrada desta rua. Porém, em 1872 já é dado como morador em
Rio Tinto. Apesar disso, a Casa do Chão Verde ostenta a data de 1857 na grade da
principal sacada da casa. É claro que o portão de ferro que dá para o terreiro tem
a data de 1864 e a decoração com conchas junto ao mirante foi feita em 1869. Por
conseguinte, as obras duraram alguns anos e, talvez, só em meados da década de
1860, a Casa do Chão Verde passou a ser mais utilizada.

5 QUEIROZ, 2002: I, 2, 249.


6 Devemos estes dados ao Dr. Pedro Sá, a quem agradecemos.
40 Ana Margarida Portela Domingues

A produção da Fábrica da Calçada do Monte


António Lourenço Correia encomendou, em Lisboa, vários artefactos que viria
a colocar na Casa do Chão Verde. Podemos interpretar esta opção como uma
necessidade de ir ao encontro dos melhores produtos, dentro do tipo de artefactos
que pretendia. Recordamos que foi a um canteiro de Lisboa que pediu orçamento
para a frontaria toda de mármore que desejava fazer na sua casa do Porto, quando
já existia no Porto uma oficina capaz de fazer essa obra com grande qualidade7. Foi
também a um canteiro de Lisboa que encomendou o túmulo erigido em memória
do seu aludido tio8.
De facto, a primeira encomenda de que temos conhecimento, feita em Lisboa e
para a Casa do Chão Verde, diz respeito a um tipo de artefacto em que seria mais
difícil encontrar no Porto aquilo que António Lourenço Correia pretendia: painéis
figurativos de azulejo. A conta data de Março de 1861 e reporta-se a dois quadros em
azulejos de 140 cada um, cloridos, totalizando 28$8009. A aquisição foi feita através de
Félix Las Casas dos Santos, amigo de António Lourenço Correia e um dos financia-
dores da sociedade que geriu a Fábrica de Cerâmica das Devesas nos seus primeiros
tempos10. Porém, em 1861, a Fábrica de Cerâmica das Devesas ainda não existia. Em
contrapartida, a Fábrica da Calçada do Monte poderia ter já alguma fama ao nível
de painéis polícromos, um tipo de obra que a melhor fábrica de cerâmica do Porto,
na altura – Santo António do Vale da Piedade – talvez não produzisse por sistema.
Os referidos quadros em azulejo são certamente os dois colocados à entrada do
terreiro, fazendo frente para o alçado sul da casa. Representam duas sentinelas, com
uniforme de granadeiros, flanqueados por estilizados círios. São, afinal, as figuras que
guardam a entrada da quinta, papel que podia ser também desempenhado por um
par de cães ou de leões, sendo de notar que foram mais tarde colocados leões no
coroamento desta parede, assim como um vaso de cerâmica a juntar a duas urnas de
granito, redundâncias que, desde logo, denotam algum excesso. Esse excesso nota-se
também no facto de ter sido depois colocado em frente dos painéis, virado para o
portão, um chafariz circular encimado com o chino de pedra mármore executado em
1867 pela oficina portuense de José Almeida da Costa (irmão de António Almeida
da Costa, mentor da Fábrica de Cerâmica das Devesas)11.
Pouco tempo depois de terem sido adquiridos os quadros em azulejos com as
sentinelas, foram encomendados mais artefactos à Fábrica da Calçada do Monte, de
Bento José Gomes de Brito. A conta é de Abril de 1862 e foi passada a António da
Costa Carvalho & Ca., em nome de António Lourenço Correia. Referia-se a dois
pavilhoens chineses de faiança a 15$000, totalizando 30$000. A este valor acrescia

7 Referimo-nos à oficina de Emídio Amatucci, onde trabalhou António Almeida da Costa, fundador da Fábrica de
Cerâmica das Devesas. Ver DOMINGUES, 2003: I, cap. 1.
8 Queiroz, 2002: I, 2, 249.
9 Arquivo da Casa do Chão Verde / Colecção do Dr. Pedro Sá.
10 DOMINGUES, 2003: I, 68-72.
11 Arquivo da Casa do Chão Verde / Colecção do Dr. Pedro Sá.
A ornamentação cerâmica da Casa do Chão Verde 41

2$070 pelos vidros de cores e posturas conforme a conta, 1$600 por duas caixas para a
condução e $400 pela condução propriamente dita para o cais, por quatro homens12.
Estes pavilhões em forma de pagode, eram peças de certa complexidade no
fabrico, tendo sido o seu preço unitário superior ao de qualquer das estátuas
adquiridas para o jardim da Casa do Chão Verde, apesar destas estátuas serem
geralmente o mais caro tipo de peça em faiança que podia ser produzido por uma
fábrica de cerâmica, à época.
Os pavilhões são peças em faiança vidrada com pintura a azul, destinados a deco-
ração de jardim e talvez inspirados na “torre de porcelana”, celebrizada em gravuras
da primeira metade de Oitocentos13. Ainda assim, são de um estilo ecléctico, já que
possuem também apontamentos góticos.
A encomenda seguinte de António Lourenço Correia à Fábrica da Calçada do
Monte data de 1865 e foi feita através de António Sarmento Pereira Brandão. Foram
então adquiridos:
Um quadro de Diana, com 392 azulejos – 24$000
Um quadro de Ceres, com 392 azulejos – 24$000
Um quadro de Júpiter, com 294 azulejos – 18$000
Um quadro de Apolo, com 294 azulejos – 18$000.
Se somarmos a estes valores as quatro caixas para condução, os carretos até ao
cais e o despacho, tudo totalizou 89$520, quantia paga em Setembro de 186514.
Destes quatro quadros com deuses do panteão romano apenas um deles, o
que representa Apolo, já não se encontra no local original, devido ao seu mau
estado de conservação15. Não iremos entrar em detalhes, nomeadamente quanto
à iconografia. Apenas diremos que este género de composições era, na época,
executado em Lisboa por um pintor com certa fama – o célebre Luís António
Ferreira, autor mais que provável dos painéis da Cervejaria da Trindade e da
fachada da Fábrica de António da Costa Lamego, que estaria a ser executada
nesse ano de 1865, entre outras obras.
António Lourenço Correia voltou a adquirir mais painéis figurativos à Fábrica da
Calçada do Monte, em Fevereiro de 1869. Tratava-se de 360 azulejos brutescos em
dois quadros, representando mais sentinelas em diferentes uniformes militares, agora
colocadas logo junto à entrada que ficava sob o mirante (Figura n.º 1). Estes quadros,
sobretudo aquele que representa o militar escocês, são do mesmo estilo das figuras
militares pintadas para a Cervejaria da Trindade. Não hesitamos, pois, em atribuir a
Luís António Ferreira estes quadros.

12 Arquivo da Casa do Chão Verde / Colecção do Dr. Pedro Sá.


13 ARRECHEA Miguel, 1989: 112.
14 Arquivo da Casa do Chão Verde / Colecção do Dr. Pedro Sá.
15 Uma imagem do quadro referente a Júpiter já foi publicada em SAMPAIO, BOTELHO, 2000.
42 Ana Margarida Portela Domingues

Figura n.º 1
Detalhe do muro sul da
Quinta do Chão Verde, com
decoração de conchas e
azulejos, vendo-se à esquerda
um dos quadros executados
por Luís António Ferreira
para a Fábrica da Calçada do
Monte (1869)

Relativamente aos azulejos polícromos, de padrão 1x1 com estrelas de seis pontas,
colocados em volta dos ditos painéis sob o mirante da Casa do Chão Verde, estes ou
não são da Fábrica da Calçada do Monte ou foram adquiridos a esta fábrica numa
outra altura. o padrão é invulgar, de tal modo que temos dúvidas sobre se são de
fabrico portuense ou lisboeta.
Em Julho de 1866, foi emitida factura por Bento José Gomes de Brito (proprie-
tário da Fábrica da Calçada do Monte) referente a dois pavilhões chineses coloridos,
custando, no total, 50$000, adicionando-se mais 3$160 pelo trabalho dos 79 azulejos
que forão em novos, ao pintor; de os pintar. Em relação a estes azulejos, terão sido
certamente uma sub-empreitada, pois a factura remata do seguinte modo: a fabrica
pelos 79 azulejos – nada. Apesar da fábrica nada cobrar pelos azulejos, consta nessa
factura a despesa com os caixotes de palha para a condução dos pavilhões e também
o frete [dos azulejos] para a fabrica, assim como a condução [de ambos os artefactos]
ao caminho de ferro16.
Estes azulejos mencionados acima não podem ser os que complementam os dois
quadros adquiridos em 1869, não só porque a encomenda é anterior, mas também
porque os que se dispõem em volta dos ditos quadros também surgem em outras
partes da Casa do Chão Verde, sendo, pois, em muito maior quantidade do que os 79
azulejos mencionados. Tendo em conta que se tratou de uma sub-empreitada, talvez
com carácter especial, não apurámos ainda que azulejos eram estes. De qualquer
modo, parece-nos estranho que a Fábrica da Calçada do Monte tivesse necessidade
de recorrer a um pintor de fora para a execução de 79 azulejos, a não ser que fosse
um painel figurativo.

16 Arquivo da Casa do Chão Verde / Colecção do Dr. Pedro Sá.


A ornamentação cerâmica da Casa do Chão Verde 43

Quanto aos pavilhões de inspiração chinesa, adquiridos em 1866 à Fábrica da


Calçada do Monte, são muito semelhantes aos que já haviam sido adquiridos quatro
anos antes, embora mais caros ainda, pois eram policromados.

A produção da Fábrica de Santo António do Vale da Piedade


É interessante notar que, enquanto António Lourenço Correia ia adquirindo à
Fábrica da Calçada do Monte quadros em azulejo e outros azulejos especialmente
concebidos, assim como complexas peças de carácter orientalizante, foi comprando
outro tipo de artefactos cerâmicos no Porto / Vila Nova de Gaia. As primeiras figuras
de corpo inteiro colocadas no jardim da Casa do Chão Verde podem ter sido as que
foram adquiridas em Julho de 1860, pelo próprio António Lourenço Correia, no
depósito da Fábrica de Santo António do Vale da Piedade. Tratava-se de:
10 figuras de corpo inteiro, boas, a 6$000 – 60$000
2 leões de segunda, a 4$000 – 8$000
2 vasos de primeira, a 3$600 – 7$200
14 pilastras para figuras, a 1$000 – 14$000.
Juntando os sete carretos, a $120, tudo totalizava 90$040, quantia paga em Julho
de 1860. Nessa conta, assinou José Lopes Rios, em nome do proprietário da fábrica,
que ainda era João de Araújo Lima17.
Para esta época, não temos uma percepção clara sobre quais as fábricas de Lisboa
que produziam estátuas deste género, já que a Fábrica de António da Costa Lamego
alegadamente não produzia ainda faiança. Porém, supomos que a Fábrica da Calçada
do Monte as produzisse. Por conseguinte, a escolha de Santo António do Vale da
Piedade indicia que fosse então a mais conceituada fábrica portuguesa nesta gama
de produção ou, pelo menos, seria tão conceituada como alguma fábrica de Lisboa
que também produzisse com qualidade esse tipo de peças.
Em 2003 e em 2009, fotografámos na Casa do Chão Verde as seguintes estátuas
da Fábrica de Santo António do Vale da Piedade, em geral muito deterioradas: Estio;
Primavera; Ásia; África; Mercúrio; Urânia; Melpoméne; uma figura com lira, que
poderá ser Euterpe, a musa da música, ou Érato, a musa da poesia lírica; uma figura
com capacete, que poderá ser Minerva, embora a estátua esteja incompleta e lhe
faltem os habituais atributos da lança e escudo (Figura n.º 2).
Não temos a certeza sobre quais foram as estátuas adquiridas em 1860 à Fábrica de
Santo António do Vale da Piedade e nem sequer localizámos as pilastras compradas
na mesma altura, pois as estátuas desta fábrica que existem na Casa do Chão Verde
dispõem-se hoje sobre pilastras, sim, mas de granito, estando algumas das estátuas fora
do sítio original. Porém, a verdade é que esta conta de 1860 é a única da Fábrica de
Santo António do Vale da Piedade que refere estátuas de corpo inteiro. As restantes

17 Arquivo da Casa do Chão Verde / Colecção do Dr. Pedro Sá.


44 Ana Margarida Portela Domingues

Figura n.º 2
Figura alegórica executada
na Fábrica de Santo António
de Vale da Piedade e ainda
não identificada, devido à
subtracção dos respectivos
atributos

estátuas que encontrámos na Casa do Chão Verde são da Fábrica de Cerâmica das
Devesas e alguns anos posteriores, com excepção de três estátuas em fosco posicionadas
no tanque do muro sul do terreiro, cuja execução não é seguramente de nenhuma
destas duas fábricas, assim como não será das portuenses Fábrica de Massarelos e
Fábrica de Miragaia, estando este última já fechada aquando das primeiras aquisições
de António Lourenço Correia para a Casa do Chão Verde. É possível que estas três
estátuas no tanque, correspondentes a Neptuno, ladeado por duas estátuas femininas,
talvez ninfas dos mares, sejam obra de alguma fábrica de Lisboa.
As melhores estátuas na Casa do Chão Verde são as da Fábrica de Cerâmica das
Devesas. Porém, esta fábrica ainda não existia, nem em 1860, nem em 1863, quando
António Lourenço Correia voltou a recorrer à Fábrica de Santo António do Vale
da Piedade para adquirir:
Duas pinhas de primeira – 4$800
Duas pinhas de primeira, refugo – 4$000
Duas pinhas vazo, boas – 4$800.
A ornamentação cerâmica da Casa do Chão Verde 45

A conta, em cartão timbrado, foi paga em Maio de 186318.


Em Novembro de 1864, regista-se nova compra à Fábrica de Santo António do Vale
da Piedade. Para além de artefactos em grés no valor total de 6$720, foi ainda adquirido
1 vazo de terraço enxacotado a 4$500 e dois macacos para assento por mais 7$000. Com
o carreto e as barcagens, ficou tudo por 18$46019. Já em Maio de 1865, para além de
mais artefactos em grés, António Lourenço Correia adquiriu à mesma fábrica:
316 azulejos de vidro azul, a $050 – 15$800
5 azulejos de riscas, a $050 - $250
2 piramides, a $360 - $720.
Na mesma conta acima referida, mas em Julho de 1865, é registada a aquisição
de mais dois azulejos de riscas, a $040 cada, assim como 140 azulejos de vazinho, a
$050 cada um, totalizando 7$000. A esta conta, paga em Agosto de 1865, foi abatida
uma parcela de 4$560, referente a 456 azulejos, a $01020.
Em relação aos azulejos de vidro azul, são seguramente os azulejos sem decoração
e de vidrado azul que enquadram os quadros com as sentinelas em uniforme de
granadeiros, quadros esses encomendados em 1861 à Fábrica da Calçada do Monte.
Estes azulejos azuis não são todos do mesmo tamanho, notando-se que foram feitos já
de propósito para aquele local, de modo a evitar cortes no processo de assentamento.
Relativamente aos azulejos de vasinho, facilmente os identificámos na Casa do
Chão Verde, num muro de separação entre patamares do jardim. Trata-se de um
padrão pouco comum em fachadas do Porto, formado por azulejos com motivo central
de cesto de flores, policromado, com grande componente de retoque à mão livre.
Quanto ao padrão de riscas, em que os dois azulejos adquiridos mais tarde seriam
talvez para completar um revestimento (por algum dos anteriormente adquirido ter
partido ou por se ter calculado mal o número de azulejos necessários), supomos
também tê-lo identificado na Casa do Chão Verde, mesmo sem termos procedido
a uma contagem meticulosa. De facto, num muro que separa dois patamares do
jardim, vê-se azulejo com padrão geométrico, em que duas riscas em ângulo aberto,
alternadamente pintadas a azul e a laranja sobre estampilha, formam um losango ao
centro. Em conjunto, estes azulejos conferem uma imagem ilusionista e perspética.
Porém, tais azulejos de riscas formando losangos surgem na Casa do Chão Verde
também numa espécie de barra no edifício da cocheira (junto ao chafariz de Naiade e
também no alçado sul), disposição na qual não surtem o desejado efeito. Tal disposição
revela-nos um gosto caprichoso por parte do encomendador, até porque os referidos
azulejos misturam-se com conchas e outra ornamentação cerâmica, nomeadamente:
medalhões com efígies em terracota, da autoria de José Joaquim Teixeira Lopes (a
abordar mais adiante); uma cercadura com friso de meandros de flores algo estilizadas,
em laranja e verde, com dois frisos mais pequenos em amarelo e azul e lista azul no
bordo – cercadura essa de modelo invulgar e que poderá ser da Fábrica de Santo
18 Arquivo da Casa do Chão Verde / Colecção do Dr. Pedro Sá.
19 Arquivo da Casa do Chão Verde / Colecção do Dr. Pedro Sá.
20 Arquivo da Casa do Chão Verde / Colecção do Dr. Pedro Sá.
46 Ana Margarida Portela Domingues

António do Vale da Piedade; os azulejos de padrão 1x1 com estrelas de seis pontas,
polícromas – já referidos por guarnecerem os dois quadros encomendados à Fábrica
da Calçada do Monte e situados sob o mirante; e ainda azulejos com um padrão que
ficou célebre no Romantismo – o das ferraduras, o qual também foi executado no
Porto / Vila Nova de Gaia, ao contrário do que até há bem pouco tempo se supunha.
A próxima compra de artefactos cerâmicos por parte de António Lourenço
Correia é de Maio de 1867, totalizando 10$625. Diz respeito à aquisição de 75 +
140 azulejos lisos de cercadura, a $025, totalizando 3$500, mais 1 lago para peixes,
custando 2$500 e dois vasos de terceira, custando cada um 1$500”21. Por último,
na conta de Abril de 1875, são mencionados mais artefactos cerâmicos adquiridos à
Fábrica de Santo António do Vale da Piedade:
Por dois vazos a franceza de terraço, a 5$000 – 10$000
Por mais dois vazos a franceza de terraço, a 1$800 – 3$600
Por dois vazos altos de tulipa, a 2$400 – 4$800
Mais duas pinhas, a 2$400 – 4$80022.
Em relação aos vasos altos de tulipa (Figura n.º 3), sabemos que existiriam, pelo
menos, quatro, sendo que, um deles – ainda existente na quinta, mas fora do local
original – é vidrado a branco e com partes pintadas a azul. outro serve de remate ao
alçado norte do edifício da cocheira e os outros dois rematavam um muro no jardim
(um deles já não se encontra no local).

Figura n.º 3
Vaso alto de tulipa, produção da Fábrica de Santo
António de Vale da Piedade

21 Arquivo da Casa do Chão Verde / Colecção do Dr. Pedro Sá.


22 Arquivo da Casa do Chão Verde / Colecção do Dr. Pedro Sá.
A ornamentação cerâmica da Casa do Chão Verde 47

Quanto aos vasos de terraço à francesa, talvez sejam uns que são marmoreados
e que ostentam uma marca de fábrica mais tardia relativamente à que se vê nos
vasos altos de tulipa, pois possuem caracteres mais pequenos e simples, totalmente
estampilhados. Tal tipo de vaso marmoreado foi produzido, com ligeiras diferenças,
também pela Fábrica de Cerâmica das Devesas, debaixo da designação de vaso com
taça, ornado23.
Embora em nenhuma das contas encontradas da Fábrica de Santo António do Vale
da Piedade para a Casa do Chão Verde se refira globos, António Lourenço Correia
terá adquirido, pelo menos, um globo a esta fábrica, o qual possui uma faixa no bojo
com motivos florais totalmente estampilhados com cor azul. Também não encontrámos
qualquer conta da Fábrica de Santo António do Vale da Piedade referente a bancos
de gosto oriental para jardim, embora ainda existe hoje um na Casa do Chão Verde,
marcado pela dita fábrica e certamente deslocado do local original.

A produção da Fábrica de Cerâmica das Devesas


Na Casa do Chão Verde, existem ainda outros artefactos, tão ou mais importantes
em termos histórico-artísticos como os que temos vindo a assinalar. São peças da
Fábrica de Cerâmica das Devesas, a fábrica a quem António Lourenço Correia passou
a adquirir a maior parte da ornamentação cerâmica, a partir de finais da década de
1860, logo depois da unidade fabril ter começado a ganhar certa notoriedade, devido
aos modelos de José Joaquim Teixeira Lopes24. Por esta altura, António Lourenço
Correia tinha já bastantes peças decorativas em cerâmica na sua quinta, muito embora
tenha continuado a preenchê-la com o mesmo tipo de artefactos, não só da Fábrica
de Santo António do Vale da Piedade - pois ainda em 1875 adquiriu peças a esta
fábrica, como vimos - mas sobretudo da nova fábrica de António Almeida da Costa.
É de Julho de 1868 a primeira aquisição documentada de artefactos cerâmicos à
Fábrica de Cerâmica das Devesas, ainda à primitiva sociedade Costa, Breda & Teixeira
Lopes. António Lourenço Correia comprou então 11 estatuetas, a 9$000 cada uma,
cujo transporte para Rio Tinto custou 3$520 de carretos, valor distribuído por 22
mulheres, mais $375 de despeza a ponte noute e dia, isto é, de portagem25. Na mesma
factura, existe outra conta, de Outubro de 1868, referente a 8 medalhões, a 2$500
cada um. No total, António Lourenço Correia tinha a pagar 122$895. Porém, foi
abatido o valor de 100$000, por dinheiro recebido de empréstimo. A conta foi saldada
em 28 de Outubro de 1868, assinando alguém nas Devesas em nome da sociedade
Costa, Breda & Teixeira Lopes26. O detalhe referente ao empréstimo indicia que
António Lourenço Correia tenha sido um dos financiadores da Fábrica de Cerâmica

23 Catalogo da Fábrica Cerâmica e de Fundição das Devezas. António Almeida da Costa & Ca., Vila Nova de Gaya, Portugal.
Vila Nova de Gaia, Real Typ. Lith. Lusitana, 1910, n.º 310.
24 Sobre a história desta fábrica, ver DOMINGUES, 2003.
25 Arquivo da Casa do Chão Verde / Colecção do Dr. Pedro Sá.
26 Arquivo da Casa do Chão Verde / Colecção do Dr. Pedro Sá.
48 Ana Margarida Portela Domingues

das Devesas. Por esta razão, ou por encomenda expressa de António Lourenço Correia,
a fábrica produziu para a Casa do Chão Verde alguns artefactos que não constaram
dos posteriores catálogos da fábrica e que poderão ser peças únicas, como os referidos
8 medalhões. Para além disso, alguma das estátuas adquiridas em 1868 pode ter sido
modelada propositadamente para dar resposta aos desejos de António Lourenço
Correia, embora todas elas tenham feito parte dos posteriores catálogos da fábrica.
Relativamente aos oito medalhões, supomos que se trate das seis efígies femininas que
existem no edifício das cavalariças, assim como as de D. Luís I e de D. Pedro II do Brasil(?),
em terracota. Quanto às estátuas, eram bem mais caras que as adquiridas oito anos antes
à Fábrica de Santo António do Vale da Piedade, apesar de nem sequer serem vidradas.
Mencionemos duas outras contas da Fábrica de Cerâmica das Devesas, de 1870 e
1871, pelas quais António Lourenço Correia adquiriu mais estátuas e outros ornatos
para a Casa do Chão Verde.
Assim, em Julho de 1870, foi subscrito no Porto (e não nas Devesas, como em
1868) o recibo de uma conta de 89$500, assinando alguém em nome da nova firma
que geria a Fábrica de Cerâmica das Devesas - António Almeida da Costa & Ca.
Para além de alguns materiais de construção, como 29 tubos de 27 oitavas (a 150
réis cada um) e uma curva (ao mesmo preço unitário), a conta incluía também:
Uma estátua do Filho Pródigo – 9$000
Pedestal para a mesma – 2$000
Uma estátua da União [faz a Força] – 4$000
Uma estátua do Pai Cabinda – 4$000
12 baixos relevos estóricos a 4$000 – 48$000
9 cabeças a 2$000 – 18$00027.
Relativamente às nove cabeças, eram certamente as oito carrancas depois
aplicadas em torno do chafariz de Náiade (Figura n.º 4) e também uma cabeça de
cavalo ainda subsistente, tudo em terracota. Quanto às carrancas, eram geralmente
uma modalidade alternativa para figuras alegóricas ou para representação de faunos.
Em 1876, por exemplo, aquando da Exposição do Centenário da Independência dos
Estados Unidos da América, em Filadélfia, a empresa cerâmica britânica Maw & Co.
apresentou ali quatro carrancas representando as estações do ano28. Porém, estas
peças eram policromadas, lembrando as obras renascentistas dos Della Robia. Ao
invés, as cabeças executadas em 1870 pela Fábrica de Cerâmica das Devesas, sendo
de boa qualidade, eram em fosco, não se destacando tanto quanto deviam, na parede
onde foram colocadas, por estarem junto a muitas conchas e a cercaduras de azulejo
policromado. Quanto à cabeça de cavalo, era um tipo de peça que estava em moda
na época, sobretudo para colocar sobre os portais das cavalariças. Embora fosse mais
comum este tipo de cabeça de cavalo em ferro fundido29, também foram produzidas
em barro, por algumas fábricas de cerâmica francesas e espanholas.

27 Arquivo da Casa do Chão Verde / Colecção do Dr. Pedro Sá.


28 MYERS, 2002: 5.
29 Devemos este dado a Francisco Queiroz.
A ornamentação cerâmica da Casa do Chão Verde 49

Figura n.º 4
Medalhão com carranca, executado na Fábrica de Cerâ-
mica das Devesas em 1870 e atribuível a José Joaquim
Teixeira Lopes

Quanto aos doze baixos relevos históricos, trata-se de duas séries, uma de oito
cenas mitológicas em relevo, em medalhão elíptico, e outra dos quatro elementos,
em medalhão mais oval. Todas estas obras, as quais não as encontrámos em catálogos
da Fábrica de Cerâmica das Devesas ou noutro qualquer local, podem ter sido para
aqui feitas propositadamente, talvez por José Joaquim Teixeira Lopes.
Relativamente à factura assinada no Porto em Julho de 1871, por alguém em
nome da firma António Almeida da Costa & Ca., esta refere-se às seguintes peças:
Dois pares de jarrões – 14$000
Mais um jarrão – 3$000
um par de taças com asas – 6$000
um par de taças lisas com asas – 5$000
um par de vasos recortados – 1$200
outro par de vasos recortados – 1$000
uma estátua de Portugal – 5$000
uma estátua do Brasil – 5$000
uma estátua de Minerva – 5$000
uma estátua do Silêncio – 5$000
Dois galgos vidrados – 12$00030.

30 Arquivo da Casa do Chão Verde / Colecção do Dr. Pedro Sá.


50 Ana Margarida Portela Domingues

Estas estátuas das Devesas são todas de qualidade artística superior às que António
Lourenço Correia havia adquirido à Fábrica de Santo António do Vale da Piedade
uns anos antes, assim como às que existem no espaldar do tanque de Neptuno, cuja
proveniência não é ainda conhecida.
Só para que se tenha uma ideia de quanto era mais elevado o valor da estatuária
da Fábrica de Cerâmica das Devesas face à concorrência, refira-se que, aquando do
inventário da Fábrica de Massarelos, de 31 de Dezembro de 1877, os artefactos mais
caros produzidos por esta fábrica eram as figuras para jardim, tabeladas em 3$00031.
Conclui-se, pois, que as estátuas da Fábrica de Cerâmica das Devesas podiam
custar quase três vezes mais que as da concorrência, a despeito de serem em fosco
e não vidradas, embora a fábrica também as tenha produzido vidradas, com ligeiro
marmoreado, e, em casos raros, a carácter.
Cruzando os dados documentais com a realidade32, para além dos referidos
medalhões em relevo e cabeças; para além da já referida Naiade – figura mitológica
própria para chafarizes – a Fábrica de Cerâmica das Devesas forneceu a António
Lourenço Correia mais figuras do que aquelas que constam nas facturas mencionadas:
À entrada do terreiro da casa ficaram Portugal (Figura n.º 5) e o Brasil, em lados opostos.
O Comércio, a Indústria, as Artes e a Agricultura ficaram junto ao chafariz do primeiro
patamar do jardim. Supomos que talvez estivesse também aqui a estátua de Minerva
(alegoria da Ciência), referida na factura de 1871.
À entrada de outro patamar, encontramos a Consciência, a Esperança, a Caridade e
a Gratidão.
Mais abaixo ainda, existiam as estações do ano e os continentes, assim como uma
figura com asas a pedir silêncio. Tratava-se do Silêncio, na verdade um anjo do silêncio,
estátua que a Fábrica de Cerâmica das Devesas terá produzido sobretudo para cemitérios.
Junto das casas de fresco do jardim, estavam o Judeu Errante e a União Faz a Força.
Os dois galgos ficaram posicionados numa entrada do fundo da quinta. Hoje apenas
existe um galgo, embora já muito deteriorado.
Também foram adquiridos para o jardim os dois maiores rios portugueses, o Tejo e o
Douro.

Supomos que quase todas as estátuas fornecidas a António Lourenço Correia


pela Fábrica de Cerâmica das Devesas, em 1868, 1870 e 1871, eram modelos de José
Joaquim Teixeira Lopes. De acordo com o que demonstrámos na nossa dissertação
de Mestrado, alguns eram-no comprovadamente, como a União Faz a Força, o Judeu
Errante, o Filho Pródigo e o Pai Cabinda33. Por outro lado, algumas estátuas existentes
na Casa do Chão Verde estão assinadas por José Joaquim Teixeira Lopes através da
marca “Teix.ª” gravada na pasta a cru, método também usado para colocação, ao

31 Fábrica de Massarelos, Porto. Exposição Fábrica de Louça de Massarelos: 1763-1936, p. 73-74.


32 Devemos ao Dr. Pedro Sá a reconstituição da localização das estátuas, uma vez que algumas já não existem ou
foram retiradas do local original.
33 DOMINGUES, 2003: I, 16-17 e 73-74.
A ornamentação cerâmica da Casa do Chão Verde 51

Figura n.º 5
Figura alegórica de
Portugal adquirida à
Fábrica de Cerâmica
das Devesas, em 1871,
e atribuível a José
Joaquim Teixeira Lopes

Figura n.º 6 – Figura


alegórica do Inverno,
modelada por José
Joaquim Teixeira Lopes
(Fábrica de Cerâmica
das Devesas, c. 1868)

lado, da marca Fábrica das Devezas. Trata-se da mais antiga marca da Fábrica de
Cerâmica das Devesas que encontrámos numa peça em cerâmica para exteriores.
Para análise comparativa, ainda que muito sucinta, tomemos como exemplo
paradigmático o Inverno da Fábrica de Cerâmica das Devesas (e de José Joaquim
Teixeira Lopes). o referido Inverno corresponderá, provavelmente, ao número de
figuras executadas em 1868, dispondo-se em torno de um pequeno lago circular, no
meio do jardim, juntamente com as restantes estações do ano, como era habitual.
Trata-se de uma figura velha, como estabeleciam os cânones iconográficos, mas menos
comum na solução de o esculpir com parcas vestes, não mais do que uma pele de
animal, que mal cobre metade do corpo. Deste modo, José Joaquim Teixeira Lopes
pôde conferir à imagem a expressão de frio dada pela posição das pernas, encolhidas,
com um pé sobre o outro (o que requeria um suporte por detrás para dar maior
consistência à peça). uma das mãos é aquecida pelo próprio bafo e a outra tenta
aconchegar a pele do animal ao corpo, não parecendo ser suficiente a pira que está
aos pés da figura e que apenas funciona como atributo (Figura n.º 6).
o modo como este Inverno foi concebido destaca-se claramente das versões de
Inverno que a Fábrica de Santo António do Vale da Piedade produzira nas décadas
de 1840 e 1850, todas com vestes generosas, pose clássica e um ar sereno. A Fábrica
de Cerâmica das Devesas assumia, assim, o início de uma nova fase na produção de
estatuária para exteriores: figuras mais naturalistas, mais expressivas, menos presas
a cânones. Nem todas as figuras alegóricas e mitológicas produzidas pela Fábrica de
Cerâmica das Devesas possuem esta qualidade. De qualquer modo, em geral, eram
52 Ana Margarida Portela Domingues

figuras bastante superiores às que a Fábrica de Santo António do Vale da Piedade


tinha produzido no período de João de Araújo Lima e, de forma ainda mais evidente,
muito superiores às que foram sendo produzidas por fábricas de Lisboa durante todo
Romantismo. Com facilidade, a Fábrica de Cerâmica das Devesas passou a dominar o
mercado deste tipo de peças, tendo beneficiado da fase em que começaram a usar-se
no coroamento de edifícios, pelo que não é fácil encontrar hoje estátuas da Fábrica de
Santo António do Vale da Piedade no topo de fachadas. As poucas que existem são
de modelos posteriores ao período de João de Araújo Lima, mais evoluídos, também
ligeiramente maiores, como convinha.
Refira-se ainda que, de todas as estátuas de corpo inteiro que conhecemos da
Fábrica de Miragaia, da Fábrica de Massarelos e da Fábrica de Santo António do Vale
da Piedade, nenhuma foge à solução de ser vidrada em branco. Em contrapartida,
todas estas três fábricas do Porto / Vila Nova de Gaia executaram outras peças de
adorno para exteriores com pinturas sobre estampilha ou à mão livre, destacando-se
sobretudo os vasos, pinhas e globos executados em Santo António do Vale da Piedade,
que produziu estas peças em maior quantidade e com declarada policromia, a partir de
meados do século XIX. Porém, a Fábrica de Cerâmica das Devesas produziu estátuas
vidradas de branco, marmoreadas, a carácter, bronzeadas, em fosco, assim como em
pedra e, algumas, também em metal. Nenhuma outra fábrica do país produziu figuras
alegóricas em tantos materiais e com tantos tipos de pintura, tendo também produzido
vasos, pinhas e globos com policromia e com outras soluções decorativas. Por conse-
guinte, a fábrica de António Almeida da Costa e José Joaquim Teixeira Lopes logrou
obter uma grande vantagem competitiva face à Fábrica de Santo António do Vale
da Piedade, o que não significa que esta não tenha procurado melhorar a qualidade
dos modelos de estatuária, de modo a não perder totalmente essa fatia de mercado34.

Conclusão
Apesar desta muito breve análise à ornamentação cerâmica da Casa do Chão Verde,
podemos concluir que se trata de uma casa que congrega alguns dos melhores exemplos
de peças cerâmicas que se fizeram em Portugal durante o Romantismo, reunindo-se
aqui a produção de fábricas de Lisboa e do eixo Porto / Vila Nova de Gaia, assim
como peças que foram executadas por alguns dos melhores artistas à época. Note-se
que várias destas obras terão sido feitas propositadamente para aqui, sendo por isso
únicas, e que outras, mesmo que não tenham sido feitas em exclusivo, poderão ser
hoje peças únicas, dado que ainda não as encontrámos em outros contextos.

34 DOMINGUES, 2009: I, 448-463.


A ornamentação cerâmica da Casa do Chão Verde 53

Bibliografia
DANTAS, Pedro Araújo, 1998 – Uma família do Porto. S.l.: Guimarães Editores.
DOMINGUES, Ana Margarida Portela, 2003 – António Almeida da Costa e a Fábrica de Cerâmica
das Devesas. Antecedentes, fundação e maturação de um complexo de artes industriais (1858-1888).
Tese de Mestrado em História da Arte em Portugal apresentada à Faculdade de Letras da
Universidade do Porto (policopiado).
DOMINGUES, Ana Margarida Portela, 2009 – A ornamentação cerâmica na arquitectura do
Romantismo em Portugal. Tese de Doutoramento em História da Arte apresentada à Faculdade
de Letras da Universidade do Porto (policopiado).
Arrechea Miguel, Julio, 1989 – El pensamiento arquitectónico en la España del XIX. Valladolid:
Secretariado de publicaciones de la Universidad.
MYERS, Susan, 2002 – “Much that is suggestive. Ceramic tiles at the Centennial Exhibition”.
Tile Heritage. A Review of American Tile History, vol. VI, n.º 2.
QUEIROZ, José Francisco Ferreira, 2002 – Os Cemitérios do Porto e a arte funerária oitocentista em
Portugal. Consolidação da vivência romântica na perpetuação da memória. Tese de Doutoramento
em História da Arte apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto (policopiado).
SAMPAIO, Jorge Pereira de, BOTELHO, Cândida de Arruda, 2000 – Casas portuguesas e brasileiras.
Duas visões, dois testemunhos. Lisboa: Edições Inapa.
Manuel Dias de Oliveira
e a pintura oficial da Corte no Brasil
Anna Maria Monteiro de Carvalho

1. Vida e Obra
Na data de 20 de novembro de 1800 o então príncipe regente de Portugal, D. João,
instituiu no Rio de Janeiro a Escola Pública de Desenho e Figura1 e nomeou para
dirigi-la, com o cargo de professor régio, o pintor brasileiro Manuel Dias de Oliveira.
Estava oficializado o ensino artístico no Brasil Colonial, até então transmitido,
na pintura e escultura, por artistas-artesãos provenientes das oficinas – religiosas ou
laicas – embora alguns deles já tivessem feito algum tipo de especialização no exterior.
Manuel Dias de Oliveira teve esse privilégio. Pardo, nascido em cerca de 1763
no município fluminense de Santana de Macacu, ele iniciou seus estudos de pintura
no Rio de Janeiro e ainda bem jovem prosseguiu-os em Portugal, primeiramente no
Porto e depois, em Lisboa, graças à proteção de dois ricos comerciantes, aos quais
sucessivamente servira e que lhe notaram a vocação artística.
Em Lisboa freqüentou as Aulas de Desenho e Pintura e da Academia do Nu da
Real Casa Pia, instituição fundada em 1780 pelo poderoso Intendente-Geral de Polícia
da Corte e do Reino, Diogo Inácio de Pina Manique, sob a proteção de D. Maria I
e que funcionava no Castelo de São Jorge. Foram ali diretores os melhores artistas
portugueses da época, como o famoso escultor Joaquim Machado de Castro2, que viria
a modernizar o ensino artístico, com novas teorias do desenho que valorizavam a uma
aproximação mais espontânea da natureza contra a imitação servil dos mestres; como
Pedro Alexandrino de Carvalho (1729-1810), da Academia do Nu, que utilizava o
modelo vivo, uma novidade para época, embora muito mal recebida pelo povo, “tal
era a força dos preconceitos”3.

1 Ofício dirigido para a corte, pelo vice-rei Dom Fernando José de Portugal, em 5 de novembro de 1800 (Fls. 60,
livro 10, das Publicações do Arquivo Público Nacional, vol. II, p. 272). SANTOS, 1942: 516.
2 Escultor da “Estátua Eqüestre do rei D. José”.
3 Que apedrejou as janelas da sala onde posava um homem nu e teve dificuldade em encontrar um modelo masculino. Ver

FRANÇA, 1965: 116.


56 Anna Maria Monteiro de Carvalho

Em cerca de 1787, Manuel Dias de oliveira estava entre os melhores estudantes


da Aula de Desenho e Pintura que receberam auxílio para se aperfeiçoarem na
Academia de Portugal, em Roma, um pensionato instituído em 1712 por D. João
V para os alunos mais talentosos da Metrópole e que desde o início funcionara no
palácio cardinalício de Cimarra e sob direção romana4. A Academia, fechada em
1760 por Pombal devido suas relações nada amistosas com a Santa Sé, havia sido
reaberta naquele ano por iniciativa de Pina Manique junto à soberana5. Foram ali
também bolseiros Vieira Portuense (1765-1805)6 e Domingos Antonio de Sequeira
(1768-1837), que viriam a ser dos maiores nomes da pintura portuguesa dos finais
do século XVIII aos começos do XIX7. Sequeira, amigo de Manuel Dias, é o autor
do único retrato, que se conhece deste artista8 (Figura n.º 1).

Figura n.º 1
António de Sequeira
Retrato de Manuel Dias de Oliveira e Auto-retrato.
Desenho Álbum cifka. Museu das Janelas Verdes.

Manuel Dias de oliveira permaneceu em Roma por mais de dez anos, tendo
sido aluno do pintor Pompeo Girolamo Batoni (1708-1787)9, um dos promotores da
estética do Neoclassicismo na Itália e famoso por seus retratos e pinturas alegóricas. 10
4 Direcção do Cardeal Di Pietro.
5 Em 1785, a soberana instituiu mais três Aulas Régias: a de Desenho e Arquitetura, que, no entanto, só passou a
funcionar em 1800, numa parte do Convento dos Caetanos; a de Escultura, instalada numa dependência do Tesouro
Velho de Lisboa e a Régia de Gravura, na Imprensa Real. Ver RIoS, s/d: 57.
6 Vieira Portuense foi enviado à Academia de Portugal sob a proteção da Companhia Geral das Vinhas do Alto
Douro.
7 RIoBoM, 1992: 26
8 SANToS, 1942: fig. 73.
9 Entrou para a Academia de San Luca em 1741.
10 Autor de diversos quadros sacros e profanos, como os que pintou de encomenda para a Basílica da Estrela, em
Lisboa; como o “Retrato de Clemente XIII” (Roma, Galleria Nazionale d’Arte Ântica).
Manuel Dias de Oliveira e a pintura oficial da Corte no Brasil 57

Durante esse período Manuel Dias bem pode ter tido algum tipo de contacto com
a prestigiada Academia Romana de San Luca, assim como Domingos Sequeira e
Vieira Portuense, que a freqüentaram e tiveram como professor Antonio Cavallucci
(1752-1795)11, ex-discípulo de Batoni.
Devido à aproximação dos franceses na invasão dos Estados Pontifícios, a
Academia Portuguesa, em Roma, foi fechada em 1798. Com a vinda da Corte para
o Brasil, em 1808, a Real Casa Pia e a Academia do Nu deixaram de existir e os
demais estabelecimentos de ensino artístico passaram a levar uma vida precária.
Uma situação que permaneceu até a reinstalação da sede da monarquia novamente
em Portugal, em 1821.
Por aqueles seus estágios no exterior, Manuel Dias ficou conhecido pelos cognomes
de “O Brasiliense”, em Portugal e de “O Romano”, no Brasil. De volta ao Rio de
Janeiro, ele instaurou uma nova mentalidade no ensino das artes, obtendo a criação,
pelo governo, da mencionada Aula Pública de Desenho e Figura, cargo que exerceu
por vinte seis anos. Abandonando o recurso didático colonial da cópia de estampas
e gravuras, ele desenvolveu o estudo do desenho do natural e das aulas de modelo
vivo. Tal como em Portugal, devido aos preconceitos da época a pose dos modelos era
feita em seu atelier particular, à Rua dos Ourives. Dentre seus alunos destacaram-se
vários pintores, como Francisco Pedro do Amaral, que também viria a ser aluno do
acadêmico Debret12.
Manuel Dias foi agraciado por D. João VI com a Ordem de Cristo. No entanto, por
decreto real de D. Pedro I, em 15 de Outubro de 1822, aos 56 anos, ele foi aposentado
do cargo de professor de Desenho e Pintura, sendo substituído pelo futuro diretor
da Academia Imperial de Belas Artes, o pintor português Henrique José da Silva.
Na verdade, seu prestígio declinara com a chegada da Missão Artística Francesa
no Brasil, em 1816, e a fundação da Real Escola de Ciências, Artes e Ofícios13,
dirigida por Joaquim Lebreton14. Até então, seus quadros e trabalhos ornamentais
eram muito desejados, desde a chegada da família real e sua corte em 1808, quando
foi responsável por grande parte das decorações para recepcioná-las. Mas os mestres
franceses rejeitaram tudo o que vigorava artisticamente no Brasil, indo contra sua
Aula Pública de Desenho e Figura pelo simples fato dele ser um mestre nativo, apesar
de sua pintura ter influências neoclássicas15.

11 Entrou para a Academia de San Luca em 1786.


12 PORTO-ALEGRE, 1856: 375-378.
13 O decreto real funda a Escola e fixa as pensões anuais devidas aos respectivos professores e funcionários. A Escola

tinha como objetivo desenvolver a aprendizagem artística (Arquitetura, Pintura, Escultura, Gravura, Música e
Ofícios Mecânicos), sob o apoio de um instituto governamental teórico-prático e técnico-profissional.
14 Ex-secretário da Academia de Belas Artes do Instituto de França, Le Breton, bonapartista, caíra em desgraça com a

Restauração, representada por Luís XVIII. Com ele vieram diversos artistas, como Auguste-Henri-Victor Grandjean
de Montigny (arquiteto); Nicolas-Antoine Taunay (pintor de paisagem); Jean-Baptiste De Bret (pintor de história);
Auguste-Marie Taunay (escultor); Charles-Simon Pradier (gravador); François Ovide (especialista em mecânica).
Outros a ela se incorporaram como professores: Segismond Neukomm (músico, compositor e organista) Marc e
Zepherin Ferrez. Le Breton trouxe também uma coleção de 54 quadros, franceses e italianos na maioria, para formar
a pinacoteca da futura escola de arte.
15 DUQUE, 1888: 86-87.
58 Anna Maria Monteiro de Carvalho

Desgostoso e já velho e cansado de tanto lutar, em 1831 ele retirou-se para Campos,
onde fundou um colégio para meninos, última tentativa de dar sua contribuição ao
ensino artístico no Brasil. Lá faleceu em 25 de Abril de 1837, aos 73 anos de idade.
Foi amortalhado em hábito franciscano e sepultado na Capela da Santo Casa da
Misericórdia.
Artista abrangente, sua obra é marcada por quadros de temática religiosa e laica
e por trabalhos de decoração efêmera.
Notabilizou-se, sobremaneira, no Retrato Oficial da Corte e na Alegoria Histórica,
gêneros pictóricos que floresciam no Brasil desde meados do século XVIII e que
favoreciam à encomenda oficial.
De seus trabalhos, chegaram aos nossos dias o “Retrato de D. João VI e Dona
Carlota Joaquina”, de 1815 (acervo do Museu Histórico Nacional); a “Alegoria à
Nossa Senhora da Conceição”, de 1818 (acervo do Museu Nacional de Belas Artes);
a “Alegoria ao Nascimento de Dona Maria da Glória” (1819) (acervo do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro). E ainda: “Armas do Reino Unido” (cabeção
de página, alegoria em aguada e nanquim no original da tradução de Ensaio sobre
o Homem, de Alexandre Pope (acervo da Biblioteca Nacional); “D. Pedro e D.
Leopoldina” (miniatura sobre marfim); “Fatto Milagrozo de Santa Isabel, rainha de
Portugal” (água-forte), dedicada ao seu benfeitor Pina Manique (acervo do MNBA);
“Cabeça de São Paulo” (miniatura colorida e ponteada, em marfim), que ele ofertou
a D. Pedro I. Dentre os desaparecidos figuram a pintura “Caridade Romana”, que
pertenceu ao colecionador Manoel José Pereira; os painéis “São Francisco de Assis no
seu nascimento” e “São Francisco na impressão das Chagas do Divino Crucificado”,
outrora localizados na sacristia da igreja de São Francisco da Penitência; “Senhora
de Sant’Ana”, que estava na Casa da Moeda; e a “Alegoria à morte da Imperatriz
Leopoldina”. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro possui em seu arquivo
um manuscrito de Manuel Dias no qual o pintor descreve seu projeto para um
“Monumento Comemorativo do dia 9 de Janeiro de 1822, o Fico”, porém o respectivo
desenho não se encontra anexado.

2. O Retrato Oficial
O Retrato Oficial, para além dos conceitos de verossimilhança real e subjetiva,
conquistados desde o Renascimento16, propicia ao demandante veicular sua imagem
em correspondência com a exaltação do seu caráter público, evidenciando seus sinais
atributivos de hierarquia, exercício de poder e persuasão de valores cívicos.
Por este motivo, no Brasil colonial, o retrato oficial foi proibido em lugares públicos
(lei de 10 de Janeiro de 1689), só sendo possível cultuar a imagem dos soberanos ou do
que se poderia chamar de “retrato dos santos”, concebidos post mortem. Esta situação
permaneceu até meados do século XVIII, quando a lei foi revogada e começaram a

16 SCHNEIDER, 1996: 31 e seguintes.


Manuel Dias de oliveira e a pintura oficial da Corte no Brasil 59

surgir os primeiros retratos oficiais, como o de “Gomes Freire de Andrade, Conde


de Bobadela” 17 (governador do Rio de Janeiro entre 1730 e 1763). o quadro, de
autoria do pintor nativo Manuel da Cunha, foi encomendado pelo Senado da Câmara
e inaugurado em 13 de agosto de 1760, com permissão do rei D. José, para que aí
“perpetuamente se conservasse para estímulo e exemplo de futuros governadores”18. outro
exemplo é o “Retrato de D. Luís de Vasconcellos e Souza”19 (vice-rei do Brasil entre
1779-1789, pintado por outro artista nativo, Leandro Joaquim, e inaugurado um
ano após o retorno do governante a Portugal. o que mostra que era comum esses
retratos irem a público após da vigência dos mandatos.
Com a chegada da Corte, o Retrato oficial tomou grande impulso e como tal
permanece até os dias de hoje, nas suas formas características.
Segue a análise do quadro “Retrato de D. João e D. Carlota Joaquina” (Figura
n.º 2), de Manuel Dias de oliveira, datado de 1815 e que atualmente pertence ao
acervo do Museu Histórico Nacional.

Figura n.º 2
Retrato de D. Carlota
Joaquina e do Príncipe
Regente D. João (1815)
Óleo sobre tela.
Museu Histórico Nacional

17 Acervo do Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro.


18 SANToS, 1942: 459.
19 Acervo do Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro.
60 Anna Maria Monteiro de Carvalho

Os futuros soberanos estão representados na pose tradicional da retratística – meio


corpo e em três quartos, a dominar o primeiro plano da tela. Os traços fisionômicos de
D. Carlota obedecem mais fielmente ao conceito de verossimilhança real, verificável
em outros retratos seus, como o “Retrato de Carlota de Espanha, Rainha de Portugal”
executado por Sequeira (Museu de Arte de São Paulo). O que não ocorre tanto com
os de D. João, visivelmente melhorados se comparados com os “Retratos de D. João
VI”, feitos pelo pintor nativo, José Leandro de Carvalho (Museu Histórico Nacional
e Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro), ou o atribuído, com reservas, a Debret
(Museu Histórico Nacional).
A fisionomia do casal é séria, com os olhos voltados para o expectador. O porte é
altivo, mas não totalmente autoritário. Ao contrário, sua atitude, com as mãos entrela-
çadas, passa uma atmosfera de intimidade. As vestes – nobres, com ricos adereços – são
sinais distintivos de sua condição social. Os atributos – faixas e insígnias – destacam as
funções de Príncipe Regente e Princesa do Brasil. Confrontando esta pintura com os
retratos reais de D. Carlota Joaquina, de Sequeira, e de D. João VI, de José Leandro
de Carvalho20, vemos nestes a acentuação do estado monárquico, através dos trajes e
atributos (manto vermelho forrado de arminho; uniforme de supremo comandante militar,
a faixa vermelha da realeza, as insígnias, a coroa, cetro); e do décor barroco (colunas
e pesados cortinados em segundo plano, que provocam um efeito de teatralidade).
Do ponto de vista formal, no retrato de Manuel Dias há um equilíbrio entre
desenho e cor. As duas figuras estão dispostas em oposição simétrica em relação ao
eixo central da tela e são mais delineadas, atendendo aos cânones do neoclássico. A
idéia de profundidade é dada pela colocação dos corpos em diagonal. No entanto,
podemos dizer que há praticamente a ausência da perspectiva, uma vez que o espaço
se expande de modo reflexivo em direção ao espectador, através de um jogo de
intensidade luminosa que, partindo de um fundo neutro nas gamas do castanho,
se acentua até atingir, como uma aura amarelo-ouro, as figuras, da esquerda para a
direita, imprimindo à tela uma expressividade tonal mais próxima da estética rococó.
Esta irradiação é acentuada pela cor creme-marfim da carnação do casal e das vestes
de D. Carlota, em meio a qual, o casaco azul marinho de D. João funciona como um
contraponto radical de cor fria. A pintura de uma falsa moldura oval, que circunscreve
as duas figuras, sugere a representação do quadro a partir do reflexo de um espelho.

3. A Alegoria Histórica
A Alegoria Histórica visa eternizar numa cena21 a lembrança de uma data ou um
acontecimento específico como tema principal, tendo como protagonistas personifi-
cações, personagens reais e históricas de existência comprovada.

20 Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.


21 A cena é constituída de uma cenário com uma ou mais pessoas. No caso da pintura histórica a cena deve conter
mais de uma pessoa, caso contrário pode-se falar no retrato individual.
Manuel Dias de oliveira e a pintura oficial da Corte no Brasil 61

Segue a análise dos quadros “Alegoria a Nossa Senhora da Conceição”, datado


de 1818 (Figura n.º 3) e pertencente ao acervo do Museu Nacional de Belas Artes
e “Alegoria ao Nascimento de D. Maria da Glória”, de 1819, pertencente ao acervo
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (Figura n.º 4).

3.1. “Alegoria a Nossa Senhora da Conceição”


Trata-se de uma pintura comemorativa da atuação de D. João VI no Brasil.
De acordo com a ficha catalográfica do Museu, o quadro é assinado e datado de
1813 (Ass. e dat., canto inf. esq. oliv.ra. BRAz. INV. P. RIo A. 1813). No entanto,
como também já notara o historiador Luciano Migliaccio22, a iconografia aponta
para 1818, ano em que D. João é coroado rei de Portugal, do Brasil e dos Algarves.

Figura n.º 3
Alegoria a Nossa Senhora
da Conceição (1818)
Óleo sobre tela.
Museu Nacional de Belas Artes

Neste sentido, a retórica do quadro é uma celebração oficial, publicitária: um


elogio ao progresso trazido pelo soberano ao Brasil no século que se inicia. D. João
está representado como o condutor da história de um passado de isolamento colonial

22 Das obras restantes [de Manuel Dias de Oliveira], podemos contemplar o quadro pintado para comemorar a coroação de
Dom João VI, a alegoria Nossa Senhora da conceição (1818). Ver MIGLIACCIo, 2000: 40.
62 Anna Maria Monteiro de Carvalho

para um presente de luzes: a permissão da Imprensa; a abertura dos portos às nações


amigas23; a fundação do Banco do Brasil, da Biblioteca Real, da Academia Militar e
da Marinha; a criação do Jardim Botânico, da Academia de Belas Artes, dos tribunais
e de escolas superiores. Um presente de Luzes personificado por Minerva, a deusa
da guerra, da sabedoria, das artes e ofícios – com as bênçãos da igreja, nas figuras
dos santos padres (enfatizando o Estado Papal, restabelecido no Congresso de Viena
de 1815-1816) e sob o manto protetor de Nossa Senhora da Conceição, rainha e
padroeira de Portugal. O tema é, pois, emblemático das glórias passadas, presentes e
futuras do reino de Portugal, unido ao Brasil e aos Algarves desde 16 de Dezembro
de 1815, reino que ele efetivamente assume em 6 de Fevereiro de 181824.
Do ponto vista de uma análise iconográfica – na qual a imagem, dentro do seu
contexto histórico e cultural, é identificada em sua relação com o simbólico, o
atributivo e o alegórico25 – cinco figuras se destacam na composição:
No eixo central está a imagem da Imaculada Conceição, a invocação mais polêmica
da iconografia mariana, sempre marcada por controvérsias dentro da própria igreja
Católica. Este culto – Maria ter sido concebida sem pecado original e ter concebido
virginalmente Jesus Cristo, por obra e graça do Espírito Santo26 – desenvolveu teses
imaculistas e maculistas ao longo de sua história na cultura cristã, até ser definido no
Concílio de Basiléia, de 17 de Setembro de 1438, pelo papa Sisto IV27, que instituiu
para 8 de dezembro a festa da Imaculada Conceição da Virgem Maria.
Em 1520, a Igreja Reformada28, em confronto com a Igreja Católica, repudiou a
veneração das imagens santas, dentre elas, a da Imaculada Conceição, por esta idéia
não estar diretamente explicitada na Bíblia. Com os jesuítas29, grandes impulsionadores
da Contra Reforma, a doutrina imaculista tomou corpo, intensificando-se nos países
católicos. Na verdade, o Concílio de Trento (1540-1563)30, ao falar da universalidade
do pecado original, ainda que tenha não definido o dogma da exceção de Maria,
declarou que se devia observar o que fora estabelecido por Sisto IV31. As palavras do

23 Revogavam-se a lei de 18 de Março de 1606 que impedia a colônia de manter contacto com qualquer nação que não
fosse Portugal; alvará de 27 de Novembro de 1687, que proibia os navios saídos do Brasil de tocarem em qualquer
porto estrangeiro.
24 Após a queda de Napoleão, em 16 de Dezembro de 1815, o Príncipe Regente D. João elevou o Brasil a reino, por

pressão inglesa e para poder sentar-se entre os plenipotenciários do Congresso de Viena. Foi coroado rei dois anos
após a morte de sua mãe, D. Maria I, ocorrida em 20 de Março de 1816. “D. João VI”, Wikipédia, a enciclopédia livre.
25 Na linha de investigação do historiador de arte Erwin Panofsky. Ver PANOFSKY, 1979.
26 O culto é baseado no Proto Evangelho de São Tiago. O título de Virgem Maria já aparece no Novo Testamento

em Lc. 1, 27, 34, 35; Mt 1, 23.


27 (1414-1484), nascido Francesco Della Rovere, pertenceu à Ordem Franciscana. Papa em 9 de Agosto de 1471.
28 Fundada pelo teólogo alemão e ex-frade agostiniano Martinho Lutero (1483-1546).
29 Ordem religiosa fundada em 1537 pelo militar espanhol Inácio de Loyola.
30 Convocado pelo papa Paulo III, o conclave fixou a posição da Igreja Católica em relação a todos os pontos criticados

pelos protestantes, ao mesmo tempo que estabeleceu os objetivos e métodos para a formação e fortalecimento do
clero e da autoridade papal.
31 Passagens da Bíblia, como o “Cântico dos Cânticos, o louvar do rei Salomão a sua amada Sulamita, passam a ser

aplicadas à Maria. Tradicionalmente entendido no judaísmo e pelos cristãos como o cortejo da alma por Deus, o
Cântico é reinterpretado como uma descrição entre Deus e sua Esposa de duas faces: a Mãe de seu Filho Eterno e
a própria Igreja.
Manuel Dias de Oliveira e a pintura oficial da Corte no Brasil 63

Concílio não tardaram a tornar a doutrina imaculista opinião universal no catolicismo


e foram decisivas para a sua expansão no programa catequético do Novo Mundo.
Em Portugal, a devoção a Nossa Senhora da Imaculada Conceição foi bem
disseminada pela Igreja. Entretanto, sua instituição oficial deu-se com D. João IV,
em 25 de Março de 1646, seis anos após a retomada do reino à Coroa de Espanha,
quando foi eleita padroeira de reino de Portugal e de suas colônias. No Brasil, esse
culto, divulgado pelas ordens religiosas e consagrado em inúmeras capelas e igrejas
construídas, foi a tal ponto que, desde os finais do século XVI, representa a mais
popular das festas marianas aqui celebradas.
A Virgindade Perpétua de Maria foi proclamada dogma de fé pelo papa Pio IX,
na Bula Ineffabilis Deus de 8 de Dezembro de 1854.
Na verdade, formular uma imagem iconográfica da Imaculada Conceição sempre
foi um desafio na arte cristã. A ausência de pecado foi evocada na idealização e
beleza corporal da Virgem. Dois tipos iconográficos medievais foram selecionados
para compor a síntese da imagem que viria a ser identificada como Imaculada Con-
ceição – a Mulher do Apocalipse e a Virgem das Litanias. Da Virgem das Litanias
herdou as mãos postas em oração e os atributos do Antigo Testamento que significam
a pureza virginal e a formosura feminina. A Mulher do Apocalipse contribuiu com
os elementos astrais da representação: o crescente lunar, o sol que veste a mulher
e sua coroa de doze estrelas32. No século XVI, o crescente lunar foi relacionado ao
símbolo da bandeira turca, numa clara referência da luta entre cristãos e mouros na
Batalha de Lepanto e da vitória da fé contra os infiéis. O crescente pode também
relacionar-se à mitologia clássica, retomada no Renascimento, muitas vezes a serviço
de ideais cristãos. Assim, simbolizaria o atributo de Diana Caçadora, indicativo da
castidade desta deusa.
Em sua imagem síntese – que se impõe no Barroco, notadamente na Espanha e
foi magistralmente interpretada pelo pintor Murillo (1617-1682), em mais de vinte
versões33 – Nossa Senhora da Imaculada Conceição é mostrada como uma linda e
jovem mulher, de pé, em postura arrebatada e com as mãos postas orantes, e que
está “em glória”, ou seja, circunscrita numa auréola de luz amarela e envolvida por
nuvens, anjos-meninos e querubins34. Veste uma larga túnica branca para disfarçar-lhe o
ventre volumoso (símbolo da Mãe Puríssima que irá gerar o Salvador da Humanidade)
e porta um manto azul (símbolo da realeza celestial). Seus fartos cabelos também
são indicativos de gravidez. Seus pés estão sobre o globo terrestre e esmagam uma
serpente e a lua crescente (símbolos do pecado original e da heresia ou infidelidade).
No quadro de Manuel Dias, a síntese iconográfica da Imaculada Conceição deriva
das imagens de Murillo. Mas sua versão apresenta mais um simbolismo mariano: a

32 SOUZA, 1997: 3
33 Como a da Catedral de Sevilha, as dos Museus do Prado e do Louvre, que serviram de parâmetro a diversos pintores
do periodo, prolongando-se incluve no Rococó. Ver também as “Imaculadas” de Zurbaran, Ribera e Pacheco.
34 Os “putti” da mitologia clássica, retomados no cristianismo como mensageiros do amor divino.
64 Anna Maria Monteiro de Carvalho

auréola que envolve a Virgem forma, com o globo que ela pisa, duas esferas superpostas,
que remetem à oitava casa celeste, tido na crença cristã como local de sua habitação35.
No segundo plano, à esquerda, está a personificação de Minerva (romana) ou
Atenas (grega), tida na tradição mais corrente do mundo clássico como a deusa
da guerra, da sabedoria e das artes e ofícios, filha de Zeus, senhor do Olimpo, e de
Métis, a Prudência. Invocada para defender ideais elevados – divulgar atividades
civilizadoras36, em geral ela é representada vestindo uma túnica protetora da sua
virgindade, portando na cabeça um capacete suntuoso de guerreira, ornado com
esfinge e dois grifos e carrega na mão esquerda uma lança e um escudo, no qual se
vê representado, à frente, o combate dos gregos com as Amazonas e, atrás, a serpente
Erictônio ou a cabeça da Medusa (que também pode estar gravada num medalhão
que a deusa porta em seu peito). Às vezes ela sustenta uma pequena Vitória alada,
colocada obliquamente e que parece voar à sua frente37.
Manuel Dias representa Minerva como uma figura vigorosa, vestindo a túnica
protetora da virgindade e o manto vermelho de divindade. Traz na cabeça o capacete
de guerreira e nas mãos, o escudo, desta feita gravado com as quinas com os cinco
bezantes de ouro das Armas de Portugal, que ela mostra reluzentes à Virgem, pedindo
sua proteção ao reino.
No primeiro plano, destaca-se, ao centro, um anjo de perfil, que olha diagonalmente
em direção Minerva. Seu braço em curva e apoiado sobre o joelho ampara e protege
a coroa e o cetro reais, pousados sobre uma rica banqueta de veludo vermelho com
os pés dourados. Como se sabe, os soberanos portugueses nunca são representados
portando a coroa, uma vez que desde a Batalha de Aljubarrota (1385), na qual o
Mestre de Avis (depois D. João I) impede que Castela arrebate a coroa portuguesa,
a vitória é atribuída a Nossa Senhora e o reino é a ela consagrado. Este anjo pode
personificar a pequena Vitória, como vimos, um dos atributos de Minerva. Ao seu
lado, à direita, está sentado o papa, a cabeça da Igreja Católica (sintetizado nas figuras
de São Pedro e de Pio VII (1740/1800-1823), portando a tiara e as vestes papais e
com o rosto voltado para a Virgem. Na mão direita ele segura um livro aberto (uma
referência às Sagradas Escrituras) onde se lê MONSTRATE ESSE MATREM, inscrição
que pede que ela indique e aconselhe ao soberano como ser “mãe” do seu reino. A
outra mão, estendida, sugere amparo e proteção. Atrás do papa seguem-se outras
figuras cardinalícias, numa clara refêrencia ao poder universal da Igreja Católica como
legítima intermediadora entre os reinos do céu e da terra e à inquestionável autoridade
temporal de seus representantes em matéria de moral e fé. Como é sabido, o Estado
Papal foi restabelecido com Pio VII, assegurado no Congresso de Viena (1814-15),
logo após a queda de Napoleão, a quem o papa excomungara devido a conquista

35 No simbolismo cristão e no universal, o número oito é passível de inumeras interpretações, tais como: advento de
algo novo, ressurreição, salvação, ordem universal, divisão da esfera terrestre, harmonia e equilíbrio superior do
novo ser, etc.
36 Cultura, poesia, música, medicina, sábios conselhos políticos, vitória racional e justa.
37 “Minerva”, in Mitologia, 1973: 145-160.
Manuel Dias de Oliveira e a pintura oficial da Corte no Brasil 65

dos territórios pontifícios pela França em 1809, e por quem fora expatriado durante
seis anos, a maioria dos quais permaneceu confinado em Savona38.
Atrás de Minerva, D. João VI (certamente o mecenas da obra) observa essas
súplicas dirigidas a ele e ao Reino, referendadas ainda por um anjo que desce dos
céus e paira sobre sua cabeça estendendo uma faixa com a inscrição PROTEGAM
EVM, protegei-o. Fica também evidente a analogia que o pintor estabelece entre as
figuras de D. João VI e de Pio VII, ambos vitoriosos do exílio político vivenciado na
era napoleônica.
Do ponto de vista de uma análise tipológica, na qual o fenômeno artístico é
interpretado em sua materialidade histórica e sócio-cultural39, Manuel Dias mostra
o seu entendimento possível da “estética moderna”. O qual, na verdade, se integra
na sua experiência artística vivenciada no exterior, na confluência do declínio do
Rococó e expansão do Neoclassicismo.
Em primeiro lugar, a representação da Virgem, embora idealizada – dentro do
conceito de Belo renascentista, retomado no neoclassicismo – já é copiada de modelo
vivo e não tirada de estampas ou gravuras, como até então se fazia com as imagens
religiosas no mundo colonial. Nesta e nas outras figuras principais, ele trabalha com
contornos mais definidos, enfatizando o desenho sobre a cor, numa proposta que
atende aos cânones neoclássicos.
No restante da composição, ele imprime uma expressividade tonal mais próxima
do Rococó, em pinceladas breves, diferenciando a intensidade luminosa e inten-
sificando o jogo interno dos reflexos. O espaço ora se expande, com a ausência
de profundidade prospética, que direciona a luz para fora, para atingir, com o seu
reflexo, também o espectador. O espaço ora se condensa, com o movimento circular
em torno da Virgem. Os amarelos e alaranjados do ambiente celeste transmutam-se
em gama mais baixa no ambiente das figuras em primeiro plano, cujo vermelho e o
ouro das vestes e adereços acentuam este jogo de multiplicidade. Em meio ao qual,
o manto azul da Virgem funciona como um contraponto de cor fria radical naquela
irradiação luminosa.
Também a dinâmica do quadro mostra a representação dessas duas vertentes
estilísticas conciliadas, na atitude e disposição dos personagens: o movimento ser-
pentinado dos anjos, o posicionamento e a gestualidade das figuras periféricas, em
diagonais entrecruzadas, contrastam com a postura hierática, escultórica e serena
da Imaculada Conceição, cuja forma classicizante atua como o eixo de equilíbrio na
composição.
Além do mais, nestes contrastes, podemos ainda considerar que um passado
Barroco permanece atávico nesta sua obra, pois que há uma certa exaltação dramática
nas figuras papais e a temática está impregnada de a priores religiosos e metafísicos,
próprios de um ambiente sócio-cultural cuja principal referência permanece assentada
na figura absoluta da Igreja e do Estado.

38 “Pope Pius VII”, in Wikipedia, the free Encyclopedia.


39 Na perspectiva dos historiadores de Arte, ver PANOFSKY, 1979; ARGAN, 1982; STAROBINSKY, 1994.
66 Anna Maria Monteiro de Carvalho

3.2. “Alegoria ao Nascimento de Dona Maria da Glória”

Figura n.º 4 – Alegoria ao Nascimento de Dona Maria da Glória (1819)


Óleo sobre tela. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

Nesta obra, o artista revela ênfase nos princípios neoclássicos: como numa cena
aberta em perspectiva linear, membros da família real e da nobreza, personagens da
História de Portugal dos Descobrimentos e do Brasil, hieráticas e em três quartos,
convivem harmonicamente com figuras da Mitologia, do Cristianismo, das culturas
indígena e africana, mais movimentadas no espaço da tela.
o eixo condutor da dinâmica espacial recai sobre a figura de Minerva, centralizada
à frente, e sobre um portal arquitetônico encimado pelas Armas Reais Portuguesas,
que circunscreve as figuras de D. João VI e D. Carlota Joaquina, ao fundo. Este eixo
divide a tela em duas diagonais que se abrem ao espectador. À frente, as deusas
Minerva e Atenas reverenciam, numa linha de sucessão, o príncipe herdeiro do trono,
D. Pedro e sua mulher, D. Leopoldina, sob o respaldo de seus pais, ao fundo. Acima
de todos, anunciada em triunfo por uma figura angélica feminina, paira a imagem
da futura soberana D. Maria da Glória, que um dia portará a coroa do Império, esta
carregada por um anjo ancião. o tema é, pois, emblemático das glórias passadas,
presentes e futuras do reino de Portugal, unido agora também ao Brasil e Algarves.
A composição mostra equilíbrio entre o desenho e a cor, mas apresenta visíveis
distorções nas linhas condutoras da perspectiva, como, por exemplo, as do tapete
sob D. Pedro em relação ao fundo da tela.
Manuel Dias de Oliveira e a pintura oficial da Corte no Brasil 67

3. Considerações Finais
Podemos então dizer que Manuel Dias de Oliveira transmite nestas três obras
as influências que recebeu de seu aprendizado artístico – da tradição barroca à
modernidade rococó e neoclássica, uma paradoxal mistura de técnicas e ideologias.
No retrato, o barroco está presente na reafirmação da verossimilhança hierárquica
sem muito prejuízo da verossimilhança física, imprimendo-lhe um caráter público bem
ao gosto da figura pessoal daquelas personagens, que aspiravam fazer ver a todos sua
imagem associada à condição de poder. A afirmação da humanidade do casal, com a
preservação de suas feições (ainda que melhoradas), consegue mostrá-lo como pessoas
próximas dos súditos, não obstante se distingam destes por uma virtude divina nata
que lhes confere poder natural e que uma série de atributos simbólicos lembra cons-
tantemente. Nas alegorias, a profunda devoção à Imaculada Conceição e a fidelidade
à hierarquia da Igreja Católica e à linha sucessória da Coroa Portuguesa, revelam o
peso da cultura barroca ainda presente no mundo luso-brasileiro daquele período.
No entanto, percebe-se o esforço do artista em buscar a modernidade, o que
justifica sua escolha em buscar, simultaneamente, os espaços reflexivos e de gamas
diferenciadas, do rococó, e as formas mitológicas e classicizantes, dos ideais do
neoclassicismo.
Os ideais iluministas, reforçados pelo progresso trazido ao Brasil com vinda da
Família Real, certamente inspiraram Manuel Dias na pintura oficial, numa atmosfera
por ele vivida na Europa que encontra em sua terra natal temas propícios, dignos
de uma nação que anuncia desenvolvimento e prosperidade. E que ele, enquanto
artista e professor régio, é testemunha e processo.

Bibliografia
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ARGAN, Giulio Carlo, 1992 – Arte Moderna: do Iluminismo aos movimentos contemporâneos. São
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68 Anna Maria Monteiro de Carvalho

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3.º trimestre, n.º 123. Rio de Janeiro.
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Universidade Estadual de São Paulo.
WIKIPEDIA, the free Encyclopedia.
Flores do silêncio (um esboço da actividade artística do
pintor António José da Costa)
António Manuel Vilarinho Mourato

Introdução
António José da Costa nasceu no Porto, em Cedofeita, a 9 de Fevereiro de 18401.
Metade da sua vida, passou-a na freguesia onde veio ao mundo2. Depois mudou-se
para a Boavista3 e por lá ficou até ao fim dos seus dias4. Era tão tímido que aqueles
dois pedaços da cidade mal deram pela sua existência. Todavia, esse mundo estreito
e pacato bastou para o fazer feliz.
Apaixonou-se cedo pelas artes, a quem se entregou sem reservas. Viveu para o
desenho e para a pintura com um desvelo de asceta e uma persistência de obstinado.
Pertenceu a uma geração “antiga”, em que o culto da Arte era autenticamente um culto5.
Marcam a sua biografia a entrada para as Belas-Artes, em 18536, a conclusão do
curso de Pintura, nove anos mais tarde7, a menção honrosa conquistada na Exposição
Internacional de 18658 e os sucessivos primeiros prémios obtidos nos concursos de
pintura, adjacentes às notáveis exposições de flores que deslumbraram o Porto no
final do século.
Os salões da Promotora, do Ateneu Comercial do Porto, do Grémio Artístico, da
Sociedade de Belas Artes do Porto e da Sociedade Nacional de Belas-Artes, entre
outros, serviram de montra às suas produções. Público e crítica reconheceram-lhe
o talento ainda em vida.

1 FBAUP – Processo individual do aluno, 27 de Setembro de 1853, Caixa 15.


2 ALMANACH, 1883: 435.
3 ALMANACH, 1884: 386, 387.
4 ANÓNIMO, 1929: 4.
5 BRANDÃO, 1929a: 1.
6 FBAUP – Processo individual do aluno, 28 de Setembro de 1853, Caixa 15.
7 PIMENTEL, 1926: 277.
8 SILVEIRA, 1866: 298.
70 António Manuel Vilarinho Mourato

1. Nota biográfica
A vocação artística de António José da Costa foi descoberta aos 12 anos, pelo
seu professor de Desenho na Associação Industrial Portuense, António José de Sousa
Azevedo9. Ao aperceber-se do talento do jovem, o mestre foi ter com o pai do rapazito
e aconselhou-o a deixar que o filho seguisse Belas-Artes10.
O pequeno apresentou na Academia os papéis necessários para requerer a frequência
das aulas de Desenho, Perspectiva, Anatomia e Arquitectura e para assistir “como
oubinte” à Aula de Escultura11. Iniciou os estudos no Outono de 1853.
Quatro anos mais tarde, participava já na Exposição Trienal, apresentando o
desenho Gladiador combatente, com o qual fora aprovado plenamente no quarto ano
de Desenho e uma figura de estudo de homem (pelo modelo vivo), como prova de
capacidade para se matricular no primeiro ano de Pintura Histórica12.
Concluiu o curso de Pintura em 1862, executando como prova de exame o quadro
original Noé coberto pelos filhos Sem e Jafeth13.
O Commercio do Porto afirmou que os progressos que evidenciara ao longo dos
estudos tinham sido prodigiosos, fazendo agora a sua pintura lembrar Ribera e Murillo,
devido à grande riqueza de cor, iluminação brilhante e vigor na execução14.
Do percurso escolar de António José da Costa chegaram até hoje vários desenhos.
Um deles representa um homem de costas, curvado sobre si mesmo e apoiado numa
sólida vara.
Costa regista-o com vigor e segurança no traço, pureza no contorno e delicado
claro-escuro. O domínio da anatomia é absoluto15.
António José da Costa iniciou a sua carreira procurando afirmar-se como retratista.
Na trienal da Academia, de 1860, a imprensa escreveu a respeito de um auto-
retrato da sua autoria: é excellente, e muito verdadeiro o colorido, optima e bem distribuida
a luz e as sombras, não lhe falha o dezenho16.
Mas é através do busto do pai, executado em 1863, que o pintor se impõe neste
género. Mestre Resende afirma sobre a tela:
Como retrato direi imparcialmente que é semelhantissimo, como obra d’arte é tal que pintores
portuguezes de grande nomeada se orgulhariam de a terem feito. O sr. Costa nunca sahiu do
Porto e parece que tem frequentado a escola de Mr. Yvon. N’este seu quadro, a luz, meia tinta,

9 António José de Sousa Azevedo frequentou a Academia Portuense de Belas Artes, onde concluiu o Curso de
Pintura Histórica, em 1851. Regeu depois a cadeira de Desenho de Ornato na Escola Industrial, vindo a falecer com
apenas 34 anos, em 1864. Viveu sempre na cidade do Porto. Entre as suas obras salientam-se A Caridade Romana,
A Corrida do Galo e A Volta da Romaria (REZENDE, 1864:1).
10 ANÓNIMO, 1911: 26.
11 FBAUP – Processo individual do aluno, 28 de Setembro de 1853, Caixa 15.
12 CATÁLOGO, 1857: 4.
13 CATÁLOGO, 1863: 10.
14 REZENDE, 1863:
15 António José da Costa teve como professor de Desenho na Academia Portuense de Belas Artes, o miniaturista Tadeu

de Almeida Furtado (1810-1901) e como docentes de pintura, João António Correia (1822-1896) e Francisco José
Resende (1825-1893).
16 S. , 1860: 2.
Flores do silêncio (um esboço da actividade artística do pintor António José da Costa) 71

sombra e reflexo, são habilmente graduadas, sendo as meias tintas postas por planos com tal
reflexão que a veneranda cabeça de seu pai parece viver e formar vulto dentro do caixilho.
Acresce a isto ser largo o estylo, verdadeira a côr, e variados os tons (...) Uma obra assim não
deveria ficar como escondida na humilde habitação do sr. Costa. Se ella não representasse o
auctor dos seus dias, a quem o bom artista ama como melhor dos filhos, eu mesmo lhe pedira
que a offerecesse á nossa academia (...)17.
O pai de António José da Costa era sapateiro e tinha exactamente o mesmo nome
do filho. Fora um dos bravos do Mindelo, combatera os miguelistas durante o Cerco,
mas agora estava a ser derrotado pelo massacre do tempo.
O filho arrastava a sua cadeira de entrevado para o Sol, acendia-lhe o cigarro,
tocava-lhe à viola trechos das óperas em voga e assobiava-lhe o hino da Carta;
também o vestia e animava18.
No quadro fixou-o a três quartos, aprumado e sério. Modelou com rigor os volumes
e esbateu drasticamente os contornos, unindo a figura ao fundo através dum colorido
escuro e uniforme, onde cinzas e ocres se harmonizavam num silêncio soturno.
A luz, tímida, derramava a sua claridade na testa do indivíduo, conseguindo
destacar apenas o rosto da penumbra.
António José da Costa apresentou este quadro na Trienal da Academia Portuense,
em 186319 e na Exposição Internacional do Porto, de 186520 (realizada por ocasião
da inauguração do Palácio de Cristal21).
O sucesso desta pintura construiu-lhe a reputação. Doravante, Misericórdia,
Ordens, Confrarias e toda a camiliana fauna dos brazileiros de torna-viagem, que
infestavam o Porto de palacetes azulejados de amarelo e verde, com estuques de Afife,
aspiraram a retratos por si executados. António José fez a vontade a todos, mas sem
paixão e a três libras por cabeça.
Quando escasseavam as encomendas de retratos, pintava retábulos para Igrejas
do Minho e até mesmo tabuletas para lojas de fruta22.
Entretanto dava aulas de desenho no seu atelier da travessa do Açougue, em
vários Colégios da cidade e em casa de ricaços, para lhes entreter a filharada. Nos
tempos livres ia paisajando23.
Em 1875, juntamente com o seu antigo discípulo, Artur Loureiro, abre um Curso
de Desenho e Pintura, compreendendo desenho linear, pintura e desenho de figura
e de paisagem. Destina-o não só aos que por amor se dedicam á arte, mas também a
todos os que necessitam de satisfazer a exames em qualquer dos lyceus do reino24.

17 REZENDE, 1863:
18 BURITY, 1930: 9.
19 CATÁLOGO, 1863: 10.
20 REZENDE, 1865: 1.
21 CARDOSO, 1994: 46.
22 BURITY, 1930: 7, 8.
23 BURITY, 1930: 10.
24 ANÚNCIO, 1875: 3.
72 António Manuel Vilarinho Mourato

Como professor de Desenho e Pintura, António José da Costa adquiriu, desde


muito novo, um grande prestígio na cidade.
Centrava o seu ensino na cópia de modelos, provavelmente gravuras e litografias.
Privilegiava o exercício do desenho. Só deixava que os seus alunos começassem a
pintar lá para o tarde, muito para o tarde, porque o desenho, como afirmava, era tudo
quando se começa e (…) quasi tudo, afinal, quando se acaba, quando se chega a vencer
e a triunfar.
Aconselhava, por isso, a desenhar sempre e a desenhar tudo25.
Quanto à relação que mantinha com os seus alunos, pode ser ilustrada com o
seguinte depoimento de Artur Loureiro:
Para nós rapazes, ele não era um professor, era um camarada tão bondoso que lhe queríamos
como a um irmão mais velho26.
À custa do dinheiro dos retratos, António José conseguiu construir uma casa.
Modesta, mas acolhedora, com excelente jardim e bom espaço para atelier. Ficava na
rua dos Belos Ares, à Boavista, nessa época recanto afastado do bulício da cidade,
mas servido pelo “americano” que ali fazia a sua primeira paragem, além da Rotunda27.
Mudou-se no ano de 1884, levando consigo o sobrinho e discípulo, Júlio Costa,
indivíduo de temperamento idêntico ao seu: homem de família e de trabalho28. Júlio
era casado e tinha uma filha chamada Margarida29.
Envolvido pelo carinho dos sobrinhos30, cuidando do jardim que adorava31,
António José da Costa encontrou ali o seu mundo perfeito. Raramente era visto
em público32, passando os dias entre as flores que não tardou a eleger como tema
predilecto da sua pintura33.
O registo vaporoso das suas pétalas de seda34, o estudo minucioso das composições
que elas lhe sugeriam35, o captar da frescura que emanavam36, passaram a constituir
a obsessão do artista.
No Salão do Ateneu de 1889, expôs publicamente os primeiros resultados dessas
pesquisas, que agradaram de imediato. O seu antigo professor de Desenho nas Belas-
Artes, Tadeu Maria de Almeida Furtado, foi logo a correr à Academia, propondo
a compra de uma daquelas preciosidades para o Museu Portuense. Toda a gente
concordou37.

25 BURITY, 1920: 13.


26 FIGUEIREDO, 1962: 11.
27 ALMANACH, 1885: 400, 401.
28 LEMOSb, 1905: 130.
29 VIANA, 1996: 64.
30 BRANDÃO, 1929a: 1.
31 FIGUEIREDO, 1930: 74.
32 LOPES, 1949: 3.
33 SILVA, [c.1951]
34 FIGUEIREDO, 1962: 10.
35 SINCERO, 1892: 2.
36 RODRIGUES, 1897: 182.
37 FBAUP – Acta da conferência ordinária de 5 de Abril de 1889, Livro 106, fol. 110, v.
Flores do silêncio (um esboço da actividade artística do pintor António José da Costa) 73

A imprensa descobriu nas imagens vigor38, fino gosto39 no colorido e arte na


composição40.
No ano seguinte, as flores proporcionaram a António José da Costa o mais completo
triunfo no Ateneu: dez quadros vendidos de uma vez só (um quarto da totalidade
das obras transaccionadas no certame, que incluía nomes tão sonantes como os de
Silva Porto, Marques de Oliveira ou Sousa Pinto41).
Feito excepcional, numa época em que muito pouca gente comprava pintura e
onde se considerava geralmente, as Belas Artes como uma fadiga; uma massada, que
não servia para “divertir”: nem de graça interessava42.
Em 1892, também Lisboa se rendeu ao encanto das flores de António José, na
exposição do Grémio Artístico. Um jornalista escreveu: As camelias do sr. Costa são
admiraveis de frescura, especialmente as brancas. Póde pintar-se tão bem, mas não creio
que se pinte melhor43.
No início do novo século, António José da Costa ascende a figura culminante da
pintura em Portugal, sendo designado como o primeiro pintor de flores deste país44. “O
Comércio do Porto” afirma até que ele é genial nesse género45.
Em Maio de 1908, a Sociedade de Belas Artes do Porto presta-lhe homenagem,
organizando em sua honra um sarau-concerto46. O escultor José da Maia Romão
executa para o evento um busto do pintor que é colocado junto a um cavalete com
dois magnificos quadros do artista consagrado47.
O jornalista Joaquim Costa pronuncia eloquente discurso, onde demonstra que
a grandeza do talento se alia, em António José, à elevação e nobreza do carácter.
Recitam-se versos e aplaudem-se entusiasticamente duas cantoras líricas48, três
pianistas49 e um violoncelista50. A “sociedade mais elegante do Porto” que comparece
à cerimónia, aprecia ainda uma bela exposição de quadros de diversos artistas51 e
esculturas de Teixeira Lopes distribuídas pelo recinto.
Por duas vezes foi António José da Costa chamado à sala, sendo delirantemente
aclamado, e recebendo lindos “bouquets” de flores naturaes com fitas côr de rosa52.

38 RODRIGUES, 1890: 110.


39 CHAGAS, 1892: 102.
40 RODRIGUES, 1897: 182.
41 CATÁLOGO, 1890: 6-8.
42 XYLOGRAPHO, 1887: 163.
43 SINCERO, 1892: 2.
44 LEMOSa, 1905: 609.
45 ANÓNIMO, 1908d: 2.
46 ANÓNIMO, 1908a: 1.
47 ANÓNIMO, 1908b: 1.
48 Idalina Costa Braga e Alice Barcelos.
49 Eduarda Borges Sampaio, Pedro Blanco e Roncagli.
50 Carlos Quilez.
51 ANÓNIMO, 1908c: 1.
52 ANÓNIMO, 1908b: 1.
74 António Manuel Vilarinho Mourato

Entre a assistência, foi notada a presença do grande Marques de Oliveira, antigo


discípulo de António José da Costa e mais tarde seu companheiro nas aventuras
do Centro Artístico Portuense, uma agremiação cultural activa nos anos oitenta53.
Em 1909, a revista “Ilustração Popular” escreve sobre António José da Costa:
os seus quadros são notaveis pela correcção do desenho, pela sciencia do clorido [sic] e
pela fidelidade com que reproduzem a alma das coisas 54. Três anos mais tarde, a revista
“Arte” qualifica-o como inspirado e superior artista55 e em 1915, o Museu Nacional
de Arte Contemporânea adquire-lhe o quadro “Rododendros”56.
O sucesso, porém, não altera os seus hábitos.
Cada vez mais afastado do mundo, temendo com horror a popularidade, passa
os últimos anos da sua vida embalado pela beleza que descobria nas suas camélias,
dálias, rosas, peónias, azáleas e tantas outras.
Sempre a esconder-se, sempre a evitar todos os convívios, todos os ruídos57,
António José da Costa dizia que pintava flores como Fra Angélico pintava Virgens.
As figuras do pintor italiano obedeciam a um ideal profundamente espiritualizado.
Ora já se falou de “sensibilidade” e “ternura” a propósito dos quadros de flores do
“patriarca” de Belos Ares58, referindo-se mesmo que António José personificou a
augusta e eterna espiritualidade do Porto59.
A simplicidade e delicadeza das telas do artista inundaram o seu carácter.
Durante a primeira grande guerra, António José recebeu visitas de Artur Loureiro.
Nessa época o material de pintura faltou quase por completo no Porto e Loureiro,
agora de rosto envelhecido e coberto de cabelos prateados, vinha oferecer ao antigo
mestre as cores que ele mais necessitava e não conseguia obter.
As dádivas, que António José acolhia com gratidão, comprovavam afinal a amizade
que uniu os dois artistas ao longo da vida60.
Após a morte de Júlio Costa, ocorrida em 192361, foi Margarida Costa quem se
tornou na companhia do tio, não deixando que ninguém o perturbasse62. Aos 87
anos, António José da Costa ainda pintava regularmente.
Um dia perguntaram-lhe porque gostava tanto de flores. É que elas dão-nos tudo
em beleza e…. em silêncio, respondeu63.
Faleceu a 12 de Agosto de 192964.

53 LEMOS, 2005: 60, 179-197, 239.


54 LEMOS, 1909:145.
55 ANÓNIMO, 1912: 88.
56 A. G., 1915: 1.
57 BURITY, 1930: 1.
58 GUIMARÃES, 1951.
59 BURITY, 1930: 7.
60 LOPES, 1949: 3.
61 BRANDÃO, s/d: 116.
62 Segundo Diogo de Macedo, Margarida Costa era uma mulher generosa, de finíssimo trato. Falava baixo, com

gestos delicados e sorria a tudo, com enternecida melancolia. Amava tanto as flores como António José da Costa.
(MACEDO, 1947: 92).
63 FIGUEIREDO, 1962: 10.
64 ANÓNIMO, 1929: 4.
Flores do silêncio (um esboço da actividade artística do pintor António José da Costa) 75

Um ano depois, a Sociedade de Belas Artes do Porto, juntamente com amigos


do pintor, organizou-lhe singela homenagem: uma exposição dos seus quadros no
Salão Silva Porto.
Houve discursos65, saudades66 e lágrimas. António José da Costa foi evocado
não só como mestre ímpar na arte de representar flores, mas também como homem
de excelente carácter e bondade extrema. Limpido no caracter, cristalino nas acções,
puro nos costumes, candido nos dizeres, assim o definiram. Chamaram-lhe até o Santo
Costa das Flores67.
Margarida Costa, a sobrinha e discípula, tornou-se na mais fiel continuadora do
seu estilo delicado e sóbrio68.
Fernanda Costa e Clotilde Costa, filhas de Margarida, mantiveram a tradição
familiar da pintura de flores, passada já a primeira metade do século XX. Numa
exposição, que ambas efectuaram na Sociedade Nacional de Belas Artes, em 1958,
exibiram, ao lado das suas pinturas, o retrato, em miniatura, do ilustre ascendente69.
António José da Costa surgia assim, como referência de uma família de artistas que
prolongou o seu legado por muitos anos.

2. Obras

2.1. Cópia de obra de António Alves Teixeira, o “Vizela”


Em Janeiro de 1880 foi instituída no Porto uma agremiação de artistas e amadores
de Belas-Artes que pretendia difundir o gosto pelas artes plásticas e industriais: o
Centro Artístico Portuense.
Este organismo instalou na cidade um atelier de modelo vivo que funcionava
em horário nocturno, organizou exposições de Belas-Artes, interveio na área do
património arqueológico e lançou a primeira revista exclusivamente dedicada às artes
plásticas que se editou em Portugal (a “Arte Portugueza”), entre outras iniciativas70.
Teve como presidentes figuras ilustres como as de Soares dos Reis71 ou Joaquim
de Vasconcelos72. António José da Costa participou activamente neste projecto,
ocupando cargos de certa importância no Centro. Juntamente com Soares dos Reis,
Marques de Oliveira e Tomás Soller, geriu a parte gráfica da “Arte Portugueza”73.
A revista “Arte Portugueza” teve uma vida efémera: doze números publicados
entre 1882 e 188474. Foi exactamente para a última revista publicada (em Março

65 ANÓNIMO, 1930a: 3.
66 ANÓNIMO, 1930b: 2.
67 BURITY, 1930: 1.
68 MOURA, 1910: 31.
69 FERNANDES, 1958
70 LEMOS, 2005: 179-201.
71 ALMANACH, 1884: 386.
72 ALMANACH, 1883: 435.
73 LEMOS, 2005: 185.
74 FRANÇA, 1990: 113.
76 António Manuel Vilarinho Mourato

de 1884), que António José efectuou esta cópia do quadro A Ronda do Mártir, da
autoria de António Alves Teixeira, conhecido como o “Vizela”, por ser natural da
freguesia de S. Miguel das Caldas de Vizela75.

Figura n.º 1
A Ronda do Mártir (Pintura
de António Alves Teixeira, o
“Vizela”)
Óleo sobre tela. 480 x 670 mm. Não
assinado. Não datado. Faculdade de
Belas-Artes da Universidade do Porto.

“Vizela” fora companheiro de António José da Costa nas Belas-Artes76, mas faleceu
muito novo, vítima de uma tísica galopante.
Acabaria por ser recordado como uma grande promessa da pintura portuense que
o destino atraiçoara. Envolvia assim, a reprodução deste seu quadro, um sabor de
homenagem e recordação nostálgica que o texto a ele respeitante, escrito por Manuel
Maria Rodrigues, acentuava: Vizella era um artista de grande futuro. (…) Nem antes,
nem depois d’elle se tem pintado melhor entre nós n’aquelle genero77.
A composição, o tema e até o colorido da obra faziam lembrar Augusto Roque-
mont, pintor que António José da Costa admirava78. Para a reproduzir, António José
utilizou um traço seguro e vigoroso que se entrecruzava constantemente a fim de
sugerir volumes, distâncias e texturas. A velocidade da execução imprimia um forte
dinamismo e espontaneidade ao desenho.
o Centro Artístico Portuense continuou a promover o ensino e no seu atelier de
modelo vivo, instalado na Rua do Moinho de Vento, dispondo de trinta lugares para
alunos, Soares dos Reis, Sousa Pinto e Marques Guimarães, entre outros, leccionaram
com entusiasmo. A agremiação extinguiu-se em 1893, após laboriosa e útil vida79.

75 ANACLETo, 1993: 159.


76 ANÓNIMo, 1854: 925.
77 RoDRIGuES, 1884: 103.
78 VIToRINo, 1929: 40-44.
79 MACHADo, 1947: 18, 29-33, 40,100.
Flores do silêncio (um esboço da actividade artística do pintor António José da Costa) 77

Figura n.º 2
Cópia de obra de António
Alves Teixeira,
o “Vizela”
Lápis sobre papel. 157 x 230 mm.
Não assinado. Não datado. colecção
particular.

2.2. Paisagem
Nos anos setenta e oitenta, António José da Costa assistiu à introdução do
Naturalismo no Porto80. A cidade encantou-se com essa grande escola de paisagem,
que teve em França como primeiros cultores courbet, T. Rousseau, Millet, corot81.
Nos quadros de Silva Porto, apreciou a arte suprema de traduzir os differentes estados da
natureza82 e em Marques de oliveira o sentimento delicado e a justeza de côr primorosa83.
Ao contrário de certos românticos empedernidos, como Francisco José Resende
(que chamaria aos novos pintores furiosos trolhas que aviltam a arte84), António José
não se lhes oporá, procurando antes seguir o seu exemplo nas modernas interpretações
da natureza85. Tal como na década de sessenta convivera com os protagonistas do
Romantismo (Resende, irmãos Correia, Caetano Moreira da Costa Lima86), juntava-se
agora a Marques de oliveira, Tomás Soler e Soares dos Reis87.
As “Exposições d’Arte” constituíram momento decisivo para a afirmação do
Naturalismo no Porto. Realizaram-se entre 1887 e 1895, no Ateneu Comercial do
Porto, sendo, em geral, muito concorridas e aclamadas pela imprensa.
António José da Costa integrou o grupo organizador destes certames e expôs em
quase todos.
Nas mostras de 87 e 88, limitou-se a apresentar paisagens.
Na primeira, pendurou três quadros: Debaixo da ramada (impressão), Um caminho,
custóias (impressão) e Paisagem, Ramalde88. A imprensa fez logo questão em demarcar
as suas pinturas das restantes: entre a brilhante phalange dos novos aparecia aquele

80 LoPES, 1949: 3.
81 ANÓNIMo, 1887b: 2.
82 ANÓNIMo, 1887b: 2.
83 ANÓNIMo, 1887a: 2
84 RESENDE, 1881.
85 LoPES, 1949: 3.
86 BRANDÃo, 1929a: 1.
87 FRANÇA, 1990: 113.
88 Catálogo, 1887: 5.
78 António Manuel Vilarinho Mourato

sobrevivente da nossa antiga pleiade de artistas89; Antonio José da costa, um dos velhos
crentes (...) pintou tres quadrosinhos e veio depol-os como offerenda respeitosa nas aras
erguidas pelo enthusiasmo dos novos90.
Deixara os seus retratos e as lições dos seus alumnos para ir ao campo surprehender
a natureza91.

Figura n.º 3 – Paisagem.


Óleo sobre madeira. 140 x 263 mm. Assinado. Datado 1891. colecção particular

A sua tela Debaixo da ramada foi considerada como uma das principais da exposição92.
A crítica não deixava de referir que a execução dos seus quadros obedecia ainda
aos antigos processos93, afastando-se do empaste usado por muitos dos nossos artistas
modernos94.
Na “Exposição d’Arte” do ano seguinte, António José continuou a exibir paisagens.
Sobre os quadros, casa da eira, Negrellos e A renda da eira, Negrellos, escreveu-se:
tornam-se dignos de apreço pela viveza do colorido e pela sinceridade de execução95.
o pintor costumava passar as suas férias em Negrelos (Santo Tirso), localidade
de onde o seu pai era natural. Ali executou muitas paisagens, mas ignoramos se este
registo é proveniente dessa zona. Trata-se da vista poética de um campo, ornado
de vegetação agreste e dispersa, onde o céu, tingido de púrpura transparente pelo
crepúsculo, domina a parte superior da composição.
A pincelada é fina e delicada, sem contudo perder espontaneidade e desenvoltura.
uma imensa tranquilidade invade este fim de tarde campestre.

89 AMADoR, 1887: 1.
90 RoDRIGuES, 1887a: 86.
91 RoDRIGuES, 1887a: 86.
92 ANÓNIMo, 1887c: 2.
93 RoDRIGuES, 1887a: 86.
94 RoDRIGuES, 1888: 123.
95 RoDRIGuES, 1888: 123.
Flores do silêncio (um esboço da actividade artística do pintor António José da Costa) 79

2.3. Paisagens
Nestas paisagens, rio, margens e céu são apenas névoa e bruma. Manchas diluídas
em tons iguais e variações infinitas.
Não são vistas do Minho ou Trás-os-Montes, ou outro sítio qualquer, mas pano-
ramas amplos sobre o silêncio.
Em primeiro plano, recortam-se as silhuetas de um barquito e de uma árvore,
de pincelada fina, expedita, elegante e segura. Graças à proximidade, ganham uma
existência palpável, condenando-se por isso a uma solidão triste. Devido a essa
circunstância, atravessa estas imagens um sentimento de vaga melancolia.
os balanços que se fizeram da obra de António José da Costa após a sua morte,
desvalorizaram muito a sua produção paisagística, relativamente à pintura de flores96.
É certo que a partir de 1889, António José da Costa se assume inteiramente como
pintor “florista”, mas também é verdade que nunca deixou de juntar duas ou três
paisagens ao largo contingente de camélias, rosas, crisântemos, peónias, etc., que
enviava para as mostras de pintura em que participava.

Figura n.º 4
Paisagem
Óleo sobre cartão. 245 x 143 mm.
Não assinado.
Não datado.
colecção particular.

Muitas dessas paisagens suscitaram bastante interesse. Sobre a Engeitada da Vár-


zea, escreveu Valle e Sousa, em 1902: é um pedaço de fresca paisagem, immensamente
pittoresco. Anima-o uma figura de rapariga, de linhas justas, lavando n’um claro riacho.
A figura tem vida, tem destaque, pousando bem n’um fundo de tenra verdura, sabiamente
achado para lhe dar relevo97.
96 FIGuEIREDo, 1930: 75.
97 SouSA, 1902: 340.
80 António Manuel Vilarinho Mourato

um caminho da Sobreira que António José enviou à Exposição da Sociedade


Nacional de Belas-Artes, de 1915, foi considerado pela “Capital”, muito finamente
estudado e delicioso de perspectiva98.
A revista “Portugal Artístico” chegou a qualificar o pintor como soberbo paisagista
99 e o “Comércio do Porto” afirmou que as suas paisagens eram sinceras, cheias de

naturalidade e de pittoresco100.
Temos de reconhecer que algumas paisagens de António José não são a absoluta
maravilha; mas existe um núcleo deste género que não deve ser menosprezado. A
frescura na execução, a harmonia no colorido e a subtileza na perspectiva atmosférica
conferem a essas imagens um encanto peculiar.
Além disso, exprimem, por vezes, estados de alma que as aproximam duma esfera
romântica.

Figura n.º 5 – Paisagem


Óleo sobre madeira. 270 x 120 mm.
Não assinado.
Não datado.
colecção particular.

Muitas das paisagens de António José da Costa eram pintadas em tampas de


caixas de charutos. o artista não tinha assim que gastar dinheiro com suportes e a
pequena dimensão que estes apresentavam, acabava por se revelar vantajosa. É o
que se depreende do seguinte texto, publicado no jornal “A Actualidade”, onde se
procede ao balanço da “Exposição d’Arte”, de 1891:

98 PASSoS, 1915a: 2.
99 LEMoS, 1905a: 609.
100 ANÓNIMo, 1908d: 2.
Flores do silêncio (um esboço da actividade artística do pintor António José da Costa) 81

Alguns quadros se venderam este anno. Mas que poucos, em relação á quantidade de telas
delicadas e que tão bem ficariam em salas e pequenas galerias! Mas que minguado numero, em relação
á concorrancia [sic] de admiradores, e ao interesse que, a julgar por esse facto, estas exposições lhes
vão despertando! Quadrozinhos pequenos, de preços accessiveis, ainda se vendem. Mas vá um artista
estudar um assumpto, desenvolvel o n’uma tela grande, pôr ahi todo o seu cuidado, interessar n’elle
todo o seu talento, desenvolver todo o seu engenho de factura! Será tempo perdido; trabalho glorioso
talvez, mas seguramente improductivo. Quanto mais valioso fôr, menos compradores terá. O particular
admira e… passa. Protecção official ás bellas-artes, traduzida na acquisição de um ou mais dos
melhores quadros de uma exposição, isso é coisa que só pode caber na mente de visionarios como nós101.

2.4. Paisagem
Em Portugal, o Naturalismo impôs-se sobretudo através da pintura de paisagem,
praticada ao ar livre, valorizando a mancha sobre o contorno, a marcação da cor sobre o
delinear dos volumes, a mobilidade lumínica sobre os sistemas cenográficos de iluminação102.
António José da Costa assimilou estes princípios, mas à liberdade das cores soltas,
diversamente iluminadas, preferiu a mancha leve, opaca, de infinitas variações tonais
e uma luminosidade branda que envolvia as imagens em atmosferas tranquilas. Estes
processos verificam-se em certas paisagens de Marques de oliveira. o discípulo
convertia-se assim, em fonte de inspiração para o antigo mestre.
Neste quadro, António José registou um caminho campestre (tema que tratou
inúmeras vezes), limitando a paleta aos ocres, castanhos, cinzas e verdes.

Figura n.º 6
Paisagem
Óleo sobre madeira. 455 x 215 mm.
Assinado.
Não datado.
colecção particular.

101 ANÓNIMo, 1891: 1.


102 SILVA, s/d: 66.
82 António Manuel Vilarinho Mourato

o caminho ocupa a parte inferior da composição, ladeado à esquerda por um


muro e à direita por uma breve elevação, contendo vegetação rasteira.
o céu ocupa todo o espaço superior, servindo de fundo a uma árvore, de folhagem
leve e contornos esbatidos.
Este lugar desolador produz uma sensação de imobilidade e abandono que a névoa
e a árvore solitária acabam por acentuar.

2.5. Vaso com camélias


A pintura de António José da Costa compreende duas expressões distintas: a
romântica e a naturalista. Aderiu à última no final dos anos oitenta e permaneceu-lhe
fiel até acabar a sua carreira.
A mudança do estilo coincidiu com a eleição das flores como tema central da
sua obra.

Figura n.º 7
Vaso com camélias
Óleo sobre madeira. 525 x 370 mm.
Não assinado.
Datado 1889.
Museu Nacional de Soares dos Reis.

Este Vaso com camélias, que Tadeu Furtado comprou para o Museu da Academia103,
como a imprensa da época realçou104, ilustra o início dessa mudança.
Hoje o quadro encontra-se no Museu Nacional de Soares dos Reis e sobre ele
Mónica Baldaque escreveu: António José da costa foi particularmente feliz neste trabalho
(…) A boa organização do enquadramento na tela, retirando para o lado esquerdo o motivo

103 FBAuP – Acta de 5 de Abril de 1889, (conferência ordinária, presidida pelo Conde de Samodães), livro 106, fol.
110 v.
104 ANÓNIMo, 1889: 2.
Flores do silêncio (um esboço da actividade artística do pintor António José da Costa) 83

central, e cortando o vaso, justamente para nos aproximar das três camélias, é talvez o
segredo desta pintura105.
A pincelada delicada e fina e a harmonia cromática de brancos e verdes secos,
além das texturas de algodão das pétalas, obtidas por um ousado empaste de tinta,
conferem um ambiente leve à imagem, onde as formas se combinam na medida justa.

2.6. Camélias
O Porto da mocidade de António José da Costa apresentava quintais inundados
de flores, em especial camélias, apesar da floricultura ser considerada, nesse tempo,
um capricho de imaginações romanescas.
Destinavam-nas quase exclusivamente ao culto religioso e se algum janota ousasse
colocar uma ao peito, arriscava-se a ouvir dos burgueses: Flôr ao peito/Asno perfeito106.
Não admira, por isso, que quando em 1877 se realizou uma exposição de pintura,
num salão Hortícolo-Agrícola, os únicos artistas profissionais que por lá apareceram
a exibir as suas obras no género, fossem oriundos de Lisboa107.
Apenas a reputada miniaturista Francisca de Almeida Furtado ia executando com
regularidade, a aguarela, imagens de flores no Porto108.
Nos finais do século, o interesse pela floricultura cresceu, multiplicando-se a
construção de jardins públicos, a realização de exposições e concursos, distribuindo-se
os hortos por vários pontos da cidade109.
Um viajante estrangeiro declarava que o Porto era a “pátria das camélias”110
e Francisca de Almeida Furtado expunha, em 1881, no primeiro salão do Centro
Artístico Portuense, uma aguarela contendo camélias vermelhas e outra, uma camélia
branca111.
Na primeira Exposição de Arte, de 1887, Marques Guimarães apresentou vários
quadros com camélias e Francisca de Almeida Furtado uma aguarela intitulada Cesta
com camélias112. Encanta olhar para flores assim pintadas, exclamou um crítico diante
das obras de Guimarães113.
É possível que o bom acolhimento que esta flor ia conquistando nas esferas da arte,
tivesse contribuído para que António José da Costa a adoptasse nos seus quadros.

105 BALDAQUE, 1996: 62.


106 PIMENTEL, 1893: 9, 10.
107 JUNIOR, 1877: 173, 174.

Os artistas a que nos referimos são José Ferreira Chaves (1838-1899) e Prospero Pierre Lasserre (1832-1900). Ambos
se distinguiram como pintores de flores.
108 LEITE, 1931: 19.
109 ANDRESEN et al, 2001: 55.
110 SAINT-VICTOR, s/d [1891]: 26.
111 CATÁLOGO, 1881: 21.
112 CATÁLOGO, 1887: 7,8, 13
113 RODRIGUES, 1887b: 91.
84 António Manuel Vilarinho Mourato

Figura n.º 8 – Camélias


Óleo sobre madeira. 275 x 400 mm.
Assinado.
Datado 1893.
Ateneu comercial do Porto.
N.º Inv. P120.

Nesta imagem, cinco camélias brancas e duas tingidas de rosa, emergem de um


fundo escuro. Dispõem-se segundo um eixo horizontal, ligeiramente ondulado, do
qual se afastam duas delas, a fim de acentuar o ritmo tranquilo que anima a imagem.
As camélias flutuam num espaço escuro, onde as folhas são apenas sugeridas em
sombra. uma iluminação forte e concentrada realça a textura de veludo das pétalas,
cujas formas são enunciadas com grande suavidade e belo empastamento de tinta.
A simplicidade da composição e o colorido sóbrio conferem ao quadro uma
elegância discreta.

2.7. Camélias
Segundo uma versão lendária, António José da Costa começou a pintar flores
quando um dia – estando ele nas suas lições de pintura – se lembrou de exemplificar
a uma jovem discípula o processo que deveria seguir para representar um grupo
dessas “musas dos jardins”.
Pegou nos pincéis e na paleta e ao fim de alguns instantes, o motivo que copiava
inundou-o de um fascínio torrencial. Nesse momento, condenou-se a si mesmo a
pintar flores para o resto da vida114.
Às vezes, no seu jardim, colhia uma ou duas. observava-as cuidadosamente e
exclamava, virando-se para quem estivesse consigo: repare na transparência luminosa
desta pétala115.
Talvez para conservar intacta essa admirável luminosidade, era na penumbra dos
interiores que mergulhava as suas camélias e as limpava do caos natural, submetendo-
as a arranjos milimétricos.

114 LoPES, 1949: 3.


115 FIGuEIREDo, 1962: 10.
Flores do silêncio (um esboço da actividade artística do pintor António José da Costa) 85

Figura n.º 9 – Camélias


Óleo sobre madeira. 400 x 480 mm.
Assinado.
Datado 1904.
colecção particular.

Gozando local arejado, estas camélias afirmam-se sem atropelos. uma luz branda
destaca o branco e o rosa das suas pétalas.
Não é o valor linear, a pureza do contorno que se impõe, mas uma mancha suave
e rica de empastes que destaca texturas, esbate contornos e modela volumes.
Este quadro integrou a Exposição Póstuma da obra de António José da Costa,
realizada no Salão Silva Porto, em Março de 1930116. Na altura, alguém escreveu
que ali estavam patentes verdadeiros milagres de pintura117. Não seria de espantar que
entre esses “milagres”, se contasse a presente imagem.

2.8. Azáleas
Se, como afirmou Júlio Brandão, pintar flores é fixar o sorriso mais belo e mais doce
da natureza118, então António José da Costa ilustrou claramente esta asserção, neste
seu quadro de azáleas.

Figura n.º 10 – Azáleas


Óleo sobre madeira. 420 x 740 mm.
Assinado.
Datado 1906.
colecção particular.

116 Inscrição
no verso do quadro.
117 ANÓNIMo, 1930a: 3.
118 BRANDÃo, 1929a: 1.
86 António Manuel Vilarinho Mourato

o caule ocupa exactamente o centro inferior do quadro, mas a composição não


é simétrica; apresenta, todavia, um equilíbrio perfeito.
As flores preenchem todo o campo visual. Tratadas com uma pincelada vibrante,
que as agita, envolvem-se numa espécie de bailado, onde pétalas finas derramam
ritmos leves e tranquilos sobre a composição.

Figura n.º 11 – Azáleas


Pormenor

o fundo cinza destaca a alvura das azáleas, sarapintadas de tons rosa e a luz
recorta o contorno das pétalas e destaca a sua textura leve de algodão.
A pincelada é livre, definindo as formas através de manchas largas de tinta, plenas
de frescura. Sombras claras aliam-se a um desenho elegante.

2.9. Camélias
A obra de António José da Costa apresenta uma acentuada irregularidade.
A sua fase romântica, muito influenciada por Augusto Roquemont e Francisco José
Resende não nos cativa. Quanto ao período naturalista está cheio de altos e baixos.
o que surpreende é que os altos são mesmo muito altos: instantes mágicos, onde
uma sensibilidade rara se exprime plasticamente com delicadeza e harmonia. Quadros
únicos que lhe conferem lugar destacado na História da nossa pintura.
A irregularidade de António José da Costa começou a ser notada nas exposições
do Grémio Artístico, certame em que o artista participou diversas vezes.
Mas foi na Exposição da Sociedade Nacional de Belas Artes de 1915 que rece-
beu as piores críticas. “A Capital” afirmou que as suas camélias eram de celuloide e
apresentavam formas lambidas119.
uma vez, um retrato que António José pintou de uma “brasileira”, foi recusado
pelo casal encomendador. Alegavam que um braço estava mais curto que o outro. o

119 PASSoS, 1915b: 2.


Flores do silêncio (um esboço da actividade artística do pintor António José da Costa) 87

artista ainda tentou justificar-se, mas o marido da retratada não esteve pelos ajustes:
mandou a criada trazer uma fita métrica e aniquilou ali mesmo todos os argumentos
do pobre pintor120.

Figura n.º 12 – Camélias


Óleo sobre tela. 495 x 325 mm.
Assinado.
Datado 1905.
colecção particular.

Este arranjo de camélias não é certamente a obra-prima de António José da


Costa. A pincelada apresenta-se algo retraída e o desenho pouco claro. Mas a
subtil harmonia do colorido, a luz branda e a composição muito bem estruturada,
compensam as falhas mencionadas.

2.10. Camélias
Ao centro deste quadro, António José da Costa colocou uma camélia vermelha,
de pétalas elegantes, gozando de luz doce. Depois envolveu-a com outras camélias
brancas, que a aconchegavam quase com ternura, num arranjo que dividia o espaço
do quadro em duas partes distintas: a da direita, banhada de luz e a da esquerda,
submersa numa penumbra fresca.
As camélias tocadas pela escuridão, apresentam contornos esbatidos e sombras
carregadas. As restantes, ostentam um contorno delicado, texturas macias e claro-
escuro muito suave.
No que respeita ao colorido, o vermelho da flor central conjuga-se sem estridência
com os brancos das restantes camélias, sobressaindo do fundo escuro e do pano
castanho da mesa.
120 Arquivo Doutora Margarida Reis – SARABANDo, s/d, documento avulso.
88 António Manuel Vilarinho Mourato

Figura n.º 13 – Camélias


Óleo sobre madeira. 340 x 590 mm.
Assinado. Datado 1910.
casa-Museu Teixeira Lopes.
N.º Inv. cMTL 922.

Habita estas flores uma solenidade frágil, além de um sentido de ordem efémero.
Artur Loureiro, afirmou um dia acerca do seu antigo mestre, António José da
Costa: sabia ensinar porque sabia desenhar121. o desenho impecável deste quadro ilustra
perfeitamente a máxima do discípulo.

2.11. Camélias
Sobre uma mesa, com toalha castanha e alguma folhagem viçosa, dispôs o artista
este pequeno arranjo de camélias, dominado ao centro por uma camélia vermelha,
que outras, brancas e rosadas vão ladeando na parte inferior.

Figura n.º 14 – Camélias


Óleo sobre madeira.
Assinado. Datado 1912.
casa Museu Marta Ortigão Sampaio.
N.º Inv. 78.31.28.

Mais afastadas, à esquerda, duas camélias brancas diluem-se na penumbra, num


esquema algo repetido da imagem anterior.
A harmonia do colorido resulta do contraste entre o fundo castanho escuro e as
tonalidades claras das flores, operando a transição entre essas duas áreas, o vermelho
intenso da camélia central e os verdes das ramagens.

121 FIGuEIREDo, 1962: 11.


Flores do silêncio (um esboço da actividade artística do pintor António José da Costa) 89

A pincelada é delicada, sugerindo, nas pétalas, texturas finas e transparentes,


como papel vegetal. A luz branda e a horizontalidade da composição, derramam
sobre a atmosfera silenciosa, uma paz tranquila.
A estudada colocação de todos os elementos no espaço, confere à obra um
equilíbrio agradável.

2.12. Rosas
Casimiro Barbosa, em 1870, escreveu: a rosa, a flôr sem rival, a rainha das flôres,
reunindo em si a elegancia dos botões, a perfeição das fórmas, a suavidade do aroma, a
delicadeza do incarnado ou da brancura virginal das petalas, é a flôr de todos os seculos,
de todas as edades e celebrada por todos os poetas como typo de graça e de belleza122.
No Porto eram muitos os que consideravam a rosa como a flor que reunia tudo
quanto a esthetica123 podia exigir.
António José da Costa também dedicou a esta flor uma veneração muito especial,
tomando-a como modelo para variadíssimos quadros.
Consciente de que a pintura de flores era avaliada pela exactidão no desenho124,
efectuava muitos estudos de rosas, a fim de compreender os mais pequenos detalhes
das suas formas.

Figura n.º 15 – Rosas


Óleo sobre madeira. 385 x 290 mm.
Assinado. Datado 1914.
casa Museu Teixeira Lopes.
N.º Inv. cMTL 936.

122 BARBozA, 1870: 18.


123 ANÓNIMo, 1897: 167.
124 JuNIoR, 1877: 173, 174.
90 António Manuel Vilarinho Mourato

Neste quadro estão representadas três rosas, ocupando a parte superior e central
da imagem. o desenho das suas pétalas é minucioso. o artista define com leveza as
superfícies, as texturas macias e as suaves transições de claro-escuro.
Para o fundo reservou o esboço das ramagens, surgindo várias folhas com aspecto
inacabado; contrastam agradavelmente com o esmerado detalhe na execução das flores.
o colorido é dominado pela oposição entre o rosa claro das pétalas e as tonalidades
cinza-azuladas do fundo e os verdes secos dos ramos e folhas.
A simplicidade da composição e a delicadeza do desenho, perfumam a atmosfera
desta obra de espontaneidade e graça.

2.13. Rododendros

Figura n.º 16 – Rododendros


Óleo sobre madeira. 320 x 280 mm.
Assinado. Datado 1925.
casa-Museu Teixeira Lopes.
Inv. N.º 1417.

Estes cinco rododendros com pétalas opulentas, finas e macias, juntam-se na


metade superior do quadro, deixando que as suas longas folhas escorreguem e se
dissolvam no fundo abstracto e vaporoso.
o contorno elegante e a sugestão leve do modelado das flores não retiram ao
quadro um sabor de estudo, já que tudo o resto é apontamento, mancha inacabada.
os rododendros ostentam desenho delicado, extrema suavidade nas transições entre
zonas de luz e sombra e graciosidade de formas.
Livres de qualquer peso, eles habitam um espaço aéreo, desafogado que os destaca
sem se anular. Na verdade, os cinzas e ocres que compõem o fundo, interpenetram-se
com agilidade, revestem as folhas de esbatidos inesperados e criam ritmos tranquilos,
através de uma pincelada fluida e espontânea.
Flores do silêncio (um esboço da actividade artística do pintor António José da Costa) 91

o colorido da imagem é construído de ocres, cinzas, verdes e brancos que se


combinam numa sobriedade quase austera.
Emana da obra um forte sentido de elegância e leveza.

2.14. Lilases e Rosas


António José da Costa apresentou pela última vez ao público os seus trabalhos,
na Exposição da Sociedade de Belas-Artes do Porto, em 1923. A crítica notou ainda
a frescura das suas “camelias”125.
Cláudio Correia de oliveira Guimarães escreveu que era a medida que envelhecia,
que António José da costa melhor pintava, acrescentando que a mão do glorioso pintor
não conheceu a decrepitude126.
o quadro “Lilases e Rosas”, ilustra a última fase da obra do pintor e dá, sem
dúvida, razão a Guimarães.

Figura n.º 17 – Lilases e Rosas


Óleo sobre madeira. 510 x 806 mm.
Assinado. Datado 1920.
Museu Nacional de Soares dos Reis.
N.º Inv. 62 cMP/MNSR.

Apresenta, ao centro, um recipiente, cheio de lilases que se atiram em direcções


variadas sobre o espaço circundante, organizando-se de forma algo simétrica. À
esquerda, vislumbram-se algumas rosas.
o desenho leve e fluído nos contornos, a luz clara, as texturas macias das pétalas,
a pincelada graciosa e subtil, o claro-escuro suave, criam uma atmosfera fresca, plena
de ritmo e vivacidade.
Perto do final da vida, António José, surpreendia ainda pelo vigor que imprimia
às suas composições.

2.15. Cena de costumes populares


Além de pintor e professor de desenho e pintura, António José da Costa foi ainda
coleccionador de arte, embora sem grandes pretensões.
125 M.S., 1923: 1.
126 GuIMARÃES, 1951:
92 António Manuel Vilarinho Mourato

Na esfera da pintura, coleccionou obras apenas de um autor: Augusto Roquemont,


o suíço que maravilhou a geração romântica do Porto, com as suas cenas de costumes
populares.
Adquiriu as primeiras três pinturas no leilão do espólio de Manuel José Carneiro127,
lente de Arquitectura das Belas-Artes. Representavam uma paisagem, um estudo de
nu, visto de costas e o retrato de uma senhora.
Anos mais tarde, António José da Costa comprou a António Torcato Ribeiro
Guimarães Júnior, duas Varinas. Algum tempo depois, o seu amigo Sousa Fernandes,
distinto fotógrafo, ofereceu-lhe mais uma obra de Roquemont: um retrato de homem,
esboçado em tamanho natural. Com ele ficava completa a pequena colecção128.
Em 1881, apresentando-se como “coleccionador”, António José da Costa expõe
na mostra do Centro Artístico Portuense, efectuada no Palácio de Cristal, as três
obras mais importantes do conjunto que reunira: as duas varinas e a paisagem129.
A pequena colecção do mestre romântico acabaria por se desfazer em 1890, quando
António José da Costa a vendeu, por inteiro, ao Museu Municipal do Porto130.
Por essa altura, ofereceu igualmente ao referido Museu uma caixa de tintas de
aguarela de Roquemont131. Ignoramos onde a adquiriu.
Quando ainda era aluno das Belas-Artes, António José da Costa concebeu uma
cena de costumes populares, onde diversas figuras se reuniam numa praceta, ou num
mercado, ostentando os seus trajes tradicionais.

Figura n.º 18
Cena de costumes populares
Óleo sobre tela. 350 x 385 mm.
Assinado. Datado 1860.
colecção particular.

127 António José Carneiro fora amigo íntimo de Augusto Roquemont, tendo o suíço legado a Carneiro a pasta dos seus
melhores estudos pintados e desenhados (REzENDE, 1865: 1).
128 VIToRINo, 1929: 40-43.
129 Catalogo, 1881: 15
130 VIToRINo, 1929: 40
131 VIToRINo, 1929: 49-50.
Flores do silêncio (um esboço da actividade artística do pintor António José da Costa) 93

Apresentava colorido quente, preocupação etnográfica e ambiente popular, aspectos


comuns aos quadros de Roquemont e também aos de Francisco José Resende, o seu
mais dedicado discípulo132 e professor de António José da Costa na Academia133.
Augusto Roquemont foi sempre lembrado no Porto com veneração, por indivi-
dualidades ligadas ao meio artístico. Em 1929, ano do falecimento de António José
da Costa, Júlio Brandão escrevia:
Com efeito, não há receitas, maneirismos nem truques na pintura de Roquemont. Artista
vigoroso e pessoal distingue-se logo por um certo sortilégio da côr, pelo estilo pelo desenho
magistral, pela sobriedade, pela naturalidade das atitudes. (…) Nos quadros de género, os
costumes portugueses são tocados com uma graça, uma realidade, um encanto deliciosos134.

Conclusão
Após ter conquistado alguma notoriedade na sua juventude, António José da Costa
ressurgiu para a vida artística portuense já próximo dos cinquenta anos. Embalado
pelos novos ventos do Naturalismo e escolhendo as flores como temática principal
dos seus quadros, conheceu um sucesso crescente entre os finais do século XIX e
inícios do século XX.
Muito elogiado pela frescura das suas camélias135, o artista foi igualmente louvado
pela bondade e modéstia do seu carácter e pelo inexcedível respeito que tributava á
arte que professava136.
Professor de Henrique Pousão137, Artur Loureiro138 e Marques de Oliveira139, entre
outros, teve na sobrinha, Margarida Costa a mais fiel continuadora do seu estilo140.
Alguém resumiu a sua vida nestas palavras: sem ambições que cégam, sem habilidades
que aviltam, ganhou o seu pão e o pão dos seus, morreu pobre e morreu tranquilo141.
A pintura de António José da Costa caracteriza-se pela composição simples, mas
organizada, desenho elegante, pincelada delicada, colorido sóbrio, mancha leve e
textura suave.

132 VITORINO, 1922: 39.


133 António José da Costa apresentou-se na terceira exposição da Sociedade Promotora das Belas-Artes em Portugal,
como discípulo de Francisco José Resende (CATÁLOGO, 1864: 9).
134 BRANDÃO, 1929b: 66-67.
135 M.S., 1923: 1.
136 BRANDÃO, 1929a: 1.
137 RODRIGUES, 1998: 15.
138 VITORINO, s/d: 182.
139 SANTOS, 1987: 44.
140 LEMOS, 1906: 166-167.
141 BURITY, 1930: 5.
94 António Manuel Vilarinho Mourato

Fontes e Bibliografia

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SINCERO, João, 1892 – “A exposição do Gremio Artistico”, in O Seculo, n.º 3661. Lisboa.
SOUSA, Valle e, 1902 – “A Exposição de Arte em Coimbra”. Serões, Revista Mensal Illustrada,
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VIANA, Teresa Pereira, 1996 – “Júlio Costa, 1853-1923”. Museu Nacional de Soares dos Reis,
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O órgão de tubos
da Igreja da Misericórdia de Guimarães (1775)
António José de Oliveira

1. Introdução
A Santa Casa da Misericórdia de Guimarães teve (e ainda tem) um lugar de
destaque na vila de Guimarães. A crescente importância que foi alcançando na urbe
permitiu-lhe a edificação de estruturas próprias que se afirmaram, desde sempre, entre
os imóveis mais representativos da arquitectura vimaranense. A igreja, a sacristia, a
torre sineira, o hospital e a Casa do Despacho que compõem o núcleo arquitectónico
da Santa Casa da Misericórdia constituem, pela qualidade arquitectónica que as
caracteriza e pela importância das peças de pintura, talha, estuque e ourivesaria
que se conservam no seu interior, um acervo artístico de inegável importância e
singularidade de Guimarães.
Ao longo do percurso artístico da Misericórdia de Guimarães vamos encontrar, na
maior parte das suas fases construtivas, alguns dos melhores artistas que trabalharam
na vila. Podemos referir, alguns nomes como: o mestre pedreiro quinhentista Manuel
Luís1; os mestres pedreiros Gonçalo Lopes e os seus genros Pedro Afonso de Amorim
e João Afonso de Amorim2; os mestres pedreiros galegos Pedro António Lourenço e
Domingos de Passos; os mestres entalhadores Manuel Joaquim Proença e os irmãos
Manuel e António da Cunha Correia Vale.
O espírito empreendedor e a robustez económica da Misericórdia de Guimarães,
foram os motores para o vasto programa de obras incrementadas no seu templo. A
década de 1770-1779, na qual se integra a construção do órgão de tubos da Miseri-
córdia vimaranense, é aquela em que entre 1650-1799, esta instituição mais despesas
realiza com obras na sua igreja3. Neste contexto de intensa actividade construtiva,
apresentamos a construção do órgão de tubos da Igreja da Misericórdia de Guimarães.

1 José Ferrão Afonso atribui a este mestre pedreiro portuense o risco da fachada da Igreja da Misericórdia. Ver
AFONSO, 1997: 7-45.
2 AFONSO, 1997: 23; MORAES, 1981: 419-450.
3 COSTA, 1999: 275 (gráfico n.º 5).
100 António José de Oliveira

2. A encomenda dos órgãos


Através da documentação que compulsámos no Arquivo da Santa Casa da
Misericórdia de Guimarães, podemos constatar que o órgão de tubos é o resultado
de um trabalho conjunto de vários artistas: Dom Francisco António Solha, mestre
organeiro; Frei José de Santo António Ferreira Vilaça; dos mestres entalhadores
António da Cunha Correia Vale e Manuel Fernandes Novais; do mestre serralheiro
André de Freitas e do dourador Bento José de Almeida.
Os mestres entalhadores comprometiam-se a construir as duas caixas, bacia e as
varandas dos órgãos, enquanto que ao organista competia-lhe a feitura do conjunto
organológico, este último formado pelos foles, sistema mecânico e tubaria.
O órgão autêntico, ou seja que toque, situa-se no lado do Evangelho, em tribuna
própria com acesso ao coro alto. Na parede fronteira ao órgão existia uma caixa
gémea, apenas com uma função decorativa, pertencente a um órgão “mudo” ou falso,
destinada a criar a simetria do conjunto, um princípio barroco4. Este órgão era em
tudo idêntico ao autêntico no seu exterior, mas desprovido, no seu interior, de toda
a maquinaria. A caixa deste órgão do lado da Epístola, encontra-se, há vários anos
desmontado e guardado numa arrecadação da Misericórdia5.
O órgão autêntico, actualmente impraticável, possui um único teclado, pedal e 24
registos: 12 de cada lado. O teclado e os puxadores dos registos não são originais6.
As caixas destes órgãos possuem uma gramática decorativa com uma preponderância
das superfícies lisas, adornados de flores e folhas. Na área central, evidenciam-se
meninos e pequenas carrancas. A bacia é animada por uma máscara barbuda coroada
de folhagens e volutas douradas. Na parte inferior, a máscara é guarnecida por troféus
de música compostos de violões e trombetas em combinação com folhas cobertas de
notas musicais. As caixas dos órgãos são de madeira de castanho, policromado em
imitação de mármores e parcialmente dourados7.
D. Rodrigo José António de Noronha e Meneses, provedor da Misericórdia8,
juntamente com os irmãos de primeira e segunda condição, assumindo as responsa-
bilidades da administração da Misericórdia, irão ser os responsáveis pelo projecto de
execução dos órgãos na sua igreja. O programa de obras remonta à sessão da mesa

4 Sobre as diversas localizações dos órgãos no interior das igrejas do Porto, veja-se a título de exemplo: RAMOS,
2002: 452.
5 GONÇALVES, 1981: 356 (nota n.º 32).
6 SANTOS, 1995: 12.
7 A obra dos fingidos de mármore e de pintura e douramento dos ornatos a ouro brunido foi arrematada por Manuel
José Coimbra, em 1821. Ver SANTOS, 1995: 12.
8 Em 1769, D. Rodrigo José António de Noronha e Meneses casa com Dona Maria José Ferreira de Eça e Bourbon,
proprietária da Casa do Arco, sita na rua de Santa Maria (Guimarães) (MORAES, 1990: 214). A sua esposa
pertencia a uma das mais prestigiadas famílias da aristocracia vimaranense (COSTA, 1999: 123). D. Rodrigo
Noronha e Meneses era filho do 4.º Marquês de Marialva e 6.º Conde de Cantanhede (MORAES, 1990: 213). Em
1779, juntamente com a sua família vai para o Brasil como governador e Capitão-General de Minas Gerais, Baía e
Grão-Pará, regressando a Portugal em 1782 (MORAES, 1990: 215-218). Este provedor da Misericórdia contraiu
vários empréstimos a juros à Santa Casa, tornando-se um dos maiores devedores da instituição (COSTA, 1999:
101, 123-125).
o órgão de tubos da Igreja da Misericórdia de Guimarães (1775) 101

e definitório da Santa Casa de 13 de Maio de 17759. Nesta reunião, o provedor


apresenta aos irmãos mesários a proposta da construção de um órgão, sustentando
que nos cofres da Misericórdia existiam 3482$428 réis e “de haver huma capelania no
coro pera se tocar órgão”10. Após a aprovação desta empreitada, através do respectivo
termo, sabemos que foi ainda proposto o seguinte:
“(…) como havia um organeiro nesta villa que se estabelecese e ajustase o órgão com elle
por aquelle preço mais racionavel de que dara parte o escrivam da meza do seu preço pera se
asignar por elle a escriptura e sera rematada a caixa delle e ornato correspondente a dita talha e
grade do coro pelo risco que der Frei Joze do convento de Pombeiro abrindo se hum arco dentro
da parede de fora da grade do coro pera o mesmo órgão se edificar11.
Através da leitura deste extracto, sabemos que o órgão e seu correspondente
órgão “mudo”, foram riscados pelo Frei José de Santo António Vilaça. Podemos
ainda, verificar que a feitura deste órgão motivou obras de pedraria, nomeadamente
a abertura de um arco na parede da grade do coro.
os administradores da Misericórdia pretendiam que a sua igreja fosse dotada de
obras com a grandiosidade e a qualidade das existentes em outros espaços religiosos
de Guimarães. Para esse efeito, como veremos de seguida, celebram três contratos
de obra na Casa do Despacho da Misericórdia.

Figura n.º 1
Órgão de tubos
da Igreja da Misericórdia

9 A.S.C.M.G = Arquivo Santa Casa da Misericórdia de Guimarães, Actas (termos) da mesa e definitório da Santa
Casa (1762-1783), N-11, fl. 63v. “Termo em que se asignou a Mesa e Definitorio pera se fazerem as obras da igreja na
forma delle”.
10 A.S.C.M.G, Actas (termos) da mesa e definitório da Santa Casa (1762-1783), N-11, fl. 63v. Documento apresentado
em primeira mão por SMITH, 1972: 543.
11 A.S.C.M.G, Actas (termos) da mesa e definitório da Santa Casa (1762-1783), N-11, fl. 64v. Manuscrito apresentado
em primeira mão por: SMITH, 1972: 543.
102 António José de Oliveira

2.1. Frei José de Santo António Ferreira Vilaça (riscador)


Como referimos acima, Frei José de Santo António Ferreira Vilaça, na época
conventual no Convento de Pombeiro, é o autor do risco do risco das duas caixas
dos órgãos e da grade do coro. Segundo Robert C. Smith, a decoração das caixas
destes órgãos é característica da segunda fase de Frei José Vilaça12. Em vários itens
de despesas pagas por António da Costa, Padre Sacristão da Santa Casa, consta
“uma despesa com os riscos de Frei Joze de Pombeiro – 28$800 réis”13. Tratar-se-ão dos
riscos das caixas dos órgãos? Este será um ponto a rever, no futuro, com a possível
descoberta de nova documentação.

2.2. Dom Francisco António Solha (mestre organeiro)


A 25 de Junho de 1775, Dom Francisco António Solha, mestre organeiro, morador
na rua da Fonte Nova, extramuros de Guimarães14, compromete-se a construir um
órgão de tubos na igreja da Misericórdia, pondo-lhe o registo do rabecão, na forma dos
apontamentos e planta que estavam assinados pelo tabelião da Misericórdia e por si15.
Através do contrato de obrigação temos conhecimento que estava empreitada foi
ajustada em 600$000 réis, pagos em três prestações iguais: a primeira no momento
da celebração desta escritura16, a segunda no meio e a terceira depois de assentado
o órgão. O executante não apresentava fiador, no entanto obrigava a sua pessoa e
os seus bens móveis e de raiz “prezente e feturos e terços de sua alma”. Por seu turno,
o provedor e os irmãos da Santa Casa “obrigarão pellas rendas e dinheiros da Santa
Caza” a liquidarem as duas prestações em falta.
O mestre obrigava-se a fornecer para a feitura do órgão “com todo o necesario
e ferrage e tudo o mais que for precizo e posto e acresentado no lugar que se destinar”.
Neste contrato é especificado que a caixa do órgão, bacia e varandas não eram por
conta dele Dom Francisco Solha. Testemunharam este acto Domingos Freitas Vale
e Bento Antunes, livreiro “desta rua”.
Mais tarde, Dom Francisco Solha assina o respectivo recibo da quantia arrecadada
de 600$000 réis por esta empreitada17. Neste recibo afirma que “ficou inteiramente
pago e satisfeito de toda a obra do orgão”. Nesta lista de pagamentos, é referido que
recebeu 189$427 réis, por conta do órgão, em chumbo e estanho da mão do escrivão
da mesa Francisco José da Silva. A terceira paga foi de 210$573 réis18.
12 SMITH, 1972: 544.
13 A.S.C.M.G, Livro da Despesa e da Receita das Obras da Igreja da Santa Casa da Misericórdia, N-496, fl.5.
14 Trata-se de um importante mestre galego, que casou em Guimarães em segundas núpcias, em 1771, e aí faleceu

em 1794 (SANTOS, 1995: 3-4). Sobre a actividade deste organeiro em Guimarães, veja-se, por exemplo Jordan,
1984: 116-136; OLIVEIRA, 2004-2005: 87-134.
15 “Obrigação a fatura do órgão que faz Dom Francisco Solha”. A.S.C.M.G, Livro de Notas (1775-1799), nota do

tabelião João Ribeiro, N-55, fls. 16-17. Contrato referido por BRAGA, 1948: 52.
16 “logo o theizoureiro (…) foi lansado em sima de huma meza a quanthia de dusentos mil reis em bom dinheiro

que elle Dom Francisco conto e achou serto e a seu poder levou de que deu fe e da dita quanthia deu paga a elle
provedor e irmãos(…)”.
17 A.S.C.M.G, Livro das Obras da Igreja da Santa Casa da Misericórdia, N-495, fl.8.
18 A.S.C.M.G, Livro das Obras da Igreja da Santa Casa da Misericórdia, N-495, fl.8; A.S.C.M.G, Livro da Despesa e

da Receita das Obras da Igreja da Santa Casa da Misericórdia, N-496, fl.26v.


o órgão de tubos da Igreja da Misericórdia de Guimarães (1775) 103

o chumbo e o estanho utilizado pelo organeiro foram obtidos no Porto, a Manuel


Rodrigues da Silva19. A 15 de Janeiro de 1777, o Padre António da Costa Pisco,
sacristão da Misericórdia, recebeu 189$427 réis do pagamento que anteriormente
efectuara no Porto, a Manuel Rodrigues da Silva20. Nesta adição, são descriminadas
as quantidades de chumbo e estanho, a saber: 64 arrobas e 13 arráteis de chumbo
($860 réis a arroba); e 41 arrobas e 10,5 arráteis de estanho ($324 réis a arroba). De
portagens devidas ao Padre António da Costa Pisco foram pagos $120 réis.

Figura n.º 2
Assinatura de Francisco António Solha

2.3. António da Cunha Correia Vale e Manuel Fernandes Novais


(mestres entalhadores)
Dois dias, após a celebração da escritura de obrigação com Dom Francisco Solha,
António da Cunha Correia Vale, mestre entalhador, morador na rua dos Palheiros,
da vila de Guimarães21, compromete-se a construir as caixas dos órgãos na forma dos
apontamentos que “se achão feitos que ficão asinados pello escrivão desta Santa caza e
por elle mestre entalhador”22. o mestre receberia pelo seu trabalho 400$000 réis. o
pagamento seria efectuado em três prestações: uma no momento da assinatura deste
19 A.S.C.M.G, Livro das obras da Igreja da Santa Casa da Misericórdia, N-495, fl.8.
20 A.S.C.M.G, Livro da Despesa e da Receita das obras da Igreja da Santa Casa da Misericórdia, N-496, fl.21.
21 Sobre este artista, veja-se: ALVES, 1989:515-516; oLIVEIRA, 2004-2005: 87-134; oLIVEIRA, 2005: 69-91.
22 “obrigação a fatura das caixas dos orgãos que faz Antonio da Cunha”. A.S.C.M.G, Livro de Notas (1775-1799), nota
do tabelião João Ribeiro, N-55, fls. 17-18. Contrato referido por BRAGA, 1948: 52. Sabemos que esta empreitada,
além das caixas dos órgãos, incluía as bacias, balaústres do coro e dos órgãos (A.S.C.M.G, Livro das obras da Igreja
da Santa Casa da Misericórdia, N-495, fl.8v).
104 António José de Oliveira

contrato, outra no meio da obra e a terceira depois da obra assentada “e posta no


lugar”. As caixas dos órgãos seriam revistas por mestres peritos “a contento da meza
na forma dos apontamentos que elle dito mestre entalhador se obrigaria a cumprir”. O
artista obrigava-se a findar a empreitada num prazo de um ano. Foram testemunhas
presentes: Manuel José de Sousa, servo da Misericórdia; Pedro António Lourenço,
mestre pedreiro23; e Joaquim Fernandes da rua da Fonte Nova (vila de Guimarães).
A 9 de Outubro de 1775, aproximadamente três meses e meio, após a celebração
da escritura com o mestre entalhador, somos confrontados, com um novo contrato
de obra, no qual se estabelece uma parceria entre António da Cunha Correia Vale
e Manuel Fernandes Novais, da freguesia de São Miguel de Entre-as-Aves, (actual
concelho de Vila Nova de Famalicão)24. Dado, que a obra das caixas e bacias do
órgão e balaústres do coro anteriormente arrematados por António Correia Vale
“por ser obra grande”, a Misericórdia firma uma nova escritura com os dois mestres
entalhadores, sob as cláusulas anteriormente estabelecidas. Apenas o prazo de exe-
cução é prolongado por um espaço de seis meses25. Assim somos confrontados, com
a criação de uma parceira para dar resposta a este trabalho arrematado em Junho por
António Correia Vale. Certamente, que o artista arrematante via-se na necessidade de
estabelecer esta parceria, para garantir a concretização dos trabalhos com a segurança
exigida pelo cliente. Como já referimos, por ser uma obra de grande envergadura e
possivelmente por o artista não ter capacidade de levá-la a bom termo, por questões
pessoais, ou pela existência de compromissos laborais assumidos anteriormente, este
prolongamento do prazo de execução e a sociedade com Manuel Fernandes Novais
seria uma garantia da concretização deste trabalho posto a concurso.
Em relação ao pagamento dos 400$000 réis, é estabelecido que seria dividido em
partes iguais pelos dois mestres entalhadores. Como o mestre António Correia Vale
já recebera 133$333 réis, no contrato anteriormente firmado, a Santa Casa decide
efectuar um pagamento de 60$000 réis com o intuito de inteirar 200$000 réis. É
acordado que os restantes 200$000 réis seriam pagos no final da obra26.
Foram testemunhas presentes nesta nota, a saber: José da Cunha, mestre entalhador,
e Pedro António Lourenço, pedreiro desta vila.
Entretanto, a 5 de Julho de 1780, o entalhador Manuel Fernandes Novais já tinha
falecido. Nessa altura, o seu filho Domingos Fernandes de Sousa, por si e pelos seus
irmãos, passava recibo à Santa Casa de como tinha recebido a quantia de 46$800
réis por conta da empreitada dos órgãos, bacias e balaústres do coro. Nesse recibo, o
filho de Manuel Novais apresentava como seus fiadores para segurança da dívida, José

23 Trata-se de um mestre pedreiro natural da Galiza, que executou várias obras na igreja da Misericórdia de Guimarães.
Ver ROCHA, 1992: 149, 154.
24 “Obrigação a fatura de obra que fazem Antonio da Cunha e Manuel Fernandes”. A.S.C.M.G, Livro de Notas

(1775-1799), nota do tabelião João Ribeiro, N-55, fls. 23v-24. Contrato mencionado por GUIMARÃES, 1935: 89.
25 Neste contrato o prazo de execução é estipulado até ao dia de Natal de 1776.
26 Efectivamente, essa quantia é paga, como comprovam os recibos assinados por António Correia Vale e os herdeiros

de Manuel Fernandes Novais (A.S.C.M.G, Livro das Obras da Igreja da Santa Casa da Misericórdia, N-495, fl.9;
A.S.C.M.G, Livro da Despesa e da Receita das Obras da Igreja da Santa Casa da Misericórdia, N-496, fl.24).
o órgão de tubos da Igreja da Misericórdia de Guimarães (1775) 105

Ferreira Guimarães morador em Guimarães27. Por seu turno, Domingas Maria de Sousa,
viúva de Manuel Fernandes Novais, nesse mesmo dia, através de carta de partilhas
que apresentou, recebeu a quantia de 46$800 réis28. Apresentou por seus fiadores
e principais fiadores “pera reporem a dita quantia, no cazo de haver alguma duvida”, a
saber: André Coelho Rodrigues, mercador, morador no Postigo de São Paio; e Torcato
Fernandes Ferreira, da freguesia de São Lourenço de Romão (termo de Barcelos).
os filhos e a viúva de Manuel Fernandes Novais receberam mais 9$600 réis“ pello
acrescimo das obras que fes”29. Por sua vez, António Correia Vale recebeu adicionalmente
16$000 réis, “pelos acrescimos que fes nas caixas dos orgãos, que por esquecimento se lhe
não tinha pago”30.
Em resumo, podemos afirmar que a obra dos órgãos, bacias e balaústres do coro
totalizou 425$600 réis.

Figura n.º 3
Assinaturas de António da
Cunha Correia Vale e de
Manuel Fernandes Novais

2.4. Bento José de Almeida (dourador)


A 26 de Fevereiro de 1779, Bento José de Almeida recebeu 7$980 réis pela obra
de dourar os canos do órgão e pelo ouro usado31.

Figura n.º 4
Assinatura de
Bento José de Almeida

27 A.S.C.M.G, Livro das obras da Igreja da Santa Casa da Misericórdia, N-495, fl.8v. Foram testemunhas: José Soares
Pereira e José Ferreira Mendes, servo da Misericórdia.
28 A.S.C.M.G, Livro das obras da Igreja da Santa Casa da Misericórdia, N-495, fl.8v. Foram testemunhas: José Soares
Pereira e José Ferreira Mendes, servo da Misericórdia.
29 A.S.C.M.G, Livro das obras da Igreja da Santa Casa da Misericórdia, N-495, fl.23v, de 26 de Abril de 1780.
Documento referido por SMITH, 1972: 544. os seus filhos receberam metade dos 9$600 réis (A.S.C.M.G, Livro
da Despesa e da Receita das obras da Igreja da Santa Casa da Misericórdia, N-496, fl.37v).
30 A.S.C.M.G, Livro das obras da Igreja da Santa Casa da Misericórdia, N-495, fl.23v, de 26 de Abril de 1780.
Documento referido por SMITH, 1972: 544; Veja-se também: A.S.C.M.G, Livro da Despesa e da Receita das obras
da Igreja da Santa Casa da Misericórdia, N-496, fl.37.
31 A.S.C.M.G, Livro das obras da Igreja da Santa Casa da Misericórdia, N-495, fl.17v e fl.23. Bento José de Almeida
assina o recibo de pagamento desta quantia (A.S.C.M.G, Livro das obras da Igreja da Santa Casa da Misericórdia,
N-495, fl.18; A.S.C.M.G, Livro da Despesa e da Receita das obras da Igreja da Santa Casa da Misericórdia, N-496,
fl.20v). Documento referido por SMITH, 1972: 544.
106 António José de oliveira

2.5. André de Freitas (mestre serralheiro)


Apesar de no contrato ajustado com Dom Francisco Solha ser especificado de
que este se obrigava a fornecer toda a ferragem necessária, temos conhecimento de
que esta, afinal, foi colocada a expensas do mestre serralheiro André de Freitas32 por
20$970 réis33. o respectivo recibo de pagamento assinado pelo mestre serralheiro,
aponta as motivações que levaram à alteração desta disposição contratual das ferragens,
como podemos ler, no seguinte extracto:
(…) mandarão os Senhores da Meza se pagase ao mestre serralheiro por atenderem a que
o dito organeiro fizera o orgão bom, e em conta, e esperar se que elle algumas vezes vira a afina
lo sendo pera isso chamado, e por outros mais motivos, que forão ponderados em meza pelos
Senhores della, e por isso se pagou ao sobredito Andre de Freitas (…)34.
No recibo de pagamento assinado pelo mestre serralheiro é especificado ao
pormenor toda a ferragem que foi aplicada no órgão35 (Quadro n.º 1).

Quadro n.º 1 – Rol da ferragem paga a André de Freitas

Ferragem Quantia
25 Ferros a 12 réis 3$000 réis
2 Ferros $080 réis
3 Cadeias para os foles $370 réis
3 Engonços para as cadeias $350 réis
3 Ferros e engonços para os foles $720 réis
3 Parafusos de rosca $060 réis
1 “Trinqueta” para a porta dos órgãos $200 réis
2 Barretas de 12 palmos $480 réis
97 Ferros a 80 réis 7$760 réis
26 Ferros a 300 réis 7$800 réis
Total 20$970 réis

Além deste pagamento de 20$970 réis, podemos apurar que o mestre serralheiro
arrecadou outras pequenas quantias do fabrico de ferragens miúdas para o órgão.

32 André de Freitas residia na rua de Santa Luzia (Guimarães) (“Obrigação a fatura da obra que faz Andre de Freitas.
A.S.C.M.G, Livro de Notas (1775-1799), nota do tabelião João Ribeiro, N-55, fls.24-24v).
33 “Emportou mais a ferragem pera o órgão, que se pagou a Andre de Freitas sarralheiro por determinação da Meza, não
obstante se declarar na escriptura do dito orgão ser por conta do organeiro Dom Francisco Solha, atendendo a os justos
motivos, que se ponderarão na mesma Meza: vinte mil novecentos e setenta reis como consta do livro velho a folha. 20$970”
(A.S.C.M.G, Livro das obras da Igreja da Santa Casa da Misericórdia, N-495, fl.23v.
34 A.S.C.M.G, Livro da Despesa e da Receita das obras da Igreja da Santa Casa da Misericórdia, N-496, fl.39.
35 A.S.C.M.G, Livro da Despesa e da Receita das obras da Igreja da Santa Casa da Misericórdia, N-496, fl.39.
o órgão de tubos da Igreja da Misericórdia de Guimarães (1775) 107

Quadro n.º 2 – outras despesas relativas ao órgão pagas a André de Freitas3637383940

Ferragem Quantia
3 Ferros calçados de aço para abrir os buracos para os órgãos $300 réis36
1 Ferro para os órgãos que pesou 15 arráteis a 70 réis 1$015 réis37
3 Ferros para ter mão nos órgãos que pesaram 54,5 arráteis
3$815 réis38
a 70 réis
8 Dobradiças para as portas dos órgãos $640 réis39
2 Ferros para ter mão na trave dos órgãos que pesaram 25
1$750 réis40
arráteis a 70 réis
Total 7$520 réis

Em suma, a Santa Casa despendeu a quantia de 28$490 réis, relativos a paga-


mentos efectuados ao mestre serralheiro André de Freitas, pela feitura de ferragens
para o órgão.

Figura n.º 5
Assinatura de André de Freitas

36 A.S.C.M.G, Livro da Despesa e da Receita das obras da Igreja da Santa Casa da Misericórdia, N-496, fl.28v.Recibo
assinado por André de Freitas a 25 de Março de 1778.
37 A.S.C.M.G, Livro da Despesa e da Receita das obras da Igreja da Santa Casa da Misericórdia, N-496, fl.36.
38 A.S.C.M.G, Livro da Despesa e da Receita das obras da Igreja da Santa Casa da Misericórdia, N-496, fl.36.
39 A.S.C.M.G, Livro da Despesa e da Receita das obras da Igreja da Santa Casa da Misericórdia, N-496, fl.36.
40 A.S.C.M.G, Livro da Despesa e da Receita das obras da Igreja da Santa Casa da Misericórdia, N-496, fl.36.
108 António José de oliveira

3. Conclusão
os gastos com a construção dos órgãos totalizaram 1062$070 réis41. o grosso
das despesas destinou-se à verba arrecadada pelo mestre organeiro. o resto das
despesas distribui-se pelos mestres entalhadores, serralheiro e dourador. Em 1799,
surge arrolada a quantia de $320 réis, relacionada com a despesa de jornais de um
dia para se rebocar a parede debaixo dos órgãos42.

Quadro n.º 3 – Distribuição das despesas com os órgãos

Despesa Quantia
organeiro 600$000 réis
Entalhadores 425$600 réis
Serralheiro 28$490 réis
Dourador 7$980 réis
Total 1062$070 réis

A Santa Casa da Misericórdia é na história de arte de Guimarães uma referência


incontornável ao longo do século XVIII. Referência pelo número de encomendas,
pela contratação de artistas de nomeada e principalmente por aquilo que ainda nos
nossos dias podemos admirar. Com este trabalho, quisermos chamar a atenção para
o facto do órgão de tubos da Misericórdia constituir um legado importantíssimo do
homem barroco do XVIII, bem como o reflexo do dinamismo religioso, económico
e artístico da instituição, permitindo deste modo o afluxo de conceituados artistas
de diferentes locais do noroeste peninsular43.

Bibliografia
AFoNSo, José Ferrão, 1997 – “Manuel Luís: um contributo para o estudo de um mestre pedreiro
quinhentista”. Museu, 4.ª série, n.º 6. Porto: Círculo Dr. José Figueiredo, pp. 7-45.
BRAGA, Alberto Vieira, 1948 – “Curiosidades de Guimarães XI. o Votos de Santiago. Artes e
Artistas”. Revista de guimarães, n.º 48. Guimarães: Sociedade Martins Sarmento.
CoSTA, Américo Fernando da Silva, 1999 – A Santa casa da Misericórdia de Guimarães: 1650-
1800: caridade e assistência no meio vimaranense dos séculos XVII e XVIII. Guimarães: Santa
Casa da Misericórdia de Guimarães.

41 Não incluímos no quadro III a despesa que diz respeito a riscos efectuados pelo Frei José de Santo António Ferreira
Vilaça. (A.S.C.M.G, Livro da Despesa e da Receita das obras da Igreja da Santa Casa da Misericórdia, N-496,
fl.33).
42 A.S.C.M.G, Livro da Despesa e da Receita das obras da Igreja da Santa Casa da Misericórdia, N-496, fl.33.
43 o autor não pode deixar de manifestar o seu reconhecimento à Senhora Provedora da Santa Casa da Misericórdia
de Guimarães Profª Doutora Noémia Maria Ribeiro Almeida Carneiro Pacheco, pelo precioso tempo que lhe
tomamos na consulta do Arquivo da Santa Casa da Misericórdia de Guimarães, bem como as facilidades concedidas
na recolha e transcrição dos variados elementos e aos funcionários da mesma instituição, pela simpatia com que
nos acolheram.
O órgão de tubos da Igreja da Misericórdia de Guimarães (1775) 109

Ferreira-ALVES, Natália Marinho, 1989 – “António da Cunha Correia Vale”, in PEREIRA,


José Fernandes (dir.) – Dicionário da Arte Barroca em Portugal. Lisboa: Editorial Presença, pp.
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Guimarães e sua Colegiada, Actas, vol. 4. Guimarães, pp. 337-365.
GUIMARÃES, Alfredo, 1935 – Mobiliário artístico português: elementos para a sua história. Gui-
marães: Edições Pátria.
Jordan, W. D., 1984 – “Dom Francisco António Solha, organeiro de Guimarães”, in Boletim
de Trabalhos Históricos, 1.ª série, n.º 34. Guimarães: Arquivo Municipal Alfredo Pimenta, pp.
116-136
MORAES, Maria Adelaide Pereira de, 1981 – “Gonçalo Lopez: mestre de pedraria”, in 1.º Colóquio
Galaico-Minhoto, Actas, vol. 1. Ponte de Lima: Associação Galaico-Minhota, pp. 419-450.
MORAES, Maria Adelaide Pereira de, 1990 – “Velhas Casas XI. A do Arco, na rua de Santa
Maria, em Guimarães”, in Boletim de Trabalhos Históricos, n.º 41. Guimarães: Arquivo Municipal
Alfredo Pimenta - Câmara Municipal de Guimarães, pp. 123-299.
OLIVEIRA, António José de, 2004-2005 – “Elementos para a história do Convento da Costa:
artistas e obras (1598-1784)”. Poligrafia, n.º 11-12. Arouca: Centro de Estudos D. Domingos
de Pinho Brandão, pp. 87-134.
OLIVEIRA, António José de, 2005 – “A actividade de entalhadores, douradores e pintores do
Entre-Douro-e-Minho em Guimarães (1572-1798)”, in VII Colóquio Luso-Brasileiro de História
de Arte: artistas e artífices e a sua mobilidade no Mundo de Expressão Portuguesa, Actas. Porto:
Departamento de Ciências e Técnicas do Património da Faculdade de Letras da Universidade
do Porto, pp. 69-91.
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sobre a Diocese do Porto: Tempos e Lugares de Memória, homenagem a D. Domingos de Pinho
Brandão, Actas, vol.1. Arouca, Porto: Centro de Estudos D. Domingos de Pinho Brandão,
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Departamento de Ciências e Técnicas do
Património, Universidade Católica Portuguesa, pp. 445-463.
ROCHA, Manuel Joaquim Moreira da, 1992 – “Pedreiros Galegos no noroeste português no século
XVIII”, in VII Simpósio Hispano-Português de História del Arte. Las relaciones artísticas entre
España y Portugal: artistas, mecenas y viajeros. Actas. Cáceres, Olivença, pp. 143-155.
SANTOS, Manuela de Alcântara, 1995 – Órgãos de tubos em Guimarães. Guimarães: Museu de
Alberto Sampaio.
SMITH, Robert C., 1972 – Frei José de Santo António Vilaça. Escultor Beneditino do século XVIII,
vol. 2. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Francisco Rebelo: um artista beirão
ao serviço da Diocese de Lamego
carla Sofia Ferreira QUEIRÓS

No intenso circuito da actividade artística que se verificou no espaço diocesano de


Lamego durante os séculos XVII e XVIII, salientamos o nome do mestre imaginário
e escultor Francisco Rebelo.
Segundo a documentação a que tivemos acesso, Francisco Rebelo seria natural
da região Lamego/Tarouca, possuindo umas casas na cidade de Lamego, na Rua de
São Francisco, onde residia por volta de 1713, mas ter-se-ia mudado para Tarouca,
em 1714 e, mais tarde, regressado a Lamego.
Julgamos ter sido responsável por um grande número de obras, sobretudo, durante
a primeira metade do século XVIII pela semelhança estrutural e decorativa que muitas
das composições retabulísticas evidenciam em comparação com aquelas para as quais
possuímos documentação notarial que nos prova a sua autoria.
Francisco Rebelo integra-se naquela que consideramos ser a segunda vaga de
mobilidade artística na Diocese de Lamego: no seio do próprio Bispado e que se
caracteriza por artistas originários das diversas zonas da Diocese, mas que salvo raras
excepções, se encarregam de arrematar obras num raio muito próximo da sua área
de residência1.
A primeira referência documental a Francisco Rebelo é-nos dada pela escritura de
obrigação de obra, segurança e fiança que fez o serralheiro António Luis da cidade de
Lamego com o Abade e restantes religiosos do Convento de Santa Maria de Salzedas,
em Tarouca, de 22 grades de ferro para as 22 janelas do novo claustro do Convento,
celebrada em Lamego a 30 de Junho de 1713 e onde o imaginário Francisco Rebelo
figura como testemunha e morador na Rua de São Francisco na cidade de Lamego2.
Porém, a sua primeira obra conhecida e documentada data de 1714, tal como
demonstra a escritura lavrada a 24 de Dezembro no lugar da Arguedeira, termo da
vila de Tarouca, entre o Reverendo Reitor da Colegiada de São Pedro, Manuel de
Savedra Teixeira, o Juíz da igreja, Nicolau de Sequeira Soeiro e o mestre imaginário
1 QuEIRÓS, 2006: 150 (vol. I).
2 A.D.V., Livro de Notas de Lamego, n.º 398/87, fls. 10v-12. CoSTA, 1986: 355-356; CoSTA, 1992: 158; ALVES,
2001: 9.
112 Carla Sofia Ferreira Queirós

Francisco Rebelo, já morador em Tarouca, para a execução da obra do retábulo,


tribuna, armação e forro de painéis da capela-mor da Igreja matriz de São Pedro de
Tarouca3, conforme a planta e rascunhos e a delicadeza e primor da arte com que se
achava feita a da Igreja de São Martinho de Mouros, em Resende pella quoal se tirou
com todas as cartellas florois e talhas que na mesma planta e obra se acham, pelo preço
de 300.000 réis e dá-la por acabada até ao dia de Cinzas de 1716. Não cumprindo o
estipulado, uma das cláusulas do contrato menciona que o dito mestre teria de dar
de garantia as casas que possuía na Rua de São Francisco, em Lamego.
Ficámos, assim, a saber que de 1713 a 1714, Francisco Rebelo teria morado em
Lamego, mas que a partir do momento em que assume o contrato para esta obra na
Igreja matriz de Tarouca, a sua residência mudou, embora conservasse as suas casas
na sede do Bispado.
Muito embora, Vergílio Correia faça menção a um frontal e a uma escada que
Francisco Rebelo, carpinteiro, teria feito em 1716 para a Santa Casa da Misericórdia
de Tarouca, como consta num dos livros de contas da mesa4, até hoje não constatamos
a existência do livro em causa.
Em 3 de Maio de 1718, o mestre imaginário Francisco Rebelo, morador em Tarouca
e de parceria com o mestre imaginário Manuel Ribeiro da Rua dos Fornos da cidade
de Lamego contrata com a Confraria de Nossa Senhora da Esperança, por escritura
lavrada em Lamego, a obra dos altares colaterais, frontais e arco cruzeiro da Capela de
Nossa Senhora da Esperança, em Lamego, pelo preço de 120.000 réis e que nam se lhe
faltando aos ditos pagamentos elles ditos mestres se obrigavão a nam abrirem mão da dita obra
e a darem feita e acabada the o fim do mês de Janeiro que vem de setecentos e dezanove5.
Em 5 de Junho de 1721, no lugar da Arguedeira, termo de Tarouca, o mestre
imaginário Francisco Rebelo, morador em Tarouca, contrata com o Reverendo
Padre Domingos de Carvalho, pároco de Vila Seca, a obra dos retábulos colaterais e
frontispícios da Igreja matriz do Espírito Santo de Vila Seca, em Armamar, pelo preço
de 210.000 réis, sendo que 90.000 réis seriam pagos pelos retábulos e os restantes
120.000 réis pela armação da igreja e forro de painéis. A obra teria de estar pronta
até ao Dia do Corpo de Deus de 17226.
Em 27 de Junho de 1732, o mestre imaginário e escultor Francisco Rebelo
morador, novamente, na Rua de São Francisco da cidade de Lamego contrata com o
Reverendo Encomendado da igreja, António de Mello Cabral, a obra de carpintaria
e imaginária e tudo o mais que for necessário para a Igreja matriz de São Pedro de
Queimada, em Armamar7.

3 A.D.V., Livro de Notas de Tarouca, n.º 46/15, fls. 81-82. COSTA, 1992: 158; ALVES, 2001: 9-10; QUEIRÓS, 2006:
229 (vol. I); QUEIRÓS, 2006: 417 (vol. II).
4 CORREIA, 1923: 62; ALVES, 2001: 10.
5 A.D.V., Livro de Notas de Lamego, n.º 97/4, fls. 58v-59; ALVES, 2001: 9-11; QUEIRÓS, 2002: 100, 136, 241-243
e 711-713; QUEIRÓS, 2006: 229 (vol. I).
6 A.D.V., Livro de Notas de Tarouca, n.º 47/16, fls. 9-10v; COSTA, 1992: 254-255; ALVES, 2001: 10-12; QUEIRÓS,
2006: 230 (vol. I); QUEIRÓS, 2006: 86-87 (vol. II).
7 A.D.V., Livro de Notas de Lamego, n.º 102/9, fls. 24v-25v; COSTA, 1986: 341; ALVES, 2001: 10-12; QUEIRÓS,
2006: 230 (vol. I); QUEIRÓS, 2006: 78-79 (vol. II).
Francisco Rebelo: um artista beirão ao serviço da Diocese de Lamego 113

Embora o contrato notarial não explicite a obra em questão, o elevado preço


pago para a execução da obra desta igreja, 450.000 réis8, faz-nos crer que inclua a
execução dos retábulos desta igreja.
Porém, o desaparecimento dos altares colaterais e, muito provavelmente, do arco
cruzeiro, assim como a pouca semelhança que o retábulo-mor desta igreja evidencia
com as restantes obras documentadas e aquelas por nós atribuídas coloca-nos algumas
dúvidas. Se tivermos em conta a obra do retábulo-mor da Igreja matriz de Queimada
verificamos que esta estrutura evidencia uma planta côncava e a tribuna uma planta plana.
os intercolúnios são lavrados e assumem um perfil rectangular, exibindo baldaquinos
com a parte frontal terminando em bico. A introdução destes baldaquinos é feita de
uma forma perspectivada, o que se reflecte na disposição da predela em formato angular.
Se a sua autoria se confirmar, poderemos dizer que com esta obra de 1732, altura
que também regressa à Rua de São Francisco, em Lamego, para residir, Francisco Rebelo
é um homem que trilha a estética do barroco nacional, mas introduz alguns elementos
estruturais e decorativos que o colocam no desabrochar da gramática do barroco joanino.
outra dúvida que se nos coloca é se terá sido Francisco Rebelo, o responsável pelo
tecto de caixotões. A talha dos frisos, alguns elementos decorativos como os florões que
rematam o cruzamento dos painéis, assim como as molduras dos caixotões fazem-nos
lembrar os tectos da capela-mor da igreja matriz de Tarouca e da capela-mor e corpo da
igreja matriz de Vila Seca, assim como os tectos das capelas-mores das igrejas matrizes
de São Martinho de Mouros, Vilar e Freixinho, obras atribuídas, o que nos permite
arriscar, de igual forma, a atribuição ao mesmo mestre imaginário de todos os tectos.

8 Alexandre Alves refere que a obra teria sido arrematada em preço de Quarenta e cinco mil réis, o que de facto não
se verificou. ALVES, 2001: 12.
114 Carla Sofia Ferreira Queirós

Por outro lado, e muito embora desconheçamos o contrato notarial de execução


da obra do retábulo-mor da Igreja matriz de São Martinho de Mouros, em Resende,
a escritura de obra do retábulo de Tarouca permite-nos atribuir ao mestre Francisco
Rebelo, como sendo da sua autoria, a execução do retábulo de São Martinho,
certamente, realizada cerca de 1714.
As semelhanças que exibem ao nível estrutural e da gramática decorativa são
por demais evidentes.
Estas afinidades levam-nos, igualmente, a atribuir ao mesmo mestre a execução
do retábulo-mor da igreja matriz de São Bartolomeu de Vilar, em Moimenta da Beira
e do retábulo-mor da igreja matriz de São Miguel de Freixinho, em Sernancelhe.
Todos os retábulos-mores documentados e atribuídos a Francisco Rebelo exibem
uma planta da estrutura côncava e uma planta da tribuna côncava com cúpula.
O número de colunas torsas varia entre quatro e seis, às quais correspondem
arquivoltas torsas no remate. Os intercolúnios acompanham a concavidade da estrutura.
No que toca aos remates dos mesmos retábulos-mores, podemos dizer que se
caracterizam pelo emprego de arquivoltas torsas intercaladas por uma arquivolta
plana, ricamente decorada, adoptando uma configuração côncava e planimétrica, já
que a plana acompanha a concavidade do intercolúnio.
Na concepção dos seus remates, Francisco Rebelo utiliza de forma exímia as
arquivoltas planas que começam a assumir um papel muito importante e que constitui
uma das características dos remates dos retábulos da época nacional da Diocese
de Lamego. Nestas estruturas, as aduelas adoptam um duplo papel: o de unir as
diversas arquivoltas e o de seccionar os espaços entre elas, recebendo a maior parte
da decoração e que dão origem a painéis modulares.
Tendo por base a obra do retábulo-mor da igreja matriz de Tarouca, a semelhança
evidenciada pelos tronos e sacrários das obras que pensamos terem saído das mãos
de Francisco Rebelo, é uma vez mais elucidativa e comprovativa da sua intensa
actividade como mestre entalhador e responsável por estas obras.
Os tronos apresentam uma configuração hexagonal e uma decoração, essencialmente,
preenchida por enormes folhas de acanto e cabeças aladas e na folhagem que decora
os ângulos dos degraus são visíveis as grossas nervuras dos acantos.
No que toca aos sacrários, apresentam a forma original em formato de meia-lua ou
barco dada pela disposição dos enormes enrolamentos de acantos que se expandem
a quase toda a largura da banqueta. Na gramática decorativa empregue no remate
das portas, normalmente, Francisco Rebelo varia entre as fénices afrontadas, meninos
músicos e dois anjos ou dois meninos que seguram uma coroa.
Relativamente aos embasamentos destas estruturas retabulísticas, podemos inferir
que todos registam um pormenor característico do mestre Francisco Rebelo: os
atlantes são, normalmente, figuras femininas representadas como que emergindo de
bolbosas folhas de acanto e seminuas, aparentando um cariz exótico e que suportam
o peso de toda a composição.
Francisco Rebelo: um artista beirão ao serviço da Diocese de Lamego 115

Quanto aos arcos cruzeiros e respectivos retábulos colaterais constatamos que, à


excepção feita para a obra documentada da Igreja matriz de Vila Seca, em Armamar,
também o arco cruzeiro e retábulos colaterais da Igreja matriz de Freixinho, em
Sernancelhe, se podem atribuir ao mesmo mestre pela semelhança que evidenciam
ao nível da estrutura: de planta plana com duas colunas torsas, os retábulos colaterais
inserem-se no arco cruzeiro, sendo as arquivoltas deste mesmo arco, o seu remate.
Os intercolúnios são de formato rectangular, pintado. As arquivoltas torsas (exterior
e interior) e a plana (intermédia) exibem uma grande planimetria que advém da
própria configuração das ilhargas dos retábulos colaterais.
Não mencionámos, todavia, os retábulos colaterais que, na realidade, são laterais
da Capela de Nossa Senhora da Esperança, em Lamego, uma vez que ao tratar-se de
uma obra de parceria, pensámos terem sido executados pelo seu parceiro, o mestre
imaginário Manuel Ribeiro, já que não encontrámos grandes similitudes com o que
Francisco Rebelo fazia, excepto no entalhe dos gordos acantos. O mesmo não se
aplica ao arco cruzeiro que evidencia os seus traços característicos.
Igualmente, o facto, deste artista ser tratado por mestre, desde 1714, faz-nos crer
que se encontraria em actividade há já algum tempo e que teria tido uma oficina a
funcionar.
Até à data, exceptuando a atribuição de Gonçalves da Costa como sendo da
autoria de Francisco Rebelo os retábulos do Convento de São Francisco, em Lamego9,
não descobrimos prova documental de tal ocorrência, mantendo por isso a sua
atribuição10. Porém, a sua residência na sede do Bispado e tão próximo do Convento,
é uma possibilidade a ter conta.
Arriscamos, por isso, a atribuição da data de inícios de 1700 às obras que Gon-
çalves da Costa imputa a Francisco Rebelo porque sabemos que foi Dom António de
Vasconcelos e Sousa, bispo de Lamego entre 1693-1706 que continuou e finalizou a
nova igreja do Convento de São Francisco11, uma vez que a antiga se teria arruinado,
obra esta começada por Dom Frei Luís da Silva Teles que teria tomado posse da
diocese em 1677, mas que, entretanto, fora chamado para comandar o arcebispado de
Évora. Estando já a comandar os desígnios da Diocese de Coimbra, Dom António de
Vasconcelos e Sousa ter-se-ia deslocado a Lamego com toda a pompa, em 1711, para
dizer a primeira missa na igreja nova do Convento, tal como o provam as Memórias
Paroquiais de 175812.

9 QUEIRÓS, 2002: 121.


10 QUEIRÓS, 2006: 230 (vol. I).
11 QUEIRÓS, 2002: 73-74, 89-90 e 212-214; QUEIRÓS, 2006: 125 (vol. I).
12 COSTA, 1984: 566-568; QUEIRÓS, 2002: 593-594.
116 Carla Sofia Ferreira Queirós

Conclusão
o que pretendemos evidenciar aqui é, acima de tudo, a importância da talha
nacional e o seu peso incontestável no panorama retabulístico da Diocese de Lamego,
testemunhando uma vez mais que o Bispado, no que toca aos artistas ligados ao entalhe
da madeira, sobretudo, no início do século XVIII, dispunha de bons entalhadores,
imaginários e escultores, não necessitando de recorrer aos já conceituados mestres dos
grandes centros urbanos como Porto e Braga, uma vez que possuía artistas naturais
da Diocese.
Relativamente aos encomendadores, inferimos que estes se encontravam, inevi-
tavelmente, ligados à Igreja: Colegiadas, Confrarias e párocos locais.
No que respeita ao mestre imaginário e escultor Francisco Rebelo, procurámos
explicar o circuito das suas obras documentadas e atribuídas, por semelhanças
estruturais e decorativas, pretendendo demonstrar que a sua área de influência se
teria estendido desde o arciprestado de Resende, passando pelos arciprestados de
Lamego, Armamar, Tarouca e Moimenta da Beira até ao de Sernancelhe.
Francisco Rebelo: um artista beirão ao serviço da Diocese de Lamego 117

Obras documentadas

Figura n.º 1
Tarouca. Igreja de São Pedro,
Tarouca.
Retábulo-mor

Figura n.º 2
Lamego. Capela de Nossa Senhora
da Esperança, Lamego (Almacave).
Arco cruzeiro e retábulos laterais

Figura n.º 3
Armamar. Igreja do Espírito Santo,
Vila Seca.
Arco cruzeiro e retábulos colaterais
118 Carla Sofia Ferreira Queirós

Figura n.º 4
Armamar.
Igreja de São Pedro, Queimada.
Retábulo-mor

Figura n.º 5
Armamar.
Igreja de São Pedro, Queimada.
Pormenor do tecto da capela-mor
Francisco Rebelo: um artista beirão ao serviço da Diocese de Lamego 119

Obras atribuídas13

13 Legenda das Figuras: na linha superior, da esquerda para a direita (Retábulo-mor da Igreja de São Martinho, São
Martinho de Mouros, Resende; Retábulo-mor da Igreja de São Bartolomeu, Vilar, Moimenta da Beira; Retábulo-mor
da Igreja de São Miguel, Freixinho, Sernancelhe); na linha do meio (Arco cruzeiro e retábulos colaterais da Igreja
de São Miguel, Freixinho, Sernancelhe); na linha inferior, da esquerda para a direita (Retábulo-mor e retábulos
das capelas laterais do lado do Evangelho da Igreja do Convento de São Francisco, Lamego).
120 Carla Sofia Ferreira Queirós

Remates

Tronos e Sacrários
Francisco Rebelo: um artista beirão ao serviço da Diocese de Lamego 121

Embasamentos

Fontes e bibliografia

Fontes
ARQuIVo Distrital de Viseu – Fundo Notarial, Livro de Notas de Lamego, n.º 97/4, fls. 58v-59;
n.º 102/9, fls. 24v-25v; n.º 398/87, fls. 10v-12.
ARQuIVo Distrital de Viseu – Fundo Notarial, Livro de Notas de Tarouca, n.º 46/15, fls. 81-82;
n.º 47/16, fls. 9-10v

Bibliografia
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Governo Civil do Distrito de Viseu.
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vol. XI. Coimbra: Imprensa da universidade.
CoSTA, M. Gonçalves da, 1984 – História do Bispado e cidade de Lamego, Renascimento II, vol.
IV. Braga: oficinas Gráficas de Barbosa & Xavier.
CoSTA, M. Gonçalves da, 1986 – História do Bispado e cidade de Lamego, Barroco I, vol. V. Braga:
oficinas Gráficas de Barbosa & Xavier.
CoSTA, M. Gonçalves da, 1992 – História do Bispado e cidade de Lamego, Barroco II, vol. VI.
Braga: oficinas Gráficas de Barbosa & Xavier.
QuEIRÓS, Carla Sofia Ferreira, 2002 – Os Retábulos da cidade de Lamego e o seu contributo para a
formação de uma escola regional. 1680-1780. Lamego: Câmara Municipal de Lamego.
QuEIRÓS, Carla Sofia Ferreira, 2006 – A importância da sede do Bispado de Lamego na difusão da
estética retabular: tipologias e gramática decorativa nos séculos XVII-XVIII. Porto: Faculdade de
Letras da universidade do Porto, 3 vols. (Tese de Doutoramento, policopiada).
O complexo caminho: da encomenda à obra realizada.
Uma casa nobre no Rio de Janeiro
Cybele Vidal N. Fernandes

A encomenda
O tema desta comunicação é um projeto de importância relevante, uma casa nobre
na região de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, mandada construir pelo Imperador D.
Pedro I. A obra nasceu da necessidade de dar morada digna a uma dama da nobreza
paulista que havia assumido uma posição extraordinária no cenário da Corte do Rio
de Janeiro, a Marquesa de Santos1. Como deveria ser projetado tal edifício, destinado
a utilização tão incomum, na medida em que, circunstancialmente, a residência
particular seria também o local onde o Imperador reuniria inúmeras autoridades de
Estado e representantes da nobreza?
Para tão significativo projeto, importa conhecer os artistas comprometidos com
a construção da residência: Pierre Joseph Pézerat2, responsável pelo traçado do
edifício; o construtor Pedro Alexandre Cravoé, pela condução da obra, os irmãos
Marc e Zepherin Ferrez, e Francisco Pedro do Amaral, pela realização do programa
decorativo. Para analisar o resultado final desse projeto, analisemos a participação
de cada um desses personagens na obra e no contexto social e artístico da Corte do
Rio de Janeiro.

1 Domitila de Castro Canto e Melo nasceu em dezembro de 1797, em Santos, São Paulo, em uma família abastada.
Casou-se em 1815 com o Felício Pinto Coelho de Mendonça e teve três filhos. Separou-se em 1819 (oficialmente
em 25/05/1824). Conheceu D. Pedro em 1822 e veio para o Rio em 1823, quando se tornou Primeira Dama da
Imperatriz Leopoldina (1825) e favorita do Imperador, com quem teve quatro filhos. (Isabel Maria, 1824; Maria
Isabel e Pedro, que faleceram após o nascimento, e Maria Isabel, em 1830).
2 Joseph-Pierre Pézerat nasceu em fevereiro de 1801 em Comuna de Champvent e estudou na Escola Politécnica de

Paris (1821-1825); com o apoio de Vaudoyer ingressou na Escola Especial de Arquitetura de Paris, uma sessão da
École des Beaux-Arts. Viveu na França, no Brasil (onde trabalhou no Rio de Janeiro e em outras Províncias, entre
1825 e 1831, tendo assumido o cargo de Arquiteto particular do Imperador). Esteve ainda na Argélia, África (até
1840) e a maior parte da vida em Portugal (1840-1871) onde morreu. Lecionou na Escola Politécnica de Lisboa e
tornou-se Engenheiro Chefe da Câmara Municipal de Lisboa .Deixou em Portugal a maior parte das suas obras.
124 Cybele Vidal N. Fernandes

Sobre o risco e a construção da residência


Há muitas dúvidas sobre a origem da residência, que remonta ao ano de 1826,
quando foram adquiridas, em nome de D. Domitila de Castro Canto e Melo, algumas
propriedades vizinhas (talvez quatro) no bairro de São Cristóvão3. Um dos edifícios
em especial (não se sabe exatamente qual ou quais deles foram escolhidos) sofreu
grande transformação e deu origem ao prédio traçado de Pézerat, dentro do gosto
neoclássico. As demais propriedades foram aproveitadas para acomodar cavalariças
e empregados4. O certo é que o edifício resultou, na maior parte, da intervenção do
arquiteto, mas a análise da construção indica que a residência é, pelo menos, de dois
momentos diferentes, havendo indícios que sinalizam para escolhas diversas, como por
exemplo: a parte de baixo do prédio é de pedra e a superior de estuque; foi empregado
o arco pleno na rotunda e o arco abatido no corredor; na parte de baixo o pé direito
é bem menor que o do andar superior. Quanto às técnicas, observa-se que Pézerat
optou por soluções bem modernas e, uma prova disso, é a utilização de “cordas de
ferro” na amarração do telhado da construção5. Seus serviços foram contratados pelo
governo brasileiro em 1825, ocasião em que lhe foi recomendado estudar melhorias
para o sistema de distribuição de águas da cidade do Rio de Janeiro, possivelmente
aplicando técnicas inglesas6.
A sua atuação no Brasil fica, de certo modo, comprometida quanto à análise
das obras em que atuou porque, na verdade, o arquiteto não teve oportunidade de
riscar edifícios novos, voltados para uma determinada finalidade. O que ocorreu,
por força das circunstâncias na época, foi a sua intervenção em diversos edifícios,
visando sua reforma e modernização. O traço marcante dos seus projetos era a
limpeza de linhas e a clareza das formas. Nesse sentido, coube a ele dar o aspecto

3 Interessava ao Imperador que Domitila de Castro Canto e Melo, sua favorita, estabelecesse residência nas
proximidades do Palácio da Quinta da Boa Vista. Sua morada deveria ser de bom gosto e de bom tamanho, para
servir ainda às necessidades ocasionais de Estado. A Marquesa ocupou um lugar de relevância na vida da Corte,
naquela ocasião e, da sua relação com o Imperador, nasceu uma filha, Isabel Maria de Alcântara, batizada no dia
31/05/1824 na Matriz de São Francisco Xavier do Engenho Velho, como filha de pais incógnitos. Posteriormente,
o registro de batismo foi modificado com o nome dos verdadeiros pais e o Imperador reconheceu publicamente a
filha. N. A.
4 Há incertezas sobre o número de propriedades adquiridas para a Marquesa de Santos e a sua destinação. No

entanto, por documentos referentes à venda ao Imperador D. Pedro I, das suas propriedades no Rio de Janeiro,
podemos tirar algumas conclusões. No Livro 169 de Escrituras Públicas do Cartório do Tabelião Dr. Victorio da
Costa, no Rio de Janeiro, em 13/08/1829, há os registros da compra das seguintes propriedades: a casa grande em
que habita a Marquesa com sua chácara, senzalas. cocheiras, cavalherias; a chácara e casa que foi de Theodoro Ferreira
de Aguiar, com todos os seus pertences próximos e separados; as casas amarelas que o primeiro passou à Marquesa, com
sua chácara. A casa e chácara que foi de Francisco Joaquim de Lima, e todas as propriedades que estão nos ditos terrenos
aforados e pertencentes a dita Marquesa, conforme respectivos títulos. Mais adiante há ainda o registro de mais uma
propriedade pertencente aos pais da Marquesa, José de Castro Canto e Melo e sua mulher, D. Francisca Pinto
Coelho de Mendonça, igualmente comprada pelo Imperador, situada na Estrada da Segunda Travessa do Engenho
Velho, defronte da chácara camada Joana.
5 As informações técnicas foram conseguidas com o professor o arquiteto da UFRJ Olynio F, em 2008.
6 Os seus conhecimentos eram muito avançados nesse sentido. Prova disso é a obra referente à conclusão do aqueduto

de Belas, realizada mais tarde.


O complexo caminho: da encomenda à obra realizada. Uma casa nobre no Rio de Janeiro 125

final ao Palácio da Quinta da Boa Vista7, eliminando, das intervenções anteriores, os


acréscimos neogóticos aplicados pelo arquiteto inglês John Johnston (1821). Pézerat
acrescentou ao edifício um corpo neoclássico à frente do antigo (1826-1830) dando
mais elegância ao mesmo, como convinha a uma morada nobre, interferindo também
no exterior da residência8.
Realizou ainda reformas na Fazenda de Santa Cruz, onde criou uma ala nova e
recuperou a antiga capela. Na Academia Militar do Rio de Janeiro (1826) futura Escola
Politécnica, aproveitou as fundações para a catedral, traçada ainda no século XVIII,
e criou uma fachada clássica em dois níveis, templo central com frontão triangular,
com quatro pilastras colossais, distribuindo as visadas de direita e esquerda9. As obras
não foram concluídas, tendo Pézerat deixado o Brasil em 1831.
No projeto da Casa da Marquesa de Santos, casa nobre de periferia no Rio de
Janeiro, Pézerat adotou uma solução que se aproxima do gosto dos pequenos palacetes
portugueses. O aspecto geral do edifício é muito elegante, resultante da associação de
equilíbrio, adequação dos elementos estruturais e da escolha exigente dos materiais
– mármores, granitos, madeiras de lei. A solução para a fachada remete à que havia
realizado no edifício da Academia Militar: um bloco compacto, dividido em dois
níveis, onde grossas pilastras fazem a marcação vertical acentuada, na platibanda,
pelo arremate com quatro vasos em mármore. As várias janelas, em cantaria, fazem
a marcação horizontal. As paredes externas são brancas e contrastam com a pedra
de cantaria das aberturas. As laterais são ritmadas com frontão central e tímpano,
decorado com as figuras de Apolo e Minerva.
Na fachada posterior a parte central da construção avança, em planta circular,
formando um recinto que se destaca do corpo do edifício. Esse corpo avançado tem
três aberturas em arco pleno, na parte inferior e três janelas-balcão, com guarda-corpo
em ferro10, na parte superior. O acesso, do segundo piso da rotunda ao jardim, é feito
por dois lances de escadas, igualmente circundadas por guarda-corpo em ferro, que se
encurvam num movimento em ferradura. A existência desse corpo circular surpreende
o visitante, que ainda guarda na mente o tratamento planimétrico da fachada principal
do edifício. Essa solução é muito elegante, e faz uma ligação agradável, do interior
com o exterior da residência, num original arranjo espacial.
O tratamento exterior se equilibra perfeitamente com as soluções internas do
edifício. Para conferir ao mesmo o aspecto atual, Pézerat elevou o pé direito do piso
superior; ordenou o espaço interno do piso inferior em duas alas, com os salões Príncipe
7 A primitiva residência pertencera aos Jesuítas e depois a Elias Antônio Lopes, que a doou ao governo português, na
chegada de D. João VI. A intervenção de Pézerat no edifício conferiu ao mesmo as feições aproximadas do Palácio
da Ajuda, Lisboa, de traçado claramente Neoclássico. No Palácio da Quinta, Pézerat ainda trabalhou na fachada
e nos jardins.
8 Ao retornar a Portugal Pézerat assumiu a responsabilidade das obras públicas relacionadas com a infra-estrutura

da cidade. Observa-se o gosto do artista em alguns exemplos: em 1859 projetou em Lisboa a urbanização do norte
do passeio Público, prolongou o jardim e criou uma grande praça. Em 1853 projetou também o chafariz do Loreto.
9 Esse edifício sofreu grande reforma no final do século XIX, ficando com fachada em três níveis, o templo elevado

sobre um átrio aberto em três arcos com pedras em bossagens, janelas em vergas retas e divisões verticais bem
marcadas.
10 Os trabalhos de serralheria seriam da oficina de um certo serralheiro de nome Enochi.
126 Cybele Vidal N. Fernandes

de Joinvile e a Sala Luso-Brasileira, unidas por um vestíbulo revestido de mármore


branco e granito negro, fechado por arquivoltas, que se abrem ao fundo para os dois
primeiros lances da escada.
Essa suntuosa escada de dois movimentos, iluminada por clarabóia, leva ao Salão
da Aurora, o primeiro a ser alcançado pelo visitante que se dirige ao andar superior
do palacete. Dentro da lógica funcional, considerando os cômodos principais, a planta
se distribui simetricamente, a partir do Salão da Aurora: à direita ficam o Salão da
Música, que se liga ao Salão da Águia; à esquerda o Salão dos Deuses, que leva ao
Salão da Flora. A linha de simetria da planta, seja no piso inferior, ou no superior, foi
muito bem sucedida em sua disposição, uma vez que o visitante se desloca dentro do
edifício com muita segurança, percebendo facilmente a distribuição interna que tanto
contempla a parte social da residência, quanto preserva a intimidade dos espaços,
de uso particular, da Marquesa e do Imperador.
Há ainda muito a ser estudado nesse exemplo, mas é clara a intenção de Pézerat
(que tornou-se Arquiteto Particular do Imperador, 12/10/1828) ao definir o traçado
básico da planta, a ordenação dos elementos estruturais, o equilíbrio das aberturas
e a relação muros versus espaços vazados. Chama ainda atenção o cuidado de não
sobrecarregar as fachadas com elementos escultóricos que, em lugar de fazer valer
a acentuação dos elementos de força ou de ordenação, viessem a se sobrepor, como
sobrecarga decorativa inadequada, ao sentido de pureza e sobriedade de linhas,
adotado no edifício. São, portanto, poucos os elementos decorativos de platibanda.
A utilização de materiais novos, como o ferro empregado, nas aberturas e escadas,
não sobrecarregou os efeitos de contraste dos materiais.
Internamente, segundo as regras clássicas, o edifício deve ter espaços racionalmente
distribuídos, ser bem claro e ventilado. Nesse sentido, os cômodos foram interligados
por escadas, corredores, e localizados hierarquicamente. Foram ainda bem contemplados
com as portas-balcão e janelas, que oferecem ventilação suficiente para o conforto
interior, e luz natural para a percepção da decoração aplicada.
Quem era o construtor responsável pela realização dos planos de Pézerat? Era
Pedro Alexandre Cravoé, um personagem do qual se conhece muito pouco, que
chegou ao Rio de Janeiro em 1824. Era português nascido em Lisboa (cerca de
1800) filho de franceses, e com formação pouco esclarecida. Em carta aos membros
da Academia Imperial, no Rio de Janeiro em 1828, afirmava que, entre 1820 e
1821, em Lisboa, redigira um jornal artístico e outro político, e que fora membro da
Sociedade Promotora das Belas Artes, para a qual montara o escritório da comissão
encarregada de erguer a Estátua da Constituição, na Praça do Rocio. Afirmava, ainda,
que aprendera o ofício de marceneiro mas era, na verdade, um marceneiro-arquiteto,
porque construíra uma ponte sobre o rio Douro, no Porto, que os senhores arquitetos
não haviam conseguido fazer.
Cravoé precisava esclarecer questões sobre sua formação profissional, e fazer
referências a atividades de certa relevância não só quanto ao conhecimento técnico,
mas também quanto às boas relações e amadurecimento cultural. Nesse ponto, é
preciso não desconsiderar a tradição portuguesa, na qual os construtores (assim
O complexo caminho: da encomenda à obra realizada. Uma casa nobre no Rio de Janeiro 127

como escultores e pintores) comprovaram, por várias vezes, seu conhecimento como
riscadores, capacidade que adquiriram na prática e não numa escola especializada.
Tal tradição era comum também ao Brasil, haja vista a atividade e as realizações de
vários mestres-de-obras ativos na cidade do Rio de Janeiro, na segunda metade do
século XVIII, dentre os quais destacamos: Antônio José da Costa Barbosa, armações
dos teatros e mausoléus nos ofícios de falecimento de D. José, 1777; Antônio Gomes
Faria, ponte sobre o rio Anil, 1791; Antônio Ramos Viana, ponte de São Cristóvão
e Casa da Pólvora, 1792; Roque de Azevedo Lisboa, ponte sobre o rio Faria, 1789,
dentre outros11. Nesse caso, a situação de Cravoé seria comum a outros arquitetos
amadores, que muitas vezes seguiam modelos anteriores, em época em que o uso do
termo arquiteto não tinha o sentido que tem hoje.
Cravoé, no entanto, não conseguiu firmar-se como profissional bem conceituado
no cenário artístico do Rio de Janeiro. Apesar de ser reconhecido, pelo Imperador,
como capacitado para o cargo que lhe fora conferido, duvidava-se da sua formação e
especialização na área de arquitetura e construção. Era especialmente mal visto pelos
artistas franceses, uma vez que, em várias ocasiões, por interesses políticos, assumira
posição ao lado do grupo de portugueses formado pelo padre Rafael Soyé (nomeado
secretário da Academia) e de Henrique José da Silva (seu diretor). Henrique José
da Silva, Soyé e Cravoé, estavam, na verdade, protegidos pelo novo Ministro do
Império, José Feliciano Fernandes Pinheiro, Visconde de São Leopoldo (que havia
sido discípulo de Soyé em Coimbra). O grupo português desejava assumir a direção
da Academia Imperial, cujo projeto era inteiramente dos artistas franceses, e se
opôs politicamente aos mesmos12. Há vários episódios que envolvem Cravoé nas
contendas referentes à finalização das obras do prédio da Academia Imperial, no Rio
de Janeiro. Nesse sentido, Afonso Taunay fez a seguinte observação sobre o artista:
recém imigrado, antigo marceneiro e mestre de obras autodidata, nomeado, não se sabe
como, arquiteto do governo13.
Os diversos arranjos políticos acabaram por premiar Cravoé, que conseguiu ser
nomeado para várias obras na cidade14, sendo duas de grande importância, não só para
os planos do governo, como por terem sido traçadas por dois renomados arquitetos
franceses que estavam a serviço da Corte. Veio a tornar-se Inspetor do Edifício da
Academia Imperial das Belas Artes, traçado por Grandjean de Montigny, e retomou as
obras do prédio, que estavam paralisadas por falta de verbas. Em 07/01/1825 Cravoé

11 Dentre outros, conferir: CAVALCANTI, 2004:319.


12 Sobre Pedro Cravoé escreveu Porto-Alegre em Apontamentos sobre as Belas Artes no Rio de Janeiro, publicados
em 1839 no periódico Belas Artes: Por fatalidade chegaram ao Brasil dois homens maus e um bom.Henrique José da
Silva, discípulo ingrato de Pedro Alexandrino, mais hábil na intriga que no desenho e na pintura, e o célebre Pedro Cravoé,
que de mercador de móveis se ergueu em arquiteto, ao passar a linha equinocial. O santeiro João Joaquim Alão, filho do
Porto, discípulo de Vieira Portuense, era um bom homem.
13 TAUNAY, 1956:238.
14 Cravoé foi nomeado Arquiteto da Câmara Municipal, Fiscal das Obras da Academia Imperial, Arquiteto da Casa

Imperial (de 07/01/1825 a 16/03/1830). Outras obras suas: completou a fachada da Capela Imperial (1825/26)
substituindo o frontispício em madeira por elegante frontão em pedra, demolido em 1922; implantou um plano de
numeração das casas do Rio de Janeiro (aprovado em 21/05/1824 pelo Ministério da Justiça). Quando D. Pedro I
renunciou (07/04/1831) Cravoé retornou a Portugal, onde faleceu.
128 Cybele Vidal N. Fernandes

era também designado Arquiteto da Casa Imperial e certamente, por essa prerrogativa,
foi escolhido como construtor do palacete da Marquesa de Santos, traçado por Pézerat
que, como o prédio da Academia, era de gosto neoclássico.
É curioso que, considerando a difícil relação entre mestres franceses e portugueses,
após a inauguração da Academia, somente o arquiteto Grandjean de Montigny obteve
permissão para atuar como professor, como nos informa Debret: Quanto a Grandjean,
que o novo arquiteto português do governo contava afastar o mais rapidamente possível, tinha
ele, em virtude de sua especialidade, o privilégio de dar uma aula de duas horas apenas aos
alunos do diretor, que se destinavam à arquitetura15. Apesar de uma carga horária tão
pequena, aquela decisão sinalizava para o reconhecimento da necessidade premente
do ensino aprofundado de arquitetura no Brasil, porque a carência de profissionais
bem formados era extrema. Aproveitava-se, assim, as lições de um grande arquiteto
presente na Corte, voltado para a moderna estética neoclássica européia, capaz de
ensinar e desenvolver o gosto naquela área.
Voltando o foco para a participação de Cravoé nas obras do palacete da Marquesa
de Santos, entendemos que esta questão está para ser melhor estudada, a partir da
análise de documentação específica. Não pudemos avançar muito, mas acreditamos
que, em um processo construtivo, nem sempre o produto final corresponde, em
exatidão, ao primeiro traçado do arquiteto, isto é, que algumas intervenções por parte
do construtor ocorrem, por vários motivos, à revelia do arquiteto, durante o processo
construtivo. Esse não é um fato incomum, e as interferências podem ocorrer por
vários motivos, acentuando-se ainda mais se as obras se arrastarem por vários anos.
Esse não é o caso aqui analisado, uma vez que as obras se deram num período
razoavelmente curto, entre 1824 e 1827. No entanto, alguns fatores devem ser
considerados: o ambiente artístico da Corte no período, rivalidades entre os artistas
portugueses e franceses, problemas surgidos no decorrer da obra (considerando-se
que a mesma resultava do aproveitamento de parte de uma construção anterior,
naturalmente de características técnicas-construtivas ligadas à tradições portuguesas
e às práticas construtivas coloniais).
Sobre tal possibilidade, há um fato citado por Cravoé, na intenção de provar a sua
capacidade profissional. Como Inspetor das Obras da Academia Imperial, afirmava que,
ao assumir as obras do edifício, fizera modificações visando melhorar a iluminação
das salas de aula. Para comprovar tal fato era preciso comparar as salas de Desenho,
obra sua, com a de Arquitetura, obra do arquiteto Grandjean: Era a arquitetura a arte
de edificar e o Sr. Grandjean só construíra edifícios que desabavam, como a bolsa, ou nos
quais a chuva penetrava de todos os lados, como em casa de Sr. José de Oliveira Barbosa...
Que prova maior não haveria de quanto não passava de mero projetista de arquitetura?.
Percebe-se aqui que a discussão travada girava em torno da formação e da experiência
profissional dos dois envolvidos: um arquiteto de formação erudita, mais teórico que
prático, e um construtor, cuja habilidade e domínio resultaram da atividade prática.

15 DEBRET, 1978a: 125.


O complexo caminho: da encomenda à obra realizada. Uma casa nobre no Rio de Janeiro 129

Sobre o programa decorativo e seus autores


Um edifício, para além da elegância das suas linhas estruturais, deve ser con-
siderado também na adequação e situação dos elementos escultóricos e pictóricos
aplicados, que se somam á sua estrutura, positiva ou negativamente. O esmero,
anunciado, desde a portaria do palacete, se intensifica no tratamento dos salões
superiores, onde se observa a combinação de painéis decorativos em escultura e
pintura, próprios a cada um dos salões. Isso se justifica porque o segundo pavimento
do prédio foi especialmente dedicado à vida social da residência. Tal fato, segundo a
tradição da arquitetura portuguesa, pode ser observado na fachada do prédio, onde a
importância do segundo nível é acentuada pela presença e ritmo das portas-balcão,
com guarda-corpo em ferro.
Os escultores responsáveis pela decoração exterior e interior, foram Marc e Zephe-
rin Ferrez (04/09/1788 – 31/03/1850 e 31/07/1797 – 22/07/1851, respectivamente)
artistas franceses nascidos em Saint-Laurent, França. Formados pela École des Beaux-
Arts, onde foram alunos de Felipe Lourenço Roland, mestre de David D´Angers, e
Nicolas Beauvallet, escultor, gravador e restaurador. Apesar de sua sólida formação,
não integravam o grupo dos artistas da Missão Francesa, mas foram aproveitados
para formar o corpo de professores da Academia. O decreto de 23/11/1820 traz o
registro dos seus nomes como Pensionários Substitutos do Governo, sendo entregue
a Marc Ferrez o ensino de Escultura (tornando-se professor permanente em 1837,
quando sucedeu o português Joaquim Alão) e a Zepherin Ferrez o ensino de Gravura
de Medalhas. Juntos realizaram inúmeras obras para o governo, como a decoração
em relevo da fachada do edifício da Academia Imperial, cabendo também a eles a
definição do sistema de ensino da estatuária no Brasil16.
No Palacete da Marquesa de Santos, a decoração em relevo se completa com
os ciclos de pintura, revestindo tetos e paredes. O recinto principal é o Salão dos
Deuses, onde se reuniam as autoridades e onde ocorriam inúmeras festas. O teto tem
ao centro um medalhão, onde Júpiter, senhor dos céus, aparece com seus atributos
(o cetro, a águia, os raios, os símbolos da Justiça, da Ordem, da Autoridade) possível
referência à grandeza do Imperador D. Pedro I. Abaixo está Plutão, deus do inferno; à
sua direita, Juno, esposa de Zeus, e Mercúrio, mensageiro dos deuses. Mais ao fundo,
Marte (Guerra), Vênus (o Amor e a Beleza) e Apolo (as Artes e a Luz) e em plano
recuado, Minerva e Netuno, Ceres e Vulcano. Aparecem ainda as três Graças (Aglaia,
Talia e Eufrosina) e as Três Horas (Eunomia, Dirce e Irene). Nos quatro medalhões
de esquina, os gêmeos Castor e Pólux, Ceres (Agricultura) Minerva (Sabedoria)
Andrômeda. Arrematando o conjunto, uma sanca com óvulos, dentículos, folhas de
acanto, contorna toda a sala, tendo ao centro representações femininas dos Quatro
Elementos (Ar, com manto esvoaçante) Água (com plantas aquáticas) Fogo (com

16 Informa Debret que o escultor Zepherin Ferrez, gravador de medalhas, cinzelou e fundiu em bronze uma estátua
de corpo inteiro de D. Pedro I, com dois pés e meio de altura. Foi enviada a Roma como modelo para cópia a ser
feita em mármore por um aluno de Canova para decorar a Biblioteca Imperial. Ver DEBRET, 1978a: 136.
130 Cybele Vidal N. Fernandes

as mãos sobre a pira) Terra (cingindo grinaldas de flores). O conjunto é trabalhado


em estuque dourado e policromado.
Esse tratamento em relevo decorativo se repete na sala seguinte: Aurora, Filha de
Titã e da Terra, irmã do Sol e da Lua, anuncia a chegada do dia. Segundo a lenda,
ao perder um filho chorou lágrimas abundantes e deu origem ao orvalho da manhã.
Com uma das mãos ela espalha uma chuva de rosas e expulsa a Noite e o Sono.
O próximo recinto é o Salão da Música, onde o tema central retrata um momento
da vida de Apolo, como protetor das Artes. Ao centro Euterpe, Deusa da Música,
toca sua harpa enquanto é observada por Apolo. Em torno das figuras centrais, alguns
cupidos tocam instrumentos variados (flauta, violino, lira, harpa). Seguem-se dois
painéis pintados: Apolo conduzindo o carro do Sol e Faetone conduzindo o carro do sol
também, mas o seu carro, de acordo com a narrativa mitológica, está desgovernado.
A sanca também combina relevo e pintura, nesse caso, cenas das Metamorfoses de
Ovídio (quatro sobre Apolo e Marsias, outras sobre os amores de Apolo).
Nas duas salas menores, que se seguem aos salões de esquina, a decoração é
adequada ao ambiente de uso particular, talvez o escritório do Imperador, o Salão da
Águia e do lado oposto, o Salão da Flora, toucador da Marquesa. O Salão da Águia
recebe esse nome por ter uma águia representada em relevo no centro do teto, e
pinturas em cenas mitológicas nas paredes e na pequena alcova, que fica ao lado.
O Salão da Flora, em posição simétrica, tem decoração em relevo mais simples. O
repertório utilizado na decoração de todas as salas permite perceber as relações
simbólicas estabelecidas com a pessoa do Imperador, da Marquesa e com Brasil, além
das alusões à função específica de cada sala. O cuidado em escolher dois escultores
de boa formação, ligados à estética neoclássica, assegurou a harmonia da decoração
aplicada com as linhas arquitetônicas da residência.
Resta considerar a decoração pictórica, que foi entregue a um artista brasileiro,
Francisco Pedro do Amaral17 pintor, arquiteto, cenógrafo, decorador, paisagista.
Amaral era pardo, não estudou na Europa, mas teve bons professores no Rio de
Janeiro. Iniciou-se com José Leandro de Carvalho, artista da chamada Escola Flu-
minense de Pintura, responsável por diversas obras importantes na cidade18. Por sete
anos freqüentou a Aula de Desenho e Figura, de Manoel Dias de Oliveira, artista
muito bem formado, que se aperfeiçoara em Portugal e em Roma, onde foi aluno de
Pompeu Girolamo Battoni, mestre da Academia de São Lucas de Roma. Estudou
cenografia com o pintor e cenógrafo português Manoel da Costa e com um cenógrafo
ou arquiteto italiano, do qual só se conhece o primeiro nome, Argêncio.
Posteriormente, Amaral matriculou-se nas aulas de do pintor francês Jean Baptiste
Debret, que o citou em seu livro Viagem pitoresca ao Brasil como um dos fundadores
da Escola Brasileira de Pintura: Os que mostraram maiores possibilidades foram Francisco

17 Uma boa fonte de referências sobre Francisco Pedro do Amaral é: PORTO-ALEGRE, 1856a: 375-378. Data de
nascimento incerta; morte estimada em 10/11/1830, sepultado na igreja do Hospício.
18 José Leandro fez vários retratos de D, Maria I e D. João VI, pintou cenários para o Teatro São João em 1813, fez o

douramento da Capela Real, para onde pintou ainda os doze apóstolos que ornamentam as colunas e um retrato
da Família Real para o altar-mor. Para o Mosteiro de São Bento pintou ainda diversos temas sacros.
O complexo caminho: da encomenda à obra realizada. Uma casa nobre no Rio de Janeiro 131

Pedro do Amaral, pintor e arquiteto, que decorou os palácios imperiais e executou os belos
afrescos da sala dos filósofos na Biblioteca Nacional, bem como os arabescos do Palácio de
D. Maria19. O pintor e futuro diretor da Academia, Manoel de Araújo Porto-Alegre,
foi um dos colegas de Amaral nas aulas de Debret.
Amaral desejou ser nomeado Professor Substituto da Aula Régia de Desenho e Figura;
não conseguiu, mas recebeu uma bolsa como Pensionário de Desenho e Pintura na
Academia Imperial das Belas Artes. Tornou-se Decorador da Casa Imperial e, como
tal, decorou salas do Palácio da Cidade e do Palácio da Quinta da Boa Vista, além de
várias casas nobres ( a exemplo da residência do Marquês de Inhambupe, no Campo
de Santana e de Plácido Antônio Pereira Abreu, no Campo dos Ciganos). Decorou
ainda, em 1828, as salas da Biblioteca Nacional (então localizada no Convento do
Carmo). Segundo depoimento de Moreira de Azevedo: Em 1828 sofreu a casa diversos
reparos: pintaram-se as salas com elegância, encarregando-se desse trabalho o artista
brasileiro Francisco Pedro do Amaral20. Em suas atividades, fazia uso da Iconologia de
Cesare Rippa (1523) citada pelo artista por ocasião da restauração e decoração de
cinco coches para o segundo casamento de D. Pedro I, em 182921.
Sua pintura inicial, de gosto rococó, foi sendo substituída pela pintura neoclássica,
na temática, na composição, na pincelada, na busca dos elementos decorativos ade-
quados ao novo gosto. Observa-se em suas obras a preferência pelos temas mitológicos
e o perfeito domínio do desenho com motivos em grotesco, utilizados pela primeira
vez nas loggias de Rafael, no Vaticano, e em grande moda na pintura decorativa do
período. Há, sobre o assunto, uma observação de Porto-Alegre: Homem perseverante
no estudo, teve a coragem de copiar todos os arabescos de Rafael, todas as composições
de Percier, para abandonar pela escola clássica a borromínica, em que fora educado por
Manoel da Costa22.
O Palacete da Marquesa de Santos guarda o mais bem preservado conjunto
de pinturas produzidas por Amaral, fato relevante para o estudo da técnica e das
tendências do artista. No Salão dos Deuses, completando os panos das paredes, entre
as três portas de comprimento e as duas de largura, há vários painéis com jarrões de
flores, borboletas e pássaros nacionais, delimitados por molduras delicadas e tecidos
rendados, contornados por motivos em grotesco, que deixam entrever o fundo verde
que domina a sala. Destacam-se, nas duas paredes de comprimento, as representações
dos Quatro Continentes, ficando as alegorias da Europa e da Ásia colocadas frontalmente
às da América e da África. Esse tema tornou-se muito comum, a partir do século XVI,
quando o conceito sobre o mundo mudou significativamente. No século XIX era
tema primordial, pois a questão nacional atravessaria todo o período, consolidando
a idéia de Nação em todos os países civilizados.

19 Debret refere-se aqui ao Palacete da Marquesa de Santos, ocupado por D. Maria da Glória, após a volta de Domitila
a São Paulo. N.A.
20 AZEVEDO, 1969a: 133.
21 Na ocasião escreveu um trabalho e o ofereceu ao Imperador: Explicação alegórica da decoração dos coches de Estado

de S.M.I, o Senhor Pedro I.


22 PORTO-ALEGRE, 1856a: 375-378.
132 Cybele Vidal N. Fernandes

A decoração do Salão dos Deuses sugere que a narrativa do teto está intimamente
relacionada com as demais imagens pintadas. Assim sendo, a representação de Zeus,
e toda a corte do Olimpo, consagra o seu poder supremo e absoluto sobre os homens,
e deve ser relacionada com a dos Quatro Continentes que, nas paredes do Salão se
submetem também ao seu poder. A força dessa complexa representação remete ao
poder absoluto do Imperador e ao seu domínio sobre o país.
No Salão da Música, no extremo oposto, além da pintura do teto, complementar ao
relevo, há uma sanca decorada com dezesseis cenas das Metamorfoses de Ovídio23. Há
ainda quatro grandes painéis com cenas de costumes, colocados frontalmente, dois a
dois. O Salão da Música homenageia a alegria e a beleza da mulher, ali representada
em cenas contornadas por molduras que entrelaçam elementos da flora e da fauna
tropicais, ligados por fitas, pássaros, ornatos em grotesco, que se aproximam da
tipologia da “Escola Francesa”.
O Salão da Aurora, localizado entre os dois já citados, é igualmente dividido
em cheios e vazios, pelas portas de acesso e as três portas-balcão. Destacam-se, no
conjunto, quatro medalhões com a representação da Deusa Aurora, ladeados por
outros medalhões com composições de flores e pássaros.
O artista dá um tratamento original ao conjunto, ao conferir às deusas o tom ocre,
dando a impressão da figura ter sido modelada em argila ou entalhada em madeira
local. Compondo ainda o cenário, delicadas cornucópias, que aparentam ser de vidro
azul, formam um arranjo com flores tropicais. Nos demais painéis, composições em
elementos do grotesco romano e ramos de flores, misturam instrumentos, partituras
musicais e a paleta do pintor.
A parte baixa das paredes é contornada por uma faixa com paisagens de várias
partes do mundo, cercadas por molduras de ferro fingido, à moda dos grotescos
franceses: Vista dos Alpes suíços; Paisagem com porto de rio no oriente; Viajante na
entrada de um oásis; Paisagem com pagode chinês; Paisagem tropical com lagoa; Paisagem
com ruína de templo grego; Paisagem com choupana nos Andes; Paisagem com viajante
sobre um dromedário; Paisagem com o Mosteiro da Batalha; Paisagem no Tirol; Paisagem
tropical com palmeira; Paisagem marítima com farol; Paisagem com castelo medieval;
Paisagem com o Vesúvio; Paisagem na neve.
Observa-se que foram escolhidas paisagens que remetem a locais conhecidos mas,
às vezes, o autor aplicou às mesmas as regras referentes às paisagens idealizadas,
valorizando certos elementos da cena e deixando uma área de luz em alguma parte
da composição. Em traços soltos, riqueza de detalhes, paleta colorida e luminosa,
como os artistas do século XVIII, Amaral evocou também os valores românticos das
cenas pastoris, de natureza idílica, ora amena, ora assustadora, como o tema dos mares
bravios, do deserto, do vulcão, que sugerem a luta do homem entre a vida e a morte.

23 As cenas representadas são: Apolo e o rebanho do rei Admeto; Apolo e Esculápio; Apolo e Pégaso; Apolo e a
sacerdotisa Polimnia, Apolo e Dafne; Apolo e Talia; Apolo e Estes; Apolo e Parthenos; Apolo, Latona, Diana e
os Pastores;Rei Midas e o Barbeiro; Apolo e Marsias na disputa musical; Apolo e Cassandra; Marsias esfolado no
Pinheiro; Latona manda Apolo e Diana matarem os filhos de Níobe; Apolo cura os ferimentos no rosto de Jacinto;
Apolo e Coronis (amante de Apolo com quem teve um filho, Esculápio).
O complexo caminho: da encomenda à obra realizada. Uma casa nobre no Rio de Janeiro 133

Considerando todo o conjunto, vemos que o pintor evocou a presença dos deuses,
dos heróis, do homem culto e do homem simples, compondo com os personagens
um grande e verdadeiro cortejo.
Em todas as salas do Palacete, podemos dizer que Francisco Pedro do Amaral
realizou uma decoração condizente com os relevos aplicados, onde a paisagem,
idealizada ou realística, atrai os visitantes, por seu interesse histórico ou cultural. O
artista retratou a paisagem tropical, os diferentes espécimes da flora e da fauna do
país, a luminosidade local, o frescor, o exotismo das matas brasileiras.
Destacamos, dentre as representações da casa, a figura alegórica da América,
como uma mulher, rosto em três quartos, olhos ligeiramente amendoados, nariz
afilado, lábios delicados, pés no chão, corpo nu, coberto apenas com um saiote feito
de penas coloridas. Na cabeça traz um toucado de contas e penas coloridas que
enfeita a cabeleira escura que cai sobre as costas (talvez o atributo mais próximo do
nosso índio). O colo foi valorizado por um colar de contas; a natureza é lembrada
pela vegetação nativa, pela figura do papagaio, em sua mão esquerda, pelas frutas
tropicais: bananas, cajus, abacaxis.
Essa figura traz, em si, uma certa ambigüidade porque a imagem sugere que,
ao retratar a índia, o artista não desejou, na verdade, realizar uma representação
da América, e sim do Brasil, e para isso utilizou o tipo da mulher européia, numa
alusão ao progresso e a cultura desejados para o país. Indo além, diríamos que idéia
de ambigüidade está presente em outros aspectos do Palacete, desde a sua função,
a certas soluções construtivas (como o salão oval e a escadaria em dois lances, que
representam ainda um eco da estética barroco-rococó).
No caso da construção do Palacete da Marquesa de Santos, poderíamos dizer
que o mesmo resultou de um processo do qual participaram artistas bem preparados,
que trabalharam de modo a conferir à obra o caráter de casa nobre, condizente
com a posição dos seus moradores e com a sua localização, as cercanias do Palácio
da Quinta da Boa Vista. O projeto foi realizado em tempo relativamente breve. A
casa, de fachada nobre, com os seus jardins, adequadamente localizados na parte
posterior da residência, atendia às exigências de conforto e intimidade desejados pela
sociedade do século XIX.
A comissão responsável pela obra foi composta por um arquiteto, com formação
entre a arquitetura e a engenharia, que riscou os planos do Palacete, interpretados
por um construtor de capacidade acreditada, a partir da sua experiência prática.
Há aspectos que chamam a atenção, na construção do palacete, características
técnicas que deixam entrever os métodos de Pézerat, como as amarrações em ferro
na sustentação do telhado, já anteriormente referidos.
Essas soluções devem-se, certamente, à boa formação técnica do arquiteto que,
mais que autor do projeto, era também a figura de maior importância, dentre os
profissionais que trabalharam no edifício. Sobre essa questão específica, cabe aqui a
observação de Paulo Varela Gomes: O projetista é o portador da autoridade que lhe é
delegada pelo dono da obra.Quanto mais elevada for a hierarquia e maior o poder do dono
134 Cybele Vidal N. Fernandes

da obra, mais autoridade projetual existe. No caso, o dono da obra era o Imperador, e
em segundo momento, a sua favorita, a Marquesa de Santos.
Paulo Varela Gomes afirma, no entanto, que em Portugal, tal situação, conside-
rando a hierarquia dos envolvidos em um projeto, poderia ter certas nuances, não
seguia uma regra definitiva. Após a análise de um contrato de 1528, o pesquisador
concluiu que: o dono da obra e o mestre deixam aos pedreiros a liberdade de determinar
as dimensões gerais e até a forma das peças e molduras, uma vez dada a largura. Os
pedreiros, de acordo com a tradição e o costume, sabiam perfeitamente fazer. Indo além,
afirma ter encontrado documentos que comprovam o interesse de instruir o pedreiro,
verdadeiros manuais muito utilizados, como o encontrado na Biblioteca de Coimbra,
referente à arquitetura do século XVIII. Em Portugal essa era uma realidade, havia
uma cultura de pedreiro ligada aos sistemas de formação profissional e hábitos culturais
do país. Desse modo, a complexidade do processo construtivo encontrou soluções
próprias em Portugal, onde o pedreiro/o construtor, assim como o marceneiro, o
entalhador, o pintor, demonstraram se apoiar em conhecimentos técnicos, havendo
mesmo uma produção de manuais muito detalhados, voltados para uso específico
desses profissionais.
Essa questão talvez nos possa ajudar a compreender melhor a escolha de Cravoé,
como construtor ou executante dos planos de Pézerat, certamente assentados em bases
teóricas e práticas, que deveriam ser compreendidas pelo construtor. Uma análise
dessa natureza ainda está por ser feita, a partir do levantamento das diversas plantas,
comparando-as primeiramente e, a seguir, observando as soluções encontradas no
prédio. Quanto à decoração, parece não haver polêmica: dois escultores formados
na França e um pintor nacional, de formação reconhecida, deram ao edifício o
tratamento decorativo condizente com o projeto e com suas funções, enobrecendo
a casa, morada da Marquesa, às vezes do Imperador.

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Azulejaria tardobarroca dos colégios das
Ordens Religiosas de Coimbra.
Circunstâncias de encomenda e de produção artística
Diana Gonçalves dos Santos

I. Coimbra e os colégios das Ordens Religiosas


Calcula-se que o aparecimento e prestígio alcançado pelos primeiros colégios1 da
cidade do Mondego terá, em muito, beneficiado esta última no processo de transfe-
rência definitiva da Universidade2, consumada em 1537, em detrimento de Lisboa3.
A reorganização geral dos serviços de ensino, acontecida nas primeiras décadas
da Época Moderna portuguesa – por acção de D. João III, de modo a relançar o
desenvolvimento das principais estruturas ideológicas do país –, pretendia uma
Universidade cujos poderes fossem colocados simultaneamente ao serviço da Igreja
e do Estado. De igual modo, a crise moral das Ordens Religiosas – existente ainda
no raiar do Século XVI – conduz à canalização de energias, por parte do estado,
1 A rede de colégios que viria mais tarde a sustentar os Estudos estava já esboçada no sistema dos colégios de apoio
à escola do Mosteiro de Santa Cruz: os colégios de São Miguel [para nobres], de Todos-os-Santos [para classes
modestas], Santo Agostinho e São João Baptista, ofereciam cursos de Artes e Humanidades a leigos e religiosos. Ver
DIAS, 1969a: 589, 592; RAMOS, 1997: 372. Os primeiros planos pedagógicos dos estudos preparatórios, médicos
e teológicos, bem como a metodologia de ensino e avaliação são dados a conhecer pelas Constituições dos Colégios
do Mosteiro de Santa Cruz publicadas por Silva Dias. Ver DIAS, 1969b.
2 Este episódio encontra-se desenvolvido em inúmeros estudos de História da Cultura Portuguesa, entre os quais

destacamos: DIAS, 1969a; MARTINS, 1997: 211-216. O descrédito dos Estudos Gerais de Lisboa gera-se a partir de
um conjunto de factores contributivos para esta crise que, por sua vez, conduzem a uma série de sinais demonstrativos
da desacreditação daquela instituição, como por exemplo: tentativas mal sucedidas em travar o movimento de
estudantes em direcção a institutos estrangeiros, a fim de obterem a sua graduação superior, o fracasso na recruta
de docentes além-fronteiras de modo a solucionar as lacunas existentes em algumas cadeiras vagas e fundamentais
à formação do quadro administrativo e eclesiástico nacional, entre outros.
3 Segundo Silva Dias, a presença prolongada da Corte em Coimbra, no ano de 1527, terá contribuído para a escolha

do pouso definitivo da Universidade. Todo o processo de reforma do Mosteiro de Santa Cruz [importante centro de
estudo pré-universitário na época], no qual foi central a figura de Frei Brás de Braga, revelar-se-ia determinante para
a solução da crise dos Estudos Gerais. O panorama era favorável até na esfera económica: seria possível sustentar
o arranque da reforma dos estudos com o património crúzio. Estava, assim, à vista do Rei dois dos factores que
iriam contribuir para o sucesso da sua politica do ensino: o consumar da mudança da Universidade e a sua reforma
suportada pelo património monástico. Ver DIAS, 1969a: 577, 580. Sobre a acção de Frei Brás na reforma dos
estudos de Santa Cruz e sua implicação com o funcionamento dos colégios surgidos em seu redor ver os artigos de
Cândido dos Santos. Ver SANTOS, 1973; SANTOS, 1991.
138 Diana Gonçalves dos Santos

para encetar a reforma da vida monástica4. A reforma congreganista joanina5 está,


assim, inerente ao apoio régio dado à fundação de uma rede de colégios das Ordens
Religiosas em Coimbra6 – uma iniciativa que não seria apenas exclusiva do Rei, mas
também dos Infantes e outras personalidades de topo do reino.
A existência de colégios, como estruturas de apoio à Universidade, justifica-se
essencialmente pela sua função: assistência material, intelectual e moral aos seus
utilizadores, de modo a torná-los indivíduos distintos, quer pelo alto nível de cultura,
quer pelo rigor na prática dos costumes. O seu papel serviria na perfeição a política
cultural e religiosa encetada a partir de D. João III, que se concentrava no esforço
pela superação da herança do passado, considerando os ideais da Reforma Católica
e ajustando-se aos princípios tridentinos da doutrina e acção católica7.
A formação intelectual das futuras elites dirigentes do reino seria assim assegurada
por um ensino exigente, disponibilizado no conjunto dos estabelecimentos das Ordens
Religiosas que surgiriam na orla da Universidade. Estaria, desta forma, garantida a
unidade dos Estudos conimbricenses e salvaguardada a infalibilidade do projecto
pedagógico joanino, sem esquecer a renovação da formação espiritual dos académicos.
A ideia, germinada já no Século XV8, de uma sustentação eficaz do funcionamento
dos Estudos Gerais, pela actividade pedagógica ministrada numa rede de colégios
universitários, seria levada à prática com êxito durante cerca de três séculos, tornando
Coimbra a capital do Saber da metrópole e seus domínios ultramarinos.
Os colégios existentes em Coimbra na Época Moderna chegaram a atingir
um conjunto de vinte e três edifícios dispersos por toda a cidade.9 Ressalve-se,
no entanto, que nem todos possuíam o estatuto de colégio universitário, ou seja,
nem todos estavam, de facto, incorporados na Universidade, sendo que, para tal,
era necessária a atribuição de um diploma, por parte do Rei, atestando as reais
capacidades pedagógicas da instituição requerente. A partir do momento em que
era aceite como colégio universitário, passaria a gozar de certos privilégios na vida
académica – p.e. a representação em actos oficiais – e adquiria regalias em matérias
económicas e jurídicas10.

4 DIAS, 1960: 93.


5 D. João III iniciou a sua acção reformadora pelas Ordens Militares, estendendo posteriormente esse exercício para
as casas cistercienses, agostinhas, franciscanas e dominicanas. Ver DIAS, 1960: 100.
6 A ideia da criação de uma rede de colégios universitários de apoio ao ensino ministrado nos Estudos Gerais, como

acontecia nos casos das universidades inglesa e francesa, teria sido já pensada no Século XV pelo Infante D. Pedro,
na célebre Carta de Bruges, de 1426, publicada por Ana Maria Leitão Bandeira. Ver BANDEIRA, 1993: 43-50.
A intenção, por parte de D. João III, de levar à prática esta ideia manifestara-se em 1532, numa carta do Bispo
conimbricense, D. Jorge de Almeida, para o Rei [Vd. Carta do Bispo-Conde para o Rei, de 4 de Janeiro de 1532
publicada por António José Teixeira, TEIXEIRA, 1899]. Em 1535, o Rei manifesta a intenção em fundar um colégio
para a Ordem de S. Jerónimo [Vd. Carta Régia para Fr. Brás de Barros, de 20 de Fevereiro de 1535, publicada por
Mário Brandão, BRANDÃO, 1937-1941] algo que só viria a consumar-se em 1549, sendo que o edifício definitivo
estaria ainda em construção em 1569. Ver DIAS, 1969a: 580, 589, 593; MATTOSO, 1997: 28.
7 DIAS, 1960: 433.
8 DIAS, 1960: 420.
9 VASCONCELOS, 1938: 162.
10 DIAS, 1969a: 596.
Azulejaria tardobarroca dos colégios das Ordens Religiosas de Coimbra 139

Nas aulas dos colégios universitários eram leccionadas as várias matérias dos
planos pedagógicos preparatórios e superiores: por exemplo, o ensino teológico
ministrado era complementar ao oferecido nos Estudos Gerais. Quanto ao perfil do
conjunto dos colegiais, era sobretudo considerada a excelência de capacidades de
quem fosse admitido. As várias Ordens Religiosas, de uma maneira geral, enviavam
para os seus colégios, religiosos professos que revelassem estar aptos para um percurso
académico que exigiria de si uma árdua aplicação, estando o tempo dedicado ao
estudo intimamente articulado com a vida em comunidade.
Anualmente, nos colégios de cada Ordem, era disponibilizado um determinado
número de vagas correspondente a cada convento ou mosteiro, normalmente em
proporção com o prestígio da casa no panorama nacional. A candidatura do proponente
ao preenchimento da vaga era precedida por um período de preparação, normalmente
de um ano, na área do conhecimento filosófico. Findo esse período de estudo, haveria
uma avaliação por parte das autoridades pedagógicas, do respectivo mosteiro ou
convento, que teria que manifestar-se favorável para que o candidato se considerasse
apto para o concurso à vaga. A este passo, somar-se-iam outros como a aprovação
num exame de avaliação das aptidões literárias do candidato, o reconhecimento do
nível de perfeição e honestidade da vida religiosa que o candidato levava, bem como
a obrigatoriedade da detenção de um sólido conhecimento do Latim e uma iniciação
nas Artes – se o candidato fosse aceite, tinha à sua espera, em Coimbra, uma forte
componente pedagógica das Artes, área com peso similar ao da Teologia11.
Mais do que uma mera residência de estudantes, o colégio universitário era um
estabelecimento de ensino complementar daquele leccionado na Universidade12.
Apesar dessa complementaridade com a actividade da Universidade, e do usufruto
dos seus privilégios, aquelas instituições detinham uma certa autonomia em relação ao
poder académico. Embora os Estatutos da Universidade tivessem que ser respeitados,
no que toca à jurisdição privada dos colégios universitários, a situação modificava-se.
O seu quotidiano regia-se por estatutos próprios, que regulavam o funcionamento
diário, no que toca a horários, justiça interna [penas e sanções], deveres e obrigações
dos seus utilizadores [colegiais, mestres e reitor], recitação do ofício divino, aceitação
dos colegiais, regimento das cadeiras, entre outros aspectos13.
Na maioria dos colégios universitários estudavam-se, durante três anos, as Artes
e, durante cinco anos, a Teologia14. A actividade pedagógica era composta não só

11 DIAS, 1969a: 599-601.


12 Em muitos casos, os colegiais efectuavam algumas saídas do colégio para ir receber ensinamentos aos Estudos, visto
que o reconhecimento dos graus tirados nos colégios dependia da frequência de certos actos académicos na Sede
do Saber.
13 Para alguns colégios foi possível recolher vários documentos respeitantes aos estatutos internos que regulavam

o quotidiano da comunidade: casos dos colégios do Espírito Santo e de São Jerónimo. Vd. Documentos 11 a 17
publicados na nossa dissertação de mestrado. SANTOS, 2007.
14 No plano ideológico e político do projecto pedagógico do Estado, a Teologia atingia um lugar cimeiro. Eram

necessários teólogos com uma sólida formação, de maneira a reunirem capacidades para tomar o melhor lugar no
debate religioso que acontecia por toda a Europa, para não falar no desejado papel de destaque a assumir nas acções
de missionação acontecidas nas novas latitudes Além-Mar. ver RAMALHO, 1997: 711. O ensino da Teologia na
Universidade de Coimbra aparece como o remate da actividade pedagógica acontecida nos colégios universitários
140 Diana Gonçalves dos Santos

pelas aulas catedráticas dos cursos aí ministrados – as lições – mas, também, por actos
complementares de formação. Realizavam-se exercícios de treino como as questões
– que consistiam na discussão das matérias leccionadas, sendo estas presididas por
um mestre –, os círculos – reuniões para esclarecimento de dúvidas que ficavam
por clarificar no período das lições – e, ainda, as disputas que, variando consoante
os casos, poderiam ser de realização diária, semanal, ou mensal, consistindo numa
espécie de discussão, perante toda a comunidade colegial, de uma determinada tese,
relacionada com as matérias dadas nos cursos, pretendendo exercitar a capacidade
argumentativa do estudante15.
Ao longo de toda a centúria de Seiscentos, o fenómeno de fundação de estruturas
colegiais na Alta de Coimbra, por parte das Ordens Religiosas, prolonga-se. Em 1600,
o Colégio da Sapiência ou de Santo Agostinho dos monges Crúzios, encontrava-se
ainda por finalizar e, dois anos mais tarde, os frades franciscanos da Província de
Santo António da Observância fundam o seu modesto colégio no Bairro da Pedreira,
mesmo junto ao Paço das Escolas. A rede de colégios universitários vai-se compondo,
enquanto os colégios existentes, desde os primeiros tempos da Universidade, vão
adaptando e beneficiando os seus espaços pela inclusão de variados elementos
ajustados às novas linguagens artísticas16.
É possível fazer a ideia do impacto da massa construída dos colégios universitários
na Coimbra do Século XVII, principalmente, pelas fontes descritivas existentes. Para
a primeira metade do século, uma breve referência a essas estruturas, contida num
documento, cuja autoria se desconhece, menciona o seguinte:
Muitas são as cousas que fazem deleitosa a vista desta cidade, assim no interior, como exterior
dela. No interior, a sua Universidade, onde se ensinam todas as ciências; os conventos e colégios
de religiosos de todas as religiões em muitos dos quais há santuários e relíquias.
[…] À saída de S. Margarida, podemos dar princípio na Rua de Santa Sofia, que fica nos
arrabaldes da cidade, a qual rua de uma e outra parte não é mais que a edificação de muitos
mosteiros de religiosos que neles servem a Deus17.
Já para a segunda metade de Seiscentos existem dados visuais e textuais da cidade,
decorrentes da Viagem de Cosme de Medicis por Espanha e Portugal [1668-1669]. O
desenhador e ilustrador Pier Maria Baldi assina uma vista panorâmica da cidade de
das Ordens Religiosas. Elementos de topo dos vários colégios das Ordens Religiosas incluíram o corpus docente
de Teologia: Eremitas de Santo Agostinho, Cistercienses, Jerónimos estavam entre os mais numerosos, e frades
Carmelitas, Franciscanos, Jesuítas e até Crúzios tiveram também lugar nos quadros docentes daquela faculdade.
Ver FONSECA, 1997: 781-816. O relevo adquirido do curso de Teologia deve associar-se ao poder eclesial [o que
acontece também em relação aos Cânones]: era a autoridade eclesiástica quem concedia os graus relativos a este
curso. Ver OLIVEIRA, 1997: 900, 901.
15 DIAS, 1969a: 602.
16 A título de exemplo o Colégio de Jesus, um dos monumentos emblemáticos da cidade, não tinha ainda concluídas

as obras da sua igreja em 1638, data do começo do Reitorado do Padre António de Sousa. Uma carta ânua, de
1639, dá conta que, durante o tempo em que assumiu a gestão do colégio, as obras registaram um notável avanço.
Ver MARTINS, 1994: 113-115. Vejam-se ainda as obras documentadas para alguns dos colégios da Rua da Sofia.
Ver CRAVEIRO, 2002; SANTOS, 2007.
17 Estes excertos inserem-se num documento, incluído no Manuscrito 677 da Biblioteca Geral da Universidade de

Coimbra, já publicado por Falcão Machado. MACHADO, 1934: 210, 213.


Azulejaria tardobarroca dos colégios das Ordens Religiosas de Coimbra 141

Coimbra, enquanto se deve a Lorenzo Magalloti a notícia monográfica que descreve a


imagem monumental da urbe. São mencionados com pormenor os colégios de Jesus,
de Santo Agostinho, de São Pedro e de São Paulo, para não falar da referência à
existência de um total de 23 Conventos de Religiosos, bem como do destaque para a
Rua de S. Sofia18.
Para o século XVIII, uma notícia na Gazeta de Lisboa, datada do dia 6 de Maio
de 171719, a propósito da adesão formal à bula Unigenitus20, especifica a existência,
àquela data, de 16 colégios universitários na cidade do Mondego. Anos mais tarde,
em 1721, o pároco da Freguesia de São Pedro, respondia à terceira questão formu-
lada pelo cabido sobre Que numero de freguezes tem a freguesia, que Mosteiros, se há
Casa da Misericórdia, Hospitaes, ou recolhimentos, em q anno forão fundados, e por
quem, referindo a existência dos seguintes colégios: Colégio Pontifício de São Pedro,
Colégio Real de São Paulo, Colégio dos Mellitares, Colégio dos Religiozos de Santo
António da Pedreyra, Colégio da Santíssima Trindade, Colégio de S. Boaventura dos
Relegiozos Franciscanos da Cidade, Colégio de Santo Eloy, chamado vulgarmente dos
Lóios, acrescentando ainda que:
esta fundada a mayor parte delles nesta freguesia, e tem nella as Portarias, e todos se acham
das Portas da Cidade para dentro. Tem mais fora dos Muros da Cidade á porta do Castello,
junto aos Arcos o Collegio do Patriarcha Sam Bento21.
O sacerdote da freguesia de São João de Almedina responde para a mesma questão:
[…]Há tres Collegios a saber o da Companhia de Jezus, São Hieronymo, e Sam João
Evangelista, e também fica dentro nesta freguesia a mayor parte do Collegio de Sam Boaventura,
e consta serem todos fundados pello Sereníssimo Senhor Rey Dom Joam Terceiro22.
Também o pároco da freguesia de Santa Justa responde, informando que:
Tem Seis Collegios, e hum Convento, sitos todos na Rua de Santa Suffia, fermoza pella
largueza, e Comprimento, com que corre por linha direita. Os collegios fundados por El Rey D.
João 3, quando nesta Cidade plantou a universidade23.
Anos mais tarde, em 1758, a Rellação das Couzas Notaveis da Cidade de Coimbra24,
informa da presença de cerca de 20 colégios na cidade, a maioria deles tutelados
pelas seguintes Ordens religiosas: Companhia de Jesus, Ordem de São Domingos,
Eremitas de Santo Agostinho, Ordem de Cister, Ordem de Cristo, Ordem Terceira
18 SILVA, 1968: 290-301.
19 Notícia publicada por Manuel Lopes de Almeida. ALMEIDA, 1966: 406-407.
20 A sua defesa tinha sido jurada solenemente pela academia conimbricense meses antes e, sobre a qual, de seguida

houve a publicação das resoluções elaboradas pelos Mestres, Leytores de Theologia dos Collegios, das Religioens,
incorporadas na Universidade. Cf. ALMEIDA, 1966: 405.
21 MADAHIL, 1936-37: 20-22.
22 MADAHIL, 1936-37: 29.
23 MADAHIL, 1936-37: 49.
24 Um importante documento, publicado por António da Rocha Madahil, que fornece importantes dados relativos à

imagem monumental de Coimbra. MADAHIL, 1939. Transcrito também por Armando Carneiro da Silva. SILVA,
1968: 226-242.
142 Diana Gonçalves dos Santos

de São Francisco, Ordem dos Carmelitas Calçados, Cónegos Regrantes de Santo


Agostinho, Ordem de São Jerónimo, Cónegos Seculares de São João Evangelista,
Trinitários, Franciscanos da Província de Portugal, Franciscanos da Província dos
Algarves, Eremitas da Congregação dos Agostinhos Descalços, Franciscanos da
Província da Imaculada Conceição, Franciscanos da Província de Santo António,
Ordem dos Carmelitas Descalços, Ordem de São Bento de Avis e Ordem de São
Tiago de Palmela.
Estes conventos-colégios25 contribuíram, em muito, para a transformação do quotidiano
da Coimbra Setecentista numa urbe fervilhante e intimamente ligada à dinâmica dos
Estudos Gerais26. O prestígio da Universidade de Coimbra, como centro de formação
superior dos quadros administrativos e eclesiásticos do reino, conjecturado cerca de
dois séculos antes, tinha sido alcançado, assumindo os colégios das Ordens Religiosas
um papel preponderante nesse processo.

II. O azulejo nos complexos colegiais de Coimbra e a produção da


2.ª metade do século XVIII
1. No conjunto dos colégios universitários de Coimbra construídos pelas várias
Ordens Religiosas verifica-se um notável património azulejar in situ nos vários espaços
desses complexos monástico-conventuais de vocação educativa, cuja datação se situa
em parte do Século XVII e abrange todo o século XVIII27. [Quadros 1 e 2]
Este importante repositório cerâmico, sob a forma de revestimento parietal, assume
várias particularidades indicativas do papel e função que o azulejo pode assumir
na arquitectura. Neste sentido, destacamos a valência decorativa e ornamental do
azulejo, o seu papel arquitectónico e o intuito memorativo que adquire nos exemplares
figurativos28.
A função ornamental dos revestimentos azulejares nos espaços colegiais em foco
produz um interessante efeito por contraste com a arquitectura depurada e estática
que os recebe, a qual é dominada pela volumetria compacta, redução de aberturas,
grande espessura e robustez das paredes29. A valência ornamental que transporta,

25 Fernando Fonseca define assim as estruturas colegiais das Ordens Religiosas, uma vez que estas albergavam
exclusivamente «estudantes teólogos». FONSECA, 1995: 328-329.
26 Atingindo na 2.ª metade do século XVIII cerca de 13.500 habitantes [8.000 dos quais estudantes], a cidade

sofria de um deficit de alojamento para os estudantes seculares, sendo que a área da Alta da cidade se encontrava
praticamente coberta pelas infra-estruturas colegiais, e a Baixa não era pouso desejável pela sua insalubridade,
cheias nos tempos de invernia, e distância dos Estudos Gerais. Dados referentes ao ano de 1765. SILVA, 1968:
219; FONSECA, 1995: 344
27 A nossa dissertação de mestrado intitulada Azulejaria dos Séculos XVII e XVIII na Arquitectura dos Colégios das

Ordens Religiosas de Coimbra, seleccionou quatro colégios da Rua da Sofia e quatro colégios da alta de Coimbra
com azulejaria seiscentista e setecentista integrada, para análise do azulejo e sua relação com a arquitectura. Ver
SANTOS, 2007.
28 SANTOS, 2007: 118-139.
29 Os espaços colegiais, apesar de serem, sobretudo, lugares de convivência [pela vida em comunidade levada pelos

religiosos escolares] e se apresentarem articulados em grandes complexos, manifestam-se contudo muito cerrados
sobre si em invólucros de pequena escala. SANTOS, 2007: 119-121.
Azulejaria tardobarroca dos colégios das Ordens Religiosas de Coimbra 143

faz do azulejo um suporte muito prático para a renovação estética dos interiores,
acompanhando facilmente as mutações do gosto de quem encomenda.
Sobre a função arquitectónica do azulejo, observa-se no referido conjunto que
o aspecto discreto dos alçados caiados de branco é transfigurado pelo revestimento
azulejar, resultando, na maioria dos casos, um efeito de prolongamento dos espaços
que, na generalidade, apresentam dimensões diminutas. Acontece a metamorfose
das superfícies murárias em estruturas vivas, pela dinâmica que oferecem aos olhos
de quem os vivencia. Neste sentido, constata-se também que a dinâmica dos ritmos
conferidos pela colocação dos azulejos minimiza o impacto do seu carácter fechado.
Em alguns núcleos datados para o século XVIII os jogos ilusórios são bastante mar-
cados, notando-se uma acentuação no desenvolvimento dos enquadramentos pela
construção tridimensional dos espaços, através do recurso à exploração dos efeitos
em tromp l’oeil30.
Verifica-se que a intenção memorativa do azulejo, sobretudo nas séries narrativas,
terá sido determinante na escolha desta expressão artística por parte das Ordens
Religiosas para os seus espaços colegiais, principalmente, pelo facto de ser possibilitada
a criação de programas decorativos de índole catequético-pedagógica, sobretudo nas
unidades espaciais de função religiosa. A evocação dos santos de culto particular, de
episódios da vida de Cristo, ou a adopção de temas bíblicos de vária índole, na sua
utilização individual, ou em conjunto, servem em pleno as expectativas da classe
religiosa, o que se traduzirá numa adesão significativa à aplicação do azulejo enquanto
revestimento preferencial31. Nos exemplares integrados nos colégios, o pintor de
azulejos, tal como um cenógrafo, produziu efeitos decorativos de grande eficácia
no dinamismo e animação dos espaços, sendo, ao mesmo tempo, um educador, pois
pelos quadros figurativos instrui o espectador como num livro aberto, cuja leitura e
contemplação nunca se esgota.
A percepção do papel do azulejo e sua função como revestimento artístico nos
complexos colegiais terá, necessariamente, que considerar a geografia da sua aplicação.
A consideração da localização das dependências onde o azulejo foi, efectivamente,
aplicado como revestimento de superfícies murárias, ajuda a justificar a sua escolha
como revestimento de eleição (Quadro n. 1).

30 SANTOS, 2007:120-121.
31 Para a azulejaria do período de Setecentos a função memorativa está bem presente pela difusão de núcleos azulejares
historiados incidentes em temáticas tão díspares como os Milagres de Santo António, no Colégio de Santo António da
Pedreira, a Vida do Profeta Elias, no claustro do Colégio do Carmo, ou os Episódios da Vida de Santo Inácio de Loyola
e de São Francisco Xavier, no Colégio das Artes. Nestes conjuntos a complexidade dos programas iconográficos foi
proporcional com a monumentalidade e teatralidade da própria época e do lugar onde estão integrados. SANTOS,
2007: 121, 196-279.
144 Diana Gonçalves dos Santos

Quadro.º 1 – Localização do azulejo dos séculos XVII e XVIII nos espaços colegiais das ordens
Religiosas em Coimbra32

Capela Doméstica
Sala dos Actos

Ante-Sacristia
Dormitório
Corredores
Escadarias
Refeitório
Claustro

Sacristia
Portaria

Livraria

outras
Igreja
Aula
Colégio de N.ª Sr.ª Carmo     
Colégio de N.ª Sr.ª Graça       
Colégio de S. Pedro Rel.Terceiros 
Colégio de São Jerónimo     
Colégio das Artes   
Colégio de St.º Agostinho          
Colégio de Santo António da Pedreira      
Colégio de Santa Rita   
5 4 1 2 2 2 1 3 6 4 3 3 3 1

Deste modo, associando os azulejos aos espaços, verifica-se no conjunto em


abordagem uma incidência da utilização do azulejo nos espaços secundários dos
complexos colegiais, estejam eles situados na área educativa, na área da comunidade
ou na área da igreja. Corredores e escadarias são espaços preferenciais para a aplicação
do azulejo, assim como outros espaços de distinto protagonismo funcional como a
portaria – nestes a função utilitária e funcional do azulejo prevalece sobre a função
narrativa e transmissora de uma mensagem, uma vez que, são espaços de intensa e
constante utilização e, portanto, de maior exigência na sua manutenção.
Revelam-se, também, preferenciais os espaços religiosos dos colégios para a
integração do azulejo como revestimento, seguindo-se o espaço do claustro, sendo de
realçar, para ambos os casos, a função memorativa como factor de provável influência
na escolha dessa expressão artística para a beneficiação desses lugares de celebração
litúrgica, oração e meditação.

2. Para a azulejaria in situ dos colégios de Coimbra, datada da 2.ª metade do


século XVIII, importa sublinhar que está estreitamente associada à produção local
das olarias da época.
Na história da cerâmica de Coimbra – com origem nos finais da Idade Média –,
no que toca à produção azulejar, só a partir da segunda metade do século XVII se
conhecem nomes de artífices locais associados a revestimentos parietais cerâmicos.
Apesar da produção de Lisboa ter continuado a concorrer com a produção local,
paulatinamente verificou-se uma escolha pelos produtos saídos das tendas dos

32 Com base nos dados do registo dos exemplares in situ.


Azulejaria tardobarroca dos colégios das Ordens Religiosas de Coimbra 145

oleiros de Coimbra, muito pela diminuição de custos com o transporte e relações


de proximidade de oleiros, pintores de azulejo, azulejadores, e restantes artífices da
arte da azulejaria, com a clientela da cidade e região. Do ponto de vista técnico,
constituem características desta produção azulejar local: a pasta espessa da chacota;
a dimensão inferior das unidades – em relação à dimensão média dos azulejos mais
abundantes em território nacional – medindo o azulejo de Coimbra, em média, cerca
de 13x13cm; o esmalte estanífero amarelecido – derivado de impurezas –; o azul
de cobalto escuro, muito carregado e de tonalidade violácea, em alguns em alguns
casos, entre outros aspectos.
Para a produção azulejar de fabrico coimbrão, a 2.ª metade do século XVIII é
fundamental na sua afirmação no contexto da produção nacional. Nesta fase a produção
coimbrã individualiza-se em relação à produção coeva de Lisboa, não havendo termo
de comparação formal em todo o território nacional. Foi neste período que assumiu
em pleno uma identidade própria, sobretudo, por apresentar soluções decorativas
originais e uma certa autonomia criativa. José Meco reconheceu-lhe, inclusivamente,
semelhanças com a azulejaria produzida em Valência para o mesmo período, com
base na matriz comum da utilização das gravuras alemãs para as composições dos
enquadramentos e reservas figurativas, os quais revelam aspectos formais de grande
excentricidade e, ao mesmo tempo, um desenho ingénuo e frustre concepção tridi-
mensional33. Outra característica da azulejaria de fabrico coimbrão desta cronologia,
sendo transversal às nuances de linguagem verificadas – como veremos adiante –,
será a policromia fulgurante, na utilização de azuis e castanhos carregados associados
a apontamentos amarelos-alaranjados e verdes.
Neste período, adquire especial relevância a criação – no contexto da Reforma
Pombalina da Universidade – da Fábrica de Telha Vidrada34. De acordo com os livros
de assento das obras da Universidade, a sua produção consistiu não só no fabrico de
telha vidrada mas, também, em tijolos e azulejo. A sua laboração aconteceu entre
1773 e 1776, de forma ininterrupta, nada se sabendo para os anos entre 1777 e 1778,
e voltando a surgir em 1779 referências à sua produção, sendo desactivada nesse
mesmo ano. Como seus administradores irão surgir os dois vultos mais importantes
para a história da cerâmica coimbrã da 2.ª metade de Setecentos35: Salvador de
Sousa Carvalho – para o qual surge documentação que comprova a sua actividade
na área da azulejaria desde 176036 – e Manuel da Costa Brioso, oriundo de uma das
mais célebres famílias de oleiros da cidade.

33 MECO, 1996: 527-529.


34 Em 1773, Sebastião José de Carvalho e Melo felicitava Francisco de Lemos por esta fundação, realçando a mais-valia
dos acessos por via fluvial, descendo o Mondego até à Figueira da Foz. CRUZ, 1976: 28; MACHADO, 1993: 253.
35 MACHADO, 1993: 257.
36 SANTOS, no prelo; PAIS, 2007: 89-98, 134-145.
146 Diana Gonçalves dos Santos

Quadro n.º 2 – Síntese analítica da azulejaria in situ dos colégios das ordens Religiosas em Coimbra
Localização Tipologia Datação
Colégio N.ª Claustro | Piso Térreo Composição Figurativa ca.1780
Sr.ª do Carmo Claustro | 1.º Piso Padronagem ca.1720-1730
[Carmelitas átrio da Livraria Comp. ornamental | Motivos Seriados ca.1700
Calçados] Figura Avulsa
Capela Doméstica Composição Figurativa ca.1730-1740
Sala dos Actos Composição Figurativa ca.1730-1740
Igreja Nave e Capela- Padronagem ca.1650-1670
Mor
Capela Santa M.ª Padronagem + Composição Figurativa ca.1630-1640
Madalena
Capela N. Sr.ª Composição Figurativa ca.1770-1780
Piedade
Colégio N.ª Portaria Ante-átrio Padronagem ca.1680-1700
Sr.ª da Graça átrio Comp. ornamental | Motivos Seriados ca.1680-1700
[Eremitas S. Lig. “ ca.1700
Calçados Combatentes
de Santo
Corredores | Piso térreo Padronagem ca.1680-1700
Agostinho]
Escadaria acesso ao Comp. ornam.| Motiv. Seriados + ca.1680-1700
dormitório Padr.
Lavabo Figura Avulsa ca.1700
Vestíbulo do dormitório Padronagem ca.1680-1700
Dormitório Comp. ornamental | Motivos Seriados ca.1720
Igreja Padronagem ca.1650
Ante-Sacristia Figura Avulsa ca.1700
Sacristia Padronagem ca.1700
Colégio Escadaria Figura Avulsa 1707
São Pedro
Religiosos
Terceiros
[ofm]
Colégio São Portaria Composição Figurativa ca.1770-1780
Jerónimo Escadaria “ ca.1780-1790
[ordem de Composição ornamental | Livre ca.1780-1790
São Jerónimo]
Vestíbulo | 1.ºPiso Composição Figurativa ca.1770-1780
Corredor | 1.º Piso Comp. ornamental | Motivos Seriados ca.1730
Azulejaria tardobarroca dos colégios das ordens Religiosas de Coimbra 147

Localização Tipologia Datação


Colégio átrio da Escadaria Nova Padronagem ca.1770-1780
das Artes Composição Figurativa ca.1720-1730
[Companhia Escadaria Nova Padronagem ca.1770-1780
de Jesus]
Capela Doméstica Composição Figurativa ca.1720-1730
Fonte do Claustro “ ca.1775-1790
Colégio Santo Portaria Composição Enxaquetada ca.1600-1620
Agostinho Claustro Principal Comp. ornamental | Motivos seriados ca.1700
[Cónegos Claustro Imperfeito | Piso “ ca.1700
Regrantes térreo
de Santo
Claustro Imperfeito | 1.º Piso Padronagem ca.1680-1700
Agostinho]
Corredor Comp. ornamental | Motivos seriados ca.1680-1700
Escadarias Padronagem ca.1700
Ante-sacristia “ ca.1680-1700
Sacristia “ ca.1680-1700
Sala dos Actos Padronagem ca.1640-1650
Aula Composição Figurativa ca.1780-1790
Colégio Santo átrio de Composição ornamental | Livre ca.1780-1790
António Portaria distribuição
da Pedreira Capela Composição Figurativa ca.1780-1790
[ordem Divisão de Comp. ornamental | Motivos seriados ca.1700
dos Frades acolhimento
Menores]
Claustro “ ca.1700
Refeitório Composição Figurativa ca.1750-1760
Sacristia Corredor Lavabo Figura Avulsa ca.1700
Sala do Arcaz Composição Figurativa ca.1710
Igreja Capela-Mor “ ca.1780-1790
Nave “ ca.1730-1740
Sub-Coro Padronagem ca.1700
Colégio Portaria Padronagem ca.1770-1780
Santa Rita Capela Doméstica Composição Figurativa ?
[Eremitas Escadarias Composição ornamental | Livre
Descalços de Composição Figurativa ca.1770-1780
S. Agostinho]

Como principais tipologias, verificadas no conjunto de edifícios em abordagem,


para a azulejaria identificada como sendo produção local da 2.ª metade de Setecen-
tos, estão as composições ornamentais, a padronagem e as composições figurativas,
148 Diana Gonçalves dos Santos

surgindo como temas principais nesta última tipologia: a paisagem, nas suas variantes
venatória, bucólica e marinha, o temário religioso e, ainda, a Simbologia do Qua-
ternário, representada no ciclo figurativo do vestíbulo do 1.º piso do Colégio de São
Jerónimo (Quadro n.º 2)37.
Sobre as variantes estilísticas, ou de linguagem, observadas no conjunto em análise,
verificam-se três tendências distintas que associamos a diferentes fases cronológicas, numa
lógica evolutiva das formas: 1) espécimes que, nos enquadramentos, introduzem pela
primeira vez elementos de linguagem Rocaille embora presos aos esquemas da fase anterior
e com influência das formas do estilo Regência francês; 2) exemplares que utilizam, de
forma acentuada, nas molduras dos painéis ornatos de gosto Rocaille, de formas túrgidas e
movimentadas e, em alguns casos, com nítida assimetria, sendo essas muito aproximadas
às difundidas pelas gravuras da Escola de Augsburg; 3) núcleos azulejares que assumem
uma linguagem de transição, com grande aproximação à estética neoclássica38.
A primeira variante verifica-se nos painéis do refeitório do Colégio de Santo
António da Pedreira que balizámos para o intervalo de ca. 1750-1760. O conjunto
de painéis de azulejos, pintados a azul e branco, de espaldar recortado, separados por
pilastras, e com temática incidente em cenas venatórias, apresenta enquadramentos
pouco densos e volumétricos e distancia-se, pela utilização singela dos ornatos, do
aparato dos formulários da antecedente Grande Produção Joanina. Alguns dos elementos
decorativos das guarnições derivam do estilo Regência francês – como as palmetas e
pequenas reservas de uma malha fina reticulada –, observando-se também a introdu-
ção de ornamentos Rocaille, como os motivos concheados, de inspiração vegetalista
e orgânica, assumindo formas onduladas semelhantes a cartilagens, trabalhadas
pictoricamente por meio de pinceladas mais escuras e mais claras, as quais definem
elementos dinâmicos que conferem movimentação ao conjunto (Figuras n.os 1 e 2).
Nos colégios do Carmo, de São Jerónimo, de Santa Rita e das Artes observam-
se – respectivamente, nos espaços da igreja, átrio de entrada e vestíbulo do andar
nobre, e escadarias – azulejos de características enquadráveis numa segunda tendência
decorativa onde, a par das composições narrativas, surgem as composições ornamentais,

37 SANTOS, 2007: 191-195.


38 Esta constatação tem como base metodológica a proposta de José Meco sobre a compartimentação da azulejaria
portuguesa produzida a partir de 1745, dividindo-a em três ciclos principais. O primeiro, datado para o intervalo de
ca. 1745-1756, é identificado como fase primordial de renovação estética, assumindo o azulejo a utilização do amarelo
que timidamente aparecia na época antecedente, fazendo a partir dele o desenvolvimento do enriquecimento
cromático das composições, e ainda, a introdução de motivos ornamentais derivados do estilo Regência [p.e. as
palmetas] e dos primeiros ornamentos de gosto Rocaille [como as asas de morcego e os concheados], perdendo os
enquadramentos volume e densidade em relação ao período anterior. O segundo ciclo é balizado entre 1757 e 1775 e
rotulado de azulejaria pombalina, sendo suas características a utilização de motivos mais repetitivos e estereotipados,
a proliferação dos concheados volumosos e sinuosos, tornando-se o ornato dominante sobre a composição geral dos
painéis, a coexistência da pintura polícroma e da pintura a azul e branco, a utilização recorrente dos marmoreados em
vários tons ou esponjados – geralmente a roxo [em rodapés ou base de painéis], azul, e por vezes combinando roxo
e amarelo e roxo e azul, aparecendo também como preenchimento de apainelados ou como fundo de composições
mais complexas –, a alternância da utilização de painéis com espaldar recortado ou de moldura linear, surgindo
os painéis dilatados entremeados por urnas ou vasos. O terceiro ciclo, datado entre 1775 e 1790, é classificado
como fase final e caracteriza-se pela fusão da decoração de gosto Rocaille com elementos ornamentais neoclássicos,
notando-se a perda de volume dos ornatos e gradual tendência linear dos painéis. MECO, 1986: 68-74, 236-240.
Azulejaria tardobarroca dos colégios das Ordens Religiosas de Coimbra 149

não historiadas, de composição livre, e ainda a padronagem, verificando-se para a


maioria dos casos o regresso à policromia.
Nas composições figurativas e ornamentais, os enquadramentos assumem concheados
de formas caprichosas, extremamente robustos, onde elementos assimétricos e movimen-
tados, de diferentes disposições e perfil ondulado, se apõem a elementos arquitectónicos
que definem a estrutura que emoldura a reserva central dos painéis (Figuras n.os 3 a 6).
O grande contraste entre as guarnições dos painéis, de grande agitação, e as reservas
compositivas, mais serenas e contidas, é um aspecto que evidencia a sobrevivência do
gosto pelos contrastes, tão caro ao espírito do Barroco. São também característicos os
altos espaldares de recorte pronunciado, por vezes assimétricos (Figuras n.os 4 e 5),
decorados com concheados, vazados e outros elementos de origem alemã. A questão
ornamental é, assumidamente, de gosto Rocaille, sendo bastante notória a utilização
dos modelos gravados da escola de Augsburg (Figuras n.os 7 e 8)39.
Nas composições narrativas, as reservas figurativas dos painéis, apresentam
composições de desenho frustre e com incorrecções perspécticas e anatómicas. O
tratamento expressionista das figuras (Figuras n.os 19 a 22) e dos mais variados motivos
representados, pelo desenho robusto que lhes é impresso, é um facto digno de nota,
sendo também de realçar o tratamento dos animais – o qual revela os já habituais
problemas no rigor do tratamento anatómico – observando-se uma antropomorfização
das suas características fisionómicas, principalmente pela sua expressão humanizada
(Figuras n.os 23 a 25).
Para além das composições figurativas, muito presentes na azulejaria dos colégios
nesta 2.ª metade do século XVIII, surgem algumas composições ornamentais de
expressão livre, nomeadamente no Colégio de Santa Rita (Figura n.o 6). Estas com-
posições, não historiadas, apresentam os concheados como o grande tema, associados
por vezes a efeitos marmoreados ou esponjados.
A policromia tem, nesta fase, uma importância fulcral, começando a aparecer nos
planos de fundo dos enquadramentos e rodapés – permanecendo as reservas centrais
dos painéis pintados a uma só cor [azul ou manganés] –, sendo uma nota presente
na maior parte dos núcleos a grande densidade e pujança cromática da paleta de
cores aplicadas que, para além do azul de cobalto, inclui os castanhos vinosos e os
amarelos intensos com notas de laranjas (Figuras n.os 3 a 7).
Incluímos nesta fase, o regresso da padronagem, criação associada ao período
pombalino. Ornatos leves, coloridos a azul e manganés, muito gráficos e simples,
constituindo largas tramas diagonais com rosetas ou florões colocados nos pontos de
ligação dessa malhas reticuladas ou no centro dos losangos formados por essas linhas,
encontram-se no Colégio de Santa Rita e Colégio das Artes (Figuras n.os 9 e 10).
Como exemplares pertencentes à terceira variante da azulejaria da 2.ª metade de
Setecentos observada nos colégios das Ordens Religiosas – que cronologicamente
remetemos para a fase final desse período –, por paulatina contaminação da emergente

39 Nomeadamente no trabalho de gravadores como Jeremias Wolff, Martin Engelbrecht, Hertel, Carl Pier, os irmãos
Johann Baptist Klauber e Joseph Sebastian Klauber, Franz Xaver Jungwierth entre outros.
150 Diana Gonçalves dos Santos

estética decorativa neoclássica, os painéis azulejares aí integrados apresentam os seus


elementos decorativos muito mais contidos e com menor expressividade, sendo muito
acentuados os efeitos marmoreados dos enquadramentos e rodapés (Figuras n.os 11 a 18).
Não se registam alterações formais significativas no interior das reservas centrais
dos painéis em relação à tendência anterior. A concepção é a mesma verificada na
variante anterior, apenas se observando a aplicação de uma policromia exuberante
na pintura das composições, em alguns casos, com pintura a quatro cores – painéis
da capela da portaria do Colégio de Santo António da Pedreira (Figuras n.os 13 e
14) – ou a duas cores, verde e manganés – painéis da aula do colégio de Santo
Agostinho (Figura n.o 18) –, resultando composições de acentuado impacto visual.
Os enquadramentos dos painéis assumem uma tendência classicizante, apresentando-se
rectilíneos e separados por pilastras de perfil simples, decoradas com efeitos marmoreados
de colorido vibrante, as quais são rematadas por exuberantes urnas floridas. (Figuras n.os
13, 16 e 18) As molduras das reservas centrais são rectangulares e apresentam singela
decoração de efeitos marmoreados (Figura n.o 14) ou, então, elementos vegetalistas
– que variam entre folhas de louro (Figura n.o 18) e trepadeiras de desenho delicado
entrelaçadas em elementos filiformes (Figura n.o 16) –, estando colocados nos seus
cantos pequenos óvulos, enquadrados por elementos concheados de desenho semelhante
ao das pequenas cartelas colocadas no eixo axial dos painéis, sobre o embasamento
e entablamento. Por vezes, são colocados sobre a linha recta dos painéis, espaldares
recortados com ornamentos concheados de gosto Rocaille, combinados com decoração
vegetalista e floral e com efeitos marmoreados, como se observa nos painéis da capela
da portaria do Colégio de Santo António da Pedreira (Figura n.o 13).
Neste ciclo há, ainda, lugar para as composições ornamentais de expressão livre,
como se verifica nas ilhargas dos lanços da escadaria do Colégio de São Jerónimo,
as quais alternam com as composições figurativas dos patamares. Nestes painéis
as composições são mais contidas nas formas representadas, aparecendo muito
discretamente ornatos concheados, mais delgados, por entre os demais elementos.
Considerando todas estas variantes, afirmar que estamos perante um conjunto
azulejar Rococó não será uma solução facilitista de rotulagem de núcleos em azulejo onde
se verificam intromissões da linguagem Rocaille quer pontualmente, quer de uma forma
mais afirmativa ou então articulada com uma sensibilidade classicizante40? Sinal da
nostalgia do Barroco41 é a manutenção dos mesmos esquemas de guarnição dos painéis
azulejares com a simulação de arquitecturas nos elementos ornamentais representados,
onde embasamentos, pilastras, mísulas, entablamentos e frontões constroem estruturas
que funcionam como bocas de cena – nada mais típico à ideia da teatralidade barroca –,
resultando conjuntos altamente dinâmicos para os vários espaços arquitectónicos pela
imposição de ritmo, efeito corrector das arquitecturas e, simultaneamente, enriqueci-
mento estético como suporte de inovadora(s) linguagem(s) estilística(s).

40 Seguindo a metodologia aplicada por J. Jaime Ferreira-Alves para a arquitectura barroca e neoclássica do Norte
de Portugal e retomando a caracterização que José Augusto França fez para a arquitectura portuense da segunda
metade do Século XVIII, citada pelo mesmo autor. FERREIRA-ALVES, 2005:151.
41 BORGES, 1986: 91.
Azulejaria tardobarroca dos colégios das Ordens Religiosas de Coimbra 151

Neste sentido, a expressão tardobarroca que utilizamos no título deste artigo é, de certa
forma, provocatória, e retoma a discussão, já de longa data, sobre as classificações das
expressões artísticas datadas da 2.ª metade de Setecentos.42 A opção pela aplicação desta
classificação controversa foi feita pensando na melhor forma de englobar nela as várias
nuances verificadas nos espécimes azulejares in situ nos colégios de Coimbra datados desse
período cronológico. Bem analisadas, as formas verificadas revelam indicadores de uma
azulejaria barroca amadurecida, sem uma linguagem pura, e oscilante entre incidências
Rocaille e outras mais classicizantes próximas do léxico do estilo Neoclássico. A utilização
da expressão Rococó poderia ter sido adoptada, contudo, implicaria muitas reticências, uma
vez que, no conjunto, não verificamos uma coerência sintáxica e morfológica que permita
uma classificação estilística unívoca, isto é, a atribuição de um rótulo concreto e plenamente
definido.43 Desta forma, a escolha da expressão tardobarroca44, vai no sentido de englobar as
variantes estilísticas verificadas que evidenciam um processo de lenta reciclagem de formas,
facto que, por si só, implica a existência de persistências remanescentes de fenómenos
anteriormente amadurecidos, mas que, ao mesmo tempo, revelam detalhes de uma inovadora
criatividade sem que aconteça uma derradeira cisão com os padrões artísticos tradicionais.
Fruto da encomenda de várias Ordens Religiosas com estabelecimento colegial
junto da Universidade de Coimbra, a obra de azulejaria da 2.ª Metade de Setecentos
que permanece hoje integrada em alguns desses colégios – contemporânea de uma
época de grande fulgor produtivo da cerâmica de Coimbra, sendo elementos chave
o episódio da Fábrica de Telha Vidrada e os nomes de Salvador de Sousa Carvalho,
Manuel da Costa Brioso – caracteriza-se pela sobreposição de linguagens decorativas
que oscilam entre o gosto rococó e uma sensibilidade mais classicizante – sendo de
sublinhar essa grande ambivalência de classificação – e, ao mesmo tempo, pelas
notórias semelhanças técnicas e formais verificadas no conjunto que permitem a
formulação de atribuições relativas à autoria.
Em suma, as tendências quase contrárias verificadas nos enquadramentos das compo-
sições – entre o uso quase abusivo do concheado, túrgido e cheio de vigor, e a decoração
controlada e disciplinada de forte pendor classicista – e a sobreposição de formulários
compositivos e formais nas reservas figurativas, deixam em aberto a classificação estilística
geral deste conjunto azulejar, opção que se torna ainda mais cautelosa se tivermos em
conta que permanecem desconhecidas as datas precisas para essas obras de azulejaria.

42 Para as expressões artísticas da Segunda Metade do Século XVIII surgem variadíssimas classificações. Tardo-Barroco
ou Barroco Tardio, Rococó, Estilo Pombalino, Neoclassicismo são rótulos adoptados por diferentes autores na classificação
de objectos artísticos com a mesma datação e saídos da mão do mesmo artista. MASSARA, 1989: 5; BORGES,
1986:91-92. Para a constatação desta situação de ambiguidade de classificação vejam-se as obras que assumem
firmemente o Rocaille como expressão artística autónoma do Barroco, ou que questionam essa independência
destacamos as seguintes: BURY, 1956; Bazin, 1964; Kimball, 1980; Minguet, 1992; Norberg-Schulz, 1973; Park,
1992; OLIVEIRA, 2003.
43 Nelson Correia Borges admite a controvérsia da classificação, assumindo a falta de unidade estilística da arte

produzida a partir de 1750, todavia, considera preferível aceitar a rotulagem Rococó do que atribuir-lhe uma
classificação dentro do Barroco ou do Neoclassicismo. BORGES, 1986: 91.
44 A nossa opção foi feita à semelhança da expressão internacional Late Baroque, utilizada para a classificação da arte europeia

do período que sucedeu o Barroco clássico, no século XVIII, com origem em França, Alemanha e Áustria. Deste modo,
o Rococó é tomado como linguagem decorativa enquadrada na evolução geral do Barroco, respeitante à sua etapa final.
152 Diana Gonçalves dos Santos

Figuras n.os 1 e 2
Painel no Refeitório do Colégio
de Santo António da Pedreira e
pormenor dos ornatos do remate do
seu emolduramento (ca.1750-1760)

Figura n.º 3 – Painel do vestíbulo do andar nobre Figura n.º 4 – Painel com cena bucólica da porta-
do Colégio de São Jerónimo (ca. 1770-1780) ria do Colégio de São Jerónimo (ca. 1770-1780)
Azulejaria tardobarroca dos colégios das ordens Religiosas de Coimbra 153

Figura n.º 5
Painel com cena da Flagelação de Cristo na capela
lateral de Nossa Senhora da Piedade da igreja do
Colégio do Carmo (ca.1770-1780)

Figura n.º 6
Painel de composição
ornamental na caixa de
escadas do Colégio de
Santa Rita
(ca.1770-1780)
154 Diana Gonçalves dos Santos

Figura n.º 7 – Pormenor de motivo rocaille


no enquadramento do painel da Flagelação
da capela de N.ª Sr.ª da Piedade da igreja
do Colégio do Carmo
(ca.1770-1780)

Figura n.º 8
Motivo rocaille.
Gravura de Carl Pier
Fonte: MANDROUX-FRANÇA, 1973.

Figuras n.os 9 e 10
Painéis de padronagem pombalina dos colégios das
Artes e de Santa Rita (ca.1770-1780)

Figuras n.os 11 e 12
Painel no claustro do Colégio do Carmo com
cena da Vida do Profeta Elias e pormenor de
jarra florida colocada sobre a porta da hospedaria
(ca.1775)
Azulejaria tardobarroca dos colégios das ordens Religiosas de Coimbra 155

Figura n.º 13
Painel na capela da portaria do Colégio
de Santo António da Pedreira com a cena
do Milagre Eucarístico da Mula por Santo
António (ca.1780-1790)

Figura n.º 14
Painel na capela da portaria do Colégio
de Santo António da Pedreira com a cena
do Pregação de Santo António aos peixes
em Rimini Pormenor da reserva figurativa
(ca.1780-1790)

Figura n.º 15
Painel na capela-mor da igreja do Colégio
de Santo António da Pedreira com a cena
da Adoração dos Pastores
(ca. 1780-1790)
156 Diana Gonçalves dos Santos

Figura n.º 16
Painel no 2.º patamar da
escadaria monumental do
Colégio de São Jerónimo com
a representação de uma cena
de paisagem urbana
(ca. 1780-1790)

Figura n.º 17
Painel na ilharga da caixa
de escadas monumental do
Colégio de São Jerónimo
com a representação de uma
composição ornamental
(ca. 1780-1790)

Figura n.º 18
Painel numa aula do Colégio
de Santo Agostinho de
temática paisagística
(ca. 1780-1790)
Azulejaria tardobarroca dos colégios das ordens Religiosas de Coimbra 157

Figuras n.os 19 a 22
Vários pormenores de figuras representadas em painéis da
2.ª metade de Setecentos nos colégios de Santo António da
Pedreira (capela da portaria), do Carmo (Capela de N.ª Sr.ª
da Piedade e Claustro), de São Jerónimo (vestíbulo do andar
nobre) ca.1770-1790

Figuras n.os 23 a 25
Vários pormenores de animais representadas em
painéis da 2.ª metade de Setecentos nos colégios
de Santo António da Pedreira (capela da porta-
ria), do Carmo (Claustro) e de Santo Agostinho
(aula) ca.1770-1790
158 Diana Gonçalves dos Santos

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Encomendas artísticas para a Igreja Matriz
do Santíssimo Sacramento e Sant’Ana de Salvador
durante o século XVIII
Eugênio de Ávila Lins

As encomendas artísticas, para fins religiosos, constituem-se no cotidiano barroco,


foro de plenitude das mais naturais manifestações da relação do homem com a igreja.
A igreja/religiosidade intervém visceralmente na vida dos cidadãos, nos mais íntimos
pormenores, torna-se mestra da vida, transita das manifestações de humildade à
apoteose do poder. As irmandades e confrarias – sociedades religiosas leigas – vão
servir para manter a estrutura de poder vigente e preparar os indivíduos para uma
entrada no “outro mundo” com pompa e circunstância1.
As encomendas artísticas para a Igreja Matriz do Santíssimo Sacramento e Sant’Ana
de Salvador, durante o século XVIII, expressavam a maneira de viver do religioso e
as relações de poder da sociedade barroca. Desta maneira, os encomendadores, as
encomendas, os artistas e as obras constituem-se em verdadeiros documentos que
revelam esta complexa relação entre o poder temporal e religioso, e sinalizam os
modos de viver e de ver a vida nesse período.
Trabalhar com a concretização das manifestações artísticas executadas sob enco-
menda para a Igreja Matriz do Santíssimo Sacramento e Sant’Ana é essencialmente
procurar revelar fragmentos do fazer artístico e da função que a arte desempenhou
na relação do homem com o religioso durante o século XVIII.

Irmandade do Santíssimo Sacramento e Sant’Ana


A atual Paróquia do Santíssimo Sacramento e Sant’Ana, instituída em 1679, na
cidade do Salvador, fora dos muros da cidade, estabeleceu-se primeiramente na igreja
de Nossa Senhora do Desterro, que servia tanto à freguesia como ao convento de
Santa Clara do Desterro, fundado em 1671, razão porque era chamada de “Freguezia
do Desterro”. A Matriz servia para as funções paroquiais e para a celebração dos atos

1 SOARES, 2009: 20.


162 Eugênio de Ávila Lins

da comunidade das clarissas. Era administrada pela Irmandade de Nossa Senhora do


Desterro, ali erecta. Sua criação deve-se à expansão da cidade para a segunda linha
de cumeada, quando da invasão holandesa de 1623 e, posteriormente, à implantação
do primeiro convento de freiras de Salvador – Convento de Santa Clara do Desterro
– ocasionando um aumento considerável de moradores no bairro2.
Inicialmente, conviviam pacificamente as freiras e o pároco, como também a
Irmandade administradora e a do Santíssimo Sacramento. Posteriormente, tiveram
início as divergências entre as freiras e o pároco sobre a jurisdição eclesiástica da
Igreja. Ao mesmo tempo, as Irmandades entraram em conflito por questões que se
encontram registradas no “Termo de Resolução”, de 1744, no qual a Irmandade do
Santíssimo Sacramento justifica a necessidade de edificar uma nova matriz. As acusações
à Irmandade de Nossa Senhora do Desterro denotam uma acirrada disputa de poder:
[...] esta Irmandade do S. S. Sacramento desde a sua creação e erecção desta Freguezia do
Desterro, não tivera nunca sacristia sua propria nem casa alguma sua para a sua fabrica e uzo dos
seos Irmãos; pelo que era precisada a guardar a sua fabrica e mais paramentos em caixões pela Egreja
e outras partes improprias, na contingencia de se furtarem a ainda com despreso dos ornamentos e
mais ministeres, que servem de acompanhar ao S. S. Sacramento quando sahe fóra aos enfermos; o
que tudo procedia de não ser a mesma Egreja propria da Matriz d’esta Freguezia, e ser administradora
della a Irmandade de Nossa Senhora do Desterro, que continuamente pertuba esta Irmandade do S.
S. Sacramento não lhe deixando fazer operação alguma para sua boa acommodação; e tanto que já
no anno de 1736 intentara expulsar da dita Egreja a mesma Irmandade [...]3.
Diante da situação de conflito, a Irmandade do Santíssimo Sacramento resolve edificar
uma nova Matriz dentro dos limites da Freguesia do Desterro, em local que fosse mais
conveniente para os “fregueses”, na rua que “chamão do Tingui, por ser o sitio, e lugar
mais conveniente, que há para ficar no meyo da freguezia com muito comodo asim para
os moradores da parte da Saude, como para os que ficão no bairro da Palma [...]”4.
Em reunião celebrada no dia 8 de Outubro de 1744, na Sacristia da Matriz de Nossa
Senhora do Desterro, a Irmandade do Santíssimo Sacramento encaminhou ao Rei os
pedidos de licença para edificar a nova Matriz e de ajuda de custo para as obras, ao
tempo em que solicitou também ao Arcebispo da Bahia, Dom José Botelho de Mattos,
licença para mudar o Santíssimo Sacramento da Irmandade para um das capelas filiais
da freguesia, enquanto aguardava a anuência do Rei para a construção do novo templo5.

Construção da nova Matriz


A Provisão de sua Majestade, dando licença para a construção da nova Matriz,
foi concedida em 10 de Março de 1746. Constam, neste documento, as razões que
motivaram o Rei a deliberar positivamente ao pedido de criação da nova matriz:

2 BARBOSA, 1952: 353.


3 IRMANDADE, 1744: 1.
4 IRMANDADE, 1744: 3.
5 IRMANDADE: 1744, 5.
Encomendas artísticas para a Igreja Matriz do Santíssimo Sacramento e Sant’Ana de Salvador… 163

Faço saber a vós Reverendo Arcebispo da Bahia, que lendo a representação que me fez o Padre
João Florêncio dos Santos Vigário colado na freguezia de Nossa Senhora do Desterro extra-muros
dessa Cidade da Bahia, e o Juiz e mais Irmãos da Confraria do Santíssimo Sacramento da mesma
Igreja, como também os mais Parochianos della a cerca das contendas que tem tido com as Religiosas
de Santa Clara que se servem da dita Igreja Matriz, e com a Irmandade da mesma Senhora do
Desterro sobre matérias de jurisdiçõens de que tem corrido pleito; pedindome que para encego de
todo fosse servido conceder a elles Supplicantes Licença para fazerem a sua custa hua nova Igreja
para servir de Matriz debaixo da protecção invocação do Santíssimo Sacramento e Santa Anna, que
tomarão por Protectora [...] e tendo concideração nas suas razões, e as que enformates sobre esta
matéria em que foy ouvido o Procurador da minha Coroa e tambem attendendo a impropriedade
que há em ser a dita Igreja juntamente Matriz, e de Religiosas em que se hão confundir os actos
da Cummunidade com os da freguezia com menor edificação dos que assistirem as profiçõens na
dita Igreja e quazi no mesmo tempo celebrar matrimonio; Fuy Servido por Resolução de Seis de
Fevereiro deste prezente anno em Consulta do meo Conselho Ultramarino, Conceder licença aos
Supplicantes para fazerem a sua custa a dita nova Igreja para servir de Matriz [...]6.
Por solicitação do Arcebispo da Bahia, dom José Botelho de Mattos, ao Rei, a nova
Matriz teria como protetora a Senhora Sant’Ana, que se tornaria padroeira da Irman-
dade, que passaria a denominar-se Irmandade do Santíssimo Sacramento e Sant’Ana.
A Provisão de sua Majestade também autorizava a translação do Santíssimo
Sacramento para alguma capela filial da Freguesia, ato que se deu no dia 8 de
Setembro de 1746, quando se celebrou a festa do Santíssimo Sacramento na Matriz
de Nossa Senhora do Desterro, de onde saiu em procissão, composta por vários carros
e “charolas” ornadas “ricamente de custosas tellas, na qual foi levado o Santíssimo
Sacramento em custodia e depois de fazer giro pelas ruas custumadas da Freguezia
se recolheu o Santissimo“7 na Igreja de Nossa Senhora da Saúde.
Após a obtenção da concessão, a Irmandade do Santíssimo Sacramento e Sant’Ana
decidiu, em reunião realizada em 7 de Agosto de 1746, comprar três casas localizadas
na rua do Tinguí para ampliar a área doada para a edificação da igreja. Uma dessas
casas era de pedra e cal e as outras duas tinham paredes de barro. Para proceder a
avaliação do valor dos imóveis foram chamados os “mestres de Pedreiro e Carpintaria
das obras desta Cidade”8.
Em 13 de Outubro de 1746, o Arcebispo da Bahia emitiu Provisão para ereção da
nova igreja, na qual determinou que a edificação devia obedecer às determinações
das Constituições Sinodais do Arcebispado, contidas no “Livro Quarto, Título XVII:
Da edificação, e reparação das Igrejas Parochiaes”, no que se refere a sua implantação
em “sitio alto, logar povoado, decente e acomodado, livre de humidade e desviados
de logares immundos e sordidos e de casa particulares, com distancia que podem
andar as procissões ao redor delle”9.

6 IRMANDADE, 1746: 10.


7 BARBOSA, 1952: 363.
8 IRMANDADE, 1746: 10v.
9 CONSTITUIÇÕES, 1853: 252.
164 Eugênio de ávila Lins

Consta da Provisão as dimensões da edificação: “100 palmos de comprimento e


50 de largura, e que a Capella mor ficava com 50 palmos de fundo e 26 de largo,
com as suas Sacristias.” o documento determina ainda que a construção devia ser
em pedra e cal, e com os melhores materiais possíveis, e registra a obrigatoriedade de
ornar e paramentar a dita igreja. o lançamento da primeira pedra para construção do
novo templo ocorreu no dia 18 de outubro de 1746, com a presença do Arcebispo
da Bahia, e contou com a concorrência de grande número de pessoas10.
No que se refere à encomenda e autoria do projeto arquitetônico da Matriz, até o
momento não foi encontrado nenhum registro documental. As características arquitetônicas
do edifício denotam que foi um profissional de grande conhecimento. Sua planta apresenta
algumas peculiaridades: nave única, corredores laterais sobrepostos por tribunas, cúpula
no cruzamento do transepto extremamente curto, separado da nave por um arco cruzeiro
(Figura n.º 1). Neste partido desaparecem as capelas laterais intercomunicantes, que são
substituídas por altares de ambos os lados da nave. A cúpula, coroando o transepto,
elemento raríssimo na arquitetura brasileira, foi a segunda construída em Salvador.
Anterior a ela apenas a da Igreja de Santa Tereza, do convento dos Carmelitas Descalços,
a qual não é vista externamente (Figura n.º 2). Desta maneira, a cúpula da Igreja de
Sant’Ana foi a primeira que teve expressão arquitetônica para o exterior do edifício11.

Figura n.º 1 – Nave e capela-mor da Igreja Matriz Figura n.º 2 – Vista externa da cúpula da Igreja
do Santíssimo Sacramento e Sant’Ana Matriz do Santíssimo Sacramento e Sant’Ana

10 BARBoSA, 1952: 365.


11 o Professor Américo Simas, em estudo não publicado, que se encontra no Centro de Estudos da Arquitetura da
Bahia, da Faculdade de Arquitetura da universidade Federal da Bahia, atribui o risco da planta da igreja ao Mestre
Pedreiro Felipe de oliveira Mendes, primeiro encarregado da obra do templo, mas não apresenta comprovação
documental. Sabemos que o referido pedreiro atuou na Igreja de Santana em diversos momentos da execução da
obra, conforme relataremos neste texto (Arquivo do CEAB/FAuFBA).
Encomendas artísticas para a Igreja Matriz do Santíssimo Sacramento e Sant’Ana de Salvador… 165

Encomendas feitas pela Irmandade do Santíssimo Sacramento e


Sant’Ana
Durante a execução das obras, realizadas entre 1746 e 1760, destacaram-se
algumas encomendas feitas pela Irmandade do Santíssimo Sacramento e Sant’Ana
a artistas e artífices, com a finalidade de ornar e paramentar o templo, como estava
instituído nas Constituições Sinodais do Arcebispado da Bahia, que expressavam a
mentalidade religiosas da época: a “cantaria lisa”, para molduras, lajeados e portas; o
retábulo da capela-mor para o Santíssimo Sacramento (quando este fosse transladado
para a novo templo), a imagem de Senhora Sant’Ana; os armários da sacristia e o
risco e execução do frontispício da igreja.

Cantaria lisa
Em resolução tomada na reunião do dia 30 de Abril de 1747, um ano após o
início das obras da nova Matriz, a Irmandade do Santíssimo Sacramento e Sant’Ana
deliberou a execução da cantaria lisa, necessária para as molduras dos vãos (Figura
n.º 3), degraus e lajeado:
[...] foi proposto que para effeito de se continuar na obra da Nova Matriz era precizo
algua pedra de cantaria, e como a Irmandade não a podia fazer por sua conta como a mais
obra de alvenaria rogou ao nosso Irmão Felipe de Oliveira Mendes a quem está encarregada
a administração da mais obra da dita Igreja Matriz que por sua grande devoção e charidade
a faz e assiste a ver fazer, quizesse encarregarse de fazer, de fazer a cantaria que fosse preciza
para principio da obra, e sem a qual não se podia continuar nella, e com effeito de seos preços
conforme o feitio da cantaria, e sendo consultados os preços por alguns mestres desta Cidade
enformarão que estava muito racional e acomodados os preços que o dito nosso Irmão declarou
podia fazer, e com effeitose ajustou em meza e se obrigou a fazer toda a cantaria preciza para
a dita obra a saber para cada vara de cantaria liza coatro mil e oitocentos: Para cada vara de
cantaria de Muldura seis mil e setecentos reis. Para cada vara de cantaria de degrau cinco mil
reis. Para cada vara de lageado sinco mil e duzentos reis, e as portas travessas que se fizerem
serão pela avaliação para o que se ordenou que o nosso Irmão Thezoureiro desse duzentos mil
reis ao dito nosso Irmão Filippe de Oliveira Mendes para principio da obra [...]12.
O encarregado da obra, o Mestre Pedreiro Felipe de Oliveira Mendes, era natural
da Vila de Viana (1700), Arcebispado de Braga, filho de Antônio de Oliveira e
Maria Vaz. Pediu admissão no quadro social da Santa Casa da Misericórdia em 1733,
incumbindo-se da execução do zimbório da capela-mor da igreja da referida entidade,
em 1734. Foi Juiz de Oficio das obras da cidade do Salvador, executou as obras do
Solar do Gravatá, marco da arquitetura civil de Salvador, e foi autor do frontispício
da Igreja do Santíssimo Sacramento e Sant’Ana13.

12 IRMANDADE, 1747: 11v.


13 ALVES, 1976: 113.
166 Eugênio de ávila Lins

Figura n.º 3
Porta lateral da Igreja Matriz do Santíssimo Sacramento e
Sant’Ana

o termo de Resolução informa-nos também que a obra era realizada de duas maneiras:
a primeira, por administração direta da Irmandade, como é o caso das alvenarias; a
segunda, mediante encomendas a profissionais gabaritados. No que se refere ao valor
das encomendas, era feita uma consulta aos mestres da Cidade, para obter-se um valor
que fosse justo. Atualmente denominaríamos esta consulta de “Tomada de Preço”.

Retábulo
uma prática recorrente, quando da construção de igrejas no Brasil, era a benção
do templo antes da conclusão total das obras. Assim que a capela-mor apresentava
condições de ser utilizada, era realizada a benção desse espaço, com a devida autorização
das autoridades eclesiásticas, para que este local sagrado pudesse ser utilizado para
fins litúrgicos. Como a capela-mor da Matriz do Santíssimo Sacramento e Sant’Ana
já apresentava condições de receber o Santíssimo e a Santa Padroeira, foi necessário
providenciar a execução do retábulo para abrigar ambos os oráculos. Para tanto, a
Irmandade, em reunião realizada no dia 2 de Fevereiro de 1751, resolveu o seguinte:
[...] visto estar esta Irmandade edificando a nova Matriz e estar já em termos de se collocar
nella o Santíssimo Sacramento era precizo cuidar em se fazer o retabulo para a capella mor, e
se poder collocar nella com a decência devida o mesmo Senhor e justamente a senhora Santa
Ana nossa Padroeira e protectora no que convierão o dito Juiz e mais Irmãos em que se fizesse
o dito retabulo para cujo effeito appareceo em meza o nosso Irmão o Ajudante Francisco Gomes
correa e disse que querendo a meza mandar fazer o retabulo elle como mestre nesta cidade o faria
a contento e satisfação da meza, e com effeito apresentou vários riscos, e sendo vistos votarão
os Irmãos em que fosse hum delles o qual assignarão os ditos Irmãos da meza pelas costas do
Encomendas artísticas para a Igreja Matriz do Santíssimo Sacramento e Sant’Ana de Salvador… 167

dito risco, e se obrigou a fazello e asentallo na dita obra o mais breve que puder [...] que o risco
aprovado consta de seis collunas e se ajustou em que se fizesse somente coatro e como asim se
asentou em meza fiz este termo em que comigo escrivão actual da dita Irmandade se assignou
o dito Juiz e mais Irmãos dia e era ut supra14.
o valor estabelecido para a execução do retábulo foi de oitocentos mil reis, dinheiro
que a Irmandade esperava ganhar de sua Majestade como auxílio prometido para as
obras da capela-mor. Ficou também acertado entre a Irmandade e o mestre que, em
caso do não recebimento da doação, ela ficaria obrigada a arcar com o pagamento,
desembolsando o valor de cem mil reis anualmente. o aporte financeiro prometido viria
do rendimento do patrimônio da dita Irmandade. Em 1754, a Irmandade recebeu de
esmola de sua Majestade a quantia de “doze mil cruzados” para as obras da capela-mor.
o autor do risco do retábulo e de sua execução, o entalhador Francisco Gomes
Corrêa, era natural de Barcelos, filho de Manoel Gomes e Ana Gomes, igualmente
naturais da Barcelos. Pediu admissão ao quadro social da Santa Casa da Misericórdia
em 1743 e requereu que fossem declarados seus privilégios como entalhador da
Ribeira da Bahia15. Até o momento atual desconhecem-se outras obras realizadas
pelo referido entalhador em Salvador.
As reformas que ocorreram no início do século XIX, na Matriz de Sant’Ana,
mais especificamente, a substituição de toda a obra de talha localizada na nave e
capela-mor, executada no século XVIIII, nada registram sobre o antigo retábulo.
Como parâmetro para avaliar analogamente a possível composição dessa estrutura
ornamental, tomamos como referência o retábulo da capela-mor da Igreja o Convento

Figura n.º 4
Retábulo-mor da igreja do Convento de N. S. da
Conceição da Lapa
Fonte: FREIRE, 2006: 360.

14 IRMANDADE, 1751: 15v.


15 ALVES, 1976: 52.
168 Eugênio de Ávila Lins

da Lapa, executado em 1755, por Antônio Mendes da Silva. Segundo Luiz Freire16, o
retábulo com formato de baldaquino parece ter sido introduzido na Bahia em meados
do século XVIII, e o exemplar mais antigo ainda existente é o da capela-mor da Igreja
do convento de Nossa Senhora da Conceição da Lapa (Figura n.º 4).

Imagem de Senhora Sant’Ana


A Irmandade, quando tratava das questões relativas aos cuidados que deviam ser
dispensados à construção de novos templos, entre os quais o de ornar e paramentar
os espaços destinados à liturgia, especificamente a capela-mor, era rigorosa. Dando
prosseguimento às determinações contidas nas Constituições Primeiras do Arcebispado
da Bahia17, para que o Santíssimo Sacramento pudesse ser transladado para o novo
templo, conforme acordo estabelecido com os responsáveis pela Capela de Nossa
Senhora da Saúde e Glória, em reunião do dia 10 de Maio de 1752, deliberou-se o
seguinte:
[...] visto a determinação de se querer fazer a treslação do Santíssimo Sacramento da
Capella de Nossa Senhora da Saúde e gloria, onde enterinamente é freguezia no dia oito de
Cetembro do prezente anno em que se completarão os dois annos em que por huas: criptura se
obrigou a Irmandade a idificar sua nova Matriz, e deixar aquella Capella e com effeito assim
se detriminava fazer no dia mencionado, era precizo cuidar no que fosse mais necessário para
se fazer a ditta traslação visto como a Igreja ser idificada pella Irmandade com o Titulo de
Santa Ana e Sacramento era preciso mandar fazer a Imagem de Senhora Santa Anna para se
collocar no altar mor com orago daquella Matriz, porque se devia cuidar muyto na perfeição e
asseyo da ditta Imagem, e em tudo o mais que fosse precizo para o seo ornato e perfeição como
era resplandor para a ditta Santa, coroa para a Senhora e os mais acessórios recomendavam
a delligencia e execução destas obras ao nosso Irmão Escrivão actual para que com o seo zello
costumado e boa intelligencia mandace fazer as referidas obras pellos officiais que julgasse
mais capazes para o ditto ministério cuja satisfação se obrigava a Irmandade pellos seos bens a
satisfazer o que se ajustace e fosse justo, visto como nosso Irmão Escrivão para esta e mais obras
nos ter mostrado a experiência pella eleição e assim se encarregou mandar fazer a Imagem e o
mais precizo para ella [...] fizesse toda a despeza preciza e necessária para a referida funçam
da traslação do Santíssimo Sacramento para a sua nova Matriz, na qual se avia de fazer hum
sollenne Tridu para o que era precizo cuidar no aceyo e ornato da Igreja cera e tudo o mais que
fosse conveniente e necessário para esta função, e visto como se tinha ajustado com Paullo Fragoso
da Silva com esta Meza em fazer a Armação della por duzentos mil reis, poderia também o dito
Tezoureiro fazer toda a despeza preciz como de será, Musica e tudo o mais que fosse necessário
para o ornato e lutre desta função que confiamos so dito nosso Irmão Tezoureiro [...]18.

16 FREIRE, 2006: 358.


17 CONSTITUIÇÕES, 1853: 256.
18 IRMANDADE, 1752: 17v.
Encomendas artísticas para a Igreja Matriz do Santíssimo Sacramento e Sant’Ana de Salvador… 169

Mais uma vez, a Irmandade cumpriu as determinações contidas nas Constituições


Primeiras do Arcebispado da Bahia, no que se referia ao título “Das Santas Imagens”
que estabelecia: “E mandamos que as imagens de vulto se facão daqui em diante de
corpos inteiros, e ornados de maneira que se escusem vestidos, por ser assim mais
conveniente, e decente”19. Não foi encontrado, na documentação existente da Matriz
do Santíssimo Sacramento e Sant’Ana, o contrato ou recibo de pagamento, no qual
constasse o nome do artista responsável pela confecção da imagem da Padroeira.
No que se refere ao aparato necessário para a translação do Santíssimo Sacramento
para a nova igreja, a Irmandade contratou um “Armador”, pela quantia de “duzentos
mil reis”, para executar carros e charolas decoradas com sedas, ouro e diamantes,
o que evidencia o papel que tinha esse ofício nestas celebrações. Não encontramos
até o momento nenhuma documentação que pudesse esclarecer a naturalidade e a
trajetória profissional do “Armador” contratado.
Em 20 de Agosto de 1752, a nova igreja recebeu a benção feita pelo Reverendo
Doutor Provisor Manoel Fernandes da Costa, Chantre da Santa Sé da Bahia, após
a visita com a finalidade de avaliar se o templo achava-se decentemente preparado
para celebrar os Ofícios Divinos e para administrar os Sacramentos20, conforme
estabeleciam as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia.
No dia 7 de Setembro de 1752, foi transladado o Santíssimo Sacramento da Igreja
de Nossa Senhora da Saúde e Glória para a nova Matriz:
Pelas 3 horas da dita tarde, sahio da dita Egreja uma solemnissima Procissão que se ordenou
de bem compostos carros e curiosas charolas, ornadas de muito vistosas sedas, telas, ouro e
diamantes, nas quais traziam as devotas Confrarias que há em toda esta Freguezia os Santos
e Imagens que servem de objectos a sua devoção; excedendo a todas as charolas em que foi
trazida a Imagem da Senhora Sant’Ana, que é a mesma que esta no altar da nova Egreja adora
a nossa devoção, por que n’esta charola quis mostrar o artífice Paulo Franco não só a riqueza
dos seos paramentos, nem só a idéia singularíssima do seo conhecido engenho, mas sim o fino
de sua cordeal devoção, pois só esta lhe podia servir de estimulo para tão peregrino invento21.
A procissão percorreu as principais ruas da Freguesia, composta também por
Ordens Religiosas da cidade e autoridades civis e eclesiásticas. As celebrações da
translação duraram três dias, com destaque para a música, que “foi a melhor e foram
chamados todos os Professores da arte d’esta cidade, que não usaram de papel ou
solfa alguma que não fosse nova e composta para a mesma função”22.

19 CONSTITUIÇÕES, 1853: 256.


20 IRMANDADE, 1752: 17v.
21 BARBOSA, 1952: 367.
22 BARBOSA, 1952: 368.
170 Eugênio de Ávila Lins

Armários da sacristia
A Irmandade, em 20 de Novembro de 1754, resolveu continuar as obras da sacristia,
pois aquela que servia ao Culto Divino achava-se imperfeita e totalmente sem asseio:
O que sendo por nos ouvidos, e considerada, a obrigação que tínhamos de continuar a
referida obra, the a pormos em sua ultima perfeição entendemos de que se continuasse nella, e
ordenamos ao nosso Irmão Thezoureiro Luiz da costa Landim que a fizesse totalmente the de
principio fazendo na dita Sacristia dous almarios, forrando-a toda de taboado de bom louro e
obra lixa; e que mande fazer hum caixão para a dita Sachristia de vinhático bom pello modello
do caixão de ornamento da Sachristia da Igreja dos Terceiros de São Francisco desta Cidade
e que tão bem divida a dita Sachristia da escada, que sobe para o Consistório della com hua
parede de tijolo, deixando nelle hum nincho para o oratório que há de haver encostado nella o
qual tão bem mandará fazer o nosso Irmão Thezoureiro de madeira liza com algua galanteria;
e deixará no dito frontal, que se há de fazer hua porta, para a servidão que deve haver, da
dita Sachristia para o Consistório tudo na melhor forma, que for possível, attendose ao melhor
cômodo. E da mesma sorte se lhe recomenda continuar em aperfeiçoar a nossa Sachristia
fazendolhe outro armário; dividindoa com hua parede, que tão bem terá nincho, e duas porta
hua para a servidão da escada e outra, para a caza de despejos, que em breve ficará por detraz
da dita parede, por baixo da escada que sobe para o consistório: e na frestas que se achão em
ambas as duas Sachristias, pella pouca segurança que tem; fará em cada hua dellas, hua janella
proporcionada, com portas de boa madeira, com soleira e verga de pedra, nas quais embeberá
grade de ferro: e para toda a referida obra de madeyra, escolherá o dito Irmão Thezoureiro
entre os mestres, o que melhor, e com mais commodo a fizer, que ajustarão por empreitada: e a
de pedra e cal será feita de jornaes, fazendo conduzir todos os materiaes, que necessário forem,
a custa dos bens da Irmandade [...]23.
Apesar de não encontramos contratos ou recibos de pagamento das encomendas
e, consequentemente, os autores das obras, este registro possui duas informações que
consideramos de muita importância para a História da Arte brasileira: a primeira,
relativa à escolha de um modelo já existente, neste caso o arcaz da sacristia da Ordem
Terceira de São Francisco de Salvador, para que servisse de referência para a execução
do proposto; e a segunda, relativa à escolha dos profissionais para a execução das
obras, que deveriam estar entre os melhores da cidade.

Frontispício
Somente oito anos após o início das obras de construção da Matriz, a Irmandade
ajustou a obra para a execução do frontispício da Igreja. Em reunião realizada em 15
de Dezembro de 1754, segundo o “Termo de Resolução”, compareceu à reunião da
Irmandade o Mestre Pedreiro Felipe de Oliveira Mendes, apresentando um “risco”
feito em papel imperial, com o desenho do frontispício projetado: “consta de três
23 IRMANDADE, 1754: 21.
Encomendas artísticas para a Igreja Matriz do Santíssimo Sacramento e Sant’Ana de Salvador… 171

portas, três janellas. Empena e dous cunhaes” (Figura n.º 5). O custo proposto pelo
Mestre Pedreiro era de “dez mil cruzados sendo sentada toda a pedra de que consta
o dito risco a sua custa: fazendo o em tudo perfeito, e sem defeito”. Comprometia-se
também a entregar a dita obra num prazo de três anos:
[..] e dar sentadas as três portas da Igreja e os cunhaes que necessário forem para acompa-
nharem toda a altura das portas, que ficarão de todo perfeitos: e sendo ouvido pello Juiz, e mais
officiaes e Irmãos que prezentes estavão: depois de ter corrido o escrutínio, e ser votado, de que
não convinha pello presso que se ponderarão de que a dita obra se mandasse fazer a Lisboa
como pello Irmão Paulo Franco da Silva foi requerido; cuja matéria sendo proposta, foy por
votos rejeitadas. E votandosse para effeito de se acordar de se haver ou não de se se ajustar a
dita obra com dito Mestre Felippe de Oliveira, correndo o escrutínio, por votos e favas brancas
e pretas; se acharão todos os votos a favor de dito Mestre para effeito de se ajustar com elle a
dita obra: e com effeito se ajustou na fr.ª seguinte. Que aceitávamos, o risco que apresentava o
qual vay por nos asinado ficando elle dito Mestre obrigado a apresentalho no fim da dita obra;
e todas as vezes que por nos for pedido, para se averiguar a idoneidade e semelhança da obra,
que for sentado; e que as almofadas que mostra o risco, serão tiradas, porque serão de Lizas,
depois das varas: e que as portas, e janellas, que mostra o risco terão forros e vergas: e que as
portas da Igreja, e as duas janellas, que não imitão no remate a porta principal, e a janella do
meyo, sejão todas, de remates redondos, e meya volta, e que as janellas do coroserão em tudo
semelhantes e igual das com a janella que mostra o risco no lugar do meyo; e que nos dous sepos
de cada hua das portas pequenas, haja alguma perfeição mais, do que o que mostra o risco,
que se acha so em lizo: que corresponda a demais obra o seguinte: toda a pedredaria, será de
Itapagipe, dura, de grão grosso sem mistura de seixo; e que não aceitaremos, outra algua pedra,
que não for da dita qualidade, e reprovamos toda a pedra de Camamú como também que não
aceitaremos pedra algua ainda que seja da dita qualidade sendo molle; e que não aceitaremos
pedra algua, que partida e quebrada mostre defeito depois de sentada: e que o frontispício será
feito sem resalto, que mostra, porque os cunhaes, e varas, que já se achão sentados, serão tirados
e lizas atiradas as almofadas, e servirão para os cantos das Torres [...]24.
Algumas questões merecem destaque neste “Termo de Resolução”. Em primeiro
lugar, a escolha de Felipe de Oliveira,25 para projetista e executor da obra do frontis-
pício, ficando comprovado que o Mestre Pedreiro era um profissional extremamente
qualificado. Muitas vezes, estes profissionais exerciam a função de engenheiros e
arquitetos. Em segundo lugar, a opção de não mandar encomendar a obra em Lisboa,
o que denota que na cidade do Salvador existiam profissionais qualificados. Outra
questão interessante é a intervenção dos encomendadores no projeto apresentado,
alterando o risco original. Isto demonstra que uma coisa era o projeto do autor e
outra era o que se executava, seja por questões de gosto de quem encomendava, seja
por questões técnicas na execução.

24 IRMANDADE, 1754: 23v.


25 Já consta no texto informações tanto pessoais como profissionais do Mestre Pedreiro Felipe de Oliveira Mendes.
172 Eugênio de Ávila Lins

Vale ressaltar a ingerência da Irmandade na escolha dos materiais, principalmente


quando determinava que a pedra fosse da pedreira de Itapagipe e não de Camamú; a
primeira pedra é o arenito, material de grande resistência, e a segunda é uma pedra
calcária, que tem pouca resistência, a despeito de ser mais maleável para o trabalho
de esculpir do que a primeira. Os Irmãos fizeram a opção pela durabilidade e pela
facilidade de manutenção da obra.
Para assegurar que o contrato fosse cumprido pelo Mestre Pedreiro, seu filho,
Manoel de Oliveira Mendes, declarou:
[...] que athe afiançava ao dito seo pay Felippe de Oliveira Mendes em todo o dinheiro que
dito recebesse desta Irmandade; para cujo officio e segurança obrigava sua Pessoa e bens havidos
e por haver como se por escritura publica se obrigasse: como tão ben, para a dita segurança
obrigava o dito Mestre Filippe de Oliveira sua pessoa bens havidos e por haver; e que obrigavão,
hum por ambos, e ambos por hum. E dicerão ambos, que se obrigavão por sua pessoa e bens,
havidos, e por haver, hum por ambos e ambos por hum, a acabarem o dito frontispício, pello
dito risco e pello dito presso de dez mil cruzados, na forma acima declarada; e caso que por
algua razão, deixem de completar a dita obra athe a sua ultima perfeição: a poderá a Irmandade
mandar acabar a custa dos bens delles ambos: e de como assim o disserão e se obrigarão, na
forma dita aqui se assinaram ambos: e de como nos assim nos contratamos [...]26.
Manoel de Oliveira Mendes, nasceu na cidade do Salvador, cursou a Aula de
Engenharia Militar da Bahia, na qual obteve o título de Engenheiro. Executor de
diversas obras em Salvador, em 1762 foi promovido ao posto de Ajudante-de-Ordens
e foi também medidor de obras do Senado da Câmara dessa cidade27.
No que se refere à composição formal do frontispício, vale destacar o trabalho
em cantaria da porta principal, das portas laterais, janelas e frontão, com desenho
bastante elaborado (Figuras n.os 6, 7 e 8), provavelmente inspirado em gravuras
que circulavam em meados do século XVIII, já que não encontramos nenhuma
correspondência formal desses elementos nos tratados de arquitetura que circularam
no Brasil, tais como Sebastião Serlio, Vignola e Andréa Pozzo.
A execução das obras do frontispício não obedeceu ao prazo estabelecido, tanto
que, em 9 de Janeiro de 1757, a Irmandade propôs:
[...] que se devia fazer hua porsão sertã de sincoenta mil reis por mês para se adiantar mais
a obra do Frontispício da Igreja pois havião dous annos quazi que se tinha dado principio a elle
e muito pouco se tinha adiantado sendo o ajuste que se tinha feitto com o Mestre impreyteiro
Felippe de Oliveira Mendes de o dar na sua ultima perfeissão acabado dentro de três annos, os
quaes se completavão neste prezente anno de mil settecentos sincoenta e sette, como consta do
termo lançado neste Livro a folha 117 [...]28.
As obras do frontispício somente foram concluídas em 1760, quando a Irmandade
determinou, em 25 de Março do referido ano, que os Mestres Pedreiros Eugênio da
26 IRMANDADE, 1754: 23v.
27 ALVES, 1976: 114.
28 IRMANDADE, 1757: 31.
Encomendas artísticas para a Igreja Matriz do Santíssimo Sacramento e Sant’Ana de Salvador… 173

Motta e Henrique da Silva, sob juramento, examinassem a obra para averiguarem


se estava “conforme o risco” e totalmente concluída29.
Em 4 de Maio de 1760, no consistório da Irmandade do Santíssimo Sacramento e
Sant’Ana, estando os membros reunidos, os Mestres Pedreiros nomeados avaliadores
atestaram, após exame, que a obra do frontispício estava concluída e sem defeito
algum30.
Durante a segunda metade do século XVIII, a Irmandade continuou com as
encomendas para atender às recomendações eclesiásticas que zelavam pela perfeição
na celebração do “ofício Divino” e também para atender às demandas coletivas de
seus membros, que buscavam estabelecer uma relação íntima com a esfera divina.
As encomendas e as escolhas dos artistas e artífices constituíam-se também em uma
forma de demonstração de novidade e de apuramento estético, consequentemente
uma demonstração de prestígio e riqueza. É importante salientar que as instituições
religiosas leigas sempre disputaram o melhor status entre si, tanto para demarcarem
territórios como para estabelecerem espaços de poder na sociedade.

Figura n.º 5 – Frontispício da Igreja Matriz do Figura n.º 6 – Parte central do frontispício
Santíssimo Sacramento e Sant’Ana da Igreja Matriz do Santíssimo Sacramento e
Sant’Ana

29 IRMANDADE, 1760: 35.


30 IRMANDADE, 1760: 35.
174 Eugênio de ávila Lins

Figura n.º 7
Detalhe das portas principais
da Igreja Matriz do Santís-
simo Sacramento e Sant’Ana

Figura n.º 8
Detalhe do frontão da
Igreja Matriz do Santíssimo
Sacramento e Sant’Ana

Fontes e Bibliografia

Fontes
IRMANDADE Do SANTÍSSIMo SACRAMENTo E SANTANA, 1744-1760 – Centro de
Estudos da Arquitetura na Bahia, Faculdade de Arquitetura da universidade Federal da Bahia.
Salvador: Pasta Matriz do Santíssimo Sacramento e Sant’Ana.
CoNSTITuIÇÕES PRIMEIRAS Do ARCEBISPADo DA BAHIA, 1853 – Propostas, e Aceitas
em o Synodo Diocesano, que o dito Senhor celebrou em 12 de junho do anno de 1707. São Paulo:
Tipografia 2 de Dezembro.

Bibliografia
ALVES, Marieta, 1976 – Dicionário de Artistas e Artífices da Bahia. Salvador: universidade Federal
da Bahia.
BARBoSA, Cônego Manoel, 1952 – “A Paróquia do Santíssimo Sacramento e Sant’Ana”. Revista
do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia, n.º 77. Salvador: IHGB, pp. 351-369.
FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro, 2006 – A Talha Neoclássica na Bahia. Rio de Janeiro: Versal.
SoARES, Maria Ivone da Paz, 2009 – E a Sombra se Fez Verbo: Quotidiano Feminino Setecentista
por Braga. Braga: Associação Comercial de Braga.
A obra de Frei José de Santo António Ferreira Vilaça
na igreja do antigo Mosteiro do Couto de Cucujães
Eva Sofia Trindade Dias

Introdução
O antigo Mosteiro de S. Martinho do Couto de Cucujães1 encontra-se situado
no concelho e comarca de Oliveira de Azeméis, distrito de Aveiro, diocese do Porto.
Segundo alguns autores, este mosteiro beneditino foi fundado no ano mil, por D. Egas
Moniz, o Gascão2. Contudo, a hipótese mais sólida3 será a que aponta para a fundação
antes de 1139, por D. Egas Odóriz4, já que em 7 de Julho do mesmo ano, o ainda
Infante D. Afonso Henriques concedeu Carta de Couto ao mosteiro, representado nas
pessoas do já referido D. Egas Odóriz, patrono do mosteiro, e de D. Martinho, abade
do mesmo. Desde a sua fundação, este cenóbio teve uma importância fulcral para a
região, uma vez que educava monges para o cultivo das terras, e das outras artes e
ofícios, peças-chave na cristianização de um povo e de um território em formação.
Teve também uma importante acção política, antes e durante a fundação de Portugal,
através da prestação de alguns serviços ao Infante D. Afonso Henriques, que acabou
por o recompensar com a concessão da Carta de Couto. Com a instituição deste,
Cucujães adquiriu a categoria de vila, além de ficar independente e imune às leis
gerais, revertendo para o senhorio os impostos que eram pagos à coroa, potenciando
assim o desenvolvimento local e a vinda de servos ou colonos5. Desta forma, a história
do cenóbio beneditino vai ter uma relação estreita com o território.
Avançando até ao século XVI, centúria marcada pelo Concílio de Trento (1545-
-1563) e pelas repercussões dos decretos dele emanados, este revelou-se fundamental

1 Actual Seminário da Sociedade Missionária da Boa Nova, anexo à Igreja Paroquial de São Martinho de Cucujães,
antiga igreja do cenóbio beneditino.
2 Annaes: 255-257; AREDE, 1914: 20; AREDE, 1922: 6; COSTA, 1929: 987; Grande Enciclopédia, 1960: 202; S.
TOMÁS, 1651, Tomo II: 277.
3 Trata-se da hipótese mais sólida porque sustentada no mais antigo documento sobre o mosteiro, a Carta de Couto
de 7 de Julho de 1139, com transcrição completa em AREDE, 1922: 15-21 e em SILVA, 2005: 60-64.
4 MATTOSO, 2002: 128, 130; OLIVEIRA, 1942: 12-15; OLIVEIRA, 1945: 121-129; SILVA, 2005: 10-12. Já
Bernardo V. Sousa aponta o Mosteiro de S. Martinho de Cucujães como tendo sido fundado no fim do século XI ou
princípio do seguinte (SOUSA, 2005: 73).
5 SILVA, 2005: 23.
176 Eva Sofia Trindade Dias

para a reforma das ordens monásticas6. Para os beneditinos portugueses, os ventos de


mudança chegaram em 1566, com a instituição da Congregação dos Monges Negros
de São Bento do Reino de Portugal7. Regulada a administração dos mosteiros, estes
iniciaram obras de reparação e, já em finais do século XVI, iniciaram a estratégia
de transformação do seu espaço, com um programa de obras que se desenvolveu
de forma permanente até ao século XIX8. Semelhante procedimento foi tomado no
Mosteiro do Couto de Cucujães, operando-se alterações significativas, que resultaram
no apagamento total dos vestígios da igreja primitiva e concederam ao espaço o
aspecto que se manteve até à actualidade.
O presente trabalho visa dar a conhecer a obra de Frei José de Santo António
Ferreira Vilaça na igreja do antigo Mosteiro de São Martinho do Couto de Cucujães,
a sua estreita ligação com os tratados que o artista beneditino possuía e com as
estampas avulsas oriundas do Centro da Europa, com as quais certamente contactou,
obra essa inserida no quadro das transformações do espaço sacro que vinham a ser
desenvolvidas desde a primeira metade do século XVII.

1. Frei José de Santo António Ferreira Vilaça: o homem, a obra e as


influências
Frei José Ferreira Vilaça (1731-1809)9 constitui uma figura marcante no quadro da
segunda metade do século XVIII bracarense. Monge donato da Congregação de São
Bento, Frei Vilaça terá sido iniciado no ofício de carpinteiro pelo pai, considerado um
dos melhores artistas do seu tempo10, sendo provável que com ele tenha recebido ensi-
namentos da arte da talha. Será neste campo que vai assumir a sua dimensão artística,
tanto como entalhador como autor de riscos, embora também tenha feito incursões nos
domínios da arquitectura, escultura em pedra, estuques, ferro forjado e da pintura11.
Relativamente à obra de José Ferreira Vilaça antes de professar muito pouco se sabe.
O seu primeiro contrato para a execução de uma obra em talha data de Novembro
de 1754 e corresponde à feitura do retábulo da capela-mor da igreja do Convento de

6 Foi no século XVI que a Igreja Católica desferiu o golpe decisivo no combate contra o desregramento da vida
monástica que vinha a minar as ordens religiosas desde finais do século XIV. Através do capítulo vigésimo primeiro
da XXV Sessão do Concílio de Trento (1545-1563) determinou que a direcção dos mosteiros deveria ser entregue a
regulares e não distribuída em comendas (REYCEND, 1781, Tomo II: 403-405), com o claro intuito dos mosteiros
retomarem a disciplina monástica que devia caracterizar estas casas religiosas.
7 Através da bula In Eminenti, emitida pelo papa Pio V em Abril de 1566 (DIAS, 1993: 121), além da instituição

da Congregação dos Monges Negros de São Bento do Reino de Portugal, foi ordenada a supressão das comendas por
morte dos abades comendatários (ANTUNES, 2007: 162). Neste contexto, a posse do Mosteiro de São Martinho
do Couto de Cucujães deu-se em Março de 1588, sendo seu comendatário o beneditino Frei António Gonçalves
(DIAS, 1993: 123). Contudo, a entrega do governo do mosteiro a um monge reformado só se efectivou a 20 de
Dezembro de 1596 (AREDE, 1922: 40; SILVA, 2005: 54).
8 ANTUNES, 2007: 427.
9 Sobre aspectos biográficos do artista, ver Quadro n.º 1.
10 “…chamavase o meu pay Costodio Ferreyra mestre carpinteiro daquele tempo dos milhores…” (SMITH, 1972, vol. I:

100).
11 Sobre os domínios em que se estende a obra de Frei José Vilaça, ver Gráfico n.º 1.
A obra de Frei José de Santo António Ferreira Vilaça na igreja do antigo Mosteiro do Couto de Cucujães 177

Santa Clara de Amarante, actualmente desaparecido. Este é o único trabalho, até agora
conhecido, executado antes de 1757, ano em que acompanhou o pai como ajudante na
execução da talha da nova capela-mor da igreja do Mosteiro de S. Martinho de Tibães12.
A partir de 1764 começam as viagens de Frei José Vilaça e as suas estadias noutros
mosteiros da Congregação de S. Bento, através das quais foi difundindo o gosto
moderno bracarense, com a execução das suas obras. A fonte onde surge o rol de
obras executadas é o Livro de Rezam, lista que se encontra longe de estar completa, já
é exclusivamente composta pelos trabalhos realizados para os mosteiros beneditinos,
quando Frei Vilaça executou outros trabalhos para instituições laicas13. É igualmente
de salientar que a lista se confina às obras que o monge considerava serem “as
mais conçidraveis”14, excluindo, deste modo, outras que possuíssem um valor menos
relevante, segundo a óptica do artista. Através da análise do documento, podemos
concluir que as obras foram executadas entre 1754 e 1798, encontrando-se dispersas
por diversos mosteiros situados em Tibães, Santo Tirso, Refóios de Basto, Rendufe,
Arnóia, Paço de Sousa, Pombeiro, Alpendurada, Couto de Cucujães, e pelas igrejas
de Nossa Senhora dos Remédios de Lamego, de Santa Cruz e de São Frutuoso, em
Braga, e da Santa Casa da Misericórdia de Guimarães.
Apesar da existência destes dados, não conseguimos tecer qualquer crítica específica
à obra técnica executada pelo monge entalhador, uma vez que é difícil apontar com
precisão os elementos por si elaborados. Supõe-se que Frei Vilaça dirigisse a execução
de certos trabalhos importantes e que a ele estivessem associados grandes entalhadores,
que concediam excelência e uniformidade técnica às peças executadas15. O vasto
conjunto de obras realizadas por este monge artista foi dividido em três fases distintas
por Robert Smith16, segundo as variações estilísticas que as peças apresentavam no
tempo longo: a primeira fase, de 1758 a 1768, designada por primeiro estilo; a segunda,
de 1768 e que abarca a década de 1770, conhecida por segundo estilo; e o terceiro
estilo, cerca de 1780 a 1798, que corresponde à terceira fase da obra de Frei Vilaça17.
Não terminaremos este ponto sem antes mencionar as influências apresentadas
pela obra do monge beneditino. Desde início dos anos 30 do século XVIII começaram
a surgir as primeiras manifestações de um novo estilo decorativo, que se caracterizou
essencialmente pela assimetria, exuberância e elegância das formas, à época designado por
“gosto moderno”. A nova linguagem decorativa originária sobretudo da Europa Central,
12 A sua chegada a Tibães coincidiu com um momento da maior importância artística para a igreja deste cenóbio,
que se encontrava em plena campanha de renovação entre os anos de 1757 e 1761. A estadia em Tibães vai-se
prolongar até Julho de 1764 e vai revelar-se fulcral para Frei Vilaça, uma vez que vai trabalhar com o entalhador
José Álvares de Araújo, o principal executante de toda a obra em talha que se encontrava no interior da igreja do
mosteiro beneditino, riscada por outro prodigioso mestre: André Ribeiro Soares da Silva. Estas são duas das figuras
mais marcantes do Rococó nortenho, que teve como foco principal a cidade de Braga (SMITH, 1972, Vol. I: 43-45;
ALVES, 1989: 528).
13 Dipois das obras que tenho feito e riscado na minha religião fis outras muitas em diversas partes do Reino que para as referir

seria presizo excrever muito a este respeito (SMITH, 1972, vol.I: 152).
14 SMITH, 1972, vol.I: 152
15 SMITH, 1972, vol.I: 246.
16 Ver Capítulo IV de SMITH, 1972, vol.I: 247-282, que o autor dedicou à análise estilística da talha do artista

beneditino e o seu contributo para a Arte Portuguesa.


17 Sobre os três estilos artísticos desenvolvidos por Frei Vilaça, ver Quadro n.º 2.
178 Eva Sofia Trindade Dias

mas igualmente de França, chega a Portugal, sobretudo aos núcleos conventuais do


Entre Douro e Minho, através das estampas decorativas e das imagens devocionais.
São estas imagens e informação artística subjacente que vão marcar o panorama
artístico português até finais de Setecentos18. Será nestes meios monásticos, onde Frei
José Vilaça se movimentava, que esta nova linguagem vai por ele sendo assimilada,
servindo simultaneamente de suporte visual aos seus próprios riscos.
Todavia, apesar de adoptar este repertório decorativo, o artista beneditino vai
reinterpretar estes motivos e conceder-lhes um cunho pessoal, facto que vai revestir
a sua obra de um carácter original. Paralelamente às gravuras decorativas, as imagens
de devoção, também designadas por Registos de Santos, constituem outra abundante
fonte de inspiração para o monge artista, à semelhança de algumas obras técnicas
e tratados de arquitectura e decoração, que Frei Vilaça possuía na sua biblioteca
pessoal19. Além destes, o estilo de André Soares, que se manifestou essencialmente
através da talha, teve uma importância fulcral na formação e na obra artística de
Frei José Ferreira Vilaça. Prova evidente desta influência na talha do monge artista
traduz-se na proximidade dos elementos da gramática decorativa de André Soares
e a interpretação feita por Frei Vilaça, sobretudo quando este desenvolve a sua arte
no período correspondente ao primeiro estilo20.

2. A passagem pelo Mosteiro do Couto de Cucujães

2.1. O Mosteiro do Couto de Cucujães à passagem de Frei José Ferreira Vilaça


Frei José Ferreira Vilaça chega ao Mosteiro do Couto de Cucujães em 1792 e aí
permanece até 20 de Maio de 1796, como mencionado no seu diário21. Porém, os
contactos com o Mosteiro parecem ter-se iniciado previamente, por volta de 1783-
-1786, ano da feitura dos retábulos colaterais, como explanamos mais detalhadamente
no ponto 3.2.1. Nesse triénio era abade Frei Pantaleão de S. Tomás, que determinou
a construção de dois retábulos colaterais, pagos com os seus rendimentos22. Este facto

18 ARAÚJO, 1996: 46. Marie-Thèrése Mandroux-França considera que a internacionalização do gosto que se instaura
na corte de D. João V, a circulação de artistas estrangeiros e a multiplicação de encomendas nos diferentes centros de
criação europeia conduz a um interesse crescente pela informação veiculada pelo livro e pela estampa. Assim sendo, como
adianta a autora, o século XVIII corresponde a um período de grande enriquecimento das colecções de gravura em Portugal
(MANDROUX-FRANÇA, 1983: 162).
19 Sobre as obras que Frei Vilaça possuía na sua biblioteca pessoal, ver Quadros n.os 3 e 4.
20 ARAÚJO, 1996: 95-96.
21 No mesmo Mosteiro do Couto risquei a obra do fronte espisio e aesisti a faqtura dele e mais obras donde estive quatro

anos fazendo varias obras que neste tempo se continuarão a fazer por ordem do N. Reverendíssimo P. M. Dor. Fr. Manoel
Caetano do Lureto e vim de la para Tibaens e 20 de Mayo de 1796. (SMITH, 1972, vol. I: 152).
22 Fesce de novo o altar colateral do Santo Christo de talha moderna e risco agradável; o outro altar colateral, que lhe corresponde

ja esta feito e em vesperas de se apintar; estes dous altares são obras da devoção do N. M. Pe. P. P. Fr. Pantaleão de Santo
Thomas dom abbade deste mosteiro que os mandou fazer a custa do que a relegião lhe concede para o seu uzo e do que a
sua relegueza moderação soube poupar, privando-se das comodidades licitas e devertimentos permitidos, e bem contra sua
expreça vontade fizemos aqui esta lembrança por obrigação do nosso agradecimento e para edeficação das posteridades, os
quaes altares custarão = duzentos e vinte e oito mil reis. (A.D.B. – Estado do Mosteiro do Couto de Cucujães, 1783-1786,
n.º 115, fol.15).
A obra de Frei José de Santo António Ferreira Vilaça na igreja do antigo Mosteiro do Couto de Cucujães 179

permite-nos concluir que o Mosteiro conseguiu uma renovação estilística não por
meios financeiros próprios, que certamente seriam reduzidos, mas pelo patrocínio de
um abade que, à custa de algum sacrifício, conseguiu que a igreja fosse acompanhando
o “gosto moderno” que se ia desenvolvendo noutras casas da Congregação e que esta
renovação fosse executada por um artista de alta craveira na época.
O facto de o mosteiro possuir meios financeiros reduzidos é comprovado através
do douramento dos altares, que se processa nove anos depois da sua feitura. Será só
a partir do Estado de 1792-1795 que teremos conhecimento das obras executadas por
Frei Vilaça, o que poderá indiciar que este chegou ao cenóbio cucujanense quando a
comunidade conseguiu reunir meios financeiros suficientes para suportar a progressão
da renovação artística do interior, que se havia iniciado por volta de 1783-1786.
Simultaneamente, operou-se a renovação do exterior, com a construção da fachada.
Os elementos até aqui apresentados vêm reforçar as considerações de José Can-
deias da Silva, que aponta o Mosteiro de Cucujães como um dos mais modestos da
Congregação de S. Bento, sendo a sua importância resultado do facto de se situar
num ponto estratégico de passagem, servindo de local para hospedar monges do Norte
que se deslocavam para estudar em Coimbra, ou mesmo os monges que eram lentes
na Universidade de Coimbra. Além disso era, dos antigos mosteiros reformados, o
único que se situava a Sul do Douro e que possuía uma boa biblioteca e botica23.
É neste quadro de sacrifícios e dificuldades económicas, mas também de grande
vontade de renovação artística que se inserem as obras executadas por Frei José de
Santo António Ferreira Vilaça na igreja do antigo Mosteiro do Couto de Cucujães
e que passamos a abordar detalhadamente.

3. A obra produzida na igreja do antigo Mosteiro do Couto de Cucujães

3.1. Exterior
A igreja do Mosteiro do Couto de Cucujães, fundada antes de 1139, foi recebendo
campanhas de ampliação/reconstrução ao longo dos tempos. Todavia, apenas temos
conhecimento das obras referidas nos Estados do Mosteiro, balizados entre 1629
e 182224. Pelo Estado referente ao triénio de 1659-1662, sabemos que se inicia a
reconstrução da capela-mor, culminando em 166825. Mais tarde, entre 1710-1713,
temos conhecimento do aumento dos panos murários do corpo da igreja em seis
palmos, todos apainelados com guarnições26, enquanto que a realização da fachada
principal data de 1795-1798, obra de Frei José Ferreira Vilaça, a única concebida
pelo monge artista. Daqui decorre a importância da realização, além de constituir a
derradeira obra arquitectónica da carreira artística do monge beneditino.

23 SILVA, 2005: 38.


24 Datas dos Estados do Mosteiro do Couto de Cucujães presentes no Índice Monástico-Conventual do Arquivo Distrital
de Braga., Congregação de S. Bento, n.º 114 e 115.
25 A.D.B. – Estados do Mosteiro do Couto de Cucujães, 1665-1668, n.º 114, fol.14v.
26 A.D.B. – Estados do Mosteiro de Couto de Cucujães, 1710-1713, n.º 114, fol.7.
180 Eva Sofia Trindade Dias

3.1.1. Fachada principal


A fachada principal da igreja do mosteiro encontra-se referida no rol de obras
constantes do Livro de Rezam27, realização confirmada no Estado do triénio de 1792-
179528 e concluída em 179829. Trata-se de uma fachada de pendor classicizante, de
aspecto severo (Figura n.º 1).

Figura n.º 1
Fachada principal da igreja do antigo Mosteiro
do Couto de Cucujães
Foto: E. Dias, 2007.

Encontra-se dividida em três registos horizontais e definida por duas pilastras


toscanas de canto assentes em pedestais. A zona central possui um ritmo vertical,
acentuado pelo alinhamento dos elementos que a compõem. o primeiro registo é
composto por uma portada adintelada, rematada por um frontão curvo, com um
elemento decorativo que arranca da base do mesmo e ocupa a parte central do
tímpano. A ladear a porta encontram-se dois pequenos vãos de iluminação, protegidos
por grades, de recorte rectangular, com um ligeiro abatimento da parte superior. Este
registo apresenta-se separado do subsequente por uma cornija. No alinhamento dos
vãos do primeiro do primeiro registo encontram-se dois nichos com moldura em arco
de volta perfeita, assente sobre duas pilastras toscanas, onde se inserem as esculturas
de S. Martinho e de S. Bento, obra contemporânea. Estes nichos apresentam-se

27 No mesmo Mosteiro do couto risquei a obra do fronte espicio e aesisti a faqtura dele… (SMITH, 1972, vol. I: 152).
28 Fes-ce de novo todo o frontespicio com sinco frestas da milhor architectura, e nestas se pozerão grades de ferro, e nestas
mesmas se pozerão vidraças. (A.D.B. – Estados do Mosteiro do couto de cucujães, 1792-1795, n.º 115, fol.14v).
29 A.D.B. – Estados do Mosteiro do couto de cucujães, 1795-1798, n.º 115, fol.8v.
A obra de Frei José de Santo António Ferreira Vilaça na igreja do antigo Mosteiro do Couto de Cucujães 181

encimados por dois vãos de iluminação, de curioso recorte, protegidos por vitrais.
A portada de acesso encontra-se encimada por um grande vão de iluminação, que
reproduz o recorte dos altares colaterais, do interior da igreja. O terceiro registo da
fachada é composto pelo frontão triangular, interrompido na base, assente sobre um
entablamento liso. No tímpano do frontão surge a pedra de armas da Ordem de
S. Bento, ao centro30. Os cantos das empenas do frontão encontram-se rematados com
duas pirâmides, enquanto o vértice do mesmo é rematado com uma cruz apontada.
Apesar da simplicidade e carácter eminentemente classicizante do frontispício da
igreja, que atestam o lançamento de Frei José Ferreira Vilaça numa nova linguagem
estilística, subsistem elementos que demonstram quanto o artista beneditino estava
ligado ao vocabulário Rococó e à movimentação tardobarroca das fachadas, como
sejam o elemento decorativo presente no frontão curvo que encima o vão de acesso,
o rebaixamento na empena do mesmo frontão, o frontão triangular interrompido na
base, assim como a diversidade de recorte dos vãos de iluminação.

3.2. Interior
A igreja do antigo Mosteiro de S. Martinho de Cucujães é constituída por nave
única e capela-mor bastante profunda, coberta por abóbada de berço com caixotões.
As alterações no interior da igreja decorrem das intervenções arquitectónicas referidas
anteriormente. A passagem para a capela-mor é marcada pelo arco cruzeiro, definido
por arco de volta perfeita, assente em pilastras toscanas. Eis a zona de passagem
entre a nave e a capela-mor que vai receber as obras de talha riscadas por Frei José
Ferreira Vilaça: dois altares colaterais e uma sanefa.

3.2.1. Os retábulos colaterais


A primeira referência aos primitivos retábulos colaterais, até agora conhecida,
data do triénio de 1629-163231. Estes mantêm-se até ao triénio de1783-1786, ano
do Estado que refere Fesce de novo o altar colateral do Santo Christo de talha moderna
e risco agradável; o outro altar colateral, que lhe corresponde ja esta feito e em vesperas de
se apintar (…)32. A informação apresentada vem contradizer os dados apresentados
por Robert Smith, que aponta o triénio de 1792-1795 como período de realização
da obra33, triénio da policromia e douramento da obra já realizada34, descurando
totalmente a informação contida no Estado de1783-1786. Este facto permite refutar
outra ideia: que Frei Vilaça entrou em contacto com o Mosteiro de Cucujães unica-
mente nos quatro anos em que lá permaneceu. No próprio Livro de Rezam, o monge

30 Tirarão-se as armas do arco cruzeiro e se colocarão no fronte espicio da igreja (A.D.B. – Estados do Mosteiro do Couto de
Cucujães, 1792-1795, n.º 115, fol.14).
31 A.D.B. – Estados do Mosteiro do Couto de Cucujães, 1629-1632, n.º 114, fol.7v.
32 A.D.B. – Estados do Mosteiro do Couto de Cucujães, 1783-1786, n.º 115, fol.15.
33 SMITH, 1972, Vol. I: 492.
34 Pintarão-se e douraram-se os dois altares colatraes e os quatro castiçaes que lhes dizem respeito. (A.D.B. – Estados do

Mosteiro do Couto de Cucujães, 1792-1795, n.º 115, fol.14).


182 Eva Sofia Trindade Dias

aponta primeiramente o risco para dous altares do Santíssimo Sacramento, separado da


indicação das obras que executou nos quatro anos em que permaneceu no cenóbio35.
Provavelmente encetou contactos com a casa beneditina antes de 1786, no
sentido de averiguar as condições de implantação dos retábulos colaterais, para
proceder posteriormente à elaboração dos riscos, que seriam executados por mão de
colaboradores, ou enviou apenas os riscos para os mesmos sem se ter deslocado ao
mosteiro. Assim sendo, terá intervido na pintura e douramento dos retábulos, acção
que se completa em 1795. Fica por determinar se Frei Vilaça efectuou alguma visita
de supervisão à execução dos retábulos entre 1786 e 1792, ano em que iniciou a sua
estadia no Mosteiro de Cucujães, ou se o fez apenas quando chegou ao mosteiro.
os retábulos colaterais ladeiam o arco cruzeiro, sendo o do lado do Evangelho
dedicado a Cristo Crucificado (Figura n.º 2), e o do lado da Epístola dedicado a Nossa
Senhora do Rosário, actualmente dedicado ao Sagrado Coração de Jesus (Figura n.º 3).

Figura n.º 2 – Retábulo colateral da Crucifixão de Figura n.º 3 – Retábulo colateral do Sagrado
Cristo – lado do Evangelho Coração de Jesus – lado da Epístola
Foto: E. Dias, 2007. Foto: E. Dias, 2007.

35 SMITH, 1972, vol. I: 152.


A obra de Frei José de Santo António Ferreira Vilaça na igreja do antigo Mosteiro do Couto de Cucujães 183

Tratam-se de retábulos com uma linguagem classicizante, que se inserem, segundo


Robert Smith, dentro do terceiro estilo desenvolvido por Frei José Vilaça, onde sobressai
a estrutura dos mesmos em detrimento dos elementos decorativos, bastante contidos.
A estrutura e decoração dos retábulos são semelhantes, embora se verifiquem algumas
variantes. Ambos possuem uma pequena mesa de altar, com frontal guarnecido com
elementos decorativos da linguagem Rococó, ladeada por dois pedestais que consti-
tuem o sotobanco, encimado por um banco com predela, decorado com volutas que
terminam em folhagem, por linhas ondulantes, assim como por motivos decorativos
constituídos por três folhas pendentes, alinhadas. Entre a mesa de altar e o sacrário,
um pequeno friso com um ramo de trigo preso por fita, ao centro e a representação
de cachos de uva com folhas de parra dos lados.
O sacrário encontra-se enquadrado lateralmente por pequenas volutas rematadas
em folhagem, e por linhas ondulantes; na porta surge a representação de uma custódia
em relevo. Apresenta um remate com elemento contracurvado, onde sobressaem
dois motivos decorativos constituídos por folha tripartida, muito recorrente na obra
do monge artista. Do banco arrancam colunas compósitas, que definem o corpo dos
retábulos, de registo único, com fustes ornados de ramos com folhagem e pequenas
bagas, colocados em movimento helicoidal ao longo destes. Entre as colunas encontra-se
o nicho em arco de volta perfeita, com fecho decorado, onde se insere a imagem a que
o retábulo está dedicado, ladeado por dois pequenos nichos colocados lateralmente.
Sobre as colunas compósitas surge o coroamento dos retábulos, constituído pelo
entablamento de onde arrancam a base e empenas de um frontão curvo interrom-
pido, rematado com pequena estrutura triangular ligeiramente abaulada, definida
por saliência e reentrâncias, onde se encontram anjos ladeados por ramos de folhas
semelhantes aos das colunas. Há um claro predomínio da policromia, com recurso ao
branco, castanho e verde, e à técnica do marmoreado fingido, enquanto o dourado
está reservado quase exclusivamente para os elementos decorativos.
Relativamente às diferenças entre os retábulos, estas começam na iconografia
dos mesmos. De salientar que o retábulo do lado da Epístola passou a ser dedicado
ao Sagrado Coração de Jesus, em 1874, estando inicialmentededicado a Nossa
Senhora do Rosário, como atestam as Memórias Paroquiais36 e a iconografia dos
elementos: presença de dois putti que sustentam a palma numa das mãos e coroa na
outra, símbolos atribuídos à Virgem. Além deste aspecto, Frei Vilaça fez distinguir a
iconografia dos dois retábulos no próprio dardo dos capitéis, sendo que o do retábulo
de Nossa Senhora do Rosário é constituído por uma rosa, clara alusão à Virgem
Maria como sendo a “rosa mística”, uma das invocações presente na Ladainha de
Nossa Senhora. Outra diferença prende-se com o facto de no retábulo do Cristo
Crucificado a escultura ser original e surgirem, no seu remate, dois anjos, envergando
amplas vestes, que seguram as Tábuas da Lei.

36 O orago ou padroeiiro desta freguezia e mosteiiro he Sam Martinho bispo. A igreja tem tres altares: o maior he dedicado
S. Martinho, hum dos collatrais a hua imagem do Santo Christo, e o outro a Nossa Senhora do Rozario (…). (Memórias
Paroquiais Cucujães, Feira, 1758, vol.12, n.º 475, pp. 3312. Disponível na internet em: <http://ttonline.iantt.pt>.
184 Eva Sofia Trindade Dias

É evidente a tentativa de Frei Vilaça no sentido da mudança para uma linguagem


de carácter classicizante. No entanto, subsistem ainda muitos elementos da linguagem
Rococó, dos quais Frei Vilaça não se conseguiu demarcar, como sejam as volutas que
terminam em folhagem, o motivo da folha tripartida, as linhas ondulantes, as cascas
enrugadas, entre outros, que se encontram dispersos por estas duas obras.

3.3. A sanefa do arco cruzeiro


Ainda dentro da escultura em madeira concebida por Frei José Ferreira Vilaça
encontra-se a sanefa do arco cruzeiro (Figura n.º 4).

Figura n.º 4
Sanefa do arco cruzeiro
Foto: E. Dias, 2007.

A igreja não possuía sanefa, antes a pedra de armas da ordem de S. Bento, em


granito, que passou para o tímpano do remate da fachada principal no triénio de
1792-179537. Assim, foi concebida uma sanefa nesse mesmo triénio, cuja pintura e
douramento terminou em 179838. Tal como os retábulos colaterais, esta peça insere-se
no terceiro estilo das realizações artísticas de Frei Vilaça, onde sobressai a estrutura da
peça, à qual se submetem todos os elementos decorativos, que contradizem o gosto
neoclássico que o monge artista vinha tentando introduzir nas suas obras.
A sanefa, que prima pela simplicidade e leveza das formas, é constituída por uma
estrutura de base decorada por elementos ondulantes e chamejantes, pormenores como
cascas enrugadas, à qual se sobrepõe, ao centro, uma espécie de óculo decorado com
grinalda de folhas, duas esferas com folhas largas e bagas. No remate do óculo surge
o motivo da folha tripartida, repetido na parte inferior do mesmo, sobre o elemento
que faz a ligação entre o óculo e a estrutura de base. Esta, por sua vez, é rematada
nos cantos por pirâmides assentes sobre um elemento constituído por volutas que

37 Tirarão-se as armas do arco cruzeiro e se colocarão no fronte espicio da igreja. Fes-ce ha magnifica sanefa para o arco
cruzeiro e se anda atualmente pintando e dourando. (A.D.B. – Estados do Mosteiro do couto de cucujães, 1792-1795,
n.º 115, fol.14).
38 Acabou-se de pintar e dourar a çanefa do arco cruzeiro. (A.D.B. – Estados do Mosteiro do Couto de Cucujães, 1795-
1798, n.º 115, fol. 8v).
A obra de Frei José de Santo António Ferreira Vilaça na igreja do antigo Mosteiro do Couto de Cucujães 185

terminam em folhas de acanto enroladas, e por folhas ondulantes. A ligação entre


estes elementos e o óculo é feita através de volutas mais reduzidas, onde se sobrepõem
outros pormenores como cascas enrugadas que culminam em forma de chama e
outro tipo de folhagem. Em termos de policromia, a sanefa encontra-se parcialmente
dourada (douramento reservado sobretudo para os elementos decorativos) e conjuga
igualmente a técnica do mármore fingido em rosa e verde (parte inferior da estrutura).
Contrariamente aos retábulos colaterais, nesta realização há uma persistência forte
do dourado, assim como dos elementos da linguagem Rococó, fazendo com que esta
peça constitua um hino final de Frei José Ferreira Vilaça à exuberância decorativa.

4. Influências apresentadas pela obra produzida na igreja do antigo


Mosteiro do Couto de Cucujães
Apesar de não termos acesso aos riscos executados por Frei José Vilaça para as
obras realizadas na igreja do Mosteiro do Couto de Cucujães, que infelizmente se
perderam, é possível fazer uma análise das mesmas e estabelecer pontos de contacto
com as estampas e tratados que lhe serviram de modelo.
Mencionaremos os pormenores que evidenciam claramente a influência na
concepção dessas mesmas obras.
Na fachada que Frei José Ferreira Vilaça concebeu para a igreja deste mosteiro,
podemos estabelecer uma comparação entre os nichos, que se encontram no segundo
registo, e um dos modelos de nichos que Aviler apresenta no seu tratado de Arqui-
tectura Cours d’architecture qui comprend les ordres de Vignole, avec des comentaires39.
Já o vão central de iluminação tem semelhanças com o recorte de alguns retábulos
concebidos por Andrea Pozzo, que figuram na obra Perspectiva pictorum et architectorum40,
tipo de recorte que se verifica igualmente nos dois retábulos colaterais riscados pelo
artista beneditino para o interior da igreja (Figuras n.os 3 e 4). Relativamente aos
restantes elementos que compõem a fachada, terão sido influenciados pelos tratados
de construção, que possuíam diversos modelos que certamente influíram o génio
criador de Frei Vilaça.
Observemos agora a obra de talha concebida para o interior da igreja do mos-
teiro, mais rica em termos de influências. Ao analisarmos a estrutura dos retábulos
colaterais podemos estabelecer paralelismos com algumas estruturas retabulares e
arquitectónicas apresentadas por Andrea Pozzo, nomeadamente nos frontões curvos
interrompidos41 e no conjunto constituído por pedestal, coluna, entablamento e
frontão curvo interrompido42. Podemos depreender que a estrutura dos retábulos
corresponde a uma síntese inspirada nos modelos de Andrea Pozzo. Para o tipo de

39 AVILER, 1760:169.
40 POZZO, 1717: fig.26, 65 (vol. II).
41 POZZO, 1717: fig.33 (vol. I); POZZO, 1717: fig.26, 60 (vol. II).
42 POZZO, 1717: fig. 21 (vol. I); POZZO, 1717: fig.67 (vol. II).
186 Eva Sofia Trindade Dias

pedestal adoptado por Frei Vilaça, apontamos novamente para a obra de Pozzo43,
com um peso importante na definição do tipo de capitel a usar nas colunas44, para
o qual contribuiu igualmente o tratado de Aviler45. A obra do tratadista italiano foi
igualmente fundamental ao conceder alguns modelos de remates de vãos de iluminação
que se apresentam de forma combinada no óculo da estrutura central da sanefa do
arco cruzeiro e no frontão dos retábulos colaterais46.
Apesar de constituir um tratado de Arquitectura, a obra de Charles Augustin
Aviler revelou-se fundamental na concessão de diversos motivos decorativos que
inspiraram os elementos usados por Frei Vilaça nos retábulos colaterais, nomeada-
mente no tipo de ramos com folhagem que se encontra nos fustes das colunas e no
remate dos retábulos; a folhagem nos ângulos dos pedestais e nas faces destes, e em
alguns elementos da sanefa do arco cruzeiro; o motivo constituído por três folhas
pendentes alinhadas47. Este último motivo remete para um esquema semelhante
presente na decoração de um pedestal que figura no tratado de Andrea Pozzo48 e
para um pormenor decorativo do tratado de Briseaux49, que Frei Vilaça não possuía
na sua biblioteca pessoal, mas com o qual terá contactado. De Aviler podemos ainda
referir a semelhança da rosa do capitel do retábulo do Sagrado Coração de Jesus e
a rosa do remate de pé de página do tratado50, ou o tipo de laço51 que Frei Vilaça
usou com disposição diferente no motivo do trigo amarrado.
Quanto ao motivo da folha tripartida, muito recorrente na obra de Frei Vilaça, que
encontramos nos pedestais das colunas, nos sacrários, no motivo central da sanefa
do arco cruzeiro e no remate da mesma terá sido influenciado pelo mesmo elemento
que se encontra num pormenor decorativo do tratado de Briseaux. Este mesmo
pormenor do tratado possui uma variante do motivo da folha tripartida, idêntico com
o elemento que figura numa das suites criadas por Aviler52 e que é executado pelo
monge artista no fecho do arco de volta perfeita do retábulo do Sagrado Coração de
Jesus, na pequena grinalda de folhas junto ao motivo central da sanefa, no próprio
motivo, assim como no ligeiro ressalto da estrutura da sanefa.
A folha do motivo central da sanefa encontra-se enquadrada por duas linhas
curvas, que se mostram semelhantes a uma solução decorativa do fecho de um arco
que figura numa estampa do tratado De la distribution des maisons de plaisance et de
la distribution des édefices en general53, de Jacques François Blondel. A decoração com

43 POZZO, 1717: fig. 17 (vol. I).


44 POZZO, 1717: fig. 29 (vol. I).
45 AVILER, 1760: 99.
46 POZZO, 1717: fig. 99, 101, 103 (vol. II).
47 AVILER, 1760: 359.
48 POZZO, 1717: fig. 24 (vol. I).
49 SMITH, 1972: 121 (vol. I).
50 AVILER, 1760: 13.
51 AVILER, 1760: 16.
52 AVILER, 1760: 391.
53 BLONDEL, 1738: 48 (vol. 2).
A obra de Frei José de Santo António Ferreira Vilaça na igreja do antigo Mosteiro do Couto de Cucujães 187

folhas esvoaçantes de um frontão triangular54 presente neste tratado terá influenciado


o mesmo motivo visível nas extremidades da sanefa.
A produção artística de Frei José Ferreira Vilaça foi igualmente influenciada,
como já referimos noutro capítulo, pelas estampas Rococó. Podemos estabelecer
um paralelismo entre o motivo dos cachos de uva e folhas de parra, e o motivo da
estampa que representa Ceres, executada por J. I. Nilson. Já o pormenor das folhas
ondulantes, presente na mesma estampa, terá influenciado a execução das folhas que
se encontram nos cantos da sanefa do arco cruzeiro, assim como outras estampas,
nomeadamente duas gravuras publicadas pela oficina de Martin Engelbrecht e duas
gravuras de François-Xavier Habermann.
O tipo de folhas e bagas que encontramos nas esferas de remate da sanefa e na
grinalda do “óculo” central da sanefa, apresentam semelhanças com os motivos da
gravura de J. I. Nilson, com a gravura publicada por Martin Engelbrecht e mesmo
com uma gravura de François-Xavier Habermann. O pormenor da casca enrugada
terminando em recorte chamejante, que apresenta algumas variantes, presente na parte
central e inferior da sanefa, no arranque dos elementos de ligação entre a estrutura
inferior e superior da sanefa, é análogo aos elementos do mesmo tipo constantes nas
estampas de François-Xavier Habermann.
Existem ainda alguns elementos decorativos e estruturais com os quais não foi
possível estabelecer qualquer paralelismo com os tratados e com as estampas de
linguagem Rococó, que confirmam o carácter original das obras de Frei José Ferreira
Vilaça, demonstrando que este não procedia a uma mera reprodução dos modelos
de que dispunha, mas que os interpretava e lhes insuflava o seu toque pessoal, como
procedia à criação de elementos novos.

Conclusão
Através da realização deste estudo conseguimos proceder não a uma mera análise
formal das obras executas por Frei Vilaça na igreja deste antigo mosteiro, como detectar
e corrigir alguns erros relativos às datações das peças, assim como à presença do artista
beneditino no cenóbio cucujanense, permitida pela análise atenta dos Estados do
mosteiro e comparação com bibliografia produzida anteriormente. Relativamente ao
objectivo da análise detalhada das influências que os tratados e estampas de motivos
Rococó exerceram sobre as obras realizadas, podemos constatar que Frei José Vilaça
recorreu essencialmente aos tratados de Charles-Augustin Aviler e Andrea Pozzo,
assim como às estampas oriundas de Augsburgo.
Com este estudo podemos comprovar, igualmente, a base erudita que está por trás
da concepção da fachada, retábulos colaterais e sanefa da igreja do antigo Mosteiro de
Cucujães, apesar deste constituir um mosteiro “periférico” quando comparado com a
localização de outros espaços sacros onde Frei José Vilaça trabalhou. Lança-se assim

54 BLONDEL, 1738: 40 (vol. 2).


188 Eva Sofia Trindade Dias

uma nova questão, que fica para abordagem futura e mais profunda, que assenta no
porquê deste monge beneditino ter-se deslocado para fora do seu “raio de acção” e
aqui ter desenvolvido obras de grande monta, se tivermos em atenção a dimensão e
importância relativa que o Mosteiro do Couto de Cucujães tinha quando comparado
com outros mosteiros da Congregação. Eis uma questão que não coube aqui abordar,
que certamente será de relevante interesse nos debruçarmos futuramente.

Quadro n.º 1 – Frei José de Santo António Ferreira Vilaça (1731-1809) – Breves apontamentos biográficos
Data Aspectos Biográficos Observações
Nasce José Ferreira Vilaça no Terreiro de S.
Lázaro, em Braga, a 18 de Dezembro, filho de
1731
Custódio Ferreira, carpinteiro de profissão, e de
Catarina de Araújo55.
José Ferreira Vilaça toma o hábito da ordem
1758 de S. Bento a 5 de Janeiro56, no Mosteiro de S.
Martinho de Tibães, principiando o noviciado.
Frei Vilaça fica na categoria de irmão donato, facto
Professa no dia 2 de Abril57 e adopta o nome
que lhe permitiu desenvolver a sua arte nos diversos
de Frei José de Santo António Ferreira Vilaça.
mosteiros da ordem.
No Livro de Rezam Frei Vilaça registou todos os defuntos
da ordem, os acontecimentos que ocorreram na sua vida,
1759 empréstimos, para além das regras da ordem beneditina.
Inicia a redacção do Livro de Rezam58, diário Este diário constitui uma fonte fundamental para a
pessoal. História da Arte, uma vez que permite o conhecimento
do percurso artístico de Frei José de Santo António Vilaça:
os livros que constavam da sua biblioteca pessoal59, assim
como o elenco das obras por ele realizadas.
Frei José Vilaça regressa definitivamente a Tibães,
1796 após uma incursão por diversos mosteiros da
ordem.
É nomeado mestre-escola do Mosteiro de São
1798
Martinho de Tibães.
Falece Frei José de Santo António Ferreira Vilaça Em Março, Braga vê-se a braços com a ocupação pelo
a 30 de Agosto, no Mosteiro de Tibães, tendo General Soult. os monges beneditinos são obrigados a
1809
sido sepultado no claustro principal da igreja do abandonar o mosteiro, facto que provavelmente abreviou
mesmo mosteiro60. a vida do monge artista.

55 SMITH, 1972: 34 (vol. I).


56 SMITH, 1972: 100 (vol. I).
57 SMITH, 1972: 100 (vol. I).
58 ADB – Livro de Rezam, Tibães, n.º 728. Ver transcrição integral do documento em SMITH, 1972: 100-152 (vol. I).
59 Ver Quadro n.º 5.
60 SMITH, 1972: 81-82 (vol. I); ALVES, 1989: 530.
A obra de Frei José de Santo António Ferreira Vilaça na igreja do antigo Mosteiro do Couto de Cucujães 189

Quadro n.º 2 – Frei José de Santo António Ferreira Vilaça – Fases estilísticas da obra, segundo Robert
Smith
Período Designação Características
É o mais monumental de todos e caracteriza-se pelo douramento total das superfícies
trabalhadas e pelo recurso à simetria. Este estilo encontra-se fortemente marcado
pela obra de André Soares, pelo carácter plástico que concede às suas obras, mas
também pela temática decorativa, sendo constantes os motivos da voluta com
remate final em enrolamentos de folhas de acanto e os concheados ondulados.
Primeiro
1758/1768 Surgem igualmente outros motivos, que Frei Vilaça vai beber directamente ao
Estilo
vocabulário decorativo das estampas de Augsburgo, como a flor, a folhagem
delicada, a água a correr, os três “amendoins”e os “escudos”. Da sua criação são
o motivo do cabelo esculpido em espirais, o jogo de linhas paralelas que cortam,
no sentido horizontal, zonas convexas ou ondulantes. Nesta fase, o monge artista
confere uma enorme importância à linha61.
É caracterizado pelo acentuar do gosto pela linha, que assume uma extraordinária
elegância e fluidez. os próprios ritmos tornam-se mais lineares, substituindo o
elemento plástico. É abandonado o dourado total, que é substituído pela policromia
fingindo mármores. Alguns dos temas da fase anterior são abandonados, como
1768/ Segundo
a assimetria, as grandes volutas e o motivo da água a correr. os elementos
/década 1770 Estilo
decorativos mais frequentes são as peanhas chanfradas, folhagem, flores, cascas
de vegetais, a combinação de palmas com ramos de oliveira, jarros de flores, o
trigo e a uva, os feixes de plumas ou folhas, assim como o entrecruzar das linhas
curvas sem relevo62.
Possui uma tendência claramente classicizante, sobressaindo elementos de
inspiração arquitectónica, como frontões triangulares, pirâmides, urnas com
festões, pilastras jónicas, entre outros. Há uma “sobrevalorização” da estrutura das
Terceiro peças em detrimento da decoração, que se apresenta muito contida, e um claro
ca.1780/1798
Estilo predomínio da policromia, sendo o dourado reservado para elementos pontuais63.
As realizações que se inserem dentro deste estilo demonstram a tentativa de Frei
José Ferreira Vilaça em lançar-se numa nova linguagem, embora ainda se encontre
preso a alguns elementos da temática Rococó.

61 ALVES, 1989: 529; SMITH, 1972: 248-259 (vol. I).


62 ALVES, 1989: 530; SMITH, 1972: 259-277 (vol. I).
63 ALVES, 1989: 530; SMITH, 1972: 277-282 (vol. I).
190 Eva Sofia Trindade Dias

Quadro n.º 3 – Frei José de Santo António Ferreira Vilaça - Livros pertencentes à biblioteca pessoal
do monge artista
Designação Tipo de Obra Inscrição
“Este libro de Architetura he do uso do irmão Fr.
AVILER, C.A. de – cours d’architecture José de Santo António monge de S. Bento mestre
Tratado de
qui comprend les ordres de Vignole, avec des de obras de Architetura da sua religião. custou
Arquitectura
comentaires. Paris, 1760. quatro mil e oito centos reis; ano de 1771 ano
Pombeiro a -28- do mes de Março do dito ano.”
BLoNDEL, Jacques-François – Architecture “Estes quatro volumes da Architetura franceza
françoise, ou recuil des plans, élévations, maisons Tratado de custarão a Fr. José de Santo António Villaça –
royales, palais, hôtels, édifices les plus considérables Arquitectura 33600- em Lisboa na logea dos bureis as portas
de Paris. 4 Volumes. Paris: 1752-1756. de Santa catarina”.
BLoNDEL, Jacques-François – Livre nouveau
“Do uso de Fr. José de Santo António Villaça
ou Règles des cinq ordres d’Architecture par
Tratado de ano e 1782 monge de Sam Bento e mestre de
Jacques Barozzi de Vignole. Nouvellement revú,
Arquitectura obras de Arquetetura. custou este livro – 4800
corrige et augmenté par Monsier B…architecte
foi do abade de Ermeriz”.
du roy. Paris,1757.
BRISEuX, Charles-Étiene – L’art de bâtir des Tratado de
_________
maisons de campagne. Paris, 1743. Arquitectura
JoMBERT, C.-A. – Architecture moderne ou “Por meu falecimento pertence à livraria de Tibães
Tratado de
l’art de bien bâtir pour toutes sortes de personnes. que assi esta no noso livro de Rezam. Pombeiro
Arquitectura
Paris, 1764. Mayo de 1768 ano”.
“Do uso do padre Fr. Estêvão do Loreto monge
benedictino. Este livro hé do uso do irmão Fr. Joze
Livros
de Santo António Villaça e por seu falecimento
mencionados Tratado de
Pozzo, Andrea S. J. – Perspectiva pictorum et pertence a libraria de Lisboa Sam Bento da
no Livro de Perspectiva e
architectorum, 2 Volumes. Roma, 1717. Saúde. Licensa que lhe facultou capítulo Geral
Rezam Arquitectura
no capítulo de Maio de 1780 ano”. “Do uso
do padre Fr. Estêvão do Loretto digo do uso do
padre Fr. Manuel de S. Gertrudes.”
VERLoYS, M.-C.-F. Roland de – Dictionnaire Dicionário de
d’architecture civile, militaire et navale, 3 volumes. Arquitectura Civil, ___________
Paris, 1770. Militar e Naval
RICHARDSoN, Jonathan; JÚNIoR,
Jonathan – Traité de la peinture et de la sculpture Tratado de Pintura e
___________
par Mrs. Richardson père fils, divisé en trois Escultura
tomes. Amesterdão, 1728.
obras de Teodoro de Almeida e Frei Francisco
___________ __________
de Jesus Maria Sarmento
Livros de álgebra e
__________
Geometria
Livro de Aritmética de Vieira Livro de Aritmética __________
Dicionário de Francês de Manuel de Sousa Dicionário __________
Dois livros de receitas ___________ __________
Cartas do Papa Clemente XIV Cartas __________
Poema de Guimarães Agradecido Livro de Poesia __________
CuNHA, D. Rodrigo – História dos Bispos
Livro de História __________
do Porto.
A obra de Frei José de Santo António Ferreira Vilaça na igreja do antigo Mosteiro do Couto de Cucujães 191

Catecismo de Montpellier Catecismo __________


Quatro livros de Devoções Livro de Devoções __________
Tratado sobre
BLoNDEL, Jacques François – De la “Do uso do irmão Fr. Jozé de Santo António
distribuição
distribution des maisons de plaisance et de la Vilaça mestre de obras de sua congregação lhe
e decoração
Livros não distribution des édefices en general, 2 volumes. custarão em Lisboa 5500 – reis primeira e segunda
de edifícios e
mencionados Paris, 1738. parte em o anno – de 1774”.
respectivos jardins
no Livro de
“Este livro comprei o em Lisboa para o uso do
Rezam BoSSE, Abraham – Traité des manières de
Tratado de irmão Jozé de S. António Villaça no ano de
dessiner les ordres de l’architecture antique en
Arquitectura 1774 – em caza do João Jozé de Bois (Bas) no
toutes leurs parties. Paris, 1664.
Largo de calheires”

Quadro n.º 4 – Frei José de Santo António Ferreira Vilaça – Tratados presentes na biblioteca pessoal
do monge artista
Tratado Conteúdo
Trata diversos assuntos relacionados com a Arquitectura (construção
de edifícios, decoração de jardins, ornamentos para a decoração de
AVILER, C.A. de – cours d’architecture qui comprend les
fachadas, escadas lareiras, nichos, janelas, portas, entre outros), mas
ordres de Vignole, avec des comentaires. Paris, 1760.
não descura a parte gráfica, aparecendo pequenos desenhos de pé de
página, no final dos capítulos.
BLoNDEL, Jacques-François – Architecture françoise, ou
Manual de Arquitectura, constituído por quatro volumes, com algumas
recuil des plans, élévations, maisons royales, palais, hôtels, édifices
gravuras referentes aos edifícios que descreve.
les plus considérables de Paris. 4 Volumes. Paris: 1752-1756.
Tratado constituído por dois volumes: o primeiro volume possui
BLoNDEL, Jacques François – De la distribution des maisons informações respeitantes à distribuição e decoração dos edifícios e dos
de plaisance et de la distribution des édefices en general. 2 seus jardins; as únicas gravuras existentes são pequenos desenhos de
volumes. Paris, 1738. pé de página que decoram o final de cada capítulo. o segundo volume
encontra-se repleto de desenhos para decoração exterior e interior.
BLoNDEL, Jacques-François – Livre nouveau ou Règles
des cinq ordres d’Architecture par Jacques Barozzi de Vignole. Tratado composto exclusivamente por gravuras, possui uma série de
Nouvellement revú, corrige et augmenté par Monsier B… estampas de ornamentistas franceses
architecte du roy. Paris, 1757.
BoSSE, Abraham – Traité des manières de dessiner les ordres Manual sobre desenho e construção de diversos elementos
de l’architecture antique en toutes leurs parties. Paris, 1664. arquitectónicos consoante a ordem.
Tratado composto por um primeiro volume de texto, plantas, alçados e
BRISEuX, Charles-Étiene – L’art de bâtir des maisons de fachadas dos edifícios que aborda; a sexta e sétima partes do segundo
campagne. Paris, 1743. volume vão-se mostrar mais úteis para o artista beneditino, uma vez
que estão subordinadas ao estudo da decoração.
Essencialmente um tratado de Arquitectura, com informações relativas
JoMBERT, C.-A. – Architecture moderne ou l’art de bien bâtir
à construção dos edifícios, além de algumas plantas, alçados e fachadas,
pour toutes sortes de personnes. Paris, 1764.
no segundo volume.
Tratado onde o autor comenta as gravuras relativas a desenhos de
Pozzo, Andrea S. J. – Perspectiva pictorum et architectorum. retábulos, arcos triunfais, teatros, cúpulas, fachadas, portas e janelas com
2 Volumes. Roma, 1717. decoração, etc. A obra terá sido fundamental como fonte inspiração
para as estruturas das suas obras de talha de Frei Vilaça.
192 Eva Sofia Trindade Dias

Gráfico n.º 1 – Percentagem das obras realizadas por Frei José Ferreira Vilaça nas diversas áreas em
que se destacou, segundo o levantamento de Robert Smith

Fontes e bibliografia

Fontes Primárias Manuscritas


A.D.B. Congregação de São Bento, 1629-1632 – Estados do Mosteiro do couto de cucujães, n.º
114 [Disponível no Arquivo Distrital de Braga. Braga].
A.D.B. Congregação de São Bento, 1665-1668 – Estados do Mosteiro do couto de cucujães, n.º
114 [Disponível no Arquivo Distrital de Braga. Braga].
A.D.B. Congregação de São Bento, 1710-1713 – Estados do Mosteiro do couto de cucujães, n.º
114 [Disponível no Arquivo Distrital de Braga. Braga].
A.D.B. Congregação de São Bento, 1783-1786 – Estados do Mosteiro do couto de cucujães, n.º
115 [Disponível no Arquivo Distrital de Braga. Braga].
A.D.B. Congregação de São Bento, 1792-1795 – Estados do Mosteiro do couto de cucujães, n.º
115 [Disponível no Arquivo Distrital de Braga, Braga].
A.D.B. Congregação de São Bento, 1795-1798 – Estados do Mosteiro do couto de cucujães, n.º
115 [Disponível no Arquivo Distrital de Braga, Braga].
A.D.B. Tibães – Livro de Rezam do Irmão Fr. Jozé de Santo Antonio Villaça natural de Braga do
Terreiro de S. Lazaro, pera nele assentar os defuntos que falecem e tudo o que devo, ou me devem,
da mesma sorte o que inpresto, ou me inprestam, e onde estiver pg. – hé que está satisfeito ou do que
inpresto, ou do que me inprestam, n.º 728 [Disponível no Arquivo Distrital de Braga. Braga].

Fontes Primárias Impressas


AVILER, C.A. de, 1760 – cours d’architecture qui comprend les ordres de Vignole, avec des comentaires.
Paris: Charles-Antoine Jombert.
BLoNDEL, Jacques-François, 1752-1756 – Architecture françoise, ou recuil des plans, élévations,
maisons royales, palais, hôtels, édifices les plus considérables de Paris (4 volumes). Paris.
A obra de Frei José de Santo António Ferreira Vilaça na igreja do antigo Mosteiro do Couto de Cucujães 193

BLONDEL, Jacques-François, 1738 – De la distribution des maisons de plaisance et de la distribution


des édefices en general (2 volumes). Paris.
BLONDEL, Jacques-François, 1757 – Livre nouveau ou Règles des cinq ordres d’Architecture par Jacques
Barozzi de Vignole. Nouvellement revú, corrige et augmenté par Monsier B…architecte du roy. Paris.
BOSSE, Abraham, 1664 – Traité des manières de dessiner les ordres de l’architecture antique en toutes
leurs parties. Paris.
BRISEUX, Charles-Étiene, 1743 – L’art de bâtir des maisons de campagne. Paris.
JOMBERT, C.-A., 1764 – Architecture moderne ou l’art de bien bâtir pour toutes sortes de personnes.
Paris.
POZZO, Andrea S. J., 1700-1717 – Prospettiva de Pittori, et Architetti (2 volumes). Roma: Nella
Stamparia di António de’Rossi.
REYCEND, João Baptista, 1781 – O Sacrosanto e Ecumenico Concilio de Trento em Latim e Portuguez
(2 tomos). Lisboa: Na Officina Patriarc. de Francisco Luiz Ameno.
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de Carvalho.

Bibliografia
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AREDE, João Domingues, 1922 – Cucujães e mosteiro com seu couto nos tempos medievais e modernos.
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COSTA, Américo, 1929 – Diccionário Chorographico de Portugal Continental e Insular, vol. V. Porto:
Tipografia Domingos Oliveira.
DIAS, J.A. Coelho, 1993 – “O Mosteiro de Tibães e a Reforma dos beneditinos portugueses no
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MANDROUX-FRANÇA, Marie-Thèrése, 1974 – “Information artistique et ‘mass-media’ au XVIIIe
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MANDROUX-FRANÇA, Marie-Thèrése, 1983 – “L’image ornamentale et la litterature artistique
importées du XVIe au XVIIIe siècle: un patrimoine meconnu des bibliothèques et musées
194 Eva Sofia Trindade Dias

portugais”, in Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto, vol. I, 2.ª série. Porto: Câmara
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MATTOSO, José, 2002 – O Monaquismo Ibérico e Cluny, vol.12. Rio de Mouro: Círculo de Leitores.
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SILVA, Joaquim Candeias da, 2005 – S. Martinho de Cucujães. De Mosteiro Beneditino a Seminário
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SMITH, Robert C., 1972 – Frei José de Santo António Ferreira Vilaça. Escultor Beneditino do Século
XVIII (2 volumes). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
SOUSA, Bernardo de Vasconcelos e (dir.), 2005 – Ordens Religiosas em Portugal: das origens a
Trento. Lisboa: Livros Horizonte.
A Sé do Porto na Sede Vacante de 1639 a 1671:
obras e artistas
Joaquim Jaime B. Ferreira-Alves

1. Introdução
Tendo morrido, em Lisboa, a 13 de Julho de 1639, D. Gaspar do Rego da Fonseca
(1576-1639)1, bispo do Porto de 16362 a 1639, cuja notícia chegou ao Porto em 22 de
Julho3, deu-se início, na Diocese do Porto, a um longo período de Sede Vacante4. Com a
recuperação da independência, em 1 de Dezembro de 16405, as relações entre Portugal
1 D. Gaspar do Rego da Fonseca (ou d’Afonseca), nasceu em Vilar Maior, bispado da Guarda. Era filho de Daniel do
Rego e de D. Leonor da Fonseca. FERREIRA, 1924: 238-242; ALMEIDA, 1968: 650.
2 1636. Agosto. 17: Auto de posse do bispo D. Gaspar do Rego da Fonseca
Posse do Illustrissimo Senhor Bispo D. Gaspar do Rego da Fonseca a 17 de Agosto de 636.
Aos dezasete dias do mês de Agosto de mil seiscentos trinta e seis annos estando em Cabido para este effeito chamados todos
os capitulares presentes na cidade foraõ appresentadas todas as Bullas de provimento deste Bispado das quaes constou o Papa
nosso senhor fazer graça deste dito Bispado do Porto, e serem passadas as Bullas delle a nove de Junho passado deste presente
anno de seiscentos trinta e seis, em favor do Illustrissimo e Reverendíssimo Senhor Dom Gaspar do Rego da Fonseca, e assi
constou teria tomado livremente ante o Illustrissimo Dom Rodrigo da Cunha, Arcebispo de Lisboa, e estar satisfeito a todo o
necessário para se lhe aver de dar posse e soceder neste Bispado per morte do senhor Fr. João de Valladares bispo que foi delle:
o que assi todo visto mandarão dar a dita posse deste Bispado a qual tomou o Reverendo Cónego João Marques da Cruz
Procurador bastante do Illustrissimo Bispado. De que se fes este termo que todos assinarão os que presente forão em Cabido
no dito dia declarado. João Rodrigues de Araújo Cónego Secretario o escrevi. A.D.P., DIO/CABIDO/011/1579, fl. 72-72v.
3 Seê Vaccante por falecimento do Senhor Bispo Dom Gaspar do Rego da Fonseca que faleceo em Lisboa a 13 de Julho de 639.
Aos vinte e dous das do mês de Julho do anno de mil e seiscentos trinta e nove as duas horas da tarde chegou nova de como
falecera da vida presente o Senhor Bispo Dom Gaspar do Rego da Fonseca na cidade de Lisboa a treze do mesmo, e logo
pelo presidente e mais capitulares abaixo assinados s assentou que antes de tratar doutra cousa se fizessem os sinais e oficio
e missas na forma do Estatuto, amanhã sabbado vinte e três do mesmo, e que depois se tratara do mais que pertencer ao
Governo do Bispado: e por verdade mandarão fazer este termo a mim João Rodrigues de Araújo Cónego Secretario que o
escrevi. A.D.P., DIO/ CABIDO/011/1579, fl. 74.
4 FERREIRA, 1924: 242-258.
5 Assento que mandaraõ fazer o Deaõ, Dignidades, Conegos Cabido da Sancta Seê desta Cidade do Porto sede Episcopal
vaccante da acclamaçaõ delRey nosso senhor Dom Joaõ 4º.
Aos oito dias do mês de Dezembro do anno de mil seiscentos e quarenta annos, na casa do Cabido da Sancta Seê desta cidade
do Porto sendo presentes o Deaõ, Dignidades, Cónegos chamados a Cabido pleno a som de campa tangida segundo seu antigo
e louvavel costume, propôs o Deaõ presidente no dito Cabido que tivera noticia que os Arcebispos de Braga e Lisboa como
Governadores deste reyno, em absensia do Duque de Bragança acclamado por rey delle, escreveraõ a Camara dsta cidade
fizesse nella a mesma acclamaçaõ por se aver feito o mesmo pela nobreza e povo na cidade de Lisboa em o primeiro do dito mês,
e que juntamente nesta manhã tinha noticia que o juiz e vereadores estavaõ em Câmara com a nobreza e povo, e que poderia
succeder se fizesse logo a dita acclamaçaõ, que convinha detreminarse o como nesta matéria avia de proceder o ecclesiastico,
por quanto ao Cabido sede Episcopal vaccante pertencia desta declaraçaõ como ordinário que era do Bispado. E considerado
196 Joaquim Jaime B. Ferreira-Alves

e a Santa Sé estiveram suspensas, devido à influência de Espanha6. Esta situação levou a


que o Porto, só tivesse de novo bispo, confirmado pelo Papa, a partir de 1670. Clemente
X (1590-1676/1670-1676) pela Bula Gratiæ divinæ præmium (15 de Dezembro de 1670)
confirmou na diocese do Porto, vaga desde a morte de D. Gaspar do Rego da Fonseca,
D. Nicolau Monteiro (1581-1672)7, «em virtude da apresentação feita», pelo Príncipe
D. Pedro, regente de 1667 a 1683, e futuro rei D. Pedro II (1648-1706/1683-1706).
Ainda que coincidindo com uma época economicamente difícil8, devido à conjuntura
política que então se vivia em Portugal, ao longo do extenso período de vacatura os
responsáveis pela Diocese do Porto vão empreender diversas obras em alguns edifícios
que estão debaixo da sua tutela. Esta actividade, que atrairá diversos artistas, vai ter
na Sé um espaço privilegiado pela importância do que foi feito.

2. A Sede Vacante de 1639 a 1671


No dia da chegada da notícia do óbito de D. Gaspar do Rego da Fonseca, e
declarada «Seê Vaccante», «foi cometido», pelo Deão, do governo e da administração

bem o negocio e qualidade delle se assentou per todos os capitulares, nemine discrepante, que no ponto e hora que a cidade, e
com a primeira voz della, se acclamasse o dito senhor por rey destes reynos, i estado ecclesiastico uniformemente o acclamasse
na mesma forma, por ser este o animo geral de todos, e quererem ao dito senhor por seu rey e senhor natural, e que para se
fazer a dita acclamaçaõ com a solemnidade devida a semelhante acto, e para milhor constar ao povo, se saísse em procissaõ
pela cidade logo com Te Deum Laudamus, em acçaõ de graças pela grande merçe que Deos fazia a estes reynos. E assentado o
sobredito chegou recado da cidade que se fazia a dita acclamaçaõ, e logo no dito Cabido em nome de todo o estado ecclesiastico
deste Bispado se acclamou ao senhor REI DOM IOAÕ 4º por rey destes reynos, por todosos capitulares nemine discrepante
abaixo assinados: E sairaõ com Tedeum (sic) Laudamus em proçissaõ levando de baixo do palio a imagem de Nossa Senhora
da Conçeiçaõ (por ser seu dia) pelas ruas desta cidade, com grandes vivas e demonstrações de allegria. De que todo mandaraõ
fazer este assento no livro dos assentos que todos assinaraõ. E eu Joaõ Rodrigues de Araújo cónego que sirvo de secretario o
escrevi, dia mês, e anno ut supra. A.D.P., DIO/CABIDO/011/1579, fl.76-76v.
6 SERRÃO, 1980: 70-72.
7 Tomou posse da Diocese do Porto em 12 de Abril de 1671. FERREIRA, 1924: 258-265.
8 Assento sobre o emprestimo do dinheiro da Mitra que El Rey pedio pela carta aqui tresladada.
Ao primeiro dia do mês de Fevereiro de mil seiscentos quarenta e hum annos na casa do Reverendo Cabido da Sêe desta cidade
do Porto onde estavaõ presentes o Reverendo Deaõ e mais capitulares todos chamados a Cabido pleno para se tratar o negocio
da carta de Sua Magestade sobre o empréstimo dos caídos das rendas da mesa Pontifical de que o treslado he o seguinte. Deaõ,
Dignidades, Cónegos e mais Cabido da Sêe do Porto. Eu El Rey vos envio muito saudar: Havendo precedido pareçeres de pessoas
doctas tenho resoluto que se tome por empréstimo os cahidos do rendimento desse Bispado, e dos mais que estaõ vagos nestes
meos reinos para com elles se acodir as neçessidades presentes e socorros da Índia e mais conquitas, e a defensaõ dos lugares de
África, dando se consignaçaõ certa nos sobejos dos Almoxarifados para os Prelados novamente providos se pagar tudo o que
lhes pertencer, e porque esta matéria he taõ importante como se deixa entender, vos encomendo e encarrego muito que de vossa
parte concorraes no que for necessário para assi se executar, ordenando que tudo que ouver caído desse Bispado se entregue ao
Provedor da Comarca a quem mando escrever que o receba e remeta a esta cidade ao meu thesoureiro môr à ordem do Conselho
de minha fazenda, e que os fruitos que estiverem em ser se vendaõ, e o procedido delles se entregue e remeta da mesma maneira
dando os Provedores certidaõ do que receberem para com ellas se carregar o dinheiro em receita sobre o thezoureiro mor, e com seu
conhecimento em forma de darem os despachos neçessarios para terem effeito as consignações. Escrita em Lisboa a vinte e dous
de Janeiro de mil seiscentos quarenta e hum. Rey. Para o Cabido da See do Porto. Por El Rey. Ao Deaõ, Dignidades, Cónegos
e mais Cabido da Sêe do Porto. E logo por todos nemine discrepante se assentou que vista a forma da carta de Sua Magestade
em que mandava apertadamente se lhe desse o dinheiro que ouvesse desta Mitra per empréstimo, offrecendo se juntamente
a dar consignaçaõ para se pagar ao Senhor Bispo que for delle, e que naõ dava lugar a escusa alguma, nem por outra via se
poder escusar o dito empréstimo, que se desse per empréstimo a Sua Magestade na forma que ordena fazendo se as seguranças
necessárias para a consignaçaõ com que se desse satisfaçaõ ao dito Senhor Bispo que for provido, e nomearaõ juntamente para
fazer a entrega e contrato ao Dr. Amaro de Meireles Freire, thesoureiro môr desta Seê, e o licenciado e cónego João Marques da
Cruz para o que mandaraõ se lhe passasse comissaõ per escrito de que se fés este assento por todos assinado no dito dia supra.
Joaõ Rodrigues de Araújo cónego o fés em absensia do secretario. A.D.P., DIO/CABIDO/011/1579, fl.77-77v.
A Sé do Porto na Sede Vacante de 1639 a 1671: obras e artistas 197

dos ofícios de Provisor e Vigário Geral9, o Reverendo Doutor Provisor Melchior Vaz
Correia, que em 1635, tinha tomado posse da conezia.

Quadro n.º 110

Cabido da Diocese do Porto em 163910


Deão Diogo Pinto Pereira
Provisor Melchior Vaz Correia
Mestre Escola Pantaleão Freire
Tesoureiro mor Amaro de Meireles Freire
Arcediago de oliveira do Douro João de Araújo Costa
Cónego Magistral Dr. Jorge Velho
Cónego Magistral licenciado Pantaleão da Costa de Vasconcelos
Cónego Gaspar Fernandes Pinto
Cónego Diogo de Carvalhal
Cónego Pantaleão Pinto
Cónego Pantaleão Dias Salvado
Cónego Francisco de Resende

Em 26 de Julho11, em reunião do Cabido, foram nomeados os «offiçiaes para


servirem em Seê Vacante» e o «fabricador da fabrica da Sêe», o cónego Gaspar
Fernandes Pinto. Este renunciaria ao cargo, por «indisposto», em 22 de outubro12,
sendo substituído pelo cónego Pantaleão da Costa de Vasconcelos. Logo no mês
seguinte, precisamente a 1 de Agosto, foi decidido pelo Cabido «que as mesas do
governo para melhor despacho» se realizassem às quartas e sábados de cada semana13.
Após a eleição de 26 de Julho de 1639, foi mantido como Provisor o Dr. Melchior Vaz
Correia e nomeado para Vigário Geral o licenciado João Rodrigues de Araújo. Devido

9 e assi a absolviçaõ das excumunhois reservadas ao ordinário emquanto naõ se ordenassem officiaies e dias de despacho.
A.D.P., DIo/CABIDo/011/1579, fl. 74v.
10 PINTo, 1940.
11 Aos vinte e seis dias do mês de Julho de mil seiscentos trinta e nove annos na casa do muito Reverendo cabido onde se juntaraõ
todos os capitulares que estavaõ presentes na cidade adiante assinados para fazerem eleiçaõ de offiçiaes para servirem em Seê
vacante emquanto for regida do Reverendo cabido; e logo fizeraõ os offiçiaes seguintes. Reverendo Provisor o Dr. Melchior
Vaz correa, Vigário Geral o licenciado Joaõ Rodrigues de Araújo com os sallarios costumados, Escrivaõ da câmara o cónego
Pamtaleaõ Dias Salvado, Promotor licenciado e cónego magistral Pantaleaõ da costa de Vasconçellos, Meirinho Ecclesiastico
Gaspar Moreira de Lima, Recebedor da Fazenda da Mesa Pontifical Luís Pereira Banhos, o cargo de aljubeiro a Joaõ de Almeida
Pitta tanto quanto for recebido per palavras de presente, corredor de Folhas Luís da costa, o cano de Agoa ao reverendo
cónego Gaspar Fernandes Pinto para o mandar beneficiar pela pessoa que lhe parecer: a serventia do offiçio do escrivaõ Gaspar
do Rego Serraõ, a Aleixo Ferreira de Araújo, a serventia do offiçio Domingos cardoso em que o proprietário per si naõ servir
servira António Pereira familiar do Reverendo Deaõ, Procurador da Mitra o licenciado Manoel de Moraes de Faria, Solicitador
Manoel Travaços, Porteiro da Mesa Francisco da Maya: o Guarda dos Paços Episcopaes aos reverendos cónegos que nelles
estavaõ Joaõ Marques da crux, e António Barreiros, a Quinta de Santa crux que se administre pela Mesa encarregando se
ao quinteiro e o rendimento para a Mesa Pontifical e fabrica da mesma quinta, o Secretário o reverendo cónego que servir de
Secretario do cabido e será também da Mesa Pontifical, e os sallarios dos offiçiaes seraõ os costumados conforme as provisois
e despachos. E o Reverendo Provisor e Vigário Geral, e Escrivaõ da camaraa logo tomaraõ juramento dos Santos Evangelhos
sob cargo do quoal prometeraõ fazer verdadeiramente seus offiçios de que se fés este assento no dito dia. Joaõ Rodrigues de
Araújo, cónego Secretario o escrevi. A.D.P., DIo7CABIDo/011/1579, fl. 74v.-75v.
12 A.D.P., DIo/CABIDo/011/1579, fl. 75v.
13 A.D.P., DIo/CABIDo/011/1579,fl. 75v.
198 Joaquim Jaime B. Ferreira-Alves

ao falecimento do Dr. Melchior Vaz Correia, em 22 de Junho de 164714, foi eleito, por
«aclamassaõ de todos nemine discrepante», para o lugar de Provisor o Arcediago da
Régua, Manuel de Seabra e Sousa (1606-1664), que viria a ser suspenso em 1659, como
consequência de uma devassa ordenada pelo Cabido. Na opinião de Agostinho Rebelo
da Costa, o Dr. Manuel de Seabra e Sousa serviu como «Provisor, e Governador do
Bispado do Porto» com acerto e desinteresse15. Foi substituído no cargo pelo Cónego
Magistral da Sé, o Dr. Jerónimo Peixoto da Silva16, que o ocupou de 1659 a 1661.

Figura n.º 1
Fac-símile da assinatura
do Arcediago da Régua,
Dr. Manuel de Seabra e Sousa

Depois de alguns anos de administração colectiva, de 1639 a 1661, a rainha regente


D. Luísa de Gusmão (1613-1666) ordenou que o Cabido elegesse «pessoa idónea»
para Governador do Bispado, o que aconteceria em 1 de Junho de 1661, sendo eleito
D. Luís de Sousa17 (1630-1702), Deão desde 1655, e que exerceu o cargo até 12 de
Abril de 1671, data da posse do bispo D. Nicolau Monteiro18.

2.1. Bispos eleitos


Durante o período de Sede Vacante foi apresentado e confirmado um bispo, que
não ocupou a Diocese do Porto, por causa da Revolução de 1640, e foram eleitos
três bispos que não obtiveram confirmação papal devido à mesma razão, e ao conse-
quente mau relacionamento entre a nova dinastia e a Santa Sé. o bispo confirmado
foi apresentado por D. Filipe III (1605-1665/1621-1640), e os três seguintes, não
confirmados pelo Papa, foram apresentados, o segundo e o terceiro, por D. João IV
(1604-1656/1640-1656); e, o quarto, por D. Afonso VI (1643-1683/1656-1683)19.

2.1.1. D. Francisco Pereira Pinto


D. Francisco Pereira Pinto (?-1642)20, era natural de Via Real, filho de Gonçalo
Vaz Pinto21, alcaide-mor de Ervededo e de D. Isabel Botelho da Mesquita22.

14 A.D.P., DIo/CABIDo/011/1579, fl. 81-81v.


15 CoSTA, 1789: 344.
16 PINTo, 1924: 152.
17 CoSTA, 1789: 339; PINTo, 1940: 95-96
18 FERREIRA, 1924: 244-246.
19 FERREIRA, 1924: 250-257.
20 ALMEIDA, 1968: 650; TEIXEIRA, 1951: 238. D. Francisco Pereira Pinto faleceu em Madrid em 13 de Janeiro de
1642. Ver REIS, 1992: 167-168.
21 Filho de João Pinto Pereira, alcaide-mor da vila e couto de Ervededo e de sua mulher e sobrinha D. Isabel de Morais.
Ver TEIXEIRA, 1951: 237.
22 Filha de João Correia da Mesquita, Fidalgo da Casa Real e senhor da Casa de Abaças, e de sua mulher D. Inês
Teixeira Rebelo. Ver TEIXEIRA, 1951: 238.
A Sé do Porto na Sede Vacante de 1639 a 1671: obras e artistas 199

D. Francisco Pereira Pinto23 – «Dom Prior do Crato, Colegial de S. Paulo de


Coimbra, do Conselho de El-Rei, Agente dos Negócios de Portugal em Madrid, Bispo
Eleito do Porto, Deputado da Mesa da Consciência e ordens, Dezembargador do
Paço e Governador e Administrador do Priorado de Alcobaça»24 – é referido por D.
António Caetano de Sousa na História Genealógica da casa Real Portuguesa. Aquele
autor ao dar a relação das pessoas que se encontravam em Madrid na altura da
Restauração menciona D. Francisco Pereira Pinto, Bispo eleito do Porto. D. Francisco
Pereira Pinto apresentado por Filipe III (IV de Espanha) para bispo do Porto, foi
confirmado por urbano VIII (1568-1644/1623-1644), em 1640, mas não tomaria
posse da sua diocese, por causa de Portugal ter mudado de monarca.

FRANcIScO PEREYRA Pinto. En el 1640.


1. El el mencionado Damian de Lemos no conoció al Sr. Pereyra Pinto, que después del precedente fue electo
Obispo de Oporto por el Rey D. Phelipe IV. Según infiero por la Historia Genealogica de la casa Real de
Portugal, cuyo Autor refiere en el Tom. 7. pag. 114. las personas Ilustres Portuguesas que se hallaban en
Madrid al tiempo del levantamiento de aquel Reyno en el año de 1640. y entre ellas nombra à Francisco
Pereyra. Pinto, electo Obispo de Porto. Si antes de levantar Rey de Portugal al Duque de Braganza era ya
electo de Porto
D. Francisco consta haberle nombrado el Rey catholico.
2. El Doctor Walter Antunez recogió, y se servió remitir particulares noticias de este Obispo, diciendo que
fue hijo de Gonzalo Vas Pinto, y de su muger Doña Isabel Botelho, Señores muy calificados de Villa Real
en la Provincia de Tras os Montes.
3. Juntose à la nobleza de la sangre en D. Francisco la fortuna de tener en Madrid al tio
D. Pedro Vas Pereyra, como Secretario de Estado en el consejo Real de Portugal estabelecido en Madrid:
el qual protegió al Sobrino, como correspondia à su honor y merecimiento: pues habiendo sido colegial en
el Pontificio de S. Pedro de coimbra, y aprovechando en los estudios, recibió grado de Doctor en canones:
con lo que se vió proporcionado para mayores empleos. Fue Diputado de la Inquisición, y de la Mesa de
conciencia y Ordenes.
4. Pasó Agente de la corona à Roma en el Pontificado de Paulo V. y volvió hecho Desembargador do Pazo, ò
Ministro de consejo. El Infante cardenal D. Fernando de Austria le hizo su Gobernador del gran Priorato
do crato de la Religión de S. Juan, y juntamente de la Abadia de Alcobaza, de quíenes el Infante era Gran
Prior, y Abad comendatario.
5. Todo esto lo desempeño D. Francisco con aceptacion: Y vacando nuestra Sede, le premió el Rey D. Phelipe
IV, nombrandole Obispo de Porto, cuya presentacion confirmó el Papa Urbano VIII. en el año de 1640.
en que por Mayo se hallaba ya D. Francisco en posesion de la Dignidad, pues entonces impuso sobre ella
la Pension de quinientos mil reis à favor de su Sobrino el P. Fr. Juan Pereyra Religioso Benito, que desfruto
muchos años la Pension, después de morir el Tio.
6. No pasó à residir en su Iglesia el Obispo D. Francisco porque hallandose en Madrid al fin del 1640. ocurrió
la novedad de aclamar los Portugueses por Rey al Duque de Braganza, y no tenia paso de una à otra parte las
Provisiones. Falleció luego en esta corte el Señor Obispo, y fue enterrado en la Iglesia de S. Antonio de los
Portugueses de Madrid: aunque no consta el dia: sino solo que fue alli admitido por cofrade de S. Antonio25.

23 Francisco Pereira Pinto, natural de Vila Real, Deputado que foi da Meza da consciência, Desembargador da Meza do
desembargo do Paço, Governador e Administrador do Priorado d’Alcobaça, Inquizidor Geral da Santa Inquizição, Agente
na corte de Madrid, dos Negócios da Nação do conselho de Sua Magestade, Bispo eleito da cidade do Porto no tempo
d’El Rei Filippe 4.º em Hespanha e 3.º em Portugal. A.D.V.R., fl. 354.
24 TEIXEIRA, 1951: 238.
25 FLoREz, 1766: 217-219.
200 Joaquim Jaime B. Ferreira-Alves

2.1.2. D
 . Sebastião César de Meneses, D. Pedro de Meneses, e D. Luís de Sousa
e Vasconcelos
D. Sebastião César de Meneses26 (?-1672), nasceu em Lisboa, filho de Vasco Fer-
nandes César27 e de D. Ana de Meneses28. Frequentou a Universidade de Coimbra29
(cidade onde foi deputado do Santo Ofício) formando-se em Cânones (1628). No
reinado de Filipe III foi nomeado membro do conselho do rei e desembargador do
Paço e ainda deputado do Conselho-Geral do Santo Ofício (1637)30. A partir de
1640, serviu D. João IV em diversas situações (entre as quais: as de secretário do
braço da nobreza nas Cortes 1641; Conselheiro de Estado, em 1643; Ministro do
Tribunal da Junta dos Três Estados31, em 1643; e membro das Cortes de 164632) até
ter sido acusado «por crime de inconfidência» e preso no Noviciado dos Jesuítas na
Cotovia, Lisboa. Após a morte de monarca, foi mandado soltar pela rainha D. Luísa
de Gusmão.
Em 1662 faz parte do triunvirato, juntamente com D. Luís de Vasconcelos e
Sousa (1636-1720), 3.º conde de Castelo Melhor, e D. Jerónimo de Ataíde (?-1665),
6.º conde de Atouguia, que afastou do Governo a rainha regente. Suspeitas de trato
com os espanhóis levam-no a retirar-se para o Convento dos Capuchos, em Loures,
e, mais tarde, acusado de conspirar a favor do restabelecimento da autoridade de
D. Luísa, é desterrado para o Mosteiro de Santa Maria da Vitória (Batalha) e depois
para o Castelo da Feira33. Viria a falecer no Porto em 29 de Janeiro de 1672, sendo
sepultado, «fora da porta principal», da igreja do Convento dos Carmelitas Descalços.
Paralelamente a uma vida política agitada, D. Sebastião César de Meneses foi eleito
bispo do Porto (1642)34, depois de Coimbra35 (1649), e, mais tarde, D. Afonso VI,
nomeou-o arcebispo de Lisboa, inquisidor-geral, e arcebispo de Fez in partibus36.
Foi autor de algumas obras entre as quais uma Suma Politica, dedicada ao príncipe
D. Teodósio (1634-1653), e publicada em Lisboa em 1649.

26 ALMEIDA, 1968: 650. Faleceu no Porto em 29 de Janeiro de 1672. Ver REIS, 1992: 168-170.
27 Do Conselho d’El-Rei, Provedor dos armazéns das Armadas, General d’Artilharia, Alcaide Mor d’Alenquer, Commendador
de S. Pedro de Lomar e S. Joaõ de Rio frio na Ordem Militar de Christo. Ver REIS, 1992: 168.
28 Filha de D. Manuel Pereira de Meneses e de D. Joana da Silva. Neta paterna de D. Diogo Pereira, 3.º conde da

Feira e de D. Ana de Meneses. Neta materna de D. João de Meneses, 7.º senhor de Cantanhede.
29 Foi aluno do Colégio de São Paulo. Ver FERREIRA, 1924: 254.
30 DÓRIA, 1975: 264-265.
31 FERREIRA, 1924: 253.
32 SERRÃO, 1980: 32.
33 Depois de ter estado já no Algarve. DÓRIA, 1975: 265.
34 DÓRIA, 1975: 264. Henrique Duarte e Sousa Reis indica 1641. Ver REIS, 1992: 168.
35 ALMEIDA, 1968: 607.
36 DÓRIA, 1975: 264.
A Sé do Porto na Sede Vacante de 1639 a 1671: obras e artistas 201

SEBASTIAN cESAR MENESES. Electo en el 1642 hasta el 48.


1. La turbación de las cosas de Portugal por este tiempo fue causa de largas vacantes en algunas Iglesias;
pues aunque el Duque de Braganza elegía personas para los Obispados, quedaban en la clase electos, sin
recibir confirmacion de la Sede Apostolica, por no tener reconocido como Soberano al expresado Duque.
Esto fue tambien causa de que los Escritores no observen puntualidad en los catalogos, por no haber conocido
à los electos: y al presente le omiten los pocos que hablan de Porto, Damian de Lemos, Argaiz, y un catalogo
Ms. Del P. Fr. Manuel Pereyra de Novais, Benedictino, (natural de Porto, que vivia por los años de 1690.)
y el Doctor Antunez.
2. El nombre, eleccion, y otros honores del presente constan por Decreto del Duque de Braganza, quando ya
estaba ensalzado al Trono, y nombró por Ministros de Estado en la Junta de los tres Estados del Reyno al
Doctor Sebastián cesar de Meneses, que era del consejo del Rey, y del Santo Tribunal, y Obispo electo de
Porto. Asi consta por el mismo Decreto impreso en el Tomo IV. de las Pruebas de la Historia Genealogica de
la casa Real Portuguesa, pag. 754. firmado en 18. de Enero de 1643. por lo que sabemos habia fallecido el
Señor Pereyra, y que tenia ya electo sucesor.
3. Este D. Sebastian fue hijo de D. Vasco Fernandez cesar, consejero del Rey, General de Artilleria, &c y
de su muger Doña Ana de Meneses, hija de D. Manuel Pereyra, heredero de la casa de Feira, y de Doña
Juana de Silva: nobles por todas lineas. cursó el hijo en el Real colegio de S. Pablo de coimbra: graduase
alli de Doctor en canones: y llegó à ser alli mismo Inquisidor, Arcediano de Lisboa, y Desembargador (ò
consejero) del Palacio, Electo Obispo de Porto, coimbra, Ebora, Lisboa, y nombrado Embajador de Francia,
Inquisidor General, del consejo de Estado, y Ministro del Despacho, según afirma el Doctor Antonio caetano
de Sousa en el Tomo V. de la Historia Real Genealogica pag. 301. donde añade que fue gran Letrado, discreto
cortesano, y agradable Poeta, que compuso algunas Obras: pero la fortuna con su acostumbrada inconstancia,
en un genio poco firme, le hizo padecer terribles contratiempos: ya privado de empleos, ya restablecido, ya
en fin vuelto a ser desterrado à la ciudad de Porto, donde murió en 29. de Enero del 1672. mandandose
enterrar fuera de la puerta princpal de la Iglesia de los Padres carmelitas descalzos, donde yace en sepultura
rasa con este Epitafio: Aquí jaz sepultado Sebastiaõ cesar.
4. Las Obras que tiene impresas son: Relectio de Hierarchia Eclesiástica. conimbricae 1628. flo. Summa
Politica. En Lisboa 1649. y en Amsterdan 1650. Veritas harmónica utriusque Testamenti. Romæ 1663. en
4. Sugillatio Ingratitudinis. En 4 sin nombre del Autor, ni del lugar. Segunda e tercera vez en Lisboa 1633.
y 1697. fol. cuyos Elogios puede verse en la Biblioteca Lusitana de D. Diego de Babosa Machado.
5. El Titulo de Obispo Electo de Porto no pasó del año 1649. en que empieza à sonar el de Electo de coimbra,
como refiere Leitaõ Ferreira en el catalogo de Obipos de aquella Santa Iglesia, pag. 16937.

D. Pedro de Meneses38 (?-1661) era filho de D. Diogo de Meneses, senhor do


Morgado da Fonte Santa, comendador de Valada39 e Governador do Brasil, e de
D. Maria da Silva. Foi «colegial canonista» do Colégio de São Pedro, de Coimbra,
e mais tarde prior da Matriz de Óbidos. Foi deputado dos Três Estados do Reino,
Conselheiro da Coroa, sumilher40 da cortina de El-Rei. Foi nomeado por D. João IV
para Bispo de Miranda (1641) e em 1649 para Bispo do Porto.

37 FLoREz, 1766: 219-220.


38 ALMEIDA, 1968: 650. D. Pedro de Menezes era palaciano, sumilher da cortina d’el-rei e cunhado de D. João de Sousa
da Silveira que foi governador das armas da província de Traz os Montes desde 1643 a 1646. Ver ALVES, 1981: 650;
REIS, 1992: 170. Aparece, por vezes, designado por D. Fr. Pedro de Meneses.
39 CASTRo, 1947: 79.
40 Reposteiro da casa real; reposteiro do paço.
202 Joaquim Jaime B. Ferreira-Alves

D. Fr. Luís de Sousa e Vasconcelos (?-1667)41, religioso da ordem de São Ber-


nardo, filho de Luís de Sousa e Vasconcelos e de D. Maria de Moura, era irmão de
João Rodrigues de Vasconcelos e Sousa (1593-1658), 2.º conde de Castelo Melhor.
Foi apresentado Bispo do Porto em 1662, com a protecção de seu sobrinho Luís de
Vasconcelos e Sousa (1636-1720), 3.º conde de Castelo Melhor.

FR. LUIS DE SOUSA. Electo.


1. En este acaba el catalogo de Damian de Lemos: que omiten otros, por no haber llegado à consagrarse, à
causa de proseguir las disensiones con Roma. Fue natural de Pombal, Diocesi de coimbra, de familia muy
ilustre, cuya nobleza dedicó à servir à Dios en Religión, escogiendo la del melifluo P. S. Bernardo, en que
sobresaltó por estudios, graduandose de Doctor en la Universidad de coimbra, y llegando à ser General. D.
Juan IV. Le hizo Limosnero mayor. Eligióle para Porto: y tuvo el gobierno del Arzobispado de Ebora: pero no
fue consagrado por el motivo expuesto. Falleció en el 1667. como expresa la Biblioteca Lusitana42.

Nenhuma destas quatro figuras, pelas razões referidas, ocupou o lugar para o qual
tinha sido nomeado. A cidade só teria de novo um Bispo, como referimos, em 1671.

3. Obras na Sé
Ao longo da Sede Vacante os responsáveis pela Diocese do Porto promoveram
algumas obras, das quais as mais importantes se concretizaram no tempo em que
foi responsável pela administração da Diocese o Dr. Manuel de Seabra e Sousa.
Num documento de 10 de Janeiro de 166043 refere-se que, por ordem do Cabido,
o Arcediago da Régua, que tinha sido Provisor até 1659, foi encarregue de mandar
fazer obras nas «varandas, claustro, capellas», da Sé, nas quais se gastaram dous contos
settecentos noventa e sinco mil settecentos e quarentae sinco reis. Estas obras incidiram,
como veremos, essencialmente no claustro.
Além destas obras, temos notícia de outras mandadas fazer em anos anteriores:
na Quinta de Santa Cruz (Manuel da Costa, recebeu, em 17 de outubro de 1646,
1.000 réis pela sua deslocação à Quinta de Santa Cruz para fazer os apontamentos
para uma obra; Frutuoso da Maia e João da Fonseca receberam 30.000 réis, em 2
de outubro de 1646, por conta das obras de Santa Cruz, assinando, o documento,
como testemunha Manuel da Costa); e no Celeiro de São João de Ver, que se achava
«desbaratadissimo», e onde foram feitas obras (Setembro-outubro de 1647) pelo
pedreiro Gaspar António. Neste período era provedor da fábrica da Sé o cónego
João da Fonseca44.

41 REIS, 1992: 170-173.


42 FLoREz, 1766: 220-221.
43 A.D.P., Dio/Mitra/0111 fl. 126.
44 A.D.P., Dio/Mitra/0111, fl. 8, fl. 6, fl. 23-23v.
A Sé do Porto na Sede Vacante de 1639 a 1671: obras e artistas 203

3.1. Varandas do claustro e capela de Santa Cecília


No claustro gótico Sé do Porto (séc. XII - séc. XIII)45, iniciado em 138546, no
período da Sede Vacante seiscentista, fizeram-se alterações a nível da sua estrutura
superior, que constaram: de obras na parte superior do claustro, então designada
por «varandas»; e da construção, na mesma área, de uma capela da invocação de
Santa Cecília.
Tendo todo o claustro sofrido obras profundas – primeiro na Sede Vacante de 1717
a 1741, e mais tarde nos anos trinta do século XX – só através da descrição feita por
Manuel Pereira de Novais, nos anos noventa de Seiscentos, podemos ter uma ideia
de como seria após as obras efectuadas no período em estudo.
Assim, segundo Novais47, no claustro tínhamos:
do lado da parede da igreja, a capela de la Encarnacion de la Virgen, cercada de rexas
de hierro;
no ângulo que faz esquina com a parede do sul, encontrava-se a capela de São Vicente
e de Nossa Senhora da Saúde, que oy se llama Nuestra Señora de la Agonia, obra promovida
por D. Fr. Marcos de Lisboa, Bispo do Porto de 1582 a 159148;
na mesma parede, junto à porta que comunicava com o claustro antigo de los Naranjos,
ficava a capela de Nossa Senhora da Conceição, onde existia uma escada que dava acesso
ao salão e dependências do Cabido, instalações estas do tempo de D. Fr. Marcos de Lisboa49;
na parte superior existiam Vnos Claustros altos que se fabricaron en el tienpo que, Sede
Vacante, governava el obispado el Doctor Manuel de Seabra y Souza, Arcediano de la Regoa,
como Provisor, y, juntamente, como fabriquero desta Santa Iglesia, que ordenò esta fabrica de
Claustro con Vna solana para tomar el Sol, y Vn transito a Vna Capilla50.
Mais recentemente Henrique Duarte e Sousa Reis51, ao descrever o claustro em
1865, dá-nos uma visão de como ficou após a intervenção do século XVIII: na parede
do nascente, «quazi a par da segunda portada lateral do corpo da Igreja», ficava a
«Capellinha ou para melhor dizer só o altar» de Nossa Senhora da Conceição, seguida
de três portadas, a principal para acesso à sacristia, seguida de uma portada fingida
para fazer simetria, e depois uma terceira levava-nos ao claustro, que Novais chama
de «los Naranjos»52; na parede norte entre as duas portadas laterais, que estabelecem
a ligação entre o claustro e o interior da igreja, existiam outras duas para confessio-
nários; na parede poente nos extremos, abriam-se dois altares, o que ficava ao lado
45 As obras da nova e actual catedral portuense […] deverão ter arrancado antes do último quartel do século XII, perdurando
ao longo do século XIII. ALMEIDA, 2001: 114.
46 ALMEIDA, 2001; BARROCA, 2002: 59-60.
47 NOVAIS, 1916: 147-148.
48 FERREIRA, 1924: 178-188. D. Fr. Marcos de Lisboa edificou à fundamentis no Claustro da Cathedral a Capella de

Nossa Senhora da Saúde, hoje conhecida pelo nome ou titulo de Capella de S. Vicente, abrindo no pavimento d’ella um
mausoléu para sepultura sua e dos Bispos seus successores.
49 FERREIRA, 1924: 185.
50 NOVAIS, 1918: 148.
51 REIS, 1999: 44-49.
52 hum particular Claustro também com a sua galeria coberta assente sobre columnas de pedra, pela qual se comunica o Paço

Episcopal com a Santa Sé.


204 Joaquim Jaime B. Ferreira-Alves

da porta lateral de igreja era dedicada a Nossa Senhora da Esperança (Morgado da


família Brito e Cunha) e a outro, no extremo oposto, era dedicado a Nossa Senhora
da Saúde, mandado fazer pelo bispo D. Fr. Marcos de Lisboa, entre estes dois altares,
duas portadas permitiam a comunicação com as «officinas» do Cabido; na parede do
sul, nos extremos, duas portadas davam acesso à capela de São Vicente e à capela
de Nossa Senhora da Piedade (Morgado da Casa de Provesende); junto à portada
desta capela, apareciam duas portadas juntas, dando uma delas acesso à escadaria
que levava ao piso superior do claustro e daí à Casa do Cabido, e a outra e uma de
maior vão, eram confessionários.
Recuando de novo ao século XVII, entre 1655 e 1659, fizeram-se obras na
parte superior do claustro, as designadas varandas, e onde mandaram levantar uma
capela dedicada a Santa Cecília. A primeira empreitada teve início em 13 de Abril
de 165553, com a intervenção de quatro carpinteiros, dois mestres (Pedro Moreira e
António Moreira), que ganhavam dois tostões por dia, e dois oficiais, Cosme Moreira
e João Francisco, que auferiam diariamente oito vinténs. As despesas com a obra de
carpintaria foram lançadas ao longo de vinte e duas semanas, sendo esta dada por
concluída em Setembro de 165554.
No dia 26 de Abril de 165555 deu-se início ao trabalho dos pedreiros que só
terminaria em 30 de Abril de 165756. A empreitada foi tomada pelos mestres pedreiros
Domingos Novais e seu filho João da Rocha, sendo possivelmente este último, o
mesmo mestre de pedraria que, em 1667, tomou de empreitada, com António Vieira,
a obra da sacristia da Misericórdia do Porto57. Ao longo das cento e quatro férias, a
obra contou com a presença permanente dos dois mestres pedreiros (excepto na 71.ª
féria, de 4 de Setembro de 1656)58, assim como com um número variável de oficiais
de pedraria e de trabalhadores, que auferiam respectivamente 200 réis, 160 réis, 100
réis por dia. São também referidos aprendizes (aparecendo também a designação
de obreiro) que recebiam 80 réis diários. O aprendiz Manuel Couto, aparece na
vigésima quarta semana designado por obreiro, na vigésima quinta e seguintes volta
a ser designado por aprendiz, acabando por passar na trigésima terceira para a lista
dos oficiais. Exceptuando um ou outro caso as semanas de trabalho começavam à
segunda-feira e o pagamento da féria fazia-se no sábado seguinte.
No manuscrito (sem data) que utilizamos para o presente estudo existe uma lista
de pedreiros e trabalhadores (alguns dos quais aparecem na lista dos que trabalharam
nas varandas) que andaram no monte na extracção de pedra que seria necessária
para as obras das varandas e capela.

53 Uma terça-feira.
54 A. D. P., Dio/Mitra/0111, fl. 20-20v.
55 Comessousse a obra das varandas da Se a hua segunda feira 26 de Abril de 1655 com 17 pedreiros a saber dous mestres,

Domingos Novais, e Joaõ da Rocha, que ham de levar a dois tostois por dia a sequo e com 6 officiais que ham de levar a 160
por dia a sequo e nove trabalhadores que levaõ a quatro vinteis por dia, em que entra Manoel Guomes que leva a tostaõ.
56 A.D.P., Dio/Mitra/0111, fl. 32-78v.
57 BASTO, 1964: 489.
58 A.D.P., Dio/Mitra/0111, fl. 68.
A Sé do Porto na Sede Vacante de 1639 a 1671: obras e artistas 205

Quadro n.º 2

Obra de carpintaria nas varandas do claustro (13 de Abril a 6 de Setembro de 1655)


Semanas De Trabalho Mestres e Oficiais Serradores
1655 Mestres
1ª: 13 de Abril – MoREIRA, António – FRANCISCo, António
2ª: 19 de Abril – MoREIRA, Pedro – GoNÇALVES, Francisco
3ª: 26 de Abril Oficiais -– MoREIRA, João
4ª: 4 de Maio – FRANCISCo, João
5ª: 10 de Maio – MoREIRA, Cosme
6ª: 19 de Maio (nesta semana
não vieram carpinteiros, nem
na semana seguinte que foi a
sétima, 24 de Maio)
8ª: 31 de Maio
9ª: 7 de Junho
10ª: 14 de Junho
11ª: 21 de Junho
12ª: 28 de Junho
13ª: 5 de Julho
14ª: 12 de Julho
15ª: 19 de Julho
16ª: 27 de Julho
17ª: 2 de Agosto
18ª: 9 de Agosto
19ª: 16 de Agosto
20ª: 23 de Agosto
21ª: 30 de Agosto
22ª: 6 de Setembro
206 Joaquim Jaime B. Ferreira-Alves

Quadro n.º 359


Pedreiros das varandas do claustro da Sé do Porto.
Mestres. Oficiais. Aprendizes/Obreiros. Trabalhadores
Férias Mestres e Oficiais Aprendizes/Obreiros Trabalhadores
1655 Mestres – CouTo, Manuel – ALVES, Domingos
Da 1.ª féria, iniciada em 26 – NoVAIS, Domingos – JoÃo, António – ANDRÉ, Francisco
de Abril, à 36.ª, de 29 de – RoCHA, João da – MANuEL – ANTÓNIo, Manuel
Dezembro Oficiais – PINTo, Manuel – CouTo, Manuel do
1656 – ALVES, António – DoMINGoS, «dalém»
Da 37.ª, iniciada em 10 de – ALVES, Manuel – DoMINGuES, Bernardo
Janeiro, à 86.ª, de 19 de – ANDRÉ (da Lameira) – FERNANDES, André
Dezembro – ANTÓNIo, Mateus – FERNANDES, Pantaleão
1657 – CAMARINHA, Manuel – FRANCISCo, João
Da 87.ª, iniciada em 2 de Rodrigues – FRANCISCo, Salvador
Janeiro, à 104.ª, de 30 de – CouTo, Manuel – FRANCISCo, Manuel
Abril – DoMINGuES, João – DoMINGuES, Gaspar
– DoMINGuES, Pedro – DIoGo
– DuARTE, José – GoNÇALVES, António
– FERNANDES, João – GoNÇALVES, Baltasar
– FERNANDES, Jorge – GoNÇALVES, Domingos
– FERNANDES, Manuel (do Candal)
– FERNANDES, Manuel – GoNÇALVES, João
«daquem» – GoNÇALVES, Pedro
– FERNANDES, Tomás – GoNÇALVES, Sebastião
– FERNANDES, Tomé – JoÃo (de Grijó)
– FRANCISCo, António – JoÃo (solteiro)
– FRANCISCo, Domingos – JoÂo, Manuel
– FRANCISCo, Domingos – JoÃo, Pascoal
(outro) – MANuEL (solteiro)
– FRANCISCo, Manuel – MANuEL (o gago)
– GoMES, Gonçalo – MANuEL
– GoMES, Manuel (de Campanhã)
– GoNÇALVES, André – MANuEL (o grande)
– GoNÇALVES, António – MoREIRA, Domingos
–G o N Ç A LV E S, – MARTINS, Domingos
Bartolomeu – PESSoA, João
– GoNÇALVES, Francisco – PIRES, Diogo
– GoNÇALVES, Pedro – PIRES, Domingos
– JoÃo, António19 – RoDRIGuES, Francisco
– JoÃo, Domingos – RoDRIGuES, Manuel
– JoÂo, Pedro – SouSA, Gonçalo de
– MANuEL (de Grijó)
– MARTINS, Manuel
– NETo, Pedro
– RoCHA, Domingos da
– RoDRIGuES, Manuel
«dalem»
– RoDRIGuES, Manuel
«daquem»
– ToMÉ, Manuel

59 Com a indicação «obreiro».


A Sé do Porto na Sede Vacante de 1639 a 1671: obras e artistas 207

Quadro n.º 4

Férias dos pedreiros e trabalhadores que andaram no monte


Artífices sem
Férias Mestres e oficiais designação de Trabalhadores
funções
– 18 a 23 de Setembro Mestres – CouTo, Manuel do – ANTÓNIo,
– 25 a 30 de Setembro – NuNES, Domingos – GoNÇALVES, Domingos
– 2 a 7 de outubro – NuNES, Francisco Manuel – CAPITÃo
– 9 a 14 de outubro – NuNES, Mateus – JoÃo, António – DoMINGuES, João
– 16 a 21 de outubro Oficiais – FRANCISCo,
– 23 a 28 de outubro – DoMINGuES, Manuel
– 30 de outubro a 4 de António – GASPAR
Novembro – FERNANDES, André – GoNÇALVES,
– 6 a 11 de Novembro – FERNANDES, Domingos
Manuel – GoNÇALVES, João
– FERNANDES, Pêro – GoNÇALVES,
– FRANCISCo, Manuel
Domingos – GoNÇALVES, Pedro
– GoNÇALVES, André – INáCIo
– GoNÇALVES, – MANuEL (solteiro)
António – MANuEL (grande)
– GoNÇALVES, – MENDES, António
Gaspar
– GoNÇALVES,
Manuel
– JoÃo, António
– JoÃo, Domingos
– MANuEL (de Grijó)
– RoDRIGuES,
Manuel, «de Alem»

As grades e os gatos de ferro para as varandas foram feitos pelo ferreiro José de
Sousa, que recebeu 30.000 réis pelo trabalho60, que é também referido como o autor
das grades para o claustro e para a capela, e as ferragens das portas e janelas (1657).

Capela de Santa Cecília


Na varanda do claustro seria levantada uma capela da invocação de Santa Cecília
cuja obra foi arrematada, também, pelo mestre de pedraria Domingos de Novais61 –
60 A.D.P., Dio/Mitra/0111, fl. 14-15, fl. 95.
61 Senhor Luiz Pereira Banhos. Dará vossa mercê a Domingos Novaes quinze mil reis, para ir continuando com a obra da
capella da varanda da Seê, que o Reverendo cabido ordenou se fizesse [...], Porto 19 de Julho de 657. Ver A.D.P., Dio/
208 Joaquim Jaime B. Ferreira-Alves

A obra desta cappella se rematou a Domingos Novaes em presso de cem mil reis, o senhor
Luís Pereira Banhos lhe pode dar algum dinheiro […] Porto 10 de Junho de 657. Manoel
de Seabra de Souza62 – e na qual trabalhou o seu filho João da Rocha.
As obras que tiveram início em 1657 estariam concluídas em 1659, altura
em que Manuel de Seabra de Sousa manda pagar, em 6 de Julho de 1659, a Domingos
Novais, ou a seu filho João da Rocha, o que restava das obras que tinham feito63.
Os «simpliçes» e armação da hermida das varandas da See foram da responsabilidade
do mestre carpinteiro Manuel de Barros que, em 10 de Julho de 1658, recebeu 25.000
réis, por conta dos 65.000 réis da arrematação64.
A inexistência de uma memória descritiva da capela e o seu desaparecimento não
nos permite descrevê-la. Ficamos limitados a alguns apontamentos estruturais. Existem
referências: a dois arcos que ocupaõ coremta palmos de comprido; a emgrosar o portal e
a fresta de pedra de escadria labrada asim como esta o portal; emgrosar a parede e fazer
coremta palmos de cornige de huma banda e coremta da outra65. A estas informações
sobre a sua estrutura acrescentamos as referidas num documento de 14 Novembro
de 165866, onde se lê que Domingos Novais67 se obrigava a fazer a obra da abóbada,
telhados e paredes, da também designada capela da Sé: três cruzados para chumbo
para se chumbarem os gatos de ferro da capela; 2.400 réis de quatro carros de telha
(80 réis do barco e 200 réis dos carros); 4.000 réis de 4.500 ladrilhos (1.560 réis de
vinte e seis carros e barco); 3.800 réis de 65 carros de saibro e para dois oficiais que
chumbaram os ferros e guarneceram a «fronteira» da capela.
Dos artistas envolvidos na construção da capela de Santa Cecília, além dos
mestres pedreiros Domingos Novais e João da Rocha e do mestre de carpintaria
Manuel de Barros, conhecemos ainda a participação de dois oficiais de pedraria
(António Gonçalves e António João) e dois trabalhadores (Domingos de Sousa
e Manuel Ferreira) que, debaixo da orientação de Domingos Novais, andaraõ na
capella da varanda fazendo o arco que se faz de novo na escada e gornecem duas paredes
por demtro da escada68.

Mitra/0111, fl. 105. Senhor Luiz Pereira Banhos. Dará vossa mercê a Domingos Novaes ou a seu filho João da Rocha
vinte mil reis por conta da obra da capella da See, os quaes levarei a vossa mercê em conta com as mais que fizer na dita
obra. Porto 19 de Janeiro de 1658. Ver A.D.P., Dio/Mitra/0111, fl. 108.
62 A.D.P.,Dio/Mitra/0111, fl. 113.
63 A.D.P.,Dio/Mitra/0111, fl. 116.
64 A.D:P., Dio/Mitra/0111, fl. 86.
65 A.D.P., Dio/Mitra/0111, fl. 113.
66 A.D.P.,Dio/Mitra/0111, fl. 114-114v.
67 Eu Domingos Novaes mestre de pedraria por este me obrigo a acabar a obra da capella de Santa Cecilia que esta na varanda

do claustro da Sé, de todo o necessário; a saber cobrir a aboboda, levantar de paredes na altura della; cobrir o telhado,
rebocar e garneçer por dentro toda a capella, e igoalar a parede da banda de dentro, deixando somente hum nicho para o
padre se revestir; e e aperfeissoar de tudo a aboboda e revestila, e guarnecella, tudo em presso e quantia de sincoenta mil
reis; para que obrigo minha pessoa, e bens e recebi logo ao fazer desta vinte mil reis; e os trinta me daraõ acabada a obra.
Porto 2 de Agosto de 658. Domingos Novaes. A.D.P., Dio/Mitra/0111, fl. 110.
68 Pagamento feito em Dezembro de 1658. A.D.P., Dio/Mitra/0111, fl. 115.
A Sé do Porto na Sede Vacante de 1639 a 1671: obras e artistas 209

Figura n.º 2
Fac-símile da assinatura de
Domingos de Novais

4. Outras obras, artistas e fornecedores


Além das obras referidas, foram feitas outras na Sé durante o período que esteve
como responsável o Dr. Manuel de Seabra e Sousa, como se refere num rol69 das
obras que o Provisor mandou fazer: três janelas para a varanda de cima do claustro,
executadas (1657) por Domingos Novais70; e duas portas para a capela da mesma
varanda almofadadas e forradas pela banda de dentro (que o menos que valem são 8.000
reis cada porta e por cada janela 7000 reis; gastando-se de chumbo para chumbar os
caixilhos das janelas e portas 42 arráteis que custaram 1.010 réis). Referem-se ainda
outras obras e artistas: escada e grade (1656), feita por Manuel Vieira; gatos para o
primeiro lanço e segundo do claustro, colocados pelo ferreiro Simão Gonçalves; olear
as portas e janelas (1655) e pinturas (1656), tudo no claustro, obra que executou o
pintor Jerónimo de Sousa71; obras diversas de carpintaria no claustro (a porta para
o Cabido, uma porta para a «esquadinha» que vai para o miradouro com armação
e forro por cima, uma ilharga e um madeiramento falso que tem a parede por cima
da capela de S. Vicente) feitas (1656) pelos carpinteiros Belchior Francisco e Pedro
Moreira72; janelas (1657) obra executada por Domingos Novais73. Trabalharam nas
vidraças e colocaram ferros nas janelas: João da Rocha; André Gonçalves; Manuel
João; Manuel Fernandes, trabalhador, e Mateus Alves.

Figura n.º 3 – Fac-simile das assinaturas de Belchior Francisco e Pedro Moreira

69 A.D.P., Dio/Mitra/0111, fl. 88.


70 A.D.P., Dio/Mitra/0111, fl. 101-102.
71 A.D.P., Dio/Mitra/0111, fl. 80, fl. 82, fl. 8.
72 A.D.P., Dio/Mitra/0111, fl. 9, fl. 91, fl. 92, fl. 93, fl. 93v.
73 A.D.P., Dio/Mitra/0111, fl. 101-104.
210 Joaquim Jaime B. Ferreira-Alves

Dizemos nos Belchior Francisco da freguezia de Santa Maria de Aviozo; e Pêro Moreira da freguezia de
Moreira mestres carpinteiros, que nos nos obrigamos a fazer os dous lansos dos croastos da Se desta cidade
do Porto, e toda a obra de carpintaria de madeira de castanho, boma e dexeseber (sic), na maneira e forma
que esta feito outro lamso, tudo em preso e cantia de dozentos mil reis em dinheiro de comtado; e declaramos
que naõ emtra neste comtrato mais que as madeiras e mais que a ferage e guatos de fero e preguos, e tudo
o que tocar a pedraria será per comta do Reverendo cabido e fazemos a dita obra com toda a brevidade
posivel e pêra tudo comprir obrigamos nosas pesoas e bens moveis e de rais ávidos e por aver que declaramos
naõ estam obriguados a outrem; ao (?) o fazer deste resebemos do Senhor Provisor Manoel de Siabra de
Souza outenta mil reis em dinheiro comtado, e por asim se pasar na verdade lhe demos este que asinamos, e
roguamos a Paulo Moreira da freguezia de Sam christo do Muro que este fis (?) como testemunha asinase
nesta cidade do Porto oje vinte e sete de Outubro de 1655 annos.

Também foram diversos os fornecedores de materiais para as obras cujos nomes


chegaram até nós. Encontramos referências, entre outras, à compra: de madeira
(Domingos Gonçalves; os carpinteiros Pedro Moreira e Belchior Francisco); de telhas
(Manuel Gomes); de calões e alcatruzes (Manuel Fernandes de Morais74); de pregos
(António do Couto, da rua dos Mercadores75); vidros (João Francisco76, vidraceiro,
morador na Ferraria); cal (Manuel Fernandes Teixeira, mestre da caravela Santo
António77). Estas informações podem ser completadas com o rol dos gastos (16 de
Abril de 1655 a 28 de Abril de 1657)78 que se fizeram com a obra das varandas: cordas
para os guindastes, fornecidas por Pantaleão de Figueiredo; carros de saibro; carros
de tijolo; chumbo; pregos «tabuares» e pregos barrotes; carros de pedra pequena e
pedra grande; cinco pedras para colunas e cinco pedestais; ferros para chumbar as
bolas; carros de telha; e três pedras grandes. Ainda em relação às encomendas, um
documento revela-nos a vinda para as obras de quatro mil e cinquenta tijolos, de
Lisboa, mandados embarcar, «na caravella» Nossa Senhora da Piedade79, e enviados
(outubro de 1655) para o Porto, pelo «senhor Dom Pedro de Menezes Bispo eleito
do Porto», para serem entregues ao cónego Pantaleão Beleza.

Conclusão
o núcleo episcopal do Porto é um permanente «obradoiro» na cidade, dando-se
especial atenção à catedral, que no início do século XVII tinha recebido uma nova
capela-mor. Durante a Sede Vacante de 1639 a 1671, sem esquecermos, que Portugal
vivia um período de crise (Guerra da Restauração, 1640-1668), a Sé mereceu a atenção
por parte do Cabido, principalmente na área do claustro, valorizando-se a sua parte
superior e construindo-se, na mesma zona, uma capela da invocação de Santa Cecília.
74 A.D.P., Dio/Mitra/0111, fl. 6, fl. 96-97.
75 A.D.P., Dio/Mitra/0111, fl. 7.
76 Fez uma vidraça para o claustro. A.D.P., Dio/Mitra/0111, fl. 84-84v.
77 Forneceu 1.500 alqueires de cal pelo preço de 30 réis o alqueire (4 de Agosto de 1656). A.D.P., Dio/Mitra/0111,
fl. 87.
78 Rol dos gastos que se fizeraõ na obra das varandas da See fora jornais, e madeiras comesouse a obra huma tersa feira 13
de Abril de 1655 com quatro carpinteiros e a 26 do dito mes entraraõ 17 pedreiros. A.D.P.,Dio/Mitra/0111, fl. 24-31v.
79 Era mestre do navio Francisco Rodrigues, volante no sitio de cascais. A.D.P., Dio/Mitra/0111, fl. 12-13.
A Sé do Porto na Sede Vacante de 1639 a 1671: obras e artistas 211

Encontrando-se no Cabido a entidade que encomenda, estas obras permitem, além


de conhecermos melhor a evolução construtiva da catedral, revelar um conjunto de
artistas, cuja actividade é pouco conhecida.

Figura n.º 4
Porto. Sé
Fotografia do autor.

Figura n.º 5
Porto. Sé. Vista do claustro
Fotografia do autor.
212 Joaquim Jaime B. Ferreira-Alves

Fontes e Bibliografia

Fontes
A.D.P., Arquivo Distrital do Porto – DIO/CABIDO/011/1579, fl. 72-81v.
A.D.P., Arquivo Distrital do Porto – Dio/Mitra/0111 fl. 7-126v.
A.D.V.R., Arquivo Distrital de Vila Real – Rellação de Villa Real, e seo termo, fl. 354.

Bibliografia
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Editorial Presença.
ALMEIDA, Fortunato de, 1968 – História da Igreja em Portugal, II. Porto-Lisboa: Livraria
Civilização-Editora.
ALVES, Francisco Manuel, 1981 – Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança, tomo
IV. Bragança: Tipografia Académica.
BASTO, Artur de Magalhães, 1964 – Apontamentos para um dicionário de artistas e artífices que
trabalharam no Porto do século XV ao século XVIII. Porto: Câmara Municipal do Porto.
CASTRO, José de, 1947 – Bragança e Miranda, vol. II. Porto: Tipografia Porto Médico.
COSTA, Agostinho Rebelo da, 1789 – Descripçaõ Topográfica, e Histórica da Cidade do Porto. Porto:
Na Officina de António Alvarez Ribeiro.
DÓRIA, António Álvaro, 1975 – “D. Sebastião César de Meneses”, in Dicionário de História de
Portugal, vol. IV. Lisboa: Iniciativas Editoriais.
FERREIRA, J. Augusto, 1924 – Memorias Archeologico-historicas da cidade do Porto (Fastos Episcopaes
e Políticos. Sec. VI-Sec. XX, vol. II. Braga: Cruz & Comp.ª Editores.
FLOREZ, Henrique (Fr.), 1766 – España Sagrada, tomo XXI. Madrid: Por António Marin.
MÁRIO, Jorge, 2002 – História da Arte em Portugal. O Gótico. Lisboa: Editorial Presença.
NOVAIS, Manuel Pereira de, 1916 – Anacrisis Historial, IV, II Parte. Porto: Tipografia Progresso.
NOVAIS, Manuel Pereira de, 1918 – Anacrisis Historial, IV. Porto: Tipografia Progresso.
PINTO, António Ferreira, 1940 – O Cabido da Sé do Porto. Subsídios para a sua história. Porto:
Câmara Municipal do Porto.
REIS, Henrique Duarte e Sousa, 1992 – Apontamentos para a verdadeira história antiga e moderna
da Cidade do Porto, vol. III. Porto: Câmara Municipal do Porto.
REIS, Henrique Duarte e Sousa, 1999 – Apontamentos para a verdadeira história antiga e moderna
da Cidade do Porto, vol. IV. Porto: Biblioteca Pública Municipal do Porto.
SERRÃO, Joaquim Veríssimo, 1980 – História de Portugal [1640-1750], vol. V. Lisboa: Editorial Verbo.
TEIXEIRA, Júlio A., 1951 – Fidalgos e Morgados de Vila Real e seu termo, vol. III. Vila Real:
Imprensa Artística.
Talha no Baixo Tâmega e do Vale no Sousa
encomendada às escolas artísticas do Porto e de Braga
(séc. XVIII)
José carlos Meneses RODRIGUES

O barroco joanino da escola portuense (1742-1749)


Retábulo-mor de S. Miguel de Bustelo (Penafiel)
A data de 1742 assinala o compromisso1 do abade do mosteiro com o mestre
imaginário portuense, José da Fonseca Lima, para a obra do retábulo-mor, tribuna e
frontal do altar da igreja. No quadriénio de 1748-1752, destinam-se verbas para o
douramento do retábulo-mor e dos colaterais2.

Figura n.º 1
Penafiel. Bustelo.
Igreja do convento.
Retábulo-mor

1 BRANDÃo, 1985: 415-418; RoDRIGuES, 2004: 279-284 (I).


2 RoDRIGuES, 2004: 314-315 (III).
214 José Carlos Meneses Rodrigues

o banco apresenta três painéis: o central, correspondendo ao vão da tribuna, com


jarros florais, cuja base se transmuta e prolonga na moldura de cantos truncados e
assimétricos a conter toda a decoração interceptada por festão suspenso de rosetas;
os painéis laterais, circunjacentes às mísulas das colunas encastoadas com atlantes,
acantiformes na desmaterialização dos membros inferiores em cálice invertido figu-
ram3, com leitura de arabescos4, de braços abertos, sustentando com ar feliz, quase
nimbados pela concha joanina e cabecinhas imediatamente acima.

Figura n.º 2
Penafiel. Bustelo. Igreja do convento.
Retábulo-mor. Banco

o trono descarrega no banco os degraus magnificamente decorados. Plasticidade


e densidade decorativa, com exuberância que não se demarca do equilíbrio que obsta
à saturação pelo jogo de curvas e contracurvas da disposição da ornamentação que
culmina, ou parte de uma leitura, focalizada na boca da tribuna a abrir em dossel

3 As meias figuras ou meios corpos usam-se nos arranques de ornamento desde a Antiguidade; delimitam-se, do
ventre para baixo, às vezes, por cinturão, brotando em cálice de acanto invertido, plano, em baixo-relevo ou em
plástica de vulto. Aparecem em braços de candelabros, tocheiros… e retomam-se do renascimento italiano. Ver
MEYER, 1994: 77-78.
4 PoNS, 1992: 178.
Talha no Baixo Tâmega e do Vale no Sousa encomendada às escolas artísticas do Porto e de Braga 215

de grande efeito cenográfico – autêntico camarim a albergar o resplendor, que uma


magma de anjos e meninos sustendo tochas e de grande dinamismo nas torções
anatómicas, parecem elevar ainda mais uma outra milícia angelical de cabecinhas
aureolando o tondo central em resplendor, relevado, para receber a sagrada partícula.
Coroados por cabecinhas aladas ornadas à guisa de toucado, os ressaltos com
angulação exterior sobre o par de colunas torsas sustentam e unem-se ao remate
por meio de fragmentos de frontão com volutas afrontadas (tema de Pozzo), criando
a ilusão de frontões voluteados a cobrir ou rematar os nichos intercolúnios, numa
heterodoxia compositiva.
ornatos em C acompanham toda a inventividade da cartela e remate em que
se vislumbra o motivo de treillage5 que – retomado e enformado ou deformado
na sensualidade da linha rococó – apresenta aqui perfeita delineação, audácia da
congeminação do uso das massas e ritmo. Dois ornatos invadem profusamente o
retábulo a que o entalhador dá uma expressividade notável na unidade de todo o
conjunto: a cabeça alada e o festão.
Quando se douram os retábulos colaterais, merecendo-o pela donosidade da talha
irmáa da da capella mor6, somos induzidos para José da Fonseca Lima.

Figura n.º 3
Penafiel. Bustelo. Igreja do convento.
Retábulo do transepto (Evangelho). N. S.ª do Rosário

Figura n.º 4 – Penafiel. Bustelo. Igreja do convento. Retábulo


do transepto (Evangelho). N. S.ª do Rosário. Banco

5 Treiallage (tapada, grade, reticulado) é um tema usado com grande desenvolvimento a partir de 1715; com
Watteau, Audran e oppenord; mas configurado já em 1709 pelo primeiro. Ver PoNS, 1992: 206, 210, 216.
6 RoDRIGuES, 2004: 304 (I).
216 José Carlos Meneses Rodrigues

Retábulo-mor de S. Pedro (Amarante)


Miguel Francisco da Silva, um dos intérpretes do retábulo-mor da Sé do Porto,
faz a planta do retábulo-mor da igreja de S. Pedro, em finais de 1745 ou início de
17467, por contrato celebrado com a respectiva Irmandade. A execução cabe ao
entalhador portuense José da Fonseca Lima, o artista do retábulo-mor de Bustelo;
dois modelos distintos a consolidarem a valoração da escola de talha do Porto. A
escritura do contrato8 faz-se em 1746, pagando-se a planta a Miguel Francisco da
Silva a José da Fonseca Lima pelo retábulo-mor e tribuna.

Figura n.º 5
Amarante. S. Pedro. Retábulo-mor

Em 1760, procede-se ao douramento do retábulo-mor. A Irmandade contrata


os pintores e douradores Manuel de Queirós Coutinho e João Manuel de Sousa, de
Amarante, pagando-se-lhes cada milheiro de ouro a 3 200 réis. No ano seguinte,
discriminam-se duas verbas para João Manuel (de Sousa): 50 000 réis e 1 200 réis9.

7 o risco da planta e o cálculo das despesas são feitos por Miguel Francisco da Silva. Ver BRANDÃo, 1986: 483-487.
Ao mesmo artista é atribuído somente o risco da tribuna. FERREIRA-ALVES, 2001: 103; RoDRIGuES, 2004:
284-288 (I).
8 E ainda seis castiçais, uma cruz à patriarcal, seis jarras, cinco frontais, talha de duas frestas, dois anjos para os
presbitérios, duas portas para a sacristia, cruz para o Senhor dos Passos, restauro de dois retábulos (Senhora da
Conceição e S. Martinho) e emadeiramento para o telhado. BRANDÃo, 1986: 488.
9 SARDoEIRA, 1957: 56-57; BRANDÃo, 1986: 189.
Talha no Baixo Tâmega e do Vale no Sousa encomendada às escolas artísticas do Porto e de Braga 217

o entalhe das peanhas dos intercolúnios não deslustra a unidade do retábulo,


dispondo-se S. Pedro e S. Paulo, respectivamente, no Evangelho e na Epístola, numa
singular composição de citação de Pozzo, de cabecinhas afrontadas entre asas e conchas
em cornucópia, tudo contido em efeitos de ornatos em C, que já se impunham no
século XVII10, qual agrafo de fecho, flanqueados por perfis acânticos.
o banco corrido mostra angulação, misulado exteriormente e ajustado com
pedestais nas colunas interiores; apainelado, centraliza-o o sacrário com figuras quase
de convite e forte pendor áulico nas vestes e cabeleiras louras.
o sotobanco, ímpar no conjunto de retábulos em análise, é entalhe massivo na
expressividade do acanto a conter ananás e panos que dele partem e encontram
sustentação em festão, num dinamismo que os enrolamentos e as borlas gerem, quais
cortinados pendentes de dosséis.

Figura n.º 6
Amarante. S. Pedro.
Retábulo-mor. Sotobanco

10 É um ornato visível em igrejas portuenses do período joanino. Acanto em caixas de jóias, de madeira, finais do
século XVII. REINHARDT, 1992: 133.
218 José Carlos Meneses Rodrigues

Retábulo-mor de S. Martinho de Várzea do Douro (Marco de Canaveses)


o mestre entalhador e escultor António José Machado de Teive que, em 174911,
assume o acordo com o corregedor da comarca do Porto12, pela quantia de 300 000
réis para a carpintaria, a talha e a ensamblagem de grades, púlpitos, sanefas, duas
credências, retábulo, trono e banqueta, ficando o altar separado do retábulo. A obra
já fora tomada, anteriormente, por outro mestre.
o entablamento, de acusado ressalto, faz o seu papel de apoio do remate,
pressupondo-se que o arco abatido da tribuna é desenhado para o ajustamento à
arcatura do tecto da capela-mor, adaptação que não lhe retira a conjugação com o
essencial da estrutura joanina.

Figura n.º 7 – Marco de Canaveses. Várzea do Douro.


Retábulo-mor

Figura n.º 8
Marco de Canaveses. Várzea do Douro.
Retábulo-mor. Colunas

A sanefa do remate, em jeito de dossel, atenua esta relação do retábulo com o pé


direito disponível na capela-mor e impõe translineação na leitura pela repetição das
cartelas intercaladas pela pomba dogmática que asperge a radiação divina.
Colocado sob as peanhas dos intercolúnios, um cálice acantiforme regula a sua
estabilidade espacial, lateralizado por dois florões que permitem a eclosão de segmento
espiralado do seu centro, precursão ou ressonância do motivo de Percenet13 antecipado
por Heckenauer, o Jovem14, em 1700, já visível no período renascentista.
11 BRANDÃo, 1986: 541-545; RoDRIGuES, 2004: 288-291 (I).
12 Manuel Ferreira Pinto desiste da obra que tinha arrematado por cento e oitenta e oito mil e quinhentos réis.
BRANDÃo, 1986: 541; RoDRIGuES, 2000: 45 (I).
13 Acanto em metal, metade do século XVIII, com precedência. REINHARDT, 1992: 138.
14 Acanto na ourivesaria. HecKenauer, o Jovem, Augsburgo, cerca de 1700. REINHARDT, 1992:147.
Talha no Baixo Tâmega e do Vale no Sousa encomendada às escolas artísticas do Porto e de Braga 219

O rococó da primeira fase de Frei José Vilaça


Retábulo-mor de Santa Maria de Pombeiro (Felgueiras)
o retábulo-mor de Pombeiro é íntimo na composição e elegante nos pormenores,
de um profundo sentido linear que lhe proporcionou finalizar a sua primeira fase de
uma forma apoteótica, onde as escolas francesa (Meissonier) e alemã se fazem sentir,
além da de André Soares, como é óbvio, mas, acima de tudo, as suas originalidades
vertidas numa plasticidade e dinamismo incomparáveis (R. Smith)15.

Figura n.º 9
Felgueiras. Pombeiro. Igreja do mosteiro.
Retábulo-mor

Muito mais comum que o concheado assimétrico da casca de caracol, como na


talha de André Soares, é a fita16 enrugada de folhagem ou de concheado, ornada
de rítmicos motivos assimétricos sugestivos de amendoins17, que nos proporcionam
15 SMITH, 1972: 406 (II).
16 SMITH, 1972: 257 (II).
17 o motivo dos amendoins é detectado em fita enrugada de folhagem no coro de Pombeiro (Felgueiras): duas fitas com
um par cada; nos dois laterais de Pombeiro (Senhora da Assunção e Santo Cristo), Ests. 355 e 361. SMITH, 1972
(II). Em todo o friso do entablamento e do frontão; no púlpito (Evangelho) de Alpendorada, uma fila percorrendo
a área inferior; em oldrões (Penafiel), na mesa de altar do colateral do Evangelho (Senhora de Fátima), Est. 349.
SMITH, 1972 (II).
220 José Carlos Meneses Rodrigues

uma outra leitura, a das larvas18. De proveniência augsburguiana, o ornato é usado


por André Soares e Frei José Vilaça nos retábulos de Refóios (Cabeceiras de Bastos
e Pombeiro (Felgueiras).
o artista suprime, em determinado passo, os fustes das colunas exteriores, dando
azo a extravagantes dosséis compostos de finos e audaciosos concheados19. Clarifica-se
uma graduada projecção destas fantasias nas esplêndidas peanhas dos santos e na
qualidade explosiva20 das gigantescas mísulas suspensas, relevando-se as grandes flores
de acanto, motivo vegetal caracterizador do retábulo.
Merecem destaque em beleza, elegância e originalidade, as alongadas volutas
concheadas incorporando cabeças de anjinhos, recordando a talha mais convencional
da igreja beneditina de ottobeuren, na Baviera21.
Nas portas duplas que dão acesso ao trono evidenciam-se aspectos originais do
retábulo, entre outros, que são as paredes interiores que enquadram as portas, reunidas
por uma grande elegância de linhas22 e fazendo parte do sistema de apainelado das pilastras,
nas quais, em substituição dos capitéis convencionais, assoma o belo motivo unificado
duma fita de vivo pregueado, pouco antes usado no guarda-vento de Tibães (Braga)23.

Figura n.º 10
Felgueiras. Pombeiro. Igreja do mosteiro.
Retábulo-mor Remate

18 o espírito tridentino catapulta para o divino tudo o que possa assumir o carácter misterioso, contemplativo e
espiritualizado. A sugestão do amendoim, derivação das estampas augsburguianas, pode assumir a transmutação, ou
seja, o aperfeiçoamento para a metamorfose, concepção transposta no insecto, a borboleta, no caso dos colaterais
de Pombeiro, da primeira fase vilaciana (Ests. 318 e 325). A larva, então, propõe uma perfeição que a rugosidade
do amendoim entrava. Ver SMITH, 1972 (II).
19 Ests. 318 e 325. SMITH, 1972 (II).
20 Ests. 318 e 325. SMITH, 1972 (II).
21 Ests. 318 e 325. SMITH, 1972 (II).
22 Ests. 318 e 325. SMITH, 1972 (II).
23 Ests. 318 e 325. SMITH, 1972 (II).
Talha no Baixo Tâmega e do Vale no Sousa encomendada às escolas artísticas do Porto e de Braga 221

O remate tem anjos levantados numa superfície unida num motivo central, com
perfis oscilantes salientados por uma grande quantidade de linhas expressivas, afinal
um dos contributos fundamentais do artista neste retábulo. Enormes volutas encai-
xilham o motivo, suspensas sobre o entablamento, onde pousa o pé interior de cada
anjo, limitando o ritmo expansivo desta zona coroada pela fina cabeça de um anjo
alado sob fragmentos de frontão contracurvados, de onde partem agrafos enrugados.
Num conglomerado de formas e massas que anulam ou rejeitam o vazio, plasmam-
se dilectas rosas vilacianas, margaridas, nostálgicas e ancoradas palmas pozzianas,
cartelas em forma de rocalha e concheados na sua facetação cinzelada, à maneira
da ornamentação Munschel24 ou à boa maneira de Meissonier25. Residuais acantos
perdem protagonismo pontuando arestas, mísulas, capitéis e contracurvas em capri-
choso desenlace das massas decorativas até ao trasparente que esmaga o crente em
emanação lumínica, pela maximização da refulgência do ouro e efeito de contraluz.
A tribuna arranca em cota com profundidade gerida por alçados interiores
contracurvados na concepção de pilastras de capitéis que se nos afiguram em cinta
de concheado – com textura inspirada em murex ramosus ou efeito chicorée da
Chicoreus26, já gizada em 1735 por Verberckt em Versailles27, de bordos estriados e
nervuras onduladas.
O trono, com atenuada gradação dos degraus de tratamento individualizado,
supera-se no baldaquino (micro-estrutura com pequena sanefa e tarja a arrebanhar
e dar conclusão ao arqueado do remate), consentâneo do efeito de transverberação
da emanação lumínica (como o mor de S. Gonçalo, Amarante) através do resplendor.
Sobre o baldaquino uma possível visualização, ornada por acanto e casca, como
referência catártica ao cosmos, com um centro que poderá definir-se como umbilicus
mundi28. Festão de flores, incluindo cacho de cipro ou alcanforeira na conotação com
a caridade, que não se apaga com a ingratidão – tal como o grão em combustão não
se apaga se lançado à água – expande-se com leveza numa leitura que converge na
tribuna, com pauta ideativa de gruta29, tão cara ao rocaille.

O rococó da segunda fase de Frei José Vilaça: capelas laterais


e púlpitos
Capelas laterais de Santa Maria de Pombeiro (Felgueiras):
N. S.ª da Assunção e Sto. António
Em 1777, fazem-se quatro Capellas dos lados30, nas quais se assentariam os seus
retábulos, que estariam concluídos no mês de Maio.
24 SMITH, 1972: 376 (II).
25 SMITH, 1972: 368 (II).
26 SMITH, 1972: 333 (II).
27 SMITH, 1972: 396 (II).
28 DELL’ARCO, 1997: 103.
29 PONS: 1992: 328, 330.
30 SMITH, 1972: 425 (II); RODRIGUES, 2004: 347-351 (I).
222 José Carlos Meneses Rodrigues

os retábulos são dois pares de risco diferente, representando o segundo e o terceiro


estilos de Frei José Vilaça. Referindo-se aos dois altares nos lados da igreja significa,
provavelmente, dois riscos aplicados a quatro retábulos31.
A síntese dos retábulos das segundas capelas laterais – Senhora da Assunção e
Santo António – consolida-se na moldura do nicho central que vai ao encontro da
coluna compósita, mediante a casca, convergência apoiada em base voluteada de
que pende uma sanefa de lambrequim (inovação) a sobrepujar o perfil misulado,
discretamente ornado com concheados, reservando-se o vão para a mesa de altar.
São retábulos que nos remetem para a hipérbole das formas hiper-valorizadas do vivo
marmoreado e pela singularidade e excepção, fantasiosa, do normativo de Pozzo, tão
caro a Vilaça.

Figura n.º 11
Felgueiras. Pombeiro. Igreja do mosteiro.
Retábulo da segunda capela lateral (Epístola).
Santo António

o controverso uso de colonne sedenti no altare capriccioso – idealizado para a Igreja


de S. Sebastião de Verona onde fa bellissima vista – como extravagância, livre arbítrio,
invenção fantasiosa, teve por argumento o facto de come è lecito pensare a cariatidi
sedute, altrettanto può farsi per le colonneche da esse derivan32. Talvez por sugestão,
tivesse a gravura de Vascellini, do grupo estatuário de Giambologna para a fonte
do Oceano com il Nilo, L’Eufrate e il Gange33. Tudo é assimetria simétrica e métrica?
31 SMITH, 1972: 425 (II); RoDRIGuES, 2004: 347-351 (I).
32 DE FEo, 1996: 118-119. Alusão ao II volume, fig. LXXV. PERSPECTIVE in Architecture and paintaing, 1989.
33 DE FEo, 1996: 119.
Talha no Baixo Tâmega e do Vale no Sousa encomendada às escolas artísticas do Porto e de Braga 223

Peanhas sob ornatos em C com obliquidade e fusão de concheado com palma,


resguardam o camarim ou nicho central, de recorte audacioso que rompe o enta-
blamento e toma a configuração de asas de borboleta – até cartela com possível
configuração de incensário ou urna estilizada.
o frontão desfragmenta-se de forma tripartida em ondulação, sublimando o
camarim que alteia, vazando cartela para deixar entrever o resplendor em inter-
pretação hipocicloidal, que nas partes laterais deforma a curvatura das cornijas em
maleabilidade, sinónimo de desvanecimento de formas moles.
Na face interna de revoltosas palmas recortam-se, na nossa leitura, casulos, um
já vazio, onde se metamorfoseia, em insecto perfeito, a borboleta.

Púlpitos de S. João de Alpendorada (Marco de Canaveses)


No contrato de 178034, cabe ao entalhador bracarense Francisco de Freitas a
tarefa de executar dois púlpitos de madeira com sanefas saídas e remates inclinados.

Figura n.º 12
Marco de Canaveses. Alpendorada. Igreja do
convento. Púlpito (Evangelho)

34 ADB-um, 2.ª Série, n.º 135, fls. 19-21 v; LIMA, 2000: 203-205; RoDRIGuES, 2004: 361 (I).
224 José Carlos Meneses Rodrigues

No alçado frontal dos espécimes de Alpendorada relevam-se cartelas ladeadas


por painéis e concheado residual, correspondendo, nos púlpitos de Pombeiro, a
cartela central e configuração de concheados simulando painéis; nas bacias há uma
correlação de cartelas e concheados, distingundo-se, em Alpendorada, os ornatos
em C e S dos concheados flamejantes de Pombeiro.
Adiantamos ainda as tipologias dos segundos retábulos laterais de Pombeiro (N.
S.ª da Assunção e S. to António) e dos púlpitos de Alpendorada: há fragmentos de
frontão e arco conopial, resplendor no remate, lambrequins no embasamento, painel
vazio no embasamento, larvas em cartelas do naquela espaço, com correspondência
nos púlpitos ao nível do resplendor na sanefa, de frontão e arco conopial, painéis
sugerindo cartela, larvas.

A transição rococó-neoclássico da terceira fase de Frei José


Vilaça: atribuição de retábulos-mores e de capelas laterais
o fenómeno da linha direita verifica-se, entre outros casos, no apainelado do
embasamento do retábulo-mor de Paço de Sousa (Penafiel). Ao mesmo tempo, a
velha paixão do artista pelo jogo da linha condu-lo a uma série fantástica35 de painéis
irregulares, como no retábulo-mor e púlpitos de Alpendorada (Marco de Canaveses),
obras executadas por outros entalhadores.

Figura n.º 13
Marco de Canaveses. Alpendorada.
Igreja do convento. Retábulo-mor

35 SMITH, 1972: 425 (II); RoDRIGuES, 2004: 278 (I).


Talha no Baixo Tâmega e do Vale no Sousa encomendada às escolas artísticas do Porto e de Braga 225

O espaço aberto do frontão semi-circular é encimado por outro frontão pontiagudo


(interrupção por ático rematado por empenas pontiagudas), situação verificada nos
retábulos das primeiras capelas laterais de Pombeiro (Felgueiras) – N. S.ª das Dores
[17] e Santo Cristo – e no mor de Alpendorada (Marco de Canaveses), remates que
nos sugerem a citação borromínica: frontão curvo interrompido por ático.
O classicismo manifesta-se com ênfase nas pilastras jónicas, havendo algumas de
fustes completamente lisos, como nos retábulos laterais de Alpendorada; outros, com
ramagens de pequenas folhas assimétricas que, nas colunas do retábulo-mor de Paço
de Sousa (Penafiel), crescem, tomando uma forma semelhante à fantástica fita de
maçaroca do azulejo seiscentista de tapete36. Há outras pintadas de azul, imitando o
lápis-lazúli da capela romana de S. Roque de Lisboa, ostentando uma rede de filetes
dourados, o que sucede no retábulo-mor de Alpendorada e no par de retábulos
laterais de Pombeiro.
O disco decorativo com o centro frequentemente aberto constitui outra componente
classicizante; na sua forma mais simples – mero círculo entalhado – encontra-se no
retábulo-mor de Paço de Sousa e no retábulo lateral das Almas/Santo Cristo, em
Pombeiro; na sanefa do retábulo do coro de Alpendorada oferece-se ovado, vazado
e ornado de pérolas.
Há bocas (tão usadas na França de 1730-1760 e nos azulejos portugueses joaninos) e
amendoins, larvas é a nossa leitura, nas sanefas do coro e nos púlpitos de Alpendorada
e no retábulo das Almas, em Pombeiro37.
Este estilo de transição merece a R. Smith – contrariamente às nossas convicções –,
a qualificação de grosso, vazio e sem vida, comparando com as belíssimas composições
anteriores, classificando de mediocridade a revelação dos últimos trabalhos do monge
artista, inquirindo se ele, esgotado com tanta produção artística e com apenas 55
anos de idade, perdia as suas elevadas capacidades de riscador, ou se os seu desenhos
entregues a entalhadores inferiores sofrem trágicas deturpações38.

Retábulo-mor de S. João de Alpendorada (Marco de Canaveses)


Em castanho policromado (Figura n.º 13), com imitação de mármores e elementos
dourados, data a sua execução em 1780-1783 e o douramento no triénio seguinte39,
conjunto considerado empobrecido e fraco por R. Smith40.
Mas é num cenário de riscador que devemos enquadrar Frei José Vilaça pela exis-
tência de dois contratos (1780 e 1782) onde intervém João Bernardo da Silva, entre
outros: i) 178041 – com apontamentos não descritos na escritura e o uso de madeira
de castanho, o mestre entalhador João Bernardo da Silva, morador na Rua do Anjo,

36 SMITH, 1972: 425 (II); RODRIGUES, 2004: 279 (I).


37 SMITH, 1972: 425 (II); RODRIGUES, 2004: 279 (I).
38 SMITH, 1972: 425 (II); RODRIGUES, 2004: 456-457 (I).
39 SMITH, 1972: 425 (II); RODRIGUES, 2004: 452-453 (I).
40 SMITH, 1972: 453 (II); RODRIGUES, 2004: 358-364 (I).
41 ADB-Um, 2.ª Série, n.º 135, fls. 19-21 v; ver SMITH, 1972 (II); LIMA, 2000: 203-205.
226 José Carlos Meneses Rodrigues

Francisco de Freitas Rego, da Rua de Chãos de Cima Sima, e Manuel José Correia,
da Rua de S. Barnabé, todos da cidade de Braga, estabelecem um contrato com o
abade do mosteiro de Alpendorada assim definido: João Bernardo da Silva arremata
o retábulo e a tribuna da capela-mor da igreja de S. João de Alpendorada por 649
000 réis; a Francisco de Freitas cabem os dois púlpitos de madeira com sanefas saídas
e remates inclinados pela verba de 100 000 réis; e ao entalhador Manuel José Coreia
compete executar as cadeiras do coro da capela-mor por 185 000 réis. A madeira
de castanho existente no camarim velho poderia ser aproveitada pelo mestre João
Bernardo da Silva. obrigavam-se a utilizar oficiais capazes de fazer as obras com boma
perfeição de acordo com o desejo do abade e o que fez as plantas das mesmas obras a
serem revistas e vistas depois de feitas e assentadas. ii) 178242 – João Bernardo da
Silva faz um trespasse a outro entalhador da mesma cidade, Domingos José Ferreira,
descrito da seguinte forma: tendo recebido do abade do convento de Alpendorada
toda a obra do novo retábulo da capella mor da sua igreja, faz a traspassação larga a obra
do dito retabolo, somente o fronteespicio do caixilho que fora levar e do trono e camarim ao
segundo pela verba de 400 000 réis, a pagar em proporção com o andamento da obra.
o banco e o sotobanco revestem-se de severos painéis rectilíneos, contendo folhagem
estática composta com a maior regularidade, ocupando no sotobanco (painéis sob
os pedestais das colunas) apenas a quinta parte da superfície, impondo uma solução
radicada em novos desempenhos e funcionalidade.

Figura n.º 14
Marco de Canaveses. Alpendorada.
Igreja do convento. Banco e sotobanco

42 ADB, Nota Geral, 1.ª Série, n.º 835, fls. 24 v.-25. Ap. Doc., p. 495-496.
Talha no Baixo Tâmega e do Vale no Sousa encomendada às escolas artísticas do Porto e de Braga 227

Nos painéis e pedestais do banco aparecem ramos cruzados e rígidos festões, os


motivos decorativos mais empregados nesta terceira e última fase da arte do monge
artista43.
As quatro colunas, estriadas verticalmente, de capitel compósito, são modeladas
pelos retábulos lisboetas do terceiro quartel do século XVIII, imitando em madeira
pintada e dourada os fustes de lápis-lazúli da capela de S. João Baptista, com risco
do arquitecto iataliano Luigi Vanvitelli (1700-1770), em 1742, para a igreja de S.
Roque (Lisboa)44.
Formas simples e linhas relativamente severas dão visibilidade ao remate, unifi-
cado pelo entablamento liso, interrompido pelo arco dissimulado num ático que aí
nasce e é rematado por cornijas pontiagudas. As palmas e outras folhagens calmas
ornamentam os seus perfis, em vez dos atormentados efeitos anteriores do artista45.
A cabeça do padroeiro, S. João Baptista, no motivo central do remate, pode
relacionar-se com a obra pessoal de Frei José Vilaça, pelas semelhanças na barba, na
boca e no nariz das imagens do Senhor Crucificado. S. Bento, no nicho do lado do
Evangelho – cuja posição se confirma em 175846, em retábulo anterior – com rosto
semelhante, pode ter sido obra do monge artista47.
O campo da tribuna arqueia o lintel do entablamento que se fragmenta a pouca
altura por imperativos prevalecentes da tradição de remates de cerceamento. Um
ático de perfil borrominiano48 na ressonância pontua a fragmentação referida e, em
cota mais baixa, o nicho do titular, o Baptista, na assumpção de pilastras e enta-
blamento semicircular com delicados lanços de ressalto na direcção das ilhargas e
recapitulação estilizada da fantasia borrominiana de orelhas tomadas do Casino del
Búfalo, Roma49, com o objectivo de cortar parte da linearidade dos perfis restringe
a liberalidade do campo da tribuna, numa solução inusual decorrente da ausência
do sacrário, incomportável no banco.

Retábulo-mor de S. Salvador de Paço de Sousa (Penafiel)


O triénio de 1740-174350 é de grandes remodelações na igreja de Paço de Sousa
(tal como na igreja do mosteiro de Bustelo, Penafiel). Quatro décadas depois (1780-
-1783)51, faz-se de novo um lado da capela-mor, com travessa na factura do outro
lado e abóbada de pedra. No triénio seguinte (1783-1786)52, conclui-se a capela-mor
de acordo com o risco, somente iniciada, aplicando-se um guarda-pó para obviar aos

43 SMITH, 1972: 453 (II).


44 SMITH, 1972: 453 (II).
45 SMITH, 1972: 453 (II).
46 RODRIGUES, 2004: 717-718 (III).
47 SMITH, 1972: 453 (II).
48 Edícula na fachada do Collegio Propaganda Fide. Ver VARRIANO, 1990: 74.
49 ADAM; 1992: 204.
50 RODRIGUES, 2004: 260 (III); RODRIGUES, 2004: 364-367 (I).
51 RODRIGUES, 2004: 276-277 (III).
52 RODRIGUES, 2004: 279 (III).
228 José Carlos Meneses Rodrigues

problemas da água. Mas é o próprio Frei José Vilaça a afirmar que fizera a capela-mor
de pedra e de pau, pressupondo-se a construção da capela-mor e a decoração em talha53.
o magestoso retábulo doura-se, matizando-se todo o camarim de cores não vulgares,
procedendo-se de igual modo no sagrado altar e na respectiva banqueta, assentando-se
na tribuna uma cortina incarnada54. No triénio de 1789-179255, faz-se o douramento
da tribuna da capela-mor, bancos e peanhas dos apóstolos56.

Figura n.º 15
Penafiel. Paço de Sousa. Igreja do convento.
Retábulo-mor

Ao mestre entalhador Manuel Alves de Araújo, de Landim (V. N. de Famalicão)


cabe a tarefa de executar a tribuna do retábulo-mor sob o contrato assinado em 1784
com o abade de Paço de Sousa e seus religiosos57.
o arco trilobado do camarim projecta-se na composição do remate que vê os
seus fragmentos de frontão curvo sobraçados por duas volutas, em jeito de aletas
(servindo de apoio a duas cabeças aladas aí colocadas discretamente), incrustadas
no ático rematado por perfis apontados58, ligeiramente ressaltados no coroamento.
53 SMITH, 1972: 379 (II).
54 RoDRIGuES, 2004: 279 (III).
55 RoDRIGuES, 2004: 282; 284 (III).
56 RoDRIGuES, 2004: 282; 284 (III).
57 ADP, 2.º, lv. 674 (1784), fl. 118-121. [Cortesia de Patrícia Almeida]
58 Neogóticos, no pensamento de R. Smith, de que discordamos. SMITH, 1972: 456 (II).
Talha no Baixo Tâmega e do Vale no Sousa encomendada às escolas artísticas do Porto e de Braga 229

o entablamento é duplicado mas rompido nos dois níveis pela moldura em diluição
trilobada de painel, prenunciando a fórmula de Blondel em diminuir e esbater o vulto
no interior do espaço sacro em prol do painel. o primeiro nível do entablamento
abraça ambas as colunas de cada lado da tribuna, aí fenecendo; o segundo nível
parte das colunas exteriores, sobreposto ao primeiro, inflectindo para cima em suave
arqueamento, que termina abruptamente num ornato em C com prolongamento em
contracurva para o alto, onde se inscreve no ático, de vigoroso cornijamento.
Desta, a partir de detalhe de acanto em chave, delineia-se em esquisso um simulacro
de cartela, com o olho divino no triângulo trinitário, a terminar em agrafe na boca
da tribuna. Dos lados, dois anjos seguram palmas em exaltação do símbolo. Acantos
e flores ornam esta emotividade contida.
No banco, perpetua-se a solução do sacrário aposto na suposição de mais um painel,
que desvirtua ou, pelo menos, colide com a leitura dos restantes painéis; há simetria
a partir do eixo do sacrário para-angular; e nas extremidades, um painel acrescido e
alongado na horizontalidade ao suportar cada par de colunas com intercorrência de
nichos, perfurados nesse pano, entre si.

Figura n.º 16
Penafiel. Paço de Sousa.
Igreja do convento.
Retábulo-mor. Banco

os motivos ornamentais são cruzamentos de ramos com a variante de hera59


conotada, na Antiguidade, com ritos báquicos, agora, com a amizade do mais fraco
pelo mais forte60; tratada de maneira naturalista com espiga e palma, investindo, em
espiral, com baga pelos fustes, deixando lugar nos capitéis em folha de carvalho61.
A ornamentação apela às ramagens que povoam as colunas de forma ampla, onde
as flores se salientam em fortíssimas silhuetas, de acordo com uma tendência que

59 MEYER, 1994: 61-64.


60 Conotava-a com antigos por nunca cair a folha e Baco ser sempre moço, também com subir mais alto que todos –
ambição.
61 árvore de Júpiter e zeus e símbolo de vitória. ADAM, 1992: 270. Retomado do renascimento italiano como símbolo
de estirpe. MEYER, 1994: 65.
230 José Carlos Meneses Rodrigues

marca a terceira fase de Frei José Vilaça; no remate do sacrário, tipo festão horizontal,
na porta do mesmo, interceptada por espigas de milho; cruzam-se ainda, com flores,
nos painéis do banco.
No remate, ao lado de gigantescas flores de nova invenção, repetem-se as velhas
fitas de flores dos estilos precedentes, visíveis no coroamento do motivo central e
na sua parte inferior. os festões curtos exibem-se nos pedestais exteriores do banco
e no intradorso dos painéis do mesmo.
os concheados assimétricos, próprios do vocabulário rococó, mantêm-se nos
nichos laterais, nas palmas com fitas e nas bocas (inteiramente redondas), unindo a
moldura da tribuna com a martineta e seu sacrário62.

Capelas laterais de Santa Maria de Pombeiro (Felgueiras): Senhora das


Dores e Santo Cristo
Em Pombeiro, as formas seguem mais fielmente as linhas dos modelos de Van-
vitelli63. A composição arquitectónica toma a forma de edícula clássica côncava,
com frontões de perfis conopiais. É a influência dos grandes retábulos das igrejas
pombalinas pós-terramoto de 1755 (Senhora das Marcês, Senhora da Graça, Santa
Isabel, Senhora do Sobreiro, em Torres Vedras)64.
Figura n.º 17
Felgueiras. Pombeiro.
Igreja do mosteiro.
Retábulo da primeira capela
lateral (Evangelho).
N. S.ª das Dores

Figura n.º 18
Felgueiras. Pombeiro.
Igreja do mosteiro.
Retábulo da primeira
capela lateral
(Evangelho).
Corpo central.
N. S.ª das Dores

62 SMITH, 1972: 456 (II).


63 SMITH, 1972: 457 (II).
64 SMITH, 1972: 457 (II).
Talha no Baixo Tâmega e do Vale no Sousa encomendada às escolas artísticas do Porto e de Braga 231

Figuram as colunas imitando lápis-lazuli, com filetes dourados nos terços inferiores
dos fustes (douramento actual na vertical), simulando bronze dourado, as cimalhas
dos pedestais inscrevem pequenos frontões conopiais; figuras alegóricas (totalmente
douradas, presentemente) repousando nos frontões do remate, cobertas de grandes
panos à romana e, no tímpano dos frontões, o símbolo triangular da Santíssima Trindade
rodeado de cabeça de serafins sugestivas da escultura marmórea da escola de Mafra65.
Frei José Vilaça impõe o seu toque pessoal artístico à importação dos modelos de
Lisboa: é o caso dos amendoins (larvas, na nossa leitura) no friso do entablamento,
nos ramos de lírios no coroamento do remate e, particularmente, no motivo que
encima o nicho da Senhora das Dores – no lado do Evangelho, perdendo a vidraça
grande – composto por volutas, pétalas e painéis diferenciados.
Compactado entre colunas de fustes com o primeiro terço demarcado e filete a
imitar bronze de diferente lavranteria nos dois retábulos e pares de colunas, transita
para um entablamento corrido com ressaltos enviesados para não escamotear o par
de colunas posteriores que assoma das ilhargas.
O friso espaça folhagem de acanto no altar mencionado; o habitual denticulado
sobrepuja larvas em autêntica moldura; frontão com remate de recorte borrominiano,
de certa sobriedade66, é sancionado por ressaltos que avançam dos lados em relação
ao ponto central, onde elementos florais pontuam e o tondo em forma de nuvem de
querubins ladeia o triângulo da Santíssima Trindade.
Figuras enlutadas (santas mulheres…) solidarizam-se com a Senhora das Dores
e avançam mais para melhor verem e carpirem o Santo Cristo.
No último, na simulação de porta, o labor esmera-se com ressonâncias de ornatos
em C em afrontamento contracurvado em cima, resquícios de linha serpentinata,
adossados em baixo. Também o banco entre pedestais afeiçoados ao recorte borromínico
é diverso: agrafos, cartelas e urnas diluíram-se na transição.

Capelas laterais de S. João Baptista de Alpendorada (Marco de


Canaveses): Coração de Jesus, Sagrado Coração de Maria, Santo Cristo
e Pedra Fria
Marcando uma unidade estilística na nave da igreja de S. João Baptista de Alpen-
dorada, os retábulos das suas quatro capelas laterais, de citação serliana, anunciam
o neoclassicismo de Frei José Vilaça nos frontões triangulares e nas colunas de fuste
liso, mas ainda presos ao rococó – no remate, nichos laterais e banco – que dá nome
e alma à arte do monge de Tibães.
O relatório trienal de Alpendorada de 178367 refere o conjunto dos quatro laterais,
substituindo outra série de 1742-1746, um dos quais servindo para a comunhão da
freguesia (actual Coração de Jesus).
65 CARVALHO, 1950; SMITH, 1972: 457 (II).
66 VARRIANO, 1990: 59.
67 SMITH, 1972: 458 (II).
232 José Carlos Meneses Rodrigues

Figura n.º 19
Marco de Canaveses. Alpendorada.
Igreja do convento.
Retábulo da segunda capela lateral
(Evangelho).
Sagrado Coração de Maria

Figura n.º 20
Marco de Canaveses. Alpen-
dorada. Igreja do convento.
Retábulo da segunda capela
lateral (Evangelho). Banco
e altar. Sagrado Coração de
Maria

o semicírculo de painéis com florões no arco de cada uma das capelas, encerrando
a composição, é comum ao do retábulo-mor. A planta plana dos laterais contrasta
com a concavidade do mor, assim como o fuste liso das colunas se distingue das
caneluras do principal; o lápis-lazuli destas é substituído pela imitação do mármore
vermelho com máculas brancas (influência de Lisboa).
Talha no Baixo Tâmega e do Vale no Sousa encomendada às escolas artísticas do Porto e de Braga 233

Os ornatos rococó – que R. Smith apelida de medíocres – preenchem o espaço do


tímpano do arco que inclui o frontão triangular, encimam os arcos dos nichos laterais,
integram-se nos pedestais das colunas e evidenciam-se nas ilhargas do sacrário.
As penhas dos nichos laterais remontam a um modelo de André Soares, assimilado
por Frei José Vilaça, duas das quais estão documentadas no triénio de 1780-178368
e notabilizadas pelas linhas dos seus perfis e painéis de ângulos delicadamente
chanfrados, reflectindo a grande preocupação com ornatos de volutas distintiva de
toda a talha do mestre.
Paritários na concepção acima do banco, um par de colunas de fustes rectos,
adjacentes a pilastras, nichos laterais a extremar a composição, corpo central
algo avançado (com cantoneiras circunscritas) e consequente ressaltamento do
entablamento, apenas corrido na cornija, frontão triangular arcaizante, tímpano
com a indispensável cabeça de alada, a retirar o monopólio das cartelas e agrafos, e
estruturado para a disponibilidade dimensional da capela.
Uma cartela vazada aligeira o coroamento; o dourado não é massivo senão nos
capitéis. As dissemelhanças, desconsiderado o cromatismo dos marmoreados, partem
do pormenor somenos importante da moldura do camarim de pouco desenvolvimento
em profundidade e, sim, da dimensão em que esta se rasga no dimensionamento
descendente.
A decoração circunvizinha é esparsa: nos pedestais de boa cota ideativa, nos
restantes painéis cingida ao filete dourado que nada contorna, apenas dinamiza o
painel que planifica a superfície.

Conclusão
Concentrámos o estudo nas obras de talha balizadas entre as décadas de 40 e 80
do século XVIII, do barroco joanino à transição rococó-neoclássico. Se incluíssemos
os espécimes desaparecidos, recuaríamos ao início do século (barroco nacional).
Intervieram artistas do Porto e de Braga em retábulos-mores e laterais, tribunas,
tronos, sanefas, órgãos, imagens…
Renomeámos Miguel Francisco da Silva (escola que propomos para S. Domingos
e S. Gonçalo, Amarante) e Frei José Vilaça que, nas suas três fases de riscador, faz
um percurso de Pombeiro (Felgueiras), a Paço de Sousa (Penafiel) e Alpendorada
(Marco de Canaveses).
As encomendas têm parceiros diversificados: procuradores de párocos, abades e
abadessas, fidalgos de S. Majestade, irmandades, corregedores (por arrematação),
representantes de padroeiros (S. ta Clara, Amarante).
Fica-nos o caminho sinuoso para descobrir os artistas encarregues das obras que
lhes são atribuídas.

68 SMITH, 1972: 458, 465 (II).


234 José Carlos Meneses Rodrigues

Fontes e Bibliografia

Fontes
ADP, Arquivo Distrital do Porto, (1782-1783) – 1.º lv., 206, fl. 58v.-60.
ADP, Arquivo Distrital do Porto, (1784) – 2.º lv., 674, fl. 118-121.

Bibliografia
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Sousa (séculos XVII-XIX). Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto (Tese de
doutoramento. Policopiado).
SARDOEIRA, Albano, 1957 – “Notícia de alguns atistas que trabalharam em Amarante”, in
Douro Litoral, oitava série, n. os III-IV. Porto: s/ed.
SMITH, Robert C., 1972 – Frei José de Santo António Ferreira Vilaça. Escultor Beneditino do Século
XVIII (2 volumes). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
VARRIANO, John, 1990 – Arquitectura italiana del Barroco al Rococó (trad. espanhola de Letícia
Cabanas). Madrid: Alianza Editorial, S.A.
A escultura nos cemitérios portugueses (1835-1910):
artistas e artífices
José Francisco Ferreira Queiroz

Introdução
Apesar das apreciáveis variações regionais existentes, os cemitérios portugueses
do Romantismo assumem maiores características arquitectónicas do que escultóricas.
Nos casos de cemitérios mais modestos, o principal investimento era geralmente feito
na portaria de cantaria e no seu respectivo portão em ferro, ao passo que, em termos
de jazigos particulares, os mais aparatosos alicerçavam-se sobretudo na dimensão
arquitectónica como elemento diferenciador. Contudo, a profusão de ornato – por
vezes mesmo em excesso, o que foi habitual em alguns túmulos de novos-ricos mais
ufanos – e a inclusão de elementos escultóricos de vulto também constituíram
frequentes soluções para impor uma imagem mais grandiosa aos túmulos.
Em certa medida, os cemitérios portugueses da segunda metade do século XIX
adoptaram um formulário artístico comum aos demais cemitérios do sul da Europa.
Em termos de abundância proporcional da escultura face ao suporte arquitectónico,
os cemitérios portugueses situam-se a meio termo entre os italianos e os espanhóis.
Em geral, aqueles possuem grande pendor escultórico, mesmo que a arquitectura do
cemitério, geralmente de pórticos e arcarias, seja preponderante face à arquitectura
do jazigo individual. Ao invés, estes possuem grande pendor arquitectónico, de
carácter colectivo, sendo pouco habituais as peças escultóricas, sobretudo em certas
regiões espanholas, onde predominavam as necrópoles oitocentistas de “nicherías”.
Assim, os cemitérios portugueses, no seu carácter arquitectónico mais indivi-
dualizado e na proporção do uso da escultura, aproximam-se sobretudo do modelo
romântico francês.
Porém, se os cemitérios portugueses não podem competir com os cemitérios
italianos em termos de quantidade e qualidade de obra escultórica, também não
podem competir com os cemitérios franceses em termos de valia artística das peças
de escultura. É sobretudo ao nível do trabalho do artífice executante, do canteiro
ornatista, que os cemitérios portugueses podem equiparar-se aos melhores da Europa.
Não por acaso, foi ténue em Portugal a fronteira entre escultor e canteiro, especial-
236 José Francisco Ferreira Queiroz

mente no norte do país1. Portanto, foi ao nível da gama média e média-baixa da


escultura tumular que os cemitérios portugueses mais se destacaram face aos demais
existentes na Europa, sobretudo quando não estavam em causa as proporções e os
detalhes anatómicos (Figura n.º 9).
Embora as peças escultóricas sejam relativamente habituais na arte tumular do
Romantismo em Portugal – em cemitérios mais cosmopolitas ou, não sendo esse o
caso, em túmulos mais faustosos de pequenos cemitérios – a sua qualidade podia
variar bastante. Porém, esta variação de qualidade não dependia exclusivamente do
quanto o encomendador estava disposto a despender, ou da capacidade artística do
mestre executante. Na arte tumular da segunda metade do século XIX, a questão
dos modelos e das reproduções é fundamental para se aferir o valor das peças.
À partida, modelos de escultores mais capacitados, como António Soares dos Reis,
seriam de maior qualidade e, portanto, mais escolhidos para reprodução. Porém, não foi
bem esse o caso, havendo mesmo modelação documentada de António Soares dos Reis
cuja replicação não foi ainda comprovada, apesar da tipologia ser admissível no âmbito
cemiterial2. É mesmo de supor que os melhores modelos não eram necessariamente os
mais seleccionados pelos encomendadores, dado que certos tipos de esculturas foram
mesmo pouco reproduzidas (e o facto de o terem sido, sugere que não houve destruição
propositada do modelo, para que o primeiro encomendador evitasse ter de encarar
cópias) e outras quase deixaram de o ser a partir de certa altura, reflectindo a própria
evolução do gosto tumular – isto, num intervalo de apenas três quartos de século.

A diversidade temática
As obras de escultura que predominam em cemitérios românticos portugueses são
figuras alegóricas, colocadas como coroamento de jazigos-capela ou como remate de
outro género de mausoléus de média e grande dimensão. As alegorias mais comuns são
a Fé, a Esperança e a Caridade, sendo a Fé talvez a mais utilizada destas três virtudes,
dado que surge por vezes apenas em forma de cruz, sem uma componente escultórica
evidente. Em cemitérios maiores e em monumentos tumulares mais faustosos, ainda
que posicionados em cemitérios mais pequenos, também é comum encontrar outras
estátuas alegóricas, como o Comércio e a Indústria, ou até a Agricultura. Em alguns
dos túmulos mais ricos de negociantes de grosso trato, surgem alegorias às partes
do mundo nas quais detinham interesses, correspondendo geralmente à Europa
e à América ou África. Estátuas alegóricas como as Artes, a Navegação e outras
menos comuns também podem ser encontradas em túmulos românticos portugueses,
dependendo da biografia do falecido cuja decoração tumular entronize.
Em cemitérios portugueses de maior realce, podemos igualmente encontrar outras
figuras de vulto, alegóricas e mitológicas, como a Religião, a Gratidão, a Bondade,
o Tempo, ou as parcas (Figura n.º 4). Dado que, no cemitério romântico, o recurso
1 QUEIROZ, 2002: 658 (II).
2 QUEIROZ, 2002: 658 (II).
A escultura nos cemitérios portugueses (1835-1910): artistas e artífices 237

à metáfora era habitual para expressar a morte de modo menos cruel, encontramos
ainda algumas figuras da Noite ou do Inverno.
Embora tenhamos encontrado vários casos de estátuas dos santos patronos, são
menos comuns as representações religiosas mais genéricas (Figura n.º 5), salvo a
Imaculada Conceição, que surge sobretudo em alguns cemitérios maiores do Baixo
Mondego, não tanto em vulto, mas sobretudo em alto relevo. A figura de Cristo, na
tumulária do Romantismo em Portugal, surge em raros casos de calvários, geralmente
de finais do século XIX ou inícios do século XX. Outras figurações de Cristo (em
majestade ou com o Sagrado Coração) geralmente inserem-se já num período posterior
ao Romantismo. O mesmo sucede com representações da Sagrada Família.
Algumas das primeiras estátuas dos cemitérios portugueses representam as clássicas
carpideiras, embora tenham sido mais utilizadas as Saudades, não só em vulto, como
através de uma flor em relevo, que passava a mesma mensagem de forma menos
dispendiosa. A Fábrica de Cerâmica das Devesas, por exemplo, chegou a produzir
mais do que um tipo de Saudade em vulto, reflectindo bem a aceitação desta solução
tumular (Figura n.º 6). O próprio António Soares dos Reis modelou a figura da
Saudade para posterior replicação em cemitérios (Figura n.º 3, segundo plano).
Por vezes, estas Saudades, personificadas em imagens femininas de atitude melan-
cólica, facilmente se confundem com as próprias carpideiras, ou com a alegoria da Dor
(Figura n.º 14), embora as Saudades mais conseguidas em termos escultóricos sejam
sobretudo jovens de olhar distante ou pesaroso, mas serenas. É claro que algumas
das estátuas mais precoces em cemitérios românticos portugueses (c. 1835-1855)
são muito frias na sua expressão facial e postura, sem que, com isso, correspondam
propriamente a uma figuração melancólica, dado que os modelos mais puramente
neoclássicos ainda vigoravam nessa altura.
Muito comuns em cemitérios românticos portugueses foram os anjos e, em versão
mais profana, os génios da morte inspirados na tumulária da Antiguidade Clássica.
Anjos da Redenção ou da Ressurreição (em postura exaltante, ostentando a cruz
ou apontando para o céu), anjos orantes e anjos do Silêncio ou da Paz (com pose
serena ou pedindo silêncio a quem passa) são os tipos mais comuns dessas figuras
celestiais, muitas vezes executadas com pouco virtuosismo, dada a grande procura
desse género de figuras, tanto de vulto, como de relevo.
Um dos aspectos mais complexos da análise à escultura tumular do Romantismo
prende-se com a fronteira entre o retrato realista e a representação escultórica “à
época”, embora de carácter metafórico, particularmente no caso de crianças. Por
vezes, crianças trajadas dentro da moda em vigor eram retratos dos próprios finados,
embora também pudessem representá-los sem que as peças escultóricas constituíssem
propriamente um retrato. Sem o confronto com o espólio fotográfico familiar, é
geralmente difícil tirar conclusões seguras. De qualquer modo, este tipo de esculturas
é geralmente de qualidade apreciável ao nível do ornato e mesmo do rigor do traje,
mas sofrível ao nível anatómico e de proporções (Fig. 8). Ao nível do retrato, em
geral, nos casos em que é óbvio que estamos perante retratos dos finados, a qualidade
das peças escultóricas também varia muito. A produção de modelos para replicação
238 José Francisco Ferreira Queiroz

não era aplicável nestes casos, pelo que as oficinas de cantaria cujos mestres fossem
menos aptos em termos de estatuária contratariam a modelação, geralmente por
fotografia, do busto ou mesmo da estátua do finado. Escultores de segunda linha,
que quase sempre ficaram anónimos, fizeram a modelação de muitos destes bustos.
Outros porém, são obra de autores de nomeada. Alguns retratos feitos para cemitérios
portugueses mereceram até o exílio forçado para os museus, como sucedeu com a
estátua do Conde de Ferreira, hoje no Museu Nacional Soares dos Reis, tendo ficado
uma réplica em bronze no Cemitério de Agramonte (Secção da Ordem da Trindade).
Refira-se que a escultura em bronze aplicada à tumulária romântica em Portugal
cingiu-se quase sempre ao retrato, embora sendo raros os casos, quase todos datando
do fim do século XIX e dos primeiros anos do século XX e situando-se em cemitérios
mais cosmopolitas. Nos cemitérios do norte de Portugal, surgem também esculturas
em terracota ou faiança, na sua maioria executadas pela Fábrica de Cerâmica das
Devesas, com modelos de José Joaquim Teixeira Lopes. Em geral, estas estátuas têm
boa qualidade, estando entre as mais interessantes de seu tipo na Europa.
Os retratos aplicados aos túmulos românticos em Portugal eram em medalhão
relevado, em busto, ou de corpo inteiro. Os primeiros foram sempre os mais comuns,
por se prestarem a uma colocação mais versátil e por implicarem menor custo. Os
bustos e as estátuas de corpo inteiro, presentes em túmulos erigidos por subscrição
pública, em túmulos de novos-ricos ou em outros túmulos mais faustosos, eram quase
sempre de figuras masculinas. Foram raros em Portugal, durante o Romantismo, os
casos de retrato feminino de vulto, especialmente de corpo inteiro, embora tenham
sido feito vários em relevo. As excepções de retratos femininos de vulto surgem quase
sempre em contexto de casal, ficando marido e mulher lado a lado, em busto (Figura
n.º 11), por vezes sobre ou junto do seu sarcófago (caso exista).
Não podemos ainda apresentar aqui uma classificação tipológica exaustiva sobre a
escultura tumular do Romantismo em Portugal, dada a vastidão do tema e o facto de
ser necessária maior sistematização, face aos numerosos exemplos já inventariados, num
trabalho de campo de vários anos que ainda não abrangeu todas regiões portuguesas de
modo suficientemente representativo. De qualquer modo, não podemos negligenciar
as representações do leito de morte; as alegorias à elevação da alma ao Céu, por anjos
(sobretudo no caso de crianças e jovens mulheres), em ambos os casos quase sempre em
relevo. Não podemos também esquecer as esculturas de animais, umas vezes como atlantes,
mas também frequentemente com significado simbólico - como o cão, para representar a
Fidelidade do casal, embora também tenhamos encontrado animais como metáforas dos
falecidos – caso de um túmulo em Portalegre encimado por três cordeiros de tamanho
diferenciado, correspondendo às três crianças para quem foi erguido o monumento.
Por último, há que mencionar toda a panóplia de ornatos em relevo da tumulária
romântica em Portugal. Embora não se trate propriamente de escultura, por vezes
assumem estes símbolos um carácter fundamental no monumento. A iconografia da
morte romântica e os símbolos profissionais em relevo são os casos mais comuns. Nos
cemitérios portugueses, existem exemplos destas tipologias que nada devem aos melhores
exemplos europeus da mesma época, não só na habilidade para a execução de ornato
A escultura nos cemitérios portugueses (1835-1910): artistas e artífices 239

realista e naturalista (no caso de flores, por exemplo), mas no valor documental e
expressividade. Ainda assim, na época, a pouca capacidade e qualificação dos artífices
da pedra portugueses para a anatomia e proporções nota-se bastante na representação
de animais, que tendem a surgir com o mesmo carácter tosco de muitas esculturas.
Apesar da qualidade geralmente muito mediana da escultura aplicada à tumulária
romântica em Portugal, existe ainda um substancial número de peças bastante
interessantes e quase desconhecidas, mesmo dos estudiosos da escultura em geral.
Apesar disso, esculturas verdadeiramente notáveis são raras nos cemitérios portugueses.
Devemos ter em conta que Portugal é um país relativamente pequeno e que, no final
do século XIX, apenas duas cidades ultrapassavam os 100.000 habitantes (Lisboa
e Porto). Por outro lado, o cenário artístico português ressentiu-se do facto de não
ter havido muitos bons escultores nesse tempo, como a própria crítica de arte da
altura também o reconhecia. Na verdade, durante o Romantismo, escasseavam os
verdadeiros escultores em Portugal e alguns deles eram estrangeiros (principalmente
italianos e franceses). No entanto, houve vários excelentes canteiros e mestres
pedreiros portugueses, ao nível da decoração em relevo para monumentos tumulares.
Em finais do século XIX, o crescente carácter estereotipado da tumulária e a
reacção refractária dos intelectuais e das classes mais elevadas face à banalização
do fenómeno, acabaram por precipitar o declínio da qualidade da escultura tumular
portuguesa, embora tenham existido excepções, como o caso de Coimbra e dos artistas
ligados à Escola Livre das Artes do Desenho. Por outro lado, ainda que sendo quase
casos isolados, alguns dos mais notáveis e mais famosos exemplos de escultura em
cemitérios portugueses podem ser considerados como de transição entre a tradição
romântica e a estética Arte Nova (Figura n.º 14).

Conclusão
A grande variedade da escultura tumular portuguesa do Romantismo, seja em termos
de qualidade artística ou ao nível das tipologias, permite constatar a sua importância
no fenómeno do cemitério romântico em Portugal e no seu carácter distintivo face a
outros países. Porém, enquanto alguns exemplos de escultura tumular portuguesa do
Romantismo podem ser encontrados em várias versões, de uma qualidade que raia
o profundamente vernacular, outros são casos únicos, merecedores de estudo mais
aturado e consequente valorização patrimonial.
Ainda que esta conclusão seja provisória, dado o muito que ainda se deve pesquisar,
a fim de alcançar uma boa compreensão deste fenómeno, duas coisas são certas: por
um lado, não é possível compreender verdadeiramente a escultura portuguesa do
período romântico sem uma abordagem intensiva aos cemitérios; por outro lado,
considerando a relativa pequenez de Portugal e o facto do fenómeno urbano na
época romântica ter sido aqui menos marcante do que em outros países europeus, a
escultura tumular romântica existente em Portugal acaba por ser proporcionalmente
mais interessante, no seu todo, do que a escultura tumular coeva existente em muitas
outras partes do globo.
240 José Francisco Ferreira Queiroz

Figura n.º 1
Cemitério de Agramonte (Porto), detalhe
do Comércio, no mausoléu de Francisco
Antunes de Brito Carneiro. Este mausoléu foi
projectado em 1880 pelo arquitecto Tomás
Augusto Soller, com linhas simples, de modo
a ressaltar a obra escultórica – opção que foi
pouco comum na tumulária romântica em
Portugal, salvo em exemplos tardios. A obra
de escultura deste mausoléu é de António
Soares dos Reis, embora tenha sido execu-
tada pelo seu esboçador, Laurentino José da
Silva, que viria a manter na sua posse alguns
modelos do mestre, utilizando-os em outros
túmulos da sua lavra. As outras duas estátuas
deste mausoléu são a Saudade (no topo) e a
Indústria (do lado oposto do Comércio).

Figura n.º 2
Cemitério de Agramonte (Porto), Secção
da ordem de Carmo, detalhe da alegoria do
Tempo em aparatoso mausoléu construído
pela oficina de Bernardo Marques da Silva
(pai do arquitecto José Marques da Silva).
A figura alegórica foi modelada por António
Soares dos Reis e crê-se que o modelo foi
depois adquirido pela oficina de Bernardo
Marques da Silva, que tê-lo-á replicado
ocasionalmente.
A escultura nos cemitérios portugueses (1835-1910): artistas e artífices 241

Figura n.º 3
Cemitério de Agramonte (Porto), Secção
da ordem de Carmo, perspectiva do busto
de José António Lopes Sampaio, vendo-se
em segundo plano a mesma figura alegórica
da Saudade que fora modelada por António
Soares dos Reis para o mausoléu de Francisco
Antunes de Brito Carneiro (Figura n.º 1).

Figura n.º 4
Cemitério da Lapa (Porto), detalhe de uma
parca, cortando o fio da vida.
242 José Francisco Ferreira Queiroz

Figura n.º 5
Cemitério da Abrigada (Alenquer), detalhe
de um mausoléu encimado pela figura de S.
Pedro, obra de uma oficina de Lisboa.

Figura n.º 6
Cemitério de Fafe, detalhe de uma Saudade
em faiança, no topo de um mausoléu
granítico, obra da Fábrica de Cerâmica das
Devesas.
A escultura nos cemitérios portugueses (1835-1910): artistas e artífices 243

Figura n.º 7
Cemitério de Moura, escultura de remate de
um mausoléu, obra de oficina lisboeta.

Figura n.º 8
Cemitério de Coruche, estátua jacente de Maria Luísa Raposo (26 de Setembro de 1850 – 19 de Maio de
1852), trabalho muito fruste de uma oficina lisboeta, encomendado por António Nunes Vieira Raposo,
pai da criança.
244 José Francisco Ferreira Queiroz

Figura n.º 9
Cemitério de Agramonte (Porto), detalhe
do Anjo da Paz no topo de um mausoléu
executado na oficina de José Carlos de
Sousa Amatucci. A modelação é mediana e
a anatomia e proporções deixam mais ainda
a desejar, dado que José Carlos de Sousa
Amatucci não tinha o mesmo talento do seu
pai Emídio Carlos Amatucci.

Figura n.º 10
Cemitério de Agramonte (Porto), Secção
da ordem do Carmo, busto do Dr. José
Pereira da Costa Cardoso, sobre o portal da
sua monumental capela tumular, obra de
modelação de António Teixeira Lopes, feita
na época em que estava a estudar em Paris.
A escultura nos cemitérios portugueses (1835-1910): artistas e artífices 245

Figura n.º 11 – Cemitério de Agramonte (Porto), Secção da ordem do Carmo, busto de um casal.

Figura n.º 12 – Cemitério de Santarém, detalhe de um relevo em jazigo-capela executado na oficina


lisboeta de José G. Correia & Ca. (Irmãos). o anjo assume-se como a figura dolente, pela sua posição
debruçada sobre a urna, mas também por ostentar uma coroa de saudades e perpétuas.
246 José Francisco Ferreira Queiroz

Figura n.º 13
Cemitério de Salvaterra
de Magos, jazigo-capela de
Porfírio Neves da Silva e sua
família, obra da oficina lisboeta
de Marcolino C. Santos.
Trata-se de um exemplo
típico do recurso à simbologia
profissional, neste caso
agrícola e também comercial,
sendo mais comum, no Riba-
tejo e Alentejo, a simbologia
exclusivamente agrícola.

Figura n.º 14 – Cemitério de Agramonte, detalhe da figura da Dor, no jazigo Santos Dumont, obra de
António Teixeira Lopes e seus colaboradores da “escola” de Gaia. Trata-se de uma figura de clara filiação
na Arte Nova, pela sensualidade, pela descompostura das vestes e pela sua postura dramática e afectada,
apesar da alegoria ainda se enquadrar no espírito do cemitério romântico. Note-se que remata este jazigo
um cruzeiro com calvário no topo, ao gosto dos cruzeiros galegos.
A escultura nos cemitérios portugueses (1835-1910): artistas e artífices 247

Bibliografia
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Portugal. Consolidação da vivência romântica na perpetuação da memória (Tese de Doutoramento
em História da Arte apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, policopiado).
El difícil arte de pintar en Galicia.
Artistas, artesanos, mecenas y clientes*
Juan M. Monterroso Montero

I. En torno a la asimilación del nuevo estilo en Galicia:


lo moderno y lo romano
Uno de los primeros aspectos que se deben analizar, es el problema que plantea
la asimilación de las formas del Renacimiento en Galicia, sobre todo, si se tiene en
cuenta que se trata de un lenguaje ajeno a la tradición y experiencia gallegas y que,
además, su asimilación se debe producir en un ámbito totalmente periférico respecto
a los centros que marcaban las pautas culturales y artísticas de la época1.
En este sentido, es evidente que durante el primer tercio del siglo XVI no se
puede hablar de una plástica renaciente en Galicia si se entiende bajo este epígrafe
exclusivamente el desarrollo de una cultura artística cuya aspiración última sería
la recuperación de los moldes clásicos. Por el contrario se puede hablar de una
“dualidad formal”2 que girará en torno a la idea de modernidad y dentro de la cual
llegarán a coexistir los modelos nórdicos y los mediterráneos, en la medida en que
el Humanismo se identifica con los modelos flamencos acuñados desde mediados
del siglo XV en el arte español de la época3.
Esta “práctica ecléctica” de la actividad artística tiene como consecuencia, en
primer lugar, la utilización de unas formas estilísticas u otras de acuerdo con un
afán de prestigio y diferenciación social; y, en segundo lugar, la adopción del estilo
renacentista como una moda por la que se opta de acuerdo con unos modelos
dados, previamente formulados y experimentados fuera de la Península4. Asimismo
es el reflejo de una situación en la que la inercia que permite que ciertas formas

* Proyectos – V. copia.
1 NIETO, 1989: 11-96; TORRES, 1952: 369-384.
2 Este concepto, junto con el de “dualidad formal y modernidad” es utilizado por Nieto Alcaide para referirse, por una

parte, a una arquitectura renacentista y, por otra, de una arquitectura “moderna” realizada a partir de presupuestos,
fórmulas y formas góticas. NIETO, 1989: 13; NIETO, 1994: 107; MARÍAS, 1989: 107.
3 CHECA, 1988: 65-115.
4 No se puede afirmar que la cultura artística clásica se convierte en un lenguaje único y excluyente hasta el reinado

de Felipe II. NIETO, 1994: 108.


250 Juan M. Monterroso Montero

tradicionales pervivan, en especial dado el arraigo de dichas prácticas entre los


artistas locales, coexista con la vitalidad de un estilo que todavía evoluciona y aporta
soluciones a una clientela apegada a esas formas tradicionales5. De este modo, en las
artes figurativas el sistema de representación continuará siendo flamenco, mientras
que serán los motivos decorativos y la escenografía arquitectónica que completa la
pintura, escultura, orfebrería y rejería, los que reflejen las nuevas formas6.
No obstante, quizás no sea del todo correcto esgrimir el argumento negativo de una
sociedad estática, donde el estamento nobiliario no fue capaz de generar otras formas
culturales y otro sentido de la promoción artística distinto al medieval, como causa
última de la tibia acogida del Renacimiento; también se debe tener en cuenta, en última
instancia, que el Humanismo había surgido dentro de una sociedad totalmente diferente,
si se prefiere “moderna”, incompatible con las estructuras ancladas en tiempos pasados7.
En relación con la plástica gallega esta coexistencia se pone de manifiesto en un
elenco de obras y artífices de gran calidad y mérito, siendo la portada del Hospital
Real de Santiago de Compostela uno de los primeros ejemplos8. En un breve plazo
de tiempo, entre 1510 – fecha en la que Pero Francés y Nicolau de Chanterenne
emprenden la decoración escultórica de la capilla y 1522 – momento en el que, tras
la muerte de los maestros Martín de Blas y Guillén Colás9, es probable que los talleres
de Cornielis de Holanda y el maestre Arnao asumiesen la labor escultórica de la
portada-, se percibe un cambio estilístico que anuncia las premisas del nuevo estilo10.

5 NIETO, CHECA, 1980: 346-352.

En este sentido, la continuidad que se percibe entre la sociedad española del siglo XVI, lo mismo que en la gallega,
y la de la Edad Media se debe explicar por la ausencia de un ámbito cortesano semejante al borgoñón y de una clase
comercial e intelectual como la florentina. La Iglesia seguirá siendo la receptora principal del sistema de patrocinio
instaurado por nobles, burgueses y prelados. CHECA, 1992: 33.
6 NIETO, 1994: 108.

Buena prueba de lo dicho son las quejas esgrimidas por Diego de Sagredo cuando critica las mezclas de “lo romano”
y “lo moderno”, como constatación de un desconocimiento profundo de los orígenes del nuevo estilo, de la rígida
normativa y principios de los que nace. SAGREDO, 1986: Aiiv.
Una intención parecida es la que se encuentra en la obra de VILLALÓN, 1898: 152-153, 169-170.
7 Romano y Tenenti han definido el humanismo italiano del siglo XV como un fenómeno ligado a la ideología de

una burguesía mercantil, ciudadana y pre-capitalista, en el que el humanismo pretendía sustituir el sistema mental
jerárquico de la sociedad medieval por una visión individualista que tendía a una “unión fraterna y sin desigualdades
sustanciales entre todos los hombres...”. Por ello, dichos autores entienden el humanismo como una cultura abierta,
libre y dinámica. ROMANO, TENENTI, 1980: 54.
8 ROSENDE, 1999; GOY, 1999.

El Hospital Real compostelano es un magnífico ejemplo de esa “coexistencia-confrontación” entre las formas
renacenteistas y el contexto gótico, según se deduce de las palabras escritas por Cristobal de Villalón en 1539,
donde se erige en un defensor convencido de lo moderno:
“... En la Architectura no han faltado varones en estos tiempos que se hayan señalado en edificios. ¿Qué Memphis
o que Pirámides se pueden comparar con el monasterio y colesio de San Pablo, aquí en Valladolid?. ¿Y qué edificio
de más excelencia que el colesio que hizo aquí el reverendísimo Cardenal don Pedro Gonçalez de Mendoça, e con
las casas que hizo aquí el Conde de Benavente, y el palacio imperial que hizo Francisco de los Cobos? Los Cathólicos
Reyes fundaron en Compostela una casa para peregrinos que excede aquel antiguo Dionisio de Rodas... Yo he visto
todas estas cosas, y parésceme que sin agoran fueran todos muy sabios antiguos, se admiraran, en las ver, porque
ellos nunca hizieron obra en este género de arte con que se pudiesen comparar”. VILLALÓN, 1898: 172-173.
9 En la documentación recogida por Vila Jato se declara ambos maestros son naturales de Francia. VILA JATO,

1993: 207.
10 Esta portada compostelana ha sido relacionada, sobre todo en su concepción ornamental, con modelos portugueses

como los de la iglesia matriz de Camiña o el claustro del monasterio de San Jerónimo de Lisboa y con el círculo de
El difícil arte de pintar en Galicia. Artistas, artesanos, mecenas y clientes 251

De este modo, se puede afirmar que buena parte de la imaginería de la portada


mantiene los rasgos propios de la escultura hispano-flamenca, tanto por su indumentaria
o por su plegado, todavía definido en “V”, como por su canon corto11 o los modos de
representación. Sobre este último aspecto cabe señalar que, dentro de la tosquedad
propia del granito, las acciones y los gestos de los personajes representados tienden
hacia una cierta elegancia, armonía y belleza, es decir, hacia lo que el Vocabulario de
romance en latín de Nebrija y el Tesoro de la Lengua Castellana o Española, de Covarru-
bias Orozco definen como “gentil”. Asimismo en sus rostros se atisban características
propias del naturalismo flamenco como las barbas ensortijadas o los rasgos faciales
femeninos alargados y bien definidos que introducen una nota de gracia e, incluso, un
cierto acento extranjero12. En general se puede afirmar que el conjunto de la portada
tiende a expresar otro de los valores comunes de lo moderno, el culto al ornato, a lo
decorativo y a la riqueza y al aprecio de los detalles13.
También se puede constatar esta permeabilidad a las formas del nuevo estilo
en los contratos de algunos entalladores y pintores de la época. La noticia mejor
conocida y difundida es la que se refiere a Cornielis de Holanda, quien el 3 de julio
de 1524 contrató con el administrador del Hospital Real el altar del zaguán14. En
dicho acuerdo, además de mencionarse las maderas que se deberían utilizar en la
construcción del altar, se especificaba que tendría que ser hecho a la romana, en clara
oposición a la forma moderna. Esta aclaración supone, por lo tanto, una elección por
parte del comitente que, con toda seguridad, se debe interpretar como una forma de
prestigio y de diferenciación15.
En el mismo sentido habría que interpretar el trabajo que el pintor Francisco López
realiza en 1520 por encargo de Alonso III de Fonseca en su palacio. En el contrato
concertado el uno de diciembre de ese año con el canónigo Joaquín de Aunon, se
aclara que tendría que pintar la sala grande del quarto nuebo que agora se faze en los
palacios de Su Sª... con labrados de su follaje romano... fuentes y candelabros amarillos

Juan del Castillo. VILA, 1993: 207; MARTÍN GONZÁLEZ 1964: 32.
11 Es este uno de los elementos que mejor diferencia el estilo llamado al romano del moderno. Mientras el primero
encuentra su razón de ser en la tradición clásica y en la renovatio vetustatis, el segundo es completamente ajeno a
lo clásico. Esto no supone que el Gótico sea anticlásico; por el contrario, el Renacimiento es desde un principio
antigótico. BUSTAMANTE, 1993: 81.
12 PANOFSKY, 1998: 151-155.
13 Nos referimos en este caso a la preocupación que los artífices del programa escultórico ponen en la minuciosa

descripción de las ropas, adornos y joyas que lucen las imágenes, algo común al naturalismo flamenco. Sin embargo,
ese valor concedido a lo ornamental y decorativo se debe hacer extensivo a la arquitectura donde los motivos de
grutescos y a candelieri terminan por cubrir toda la estructura, convirtiéndose en parte esencial de la misma, pues la
ordenan y jerarquizan actuando desde la superficie. En este sentido, Bustamante García, señala que “la decoración
es tan arquitectura como la tectónica”. BUSTAMANTE, 1999: 26.
14 De este altar se conserva la predela, que fue expuesta en la exposición Galicia no Tempo celebrada en 1991. VILA,

1991: 256-257; ROSENDE, 1999: 110-117.


15 PÉREZ COSTANTI, 1930: 288; ROSENDE 1999: 235.

Buena prueba de que el nuevo estilo gozaba de la aceptación de la élite compostelana es que, en ese mismo año,
Cornielis de Holanda también ejecutará de ese modo el retablo para la Capilla de Nuestra Señora de la Prima de
Catedral. OTERO, 1957: 738; VILA, 1991: 257-258; GARCÍA IGLESIAS, 1996: 15-46.
También es interesante constatar que en esos mismos años, entre 1525 y 1533, el pintor y vidriero flamenco Sixto de
Frisia trabaja en el Hospital Real, junto con Felipe Sánchez. PÉREZ COSTANTI, 1930: 218-220; VILA, 1993: 418.
252 Juan M. Monterroso Montero

sobre fondo colorado; los papos de las madres de las vigas que también vayan labrados de
su follaje romano...16.
Con el paso del tiempo, a medida que el estilo se asienta, desplazando las premisas
hispano-flamencas, este tipo de indicaciones se hacen más frecuentes pudiendo ser
interpretada su presencia dentro de la documentación notarial como una fórmula
que se repite por inercia o como una aclaración que, todavía a mediados de siglo era
necesaria. Este debe ser el caso del vidriero Pedro Fernández que el 6 de mayo de 1546
es contratado por el canónigo Vasco Rebellón en nombre del obispo mindoniense
Diego de Soto, que acababa de acceder a la esta sede episcopal, para fazer y dar fecha
para la yglesia de la cibdad de Mondoñedo, seys ventanas de vidrio blanco con sus horlas
de Romano a la redonda conforme las ventanas que están puestas en el Tesoro de la Santa
Iglesia de Santiago... e llebarlas desta cibdad a su costa desde oy fasta en todo el mes de
Julio primero que viene17.
Por lo que se refiere a la pintura mural, se debe señalar cómo sus artífices se
comienzan a preocupar por la sistematización de la obra que realizan, procurando
llegar a una mejor racionalización del espacio y una mayor armonía del conjunto.
Este proceso se lleva a cabo bien a través de la utilización de bandas ornamentales
donde se introduce un léxico plenamente renacentista, bien a través de la invención
de una arquitectura fingida de carácter clásico que dota al espacio que las alberga,
habitualmente pequeñas iglesias de fábrica medieval, de una nueva personalidad18.
Asimismo, coincide con una época en la que el pintor gallego, cuya condición social
apenas se ha modificado en relación con el período anterior, comienza a buscar su
individualización artística para diferenciarse de sus coetáneos. Es el caso de pintores
como el autor de los murales de la iglesia de San Jorge de Vale, el maestro de Parga,
el segundo maestro de Cuíña, el de Paderne o el de Fornás19.
Ese cambio, producto de la asimilación del nuevo vocabulario renacentista,
tiene como consecuencia que en la pintura mural, no sólo se comience a entender
el espacio interior del templo de un modo diferente, sino que el espacio pictórico
propiamente dicho adquiera un valor real conmensurable. En este sentido, serán las
arquitecturas fingidas, en especial las que se asemejen a retablos, las que adquieran
una importancia capital al actuar como elementos que transforman la arquitectura-
base y la aproximan más a los gustos de la época.
Un magnífico ejemplo de esta circunstancia se puede constatar en la iglesia monástica
de Santa Cristina de Ribas de Sil. En este templo románico de finales del siglo XII
16 PÉREZ COSTANTI, 1930: 325.
Dos circunstancias se deben destacar en esta noticia: en primer lugar la aclaración que se hace de que Francisco
López no sabe firmar, prueba de que la asunción de las fórmulas renacientes es algo impuesto y ajeno a su formación
práctica; en segundo lugar, que la obra estaría supervisada y dirigida por el Maestro Fadrique a quien se le atribuyen
las tablas del Lavatorio y la Oración del Huerto de la Catedral de Santiago. VILA, 1993: 432.
17 PÉREZ COSTANTI, 1930: 197.

Podemos suponer que este tipo de vidrieras pretendían ser una evocación, más imaginaria que real, de las formas
decorativas clásicas. NIETO, 1970: 20-21; NIETO, 1993: 451-464.
18 GARCÍA IGLESIAS, 1985: 47-51.
19 A esta nómina de pintores habría que añadirle aquellos que trabajan en la catedral compostelana como Pedro

Noble o Juan Felípez. GARCÍA IGLESIAS, 1979: 27-28; VILA, 1993: 432-435.
El difícil arte de pintar en Galicia. Artistas, artesanos, mecenas y clientes 253

y primeros años del XIII, el ábside central, destacado en planta en relación con los
otros dos gracias a la incorporación de un tramo recto, cuenta con un conjunto de
murales que traducen en su ordenación una disposición semejante a la de un retablo.
De este modo, bajo la línea de imposta se disponen cinco grandes pilastras hexagonales
con sus fustes cajeados y decorados con grutescos, que dejan libres cuatro espacios
destinados a otras tantas imágenes. Sobre dicha línea de imposta, que actuaría como
entablamento, se situaría un segundo cuerpo del retablo, de menor tamaño al ocupar
sólo los lienzos murales situados entre las columnas del arco central y los laterales.
Aquí las hornacinas han sido cubiertas por veneras y los motivos ornamentales se
extienden también por el arco de la ventana central y por su intradós.
Esta distribución, que hace evidente la filiación renacentista de la obra, revela la
pretensión del artista de limitar el espacio decorado a aquel que se corresponde con
la estructura arquitectónica descrita20.
Desde un punto de vista iconográfico, lo mismo que ocurría en el retablo de la
Capilla de Don Pedro de Ben, la escena narrativa ha sido sustituida por la figura
aislada, cuyo valor representativo y simbólico viene determinado por la multitud de
relaciones que las imágenes pintadas pueden establecer entre sí. De este modo su
programa gira en torno al carácter eminentemente monástico del templo donde se
conservan, siendo su idea rectora el origen y advocación del mismo.
De este modo, el primero de los santos representados, situado en el lado del
Evangelio, en su primer cuerpo, es San Pablo Ermitaño, junto a él se encuentra San
Antonio Abad. Ambos Santos se deben asociar con el origen de la vida monástica,
en la medida en que San Pablo es el primer eremita y San Antonio, también conocido
como el Grande, es el padre de la vida monástica, según lo compilaron San Jerónimo y
San Atanasio21. Las hornacinas del lado correspondiente a la Epístola están ocupadas
por San Benito, cuya presencia estaría justificada por la vinculación de este priorato
a la regla benedictina, y Santo Tomás22.
En el segundo cuerpo se representa a dos santas mártires cuyos nombres están
escritos en letras capitales al pie de cada una de ellas: “Sancta Barbara” y “Sancta
Luzia”. El culto a la primera se populariza a lo largo del siglo XV, a través de la
Leyenda Dorada, siendo la protectora, como ya se ha indicado, contra la peste y la
muerte súbita; por su parte, Santa Lucía está asociada con el mal de los ojos23. La
presencia de ambas mártires merece una pequeña explicación que supere el plano

20 Las características de estos murales apuntan hacia un autor relacionable con el Renacimiento, que ha asimilado el
vocabulario ornamental de ese momento y que demuestra una especial preocupación por las búsquedas espaciales
a través de diferentes efectos lumínicos y cromáticos – son sumamente interesantes las dos veneras que cierran
los nichos del segundo cuerpo. Tanto en los elementos decorativos como en la figuración mantiene una fuerte
dependencia de lo lineal que sirve de soporte y límite al color, haciendo que los contornos de las imágenes sean
duros y precisos. Por su parte, el color, pobre en matices, se circunscribe a tonos oscuros, ocres y azules. GARCÍA
IGLESIAS, 1979: 23-30; BARRIOCANAL, 1980: 40-41; MONTERROSO, 1997: 147-150.
21 DUCHET-SUCHAUX, PASTOUREAUX, 1994: 270.
22 El modo que se ha elegido para su representación es aquél por el cual se le reconoce como discípulo del Mesías –en su

mano izquierda sostiene un libro- y como constructor, siguiendo la leyenda de Gondóforo, rey de la India divulgada
por Jacobo della Voragine en la cual se nos ofrece como apóstol de la fe y la caridad. MONTERROSO, 1997: 149.
23 DUCHET-SUCHAUX, PASTOUREAUX, 1994: 56-57, 220-221.
254 Juan M. Monterroso Montero

meramente iconográfico. En realidad, se trata de la creación de un marco adecuado


para la figura que presidiría el retablo, esa escultura de Santa Cristina, cuya presencia
respondería a la advocación de la iglesia.
De este modo, se estaría ante un retablo cuya lectura sólo se puede hacer en relación
íntima con la comunidad para la que se realiza, como un modo de reafirmación de su
origen último y de su identidad tras aquellos años turbulentos en que sus cimientos
se tambaleaban, quedando relegada la comunidad a la condición de priorato24.

Perfil religioso y cultural de una época. Devoción y educación.


La atención a la obra de arte en cuanto a su propia realidad material –forma,
estilo, técnica, etc. – dificulta su comprensión espiritual como parte de una unidad
de orden superior. Son factores externos a la propia obra los que determinan su
configuración y aspecto y, sobre todo, la relación de afinidad afectiva y emocional que
se establece entre ella y el grupo que, en última instancia, terminará por adoptarla
como uno de los elementos heredados que integrarán su patrimonio cultural. Por esta
razón, es preciso entender cada una de las manifestaciones artísticas de una época
tan compleja como la segunda mitad del siglo XVI, a partir de aquellos elementos
determinantes de la sociedad en la que surgen.
En el caso de la pintura es evidente que su definición está íntimamente ligada a la
evolución de la Iglesia, la religiosidad y la sociedad gallega de la época. La inmensa
mayoría de las obras estudiadas por García Iglesias poseen esa función litúrgica, de
la que, con el paso del tiempo y el afianzamiento de una espiritualidad contrarrefor-
mista, profundamente sensorial y dirigista, se verán desplazadas en beneficio de los
grandes altares y retablos barrocos, donde es la calidad tridimensional de la escultura,
su poder de definición ilusionista de la realidad, la que se considera más adecuada
para transmitir los valores de Trento y la Contrarreforma. No obstante, en un primer
momento, cuando los obispos gallegos pretenden llevar a la práctica la reforma de
las costumbres eclesiásticas en sus diócesis, enfervorizados por la asamblea conciliar
de Trento, en la que algunos de ellos habían participado, la pintura desempeñará un
papel semejante a la escultura, alcanzando en el caso del pintor de Banga una de las
cotas más elevadas de la creación plástica galaica de todos los tiempos25.
En este sentido es fundamental tener presente toda una serie de circunstancias
que rodean a la Iglesia gallega de finales del siglo XVI y que determinarán el carácter
de la pintura realizada en sus edificios parroquiales, monásticos y catedralicios.
La imagen de una iglesia poderosa que tenía sus fuentes de ingresos en los diezmos
y rentas derivadas de los contratos de fueros, además de primicias, censos, juros, cargas
señoriales y el conocido Voto de Santiago, contrasta con una desigual implantación

24 En 1564 los síntomas de decadencia dentro del monasterio de Santa Cristina de Ribas de Sil son evidentes tanto
en lo espiritual como en lo material, no sólo por la relajación paulatina en el respeto a la regla, sino también porque
sus rentas comienzan a ser destinadas a la renovación del vecino monasterio de San Esteban.
25 GARCIA IGLESIAS, 1983.
El difícil arte de pintar en Galicia. Artistas, artesanos, mecenas y clientes 255

demográfica26. Dicha posición, muy poco ventajosa en comparación con otros


lugares de la Península, supone desde el punto de vista catequético y evangelizador,
la necesidad de reforzar los vínculos entre la institución y la comunidad de fieles a
través de elementos que le permitan definir el templo como un espacio sagrado, centro
de su mundo, pero al mismo tiempo trascendente de ese espacio físico local para
transformarse en el lugar de confluencia entre el cielo, la tierra y el infierno. Sobre
todo teniendo en cuenta la familiaridad que el campesinado tenía con lo sagrado
a la hora de la representación de algunos misterios condenados en las sinodales de
Guevara de 1541 – non dizmavan ben, nen viñan ben a misa ao domingo, et os que
viñan daan vozes en a iglesia...27 – Es, en este contexto, en el que se debe encuadrar
el proceso de decoración mural que, a lo largo del siglo XVI, afecta a las fábricas
medievales gallegas, ya sea adoptando una ordenación retablística, mixta o total,
puesto que la necesidad de adaptar un repertorio pictórico a un espacio preexistente
suponía la posibilidad de remozar total o parcialmente la arquitectura-base, sobre
la que, además, se podrán desarrollar complejos programas iconográficos como los
presentes en Santa María de Dozón (Dozón, Pontevedra), San Juan de Sixto (Dozón,
Pontevedra), Santiago de Fonteita (O Corgo, Lugo), San Martiño de Mondoñedo
(Foz, Lugo) o Santa María de Leboreiro (Melide, A Coruña)28.
Tampoco se puede hablar de una iglesia homogénea en cuanto a la procedencia
sociológica -jurídica, económica, formativa y cultural- del clero secular. Las diferencias
existentes entre sus miembros tuvieron como primera consecuencia un desigual reparto
de la población eclesiástica por las tierras gallegas, con la consiguiente desatención
de las parroquias rurales en beneficio de ciudades y villas, especialmente colegiatas y
catedrales, como demuestran los censos y visitas del siglo XVI. Esta situación favoreció
la llegada de los jesuitas a mediados de la centuria con una verdadera vocación
evangelizadora, alegando que en Monterrei eran precisos “clérigos de vida honesta
y recogida que tuviesen alguna noticia de las cosas de Dios... No sabían os labregos
do contorno qué era confesarse sino de año en año, ni oír sermón, ni tratar de cosas
de virtud, las costumbres de los eclesiásticos y de los seglares muy estragadas... y más
las de los eclesiásticos que antes eran los que más, con su vida escandalosa, instaban
a los seglares”. Y a su vez, supuso la actuación de la Inquisición, cuya vocación
correctiva se orientó hacia el castigo de los blasfemos, la afirmación de las doctrinas
tridentinas y la erradicación de algunas creencias y prácticas heréticas, cuyo origen
no era otro más que la ignorancia29.
La consecuencia fundamental de esta situación de relajación a la que había llegado
el clero secular, aseglerado y, en muchas ocasiones, partícipe de las mismas creencias
y ritos supersticiosos del pueblo, fue el esfuerzo de algunos obispos por emprender
su reforma y, a través de ella, introducir en la vida cotidiana gallega la reforma
tridentina, en un proceso de “cristianización” que ha sido considerado como eficaz

26 SAAVEDRA: 1991a: 488.


27 GONZÁLEZ COUGIL, 1987: 296; SAAVEDRA, 1991b: 95.
28 GARCÍA IGLESIAS, 1985b: 47-51.
29 BARREIRO, 1988: 487-488; SAAVEDRA, 1991a: 495; SAAVEDRA, 1991b: 98; LÓPEZ, 1997: 97-98.
256 Juan M. Monterroso Montero

pero incompleto. La iglesia gallega desarrollará una intensa actividad sinodal que, si
bien no sería suficiente para llevar a cabo una aplicación inmediata y general de las
disposiciones de Trento, iba a servir para desarrollar importantes campañas docentes
y doctrinales. Sumamente significativo fue el concilio de la provincia eclesiástica de
Santiago, celebrado entre 1565 y 1566 por iniciativa del arzobispo compostelano Don
Gaspar de Zúñiga; a éste le siguieron el sínodo celebrado en Tui en 1578, durante el
gobierno de Don Diego de Torquemada, los cinco convocados por Don Juan de San
Clemente entre 1578 y 1587 en Ourense y el impulsado por Don Juan de Liermo
en la diócesis mindoniense durante 157530.
Se inicia de este modo un proceso de definición de un “proyecto de sociedad”,
basado en un estricto dirigismo de la vida parroquial a través de la enseñanza doc-
trinal que aspiraba a resaltar el papel de Cristo y la Virgen en la teología católica,
la administración y cumplimiento de los sacramentos –confesión anual y comunión
pascual –, la decencia del culto divino y de los espacios en los que éste se debía
celebrar, muchos de ellos abandonados o arruinados, al igual que ocurría con las
imágenes. Expresivas de esta nueva ideología son las disposiciones orensanas que,
según recoge Saavedra, prohiben en 1580 a los pintores, que no hayan sido aprobados
por la jerarquía eclesiástica, trabajar en las iglesias de la diócesis, en la medida que
los programas desarrollados poseían una clara función catequizadora; del mismo
modo, en Mondoñedo, se ordena que sean enterradas todas aquellas imágenes que no
mueven a devoción, sino que, por el contrario, invitan a la “irrisión e irreverencia”31.
Ahora bien, los aspectos señalados muestran una reforma oficialista, emprendida
por los prelados gallegos a partir de las disposiciones de Trento. A través de ellos se
observa una conducta general e ideal que, en ningún caso, puede considerarse como
expresión acabada de una “religión vivida” por la sociedad campesina gallega; por
el contrario, es sólo parte de una “religión predicada”, elaborada por las élites de
dicha sociedad. Serán, por lo tanto, las manifestaciones plásticas, en nuestro caso
la pintura, aquellas que puedan aportar una visión de cómo el mundo campesino
gallego, imbuido de una fe sincrética y elemental, asimiló estos cambios32.
Se ha mencionado, por ejemplo, la insistencia en resaltar el papel de Cristo y la
Virgen dentro de la religión católica. La consecuencia inmediata es la proliferación de
toda una serie de temas, mayoritaria en el conjunto de la pintura manierista gallega,
donde se incide en su protagonismo dentro de la historia sagrada. La Anunciación a
María, lo mismo que la Visitación y el abrazo de San Joaquín y Santa Ana, estos dos
últimos en una menor medida pero siempre en relación directa entre ellos – como
ocurre en Santa María de Casoio (Carballeda. Ourense), San Esteban de Vilar de
Sandiás (Sandiás, Ourense) y Santa María de Candelas de Manzalvos (A Mezquita.
Ourense) –, servirían para insistir en dogmas como el de la maternidad virginal de
María, preludio de la Encarnación y, en última instancia, de la Salvación, el cual,

30 GARCÍA-REGAL-LÓPEZ, 1994: 154-160; REY CASTELAO, 1993: 96; REY CASTELAO, 1996: 157-160.
31 SAAVEDRA, 1991a: 498-499; DUBERT-FERNÁNDEZ, PASTOUREAUX, 1994: 260.
32 MARCOS, 1989; LÓPEZ, 1993: 107-109.
El difícil arte de pintar en Galicia. Artistas, artesanos, mecenas y clientes 257

según los Inquisidores, era puesto en duda por muchos labradores33, lo mismo que
su inmaculada concepción34.
Algo parecido ocurre con escenas como la Adoración de los Pastores y los Reyes
Magos, la Presentación del Niño en el Templo y la Circuncisión. Éstos suelen
encontrarse incorporados a programas iconográficos dedicados a María y la infancia
de Cristo, sobre todo en conjuntos retablísticos como los de Santa María de Casoio,
Santa María de Candelas de Manzalvos, San Pedro de Correxaes (Vilamartín de
Valdeorras. Ourense), Santa María de A Guarda (A Guarda. Pontevedra) o la capilla
del Rosario de la catedral orensana. Ya sea por el reconocimiento de su condición
divina por parte de la humanidad ya sea por tratarse del momento en que el Redentor
recibe su nombre y vierte por primera vez su sangre, del mismo modo en que lo hará
durante la Pasión, son temas que cuentan con una vocación catequética perfectamente
definida, orientada a la exaltación de María como Virgen y Madre de Jesús. Habría
que incluir en este epígrafe, del mismo modo que lo hace Francisco Pacheco en su
Arte de la Pintura, las escenas dedicadas a Purificación de Nuestra Señora, tema que
se confunde en ocasiones con la Presentación en el Templo del Niño, localizadas en
el Santuario de los Milagros de Monte Medo (Ourense), la iglesia de la Asunción de
María de Vilanova (Barco de Valdeorras. Ourense) y San Julián de Casoio (Carballeda.
Ourense), la Huida hacia Egipto -de San Pedro de Correxaes-, y la Disputa del Niño
Jesús entre los Doctores en el Templo, motivo que sólo aparece en la mencionada
capilla del Rosario de Ourense.
Dentro de este contexto de promoción del culto a María, la vinculación directa
entre Madre e Hijo no puede faltar, como se puede observar en Santa María de
Oseira (San Cristovo de Cea. Ourense), Santa María de Ferreira (Pantón. Lugo)
y Santa María de Pesqueiras (Chantada. Lugo). Asimismo, otros temas alusivos a
la dignidad de Virgen en relación con su Hijo son la Coronación y la Asunción. Si
bien es habitual que ambos se confundan, es en el primero de ellos en el que de un
modo más preciso se puede observar ese reconocimiento de la dignidad de María, al
ser coronada por la Santísima Trinidad, tal como ocurre en el Santuario orensano de
los Milagros y en la iglesia parroquial de Santa María de A Guarda. Más arcaizante
es la imagen de San Francisco de Viveiro (Lugo), donde son dos ángeles los que
proceden a depositar la corona sobre la cabeza de la Virgen.
Como se puede comprobar en este ámbito de las devociones marianas todavía
no se habría impuesto, dentro de la iconografía contrarreformista que imperará en
los siglos XVII y XVIII, la proliferación de advocaciones concretas de María. Por
el contrario, se aprecia que son las imágenes y escenas asociadas con las fiestas
marianas más importantes – Natividad, Expectación, Purificación, Asunción – las
que se mantienen, repitiendo una tendencia que se puede apreciar en la distribución
de cofradías dedicadas a la Virgen durante la segunda mitad del siglo XVI35.

33 SAAVEDRA, 1991b: 98.


34 GARCÍA IGLESIAS, 1986: 27-38.
35 GONZÁLEZ LOPO; 1997: 301.
258 Juan M. Monterroso Montero

Dentro de esta labor pedagógica ocupan un papel relevante los santos, seres que,
de acuerdo con lo que indica Saavedra, ya fuesen “nuevos o viejos”, eran parte de
ese universo de seres buenos y malos de los que habla Fernández Posse al recordar
las creencias de su padre36. No obstante, esta visión de conjunto puede ser matizada,
diferenciando aquellos santos que desempeñan un papel de intermediario e intercesor
entre la divinidad y el fiel, y aquellos otros que, de acuerdo con las agrupaciones
iconográficas previamente establecidas, poseen una significación eclesiológica. Profetas,
Evangelistas, Apóstoles, Padres de la Iglesia, Papas y obispos, al margen de algunos casos
particulares, expresan el carácter apostólico de la Iglesia, su definición material como
institución, que es representada en cada una de las parroquias gallegas por un clero
parroquial que, como ya se ha indicado, precisaba una urgente reforma. Es significativo
en este sentido que, a lo largo de los dos últimos tercios del siglo XVI, los obispos de
las diferentes diócesis gallegas publiquen misales y breviarios, que se ponían al alcance
de este clero para que pudiese realizar su labor, y a la vez se les instase, como ocurre
en las Sinodales compostelanas de 1576 y en las mindonienses de 1586 a frecuentar
los libros de San Buenaventura, San Agustín o Fray Luis de Granada37.
Sin embargo, son aquellos santos con unas funciones de protección y patronazgo
específicas, difundidos a través de la creación de diferentes cofradías los que mayor
difusión adquieren. Según González Lopo, estas cofradías “ofrecían a priori una serie
de ventajas extraordinarias: garantizaban la participación de los fieles en los actos de
culto, aseguraban la difusión y consolidación de aquellas nuevas devociones que la
Iglesia renovada pretendía impulsar, permitían la existencia de unos caudales con los
que dar la brillantez y el esplendor necesarios a las ceremonias y fiestas de la Iglesia,
servían de canal para transmitir el nuevo discurso religioso a los fieles y creaban las
condiciones necesarias para que éstos revivieran – como miembros de colectivos
espirituales – los ideales que habían alentado en las primeras comunidades cristianas”38.
Por esta razón, aunque sin aspirar a la elaboración de una estadística rigurosa,
ya que se debe ser consciente de lo parcial que es la información ofrecida por las
pinturas de la segunda mitad del siglo XVI conservadas, puede resultar expresiva la
comparación de las cofradías dedicadas a Santos en 1594 y el catálogo hagiográfico
de la pintura manierista gallega.
Cuadro n.º 1
Santoral Cofradías en 1594 Representaciones pictóricas
Núm. % Núm. %
San Miguel 1 3’03 7 11’11
Santa Lucía 3 9’09 5 7’93
San Sebastián 8 24’24 3 4’76
Santa Ana --- ----- 3 4’76
Santa Catalina --- ----- 3 4’76

36 SAAVEDRA, 1991b: 501.


37 SAAVEDRA, 1991b: 496.
38 GoNzáLEz LoPo, 1997: 291-292.
El difícil arte de pintar en Galicia. Artistas, artesanos, mecenas y clientes 259

Santoral Cofradías en 1594 Representaciones pictóricas


Núm. % Núm. %
Santa Isabel 1 3’03 3 4’76
San Esteban --- ----- 2 3’17
San Martín --- ----- 2 3’17
San Roque 4 12’12 2 3’17
San Antonio Abad 5 15’15 1 1’58
San Bartolomé 4 12’12 1 1’58
San Benito --- ----- 1 1’58
San Bernardo --- ----- 1 1’58
San Cristóbal --- ----- 1 1’58
San Juan Bautista --- ----- 1 1’58
San Lorenzo --- ----- 1 1’58
San Simón --- ----- 1 1’58
Santa Marina --- ----- 1 1’58
Santa Mª. Magdalena 3 9’09 --- -----
otras Mártires20• 2 6’06 6 9’52
TOTAL 33 100 63 100
* En este epígrafe se incluye, en el caso de las representaciones pictóricas en tiempos de Felipe II, Santa Bárbara (2), Santa Apolonia
(2), Santa águeda (1) y Santa Inés (1).
Fuente: GoNzáLEz LoPo, 1997; GARCÍA IGLESIAS, 1986.

En la tabla adjunta se puede observar como la nómina de bienaventurados que


presiden las cofradías en los años finales del siglo XVI y aquellos santos representados
en telas, tablas y murales en las iglesias gallegas de esa misma época, muestran una
tendencia cuantitativa semejante. Predominan los santos terapeutas, sobre todo los
ligados a la protección contra enfermedades epidémicas, como reflejo directo de las
crisis demográficas causadas por las pestes que asolaron Galicia desde 1516 hasta
1769, en especial durante las crisis de 1567-1570 – “el mal de las bubas” –, 1573-
1574, 1581-1586, y 159839. Sin embargo, es curioso observar que por encima de las
representaciones de San Sebastián y San Roque, devociones específicas contra este
temido mal, figuran con una presencia dominante algunas Santas Mártires como
Santa Lucía, Santa Inés, Santa Apolonia, Santa Bárbara y Santa águeda, protectoras
contra la muerte y algunas enfermedades específicas, las cuales además han sustituido
a otra Santa Mártir como Santa María Magdalena.
Le siguen en importancia San Antonio Abad, cuya devoción será sustituida ya en
estos años por la de San Antonio de Padua – Santiago de Vilaodriz (A Pontenova.
Lugo) –, y San Bartolomé – San Miguel Arcángel de Xaogaza (Barco de Valdeorras.
ourense) –, ambos con grandes virtudes taumatúrgicas, lo mismo que San Juan
Bautista o San Gregorio Magno.
También es significativo que, ya a finales del siglo XVI, aunque de un modo
demasiado tímido como para ser considerado expresión de una decidida tendencia

39 SAAVEDRA, 1991b: 145-146.


260 Juan M. Monterroso Montero

contrarreformista que no se definirá hasta las dos centurias siguientes, aparezcan


algunos santos locales, como Santa Mariña, y otros pertenecientes a diferentes
órdenes religiosas, cuya difusión, por lo tanto, a excepción de San Benito, será mucho
menos amplia.
Un caso aparte es el de San Miguel cuya presencia, en la mayoría de las ocasiones
como parte integrante de ciclos de mayor amplitud iconográfica, se explica porque,
por encima de las inquietudes y angustias provocadas por la enfermedad y el hambre,
existía un problema religioso mucho más acuciante, personal y grave: la salvación
del alma.
La idea de un juicio final como acontecimiento central de la vida del cristiano,
en el que se conjugan a la par términos como salvación y condenación, premio y
castigo, principio y final de la vida espiritual de éste, se convierte en un argumento
fundamental para una iglesia reformada que pretende estirpar el relajo con el que
la sociedad campesina gallega había adoptado la noción del pecado, magistralmente
expresado en el Juicio Final de Santa María de Castrelo de Miño. En la bóveda de
esta iglesia orensana, en torno a la figura de Cristo Juez, se disponen por una parte
María, encabezando a un nutrido grupo de Santas, y San Juan Bautista, cabeza
visible de un cortejo compuesto por Santos varones, mientras que en un nivel más
bajo aparecen David y Moisés. Junto a esta representación de Juicio e intercesión,
en la parte inferior de la bóveda se han representado, con un carácter plenamente
pedagógico, apoyado en los diferentes textos escritos que figuran entre las imágenes,
los diversos episodios que lo deben acompañar, es decir, la resurrección de las almas,
los enemigos de éstas, simbolizados por los pecados capitales, y las figuras del Arcángel
San Miguel, que sopesa la entrada de cada una de las almas en la Gloria, y San Pedro,
que conduce a los bienaventurados hacia la Jerusalén celeste40.
Al mismo tiempo, con la inclusión de este tema en ciclos iconográficos más
amplios se logra una explicación y justificación última del sacrificio y labor redentora
de Jesucristo, como se observa en San Juan de Sixto y Santa María de Dozón. Las
terribles imágenes de condenados y monstruos cumplían una labor intimidadora y
catequizadora propia de la Contrarreforma; el miedo, el terror y la sorpresa producidos
por ellas servían para activar la atención de los fieles y, gracias a ello, amplificar su
función esencial, la de ser “libros de rústicos e ignorántes”, según decía Don Juan
de San Clemente. La importante difusión del tema del Juicio Final en la pintura
manierista gallega – Nogueira, Ribas Altas, Fonteita, Fión, Pesqueiras, etc. – puede
comprobarse en las palabras de García Iglesias que, además de su número, explica
el papel que en estos ciclos desempeñan los santos intercesores: Nada menos que en
quince conjuntos pictóricos gallegos se hace referencia, directa o indirecta al Juicio Final.
Siempre juega un papel principal da figura de Cristo... En las proximidades de Cristo se
sitúan habitualmente María y el Bautista... También se representa... en algún caso a los
evangelistas... y otros santos41.

40 GARCÍA IGLESIAS, 1986; 186-189.


41 GARCÍA IGLESIAS, 1981a; GARCÍA IGLESIAS, 1984: 399; GARCÍA IGLESIAS, 1986: 39-42.
El difícil arte de pintar en Galicia. Artistas, artesanos, mecenas y clientes 261

Como ya se ha indicado, los ciclos dedicados a la Pasión de Cristo son el otro


gran tema de la pintura de esta época. Bien en escenas aisladas bien como ciclos más
amplios, el sacrificio del Hijo de Dios en la cruz, como símbolo de la Redención de la
humanidad, adquiere una relevancia que se debe explicar a partir del esfuerzo realizado
por la Iglesia gallega para resaltar su papel dentro la teología católica. Una singular
prueba de ello es el prefacio del Jardín del alma cristiana, impreso por Vasco Díaz de
Tanco en Valladolid en 1552. En él, además de referirse a las significaciones de la
misa y de las horas canónicas, figura una epístola dirigida a los canónigos orensanos
dedicada a las sibilas que profetizaron la venida y vida del Hijo de Dios en el mundo42.
Por último, tampoco se debe olvidar que el fenómeno religioso gallego tiene un
carácter más social que individual, aunque todavía no llegue a alcanzar durante la
segunda mitad del siglo XVI el sentido alienante y masificador que poseerá durante
el Barroco. Su epicentro será la iglesia de la parroquia, unidad que ha sido definida
por Saavedra como comunidad de vivos y también de muertos. En el templo tienen
lugar todas las vivencias de los elementos religiosos: oración, pecado, absolución,
comunión, etc., y es el atrio y el cementerio que la rodea su complemento natural.
Esta circunstancia podría explicar la singular localización de un ciclo dedicado a la
Pasión de Cristo en el atrio de la iglesia de Santa María de Baamorto (Monforte de
Lemos. Lugo), puesto que es este lugar, junto con el cementerio, donde se mantiene
las conversaciones previas y posteriores a cualquier celebración litúrgica43.

Algunos aspectos sobre el entorno social del artista.


No son muy numerosas las noticias referentes a la labor de los pintores en Galicia
durante el reinado de Felipe II. Su característica principal, común a toda la Edad
Moderna, era su polivalencia profesional, su indefinición laboral, en la medida que los
trabajos que éstos podían realizar iban desde los deseados encargos de pincel, escasos
en su número si se compara con los demás, a la doradura de retablos e imágenes,
estofado, esgrafiado, cortinas, etc. En definitiva, se podría afirmar que pintor era todo
aquel que vivía de la práctica de la pintura44.
A diferencia de lo que ocurría en otras regiones de la Península, no existe cons-
tancia documental de que en Galicia, durante esta época, existiese alguna cofradía de
pintores, semejante a las que durante la primera mitad de la centuria ya funcionaban
en Sevilla, Córdoba o Zaragoza. Este hecho supone que tampoco existiesen ordenanzas
por las que se pudiesen regular los precios y el control de la calidad de las obras
de pintura realizadas. Con todo, parece posible afirmar que ese ejercicio de control
económico y moral, reservado a los veedores, era desarrollado por la Inquisición.
En el contrato entre Gregorio de Moreda, mayordomo de la cofradía de la Quinta
Angustia de Santiago, y Juan Felípez, pintor avecindado en dicha ciudad, este último
se comprometió en 1583 a:
42 MACÍAS, 1991: 83-84.
43 GARCÍA IGLESIAS, 1986: 149-150; GONZÁLEZ COUGIL, 1987: 309; SAAVEDRA, 1991a: 502.
44 MARTÍN, 1959: 408; MONTERROSO, 1995a: 371-391; GOY, 1997.
262 Juan M. Monterroso Montero

Hacer una historia y regocijo en que ha de aber veinte y cuatro personajes, los veinte de
danza y los quatro han de representar, conforme a traza, la historia de San Eustaquio, la qual
se obliga a hacer con licencia de la Santa Inquisición o del Ordinario, y poner a su costa toda
la pintura, oro, plata y materiales y pintar...45.
Asimismo, en algunas ocasiones se puede descubrir la presencia del “tasador”,
cuya responsabilidad sólo atendía al aspecto económico: al precio de la obra. Según
se deduce de la documentación conservada, estos tasadores debían ser otros pintores
nombrados por ambas partes, que cobrarían cierta cantidad bien en dinero o en
grano antes de proceder a la tasación de la misma. En el caso de la tasación del
retablo mayor de San Martín de Noia, trabajo encargado a Santiago de Remesal,
pintor vallisoletano afincado en tierras compostelana, se nombró a los pintores Juan
González y Juan de Parraño:
pintar las tres historias y lo demás que está pintado en el retablo de la iglesia de San Martín
de esta villa sobre lo qual pasamos contrato delante Fernán Núñez da ponte, escribano del
número y Concejo, y fue a vista de oficiales lo que por ellos me abian de dar y pagar, y es ansi
que he cumplido todo lo contratado, que justipreciaron en trescientos mil maravedís los pintores
Juan González y Juan de Parraño tasadores nombrados por ambas partes, requiero a sus mds.
me paguen los dhos trescientos mil mrs., descontando lo que tenía recibido y me despache, por
manera que yo y los oficiales que tengo nos fuésemos, y los dhos Sres. no lo quieren hacer ni
estar por la dha. tasación, antes nos enbaraçan la paga con la qual nos rescibio agravio; por
ende les pido e requiero me manden pagar los dhos trescientos mil mrs. para queme pueda ir y
no esté gastando mi hacienda... protestando que si por su culpa dejase de me ir, de aver y cobrar
de su mds. cada dia seis ducados de mi y para mis oficiales y gasto de sobre ello aver recurso46.
No siempre había acuerdo entre el pintor y los patronos que habían encargado
la obra. Si en el caso de Remesal la cuestión se limitó a un requerimiento ante los
regidores de la villa de Noia, en otros encargos se llegó al pleito. Por ejemplo, en
1585, Juan Lombarte, pintor compostelano empadronado en Viveiro, y Alonso López
Pardo de Cela, también pintor de la villa lucense, pusieron sus diferencias en manos
de dos jueces árbitros, que actuarían a modo de tasadores, obligándose cada uno de
ellos a aceptar el fallo que éstos dictaminasen:
sobre obras tocantes a su oficio que los dos habían hecho en esta villa, en las iglesias de
Viveiro y San Jurjo de Cuadramón y otras partes…47.
Por su parte, Fructuoso Manuel en 1608 vio como los feligreses de Santa Eulalia
de Boimorto (Vilamarín. Ourense) querían promoverle un pleito al no haber podido
pintar su retablo mayor para el 19 de marzo de dicho año48.

45 PÉREZ COSTANTI, 1930: 170.


46 PÉREZ COSTANTI, 1930: 461.
47 PÉREZ COSTANTI, 1930: 318.
48 PÉREZ COSTANTI, 1930: 355.
El difícil arte de pintar en Galicia. Artistas, artesanos, mecenas y clientes 263

Tampoco se dispone de una información tan completa sobre el funcionamiento


de los obradores pictóricos de la segunda mitad del siglo XVI. Sin embargo, por
las noticias conservadas es posible aventurar que el acceso a esta profesión debía
hacerse dentro de un taller de pintura compuesto por maestro, oficiales y aprendices.
Es significativo el caso de Juan Bautista Celma, pintor aragonés procedente de una
familia de artistas como lo demuestra la presencia en Galicia de su tío Juan Tomás
Celma y la posterior labor de su hijo Rafael como entallador y pintor.
Al margen de lo apuntado en el caso de Remesal, preocupado por sus oficiales,
era frecuente la mención a aprendices como se puede observar en el contrato de
compañía firmado por Celma con Domingo González y Gabriel Felipe. En él se
estipulaba que el maestro aragonés estaba liberado del trabajo que los dos maestros
antedichos tomaran a su cargo, pudiendo delegar en un oficial. Puesto para el que
designó a dos aprendices suyos Lope de Cabrera y Juan Fernández. Del mismo modo,
cuando Juan González arrienda en 1564 la casa de la Rúa del Villar donde vivirá
durante nueve años, pone por testigo a Antonio de la Plaza, oficial suyo49.
Mucho más clara y convencional es la forma de cobro por los trabajos realizados.
Junto al importe monetario, cuyo monto podría variar de acuerdo a la envergadura de
la obra o la inclusión de los materiales por parte del artista, figuran pagos en especie
como se señala en el contrato de Francisco Pérez Feijóo, pintor orensano, que por
la pintura y dorado de un retablo recibiría por su labor:
treinta ducados, una fanega de trigo, un moyo de vino blanco, e un tocino e un carnero, e más
le ha de dar la leña que fuere menester y la cama en que duerma mientras hiciere dha obra50.
En términos parecidos se expresa el contrato firmado en 1575 por Juan de Santiago
con el rector de la iglesia de Santa María de Argalo (Noia. A Coruña), puesto que:
por pintar y dorar la custodia del altar mayor y lo alto de arriba que son los balaustres y
pilares della, todo de oro y azul, y mas todo el coro y bóveda de la dha iglesia de pintura buena,
en que a de aber un Jesucristo en el cielo de la bóveda con los doce apóstoles a los lados y todo
lo demás de blanco con sus estrellas de colores diferentes, con sus remates muy buenos a los
pies de los apóstoles... Mas ha de pintar el arco de la tribuna con la Salutación de Nuestra
Señora, con la imagen de San Gabriel a un lado... Toda la obra a óleo a vista del Rector de
dha. iglesia y de una persona que lo entienda... daríansele once ducados y un buen carnero y
cama y posada cerca de la iglesia51.
Un aspecto que se recoge abundantemente en la documentación notarial en torno
a los pintores, es su estrecha relación con otros artistas, muchas veces incluso con
aquellos que no se corresponden con su propia profesión. Es común que a la hora de
firmar un contrato de obra estos pintores del siglo XVI pongan por fiadores suyos a
otros maestros con los que bien les podía unir una relación de parentesco o amistad
o, simplemente, profesional. Por ejemplo, Manuel Arnao Leytao pone de fiadores a
49 PÉREZ COSTANTI, 1930: 266.
50 PÉREZ COSTANTI, 1930: 430.
51 PÉREZ COSTANTI, 1930: 503.
264 Juan M. Monterroso Montero

Roque Salgado, entallador, y Pedro Vázquez, pintor, en el momento en que contrata


la obra del retablo y capilla de Nuestra Señora del Rosario de la catedral de Orense,
en 1592. Por su parte, Benito Fernández Mariño, pintor procedente de Sarria, pone
a Gregorio Fernández, entallador de la misma villa, como testigo en la firma de uno
de sus contratos. Igualmente interesantes son los testimonios de Fructuoso Manuel y
Marcos de Torres. El pintor portugués cuenta como fiador con Francisco Rodríguez,
entallador encargado de la realización del retablo que Manuel se compromete a pintar
y dorar, mientras que el pintor vallisoletano, un año antes de pintar la Historia de
José para la catedral lucense, pone por fiador a Baltasar Roux, relojero residente en
la ciudad de Lugo52.
Mucho más curiosa, por lo que se refiere a la formación cultural de los pintores
gallegos, es la presencia del librero compostelano Pablo de Paredes como fiador de
Juan Bautista Celma en el retablo de Santa Cruz de Ribadulla (Vedra. A Coruña)53.
Esta última noticia tiene su explicación dentro de la definida formación humanística
de Celma. Como un caso extremo dentro del contexto galaico, Juan Bautista poseía
una nutrida biblioteca con numerosos libros en italiano y francés:
y cuanto a libros, la geometría de Juan Cusín, en francés, otra de “Daniel bárbaro”, en
italiano, un libro intitulado “Teatro de instrumentos”, en francés, “un cuerpo de los cinco libros
de Sebastiano, en italiano, Bitrubio pequeño, en latín, otro libro de Biñola, en romance, otro de
Juan de Arfe, la Filosofía de Alexandro Picolomini, en italiano, otro pequeño de estampas do
están las Sibilas, otro de las imágenes de los diose antiguos de diversos, en italiano; vocabulario
en español y italiano de Xpobal de las Casas; otro libro de tarxetas y comportamientos; otra
mucha cantidad de dibujos moldes y modelos de plomo y metal...54.
Igual de excepcional que esta noticia, es el grado de libertad que se le concede
a Fructuoso Manuel en el momento de llevar a cabo el retablo de San Martín de
Nogueira de Ramuín (Ourense) en 1599, puesto que, tras determinar cuales serán
las medidas y distribución del mismo, se indica que:
en el banco de abaxo todas las molduras douradas y quatro figuras de pincel conforme le
pareciere...55.
Este grado de confianza en la labor y pericia del artista era muy poco frecuente,
demostrando que la consideración social a la que un pintor podía aspirar difería
en muy pocos aspectos de la de cualquier otro artesano, bien porque tuviese que
adecuarse a los dictados de otros pintores de mayor prestigio, como le ocurre a
Juan Martínez Español en relación con Manuel Arnao a la hora de encargarse de la
pintura, dorado y estofado del retablo de la capilla de Nuestra Señora de las Nieves
de la catedral de Ourense, bien por las indicaciones expresas de los patronos de la
obra. Por ejemplo, a Gabriel Felipe, con motivo de la colocación de algunas reliquias

52 PÉREZ COSTANTI, 1930: 45, 123, 354, 531.


53 GARCÍA IGLESIAS., 1986: 60-61; MONTERROSO, 1998: 179-186.
54 PÉREZ COSTANTI, 1930: 134.
55 PÉREZ COSTANTI, 1930: 354.
El difícil arte de pintar en Galicia. Artistas, artesanos, mecenas y clientes 265

en el altar de Nuestra Señora de la iglesia de San Martín de Noia, se le encarga la


pintura de dicho altar en 1581, especificándole que:
Detrás del Cristo, pintaría al temple unos montes y unos lexos con sus judíos y ciudades...
y en la pared forntera ha de pintar al óleo quatro ystorias de las once mil vírgenes, que son las
siguientes: la primera, la embaxada que envió el Rey de Inglaterra al padre de Santa Ursula;
la segunda, quando fué bautizado el hijo del Rey de Inglaterra; la tercera, quando las vírgenes
embarcaron para ir a Roma e como les apareció el ángel; la quarta, ha de ser el martirio de las
Vírgenes con los Pontífices56.
En términos parecidos se expresa el contrato del ya mencionado Marcos de Torres,
cuando en 1571 se le encomienda la realización de las tablas dedicadas a la Historia
de José de la catedral de Lugo:
Frontero de la capilla del Sr. Lope Díaz de Gayoso, en cuyos tableros ha de haber cinco
historias: la primera quando Joseph soñó que le adoraban las estrellas, sol e luna... El segundo
tablero será quando la mujer de Putifar quiso forçar a Joseph y le quedó la capa en las manos...
La tercera historia será quando Faraón soñó el sueño de las bacas y espigas... El quarto tablero
será quando triunfó en Egito, con el ornato que se requiere; yrá en lexos como benieron los
hermanos a buscar el pan... El quinto será quando Jacob vino con toda su gente a Exito; yrá
en lexos como bendixo a sus nietos hefrain y manases y quando enterraron a jacob... y demás
de dhas historias, ha de dorar los capiteles y basas de los pilares que están en medio de dhas
historias y jaspeado el cuerpo de los pilares...57.
Una característica común de la pintura gallega en tiempos de Felipe II con relación
a otras regiones, es la existencia y constancia documental de las escrituras de compañía
por las que maestros de un mismo oficio o de otros complementarios estipulaban el
marco de su colaboración. A parte de aquellos casos citados anteriormente, debe
destacarse el ejemplo de Juan Bautista Celma.
Este pintor aragonés que llegó a Santiago de Compostela en 1564 firmó varios
contratos de compañía a lo largo de su vida. En ellos Celma, al establecer estos
convenios con artistas de menor categoría profesional que él, puede tomar una
posición de claro privilegio que se pone de manifiesto cuando, en 1583, al hacer
compañía con los pintores Domingo González y Gabriel Felipe, se apunta que si
éstos cometiesen alguna falta:
Se les descuente de lo que se ganare a razón de seis reales cada dia.
Por su parte, Juan Bautista, además de poder delegar su responsabilidad en uno de
sus oficiales, excluye del contrato todos aquellos encargos procedentes de la basílica
compostelana. Algunas de las cláusulas del mismo fueron reformadas en 1585:
Los dichos Domingo González y Gabriel Felipe dejan libremente al Bautista Celma todas las
obras que salieren en la Iglesia de Santiago así de pintura, dorado y estofado y de otra qualquiera

56 PÉREZ COSTANTI, 1930: 167, 363.


57 PÉREZ COSTANTI, 1930: 531.
266 Juan M. Monterroso Montero

profesión, sin ser obligado a dar cuenta ni parte, como sean de Cabildo, fábrica o Arzobispo...
Asimismo le dejan libremente las rejas que hiciere de madera, hierro, bronce y estaño, eceto
que en la pintura dellas sea obligado a las dar a los susodichos a quatro reales y medio, no se
concertando a destajo; y lo mismo se entiende en los retablos que tomare de madera que la pintura
sea obligado a darla a jornal arriba declarado... Que este concierto se entiende para todas las
obras de pintura de quatro maravedís arriba; que el que lo contrario hiciere pague dos ducados
y pierda el dinero que le dieren por la obra y pueda ser excluido de la dha. compañía, y durante
el tiempo della no pueda tomar ni hacer concierto de obras con otra persona... (mientras que
Celma) pueda hacer algunas obras ventureras como sea tablas de pincel con sus guarniciones
y otras cosas como no tengan dueño58.
Si en este acuerdo se estipula que el radio de acción se debe limitar a Galicia, con
un perímetro de diez leguas a la redonda, en un contrato firmado con anterioridad, en
1569, entre Juan Lombarte, Marcos de Torres y su tío Juan Tomás Celma, se indica
que cualquier clase de pintura que uno de los cuatro tomase a su cargo dentro de
Galicia y Castilla estaría afectada por dicho convenio.
Las repercusiones de este modo de operar fueron explicadas por García Iglesias,
al afirmar que “su estilo, superior al de los maestros con los que se vincula, ha de
marcar en los demás directrices de trabajo asumidas por éstos de una forma más o
menos espontánea. Lo cierto es que, de esta manera, las fórmulas características de
Celma hubieron de tener una mayor expansión y su incidencia en otros maestros
debió de ser importante. Pero también, al tiempo, ese modo de operar “en compañía”
lleva intrínseco, cuando se da realmente, una relativa desaparición –o atenuación- de
los perfiles de un determinado estilo; el trabajo colectivamente asumido conlleva la
pérdida de los rasgos identificadores”59.

Unos clientes singulares. Prelados y órdenes.


Dentro del marco de una actividad de carácter mercantil – como es la pintura
de los siglox XVII y XVIII –, es fundamental el poder perfilar cuáles son los grupos
sociales que actúan como clientela y cúales son sus gustos. Ambos elementos confi-
guran los límites dentro de los que se forjará dicha actividad pictórica, justificando
la omnipresencia de los estamentos eclesiásticos y de una temática religiosa – a la
cual también se entregaban los estamentos civiles de la sociedad gallega-.
Partiendo de este punto, es posible llegar a una distribución jurisdiccional de
los patrocinadores de la pintura gallega. En ésta, la parte más alta de la escala
estará ocupada por los diferentes obispos gallegos –encabezados por el arzobispo de
Santiago de Compostela-, inmediatamente después, le seguirán los diferentes cabildo
– “antagonistas” naturales de los prelados, cuya actividad, en ocasiones, puede llegar

58 PÉREZ COSTANTI, 1930: 116-117.


59 GARCÍA IGLESIAS, 1986: 53-55.
El difícil arte de pintar en Galicia. Artistas, artesanos, mecenas y clientes 267

a confundirse con la de éstos –, a continuación, se situarán las órdenes religiosas, y,


por último, se contemplará la actuación de la nobleza e hidalguía60.
Si se comienza por prelados y cabildos, aunque el campo de acción de ambas
instituciones no tiene porque ser el mismo – la irradiación del patronazgo de los
primeros suele afectar a áreas mucho más amplias –, es inevitable que entre ellos
haya un punto de confluencia y común interés: la catedral entendida como lugar
de culto61.
Es posible abordar su organización a partir del propio carácter de sus respectivas
diócesis. De este modo, la figura más destacada sería el arzobispo de Santiago,
junto a él estarían los obispo de Ourense y Tui –sedes consideradas “de entrada”- y,
finalmente, los de Lugo y Mondoñedo – sedes de “carácter permanente”. Un caso
aparte son las parroquias pertenecientes a la diócesis de Astorga, incluidas dentro de
la provincia de Ourense, muy alejadas de las influencias e intereses de los prelados
correspondientes.
En el caso de los arzobispos compostelanos no se puede apuntar una gran preo-
cupación por la pintura, ni por su financiación. Son pocas las referencias con que se
cuenta – todas ellas centradas en obras de carácter arquitectónico – y, aun menores,
los ejemplos conservados62.
En este sentido sólo puede ser destacada la actividad de fray Antonio Monroy –
arzobispo entre 1686 y 1715 –, cuya munificencia trasciende el ámbito catedralicio.
Con ella, se debe asociar, en primer lugar, la capilla de Nuestra Señora del Pilar, cuya
decoración mural corrió a cargo de Juan Antonio García de Bouzas – lo mismo que el
cobre que preside el ático de su altar-. También dentro de la Catedral, se vincula con
él, el cuadro de Nuestra Señora de Guadalupe – procedente del retablo de la capilla
del Sancti Spiritus. Dentro de Santiago de Compostela son conocidas otras obras como
el retablo mayor de Santo Domingo de Bonaval, las destinadas a la conmemoración
de la canonización de San Pío V en 1713, o el cuadro de la guadalupana, conservado
en el convento de las Madre Mercedarias. Fuera de Santiago, es pausible asociar su
mecenazgo con otro cuadro del mismo tema conservado en la sacristía de la iglesia
parroquial de Santiago de Betanzos.
En Ourense se pueden señalar dos casos muy interesantes por la calidad de obras
conservadas. El primero se corresponde con Fray Damián Conejo, obispo entre 1694
y 1706 quien, en su condición de franciscano y prelado, encargó a García de Bouzas
la realización de una serie de lienzos –dedicados a la vida del Santo Patriarca – para
el convento de Padres Franciscanos de la ciudad.
El segundo se refiere a Fray Juan Muñoz de la Cueva (1717-1728). Este prelado
hizo suyo el empeño, ya presente en el siglo pasado, de remozar la vieja estructura
de la catedral orensana – tanto desde un punto de vista material como espiritual –.
El traslado de las reliquias de San Facundo y San Primitivo, le permitió introducir en
la capilla mayor dos grandes telas de los Petti, alusivas al martirio de dichos santos.
60 GARCÍA IGLESIAS, 1994: 116-289.
61 MARTÍN GONZÁLEZ, 1991: 4.
62 SAAVEDRA; 1991c: 580-581.
268 Juan M. Monterroso Montero

Asimismo, la presencia de otros dos lienzos en el ático del retablo de Nuestra


Señora del Carmen – muy probablemente de la misma autoría, pero de menor
tamaño – permite plantear la hipótesis sobre otro ejemplo de patronazgo por parte
de Fray Juan Muñoz63.
Fuera de la ciudad de Ourense, la devoción personal de Muñoz de la Cueva hacia
santa Mariña de Augasantas queda reflejada en otros dos cuadros: uno dedicado al
martirio de esta santa orensana y otro correspondiente al retrato del prelado.
Por lo que se refiere a Mondoñedo, los ejemplos con los que se cuenta, se asocian
a dos figuras fundamentales de la historia de la diócesis: Alonso Messía de Tobar y
Fray Alejandro Sarmiento de Sotomayor. Con el primero se debe asociar el retrato
devocional que en su día presidió el retablo de reliquias64.
En el caso de las órdenes, de nuevo, vuelve a ser la favorable situación económica
que viven estos centros eclesiásticos – receptores de rentas, diezmos y otros tributos
de carácter señorial –, la que justifica su consideración como segundos grandes
promotores del arte gallego65, incluida la pintura66.
Además, encabezados por benitos y bernardos, el sistema monacal y conventual
gallego vive en la Edad Moderna, un período de singular relevancia, aumentando
el número de miembros – tanto en las órdenes seculares como en las regulares67.
Por orden de importancia destacan en primer lugar los benedictinos y los
cistercienses – órdenes de carácter monacal –; en segundo lugar, con un prestigio
semejante, aparecen las órdenes conventuales de los franciscanos –con todas sus
ramificaciones – y los dominicos; en tercer lugar, otras órdenes cuya implantación
fue más desigual en el conjunto de Galicia.
Los centros benedictinos – lo mismo que los cistercienses – según ha demostrado
Eiras Roel, ocupan un papel destacado dentro de la nómina y jerarquía del señorío
jurisdiccional gallego68. Dicho prestigio y poder económico, derivado de sus rentas
aforadas, les permite a estas comunidades afrontar un gran número de obras – prin-
cipalmente orientadas a remodelar las viejas fabricas medievales en que vivían –.
Este empeño conlleva la aparición de manifestaciones artísticas muy variadas, no sólo
arquitectónicas, sino también escultóricas y pictóricas en todos sus monasterios69.

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Nossa Senhora de Guadalupe
(Mouçós, Vila Real): encomendador e obra
Lúcia Maria Cardoso Rosas

Situada na freguesia de Mouçós (Vila Real), a Capela de Nossa Senhora de


Guadalupe apresenta uma cuidada arquitectura de aparência medieval. Contudo, a
análise das proporções da nave, da cabeceira e da fachada Ocidental, dos alçados
dos portais, dos vãos de iluminação presentes nas fachadas Norte e Sul e do perfil
dos cachorros, indicia uma construção muito tardia no contexto da arquitectura
medieval portuguesa.
Integrada no programa de pintura mural da parede testeira da capela-mor, pro-
grama datado por inscrição de 1529, figura a pedra de armas de D. Pedro de Castro
pintada no frontal de altar, elemento que se repete, desta vez esculpido, no exterior
da cabeceira e cuja identificação se deve a Luiz de Mello Vaz de São Payo1.
O autor das Memórias de Vila Real (1721) atribui justamente a D. Pedro de Castro,
abade da igreja de Mouçós, a fundação da Capela de Nossa Senhora de Guadalupe
pelos anos de 1530:
“No lugar de Ponte, desta freguesia do Salvador de Moussós, há huma capella da
invocação de Nossa Senhora de Guadalupe, que he hum templo grande, magnifica-
mente obrado de pedra de cantaria á romana, forrada primorozamente de madeira,
com artificiozos e bons debuxos de lassaria da mesma madeira, e tem seu coro com
tribuna de órgãos, a qual eregio dom Pedro de Castro, abade que foi desta igreja de
Mouçós, sucessor do dito Fernão de Brito, a qual edificou, pellos annos de 1530, e
há tradição que a edificara afim de nella deixar huma collegiada perpetua, porem
nam consta que a instituísse”2.
A confirmação de D. Pedro de Castro como abade de Mouçós, a quem são
atribuídas outras obras em Vila Real e no seu termo bem como a instituição de várias
capelas, data de 1505, como demonstrou Paula Bessa:
“Aos xbij dias do dito mês de janeyro da dita era [1505] o dito Senhor [D. Diogo
de Sousa] confirmou em abade e Reitor da parrochial igreia de sam saluador de

1 SÃO PAYO, 1999, 31-66.


2 SOUSA, GONÇALVES, 1987: 478.
274 Lúcia Maria Cardoso Rosas

moucoos termo de villa ryal deste arcebispado a pº de castro preegador e capellam


do senhor marquez de villa Riall o qual senhor Marquez apresentou na vaga por
morte de goncallo lobo (...)”3.
Na Geografia D’entre Douro e Minho e Tras-os Montes [1549] João de Barros,
sempre tão sucinto nas suas descrições, dedica à Capela um texto bem mais extenso
do que é habitual, uma vez que conheceu directamente uma mulher salva por um
milagre de Nossa Senhora de Guadalupe.
“A outra Legoa està hua nobre Ermida de Nossa Senhora a que chamão Guadelupe,
que he casa formosa e deuota, onde concorre muita gente à Romaria.
Eu conheci hua molher que se chamaua a Manoa de Matheus, a qual me afirmarão
que fora accusada de hu delicto uergonhoso e feio, e foi iulgada na Relação que
morresse na forca, e a forca então estaua em Villa Real, em hu alto, onde ora està S.
Sebastião, donde se uê esta ermida de Nossa Snra. A pobre mulher, quando chegou
ao pè da forca, se encomendou muito deuotamente à Virgem gloriosa, rogandolhe
que se lembrasse della, leuando todauia as contas nas maons, que hião atadas com
o baraço, como se costuma. Os Menistros da iustiça a poserão na forca e a deixarão
por morta e se forão, e isto era pela manhãa e hauia de ser tirada da forca à tarde,
porque assi o dizia a sentença, e quando forão acharão a na forca uiua, dizendo que
Nossa Snra sahira daquella Hermida e a tiuera no ar, que a não deixou morrer. O iuiz
a tornou à Cadeia e escreueo o caso a ElRey, e por seu mando foi trazida a Lisboa,
e tornarão a uer o processo, e foi degradada para sempre para a Ilha de S. Thomé,
que então era áspero degredo.
Afirmarãome que o Nauio nunca quizera com ella fazer uiagem e que não podia
sahir da barra. Como quer que fosse, ella foi de todo perdoada e naquella Ermida e
em Matheus e ui athe que faleceo hauerà XX annos. Mas o caso, quando aconteceo,
era eu muito pequeno e não o acordo, saluo que he mui notório àquella terra, onde
se acharão os autos (...)”4.
A data sugerida por João de Barros indica que o milagre ocorreu no princípio do
século XVI ou ainda nos finais do século XV. Ora, segundo segundo o Numeramento
de 1527-30, a freguesia de Môçãos era então constituída pelos lugares de Agoa de
Lupe, Agoas Santas e Pomte5. Em 1721, conforme indicam as Memórias de Vila Real,
desta freguesia faziam parte os lugares de Mouçós, Bouça e Ponte, tendo desaparecido
os topónimos Água de Lupe e Águas Santas6.
A existência daqueles topónimos, à data da realização do Numeramento, confirma
a importância do culto a Nossa Senhora de Guadalupe no primeiro quartel do século
XVI, coincidindo assim com a data da edificação da Capela atribuída a D. Pedro de
Castro e com a data de 1529 inscrita no programa de pintura mural que se conserva
na capela-mor.

3 BESSA, 2007: 228.


4 BARROS, [1549]: 115-116.
5 COLAÇO, 1931: 88.
6 SOUSA, GONÇALVES, 1987: 95, 478.
Nossa Senhora de Guadalupe (Mouçós, Vila Real: encomendador e obra) 275

Nossa Senhora de Guadalupe, em Águas Santas (Maia), era designada por Agua
de Lupe, sendo evocada, por causa do seu nome, contra as calamidades da falta ou
do excesso de chuva. Como em Mouçós, ao culto associava-se o topónimo de Águas
Santas.
Situada em lugar alto, sobranceiro à ampla veiga onde se desenvolveu o povoamento
de Vila Real, a Capela de Nossa Senhora de Guadalupe está construída sobre um
afloramento rochoso sobre o qual assentam uma parte da nave e a capela-mor. Esta
localização e o aproveitamento de um acidente geológico incorporado no templo, têm
fundas motivações de carácter antropológico. Não faltam exemplos de santuários,
capelas ou ermidas construídas sobre penedos.
Em S. Silvestre de Requião (Famalicão) a ermida de Nossa Senhora da Pedra
Leital levanta-se junto a um penedo onde as mulheres a quem falta o leite, sobem
por pequenas cavidades7. No caso do Santuário de Pedra Maria (Varziela, Felgueiras)
a capela-mor foi construída sobre um penedo sagrado.
As pedras, penedos e fragas, são no folclore e nas religiões europeias lugares de
amostragem do sagrado e do aparecimento de divindades. Aos penedos iam procissões
e ladainhas, alguns recebiam cruzes, outros eram caiados e aí se gravavam sinais:
cruzes, ferraduras, círculos e rosários8. Faz pois todo o sentido que eles se sacralizem
com a construção de ermidas ou com o seu arranjo destinado à devoção.
São inúmeros os exemplos de imagens milagrosas aparecidas em fragas, lapas e
grutas que dão origem à edificação de capelas, ou mesmo de aparições de Nossa
Senhora sobre pedras ou dentro de grutas, onde se haviam refugiado os videntes.
Referindo-se aos montes sacralizados, Carlos Alberto Ferreira de Almeira aponta
como os locais mais favorecidos pelos romeiros “aqueles que apresentam penedos
de formas ou posições insólitas, lapas ou fontes, verdeiros e arvoredos, porque isso
permite um peculiar sistema de acções e itinerários e, porque o homem tem uma
necessidade fundamental de significados, tornam a imaginabilidade desse local muito
rica, até pelas lendas etiológicas que se lhe associam, permitindo um conjunto de
vivências que os possam unir a esse ambiente”9.
O início do culto a Nossa Senhora de Guadalupe em Portugal, e a respectiva
fundação de capelas ou altares dedicados a esta evocação, deve ter ocorrido um
pouco antes dos meados do século XV, uma vez que a capela de Nossa Senhora de
Guadalupe na Raposeira (Lagos) é referida por Gomes Eanes de Zurara na Crónica
dos Feitos da Guiné (1453). É de realçar que o cronista designa a capela de Santa
Marya de augua de Lupe. Ainda no século XV, como registou Mário Martins, já se
efectuavam peregrinações a Nossa Senhora de Guadalupe, em Santarém10.

7 BARREIROS, 1931: 87.


8 Sobre este assunto veja-se, entre outras, a obra de: ALMEIDA, 1981: 208.
9 ALMEIDA, 1984: 79.
10 MARTINS, 1957: 91-93.
276 Lúcia Maria Cardoso Rosas

Apesar de o primeiro documento conhecido sobre o santuário de Guadalupe em


Villuercas (Cáceres) datar de 1326, há indícios do culto àquela imagem da Virgem
já nos primeros anos do século XIV, ou mesmo nas últimas décadas do século XIII11.
No Livro de Milagres de Nossa Senhora de Guadalupe de Villuercas estão registados
23 milagres a peregrinos de origem portuguesa, que decorreram ao longo da segunda
metade do século XIV. A década de maior afluência de portugueses a Guadalupe
corresponde aos anos 90, com um registo de 17 milagres. A peste que grassava em
Lisboa, em 1492, levou um grupo de peregrinos acompanhados pelo dominicano Frei
Antão, em romagem a Guadalupe onde chegaram em Maio de 149312.
A romagem que o rei D. Afonso V, acompanhado de um séquito, realizou ao
santuário de Villuercas na década de 1460, já estudada por María Eugenia Díaz
Tena13, e o milagre da cura de uma doença de que o rei então sofria, mitificado ou
não, deverá ter contribuído para uma mais ampla popularidade do culto, em Portugal.
A Capela da Misericórdia de Vila Real, cuja construção se deve igualmente a
D. Pedro de Castro, foi edificada entre 1532 e 1548. Tendo recebido obras ao longo
dos séculos XVI e XVII, a capela apresenta uma fachada de aspecto maneirista. No
entanto, uma análise mais atenta ao portal principal permite verificar a existência de
bases, colunelos e capitéis de gosto manuelino. É de notar a diferença de programa
entre esta capela e a de Nossa Senhora de Guadalupe. O aspecto mais arcaico da
construção da capela situada em Mouçós parece indiciar que esta foi deliberadamente
edificada à maneira medieval. A sua evocação e função devocional e a ligação a
milagrosas águas santas, acima referida, bem como a provável pré-existência de uma
capela mais antiga, devem ter tido uma funda influência na escolha do programa.
São ainda de referir algumas semelhanças entre a Capela de Guadalupe e a igreja
de S. Domingos de Vila Real, sobretudo nos vãos de iluminação das fachadas laterais
que apresentam, em ambos os casos, uma secção rectangular. Construída a partir de
1421, com o patrocínio de D. João I, a igreja do convento dominicano não estava
ainda concluída em meados do século XV. Apesar da cronologia avançada desta igreja,
no contexto da construção gótica mendicante portuguesa, S. Domingos de Vila Real
é bem um exemplo da longa permanência de soluções arcaizantes14.
O papel desempenhado por D. Pedro de Castro na encomenda de uma série de
obras de arquitectura em Vila Real e no seu termo é um tema que merece um maior
desenvolvimento. O facto de D. Pedro de Castro ter sido capelão do Marquês de
Vila Real, padroeiro de Mouçós, fornece uma pista de investigação mais atenta a
uma possível relação entre a Casa de Vila Real e a edificação da capela de Nossa
Senhora de Guadalupe.

11 LLOPIS AGELAN, 1998: 419-451.


12 DÍAS TENA, 2007: 65-77.
13 DÍAS TENA, 2003: 63-70.
14 ALMEIDA, BARROCA, 2002: 52.
Nossa Senhora de Guadalupe (Mouçós, Vila Real: encomendador e obra) 277

Bibliografia
ALMEIDA, Carlos Alberto Ferreira de, 1981 –“Território Paroquial de Entre-Douro-e-Minho.
Sua Sacralização”. Nova Renascença, v. 1, n.º 2. Porto.
ALMEIDA, Carlos Alberto Ferreira de, 1984 – “Religiosidade Popular e Ermidas”, in Studium
Generale. Estudos Contemporâneos. Religiosidade Popular, n.º 6. Porto.
ALMEIDA, Carlos Alberto Ferreira de, BARROCA, Mário Jorge, 2002 – História da Arte em
Portugal. O Gótico. Lisboa: Editorial Presença.
BARREIROS, Manuel de Aguiar, 1931 – Nossa Senhora nas suas imagens e no seu culto na Arqui-
diocese de Braga. Braga.
BARROS, João de, [1549] – Geografia d’entre Douro e Minho e Tras-os-Montes. Porto: Biblioteca
Pública Municipal do Porto (1919).
BESSA, Paula Virgínia de Azevedo, 2007 – Pintura Mural do Fim da Idade Média e do Início da
Idade Moderna no Norte de Portugal, vol. 3. Braga: Universidade do Minho.
COLAÇO, J. T. Magalhães, 1931 – Cadastro da População do Reino (1527). Actas das Comarcas
dantre Tejo e Odiana e da Beira. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade.
DÍAS TENA, María Eugenia, 2003 – “Alfonso V de Portugal y la milagrosa Virgen de Guadalupe”.
Sep. de Península. Revista de Estudos Ibéricos, nº 0, pp. 63-70.
DÍAS TENA, María Eugenia, 2007 – “Peregrinos portugueses en el Monasterio de Nuestra Señora
de Guadalupe (siglo XV)”. Península, Revista de Estudos Ibéricos, n.º 4, pp. 65-77.
LLOPIS AGELAN, Enrique, 1998 – “Milagros, Demandas y Prosperidad: El Monasterio Jerónimo
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2, pp. 419-451.
MARTINS, S. J. Mário, 1957 – Peregrinações e Livros de Milagres na nossa Idade Média, 2.ª edição.
Lisboa: Edições Brotéria.
SÃO PAYO, Luiz de Mello Vaz de, 1999 – “A Família de D. Pedro de Castro Protonotário Apostólico
e Abade de Mouçós”. Estudos Transmontanos e Durienses, n.º 8. Vila Real: Arquivo Distrital
de Vila Real, pp. 31-66.
SOUSA, Fernando de, GONÇALVES, Silva, 1987 – Memórias de Vila Real, 2 volumes. Vila Real:
Arquivo Distrital de Vila Real.
A pintura no museu de Arouca:
contributo dos apócrifos e dos tratados pós-tridentinos
para a iconografia mariana
Luís Alberto Casimiro

1. Acervo pictórico do Museu de Arte Sacra de Arouca


O primeiro objectivo da nossa comunicação encontra-se expresso no título: pre-
tendemos analisar, de forma sumária, qual foi o contributo dos Evangelhos Apócrifos
e dos tratados pós-tridentinos para a Iconografia Mariana do Museu de Arte Sacra
da Irmandade da Rainha Santa Mafalda, em Arouca. Todavia, no contexto em que
decorre este IV Seminário Luso-Brasileiro pensamos ser igualmente importante dar
a conhecer o valioso acervo do Museu de Arte Sacra de Arouca, nomeadamente o
que se refere à pintura.
Efectivamente, o Museu possui um conjunto muito variado de peças de grande
valor artístico e que abrange vários séculos e diversas expressões artísticas que passam
não só pela pintura, como também, pela escultura, a talha, o mobiliário, a prataria e
a paramentaria, não podendo deixar de referir os magníficos exemplares de antifo-
nários iluminados que constituem uma das mais importantes colecções da Península
Ibérica. Aproveitando a presença de um número tão elevado de participantes e de
proveniências muito variadas, pensamos que tão valiosa colecção bem merece ser
conhecida e divulgada pois reúne uma parte significativa, e de elevada qualidade,
do património artístico do Norte de Portugal.
No que se refere à pintura, as obras dispõem-se ao longo do espaço Museológico,
ocupando as antigas celas e os corredores do que foi outrora um grandioso mosteiro
cisterciense, mas também está presente noutros espaços.
Assim, iniciamos por referir as oito magníficas telas que se dispõem nas paredes
laterais da capela-mor, atribuídas a André Gonçalves. Quatro delas ilustram episódios
da vida de S. Bernardo: Aleitação, Amplexo, Profissão e Morte, enquanto as restantes
representam os quatro evangelistas que figuram com o respectivo atributo próprio do
tetramorfo. Salienta-se o facto de todas estarem envolvidas por magnífico trabalho
de talha dourada cujo valor excedeu o da própria tela.
280 Luís Alberto Casimiro

Da capela-mor passamos para o coro monástico onde, nos espaldares do cadeiral,


encontramos magnificente talha dourada envolvendo pinturas que ilustram temas
cristológicos, marianos, hagiográficos e, ainda, alusivos a episódios da Rainha Mafalda.
Na parede fundeira do espaço do coro deparamos com novas pinturas que representam
diversos santos cistercienses, entre outros.
No espaço museológico, e seleccionando somente, algumas das obras mais repre-
sentativas, podemos apreciar, em primeiro lugar, um conjunto de oito pinturas sobre
madeira, de finais do século XV. Embora estejamos perante um trabalho de oficina
regional onde são notórias as falhas técnicas ao nível do desenho, da composição e
da aplicação da cor, trata-se de um núcleo importante, atendendo ao elevado número
de pinturas aqui reunidas e representativas dos outrora designados por «Primitivos
Portugueses». Os temas distribuem-se pela infância e Paixão de Cristo e, ainda, a
«Missa de São Gregório».
Noutra sala deparamos com magníficas telas de Diogo Teixeira onde são ilustrados
episódios cristológicos nos quais se patenteia o domínio da composição, o rigor
anatómico e o tratamento do volume e a grande qualidade pictórica deste mestre
quinhentista. Salientamos, ainda, as telas de António de Oliveira Bernardes, que serão
objecto do nosso estudo, onde o pintor revela toda a sua excelência. Não podemos
deixar de referir quatro telas atribuídas a Josefa de Óbidos, uma pintura de Bento
Coelho da Silveira representando a Transfiguração de Cristo, uma tela representando
o Anjo Custódio do Mosteiro, datada e assinada por André Gonçalves e duas telas
do pintor italiano Giovanni Odazzi alusivas ao milagre de Santa Mafalda que salva
o mosteiro de um incêndio. Entre estas pinturas deveremos, ainda, fazer referência a
outras obras, de pintores desconhecidos e que ilustram temas diversos, algumas das
quais revelam escolas de mestres com grande qualidade como é o caso do Martírio
de Santa Úrsula, ou outros alusivos a episódios da vida de São Bernardo.
Apesar de estarmos conscientes que esta nossa descrição apenas fornece uma pálida
imagem do valor do acervo do Museu de Arte Sacra da Irmandade da Rainha Santa
Mafalda, concretamente no que se refere à pintura, pensamos ter todo o cabimento
esta chamada de atenção a fim de aliciar todos os que ainda não conhecem o Museu,
para uma visita que, diríamos, é de carácter obrigatório.

2. Fontes literárias
Na vastidão das fontes literárias que influenciaram as obras pictóricas, vamos
restringir-nos, apenas, a duas, atendendo ao contexto do Seminário e do presente
trabalho: os Evangelhos Apócrifos e os Tratados pós-tridentinos. No que diz respeito
aos Evangelhos Apócrifos, embora nem todos tenham influenciado a pintura do
mesmo modo, destacamos os seguintes:
Proto-Evangelho de Tiago
Evangelho de Pseudo-Mateus
Evangelho da Natividade de Maria
A pintura no museu de Arouca: contributo dos apócrifos e dos tratados pós-tridentinos… 281

Evangelho Árabe da Infância


Evangelho Arménio da Infância
História de José o Carpinteiro
Livro sobre a infância do Salvador1.
No que se refere aos Tratados, importa sublinhar que, como é sabido, não foi
exactamente qualquer decreto emanado pelo Concílio de Trento que regula a acti-
vidade dos pintores relativamente ao decoro ou aos temas a tratar e o modo como
deveriam ser representados de forma a não conter qualquer elemento contrário às
normas da Igreja. A sessão conciliar número XXV, precisamente a última, realizada
em Dezembro de 1563, apresenta directrizes gerais, orientações muito amplas, sobre
diversos temas e, entre eles, sobre A Invocação e Veneração das Sagradas Relíquias dos
Santos e das Sagradas Imagens. Quem vai, mais tarde, regulamentar, pormenorizada-
mente, o que devem fazer os artistas e os erros que devem evitar, são personagens
do clero e membros leigos da Igreja que elaboram diversos tratados artísticos.
Apresentamos, em seguida, alguns exemplos destes tratados que abrangem não
só as artes plásticas, mas também, a arquitectura:
ANDREA GILIO – Dialogo degli errori e degli abusi de’Pittori circa l’Istoria (1564)
CASTELLANI – De imaginibus et miraculis sanctorum (1569)
CARLOS BORROMEO – Insctrutiones fabricae et supellectilis ecclesiasticae (1577)
GABRIELLE PALEOTTI – Discorso intorno alle imagini sacre e profane (1582)
JEAN MOLANUS – De picturis et imaginibus sacris (De historia SS. Imaginum et
picturarum pro vero earum usu contra abusus, 1570)
JERÓNIMO NADAL – Evangelicae Historiae Imagines (1593)
FEDERICO BORROMEO – De Pictura Sacra (1625)
FRANCISCO PACHECO – Arte de la pintura, su antigüedad y grandezas (1649)
Fr. JUAN INTERIÁN DE AYALA – El Pintor cristiano y erudito (1730).
Na impossibilidade de analisarmos cada um destes tratados individualmente, vamos
centrar-nos, apenas, em três deles: o de Jean Molanus, o de Francisco Pacheco e o
de Juan Interián de Ayala, abrangendo, assim, os séculos XVI, XVII e XVIII.

3. Influência das fontes na iconografia mariana


As seis pinturas que são objecto do nosso estudo, no contexto deste Seminário,
pertencem ao Museu de Arte Sacra da Irmandade da Rainha Santa Mafalda, de
Arouca. Cinco delas são da autoria de António de Oliveira Bernardes (1660-1732),
grande figura das artes plásticas portuguesas, conhecido, também, pelo seu trabalho
em azulejo e que, na pintura de cavalete, revela outra faceta da actividade do artista,
para além de patentear conhecimentos das fontes literárias.

1 A consulta dos textos dos Evangelhos Apócrifos foi feita com base em duas edições distintas indicadas na bibliografia.
282 Luís Alberto Casimiro

As obras que iremos analisar representam episódios alusivos à Virgem Maria:


Natividade da Virgem Maria, Esponsais da Virgem, Anunciação do Senhor, Visitação
da Virgem a Santa Isabel, Adoração dos Pastores e Adoração dos Reis Magos. Como
salientámos oportunamente, pretendemos demonstrar que nelas existiu uma clara
influência das fontes literárias, designadamente, dos Evangelhos Apócrifos e dos
tratados artísticos surgidos após o Concílio de Trento (1545-1563).
No que se refere à primeira pintura, a Natividade da Virgem Maria (Figura n.º 1)
verificamos que o episódio surge referido em quatro dos Apócrifos, são eles: o Proto-
Evangelho de Tiago (Cap. V, 2), o Evangelho de Pseudo-Mateus (Cap. IV), o Evangelho
da Natividade de Maria (Cap. V, 2) e o Evangelho Arménio da Infância (Cap. II, 7),
embora em nenhum deles seja fornecido qualquer dado relevante que permita ser
associado com a pintura de Arouca.

Figura n.º 1
Natividade da Virgem Maria
António de Oliveira Bernardes
(início séc. XVIII). Arouca, Museu da
Irmandade da Rainha Mafalda.

Atendendo, todavia, aos tratados, deparamos com indicações claras em dois


deles: El Arte de la Pintura (Cap. XI), aponta como modelo para a representação da
Natividade de Maria a gravura de Cornelis Cort (1568), na qual Santa Ana se encontra
numa cama de dossel, com as cortinas abertas, semblante melancólico, servida por
duas criadas, enquanto, em primeiro plano, outras mulheres, de joelhos, dão banho
à Virgem Maria numa tina de madeira, encontrando-se a nudez de Maria apenas
parcialmente revelada, atendendo ao decoro que deveria presidir à representação2.
Por sua vez no tratado El pintor cristiano y Erudito, Interián de Ayala, escreve o
seguinte: “Que santa Ana se pinte recostada na cama sendo servida diligentemente
pelas criadas […] Seria um grande erro pintar a Santíssima Virgem recém-nascida,
desnudada […]”3. uma vez mais deparamos com a indicação precisa quanto à postura

2 PACHECo, 2001: 578.


3 INTERIAN DE AYALA, 1883: 189 (tomo 2).
A pintura no museu de Arouca: contributo dos apócrifos e dos tratados pós-tridentinos… 283

de Santa Ana e à assistência pelas criadas, bem como à recomendação de não se


pintar a Virgem Maria, recém-nascida, despida.
Quando analisamos a pintura de António de Oliveira Bernardes, podemos, efec-
tivamente, comprovar que, no plano de fundo, Santa Ana se encontra recostada no
seu leito, sendo servida por uma criada que lhe proporciona alimento, enquanto no
primeiro plano cinco jovens segurando panos e uma faixa rodeiam a Virgem Maria e
lhe prestam todos os cuidados necessários. Não deixa, porém de se salientar a nudez
com que o pintor figurou a menina recém-nascida afastando-se um pouco das normas
apresentadas. No que se refere à composição não podemos deixar de referir o facto
das figuras femininas, de primeiro plano, se disporem formando um círculo, no qual
as duas jovens das extremidades, colocadas a três quartos e quase voltando as costas
ao observador, olham para a Virgem, de modo a conduzir, também para ela, o olhar
do espectador. Outro pormenor digno de registo é o facto de estar representado,
em primeiro plano, um fogareiro tipicamente português, objecto que surge noutras
pinturas de temáticas muito variadas.
Antes de analisar a pintura que ilustra Os Esponsais da Virgem Maria, referimos que
o episódio surge nos seguintes Evangelhos Apócrifos: Proto-Evangelho de Tiago (Cap.
IX), onde se alude à escolha de S. José para receber Maria em sua casa; Evangelho
de Pseudo-Mateus (Cap. VIII, 4-5), no qual se refere não só a escolha de José como,
também, das companheiras da Virgem Maria; Evangelho da Natividade de Maria (Cap.
VIII, 2), no qual se descreve os esponsais, o mesmo acontecendo na História de José
o Carpinteiro (IV, 1-4) e, finalmente, no Evangelho da Natividade de Maria (Cap. VII,
4), que faz referência, novamente, à escolha de José e onde se pode ler o seguinte
texto: “De acordo com esta profecia, [o sumo-sacerdote] mandou que todos os varões
pertencentes à casa e família de David, aptos para o matrimónio e não casados,
levassem as varas ao altar. E disse que o dono da vara que uma vez depositada fizesse
germinar uma flor […] seria designado o custódio de Maria”4.
Por sua vez, o mesmo tema é referido nos tratados. Assim, Jean Molanus (Livro
II, cap. 29) esclarece o seguinte: “A vara florida refere-se à virgindade de São José”,
enquanto que em El arte de la pintura (Cap. XII), Francisco Pacheco fornece indicações
precisas em relação ao assunto: “Vieram todos os mancebos da linhagem de David com
as suas varas e, entre eles, São José, cuja vara floriu […]. A Virgem e São José hão-de
pintar-se muito formosos […] dando-se as mãos direitas com grande honestidade e,
no meio, o sacerdote bendizendo-os […]”. Neste caso, o tratadista-pintor proporciona
aos artistas elementos concretos para proceder à representação do tema no que se
refere à presença e colocação do sacerdote, bem como à atitude que devem ter Maria
e José. Indicação semelhante pode encontrar-se em El Pintor Cristiano (Livro 4, Cap.
3, nº 6): “[…] e o santo e castíssimo S. José, de idade varonil, e tendo nas mãos um
ramo muito florido, dando-se, mutuamente, as suas castíssimas mãos”.
Analisando, agora, a pintura dos Esponsais da Virgem Maria, do Museu de Arte
Sacra de Arouca (Figura n.º 2), verificamos que, por detrás da Virgem, surgem três

4 SANTOS OTERO, 1999: 248.


284 Luís Alberto Casimiro

figuras femininas, certamente numa alusão às jovens que acompanharam Maria quando
esta, depois de sair do templo, foi recebida por São José em sua casa5. No lado direito
da pintura vislumbram-se diversos homens, alguns deles transportando varas, mas
somente a de José se encontra florida, dando, deste modo, expressão plástica literal
ao texto Apócrifo e às recomendações dos tratadistas. No que se refere à atitude de
Maria e de seu noivo, José, verificamos que, com efeito, eles unem as mãos direitas
enquanto o sacerdote, colocado no meio de ambos, os abençoa e confirma o mútuo
compromisso. Deste modo podemos confirmar como foi levado à letra o modo de
representar o episódio dos Esponsais da Virgem Maria sugerido pelos tratados artísticos,
através dos quais também se explica o simbolismo da vara florida de José.

Figura n.º 2
Esponsais da Virgem Maria
António de Oliveira Bernardes
(início séc. XVIII). Arouca, Museu da
Irmandade da Rainha Mafalda.

No que se refere ao sacerdote, não podemos deixar de referir um pormenor


iconográfico que não se encontra exactamente de acordo com os textos bíblicos.
Com efeito, nas vestes do sacerdote tal como são descritas no capítulo 28 do livro
do Êxodo, é indicado como deve ser feito o peitoral que o sacerdote ostentará: deve
ter um palmo de largura e outro de comprimento e guarnecido com quatro filas de
pedrarias, cada uma delas com três pedras preciosas: na primeira um rubi, um topázio
e uma esmeralda; na segunda um jaspe, uma safira e um diamante; na terceira uma
opala, uma ágata e uma ametista e, por fim, a quarta fila deverá conter um crisólito,
um ónix e um jaspe (Ex 28, 17-21). o número doze simboliza as doze tribos de Israel.
Porém, a representação do peitoral do sacerdote, tal como o faz oliveira Bernardes,
apresenta apenas metade destas pedras, ou seja duas filas de três pedras cada uma.
Não podemos ter a certeza se houve qualquer intenção específica por parte do artista,
nomeadamente sob o ponto de vista da composição, ou se pretendeu traduzir à letra o
seguinte versículo: “Será quadrado, dobrado em dois, com um palmo de comprimento

5 Evangelho de Pseudo-Mateus, Cap. VIII, 5.


A pintura no museu de Arouca: contributo dos apócrifos e dos tratados pós-tridentinos… 285

e um palmo de largura” (Ex 28, 16). Como se pode verificar é dada a indicação que
o peitoral seria «dobrado em dois» e, neste caso, apenas seriam visíveis duas filas de
três pedras, tal como sucede na pintura em análise. De qualquer modo, nos diversos
elementos iconográficos referidos, podemos constatar uma forte influência tanto
dos textos dos Evangelhos Apócrifos, como dos tratados artísticos pós-tridentinos e,
naturalmente, dos textos bíblicos.
Quanto à pintura da Anunciação do Senhor (Figura n.º 3), verificamos que se
trata de uma composição dividida em duas partes pela jarra florida colocada sobre
o pavimento. Na metade esquerda o Anjo Gabriel, sobre uma formação de nuvens,
apresenta-se diante de Maria segurando um ramo de açucenas na mão direita enquanto
a esquerda aponta para o alto em direcção à pomba do Espírito Santo. Por sua vez,
no lado direito, a Virgem que se encontrava de joelhos lendo um livro aberto diante
de si, volta-se em direcção ao Anjo anunciador, mantendo o olhar baixo e colocando
as mãos sobre o peito.

Figura n.º 3
Anunciação do Senhor
António de Oliveira Bernardes
(início séc. XVIII). Arouca, Museu da
Irmandade da Rainha Mafalda.

os Evangelhos Apócrifos apresentam-nos algumas diferenças na narrativa do


episódio da Anunciação do Anjo Gabriel à Virgem Maria: no caso do Proto-Evangelho
de Tiago é feita uma descrição do anúncio junto da fonte (Cap. IX, 2), enquanto o
Evangelho de Pseudo-Mateus apresenta o acontecimento em dois momentos distintos:
o primeiro junto da fonte e o segundo estando Maria já em sua casa, ocupada
com trabalhos de costura: “Três dias depois, enquanto se encontrava a trabalhar
na púrpura […]” (Cap. IX, 1-2). A mesma repartição em dois momentos sucede
no Evangelho Arménio da Infância onde se pode ler o que diz respeito ao segundo
momento: “Depois recolheu-se, silenciosa, no fundo da casa […] E levantando-se
pôs-se em oração […] E depois de ter permanecido neste estado durante três horas,
tomando o [tecido] escarlate, pôs-se a fiar” (Cap. V, 2-3). Com estas transcrições
pretendemos salientar a insistência que é feita no que se refere ao facto da jovem
286 Luís Alberto Casimiro

anunciada se encontrar ocupada nos trabalhos de fiar ou tecer, mas onde também
se alude a um momento específico de oração. Analisando a pintura verifica-se que
o artista sugere a atitude de Maria, recolhida em oração, meditando na palavra das
Sagradas Escrituras, daí a presença do livro aberto sobre um pequeno atril, ao mesmo
tempo que são representados dois utensílios associados aos trabalhos da costura,
numa clara influência dos Apócrifos.
Por sua vez, os tratados pós-tridentinos que são objecto do nosso estudo apresen-
tam a forma como os pintores devem lidar com o tema. Assim, o Tratado das Santas
Imagens discorre sobre o episódio sugerindo que a Virgem Maria deva figurar de
joelhos ocupada na leitura e meditação sobre a Redenção (Livro II, cap. 19). Indica,
também, que deve estar presente uma açucena como símbolo da perpétua virgindade
de Maria e que o Anjo Gabriel, por recomendação de S. João Crisóstomo, deve
figurar em discreta atitude de voo, não pelo facto de ter asas, mas como indicação
de que desceu sobre a terra (Livro III, cap. 13); Por sua vez, El Arte de la Pintura
não somente esclarece o que fazia Maria no momento da Saudação Angélica, como
sugere aos artistas o modo de a representar: “A Santíssima Virgem estava lendo e
meditando […]. Há-de estar a Santíssima Senhora de joelhos [num genuflexório]
onde tenha um livro aberto”6. Deparamos, igualmente, com indicações precisas sobre
a forma como se deve representar a Anunciação, no tratado de Fr. Interián de Ayala,
El Pintor Cristiano: “Há-de, pois, pintar-se o Arcanjo São Gabriel neste mistério, em
figura de um jovem modesto e bem parecido, adornado com asas e coberto decen-
temente com vestes resplandecentes e de várias cores e que cheguem até aos pés.
Mas seria melhor pintar o anjo ajoelhado diante da Senhora […]. Seria repreensível
representá-lo voando pelos ares com as asas abertas. [Maria deve ser representada]
ajoelhada, tendo as mãos juntas sobre o peito ou os braços cruzados. […] O quarto
da Virgem deve possuir um genuflexório onde se possa ajoelhar e sobre o qual estará
aberto um livro” (Livro IV, Cap. IV). Como vemos, são dadas indicações precisas
sobre o modo como devem figurar as duas personagens, bem como o ambiente que
as rodeia. Constatamos, de facto, que algumas destas recomendações estão presentes
na pintura de Oliveira Bernardes, embora outras não sejam levadas à letra, como
sucede com o anjo em voo, embora, segundo a indicação de Jean Molanus, o voo
seja discreto e o Anjo anunciador se encontre já diante de Maria (e não em voo
acentuado) diante da qual faz uma respeitosa genuflexão.
A pintura seguinte representa a Visitação de Maria a Santa Isabel. Nos Evangelhos
Apócrifos, o tema é referido muito sucintamente e sem pormenores significativos
que tenham contribuído para a iconografia do tema. Podemos ler tais passagens no
Proto-Evangelho de Tiago (Cap. XII, 2-3) e no Evangelho Arménio da Infância (Cap.
VI, 14-17).
Também nos tratados artísticos que seguimos não é dada muita relevância ao
episódio embora tomem uma postura clara sobre a presença de São José junto das
restantes personagens, nomeadamente, Maria, Isabel e Zacarias, bem como quanto

6 Evangelho de Pseudo-Mateus, Cap. XII.


A pintura no museu de Arouca: contributo dos apócrifos e dos tratados pós-tridentinos… 287

ao local onde decorreu o encontro que não teve lugar no campo, como representam
alguns pintores, mas em casa, de acordo com os textos bíblicos. Assim, em El Arte de
la Pintura (Cap. XII) pode ler-se: “Deve pintar-se esta visita no pátio da casa e a santa
anciã que sai à porta para receber a Santíssima Virgem […] não houve testemunhas
nem São José estava presente porque […] como é o mais certo, saudava zacarias”. Por
sua vez, El Pintor cristiano, confirma as opiniões de Francisco Pacheco e refere-se ao
episódio salientando o erro dos pintores ao representarem os dois homens: “os que
se afastaram da verdade são os pintores que representam esta saudação em presença
dos santos José e zacarias” (Livro 4, Cap. V, 4).
No caso da pintura da Visitação da Virgem a Isabel do Museu de Arouca verifica-se
que, de facto, o encontro entre as duas mulheres se dá na entrada da casa de Isabel,
tal como é indicado pelos tratados. Porém, em contradição com as recomendações
dos tratadistas, constata-se a presença tanto de zacarias, como de José e, ainda, de
algumas figuras secundárias, certamente empregadas da casa.
No que se refere à pintura da Adoração dos Pastores (Figura n.º 4), de pintor
desconhecido, deparamos com uma composição dinâmica, com a Virgem sustentando
o Menino Jesus sobre as palhas do presépio ocupando o centro da composição.
Encontra-se ladeada por São José e pequenos anjos, enquanto os pastores, represen-
tados de perfil ou de costas para o observador, de forma agitada rodeiam o Menino
fixando nele o seu olhar. No chão, diante da manjedoura, encontram-se as humildes
oferendas levadas pelos pastores.

Figura n.º 4
Adoração dos Pastores
Mestre desconhecido (séc. XVIII).
Arouca, Museu da Irmandade da
Rainha Mafalda.

Este episódio também não conhece grande desenvolvimento tanto nos textos
apócrifos como nos tratados. Em relação aos primeiros indicamos, os seguintes
textos onde se descreve o acontecimento: Evangelho de Pseudo-Mateus (Cap. XIV,
6); Evangelho Árabe da Infância (Cap. IV, 1-2); Evangelho Arménio da Infância (Cap.
288 Luís Alberto Casimiro

XI, 1-2). Nestes textos não se encontram elementos dignos de registo que permitam
aos pintores uma representação detalhada do episódio. Porém, no caso dos tratados,
apesar da forma sintética com que se menciona o acontecimento pode detectar-se
algumas indicações concretas sobre o modo de representar. Assim, no seu Tratado
das Santas Imagens, Jean Molanus condena veementemente, e com fortes argumentos
provenientes de vários quadrantes, o facto de se representar o Menino Jesus despido
(Livro II, Cap. 42). Efectivamente, não só estava em causa o decoro necessário à
representação do Menino-Deus, como corresponderia a um erro em relação ao relato
evangélico no qual o anjo dá um sinal aos pastores: “[…] encontrareis um menino
envolto em panos e deitado numa manjedoura.” (Lc 2, 12).
Por outro lado, no tratado El Pintor cristiano, pode ler-se: “[…] em jeito de
adorno, os pintores acrescentam ofertas rústicas e pastoris que os pastores ofereceram
a Cristo” (Livro 3, Cap. 2, 11). Comparando estas indicações com a pintura em
apreço, verificamos que, de facto, como é tradicional em termos iconográficos, são
representadas diversas oferendas dos pastores ao Menino, as quais são colocadas
no chão diante da manjedoura. Trata-se de produtos associados ao seu trabalho de
pastoreio e que se destinam não só ao Menino, mas também a Maria e a José de
forma a contribuir para o sustento da família. Quanto à presença dos anjos, os textos
analisados nada referem a esse respeito, porém é perfeitamente compreensível a sua
representação feita na sequência lógica do texto bíblico onde se refere o anúncio do
nascimento de Jesus aos pastores, feito por um anjo, ao qual se juntou depois “[…]
uma multidão do exército celeste louvando a Deus” (Lc 2, 11-13). Também nesta
pintura podemos verificar que se, em determinados elementos, o pintor representa o
tema, de acordo com as sugestões dos Apócrifos ou as recomendações dos Tratados,
noutros casos comprova-se que a tradição ou outras causas externas conduzem a uma
figuração em desacordo com as orientações como é, neste caso, o facto do menino
ser representado despido.

Figura n.º 5
Adoração dos Reis Magos
António de Oliveira Bernardes
(início séc. XVIII). Arouca, Museu da
Irmandade da Rainha Mafalda.
A pintura no museu de Arouca: contributo dos apócrifos e dos tratados pós-tridentinos… 289

Por fim referimos a pintura representando a Adoração dos Reis Magos (Figura
n.º 5), a qual manifesta claras influências das fontes literárias que analisamos. No
que se refere aos Evangelhos Apócrifos, indicamos em seguida os textos que estão
relacionados com a Adoração dos Reis Magos. No Evangelho de Pseudo-Mateus pode-
mos ler: “Cada um ofereceu uma moeda de ouro ao Menino” (Cap. XVI, 1-2); no
Evangelho Arménio da Infância: “O primeiro era Melkon, rei dos persas; o segundo
Gaspar, rei dos índios; e o terceiro Baltazar, rei dos árabes. […] As tropas que os
acompanhavam somavam doze mil homens” (Cap. XI, 1-3); por fim, no Livro sobre
a infância do Salvador “[…] saudaram o Menino, depois puseram-se a adorá-lo […]
e cada um beijou o pé do Menino” (n.os 91-92).
Este conjunto de indicações torna claro diversos aspectos relacionados com a
presente pintura e mesmo com outras existentes no Museu da Irmandade da Rainha
Mafalda, alusivos ao mesmo tema. Em primeiro lugar ilustra o facto dos visitantes
serem reis (as coroas encontram-se bem visíveis e em lugar de destaque) e em
número de três, esclarecendo, ainda, o respectivo nome que a tradição conservou.
Por outro lado, referem que uma das ofertas ao Menino foram moedas de ouro, o
que realmente surge representado em diversas pinturas, inclusivamente no Museu
de Arte Sacra de Arouca. Dão também, a indicação de que os Reis Magos eram
acompanhados por numeroso exército, o que se encontra claramente ilustrado na
pintura com a indicação da presença de soldados com as respectivas lanças. Por fim,
os textos explicam, também, o gesto de um dos Reis que, inclinando-se diante do
Menino, se aproxima para lhe beijar o pé. É o que se verifica com o rei mais idoso.
No que diz respeito aos tratados artísticos salientamos, apenas, alguns aspectos
mais relevantes, dado que outros são praticamente indiferentes em termos de
influências iconográficas. Entre estes podemos apontar as considerações em torno
do momento exacto em que se processou a visita dos Reis Magos: se poucos dias
depois do nascimento ou passados dois anos.
Por outro lado, verifica-se que algumas passagens encontram reflexo nas pinturas.
Assim, são dadas extensas explicações para justificar o facto de os visitantes serem
efectivamente reis e não detentores de qualquer outra categoria. Esclarecem, por
exemplo, que o lugar do encontro dos Reis Magos com a Sagrada Família teve lugar
não na gruta, mas em lugar mais apropriado. De novo regressa o tema da representação
da nudez do Menino Jesus. Assim, no Tratado das Santas Imagens lê-se: “Os Magos
devem ser representados como reis […] levando coroa” (Livro III, Cap. 3). Quanto
a El Pintor Cristiano, salientámos o seguinte texto: “[…] os Magos encontraram
Cristo não na gruta de Belém, mas noutro lugar, mais decente e acomodado. […] É
um erro e uma fantasia extravagante representar Cristo recém-nascido, inteiramente
despido” (Livro 3, Cap. 3, 1-2).
290 Luís Alberto Casimiro

Conclusão
Após a investigação feita nas fontes literárias constituídas pelos Evangelhos
Apócrifos e alguns dos Tratados Artísticos pós-tridentinos, no sentido de procurar
eventuais influências dos textos sobre as seis pinturas em análise, podemos concluir
que, na verdade, resulta indiscutível a influência dos Apócrifos e dos Tratados na
iconografia mariana seleccionada. Esta influência verifica-se tanto em termos de
pequenos detalhes, como através da presença e atitudes das personagens. Muitos
aspectos tornam-se mais compreensíveis atendendo ao conhecimento das passagens
que, de modo directo ou indirecto, estiveram na origem das pinturas escolhidas.
Todavia, verificámos existir um dado novo, interessante e que, do ponto de vista
da honestidade intelectual e rigor científico tem de ser referida: o facto do pintor
representar determinados elementos que se encontram em clara oposição em relação
ao que eram as indicações os mesmos tratados. Não podemos, de imediato, apresentar
uma solução para as opções do pintor pois elas podem reflectir condicionantes muito
variadas. Não deixa contudo de ser válida a verificação da existência de fortes
influências das fontes apócrifas e tratadisticas na iconografia mariana do Museu da
Irmandade da Rainha Mafalda, de Arouca.

Bibliografia
BÍBLIA Sagrada, 2002, 3.ª edição. Lisboa/Fátima: Difusora Bíblica.
EVANGELIOS Apócrifos (2 tomos), 1996. Buenos Aires: Ediciones CS.
INTERIAN DE AYALA, Juan, Fr., 1883 – El pintor cristiano y Erudito ó tratado de los errores que
suelen cometerse frecuentemente en pintar y esculpir las imágenes sagradas (3 tomos) Barcelona:
Imprenta de la Viuda e Hijos de J. Subirana.
MOLANUS, Jean, 1996 – Traité des Saintes Images. Paris: Les Éditions du Cerf.
PACHECO, Francisco, 2001 – El Arte de la Pintura. Madrid: Cátedra.
SANTOS OTERO, Aurelio de (dir.), 1999 – Los Evangelios Apócrifos. Madrid: Biblioteca de
Autores Cristianos.
O buril e paleta. Santo Inácio de Loiola nas pinturas
da sacristia da igreja dos jesuítas, em Bragança
Luís Alexandre Rodrigues

Cabelo longo e traje mundanal com espada


Na sua abertura, o movimento giratório da porta de entrada da sacristia esconde
uma tábua pintada que integra o conjunto de painéis e caixotões que ornamentam
este espaço da antiga igreja da Companhia de Jesus, em Bragança. A luz difusa e
o mimetismo das escurecidas tonalidades da pintura contribuem para a sua secun-
darização. Exige-se, portanto, um esforço adicional ao olhar do observador para se
poder discernir o vulto de um peralta a sobressair numa apagada paisagem fundeira.
O traje sumptuoso e fantasista evidencia um fidalgote pretensioso a exibir uma pose
confiada na segurança do ferro de longo gume que lhe pende à cintura. Um tipo de
retrato com grande fortuna no século de seiscentos quando algumas das principais
categorias sociais gostavam de se fazer admirar nas sugestões de gestos afectados e
compostos em tecidos magníficos. Maneirismos e exageros no enfeite que motivaram
ácidos remoques a que não escapavam até alguns dos que se vangloriavam de terem
pisado o campo de Marte.
Escusado será dizer que o volume destas fraquezas se associou ao conjunto de
preocupações com as contas públicas e domésticas durante o século XVII. Ao ponto
de se solicitar aos ministros da fazenda a publicação de pragmáticas que limitassem
a importação de alguns artigos de ostentação.
As botas de cano alto, os calções a estreitarem-se até ao joelho, as mangas tufadas
e postiças, os cinturões e fivelas com aplicações variadas, os chapéus com abas, cada
vez mais amplas, onde se agitava o exotismo das plumagens, as fitas acetinadas,
as camisas de punhos e os rendados da gravata eram adereços indispensáveis aos
meneios exibicionistas que se projectavam nos salões ou nos rossios das cidades em
dias domingueiros. Tendência europeia que reflectia o enquadramento social, os
privilégios e as pretensões dos retratados.
292 Luís Alexandre Rodrigues

Ostentando semelhantes atavios, retratou-se na sacristia da igreja bragançana


da Companhia de Jesus o basco Inácio de Loiola - aliás Inigo, conforme o nome1 de
baptismo consagrado na igreja de Azpeitia – já homem maduro, com farta cabeleira
e envergando vestes mundanais de bom preço. Bem sabemos que esta representação
pictórica, datada do século XVII, escorrega nos acidentes da diacronia já que o
anónimo pintor, tomando como referência alguma gravura do seu tempo, não cuidou
de se inteirar dos atavios próprios dos galãs da segunda metade do século XVI. Mas a
representação profana tinha como pretensão evidenciar uma existência e um tempo:
a de um homem pecador, distraído da vida religiosa, e a renúncia às superfluidades
do mundo. Pretexto para o desenvolvimento de um programa pictórico destinado a
exaltar os passos da vida de Inácio de Loiola (e da Sociedade de Jesus) ruidosamente
festejado, com Francisco Xavier e Luís Gonzaga, na mesma igreja e cidade de Bragança
em 1622, aquando das festas2 da sua canonização.

Modelos e intenções
Antes de 1609, quando Loiola foi beatificado, tendo em vista a possibilidade da
imagem de Inácio poder ser reverenciada nos altares, correram algumas obras impressas
que pretendiam divulgar as suas longas penitências e, ao mesmo tempo, ampliar o
reconhecimento dos seus milagres. Pedro de Ribadeneira, padre que conviveu de
perto com o fundador da Companhia, foi um dos que, com os seus escritos, mais
se empenharam neste desiderato. Em 1600, quando concluía a biografia que vimos
seguindo, a qual rectificou à medida que conhecia mais notícias pertinentes, dava
conta que só entre os hereges o Bem Aventurado Padre era mal visto. E, no mesmo
passo, citava o nome do calvinista Simão Misseno como sendo o autor de cinco
livros publicados com a finalidade de rebater o conteúdo de «otros cinco que andan
impressos3» da vida de Loiola. Resistências que a Companhia enfrentava de vários
modos, nomeadamente através da afirmação dos seus símbolos e do seu ideário, o que
explica a estrutura da obra do padre Jerónimo Nadal, Evangelicae historiae imagines,
publicada postumamente em Antuérpia no ano de 1593, bem como a insistência
na divulgação do monograma IHS, que a frontaria da igreja de Jesus, em Roma,
ostentava desde 1575.
Dada a sua recente criação (1540), era forçoso que a Sociedade de Jesus mostrasse
urgência no aprofundamento da sua identidade tanto mais que, na fase inicial de
vida, nenhum dos seus prosélitos tinha sido elevado aos cumes da beatitude ou da
1 Inigo corresponde à tradução castelhana de Eneko, o nome basco de baptismo do filho de D. Beltran e de D. Marina
de Loyola. Só anos depois, em Paris, quando tratava de receber o diploma em «Artes» é que passaria a usar o nome
de Loyola.
2 RODRIGUES, 2005: 3-32.
3 RIBADENEIRA, 1609: 59. No exemplar que ultimamente compulsámos na Biblioteca Municipal do Porto escreveu-se,

a lápis, a seguinte nota: «Esta é a segunda parte da edição de 1609 a que falta a portada e a última página na parte
referente aos santos da Companhia de Jesus». Mas na página 54 o autor declara que o texto foi escrito em 1600.
Na introdução à mesma publicação, Pedro de Ribadeneira refere serem da sua autoria os cinco livros que corriam
impressos em castelhano e em latim sobre a vida de Inácio de Loyola.
O buril e paleta. Santo Inácio de Loiola nas pinturas da sacristia da igreja dos jesuítas, em Bragança 293

santificação. Pelo que, impelida a disputar com congregações centenárias a fidelidade


dos católicos, apostaria no crédito que advinha da construção da própria hagiografia,
perseverando para que o exemplo de vida de alguns dos seus membros os tornasse
dignos da imagem que, nos nichos dos retábulos, pudesse receber as preces dos fiéis.
O padre Cláudio Acquaviva, o quinto superior general, com exercício entre
1581 e 1615, parece ter sido um dos mais insistentes na beatificação do fundador
da Companhia de Jesus. Ciente da força da imagem, trabalhou para que o retrato de
Inácio não apresentasse grandes variações de fisionomia. Daí a importância concedida
à máscara mortuária produzida por um irmão jesuíta quando Inácio de Loiola faleceu
em 31 de Julho de 1556. Usando este modelo4, o pintor florentino Jacopino del Conte
foi dos primeiros a fixar a fisionomia do fundador. Também a obra realizada em 1585
por Alonso Sanches Coelho (1515-1590) ficaria famosa por ter sido acompanhada
na sua execução por Pedro de Ribadeneira5, padre que além da proximidade que
manteve com Inácio também possuía um modelo de cera do seu rosto. Tratava-se de
definir a imagem oficial de Inácio de Loiola e de se lhe atribuir um perfil psicológico
que pudesse ser uniformizado nas diferentes formas de representação. Note-se que
os poderes atribuídos à sua imagem fizeram acrescentar a conveniente relação dos
prodígios relacionados com a salvação de endemoninhados ou com a cura de outros
males. Para tanto, bastava que, com muita fé, os pacientes colocassem a imagem de
Inácio sobre o peito ou lhe implorassem com fervor uma graça. A fama dos milagres
atribuídos a Inácio era considerada essencial para o desfecho positivo do processo
que ditaria a sua beatificação e posterior canonização. No entanto, neste texto não
nos deteremos a olhar a ocorrência dos milagres nem a sua representação nas tábuas
da sacristia da igreja jesuítica. Preferimos considerar que, após o episódio ocorrido na
praça de Pamplona, os grandes cometimentos de Inácio de Loiola ocorreram sempre
em paralelo com manifestações prodigiosas.
Na perspectiva das artes figurativas, interessa-nos uma publicação divulgada em
1609 com um conjunto de oitenta e uma ilustrações que, com duas excepções, são
acompanhadas de um pequeno texto explicativo em latim. Inspiradas no exórdio
laudatório do padre Ribadeneira, esta colecção de gravuras mostra pretensões que
iam muito além de uma outra, mais antiga e menos numerosa, em que trabalhou
Jerónimo Wierix. Todavia, ambas se inscrevem na tendência barroca de interferir
nos sentimentos religiosos para potenciar efeitos e provocar o seu desdobramento na
esfera do público. Naquela, a narrativa biográfica abrange o período compreendido
entre o seu nascimento e a sua morte, conforme o título Vita Beati P. Ignatii Loiolae

4 PFEIFFER, 2005: 201-228.


5 Na obra que temos seguido, Ribadeneira retratou Inácio de Loiola da maneira que se segue: fue de estatura algo
pequeña, de rostro autorizado, de frente ancha y desarrugada: tenia los ojos hundidos, encogidos y arrugados los parpados por
las muchas lágrimas que continuamente derramava, las orejas medianas, la nariz alta y combada, el color trigueño y vivo, y
una calva venerable. El semblante del rosto era alegremente grave. Também o pintor e tratadista Pacheco se aproveitaria
desta descrição para fazer valer alguns dos seus pontos de vista no campo das artes. Ver RIBADENEIRA, 1609: 25;
PACHECO, 1990: 708.
294 Luís Alexandre Rodrigues

Societatis Iesu Fundatoris6 bem expressa. Alguns estudiosos apontam o envolvimento


de P.P.Rubens7 (1557-1640) neste projecto e atribuem-lhe a execução de vários
desenhos. Quanto à abertura das chapas, o nome de Jean-Baptiste Barbé tem tido
grande aceitação. Mas também há quem aponte a contribuição de Cornelis Galle I
(1576-1650), artista flamengo de Antuérpia e membro de uma família de gravadores
que souberam tornar famosa a oficina fundada por seu pai, Philippe Galle, irmão de
Teodoro e avô de Cornelis Galle II (1615-1678), mestres do mesmo ofício, como
principais responsáveis pela produção das estampas.
Pelo seu aparato, esta obra exigiu certamente um período prévio de preparação
de maneira a que, sendo publicada no mesmo ano da beatificação de Inácio, servisse
a estratégia dos Jesuítas para inculcar em todos os estratos sociais a justiça da cano-
nização daquele que foi o primeiro prepósito da Sociedade de Jesus.
Contudo, ainda não está inteiramente esclarecida a mão responsável pela maioria
dos desenhos originais8. Um dos desenhos que se atribui a Rubens é o da portada
do livro – reeditado aquando da canonização em 1622 com mais uma gravura
relativa a esta cerimónia – em que uma composição arquitectónica, formada por
colunas jónicas e com um frontão quebrado no remate, fornece o enquadramento
criativo para se meter em destaque o papel desempenhado por alguns dos próceres
da Companhia de Jesus, em paralelo com a acentuação da importância da missão
catequética desenvolvida, mesmo quando a acção missionária significava o martírio.
Aí se enaltece Inácio de Loiola colocando-se o seu retrato em vistosa cartela que
se suspendeu no centro do frontão e se fez ladear por dois prazenteiros bambinos que
mostram uma rosa e um lírio, flores de grande significado simbólico na iconografia
católica, de acordo, aliás, com as inscrições das filacteras que seguram com a outra
mão. No nível inferior, no plano do entablamento, alinharam-se os retratos de
Luís Gonzaga, Francisco Xavier, ao centro, e Stanislau de Kostka. A outros, como
indicação de beatos, a letra B precedia-lhe os nomes. Contudo, nem em todos os
6 VITA Beati P. Ignatii Loiolae Societatis Iesu Fundatoris, 1609. Na publicação The jesuits and the arts, já referenciada,
atribuem-se a Rubens as duas imagens das portadas da Vita Beati P. Ignatii Loiolae e ainda as gravuras que, no canto
inferior direito, levam os números 12, 52, 64, 68, 76 e 77. Ao mesmo tempo, publicou-se o desenho, também de
Rubens, relativo ao acto de apresentação a Júlio III dos estudantes do Colégio Germânico. Datado de cerca de
1603, serviu de modelo à estampa número 64 e permite concluir que a composição daquela obra foi programada
bastante antes de 1609.
7 O génio criador de Rubens manifestou-se em vários domínios artísticos e a sua influência estender-se-ia também

às artes gráficas. Permanecendo em Itália entre 1600 e 1608, com estreitas ligações ao patronato de Gonzaga,
duque de Mântua, interessar-se-ia pela gravura e seria em Roma, quando corria o ano de 1606, que aprendeu
um processo técnico inovador no que respeita à água-forte. Um dos primeiros artistas a gravar obras para Rubens
seria Jean-Baptiste Barbé (1578-1645) que, no entanto, não teria conseguido satisfazer completamente Rubens
pois ambicionava que as suas obras gravadas integrassem as subtilezas das gradações das cores e evidenciassem as
variações características das zonas de luz e de sombra, incorporando assim algumas qualidades próprias da pintura.
Durante esse período também Cornelis Galle I (1576-1650), um dos primeiros a usar a técnica da gravura a buril,
abriu na sua oficina de Antuérpia vários desenhos de P. P. Rubens. Note-se que Rubens, durante a sua permanência
em Itália, nomeadamente no período entre 1604-1606, respondeu a encomendas destinadas à Companhia como a
Circuncisão da igreja jesuítica de Génova o trio de telas da igreja jesuítica de S.S. Trinità de Mântua, incluindo o
mutilado da Santíssima Trindade que inspirava o recolhimento espiritual do duque Vicenzo Gonzaga e de outros
membros da sua família. Na publicação The jesuits and the arts, já referenciada, além das duas imagens das portadas,
atribuem-se a Rubens
8 BAILEY, 2003: 19.
O buril e paleta. Santo Inácio de Loiola nas pinturas da sacristia da igreja dos jesuítas, em Bragança 295

casos a antecipação de desejo coincidiu com a realidade. Nas cartelas das ilhargas,
a inclusão de figuras agrupadas com palmas nas mãos, legendadas com as inscrições
PLVRES IN ANGLIA e PLVRES IN INDIA, enalteciam a memória e o valor dos
regulares que padeceram martírio nestas partes. Já os que tiveram igual destino no
Japão (IN IAPONE) e na Florida (IN FLORIDA) seriam lembrados nas estilóbatas
das colunas, enquanto ao mesmo nível, mas no espaço central, uma cena marítima
aludia aos quarenta mártires (QVADRAGINTA MARTYRES) do Brasil.
Sendo de notar a omissão neste universo das figuras de Nossa Senhora e de Jesus,
tão importantes na vida piedosa de Inácio e da Companhia, ressalte-se o propósito
primeiro de se transmitir densidade à canonização deste e, ao mesmo tempo, justificar
a importância da Sociedade de Jesus no apoio ao papado e à renovação da igreja.
Para o nosso objectivo, as gravuras da Vita Beati P. Ignatii Loiolae Societatis Iesu
Fundatoris são especialmente significativas por terem servido directamente de modelo
às pinturas que se perfilam sobre o arcaz e no tecto da sacristia da igreja que os
jesuítas tutelaram em Bragança. Neste relato visual a única excepção é a tábua em
que se dá nota de como, numa certa fase da vida, as preocupações do personagem
principal estavam distantes dos ideais de ascetismo e espírito de serviço que se lhe
apontaram como atributos. Aliás, o padre português Luís Gonçalves da Câmara, a
quem o próprio Loiola relatou de viva voz os episódios mais significativos da sua vida,
noticiou que até à idade de vinte seis anos o fundador da Companhia foi um homem
dado às vaidades do mundo e que se deleitava com o exercício das armas como forma
de alcançar honras. E ao seu espírito belicoso acrescentava-se o gosto pelo jogo e a
fácil cedência às tentações do mundo. Jean Lacouture encontraria na acusação de
crimes tão graves como o assassínio, quando contava vinte e quatro anos, a explicação
para a fuga para Pamplona, onde se entregaria à justiça eclesiástica, conhecida como
mais branda do que a civil. Doravante, diversas circunstâncias concorreram para que
o espírito de cortesão, iniciado de tenra idade na corte dos reis católicos, progredisse
e se afirmasse depois no âmbito dos círculos do Rei Fernando e de João de Velasquez
de Cuellar, tesoureiro do reino de Castela, em cuja casa se integrava. A sua presença
assinala-se nas comitivas destes notáveis que frequentemente se deslocavam a
Tordesilhas em visita a Joana a Louca, mãe de Carlos V e de D. Catarina que, ainda
que com os movimentos condicionados, aí residia.

Cabelos desgrenhados, veste de saco e bordão


Mas o ciclo pictórico narrativo da igreja de Bragança começa com a ordem
do senhor de Hasparren às tropas francesas para cercarem (1521) o castelo de
Pamplona, num momento em que era ainda a carreira as armas que alimentava a
ambição de Loiola. Este ataque dos franceses iria mudar a vida de Inigo e, pelas
suas consequências, inscrever-se-ia em sociedades tão distantes como a Europa, o
Oriente, o Brasil e colónias espanholas da América. Os estilhaços de bombarda, ao
ferirem-lhe uma das pernas, fizeram soçobrar o militar sitiado. Vencedores, os franceses
296 Luís Alexandre Rodrigues

encaminharam-no numa padiola para o solar da família em busca dos cuidados que
o perigo de vida reclamava.
A grande devoção por S. Pedro parece ter contribuído para que o paciente se
tivesse agarrado à vida. E o sentimento ganhou fervor a partir do momento em que
o príncipe dos apóstolos, aparecendo-lhe na véspera do seu dia, lhe incutiu força
no ânimo e o favoreceu na cura. Mas ainda assim, uma vez restabelecido, a vaidade
pessoal ressentia-se da ausência de massa muscular e da má cicatrização do ferimento
na perna, facto que, além de alguma disformidade, lhe impedia o uso das botas da
moda. Por isso se sujeitou a uma dolorosa intervenção correctiva que implicaria um
novo corte da tíbia.
Preso novamente a uma cama, achou que algumas leituras podiam aligeirar os
dias de inactividade. Perante a inexistência de exemplares agarrou-se a um livro da
Vida de Cristo e à famosa Legenda Dourada de Tiago de Voragine. Nesta altura, era
possível que algumas recordações de Tordesilhas, sobretudo a imagem da infanta
Catarina ainda perturbasse os sonhos, ainda que impossíveis, do combatente9.
Apesar das proezas mundanas que ambicionava realizar, a lição edificante das
leituras efectuadas, como se traduzissem o confronto da vontade de Deus e do
demónio, acabaram por determinar uma nova orientação de vida que se projectava
na aridez dos caminhos e povoações da Terra Santa. Nas preces de uma noite, diante
de uma imagem de Nossa Senhora, decidiu tornar-se soldado de Cristo. Adoptando
comportamentos de austeridade e cumprindo rigorosas penitências, que se acentu-
aram depois da Virgem Maria com o filho nos braços lhe ter aparecido uma noite
quando rezava, combatia os deleites da vida. Depois, já a caminho do templo de
Nossa Senhora de Monserrate, renovaria o voto de castidade. Assim, com o coração
inflamado, não só negava o próprio corpo como se afastava do conforto que o clã
familiar e conhecidos lhe ofereciam, pesem embora os gestos em contrário do seu
irmão mais velho, Martin Garcia de Loiola.
Com uma perna mais curta que a outra, dificuldades na marcha e com dores
bastantes para aconselharem outra resolução, porfiará nos seus propósitos. O pretexto
imediato é a visita ao duque de Najera mas o destino marcado era já o santuário de
Nossa Senhora de Monserrate onde La Moreneta, a imagem escurecida pelos anos e
pelo fumo das velas, continuava a ver os devotos prostrarem-se aos seus pés. Montado
numa mula iniciaria o percurso durante o qual os dois criados que o acompanhavam
seriam dispensados e se registou o episódio da disputa com o mouro convertido,
também viajante, e das dúvidas deste sobre a virgindade de Maria. Num povo das
proximidades de Monserrate adquiriu a serapilheira, o saco de cânhamo áspero,
para fazer a túnica com que cobriria o corpo até aos pés e que uma corda cingia na
cintura. Este agasalho, umas alpercatas de esparto, uma cabaça e um bordão eram o
equipamento com que almejava peregrinar para Jerusalém. Numa altura em que só
podia calçar um pé porque o outro estava envolto em ligaduras.

9 LACOUTURE, 1993: 24.


O buril e paleta. Santo Inácio de Loiola nas pinturas da sacristia da igreja dos jesuítas, em Bragança 297

Vencidas as cerca de três centenas de quilómetros, a distância entre Azpeitia e


Monserrate, Inigo chegou finalmente ao santuário onde se recompôs e se confessou a
João Chanones, um monge francês. Na véspera do dia 25 de Março de 1522, quando,
como reza o hagiógrafo «o Verbo eterno se vestiu da nossa carne nas entranhas da sua
puríssima mãe», Inigo, em cerimónia muito próxima das solenidades medievais em
que os filhos de algo eram armados cavaleiros, velou toda a noite perante a imagem
românica da Virgem negra de Monserrate. Antes tinha-se despojado dos bens que
lhe restavam. Tal como fizera com a mula, entregue ao mosteiro beneditino que aí
havia, despojou-se do vestuário que usava, doando-o a um mendigo que se arrastava
nas imediações do cenóbio, trocando-o pela vestimenta de saco. Seria já com este
andrajo que, em acto simbólico de repúdio pela vida profana, depôs no altar da
Virgem Morena a espada e o elmo, os mesmos instrumentos que durante anos lhe
alimentaram os sonhos e lhe garantiram privilégios.
Não havia maneira das feridas sararem completamente. Mesmo assim, um dia,
antes do sol se levantar, o coxo Inigo, meteu-se a caminho de Manresa que ficava a
três léguas de Monserrate. Nesta altura o visionário já tinha aprofundado o desejo
de mergulhar no completo anonimato. Mas durante a estada de onze meses naquela
povoação, repartida entre um abrigo próximo do rio Cardoner e o hospital de Santa
Lucia, a revolução interior aprofundar-se-ia.
A sua cabeça não se cobria com qualquer chapéu e o pano vil e grosseiro cobria-lhe
o corpo. Os cabelos ao vento e um varapau na mão, essencial para apoiar a marcha
de um incapacitado, pareciam-lhe mais conformes com o seu desejo de despojamento
que o impelia para frequentes jejuns e penitências seguidas de longos períodos de
oração que aprofundavam a ambição de martírio.
Tais estados psicológicos conduziam-no a visões como a da serpente sobre a qual,
dizia, resplandeciam muitas coisas. Afinal era o diabo nas suas metamorfoses que
de vez em quando lhe aparecia para o desviar da sua tenção. Outras vezes Inigo
vislumbrava a humanidade de Cristo ou percebia a presença de Nossa Senhora.
Todavia, seria nos alvores de 1523 que o vagabundo piedoso sofreu uma revelação
de grande intensidade, e tão especial que lhe ampliou enormemente o entendimento
das coisas do mundo e do céu. O episódio ficaria conhecido como a «iluminação
do Cardoner», justamente por ter ocorrido numa das margens do rio de Manresa.
Sendo provável que os Exercícios espirituais tenham tido a sua génese neste
momento de ascese também é plausível que a partir desse instante decisivo todas as
hesitações e dúvidas existenciais tenham sido aplacadas por uma fé inquebrantável
e, ao mesmo tempo, explosivamente geradora de comportamentos regulados por
uma estratégia de acção que, uma vez estruturada, em poucos anos tocou boa parte
do mundo. Mas os olhos de Inigo continuavam a fixar-se nas distantes terras de
Jerusalém. Por isso tomou a resolução de marchar para Barcelona onde encontrou
barco que o transportasse até Roma, cidade a que aportou no Domingo de Ramos
de 1523. Pedro de Ribadeneira, registou que muitos foram os que tentaram desviar
Inigo de empreender a viajem aos locula sancta da Palestina.
298 Luís Alexandre Rodrigues

O mesmo padre enunciou as dificuldades da jornada para Veneza No seu


desamparo valer-lhe-ia o consolo da aparição de Cristo e a incitação a sofrer novas
provações por seu amor. Pelas casas mendigava o peregrino o seu sustento e à noite
acomodava-se como podia num qualquer canto da Praça de S. Marcos. Alguns
prodígios concorreram para que o duque de Veneza, Andrea Griti, o tivesse mandado
subir a bordo da nave que capitaneava a frota que se dirigia (1523) para Chipre.
No meio de várias desventuras, a mão de Deus continuava a acenar ao místico que
em 4 de Setembro pisava o chão de Jerusalém. Mas, o seu desejo de permanência
prolongada não colheu a aceitação do provincial dos franciscanos, pobres e sempre
receosos das despesas com o resgate de cativos.
Era tempo de Inverno quando iniciou a viagem de retorno a Itália numa pequena,
velha e carcomida nave que aportou a Veneza em meados de Janeiro de 1524. Depois,
a partir de Génova rumou para Barcelona, acabando a sua peregrinação no ponto
onde a tinha começado. Era o triunfo do princípio da circularidade. A experiência
de vida tinha-lhe feito ver como o estudo e o conhecimento eram importantes. Por
isso, talvez sob a influência da sua benfeitora, Isabel Rosel, Inigo, não obstante os
seus trinta e três anos de idade, começou a receber lições de gramática na escola de
Jerónimo Ardévalo.

Inácio de sua graça. A toga e o birettum


Depois de aprender Gramática em Barcelona durante dois anos passou à Univer-
sidade de Alcalá de Henares para estudar Lógica e Filosofia e onde o seu inflamado
comportamento religioso suscitou dúvidas suficientes para o levarem à prisão. Provação
difícil donde sairia inocentado.
A fama da universidade de Paris considerada por Ribadeneira «la madre de
todas las universidades, y comum escuela, y teatro del mundo10» atraiu Inigo de
Loiola. Em 2 de Fevereiro de 1528, manquejando atrás de um burrico passava Inigo
o limiar da Porta de Saint-Jacques, uma das aberturas da velha cintura defensiva
de Paris de Francisco I. Alojou-se no hospício de Santiago mas tinha que mendigar
diariamente o pão que metia à boca. A falta de recursos justificam a sua inscrição
no colégio de Montaigu, instituição reputada pelos seus latinistas e gramáticos mas
também conhecida pelo rigor e austeridade nos comportamentos e ainda por ser «o
mais mal cheiroso, insalubre e inóspito dos cinquenta colégios parisienses11». No seu
conjunto, estas escolas reuniam mais de uma dezena de milhar de escolares, metade
dos quais eram estrangeiros. Na faculdade das artes os estudantes organizavam-se
por nações, sendo que a reverenda natio Gallicana, além dos franceses, congregava os
escolares provenientes de Itália, Espanha, Portugal e ainda da Turquia e do Egipto.
Compreende-se assim a importância do latim como língua internacional num tempo
em que a afirmação das línguas nacionais esbarrava em obstáculos que hoje temos
10 RIBADENEYRA, 1609: 16.
11 LACOUTURE, 1993: 58.
O buril e paleta. Santo Inácio de Loiola nas pinturas da sacristia da igreja dos jesuítas, em Bragança 299

dificuldade em compreender. Valerá por isso a pena salientar que os colegiais que
fossem apanhados a falar francês12 se sujeitavam a sofrer penosos castigos corporais.
No convívio com as agruras da pobreza, Inigo de Loiola ainda achava maneira de
se confortar do rigor das suas vivências quotidianas. No Quartier Latin, as penitências
que a si próprio impunha conjuntamente com outros sinais de desprendimento material
contagiaram a vontade de três estudantes espanhóis, Amador de Elduayen, Juan de
Castro e Miguel Peralta, os quais pela diligência e capacidades intelectuais tinham
alcançado fama junto de mestres e condiscípulos.
Arrebatados pela ideia de imitarem Cristo, estes rapazes de origem nobre puseram
os livros de lado, desfizeram-se dos bens que possuíam e, irmanando-se com os pobres,
passaram, tal como o seu mentor espiritual, a mendigar alimentos e a pernoitar
no hospício onde o «peregrino» - assim era conhecido Loiola - se abrigava. Facto
que suscitou grande animosidade junto dos professores e estudantes do Colégio
de Santa Bárbara e até da comunidade espanhola residente. Tal como já ocorrera
em Salamanca e Alcalá de Henares, as suspeitas do navarro ser um «iluminado»
afoguearam alguns espíritos. Um notável de Montaigu, Pedro Ortiz, acicatado pelo
português Diogo de Gouveia, denunciá-lo-ia à Inquisição. Mas o Inquisidor de Paris,
o teólogo dominicano Mateo Ori, absolvê-lo-ia das suspeitas. Inocência e rectidão
de princípios doutrinários eram conceitos que faziam parte das conclusões extraídas
pelo Doutor dominicano e de que Inigo, não fosse o diabo tecê-las, solicitou cópia
que conservou na sua posse. Ainda que nos admiremos, não demoraria muito tempo
para «o peregrino» deixar Montaigu e transitar com o estatuto de pensionista para
o colégio de Santa Bárbara onde partilharia a cela com Pierre Favre, Francisco de
Iasu Y Xavier e com o professor de filosofia Juan de la Peña.
O passado recente tinha que estar ainda bem vivo na memória de Loiola. Mesmo
assim o magnetismo da sua personalidade madura conseguia que as suas ideias se
inscrevessem indelevelmente na atenção de alguns dos seus jovens companheiros.
E ainda que admoestado por Juan de la Peña, preocupado com o facto dos alunos
mostrarem maiores preocupações com a salvação das almas do que com a continu-
ação dos estudo, o zelo de Loiola porfiou em aumentar o número de prosélitos. O
reitor Diogo de Gouveia secundou o castigo público que lhe propuseram. Ao som
da campana tangida, todos os alunos do colégio se encaminharam para a refeitório
onde não demoraram a entrar os professores com a vergasta na mão. O espectáculo
dos açoites iria começar. Tudo estava preparado para a humilhação pública de um
homem feito e com a cabeça já laureada por algumas cãs.
Na sua dupla finalidade, o castigo serviria de exemplo aos companheiros muito
mais jovens e fortalecia a autoridade dos mestres. Porém, a defesa de Inigo foi de
tal forma convincente que tocou o coração do reitor, o qual, lançando-se aos seus
pés em gesto de absoluta humildade, lhe pediu perdão por aquela afronta. Em 13 de
Março de 1533, já com mais de quarenta anos de idade, recebia na igreja de Sainte–
Geneviève o diploma que lhe conferia o título de mestre pela Faculdade das Artes de

12 Só em 1539 o francês seria acreditado como língua oficial.


300 Luís Alexandre Rodrigues

Paris. E seguidamente, em cerimónia académica de juramento dos estatutos, vestiria


a toga enquanto a cabeça seria coberta com o solidéu de quatro bicos ou birettum.
A partir daqui, esta insígnia de «mestre em artes» passaria a ser usada pelo navarro
e os pintores, ao incorporarem-na nos seus retratos oficiais, torná-la-iam famosa. O
competente diploma, selado em Maio do mesmo ano, além de certificar os estudos
realizados tem ainda a particularidade de ser o documento onde pela primeira vez
se atribuiu ao navarro o nome de Inácio de Loiola. Reparando na substituição de
Inigo por Inácio, alguns estudiosos não enjeitam a possibilidade de tal novidade
corresponder à expurgação de certas suspeitas que acompanhavam o nome Inigo
por poder lançar raízes em meio não cristão.
Ainda que a faculdade de Artes, beneficiando do ambiente criado pelo Humanismo,
tivesse logrado superiorizar-se às de Direito e de Medicina, a verdade é que Inácio
entendeu aprofundar os seus conhecimentos em teologia. Razão pela qual lançou
os olhos para a grande casa dos dominicanos, a mesma onde anos antes tinha sido
chamado pelo inquisidor para justificar as suspeitas que recaíam sobre alguns dos
seus comportamentos exacerbados. Durante este ano e meio de aperfeiçoamento,
o maior grau de racionalidade nas emoções não excluía sacrifícios frequentes como
quando se meteu na água fria de um rio junto da ponte onde havia de passar um
seu conhecido a quem queria salvar da perdição, por causa da relação luxuriosa que
mantinha com uma mulher.
Salvar as almas dos que andavam perdidos continua a ser a causa maior de Inácio
cujas minudências biográficas não pretendemos seguir em pormenor. Contudo, como se
lê no Memoriale de Pedro Favre, a reunião13 de Inácio de Loiola com seis companheiros,
alguns deles conhecidos do Quartier Latin14, no dia 15 de Agosto de 1534, quando
se celebra a Assunção de Nossa Senhora, na cripta da capela existente no Monte
Martírio, em Montmartre, nos arredores de Paris, deve ser assinalada como facto
relevante por corresponder aos fundamentos da Companhia de Jesus. Evidencie-se a
presença neste pequeno grupo de Simão Rodrigues, um dos estudantes portugueses
que D. João III enviou como bolseiros para o Colégio de Santa Bárbara. Da reunião
fazia parte a celebração de uma missa, rezada por Pedro Favre, sacerdote há quatro
meses, e em que os amigos de Inácio fizeram voto de repúdio pelos bens materiais,

13 In quello stesso anno, il giorno della Madonna d’agosto, tutti noi che avevamo la medesima determinazione e avevamo fatto
gli Esercizi (ad eccezione di maestro Francesco, che pur avendo gli stessi propositi gli Esercizi non li aveva ancora fatti), ce
ne andammo alla Chiesa di Santa Maria detta di Montmartre presso Parigi, a pronunciarvi ciascuno il voto di andare a
Gerusalemme entro un determinato tempo; dopo di esser ritornati di lì, di metterci sotto l’obbedienza del Pontefice Romano,
e ancora, dopo un certo giorno stabilito, lasciare partenti e reti, fatta eccezione del necessario sostentamento. Noi che allora
ci riunimmo per la prima volta eravamo Ignazio, maestro Francesco (Javier), io Favre, maestro Bobadilla, maestro Laínez,
maestro Salmerón e maestro Simone (Rodrigues). Jay non era ancora venuto a Parigi; invece maestro Giovanni (Codure) e
Pascasio (Broët) non erano ancora stati presi con noi. Nell’anniversario, i due anni seguenti, ritornammo tutti in quel luogo
con lo stesso proposito, per confermare la determinazione presa: e ci trovammo ogni volta ad averne un grande accrescimento
di spirito. In quegli anni, o meglio nell’ultimo, si erano già uniti a noi maestro Jay, maestro Giovanni Codure e maestro
Pascasio.
14 Deve notar-se, no entanto, que Pedro Favre e Francisco Xavier andavam três anos adiantados relativamente a

Inácio e quem desde 1530, Francisco Xavier era professor no colégio de Dormans-Beauvais. Por outro lado, os
títulos de Diego Laynez, Alfonso Salmeron, Bobadilla (Nicolas Alonso) e do português Simão Rodrigues tinham
sido obtidos nas universidades de Acalá de Henares e de Portugal.
O buril e paleta. Santo Inácio de Loiola nas pinturas da sacristia da igreja dos jesuítas, em Bragança 301

voto de castidade e voto de aprofundamento dos caminhos da espiritualidade. Neste


sentido, puseram-se de acordo em peregrinarem até aos lugares santos de Jerusalém.
Projecto que tinha a cidade de Veneza como pano de fundo visto ser o ponto de
reunião dos elementos que se tinham congregado na igreja de Montmarte, os mes-
mos visionários que esperavam zarpar do seu porto para, na Palestina, trabalharem
com denodo na salvação das almas dos infiéis. Com a ressalva de que não podendo
cometer o empreendimento ou, cometendo-o, lhes fosse vedada a possibilidade de
permanência na Terra Santa iriam prostrar-se aos pés de Sua Santidade para que
empregasse as suas vidas ao serviço da Igreja.
Desde 1534 que se sentava no trono de S. Pedro um descendente dessas famílias
aristocráticas italianas que, com a bandeira de Cristo alçada, durante gerações
se tornaram muito experimentadas em manobrar os assuntos da paz e da guerra,
defender interesses vários, interferir nas reuniões de altos dignitários eclesiásticos
e atemorizar cidades e adversários com o lançamento de excomunhões. Justifica-se
assim que Alessandro Farnese já aos vinte anos vestisse a púrpura cardinalícia. Mas
até à sua investidura, aos sessenta e sete anos de idade, a vida deste antigo estudante
da Universidade de Pisa não foi propriamente um modelo de santidade. O papa foi,
portanto, um homem do seu tempo. E nessa altura o ambiente moral na grande Roma
era comandado por padrões de assinalável depravação. O que equivale a dizer que
o coração da cristandade estava muito enfermo.
Adoptando o nome de Paulo III Farnese (1534-49), o pontífice que Ticiano retratou,
acabou por ceder aos enredos tecidos pelos embaixadores de D. João III nas câmaras
particulares, salões e jardins dos palácios romanos para sancionar a reformulação da
organização eclesiástica portuguesa. Mudanças de fôlego de que decorreu directamente
a institucionalização das dioceses Portalegre, Leiria e, em 22 de Maio de 1545, com a
assinatura da bula Pro excellenti apostolicae sedis, da de Miranda do Douro. Ao mesmo
tempo iam ganhando densidade as medidas que procuravam restituir ao papado o
seu antigo prestígio e fortaleciam a cadeia hierárquica do catolicismo. Em paralelo
movia-se combate às posições dos cismáticos.
Seria em semelhante contexto que os primeiros prelados do bispado transmontano
trabalharam para favorecer o estabelecimento dos padres da Companhia de Jesus em
Bragança. Em Junho de 1537, ainda durante o tempo de permanência na cidade dos
doges, o bispo Vicente Nigusanti conferiu ordenação presbiterial a Inácio, agora com
quarenta e seis anos de idade, a Xavier, a Lainez, a Bobadilla, a Simão Rodrigues e a
Codure. Dos primi patres apenas Salmeron, por contar apenas vinte dois anos, idade
inferior à requerida, não seria ordenado. No entanto Inácio entendeu que deveria
esperar um ano para rezar a sua primeira missa. À carga emocional deste momento
talvez devesse acrescentar-se a ambição íntima de o fazer num dos templos de Jeru-
salém. Intentos que o avanço turco, ao impedir a navegação para terras do Oriente,
frustrou. Seria em Roma, no Natal de 1538, que celebrou pela primeira vez, no altar
do Presépio, numa das capelas da basílica de Santa Maria Maior.
Pouco a pouco, Roma ia assumindo para os inacianos o papel de uma nova
Jerusalém. Como se o segmento vivencial iniciado com a aparição do apóstolo ao
302 Luís Alexandre Rodrigues

aleijado de Pamplona tivesse o seu corolário lógico com a sujeição dos membros
da Companhia à cátedra de Pedro. Associação que parece ter sido sancionada por
desígnios superiores aos limites do entendimento humano, e que ocorreram num
momento de pausa para oração que Inácio e os seus companheiros, Pedro Favre e
Diego Lainez, tomaram quando percorriam a estrada de Siena a caminho da cidade
papal (1537). O lugar chama-se La Storta e fica a poucos quilómetros de Roma. Em
1559, quando Inácio já não pertencia a este mundo, Diego Lainez, que viria a ser o
segundo Geral da Companhia, relataria, oralmente, como o «peregrino» lhe contou
que ali numa pequena e arruinada ermida foi sujeito de uma visão especial. No famoso
episódio, que tomou a designação do lugar em que ocorreu, Inácio teve a sensação
que o próprio Deus Pai, envolto numa luz claríssima, lhe inscreveu no coração as
palavras Ego vobis Romae propitius ero (Ser-vos-ei propício e favorável em Roma).
Nas Adhortationes (1559) Lainez não passou em claro o significado daquele
momento e as hesitações de Inácio na decifração da mensagem celeste. Todavia
interessa acrescentar que os relatos da mesma visão também evidenciam a presença
de Cristo com a Cruz às costas e as palavras que o Padre Eterno lhe disse: «Quero
que recebas este como teu servidor». Em resposta, o próprio Cristo com rosto afável
declarou ao visionário: «Quero que me sirvas». E se na espiritualidade deste momento
parece encontrar-se a génese do nome «Companhia de Jesus» para a congregação que
se constituía, salientem-se igualmente, acerca do episódio de La Storta, as impressões
de Lainez por confirmarem os testemunhos que o português Luís Gonçalves da
Câmara reteve directamente da boca do próprio Inácio de Loiola no Verão de 1553,
que constam de Acta Patris Ignatii, texto também designado por Autobiografia. Luís
Gonçalves da Câmara organizaria ainda o Memoriale, conjunto de anotações que
nos dão a conhecer algumas opiniões e comentários de Inácio sobre diversos temas.
No episódio de La Storta deve também integrar-se o tempo de preparação que Inácio
tomou antes da sua primeira missa já que correspondeu à vontade de intensificar a
devoção a Nossa Senhora e às insistentes súplicas para que Maria, simbolicamente
tomada como porta do céu e medianeira entre Deus e os homens, facilitasse o contacto
de Inácio com o Redentor. A expressão mística de La Storta permitiria ainda caldear
a Companhia como organização estruturada, tanto mais que se tornaram para todos
muito inteligíveis as razões pelas quais o Nome de Jesus devia não somente intitular
mas ainda configurar os propósitos e a dinâmica da nova Sociedade.

Digitus Dei est hic


Quando entrava em Roma o coração de Inácio apertou-se porque os seus olhos
não vislumbravam nada mais do que o casario com as janelas fechadas. Portanto, os
comentários com os companheiros centravam-se nas incertezas do futuro. Receios
que não tardariam a ser dissipados já que os obstáculos que iam surgindo não demo-
ravam a ser ultrapassados sem dificuldades de monta. A começar pelas facilidades
de instalação entre 1537 e 1538 numa pequena casa situada no monte Pincio. Mas
O buril e paleta. Santo Inácio de Loiola nas pinturas da sacristia da igreja dos jesuítas, em Bragança 303

o reconhecimento da Companhia de Jesus abria os corações dos homens. Por isso


a Sociedade se mudou para outro edifício situado perto do Tibre, à Ponte Sisto e
depois para o casarão que ficava ao lado da antiga Torre de Melangino (via Delfini).
Afinal as janelas não estavam assim tão fechadas. Em meados de Novembro de 1540
a concessão por Paulo III ao padre Pedro Cadacio, que ia entrar para a Companhia,
da paróquia de Santa Maria de la Strada, equivalia a dotar os regulares com igreja
própria. Aqui estiveram até à consagração, em 1584, do templo de Gesu, mecena-
ticamente patrocinado pelo cardeal Farnese, e que, sob diversas formas, foi modelo
que iluminou muitas fábricas em variadas nações.
Ao mesmo tempo que a Companhia supria algumas carências elementares também
encontrava maior apaziguamento nos espíritos que viam muitas desvantagens para
a igreja através do reconhecimento e institucionalização de novas ordens religiosas.
Por ser um dos cardeais mais irredutíveis, e um dos que mais pugnava pela correcção
das congregações já existentes, Bartolomei Giudiccioni é bom exemplo da tendência
dominante. Mas a influência do rei português D. João III e de Margarida de Áustria
parece ter sido decisiva para mudar o teor das discussões e a estratégia de reenqua-
dramento doutrinário. No novo contexto, quando o coração do cardeal Giudicconi
foi tocado por «movimentos extraordinários» que foram capazes de inclinar a sua
razão perante o que sentia ser a vontade divina, a frase Ego vobis Romae propitius erro
ganharia todo o sentido e amplitude. Tais flexões, reflectindo os novos contornos da
estratégia reformista, iam ao encontro do entendimento de Sua Santidade a quem se
atribui a frase Digitus Dei est hic (este é o dedo de Deus) para significar a sua visão
de um novo destino da igreja sendo que as metas propostas muito dependeriam da
acção da nova congregação. Em Novembro de 1538, os prosélitos da Companhia,
apresentando-se a Paulo III, recebiam ordens para ficarem em Roma e aí trabalha-
rem. Pouco tempo depois, em Setembro de 1540, a bula Regimini Militantis ecclesiae
legitimava a Sociedade de Jesus.

A lição visual
Após um longo período em que o prestígio e a capacidade de influenciar se
tornaram num manto que cobria a Europa e as partes onde os europeus tinham
interesses, suceder-se-ia a desdita. A proscrição dos regulares, ocorrida na segunda
metade o século XVIII quando a vontade de Pombal fazia lei, determinou que o ideário
teológico e figurativo que, no tempo longo, prestigiou a Companhia de Jesus sofresse
apoucamento. E a mudança da Sé de Miranda do Douro para Bragança, ocorrida
pouco tempo depois, saldar-se-ia no reforço de tal hostilidade. Vaga, a antiga igreja dos
jesuítas seria adaptada às novas funções diocesanas onde pontificava o bispo D. Frei
Aleixo de Miranda Henriques que encabeçou, como algumas pastorais testemunham,
um empenho militante na causa anti-jesuítica. Nesta altura, o gosto dos tectos pintados
concedia graças às perspectivas que elaboradas arquitecturas abriam para as lonjuras
celestiais, onde se elevavam imagens devocionais e se viam meninos brincando entre
304 Luís Alexandre Rodrigues

vistosas e coloridas guirlandas. Portanto, a fortuna do procedimento tradicional que


se comprazia em organizar o discurso narrativo de sentido hagiográfico numa sucessão
de caixotões tenteava-se ao arrepio da assunção das tendências artísticas que mais
recentemente tinham penetrado o panorama das artes em Portugal.
A lhaneza de espaço e as aberturas de regular lume justificavam a utilização da
sacristia onde as tenebristas cenas continuavam a soletrar a lição edificante que
consagrava traços biográficos de um obstinado a que, agora, se concedia pouca
atenção. Utilização continuada porque o projecto de uma nova catedral, ao concitar
todas as energias, fechava a mão a despesas evitáveis. Talvez por isso o programa
narrativo da sacristia, delimitado por molduras e quartelões de talha dourada, tenha
sido mantido in situ. Sofreria as consequências do alagamento do piso superior, da
negra fumaça de um incêndio, de despudoradas aplicações de verniz, de repintes e
até, provavelmente, mudanças na disposição primitiva das tábuas. Mesmo assim,
pela intenção que presidiu à sua encomenda, pelo seu significado artístico e ainda
pela fidelidade à publicação romana de 1609, urge valorizar este conjunto pictórico.
Ainda que não se conheça o nome do pintor, que pode surgir quando se proceder
a alguma operação de limpeza, nem a data exacta da sua execução, nem a razão ou
razões que determinaram a eleição do programa para a sacristia e não para a nave
da igreja. Além da informação visual para padres e fiéis, a prodigiosa vida de Inácio
representava uma lição permanente para os estudantes do Colégio anexo à igreja.
Talvez o caso da igreja lisboeta de S. Roque, em cuja sacristia se viam desde 1619
pinturas legendadas que glosavam episódios biográficos de Inácio e de Francisco
Xavier, tenha inspirado os regulares de Bragança. Parece, por isso, importante uma
anotação tomada em Dezembro de 1640 pelo padre Luís de Brito, na ocasião em que
passava as responsabilidades da instituição bragançana para o novo reitor, o padre
João Freire, e dando conta da ocorrência de algumas obras mencionava também a
realização de «dezasseis paineis, (dos quais) quatro servem capella15».
Dezassete anos mais tarde, seria a vez do reitor João da Rocha, registar que a área
da sacristia tinha sido duplicada e de especificar que «toda a sancristia se ornou no
tecto com pintura, e com muitos painéis que não tinha16». Uma outra referênia surgirá
nas «Litterae annuae», correspondentes ao período 1700-1710, quando além de obras
na sacristia, também se apontava a existência de «um conjunto de páineis pintados
com cenas da vida de Santo Inácio, visando a recreação e alimento espiritual de
quem as contemplava17». Nesta medida, o ano de 1657 parece ter sido determinante
para a concretização de um empreendimento pictórico em que, em comparação com
as estampas que lhe serviram de orientação, o autor mostrou alguma incapacidade
para afirmar o valor psicológico dos retratos, limitações em transmitir vivacidade
de espírito e de atitude aos protagonistas, e incompreensão das subtilezas de luz
para fazer cintilar as paisagens onde se apagavam os elementos arquitectónicos que
continuavam a testemunhar a força das referências clássicas.
15 MARTINS, 1994: 638.
16 MARTINS, 1994: 651.
17 MARTINS, 1994: 678.
o buril e paleta. Santo Inácio de Loiola nas pinturas da sacristia da igreja dos jesuítas, em Bragança 305

Figura n.º 1 – Sacristia da igreja dos jesuítas, em Bragança

Figura n.º 2 – Inigo. Cabelo longo e traje Figura n.º 3 – Folha de rosto de Vita Beati P. Ignatii
mundanal com espada Loiolae Societatis Jesv Fvndatoris
306
Luís Alexandre Rodrigues

Figura n.º 4 – Sacristia da igreja dos jesuítas, em Bragança. Alçado


o buril e paleta. Santo Inácio de Loiola nas pinturas da sacristia da igreja dos jesuítas, em Bragança 307

Figura n.º 5 – Sacristia da igreja dos jesuítas, em Bragança. Caixotões do tecto


308 Luís Alexandre Rodrigues

Bibliografia
BAILEY, Gauvin Alexander, 2003 – Between Renaissance and Baroque. Jesuit art in Rome, 1565-1610.
Toronto: University of Toronto Press.
LACOUTURE, Jean, 1993 – Os Jesuítas. Lisboa: Editorial Estampa.
MARTINS, Fausto Sanches, 1994 – A arquitectura dos primeiros colégios jesuítas de Portugal: 1542-
1759I (Dissertação de doutoramento apresentada à Faculdade de Letras do Porto), vol. I. Porto.
PACHECO, Francisco, 1990 – El arte de la pintura. Madrid: Ediciones Cátedra.
PFEIFFER, Heinrich, 2005 – “The iconography of the Society of Jesus’’, in O’MALLEY, John,
BAILEY, Gauvin Alexander (orgs.) – The jesuits and the arts. Filadélfia, pp. 201-228.
RIBADENEIRA, Pedro de, 1609 – Vida dos santos extravagantes.
RODRIGUES, Luís Alexandre, 2005 – ‘’Subsídios iconográficos da cultura de massas. As festas
realizadas em Bragança pela Companhia de Jesus na sequência das canonizações de Santo
Inácio de Loiola e de S. Francisco Xavier’’. Brigantia, vol. XXV, n.º3/4. Bragança, pp. 3-32.
VITA Beati P. Ignatii Loiolae Societatis Iesu Fundatoris, 1609. Roma.
Artes Mecânicas
– Enfermaria e Botica em espaços Beneditinos
Manuel Engrácia Antunes

Exemplos de artes decorativas ao serviço dos cuidados de saúde nos “estados” de


unidades no Norte de Portugal
1. Cura de enfermos na Regra e na Congregação de S. Bento de Portugal
2. Símplices e compostos oficinais
3. Vasos, alfaias e instrumentos

1. Cura de enfermos na Regra e na Congregação de S. Bento de Portugal

1.1. Na Regra
A Regra de S. Bento dedica, ao longo de muitos dos seus capítulos um cuidado
muito especial às enfermidades1, aos enfermos2, e aos cuidados que lhes deviam ser
dispensados nos Mosteiros da Ordem Beneditina, considerando quer as enfermidades
do corpo – infirmitas corporem, quer as alma – infirmitas animam.
Um deles, o capítulo trinta e seis será mesmo titulado – De Infirmis Fratribus3.

1 RÈGLE de Saint Benoît, 1987. Alguns exemplos de referências a enfermidades da alma: p. 25, 26, cap. 27 – Qualiter
debeat Abbas sollicitus esse circa excommunicatos – Infirmitati compassus est. Alguns exemplos de referências a enfer-
midades do corpo: p. 33, 34, cap. 34 – Si omnes aequaliter debeant necessária accipere – infirmitatum consideratio […]
humilietur pro infirmitate; p. 38, 39, cap. 39 – De mensura cibus – propter diversorum infirmitatibus; p. 124, 125, cap.
55 – De vestiario vel calceario fratrum – Abbas consideret infirmitates. Alguns exemplos de referências a enfermidades
físicas e morais: p. 160, 161, cap. 72 – De zelo bono quod debent monachi habere – infirmitates suas tolerent.
2 RÈGLE de Saint Benoît, 1987. Alguns exemplos de referências aos enfermos de enfermidades do corpo e do

espírito: p. 22, 23, cap. 4 – Quae sunt instrumenta bonorum operum – infirmum visitare; p. 80 a 83, cap. 31 – De
cellarario monasterii qualis sit – Infirmorum, infantum; p. 96, 97 – cap. 40 – De mensura potus – infirmorum contuentes
imbecillitatem; p. 98 a 101 – Ut post completorum nemo loquatur – quia infirmis intellectibus; p. 110 a 113, cap. 48 – De
opera manuum cotidiana – infirmis aut delicatis. Alguns exemplos de referências aos enfermos de enfermidades da
alma: p. 74, 75 – Qualiter debeat Abbas sollicitus esse circa excommunicatos – infirmarum animarum; p. 76 a 79 – cap.
28 – De his qui saepius correpti emendare noluerint – salutem circa infirmum; p. 144 a 149 – cap. 64 – De ordinando
Abbate – infirmi non refugiant.
3 RÈGLE de Saint Benoît, 1987: 88 a 91 – De infirmis fratribus, com inúmeras referências aos enfermos : infirmorum cura

ante omnia ; infirmus fui et visitastis; infirmi considerent in honorem; infirmis sit cella; balnearum usus infirmis; carnium
esus infirmis; ne […] negligantur infirmi.
310 Manuel Engrácia Antunes

A edição da Regra de 15864, sob a égide da recém criada Congregação de São


Bento do Reino de Portugal, diz o seguinte nesse capítulo trinta e seis, quanto aos
irmãos enfermos:
Sobretudo e antes de todas as coisas s há-de ter conta com os enfermos e muito particular
cuidado deles. E assim os hão-de servir como se servisse a Cristo. Porque ele disse: ‘Fui enfermo
e visitaste-me’ e ‘o que fizeste a um destes pequenos, a mim o fizestes’ (Mateus, 25). Mas os
enfermos considerem que por honra de Deus os servem, e com suas demasiadas sobejidões não
entristeçam os irmãos que os servem. Os quais contudo, devem ser sofridos com paciência, porque
dos tais se alcança maior prémio. Assim, que o Abade tenha muito grande cuidado que não
haja negligência em a cura dos enfermos; para os quais haja um aposento apartado e deputado;
e tenham enfermeiro, temente a Deus, diligente e solícito; que os sirva. Os banhos dêem-se aos
enfermos quando tiverem deles necessidade; porém aos sãos, e particularmente aos mancebos
permitam-se poucas vezes. O comer carne também se permita aos enfermos, e aos muito fracos
para que possam convalescer. E como se acharem melhor (segundo o costume) ninguém mais a
coma. Tenha o Abade muito grande cuidado que nem o celeireiro, nem os que servem os enfermos
sejam descuidados e negligentes em o que toca aos enfermos, porque sobre ele carrega o que os
seus discípulos tiverem de culpa5.
Ao abordar no capítulo vinte e oito o que fazer com os irmãos que, embora muitas
vezes castigados se não emendassem, o texto da Regra, recorre a uma linguagem
metafórica inspirada na medicina:
[…] se ainda assim se não emendar […] então o Abade faça o que o sábio médico, se por
branduras, se unguentos de exortações, se mezinhas das santas escrituras, se enfim cautério de
excomunhão, ou feridas de açoites […] para que o Senhor que tudo pode, obre saúde em o
irmão que está enfermo6.

1.2. Na Congregação de S. Bento do Reino de Portugal

1.2.1. Exemplos em Actas de Capítulos Gerais e Privados e Juntas Gerais


Na documentação consultada, as referências aos cuidados com a saúde, a cura dos
enfermos surgem desde o final do séc. XVI. Por exemplo no Capítulo Geral reunido
no Mosteiro de Pombeiro em 15847:
Haja enfermeiros que tenham o necessário […] porquanto os mais dos nossos Mosteiros estão
fora das cidades os doentes não podem ser tão bem providos de mezinhas e coisas necessárias da
botica, se manda aos Prelados pela obediência que dentro em oito meses ordenem oficial boticário
enfermeiro que tenha em seu poder as coisas necessárias para os tais enfermos, a saber, açúcar
rosado, marmeladas, óleos e águas destiladas a as mais coisas necessárias para doentes e mal
dispostos. E que por nenhum caso os Prelados tenham estas e outras semelhantes em seu poder.
4 REGRA do Glorioso Patriarcha Sam Bento, 1586.
5 REGRA do Glorioso Patriarcha Sam Bento, 1586, f. 27v. e 28.
6 REGRA do Glorioso Patriarcha Sam Bento, Lisboa, 1586, f. 24.
7 ARQUIVO do Mosteiro de São Bento de Singeverga, Capítulo Geral de 1584, Bezerro n.º 1, f. 7v. e 8.
Artes Mecânicas – Enfermaria e Botica em espaços Beneditinos 311

Se dê salário ao médico […] dentro em tempo de seis meses cada Mosteiro tenha médico
assalariado para que na cura dos religiosos enfermos não haja faltas e detrimento.
O Capítulo Privado reunido em Lisboa em 1589 abordaria uma distribuição de
especiarias pelas casas da Congregação8:
Daqui em diante se dê às casas a metade da especiaria que a cada uma cabe, e a outra
metade fique no Mosteiro de Lisboa enquanto não tiver renda suficiente. E o que assim vem a
cada a casa ao todo é o seguinte:
De pimenta 12 arráteis, de cravo 6 arráteis, de canela 10 arráteis, de gengibre 4 arráteis,
de malagueta 5 arráteis, de incenso 6 arráteis. Isto é o que ao todo vem a cada casa. A metade
disto se dará às casas daqui em diante como dito é que vem a ser a cada casa: De pimenta
6 arráteis, de cravo 3 arráteis, de canela 5 arráteis, de gengibre 2 arráteis, de malagueta 2,5
arráteis, de incenso 3 arráteis.
Com efeito segundo um alvará do rei D. Sebastião de 23 de Dezembro de 1573,
três anos depois da Criação da Congregação Beneditina Portuguesa, as casas da
Ordem receberiam especiarias9:
[…] vendo eu como a Ordem de S. Bento se torna a reedificar nestes Reinos, e se acrescentam
neles casas da dita Ordem que de novo se fundam, e mais número de religiosos nelas que nas
que dantes havia e com exemplo virtude, e reformação querendo dar a isso favor, e ainda, e
porque nos mosteiros da dita Ordem tenham mais obrigação e encomendarem a Nosso Senhor
o próspero estado de meus Reinos e especialmente das coisas da Índia , hei por bem de lhes
fazer mercê por esmola que do Primeiro de Janeiro deste ano de 73 em diante haja cada um
dos Mosteiros da dita Ordem que agora são e pelo tempo forem a especiaria abaixo declarada
para despesa das ditas casas pela muita parte do ano que comem pescado e não carne por sua
Regra. A saber: A casa de São Bento da Saúde que se agora fundou junto da cidade de Lisboa
haverá em cada um ano e o dito tempo em diante 20 arráteis de pimenta, e as outras casas
da dita Ordem do Reino haverão cada uma 12 arráteis da dita pimenta. E assim a dita casa
como cada uma das outras haverão 6 arráteis de cravo, e 10 arráteis de canela, e 4 arráteis de
gengibre, e de malagueta 5 arráteis, de incenso 6 arráteis quando o houver na casa. Pelo que
mando ao provedor e oficiais da casa da Índia que do dito tempo em diante façam dar a cada
uma das ditas casas a especiaria acima declarada […].

1.2.2. Nas Constituições

1.2.2.1. As Constituições impressas de 1590


O seu capítulo quarenta e dois trata:
Da cura dos Enfermos e qualidade dos Enfermeiros
Os Prelados conforme a obrigação que têm acerca das almas dos seus súbditos, assim também
não se devem descuidar da cura, e consolação dos enfermos, regendo-se pelo que nosso Padre

8 ARQUIVO do Mosteiro de São Bento de Singeverga, Capítulo Privado de 1589, Bezerro n.º 1, f. 6v.
9 ARQUIVO do Mosteiro de São Bento de Singeverga, Caixa 1, n.º 42 c.
312 Manuel Engrácia Antunes

São Bento diz na sua Regra, a saber: que ante todas as coisas, e sobre todas elas, os Prelados
tenham cuidado da cura dos doentes.
E pois estando os religiosos sãos lhes mandam que trabalhem, assim estando enfermos os
deve mandar curar, e visitá-los muitas vezes, consolando-os e animando-os, e saber deles se
padecem alguma necessidade, e se há negligência na sua cura. O Prelado eleja um religioso que
seja caritativo, paciente, humilde, e compassivo, para que tenha cargo dos enfermos, aos quais
não dê mais que o que o Físico ordenar em seu tempo, porque conceder ao enfermo seus apetites,
não é caridade, senão crueldade. Em cada casa mandamos pela obediência que haja alguma
maneira de botica, destilando em seu tempo águas, e tendo azeite, canafístola, e alguns xaropes,
que algum boticário poderá fazer.
Porque as casas que estão fora de povoado em que haja físico e botica têm necessidade de
estarem providas de coisas semelhantes, não falte açúcar, amêndoas, passas, e todo o necessário
para ajudas10.
E todas as casas tenham médico assalariado.
Haja roupa de cama, panos de cabeça, camisas, lençóis, travesseiros, toalhas e escapulários
de dormir sem capelo para os enfermos, porque tudo é necessário.
Comprem-se vidros, e louça, que somente sirva para a enfermaria.
O que tudo se manda aos Prelados sob pena de suspensão de seu cargo por 3 meses.

1.2.2.2. As Constituições impressas de 1629-3211


No livro V, Constituição III, Capítulo V, artigo segundo trata:
Do Enfermeiro do Mosteiro
O Ofício de Enfermeiro é ter cuidado de tudo o necessário para cura dos enfermos, a ele
mandamos se entregue tudo para que tenha debaixo de chave e dê conta. E se os enfermos forem
muitos, dê-se-lhe ajudador um dos mais necessários.
Em cada mosteiro se apreste uma enfermaria para curarem os doentes, na qual conforme
ao número de monges, haverá leitos ornados religiosamente, e tudo o mais necessário ao serviço
dos enfermos, ou seja de lã ou de linho, a saber lençóis, colchões, cobertores, panos de cabeça,
toalhas e guardanapos, colheres de prata, e vasos de barro e vidro […]
Prato de estanho e tigelas de chumbo para as sangrias, e alambique para destilar águas de
flores e ervas medicinais, que o enfermeiro mandará fazer em seu tempo, colhendo […] as que
forem necessárias para mezinhas e guarda-las-á na enfermaria.
Mandamos que na enfermaria haja água rosada, água de flor, e outras, óleo e azeite rosado,
açúcar, passas de uva e ameixas, amêndoas, marmeladas, açúcar rosado e outros doces que o
enfermeiro pedirá ao celeireiro guardando tudo…

10 BLUTEAU, R. – Vocabulario Portuguez e Latino. Disponível na internet em: <http//www.ieb.usp.br/online/índex.


asp> – ajudas: remédio fluido para ajudar a natureza para desobstruir a região inferior do ventre. É uma lavagem
do ventre com seringa. Serve para limpar, provocar e facilitar a saída, e amolentar a dureza dos excrementos. Para
correger destemperanças, abrandar dores, matar bichas nos intestinos, etc. Suetónio também chama clister ao
instrumento com que se deitam as ajudas.
11 A.D.B., Ms. 159, f. 242 a 244.
Artes Mecânicas – Enfermaria e Botica em espaços Beneditinos 313

1.2.3. Nos “estados”


Os relatórios trienais de cada mosteiro para serem lidos em Capítulo Geral,
vulgarmente designados por “estados”, abrem com uma rubrica designada – “estado
em que ficou a casa”, em que se regista a situação que encontrará o novo Abade,
e acaba com outra rubrica designada “estado em que fica a casa”, registando o que
deixa o Abade cessante.
A Congregação iria estabelecer a obrigatoriedade de o Abade cessante deixar
sempre garantidos alguns artigos, nomeadamente respeitando à cura dos enfermos,
monges, criados, pobres, e mesmo dos irracionais.
Para além destas rubricas, as relativas ao livro do gastador, às obras, e ao livro da
enfermaria também registam dados respeitantes aos cuidados com a cura dos enfermos.
Antes de apresentar alguns dados entre 1653 e 1783 respeitantes ao mosteiro de
Carvoeiro, registam-se outros exemplos do séc. XVII, que respondem à obrigatoriedade
de manter uma reserva de produtos naturais e de compostos oficinais para a cura
dos enfermos.
No mosteiro de Pendorada em 1629, ficou na enfermaria uma caixa de marmelada,
dois arráteis de açúcar, cinco arráteis de uvas passas, um alqueire de ameixas velhas
e uma arrátel de amêndoas, vidros de águas e azeite e vinagre rosado, e fica na
enfermaria passas e ameixas e açúcar, azeite rosado, vinagre, águas e canafistula12.
No mosteiro de Rendufe em 1662, ficou meia arroba de açúcar na enfermaria, 3
panelas de abóbora ralada, e 2 caixas de perada, e uma de marmelada; na arca do
depósito meio arrátel de açafrão, nove arráteis de pimenta, e meia de canela13. E fica
na enfermaria uma caixa de cidrada, outra de pessegada, 3 porcelanas de marmelada,
17 arráteis de açúcar, umas poucas de ameixas, e 2 garrafas para águas; fica no depósito
uma quarta e meia de açafrão pouco mais ou menos, fica uma pouca de pimenta14.
Em 1665, fica na enfermaria uma porcelana de pessegada e 2 de marmelada, e um
açafate de passas15.
No mosteiro de Basto em 1629, ficou na enfermaria 7 vidros de águas destiladas,
açúcar, amêndoas, passas, ameixas e 11 arráteis de marmelada16.
No mosteiro de Pombeiro em 1629, ficou na enfermaria, uma caixa de marmelada,
2 arráteis de açúcar, 5 arráteis de uvas passadas, 1 alqueire de ameixas velhas, 1
arrátel de amêndoas, vidros de águas e azeite e vinagre rosado, e fica passas e ameixas,
açúcar, azeite rosado, vinagre, águas e canafistula17.
No mosteiro de Santo Tirso em 1653, fez-se um armário grande para a enfermaria,
e porque está ainda por acabar em casa do oficial, ficam as coisas necessárias para
a prover na mão do enfermeiro18. Em 1719, puseram-se umas guarda-roupas e se

12 A.D.B., CSB, 101, 1629, f. 1, e 10v.


13 A.D.B., CSB, 116, 1662, f. 1v.
14 A.D.B., CSB, 116, 1662, f. 10.
15 A.D.B., CSB, 116, 1665, f. 8.
16 A.D.B., CSB, 132, 1629, f. 1.
17 A.D.B., CSB, 121, 1629, f. 1 e 10v.
18 A.D.B., CSB, 109, 1653, f. 11v.
314 Manuel Engrácia Antunes

pintaram, à porta do hospício para se guardarem as coisas da enfermaria e dispensa19.


As grandes obras da nova botica de Santo Tirso estão registadas em pormenor nos
estados de 174620.
No mosteiro de Tibães em 1650, fica na enfermaria um pote de azeite rosado, e
no depósito cravo, pimenta e canela em abundância21.
Outros exemplos nos “estados” do mosteiro de Santa Maria de Carvoeiro:
165322
[estado em que fica a casa]
[…] Uma frasqueira de seis frascos, quatro dos quais ficam cheios de água de flor e dois
de água de rosa. Mais um frasco de azeite rosado, outro de vinagre rosado. Três caixas de
marmelada, e oito arráteis de açúcar para doentes e pobres porquanto este mosteiro é botica
neste intorno. Ficam duas canadas de mel para o mesmo.
166523
[estado em que fica a casa]
[…] Fica na enfermaria uma colher de prata […].
167124
[obras]
[…] Comprou-se uma seringa de latão
Aos pobres geralmente se acudiu não só com o ordinário, mas também com o açúcar e mais
doces […]
[estado em que fica a casa]
[…] Fica azeite e vinagre rosado e uma garrafa de água de flor. Fica uma panela com
ameixas doces e uma caixa com marmelada para os pobres […].
171325
[estado em que fica a casa]
[…] Fica na cela dos Prelados uma frasqueira […].
173126
[obras]
[…] Solhou-se a casa da barbearia […] e pôs-se um guardaroupa para recolhimento das
alfaias da enfermaria […].
175227
[livro da enfermaria]
[…]

19 A.D.B., CSB, 109, 1719, f. 14.


20 A.D.B., CSB, 110, 1746. CORREIA, 2000: 83-88; ANTUNES, 2007: 655-658.
21 A.D.B., CSB, 112, 1650, f. 8 e 9.
22 A.D.B., CSB 123, 1653, f. 10.
23 A.D.B., CSB 123, 1665, f. 9.
24 A.D.B., CSB 123, 1671, fs. 7 e 8.
25 A.D.B., CSB 123, 1713, fs. 2 e 2v.
26 A.D.B., CSB 123, 1731, f. 7.
27 A.D.B., CSB 123, 1752, f. 10.
Artes Mecânicas – Enfermaria e Botica em espaços Beneditinos 315

Leites – 1.400 réis


Aguardente – 340 réis
ameixas, amêndoas doces e papoulas – 980 réis
açúcar mascavado – 1.240 réis
receitas – 43.788 réis
175528
[livro da enfermaria]
ameixas e papoulas – 620 réis
água de Inglaterra – 15.080 réis
médicos e cirurgiões – 14.800 réis
bálsamo católico, espírito benedictino e outras águas e licores – 2.840 réis
vidros – 240 réis
leites – 2.810 réis
açúcar rosado e mascavado – 510 réis
[ilegível]
Receitas – 44.190 réis
Portadores – 700 réis
gastos de monges que foram a caldas e banhos – 54.134 réis
[obras]
Enfermaria - Puseram-se nesta oficina de novo
16 garrafas com várias medicinas
1 frasco
4 vidros de diversos remédios
1 clister de estanho
1 prato de estanho com 4 sangradeiras
1 cuspideira
1 serviço de estanho
1 caldeira de cobre.
175829
[livro da enfermaria]
Cirurgiões – 1.440 réis
unguentos e mais remédios – 2.050 réis
ameixas e papoulas – 240 réis
açúcar – 1.010 réis
água de Inglaterra – 2.000 réis
ao boticário pelas receitas – 11.480 réis
176130
[livro da enfermaria]
28 A.D.B., CSB 123, 1755, fs. 10v., e 14.
29 A.D.B., CSB 123, 1758, f. 9v.
30 A.D.B., CSB 123, 1761, f. 11.
316 Manuel Engrácia Antunes

papoulas e violetas – 470 réis


açúcar mascavado – 1.160 réis
cirurgiões – 800 réis
banhos e funeral – 22.592 réis
receitas – 23.180 réis.
176431
[obras]
na enfermaria se pôs uma bacia grande para banhos.
176732
[livro da enfermaria]
caldas e banhos – 35.340 réis
receitas da comunidade e pobres – 24.754 réis
vidros e vasos – 680 réis
gastos – 615 réis
cirurgiões – 6.440 réis
provimento da enfermaria – 2.350 réis
[obras]
na enfermaria se puseram
2 garrafas
1 dúzia de ventosas
1 ourinol
2 serviços e um camocho para os mesmos
2 ataduras
177333
[livro da enfermaria]
Açúcar – 2.960 réis
Aguardente – 180 réis
leite – 810 réis
caldas e banhos – 62.910 réis
receitas – 16.765 réis
177634
[livro da enfermaria]
Açúcar – 2.070 réis
aguardente e miudezas – 1.390 réis
caldas e banhos – 60.260 réis
receitas e portadores – 31.420 réis

31 A.D.B., CSB 123, 1764, f. 12v.


32 A.D.B., CSB 123, 1767, fs. 9v. e 13.
33 A.D.B., CSB 123, 1773, f. 8v.
34 A.D.B., CSB 123, 1776, f. 8v.
Artes Mecânicas – Enfermaria e Botica em espaços Beneditinos 317

177935
[livro da enfermaria]
Açúcar – 3.600 réis
Louça – 130 réis
Aguardente – 1.290 réis
Leite – 235 réis
Caldas – 27.390 réis
Gastos – 2.220 réis
receitas da comunidade e pobres – 37.840 réis
[obras]
comprou-se uma bacia de latão grande para a enfermaria
178036
[livro da enfermaria]
Receitas – 39.372 réis
miudezas e portadores – 7.620 réis
açúcar – 2.200 réis
caldas – 47.498 réis
aguardente – 1.150 réis
178337
[livro da enfermaria]
Receitas – 49.925 réis
banhos e caldas – 135.995 réis
açúcar – 2.750 réis
miudezas – 2.760 réis
[obras]
na enfermaria se puseram umas balanças e vários remédios e miudezas.

2. Exemplos de “compostos oficinais”


Na sua obra sobre farmacopeia publicada em 177238, Frei João de Jesus Maria,
administrador da botica do mosteiro de Santo Tirso, enumera uma série de compostos
oficinais. Por exemplo:
Ácido vinoso exaltado
Águas oficinais ou destiladas
Espíritos oficinais
Sais oficinais

35 A.D.B., CSB 123, 1779, f. 8v. e 11v.


36 A.D.B., CSB 123, 1780, f. 8v.
37 A.D.B., CSB 123, 1783, f. 9v. e 12.
38 DIAS, 2007: 77. MARIA, 1772.
318 Manuel Engrácia Antunes

Óleos em geral
Cozimentos
Clisteres e injecções
Colírios
Emulções
Infusão, tinturas
Tinturas essenciais e elixires
Sucos áqueos oficinais
Mucilagens
Extractos sólidos
Bálsamos
Misturas artificiais
Xaropes
Julepes
Conditos, conservas e polpas
Looches
Gelatinas, mucilagens e miva
Confeições, electuários e opiados
Rotulas
Troquiscos
Pílulas
Pós
Emplastros, cerotos, dropaces
Cataplasmas
Unguentos e lineamentos
Nas breves referências incluídas nos “estados” à provisão das enfermarias a modo
de boticas nos mosteiros beneditinos dos montes, encontramos referências a vários
destes compostos oficinais:

Ácido vinoso exaltado39


Trata-se segundo parece, de um vinoso fluido, onde se incluem os vinagres
simples, compostos, e destilados. Entre eles o “vinagre rosado” – acetum rosarum
commune – citado com frequência na documentação consultada. Este vinagre era
feito por infusão de flores secas de rosas vermelhas, em vaso de vidro, durante 20
dias. Serviam, tomados com os alimentos, ou misturados com medicamentos para
detergir, temperar e excitar o apetite de comer, para suspender os vómitos, para domar
as dores provenientes de humores acres, sendo eficazes nas escaldaduras abrandando
as dores e não deixando empolar.

39 MARIA, 1772: 181-185.


Artes Mecânicas – Enfermaria e Botica em espaços Beneditinos 319

Águas oficinais ou destiladas40


Trata-se segundo parece de um licor. Aqui se inclui a água rosada – aqua rosarum
– presente na documentação consultada. Esta água era usa internamente, com os
cordiais temperantes e confortantes, e externamente com os colírios, emborcações
e defensivos temperantes e resolutivos.

Espíritos oficinais41
Trata-se segundo parece de um licor aquoso ou oleoso. Neste grupo se inclui a
aguardente – spiritus vini, ou aqua vitae - simples espírito de vinho vulgar. A agua
ardente, usada internamente, era própria para roborar os espíritos vitais, confortar
o estômago, aquecer as entranhas, consumir as fleumas, discutir os flatos, vigorar o
coração, facilitar o círculo do sangue, e restaurar as forças. Era a conselhável nas
vertigens, síncopes, e letargos provocados por causa fria. Em uso externo, tinha
utilidade nas contusões, feridas, queimaduras, ersipelas, dores frias, e para roborar
as partes paralíticas. Desaconselhada aos meninos e ás pessoas esacndecidas, secas,
melancólicas, adustas, biliosas, e sulfúreo-sanguíneas.
E a chamada água da Rainha da Hungria – aqua Reginae Hungariae correcta, ou
spiritus rorismarinii – feita a partir de flores de alecrim com aguardente. Era aconse-
lhável nos letargos, apoplexia e paralisia. Também útil nos flatos, para o estômago,
cabeça e mais partes do corpo.

Óleos42
Trata-se de licor untuoso, ou gorda substância. Entre eles figura o azeite rosado
– oleum rosatum – presente na documentação. Era feito com azeite e rosas vermelhas
ou pérsicas maceradas por 8 dias. Recomendado para as dores – humedecendo-as,
refrigerando-as, abrandando-as, resolvendo-as, e dulcificando-as. Temperava as partes
inflamadas, o calor dos rins, e a cabeça.

Bálsamos43
Trata-se de um resinoso licor odorífero. Entre eles, o bálsamo católico – balsamum
catholicum – referido na documentação consultada. Era este bálsamo um especial
consolidante para as feridas feitas de qualquer modo, devendo ser seringado nas feridas
profundas, e posto em fios nas superficiais. Logo após a aplicação, dever-se-ia cobrir
com um pano dobrado molhado em partes iguais de aguardente e água de sabugueiro.
Encarnava, cicatrizava, impedia a gangrena. Curava as escaldaduras sem deixar sinal.
Tirava as bexigas. Recomendados nas cólicas, nas tosses, nas pleurizes. Recupera as
forças, robora o estômago. Fortifica os nervos, refirma as gengivas, rebate a dor de
dentes. Tem aceitação nas queixas dos olhos, e seca gonorreias. Untando as fontes
da cabeça rebate as enxaquecas, usando-se também nas encravaduras das bestas.
40 MARIA, 1772: 186-193 (tratado II).
41 MARIA, 1772: 214-220 (tratado II).
42 MARIA, 1772: 231-255 (tratado II).
43 MARIA, 1772: 306-310 (tratado II).
320 Manuel Engrácia Antunes

Xaropes44
Trata-se de um medicamento fluido ou extracto líquido, com uma consistência
tal, que lançadas algumas gotas sobre Pulido mármore ou tábua, não correm. Entre
eles o xarope de flores de papoulas – syrupus papaveris - . Era somnífero e bom para
dulcificar o acre dos humores. Com aceitação nas desinterias e hemorragias. Temperava
as tosses secas e catarrais.

Conditos, conservas e polpas45


Trata-se de uma consistência apta de se tomarem às colheres.
Conditos respeitam àquilo que, ou seja puré alimento, ou medicamento, adquire por
benefício da arte, com o adjunto do açúcar ou mel, suave gosto e longa perduração.
Conserva seria uma confecção com açúcar, para que possa por algum tempo
conservar-se incorrupta. As conservas capitais especializam-se: para a apoplexia, as
de alfazema, rosmaninho, salva e alecrim; para a paralisia, a de flor de calendula; para
a epilepsia, as de flor de tília e lírio convale, peonia e eufrásia famosa nas queixas dos
olhos; para as queixas do bofe, as de flores de tussilago, papoulas, violetas, folhas de
avenca, etc; por cordiais se reconhecem as conservas de flores de borragem, violetas,
línguas de vaca, e cravos hortenses; por estomáticas as conservas de cascas de laranja,
de cidra, da flor de acintro, da raís de angélica, etc.

Passando em revista brevemente algumas designações respeitantes às consistências


destes compostos oficinais, parece podermos distinguir diversas categorias:
a líquida – vinoso fluido, extracções líquidas, medicamento líquido, forma líquida,
sucos áqueos, corpo fluido, líquido composto;
a licorosa – licor, licor aquoso ou oleoso, licor lactiforme, licor víscido e glutinoso,
resinoso licor;
a sólida – salina substância; seca poeira, extractos sólidos, troquiscos, pílulas;
a de tomar à colher – branda consistência de electuário, espessa e sólida conserva,
consistência de mel grosso, pez, crassas papas, solto mel;
a pulverulenta – pós.

3. Vasos, alfaias e instrumentos


Fr. João de Jesus Maria, na obra citada, tomo I, tratado I, cap. X - Da Farmácia,
aborda os instrumentos, as alfaias e os vasos necessários46.
Os vasos são definidos como uns instrumentos côncavos e cavados, de diversas
grandezas e figuras47.

44 MARIA, 1772: 314-323 (tratado II).


45 MARIA, 1772: 324-330 (tratado II).
46 MARIA, 1772: 152.
47 MARIA, 1772: 153.
Artes Mecânicas – Enfermaria e Botica em espaços Beneditinos 321

Os vasos difeririam quanto à matéria-prima, sendo uns de vidro, outros de barro,


e ainda de pedra, de ferro, de estanho, de chumbo, de cobre, etc48.
Entre todos deveria preferir-se os de vidro – “por gozarem da egrégia excelência
de nada mudarem, alterarem, acrescentarem, ou tirarem a tudo aquilo, que dentro
de si recolhem, sem menos transudarem, e deixarem entrar coisa estranha”49.
Para esta arte deveria optar-se, por serem melhores, os vasos de vidro verde
alemão, por ser o mais incorruptível, podendo aguentar 600º de fogo, deixando de
lado os vasos de vidro branco e cristalino50. Uma vantagem suplementar dos vasos
de vidro seria de se poder observar o que se passa no seu interior51.
Para várias operações, recorre-se a vasos de materiais metálicos, que embora
resistentes à fusão, acabam por se consumirem, gastarem e corromperem ao lume,
danificando os compostos, salvo o ouro e prata, pouco usados pelo seu grande valor52.
Os vasos de ferro e de estanho são preferíveis aos de chumbo e cobre53.
São igualmente usados vasos cerâmicos – “ de grossa Terra” – que cozidos a altas
temperaturas, quase se vitrificam54.
Estes vasos distinguir-se-iam não só pela matéria-prima de que são feitos, mas
igualmente pela sua forma – “figura”, e dimensão – “grandeza”55.
Quanto à forma, uns seriam redondos, outros curvos, escavados, bicudos, tubulados,
barrigudos, apanhados, etc56.
Quanto à dimensão, uns seriam altos, outros baixos, largos, estreitos, muito amplos,
ou de orifício bastante extenso57.
Na categoria dos vasos amplos, são referidos quatro – cucurbitas, pelicanos, fialas
e recipientes58.

Refere-se igualmente a necessidade de almofarizes, de bronze, de ferro, de chumbo,


de pedra, de vidro, de madeira, etc., com diferentes dimensões, e com pilões de ferro
proporcionados59. E ainda pedra de pórfiro de polido mármore, e grais de de diversas
dimensões do mesmo, com pilões de marfim, pedra ou ferro60.
No capítulo XI, do mesmo tratado e tomo, refere-se a reposição dos medicamentos,
quer dos símplices, quer dos compostos, com indicações das durações recomendadas
e dos vasos para adequado armazenamento61.

48 MARIA, 1772: 153.


49 MARIA, 1772: 153.
50 MARIA, 1772: 153.
51 MARIA, 1772: 153.
52 MARIA, 1772: 153.
53 MARIA, 1772: 153.
54 MARIA, 1772: 154.
55 MARIA, 1772: 154.
56 MARIA, 1772: 154.
57 MARIA, 1772: 154.
58 MARIA, 1772: 154.
59 MARIA, 1772: 157.
60 MARIA, 1772: 157-158.
61 MARIA, 1772: 163 – Da Colecção, e Reposição dos Medicamentos.
322 Manuel Engrácia Antunes

Por exemplo indicando que as sementes cálidas se poderiam guardar em vidros


por 2 ou 3 anos, embora as frias só perdurassem 1 ano62.
Quanto à duração dos compostos, os vinagres, águas fleumáticas, conditos, conservas,
féculas, sucos, espécies aromáticas, electuários, xaropes, etc., conservar-se-iam por
um ano, repostos em vidros63.
As águas espirituosas poderiam ter mais tempo de perduração, embora em todos
os casos a duração se prolongasse mais ou menos, conforme o resguardo que tivessem,
e os vasos em que estivessem repostos64.
As pílulas, troquiscos, talhadas, extractos sólidos, elixires, tinturas balsâmicas,
durariam 2 ou mais anos, repostos em vidros bem tapados65.
Os espíritos voláteis poderiam durar, se estivessem tapados com exactidão, entre
8 e 10 meses, e os sulfúreos poderiam durar até 2 anos66.
Os óleos destilados durariam bastante tempo, estando bem tapados em vidros67.
Os emplastros e unguentos teriam longa duração, não devendo passar de 4 anos,
devendo ser guardados “em couros bem coligados de barbante”68.
Outra circunstância para a boa reposição dos símplices, inclui a consideração, para
cada género de per si, dos vasos ditos “asservatórios”, os quais se deveriam procurar
com toda a propriedade, adequados para este ou aquele símplice ou composto,
conforme pedisse a sua estável consistência e virtude69.
Assim sendo, as águas destiladas, vinagres, vinhos medicados, tinturas, xaropes,
espécies aromáticas, sais voláteis e fixos, e todos os mais licores desta ordem dever-se-
iam guardar tapados e rolhados, e com mais rigor os que forem voláteis, em redomas
de vidro de colo estreito70.
O mesmo se respeitará quanto aos óleos essenciais, espíritos, essências, elixires,
que por sendo mais voláteis, exigem serem tapados com rolhas de vidro enlodadas
em cera, e bem apertadas com couro e cordel71.
As conservas, confeições, electuários, e outros remédios desta classe se poriam
em potes, ou panelas de vidro, bem tapadas, com couro de pelica, deixando-se livre
sempre um terço, para que ao fermentarem naturalmente não transbordassem72.
Os lineamentos, unguentos, enxúndias, e o mais de igual consistência e natureza,
conservar-se-iam em [potes] ou panelas de vidro tapadas, de modo que o ar ambiente
as não alterasse73.

62 MARIA, 1772: 169.


63 MARIA, 1772: 169.
64 MARIA, 1772: 169.
65 MARIA, 1772: 169.
66 MARIA, 1772: 169.
67 MARIA, 1772: 170.
68 MARIA, 1772: 170.
69 MARIA, 1772: 170.
70 MARIA, 1772: 170.
71 MARIA, 1772: 170.
72 MARIA, 1772: 170.
73 MARIA, 1772: 170.
Artes Mecânicas – Enfermaria e Botica em espaços Beneditinos 323

As féculas, flores artificiais, pós calcinados, magistérios, troquiscos, talhadas e


outros remédios desta ordem, repor-se-iam em vasos de vidro, estanho, ou lata74.
Os extractos sólidos, emplastros, e tudo o mais de igual consistência, seriam envol-
vidos em couros macios, rigorosamente apertados, e repostos em caixas de madeira75.
As gomas e resinas e tudo o mais que carecer de volatilidade, se guardariam em
caixas de madeira, mas se tivessem muitas “partículas subtis” seria preciso recorrer
a potes de vidro tapados com couro76. Observando-se o mesmo com os bálsamos
sólidos quer nativos quer artificiais, que sendo líquidos seriam guardados em redomas
de vidro77.
As flores e ervas aromáticas, e tudo o mais com natureza semelhante e corres-
pondente, conservar-se-iam em vasos de vidro bem tapados, e em alguns casos
bastaria tê-las em caixas de madeira, devendo respeitar-se a mesma regra para o
caso dos paus, raízes, cascas e todas as mais partes dos vegetais, tendo em conta a
sua volatilidade ou fixidez78.
Quanto aos minerais e mais corpos de solidez fixa, poderiam ter-se em caixas de
pau79.

Bibliografia
A.D.B., Arquivo Distrital de Braga, 1629-1783.
ANTUNES, M. E., 2007 – Assentos, Encomendantes e Utilizadores na Igreja Monástica Beneditina no
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Arte, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto), vol. II. Porto, pp. 655-658.
ARQUIVO do Mosteiro de São Bento de Singeverga, Capítulo Geral de 1584, Capítulo Privado
de 1589 e Caixa 1.
BLUTEAU, R. – Vocabulario Portuguez e Latino. Disponível na internet em: <http//www.ieb.usp.
br/online/índex.asp>
CORREIA, F. C., 2000 – “A botica de Santo Tirso” in Santo Tirso – da cidade e do seu termo, II
volume. Santo Tirso: Câmara Municipal de Santo Tirso, pp. 83-88.
DIAS, J. P., 2007 – Droguistas, Boticários e Segredistas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
MARIA, Fr. J. J., 1772 – Pharmacopea Dogmática, medico-chimica, e theorico-pratica (Tratado I e
II). Porto: António Alvares Ribeiro Guimarães.
RÈGLE de Saint Benoît, 1987. Turnhout: Brepols.
REGRA do Glorioso Patriarcha Sam Bento, 1586 – Lisboa: António Ribeiro, f. 24, 27v. e 28.

74 MARIA, 1772: 170.


75 MARIA, 1772: 170.
76 MARIA, 1772: 170.
77 MARIA, 1772: 170.
78 MARIA, 1772: 170-171.
79 MARIA, 1772: 171.
Manifestações do barroco português:
casas e quintas com capela
Manuel Joaquim Moreira da Rocha

Introdução
O tema da fundação e edificação de capelas privadas associadas a casas e quintas
tem-nos vindo a interessar há alguns anos. Nesse sentido publicamos já alguns estudos.
Tendo em conta que as capelas privadas surgiam, maioritariamente, associadas a uma
habitação perene ou sazonal, escolheu-se para primeiro ensaio ao tema, a incidência
desse fenómeno nos dois concelhos limítrofes da cidade do Porto – Gaia e Gondomar
–, destacando-se as freguesias ribeirinhas. A escolha não foi despropositada, pois
sabendo-se, de antemão, a importância que o Rio Douro assumiu no que diz respeito
à mobilidade e rápida ligação entre o Porto e o seu entorno, e que, como salientara
Giusepe Gorani a sua atractividade fomentou a implantação de grandes quintas e
casas de recreio nas suas margens:
As margens meridionais, próximo da cidade, tanto quanto a vista alcança, estão semeadas
de conventos e casas de recreio de ricos particulares, tanto nacionais como estrangeiros. Os
bosquetes e jardins que as cercam, respeitados pelo próprio Inverno, constituem um espectáculo
encantador. As laranjeiras e os limoeiros sobrelevam, ali, em beleza a todas as árvores1.
Quisemos entender esse fenómeno partindo dessa micro-região. Dispúnhamos,
então, de um levantamento documental onde estão recenseadas mais de quatrocentas
fundações de capelas particulares na área geográfica da Diocese do Porto, para o
período de tempo que medeia entre o século XVII e XIX.
Posteriormente, e continuando no linha do Douro, iniciamos no ano de 2005 um
trabalho sobre um concelho ribeirinho, mais afastado do Porto, cujo pilar assentava
na exploração agrícola: Marco de Canaveses. É o resultado dessa investida, que por
imperativos profissionais não fora possível concretizar, que se retoma e apresenta
neste colóquio, polarizando, para já, o papel do encomendante ou fundador.

1 GORANI, 1989: 178.


326 Manuel Joaquim Moreira da Rocha

Sabemos que são muitos os caminhos que devemos seguir para atingir novos
resultados, e que serão, obrigatoriamente percorridos, pois a importância deste
fenómeno, está de tal forma enraizado no contexto do Barroco em Portugal, que se
torna inadiável o seu estudo.
Um dos campos que mais aportes pode trazer é sobre a compreensão da arquitectura
civil, nomeadamente, da de raiz nobre ou nobilitado. Até porque, para a fundação de
uma capela particular, era exigência diocesana, a posse de recursos e a sua afectação
perpétua para manutenção do espaço. Assim, regra geral, estas capelas eram fundadas
pelas famílias de maior prestígio social e económico, no contexto local e regional.
Através deste tema, é possível uma aproximação mais transversal da arquitectura
civil em Portugal, estabelecendo tipologias, não só para a casa nobre, mas também
para a de grandes proprietários e comerciantes, por certo, o escol que mais recursos
dispunha para investir na área habitacional. Conhecer quem eram os homens que
encomendavam esses equipamentos, associados a um modo de vida mais ou menos
elitista; decifrar as motivações construtivas e analizar os objectos inseridos no seu
complexo contextual – quinta – são caminhos que se afiguram, sendo certo que,
como já foi notado, estamos perante um universo de arte anónima, mas nem por
isso à margem das grandes correntes estéticas que marcam a evolução artística da
Época Moderna em Portugal.
Por outro lado, dentro do tema da Casa Nobre em Portugal, estudo iniciado nos
anos sessenta por Carlos de Azevedo, e retomado nos anos noventa por Joaquim
Jaime B. Ferreira-Alves, com novos enfoques, é consensual que um dos elementos que
caracterizam essa tipologia arquitectónica, é a existência de uma capela particular,
a par de outros, como a pedra de armas e da fachada de aparato. A permanência
da torre medieval – adaptada a novas funções dentro do contexto funcional da casa
nobre, ou construída como símbolo do prestígio aristocrático – é outro dos elementos
destas arquitecturas das elites2.
Como já apontou Carlos de Azevedo, a Casa Nobre Portuguesa, atinge a sua melhor
caracterização em pleno reinado joanino, e concretamente no Norte de Portugal3,
como uma manifestação superior do carácter do Barroco português.
Como nos aparece este fenómeno num concelho rural? Qual o seu significado?
Porque se constata que o principal período de fundação de capelas coincide com o
reinado de D. João V? Quem eram esses promotores? Vamos pois apresentar, algumas
considerações, fundamentados numa reflexão que tem como base dados documentais
– os processos de fundação das capelas particulares.

1. Quintas, casas nobres, palácios – os agentes da encomenda


Como salienta Joaquim Jaime B. Ferreira-Alves, o tema da Casa Nobre em Portugal
impõe-se para o historiador da arte como um vasto campo ainda por pesquisar, dado
2 FERREIRA-ALVES, 2007.
3 AZEVEDO, 1969: 68.
Manifestações do barroco português: casas e quintas com capela 327

o pouco conhecimento que ainda se dispõe desse assunto. Disseminadas por todo o
território nacional, as casas nobres multiplicam-se na Época Moderna, e apresentam-se
tanto em contexto urbano como rural. São sempre residências, perenes ou sazonais,
das elites4.
Em primeiro lugar há que distinguir casa nobre de palácio, que segundo o espe-
cialista, se baseia em dois critérios: ou na sua dimensão ou no papel social dos seus
proprietários. Outros autores referindo-se ao mesmo fenómeno artístico, falam de
Palácios e Casas Senhoriais5.
Quisemos entender o significado destes conceitos na cultura portuguesa do século
XVIII6. Para tanto efectuou-se uma pesquisa no Vocabulário Portuguez e Latino, de
Raphael Bluteau, publicado em Coimbra entre 1712 e 1728. E por Palácio entedia-
se a casa dos Reis dos príncipes, e “permissivamente dos sumptuosos e magníficos
domicílios dos Senhores Grandes”. Assiste-se a uma classificação baseada no estrato
social do ocupante dessa habitação, que primeiramente aplicada á residência régia,
é depois utilizada para designar a residências da nobreza que se impunham pela
monumentalidade: sumptuosos e magníficos são os termos aplicados por Bluteau para
classificar a casas da nobreza que merecem esse título7.
Esta mesma conceptualização era entendida para a denominação de Paços, onde
o autor começa por aplicar essa denominação às habitações Reais, e de seguida ao “
Solar de Fidalgo Grande”, esclarecendo que “em algumas casas e quintas se acha o
nome Paço, e se tambem he antigo, he demonstração grande da nobreza daquela casa
e familia”, pois tal designação apenas era permitida a “solares de fidalgos grandes”.
Mais uma vez a adopção da classificação da residência régia para designar casas da
primeira nobreza. A apropriação de termos aplicados à residência régia pela nobreza,
contribui para o nivelamento social das elites. Assim, Palácio ou Paço, não é distintivo
exclusivo da residência do rei e dos príncipes, como também o é da residência da
nobreza. Numa sociedade fortemente hierarquizada, como era a do Antigo Regime,
parece que esta apropriação terminológica é esclarecedora do protagonismo desem-
penhado pelo estrato social mais elevado da pirâmide social – a realeza – e depois o
uso da mesma denominação permitida às casas da primeira aristocracia de Portugal,
concorre para o conceito de paridade.
Ainda dentro desta problemática de denominação e á volta dos mesmos termos,
justifica-se a leitura de Bluteau, que, de resto, elucida esta análise:

4 FERREIRA-ALVES, 2001: 11.


5 STOOP, 1993.
6 A conceptualização dos termos Solar, Casa Nobre, Palácio, Quinta, vêm sendo usadas indiscriminadamente na

Bibliografia Portuguesa dos últimos cinquenta anos. Para o seu esclarecimento recomendamos o trabalho realizado
no âmbito do Seminário de Projecto II, da Licenciatura em História da Arte, da Faculdade de Letras da Universidade
do Porto, realizado por Ângela Andreia Mesquita Costa.
7 BLUTEAU, R. – Vocabulario Portuguez e Latino. Disponível na internet em: <http//www.ieb.usp.br/online/índex.

asp>. Ver os termos paço, paços, palácio e quinta.


328 Manuel Joaquim Moreira da Rocha

Porque como nas Casas Reaes havia este nome, aqueles, que pelo sangue, pelo valimento,
pelo poder, ou pelas riquezas mais se lhe chegavão, e vivião espíritos grandes, e levantados,
querião, que no seu povo a sua quinta, ou a sua casa fosse no tanto hum remedo da do Principe.
E o uso da terminologia alarga-se, não só á nobreza, como aos detentores de
cabedais económicos, sendo possível na micro-esfera territorial onde se implantava
a casa nobre o uso desses termos que são, evidentíssimamente, esclarecedores do
protagonismo social que os proprietários granjeavam ao nível regional e local.
Por seu turno Quinta, é denominação aplicada a casa de Campo, ou fazenda de lavoura
no campo com sua casaria, o que pressupõe uma residência situada no espaço rural, onde
o domínio fundiário era uma realidade. Estas terras detidas pelos grandes proprietários,
podiam ser arrendadas a foreiros, que as amanhavam a troco de pagamentos ao detentor
das terras para quitação do vínculo contratual. Estabelece-se assim, uma relação de
dependência e subalternidade entre foreiros, ou povo do lugar, e os proprietários
Podemos, porém, alargar o conceito de quinta se tivermos em conta uma prática
vivencial que se impõe nos Tempos Modernos: Quintas de Recreio. Estas dão pronta
resposta à vivência do ócio que se desenvolve a partir do século XVI, e situam-se,
normalmente, próximas dos grandes centros urbanos. Tanto umas como outras, são
compostas por grandes manchas verdes, onde se destacam nas primeiras, os campos
de exploração agrícola, e nas segundas a mata e os jardins.
A casa nobre é uma presença constante na paisagem rural portuguesa, principal-
mente na região Norte de Portugal. Como entender este fenómeno?
Em primeiro lugar, temos que distinguir duas realidades distintas da nobreza em
Portugal: a nobreza de corte e a fidalguia da província, que funcionam em nichos
isolados. Esta situação veio a provocar o esmorecimento da velha nobreza, e o destaque
de uma nova nobreza no século XVII. Como salientou Nuno Monteiro “Casas por
vezes muito antigas, em tempos aliadas com as que vieram a ser elevadas à Grandeza
no século XVII, mas que, pelo facto de se não haverem integrado na corte, tinham
mergulhado na relativa obscuridade da vida provincial. O divórcio social entre umas
e outras fora-se cavando cada vez mais ao longo dos séculos XVII e XVIII. O declínio
das velhas residências provinciais é já deplorado por Vilas Boas Sampaio no terceiro
quartel de Seiscentos: Os principais solares do Reino de Portugal acham-se pelos campos,
e Montes de entre Douro e Minho, e em alguns lugares da Beira e Trás-os Montes8.
O século XVIII acentuou esse fosso. A fidalguia de província viu o seu papel confinado
ao desempenho dos cargos públicos, nomeadamente na ocupação dos cargos municipais.
Uma forma de salientar o seu prestígio, não na esfera da corte, cujas alianças se desva-
neceram, mas ao nível local, onde são os principais agentes da vida pública e social9.
Dentro da nobreza devemos considerar o papel desempenhado pelos filhos
primogénitos masculinos e femininos, bem como os secundogénitos.
Para os primeiros assiste-se ao casamento dentro do mesmo patamar social
reforçando as alianças entre famílias.

8 MONTEIRO, 2003: 189.


9 MONTEIRO, 2003: 190.
Manifestações do barroco português: casas e quintas com capela 329

Quanto aos filhos secundogénitos dos Grandes, a análise separada dos seus destinos,
confirma que, até 1760, menos de um quarto se pode casar. Dos nascidos até 1720, mais
de metade seguiu as carreiras eclesiásticas que, de alguma forma, lhes estavam destinadas.
Quase todos os solteiros não eclesiásticos foram militares, dada a raridade das carreiras
na magistratura10.
É desta nobreza provinciana que nos falam os inúmeros exemplares de casa nobre
disseminados no Norte de Portugal. Detentores da propriedade fundiária – fortemente
parcelada no Entre-Douro e Minho – portadores de alguns cabedais intelectuais próprios
do seu estatuto, são, ao nível local, os grandes agentes do poder. A sua residência é
a imagem do seu protagonismo local: pequenas bolsas que espelham ao nível local
a actuação da Corte e da nobreza cortesã. E a arquitectura civil é tradutora desse
código de actuação. A este escol de promotores da casa nobre em contexto rural,
devemos acrescentar os burgueses e grandes comerciantes enriquecidos, os militares
em missões no Império Português, e os homens do clero.

2. Estudo de caso
Como cruzar esta estrutura social com construção de capelas particulares asso-
ciadas a quintas e a casas nobres? Analise-se o fenómeno no Concelho de Marco
de Canaveses.
Concelho do Marco de Canaveses, situado na confluência dos rios Douro e
Tâmega, mantém ainda hoje um forte pendor rural. Extensas manchas de vinhedos,
adaptadas à irregularidade dos terrenos, estão na base de um fraccionamento em
socalcos onde se praticava, e pratica ainda a agricultura.
A fertilidade do solo, como elucidou Pinho Leal, produz “todos os generos agricolas
do paiz, cria muito gado, de toda a qualidade, e os seus montes são abundantes de
madeira, lenhas e caça”11 propiciando a formação de quintas cuja nota dominante
é a distância de uma casa agrícola a outra. Falámos de construções habitacionais,
pequenas unidades arquitectónicas, dispersas pela paisagem modelada pelo homem
para amanho da terra. Casas que ficavam no passado muito distantes dos centros de
culto, justificando, em cumprimento das disposições tridentinas e fielmente ratificadas
pelas Constituições Sinodais12, a criação de pequenas unidades cultuais, nomeadamente
capelas privadas anexas a casa habitacional, e que tinham, obrigatoriamente, que
manter uma função religiosa de natureza pública.
No universo em estudo, foram alvo de análise detalhada cinquenta e nove processos
de Fundação de Capela particular, existentes no Arquivo Histórico do Paço Episcopal
do Porto, abrangendo o tempo cronológico do século XVII ao século XIX, inclusive.

10 MONTEIRO, 2003: 170.


11 LEAL, 1880: 407.
12 Ainda que he cousa muito pia & louvável edificarem-se Ermidas em honra, & louvor de Deos nosso Senhor, da Virgem

nossa Senhora, & dos Santos, porque com isso se incita, & affervora a devoção dos fieis, & segue a utilidade de aver nas
Parochias grandes lugares decentes, em que comodamente se possa celebrar. Ver CONSTIVIÇÕES Synodais do Bispado
do Porto, 1690: 370-371.
330 Manuel Joaquim Moreira da Rocha

Quadro n.º 1 – Fundação de capelas particulares no concelho de Marco de Canaveses


Ano de
Freguesia onde se
fundação Proprietário Orago
localiza
da capela
1639 Tabuado Salvador de Bastos Nossa Senhora do Desterro
1674 Soalhães Manuel Vieira de Magalhães ?
S. João Baptista
1675 Constance António Ribeiro

António Sanhudo de Araújo,


1684 Fornos ?
Abade
Padre António Sanhudo de
1689 Tabuado Santo António
Araújo, Abade de Tabuado
Juiz e oficias da Igreja de
1691 Soalhães S. Bento
Soalhães
1697 Soalhães Miguel Valente Santo António
1700 Magrelos José Pereira de Azevedo Santa Ana
1701 ? Filipa Ferraz Santo António
1702 S. Lourenço do Douro António Vieira de Melo Santo António
Jerónimo de Melo Carneiro e
1706 Ariz S. Jerónimo
fregueses
Gonçalo de Magalhães,
1706 Tabuado Nossa Senhora do Pilar
licenciado
1708 Manhuncelos Francisco Pinto de Magalhães Santa Ana
Domingos Vieira da Mota,
1708 Soalhães Nossa Senhora do Rosário
doutor
1709 Rio de Galinhas Manuel de Carvalho Freire Nossa Senhora da Conceição
1709 Alpendorada e Matos Francisco Soares S. Francisco
1709 Penhalonga Maria das Neves Santo António
1709 Tuias Manuel de Sousa, Capitão Nossa Senhora do Pilar
1710 Favões Francisco Leal Geraldes Nossa Senhora do Pilar
1712 Rio de Galinhas Gaspar Carneiro de Magalhães Santa Ana
1712 Sande António da Fonseca Santo António
1712 Vila Boa de Quires Francisco Moreira Camelo Nossa Senhora da Conceição
1717 Vila Boa de Quires Padre Manuel Ferreira Rangel Salvador
Manuel Pinto Monteiro de
1717 Vila Boa do Bispo Nossa Senhora da Conceição
Almeida
1718 Magrelos António Pereira da Silva ?
Várzea de ovelha e
1722 Luís da Cunha Coutinho S. Lúis Rei de França
Aliviada
1723 Paços de Gaiolo Manuel do Couto Senhor Preso à Coluna
1723 Vila Boa do Bispo Luís de Melo S. João
1725 Favões Domingos Vieira e moradores S. Domingos e Nossa Senhora
1726 Paços de Gaiolo Angélica de Vasconcelos Nossa Senhora das Saudades
1726 Vila Boa do Bispo Manuel Vieira Barbosa Nossa Senhora as Conceição
1728 Soalhães Fregueses do lugar do Pereiro S. José
Manifestações do barroco português: casas e quintas com capela 331

Ano de
Freguesia onde se
fundação Proprietário Orago
localiza
da capela
1733 Favões Veríssimo Pereira, Padre Nossa Senhora da Ajuda
1733 Soalhães Gaspar de oliveira, Padre Nossa Senhora do Rosário
1734 Penhalonga Manuel de Sousa, Padre S. Pedro
Manuel de Azevedo Lobo,
1737 Vila Boa do Bispo Madre de Deus e Santa Ana
capitão
1737 Soalhães João Pereira de Azevedo S. João Baptista
António Monteiro de Abreu,
1738 Soalhães Santo António
capitão
1746 Alpendorada e Matos António Lopes de oliveira Santo António
1750 Alpendorada e Matos João do Couto Soares S. João Evangelista
João Guedes de Vasconcelos,
1752 Soalhães Nossa Senhora da Conceição
Padre
1754 Várzea do Douro João Correa Borges Santa Ana
Cipriano Peixoto de Aguiar;
Manuel Vieira Pinto;
1757 Várzea do Douro Nossa Senhora da Lapa
Sebastião José Peixoto –
Padres
1758 Penhalonga Cristóvão Barbosa Santa Ana
1758 Folhada José Francisco Bravo, Padre Nossa Senhora da Lapa
Domingos Soares da Mota,
1759 Soalhães S. Domingos
Padre
António Monteiro de
1763 Tuias Santa Ana
Carvalho
1764 S. Lourenço do Douro Domingos Vieira de Melo Santo António
Santo André, S. Jerónimo, S.
1769 Sande Manuel de Melo Macedo
Bernardo
Luís Vieira de Magalhães,
1766 Paredes de Viadores Nossa Senhora da Lapa
Padre
1777 Soalhães António Monteiro S. Miguel (reedificação)
Bernardo José de Azevedo e
1780 Vila Boa do Bispo S. Bento
Melo, doutor
1798 Folhada Andresa Teixeira S. José
Bento José Soares da Mota,
1823 Soalhães Senhor dos Aflitos
Padre
António Vieira de Pedrosa de
1835 Sande Senhora da Guia
Aguiar
1852 Sande José Mendes de Vasconcelos S. José
António Justino de
1853 Vila Boa do Bispo Santa Bárbara
Vasconcelos Corte Real
Joaquim de Vasconcelos
1857 Soalhães Nossa Senhora da Piedade
Carneiro de Magalhães
1878 Freixo Agostinho de Serpa Pinto Santo Agostinho
332 Manuel Joaquim Moreira da Rocha

Deste conjunto das intenções de fundação de capela por vontade individual ou


familiar, apenas quatro processos salientam explicitamente um interesse fundacional
colectivo. Ou dos fregueses de determinado lugar, ou de Confraria, ou então de um
Pároco que aponta a necessidade de fundação de capela para administração dos
sacramentos à população de determinado local, por ficar distante a igreja paroquial.

2.1. Quintas com capela nas Memórias paroquiais de 1758


Analisando o resultado do inquérito de 1758 – as Memórias Paroquiais – apuram-se
os seguintes dados, sobre a existência de capelas particulares: capelas construídas no
espaço público, capelas construídas em Quintas, e capelas anexas às casas de habitação.
Comecemos pelas capelas anexas a casas particulares.
Na freguesia de Magrelos havia duas capelas as quais “estão contíguas às cazas
de seus particulares. Huma hé na Caza da Ceara, família nobre, com a invocação de
Santa Anna. A outra hé do Padre Manoel Pinheiro da Silva, do lugar de Competentes,
com o titulo de Santo António de Lisboa”13.
Em Manhucelos existia apenas uma capela “de huma caza particular a qual está
a ella pegada”14. Em Rio de Galinhas, esclarece-se que existiam duas capelas nesta
situação: a de Nossa Senhora da Conceição, “junto às Cazas do Licenciado Antonio
Xavier de Carvalho a quem pertense”; a outra, dedicada a Santa Maria era “mística
com as cazas de Bento Soares da Motta”15.
Na freguesia de Tabuado, ficava a capela de Nossa Senhora do Pilar, pertença dos
herdeiros do Licenciado Gonçalo de Magalhães e localizava-se ao “pé das cazas”;
situação idêntica tinham a capela de Santiago, que era dos herdeiros de António
Gonçalo de Sousa Correia Montenegro, e a capela de Santa Ana, que “também hé
particular da Caza que nesta aldeã tem os mesmos herdeiros do dito fidalgo”16.
Em Vila Boa do Bispo, localizava-se “dentro do Quintã” uma capela que era
administrada por José Pereira de Albuquerque e “junto das casas da Quinta de
Alvelo”, outra capela administrada pelo Reverendo Domingos de Melo17:
Várias foram as capelas recenseadas que não fazem menção específica da sua
localização, esclarecendo-se apenas que se situavam dentro da área da quinta. Estão
neste caso a capela de S. Miguel Arcanjo, em Folhada, “situada na Quinta da Villa
Nova” que era propriedade do Capitão-mor “deste concelho”, bem como, na mesma
freguesia, a de Nossa Senhora da Piedade, “situada ao cimo da Quinta do Valle”,
sendo administrada pelo Padre Carlos Monteiro de Miranda”18.
Na freguesia de Alpendurada e Matos existia uma capela particular, que era
“administrada pello cappitão Jerónimo de Mello Carneiro”19.

13 CAPELA, MATOS, BORRALHEIRO, 2009: 382.


14 CAPELA, MATOS, BORRALHEIRO, 2009: 385.
15 CAPELA, MATOS, BORRALHEIRO, 2009: 398.
16 CAPELA, MATOS, BORRALHEIRO, 2009: 412.
17 CAPELA, MATOS, BORRALHEIRO, 2009: 423.
18 CAPELA, MATOS, BORRALHEIRO, 2009: 373.
19 CAPELA, MATOS, BORRALHEIRO, 2009: 373.
Manifestações do barroco português: casas e quintas com capela 333

Em Paços de Gaiolo situava-se a Quinta de Gondinhão que tinha a capela de


Nossa Senhora da Piedade; na Quinta de Lijó era detentora da capela de S. João de
Deus, que pertencia aos herdeiros de Leonardo Jordão Baptista, “da cidade de Lisboa”;
e ainda na Quinta de Buris a capela de Nossa Senhora das Lágrimas, pertença de
Inácio Peixoto Geraldes20.
Em Penha Longa, na Quinta de Lejo, ficava a capela de S. João de Deus, que
pertencia a Leonardo Jordão, da cidade de Lisboa; na quinta da Cardia, que era
propriedade do “Meretissimo Dezembargador Juiz de Croa Joze de Carvalho Martens”,
ficava a capela de S. João Baptista; na Quinta de Avelosa, que era de Felix de Queirós
Sarmento, situava-se a capela de santo António; na Quinta de Campos, a de Nossa
Senhora dos Remédios, que era do alferes Cristóvão Pinto de Azevedo, proprietário
da mesma quinta21.
Em Soalhães são inumeradas várias capelas particulares, todavia a fonte documental
não permite desvendar as que se inserem em Quintas, esclarecendo apenas que “as
mais” se situavam em “fazendas e cazas de pessoas particulares da freguesia”22.
Na Quinta do Couco, no Torrão, ficava a capela do Senhor do Vale23.
A enumeração do Pároco de Tuias é interessante pois não faz a distinção entre
ermida e capela. Justifica-se a leitura documental: “tem quatro ermidas, convém a
saber, a de Nossa Senhora do Pillar, na Quinta do Outeiro, que hé de Jozé Manoel
de Souza e Aguiar. A de Nossa Senhora dos Remédios, que hé sita na Quinta de
Thuias de Baixo e hé de Bernardo Pessoa de Sá. A de São João Baptista na Quinta
de Thuias de Cima, que hé da Caza dos Montenegro”24.
A Quinta da “Vela Cruz do Bairro”, na Várzea do Douro, que pertencia a
Francisco António Camelo, “Fidalgo da Caza de Sua Magestade”,era detentora da
capela de Nossa Senhora de Guadalupe. A mesma freguesia possua ainda capela da
invocação de S. Bernardo, a Quinta de Bitetos, propriedade de Pedro da Fonseca,
da cidade de Braga25.
Em Vila Boa do Bispo possuíam capela as Quintas de Brenes, de Pinheiro, de
Lidrais, de Casalhõesinhos e Luidenho, com as invocações de Madre de Deus, Nossa
Senhora da Encarnação, Nossa Senhora das Amoras e Senhor de Matosinhos,
respectivamente. Faz apenas referência ao estatuto sócio-profissional de dois dos
proprietários: reverendo e licenciado.
A fonte que vimos seguindo enumera ainda muitas mais capelas particulares
sem esclarecer a sua situação frente aos vectores em análise: capelas anexas a casas
particulares ou inseridas o perímetro de quintas. Todavia, numa análise de conjunto,
e atendendo ao direito de propriedade, confirma-se o nível hierárquico elevado dos
seus padroeiros/proprietários, elencado nesta amostragem. Por exemplo, no meio do

20 CAPELA, MATOS, BORRALHEIRO, 2009: 392.


21 CAPELA, MATOS, BORRALHEIRO, 2009: 396.
22 CAPELA, MATOS, BORRALHEIRO, 2009: 406.
23 CAPELA, MATOS, BORRALHEIRO, 2009: 412.
24 CAPELA, MATOS, BORRALHEIRO, 2009: 415.
25 CAPELA, MATOS, BORRALHEIRO, 2009: 419.
334 Manuel Joaquim Moreira da Rocha

lugar de Quintão, da freguesia de Matos, existia a capela de S. João Evangelista, “que


mandou fazer o capitão de Infantaria João do Couto Soares”26. Era, provavelmente,
uma capela pública.

3. Justificativos da proliferação das capelas particulares


Que motivos apresentam estes fundadores para fundamentação da sua petição?
Vejamos alguns exemplos.
No ano de 1722, Luís da Cunha Coutinho, homem viúvo e natural de Amarante,
diz que deseja fazer uma capela “na sua quinta de S. Martinho de Alviada”, pois
aí costuma residir “muita parte do ano”, e a construção seria muito benéfica “para
nella poderem ouvir missa suas filhas donzellas e quatro irmans já velhas as quais
não podem hir a Parochia”. Não se esquece de acrescentar a grande utilizade para
o povo da freguesia “em razão de não haver capella alguma, nem dizer na Parochia
mais missa que a conventual”.
Depois de concretizada a pretensão, e com a capela já benzida, pede licença á
Cúria Diocesana, datada de 17 de Outubro de 1729, colocar-lhe “as armas do seu
Brazão”. Pedido deferido no dia imediato.
Um outro exemplo, datado de 1701, refere-se á quitação de uma vontade tes-
tamentária. Assim, D. Filipa Ferraz, irmã do padre Simão Ferraz, pede licença para
fazer vontade do seu irmão defunto, construindo uma capela “agregada a fazenda
della suplicante”.
Porém o comerciante, António Lopes de Oliveira e sua mulher Maria Rosa Angélica,
residentes na cidade do Porto, “em sima do muro da freguesia de S. Nicolao”, querem
construir a capela na sua Quinta do Passo, no ano de 1746, porque aí “vão assistir
muita parte do anno e sentem discomodo grande em hir ouvir missa”.
É curioso o pedido encabeçado pelo Capitão Jerónimo de Melo Carneiro Ferraz
que coloca as necessidades dos fregueses de Aris como justificativo da sua vontade.
Porém, no auto de vista, datado de 1742, esclarece-se que a capela estava “muito
bem feita pegada a hum lado de huma sala porem livre das mais cazas”, estando a
porta voltada “para hum pateo ou recio grande”.
Por seu turno, em 1700, o licenciado José Pereira de Azevedo, proprietário e
morador na Quinta da Seara, pede autorização para fazer a capela “junto a porta
fronha da sua quinta” em sítio que era vista pelos passageiros do Rio Douro.
Se a ostenção das armas de família no espaço de culto, é por si só um gesto de
afirmação nobiliárquico, as vontades individuais alicerçadas muitas vezes no conforto,
espelham também uma vivência social das elites.
Mas observemos outra tipologia das pretensões fundacionais.
O Processo referente à reconstrução da capela de S. José, anexa a uma casa urbana
situada na Rua das Taipas, no Porto, datado de 1704 é esclarecedor:

26 CAPELA, MATOS, BORRALHEIRO, 2009: 390.


Manifestações do barroco português: casas e quintas com capela 335

O Padre Luís Oliveira, depois de comprar as casas em que vivia, procedeu a


profundas obras de reconstrução, onde gastou “mais de settecentos mil reis”. A
capela, anexa à casa, recebeu-a por doação que lhe fizera D. Mariana da Cunha e
seus filhos, por mesma se encontrar ligada às casas. Nas obras que promoveu na casa,
construiu um acesso directo do proprietário à tribuna da capela. No requerimento
à Cúria Diocesana para dotação e bênção da capela é peremptório ao afirmar que
a capela constitui uma mais valia para casa, entenda-se valorização patrimonial, ou
no escrito por seu punho: “resulta augmento e valor das dittas cazas”.
O mesmo esclarece Dionísio Verney quando pretende em 1741 construir uma
capela na sua Quinta junto ao Poço das Patas, no Porto (S. Lázaro), dizendo que
com a capela ficava a propriedade “com melhor reputação”
Mais evidente é ainda a petição encabeçada pelo Caetano de Sousa, Sargento-
mor e Cavaleiro Professo da Ordem de Cristo, quando está construir em 1741, umas
casas de elevado valor patrimonial na freguesia de Santo Ildefonso, no Porto. E para
valorização do património imobiliário quer construir uma capela anexa à casa. Natu-
ralmente, que as primeiras razões apontadas são de natureza caritativa – promoção
do culto divino aos passageiros.
Por seu turno, António de Oliveira e Silva, homem de negócio residente na Rua
Nova do Porto, pede autorização, em 1734, para construir capela na quinta que
possuía em Santo Ildefonso, onde passava vários meses com a sua família em veraneio
– “aonde o mais do tempo asiste principalmente no Verão” – e era “discomodo” para
a sua família dirigir-se à igreja paroquial para as práticas litúrgicas.
Está neste caso uma evidente valorização patrimonial da casa ao ter anexada
uma capela.

4. Os oragos das capelas particulares do Marco de Canaveses


É sabido que depois da figura de Jesus Cristo, a Virgem Maria e os Apóstolos,
ocupam o topo da hierarquia devocional, constituindo-se nos textos produzidos
pelos teólogos do cristianismo nascente como “os primeiros modelos emblemáticos
de santidade”27, embora os primitivos cristãos, pelas constantes perseguições de que
eram alvo prestassem particular culto à epopeia dos mártires28.
No estudo em análise, o maior número de oragos está associado ao culto dos
santos, seguido do culto mariano. Só por último surgem as capelas dedicadas a Cristo.

27 MARTINS, Fausto Sanches – Os Santos Protectores à Luz da Hagiologia, Revista Museu, IV série, n. 9, Círculo
Dr. José de Figueiredo, Porto, 2000, p. 174
28 Idem – ibidem, p. 175
336 Manuel Joaquim Moreira da Rocha

Quadro n.º 2 – o culto mariano


Número Número
Número Número
de capelas de capelas
de capelas de capelas
Invocação fundadas na fundadas na Totais
fundadas no fundadas no
1ª metade do 2ª metade do
séc. XVII séc. XIX
séc. XVIII séc. XVIII
Nossa Senhora do Desterro 1 1
Nossa Senhora do Pilar 3 3
Nossa Senhora do Rosário 2 2
Nossa Senhora da Conceição 4 4
Nossa Senhora das Saudades 1 1
Nossa Senhora da Ajuda 1 1
Mãe de Deus e Santa Ana 1 1
Nossa Senhora da
1 1
Consolação
Nossa Senhora da Lapa 3 3
Nossa Senhora da Guia 1 1
Nossa Senhora da Piedade 1 1
ToTAIS 1 12 4 2 19
Quadro n.º 3 – Culto de Santos
Número Número Número
Número
de capelas de capelas de capelas
de capelas
Invocação fundadas no fundadas na fundadas na Totais
fundadas no
séc. XVII 1ª metade do 2ª metade do
séc. XIX
séc. XVIII séc. XVIII
Santo António 2 6 1 9
S. João Baptista 1 2 3
S. Bento 1 1 2
Santa Ana 3 3 6
S. Jerónimo 1 1
S. Francisco 1 1
S. Luís 1 1
S. Domingos 1 1 2
S. José 1 1 1 3
S. Pedro 1 1
S. Miguel 1 1 2
S. João Evangelista 1 1
S. André, S. Jerónimo e S.
1 1
Bernardo
Santa Bárbara 1 1
Santo Agostinho 1 1
ToTAIS 4 19 9 3 36
Manifestações do barroco português: casas e quintas com capela 337

Nesta análise toma relevo o culto mariano, nas suas plurais prerrogativas, seguindo,
de resto, uma prática enraizada na vivência católica portuguesa, bem como o culto
dos diversos santos. É importante referir, a coincidência entre o nome do proprietário
e o santo cultuado presente 1/3 do universo em análise.
O culto cristocêntrico era pouco expressivo: apenas três capelas.

Conclusão
A freguesia de Soalhães, que foi sede de concelho e de comarca29, impõe-se no
espaço geográfico de Marco de Canaveses pelo maior número de processos de pedidos
ao bispo para fundação de capelas privadas. Sendo a maior freguesia do concelho
em termos de área, não podemos ser alheios para justificativo desta incidência de
capelas particulares o papel administrativo que desempenhou, motor de um grupo
populacional como um elevado grau de alfababetização para desempenho de cargos
públicos. E por regra era o grupo socio-cultural com maiores recursos económicos
aquele que protagonizava as elites do seu tempo, tanto pelo desempenho profissional
cuja formação haviam adquirido pela frequência de instituições de ensino avançado,
como pelo prestígio ou bagagem intelectual que possuíam por herança familiar. A
situação privilegiada que dispõe relativamente ao rio Douro, este rio funcionava em
tempos idos como eixo principal de comunicação do país interior com o exterior, e se
a cidade do Porto se constituía como um grande centro polarizador onde grassavam
os ventos das renovações e conquistas científicas e culturais da Europa, temos que
admitir que a freguesia de Soalhães se impôs no contexto concelhio como um pólo
de difusão de ideários novos. A fundação de capelas privadas foi uma prática que
ganhou relevo em Portugal no período pós-tridentino, destacando-se como fenómeno
da primeira metade do século XVIII, coincidindo com o governo joanino, como
tivemos já ocasião de demonstrar30. Reveladora de uma atitude de afirmação de
pergaminhos familiares ou como prática devocional, a criação de espaços de culto
privados generaliza-se nos séculos XVII, XVIII e XIX, principalmente quando em
Portugal se viviam os ideários absolutistas. Ou seja, em seiscentos é um fenómeno
que surge, ganhando forte expressão da primeira metade do século XVIII, para decair
a partir de então.
A fundação de capelas particulares é um fenómeno próprio do escol mais destacado
das chamadas elites, e impõe-se como um capítulo imprescindível para o estudo da
Casa Nobre na Época Moderna em Portugal.
Seguindo uma prática imanada da própria residência régia, é apropriada nas
habitações da nobreza, vulgarizando-se a sua construção nas residências perenes ou
sazonais das novas elites provinciais, emergentes no século XVIII, onde para além
da linhagem familiar, se contavam os homens da governança local, os comerciantes
enriquecidos e os militares. Dos 59 processos analisados para fundação de capelas
29 LEAL, 1880: 406.
30 ROCHA, 1996.
338 Manuel Joaquim Moreira da Rocha

privadas no concelho de Marco de Canaveses nos séculos XVII-XIX, 17 capelas


foram instituídas por membros da elite local: clero, militares, doutores e comerciantes.
Se a este fenómeno não é alheia a vivência contra-reformista que caracteriza a
sociedade portuguesa dos séculos XVII e XVIII, a sua explicação não se esgota numa
mera atitude devocional. É, como ficou demonstrado, um símbolo de prestígio e
afirmação social ao nível local, concorrendo para a nobilitação da casa de habitação.
Era consensual que a capela particular valorizava a Quinta, tanto ao nível patrimonial,
como pela afirmação social do seu financiador.
A análise deste fenómeno não pode ser alheio à vivência da morte que caracteriza o
homem barroco. Assim, a capela particular, impõe-se também como mausoléu familiar.
São muitas as capelas onde as lápides tumulares são prova evidente dessa prática
Na articulação arquitectónica da casa com a capela, bem como na organização do
espaço sacro, surgem estruturas que espelham o protagonismo das elites: corredores
e galerias de acesso directo das famílias promotoras ao espaço da capela; coro alto
e tribunas de onde assistiam ao culto. Estes, entre outros elementos arquitectónicos
evidenciam a superioridade hierárquica da família promotora em relação ao público
que assiste ao culto na nave da capela.
Artisticamente, sendo uma expressão maioritariamente anónima, não está à
margem da evolução da arquitectura portuguesa e é aí que deve ser reposicionada.
Igual enquadramento se impõe para os equipamentos.

Figuras n.º 1 – Casa da Garrida – Ponte de Lima


Finais do Séc. XVIII. Mandada edificar pelo brasileiro António Alvares da Silva. Foi residência do Marechal Francisco de Melo da Gama,
governador de Diu.
Manifestações do barroco português: casas e quintas com capela 339

Figura n.º 2
Palácio dos Viscondes da
Carreira, Palácio dos Távoras,
Palácio da Carreira
(Viana do Castelo)
Séc. XVI – Séc. XVII. Atribuída a
Manuel Pinto de Vila Lobos.

Figura n.º 3
Capela da Casa das Malheiras
(Viana do Castelo)
1758. Atribuída a André Soares.

Figura n.º 4
Marco de Canaveses
– Soalhães – Casa da Quintã
340 Manuel Joaquim Moreira da Rocha

Figura n.º 5
Marco de Canaveses
– Soalhães – Casa da Volta

Figura n.º 6
Marco de Canaveses
– Vila Boa do Bispo
– Casa do Bairral

Figura n.º 7
Marco de Canaveses
– Vila Boa do Bispo
– Quinta de Cimo de Vila
Manifestações do barroco português: casas e quintas com capela 341

Bibliografia
AZEVEDO, Carlos, 1969 – Solares Portugueses. Lisboa: Livros Horizonte.
CAPELA, José Viriato, MATOS, Henrique, BORRALHEIRO, Rogério, 2009 – As Freguesias do
Distrito do Porto nas Memórias Paroquiais de 1758. Braga.
CONSTIVIÇÕES Synodais do Bispado do Porto Novamente Feitas E Ordenadas Pello Illustrissimo e
Reverendissimo Dom Joam de Sovsa Bispo do dito Bispado, do Conselho de Sua Magestade & seu
Sumilher de Cortina propostas e aceitas em o Synodo Diocesano que o dito Senhor celebrou em 18 de
Mayo do Anno de 1687. Porto: Joseph Ferreira Impressor da Universidade de Coimbra, 1690.
COSTA, Ângela Andreia Mesquita, 2003-2004 – Tipologia de Plantas das Casas Nobres com Capela
no Concelho de Santo Tirso.
FERREIRA-ALVES, Joaquim Jaime B., 2001 – A Casa Nobre no Porto na Época Moderna. Porto:
Edições Inapa.
FERREIRA-ALVES, Joaquim Jaime B., 2007 – “Da Torre Solarenga à Torre de aparato: Formas
da Casa Nobre do Século XVI ao Século XVIII”, in Separata do 1.º Congresso Internacional
Casa Nobre – Um Património para o futuro. Arcos de Vadevez.
GORANI, Giusepe, 1989 – Portugal a Corte e o País nos anos de 1765 a 1767. Lisboa: Lisóptima
Edições.
LEAL, Augusto Soares d’Azevedo Barbosa Pinho, 1880 – Portugal Antigo e Moderno. Diccionario
Geografico, Estatistico, Chorographico, Heraldico, Archeologico, Historico, Bibliographico e Etymologico
de todas as de todas as cidades, Villas e Freguezias de Portugal, vol. IX. Lisboa: Livraria Editora
Tavares Cardoso e Irmão.
MONTEIRO, Nuno Gonçalo Freitas, 2003 – O Crepúsculo dos grandes – A Casa e o Património da
Aristocracia em Portugal (1750-1832). Lisboa: Imprensa-Nacional Casa da Moeda.
ROCHA, Manuel Joaquim Moreira da, 1996 – “Espaços de Culto Público e Privado nas Margens
do Douro: Uma Abordagem”, in Separata Revista Poligrafia, n.º 5.
STOOP, Anne de, 1993 – Palácios e Casas Senhoriais do Minho. Lisboa: Livraria Civilização.
Considerações sobre os artífices
e os artistas portugueses em Minas Gerais
Marcelo Almeida Oliveira

Reforçamos, inicialmente, que ainda estamos numa fase inicial da pesquisa, em


que os dados apurados correm o risco de não serem devidamente avaliados à luz
de ideias maduras. É um risco assumido, que também pode representar ganhos no
fortalecimento dos sistemas de parcerias que se ocupam do conhecimento da história
brasileira ou luso-brasileira, principalmente quanto à produção artística no período
colonial.
Considerando-se que a produção artística em Minas Gerais, no citado período,
é fato complexo, decorrente de um somatório de fatores, dentre eles: as condições
religiosas, sociais e as relações “mestre-oficial-aprendiz/livre-alforriado-escravo”,
buscamos tratar desse assunto a partir do viés português, uma das fontes para a
compreensão do fenômeno artístico ocorrido nas Minas1.
Salientamos, nesse quadro, a necessidade de se trabalharem as fontes documentais
para melhor entendimento de um amplo contexto gerativo e do intercâmbio de
influências culturais ocorrido entre Brasil e Portugal. Por isso, é sempre oportuno o
compartilhamento de informações nos vários lados do Atlântico. Tal procedimento
ajuda no avanço do assunto priorizado no IV Seminário Internacional Luso-Brasileiro:
“A Encomenda. O Artista. A Obra”.
Temos a pretensão de lidar com o citado tema, por meio de visão ampla e síntese
de informações, obtidas a partir do cruzamento de dados apurados tanto no arquivo
da Arquidiocese da cidade de Mariana, quanto no conteúdo da obra Dicionário de
Artistas e Artífices dos Séculos XVIII e XIX em Minas Gerais de Judith Martins (1974).
Quando lidamos com avaliações mais amplas, como as pretendidas no momento
atual da pesquisa, é possível a constituição de bases para o apuro do estudo em
questão, o que exige muitas vezes conhecimento abrangente das fontes presentes nos
arquivos brasileiros. Não priorizamos, por ora, destacar os feitos de nenhum artista
ou artífice em específico, como foi e é tratado por muitos pesquisadores que lidam
com o entendimento da produção artística.

1 TRINDADE, 1989: 1.
344 Marcelo Almeida Oliveira

A partir da consulta realizada em Catálogos Gerais do Arquivo Arquidiocesano,


verificou-se a existência de grande número de registros relativos à população portuguesa
residente em Minas colonial. São dados preciosos para a compreensão de questões
pouco exploradas em bibliografia específica. Estabeleceram-se sínteses com o sentido
de examinarmos os seguintes pontos:
– a origem dos portugueses em Minas Gerais;
– qual a especialidade predominante no grupo de artistas e artífices e onde houve
maior concentração de indivíduos desse grupo no território mineiro;
– quais os tipos de documentos relacionados ao grupo estudado;
– o período de maior ocorrência de registros referentes aos portugueses na capitania.
As questões acima consideradas são relativamente poucas. Indicam caminhos
para o aprofundamento dessas e de outros assuntos. Trata-se de oportunidade para
perceber melhor os costumes, os hábitos, a vivência da população examinada em
domínio americano, marcado pela exploração do ouro e das pedras preciosas e pela
intensa atuação de artistas e artífices.
Conforme já mencionado, priorizou-se o viés que foca a influência portuguesa na
formação artística da Capitania de Minas Gerais. Preferiu-se adotar esse caminho
por acreditarmos que ele permite evidenciar novas perspectivas para o estudo em
questão, além de ele trazer possibilidades para um melhor conhecimento da cultura
brasileira, em especial a mineira, constituída por várias vertentes.
Levando-se em conta o primeiro ponto, no rol de questões anteriormente levantadas,
a respeito dos lugares de origem dos portugueses que povoaram as Minas, chama-nos
a atenção o modo como alguns pesquisadores brasileiros, e em particular os mineiros,
informaram tal assunto. Por exemplo, segundo Lima Júnior, em seu livro A Capitania das
Minas Gerais, Minas foi “invadida” no início de seu povoamento, entre o final do século
XVII e a primeira metade do século XVIII, por caudal humano cujos representantes
reinóis eram basicamente nortenhos, oriundos em especial da região de Braga, Viana,
Minho e Trás-os-Montes, o que certamente trouxe reflexos na produção arquitetônica
do lugar. Esse pensamento ficou expresso nas seguintes palavras:
Os judeus e cristãos novos, bandos imensos de ciganos, atiraram-se para as terras ultramarinas,
buscando a fortuna e a redenção na largueza dos sertões infindos, onde dificilmente chegariam
as importunações do Santo Ofício. Do Minho, de Trás-os-Montes, das Beiras, desciam caudais
humanos que disputavam lugares nas naus, que, formando grandes comboios, partiam para o
Brasil. Fidalgos, militares, negociantes, artífices, trabalhadores do campo, vendiam tudo quanto
possuíam e largavam-se cegos de ambição pelo ouro do Brasil2.
Tal concepção parece-nos, a princípio, restrita, uma vez que o ponto de vista
desse e de outros autores não priorizaram o conhecimento dos povoados, das vilas
e de cidades de onde partiram os denominados nortenhos para o Brasil. Não são
dados irrelevantes. São questões que nos ajudam no esclarecimento de influências
ocorridas na produção artística em território mineiro.
2 LIMA JÚNIOR, 1978: 35.
Considerações sobre os artífices e os artistas portugueses em Minas Gerais 345

Levando-se em conta as informações obtidas no arquivo da Arquidiocese de


Mariana e na obra “Dicionário de Artistas e Artífices dos Séculos XVIII e XIX em
Minas Gerais” de Judith Martins, apuramos a ocorrência de 744 registros relativos a
portugueses atuantes em Minas Gerais, especialmente durante o período setecentista,
sendo a maioria desses portugueses oriunda do Reino, cerca de 92%. No universo
trabalhado, sobressaem ainda referências a Portugal Insular e à áfrica, respectivamente
7% e 1%. São dados que podem indicar semelhanças e diferenças entre regiões
brasileiras, além de contribuir para a compreensão da dinâmica migratória e das
influências sucedidas no mundo luso.
Ao refinar a pesquisa, por meio de agrupamento de dados, é evidente como houve
predominância de nortenhos nas Minas. No universo considerado, os portugueses
provenientes das regiões de Braga e do Porto aparecem como os grandes represen-
tantes da cultura lusa na paisagem mineira, sendo evidenciados em 406 registros, o
que representa 55% do montante de 744 indivíduos. No citado montante, Braga é
detentora de 279 (38%) registros, ao passo que a região do Porto é referenciada 127
vezes, cerca de 17% do mencionado universo. Na sequência das informações apuradas,
salientamos a ocorrência de outras localidades menos citadas, como: Lisboa (30;
4%), Coimbra (27; 4%), São Miguel (19; 3%), Lamego (15; 2%), Angra (15; 2%),
Viseu (9; 1%), São Martinho (7; 1%), São Salvador (6; 1%), Ilha Terceira (6; 1%),
Guimarães (6; 1%), Barcelos (6; 1%), Valença (5; 1%). o restante desse quadro diz
ou respeito a regiões não identificadas, ou a regiões com menos de cinco registros,
conforme Gráfico n.º 1.

Gráfico n.º 1 – origem da população portuguesa em Minas Gerais, século XVIII

Fonte: MARTINS, Judith, 1974 & Arquivo da Arquidiocese de Marina.


346 Marcelo Almeida Oliveira

São informações representativas de um universo bem maior do que aquele


pesquisado até o presente momento. Mesmo assim, surgem dados que contribuem
para reflexões a respeito, por exemplo, do estudo das capelas ou igrejas de plantas
elípticas, disseminadas durante o século XVIII, como as edificadas em Portugal e no
Brasil, tais como a Igreja de São Pedro dos Clérigos no Rio de Janeiro, construída a
partir de 1733, a Igreja de São Pedro dos Clérigos em Mariana, iniciada no terceiro
quartel do século XVIII, e a Igreja de Nossa Senhora do Rosário em Ouro Preto,
edificada na segunda metade dos setecentos. O mesmo raciocínio também se aplica
às arquiteturas devocionais, destacando-se o Santuário do Bom Jesus do Monte
em Braga – 3.ª reedificação (1781-1877) – e a obra do Santuário de Bom Jesus de
Matosinhos, executada em Congonhas do Campo na segunda metade do século XVIII
e início do XIX. Não cabe aqui evoluirmos com estes assuntos, a não ser atentarmos
para a difusão de experiências construtivas ocorridas a partir das migrações entre
Portugal e Brasil, assunto evidenciado por Joaquim Jaime B. Ferreira-Alves no III
Seminário Luso-Brasileiro de História da Arte (2008).
Nesse contexto, a região do Porto – que teve parcela de contribuição no processo de
ocupação do território mineiro, conforme acima demonstrado – possivelmente serviu
de referência para a busca de soluções arquitetônicas inovadoras. A referida cidade,
durante sua história, destacou-se como ponto agregador e difusor de modernidades,
sendo facilitadora de intercâmbios. Em seu conjunto, é marcante a presença da
Igreja de São Pedro dos Clérigos na paisagem, obra iniciada em 1732, que apresenta
planta poligonal elíptica, de autoria do pintor e arquiteto italiano Nicolau Nasoni
(1691-1773).
Diante do exposto, aproveitamos para levantar outra questão, essa tratada por
Sylvio de Vasconcellos em seu livro Mineiridade, ensaio de caracterização (1968). Este
autor defende que ocorreu grande ligação entre Minas Gerais e o centro-norte de
Portugal, destacando-se a Extremadura “como a região que mais marcadamente se
reproduz nas Minas”, inclusive na produção arquitetônica do período3. Tal hipótese,
a nosso ver, merece ser mais bem investigada. Tudo indica que devemos também
empreender esforços em outra direção, ou seja, pesquisar a proximidade cultural
estabelecida entre a citada Capitania e as regiões de Braga e do Porto. Quando os
nortenhos aportaram no Brasil, trouxeram consigo traços das respectivas origens, o
que nos remete à busca de seus registros e suas obras, verificados no conteúdo do
dicionário elaborado por Judith Martins (1974).
Sobressai no conteúdo de tal referência, no âmbito das realizações arquitetônicas
ocorridas nos setecentos, a atuação de José Pereira dos Santos (?-1762). Mestre
pedreiro, natural da freguesia de São Salvador de Grijó, Comarca e Bispado do
Porto, José Pereira dos Santos esteve diretamente envolvido com iniciativas e obras
de caráter arrojado, como a contratação da construção da Igreja de São Pedro dos
Clérigos em Mariana na década de 1750 e a edificação da Igreja de Nossa Senhora
do Rosário em Ouro Preto na segunda metade do século XVIII (ver Figura n.º 1).

3 VASCONCELLOS, 1968: 126.


Considerações sobre os artífices e os artistas portugueses em Minas Gerais 347

Citamos também os “riscos” executados para a Casa de Câmara e Cadeia (1762) e a


Igreja de São Francisco (1762) em Mariana, percebidos como testemunhos do espírito
empreendedor e da excepcional habilidade do mencionado construtor.

Figura n.º 1 – Igreja de Nossa Senhora do Rosário em ouro Preto e Igreja de São Pedro dos Clérigos
em Mariana
Fotos: Marcelo Almeida oliveira.

No conjunto dos dados apurados, evidenciamos outro mestre pedreiro, também


carpinteiro, José Pereira Arouca (c.1733-1795). Segundo o livro de registro de fatos
notáveis do Vereador Joaquim José da Silva da Câmara de Mariana (1782), Arouca
teria sido discípulo de José Pereira dos Santos. São informações preciosas para
compreendermos o repasse de conhecimentos e influências culturais ocorridos na
sociedade da época. Salientamos que José Pereira Arouca era português, oriundo de
São Bartolomeu da Vila de Arouca, Bispado de Lamego, Comarca do Porto. Com
relação à trajetória de vida, não se sabe se esse construtor já trazia consigo bagagem
técnica adquirida no Reino, ou se a adquiriu somente após sua chegada no Brasil.
A sua atuação e certamente habilidade o fizeram reconhecido, o que o levou a ser
tratado como um oficial de obra, sendo uma espécie de referência para as realizações
construtivas em Mariana e ouro Preto durante boa parte da segunda metade do
século XVIII.
Diante desses e de outros casos, é surpreendente a quantidade de artífices e
artistas portugueses oriundos da região de Braga e do Porto, conforme constatado.
Tomando-se como base o apanhado documental realizado por Judith Martins (1974),
sobressaem os seguintes lugares relativos à região de Braga:
Barcellos, canavezes, cidade de Braga, conselho de Guimarães, Freguezia de Sam Thiago
de cardiellos [comarca de Valença, Termo de Viana], Freguezia de Sampayo Villar, Freguezia
de Santa Eulalia, Freguezia de Santa Maria de Alamancas, Freguezia de Santa Maria de
348 Marcelo Almeida Oliveira

Pinheyro [Concelho de Vieyra], Freguezia de Santa Maria de Terroso, Freguezia de Santa Maria
de Vigo, Freguezia de Santa Olaia de Lanhares, Freguezia de Santiago, Freguezia de Santiago
Dantas, Freguezia de São Cristovão de Gondomil, Freguezia de São Clemente de Silvary [Vila
de Guimarães], Freguezia de São João, Freguezia de São Julião de Taguassas, Freguezia de São
Martinho de Avidos Couto de Landim, Freguezia de São Martinho do Campo, Freguezia de
São Miguel da Borda de Ajudim de Basto, Freguezia de São Miguel das Marinhas, Freguezia
de São Miguel de..., Freguezia de São Miguel de Villa Cora, Freguezia de São Payo de Parada,
Freguezia de São Pedro de Bairro, Freguezia de São Pedro de Rates, Freguezia de São Pedro de
Riba Mouro [Termo da Vila de Valadares, Comarca de Valença], Freguezia de de São Pedro de
Serva, Freguezia de São Romão d’Aroins, Freguezia de São Salvador do Triguinho, Freguezia
de São Victor [cidade de Braga], Freguezia de Sardas, Lanoso, Ponte do Lanhoso, Ribeira de
Roman, Santa Maria de Ermenegilde, São Clemente de Saúde, São João de ..., São João de
Vaolim [Termo de Valladares, Comarca de Vallença], São Julião do Serapião, São Martinho de
..., São Miguel das Marinhas, São Pedro de Lamão, São Salvador da Villa do Monte [Termo de
Barcellos], São Salvador de Briteiros [Termo de Guimarães], São Thiago de Lanhoso, São Thiago
de Priscas [Termo de Barcellos], São Tiago, São Tiago de Penso [Termo da Vila de Valadares,
Vila de São Pedro de Uba de Mouro], Termo de Monção, Vianna, Vila ... dos Infantes, Vila de
Barcelos, Vila de Guimarães, Vila Nova de ..., Vila Real, Villa de Santarém, Villa de São João
de Caldas de Guimarães, Villa Real.
Quanto à região do Porto, detectaram-se registros que devem ser mais bem avaliados,
sobretudo numa perspectiva conjunta com outros pesquisadores. Ressaltamos, por
exemplo, a visão que Joaquim Jaime B. Ferreira-Alves (2009) possui a respeito da
região do Entre-Douro e Minho, intrinsecamente associada ao assunto trabalhado.
Segundo o referido pesquisador, tal região era a mais populosa de Portugal, sendo
também grande fornecedora de mão-de-obra para vários lugares, principalmente
durante o século XVI. Levando-se em conta essa e outras constatações, percebemos
que os fatos verificados ganham dimensões novas e indicam possibilidades de pesquisas.
Para se ter noção da amplitude regional do Porto, listamos localidades detectadas,
relativas à origem da mão-de-obra atuante em Minas Gerais, sobretudo no século
XVIII. Destacam-se as seguintes referências:
Arresana de Souza, Arrifana, cidade do Porto, Freguezia de Castelo do Ouro, Freguezia
de Castelões, Freguezia de Christovão de Vaz, Freguezia de Nossa Senhora da Campanha,
Freguezia de Nossa Senhora da Victoria [cidade do Porto], Freguezia de Santa Cristina de
Mansores, Freguezia de Santa Maria de Termedo, Freguezia de Santa Maria do Fromedo [Villa
de Cabuais], Freguezia de Santo Idelfonso [cidade do Porto], Freguezia de São Bartolomeu
[Vila de Arouca], Freguezia de São João da Madeira, Freguezia de São Martinho, Freguezia
de São Miguel de..., Freguezia de São Pedro de Canedo, Freguezia de São Salvador de Grijó,
Freguezia de São Salvador de Pousos, Freguezia de São Salvador de Pousos, Freguezia de São
Thiago da Villa de Ostaneira, Freguezia de São Tiago de Labão [Comarca de terra da Feira],
Freguezia de São Vicente de Alfenas [Termo do Porto], Freguezia de Silvalde, Freguezia de
Teixeira, Lessa, Lessa de Bacho, Ramalda, Santa Maria de..., Santo André de Escaxis, Santo
Estevam de Vilela, São João da Foz, São João de..., São Martinho, São Pedro de..., São Pedro
Considerações sobre os artífices e os artistas portugueses em Minas Gerais 349

de Miragaya [cidade do Porto], São Pedro de Pedroso, São Simão de Axonis da Villa da Freira,
Terra da Feira, Torre da Freira, Vila de Arrifana de Souza, Vila de Ovar.
No universo trabalhado, de 744 indivíduos, 213 pertencem ao grupo dos artistas
e artífices portugueses, cerca de 28,63%, valor significativo que nos permite avançar
com outros tipos de informações levantadas.
A próxima questão examinada, de acordo com as fontes consultadas, trata a respeito
do tipo de mão-de-obra predominante. Sobressaíram no montante dos 213 indivíduos
pesquisados, as seguintes especialidades e as respectivas porcentagens: carpinteiro
e carapina (84; 39,43%), ferreiro (59; 27,70%), pedreiro (18; 8,45%); ourives (10;
4,69%); pintor (9; 4,23%), entalhador (6; 2,82%), marceneiro (5; 2,35%), serralheiro
(5; 2,35%), torneiro (2; 0,94%) e outros com apenas um representante, como: abridor
de cunhos, armeiro, caldeireiro-marceneiro, carpinteiro-mestre das obras Reais,
engenheiro, espadeiro, espingardeiro, ferreiro-serralheiro, oleiro, pedreiro-arquiteto,
pedreiro-carpinteiro, torneiro-marceneiro, conforme gráfico n.º 2.

Gráfico n.º 2 – Especialidades predominantes dos artífices e artistas portugueses em Minas Gerais,
século XVIII

Fonte: MARTINS, Judith, 1974.

Constatamos também que grande parte da mão-de-obra portuguesa lidava direta-


mente com atividades árduas, trabalhosas, como a carpintaria e a ferraria. No geral,
quanto mais especializada a atividade ou a mão-de-obra, menor a quantidade de
pessoas envolvidas em tais serviços e, possivelmente, maiores eram as remunerações
dos trabalhos prestados. No caso específico da olaria, admitimos que a tradição
ceramista dos aborígines, repassada aos brasileiros, inibiu a atuação dos portugueses
nesse tipo de ofício, de acordo com o Quadro n.º 1.
350 Marcelo Almeida oliveira

Quadro n.º 1 – Artífices e artífices portugueses atuantes em Minas Gerais


Ofício Nome Sobrenome Origem Atuação/Brasil
Pedreiro Antônio Pereira Cedofeita 1761
Antônio Pinto Porto 1760
Antonio Cardoso da Costa Lamego 1736
Antônio da Silva Bracarena Lisboa 1756
Antônio Ferreira de Carvalho Braga 1737-1801
Antônio Gonçalves Parreiras Ilha Terceira 1731
Francisco Rodrigues* Lages Braga 1759-1778
Henrique Gomes de Brito Porto 1757-1780
João Vieira Ilha Terceira 1749
João Alves* Viana Braga 1762-1781
João Pereira Barreiros Porto 1764
João Rodrigues Araujo Braga 1764
Luiz Gonçalves* Viana Braga 1756
Manoel Ribeiro Braga 1760
Manoel da Costa oliveira Coimbra 1760-1774
Manoel de Brito Porto 1753
Manoel de Caldas* Bacelar Braga 1765
Pedro Dias Ilha Terceira 1738
ourives Agostinho Lopes de Azevedo Ilha Terceira 1738-1739
Antônio Gonçalves Veloso Braga 1738
Custódio Fernandes* Vieira Braga 1733-1748
Francisco Furtado Ilha do Fayol 1722
Francisco de Matos Pereira Lisboa 1722
João Pereira da Silva Ilha do Fayol 1735-1740
José Felix Lisboa Lisboa 1738
Manoel do Couto Sousa Porto 1735-1749
Manoel Felipe Vendime Lisboa 1721
Tomé Ferreira Porto 1748
Pintor Antonio Gualter de Macedo Braga 1738
Antônio Rodrigues Belo Porto 1738-1742
Estevam de Andrade Silva Lisboa 1749-1760
Inácio Caetano Vieira N. S. do 1764
Alecrim
Jacó da Silva Bernardes Porto 1764
Joâo de Deus Veras Lisboa 1740
José Soares de – Guarda-mor Araujo Braga 1765-1799
Manoel Gonçalves de Sousa Chaves 1744-1761
Manoel Rebelo e, ou Sousa Sousa Braga 1752-1772
Manoel José Rebelo
Considerações sobre os artífices e os artistas portugueses em Minas Gerais 351

Ofício Nome Sobrenome Origem Atuação/Brasil


Entalhador Antonio Pereira Machado Braga 1747-1753
Felipe Vieira Braga 1747-1764
Francisco Nunes Braga 1735
João de Figueiredo Braga 1721
Manoel Fernandes* Pontes Vila de 1738-1741
Barcelos
Pedro Monteiro de Sousa Braga 1733-1741
Marceneiro Antonio Ramos Villa de 1731
Alcobaça
Antônio de oliveira Braga Braga 1753-1765
Antônio Ferreira Bessa Braga 1738-1749
Manoel José Alves Guarda 1753
Simão Franco Monteiro Coimbra 1753-1755
Serralheiro Amaro de Sousa Porto 1721
Antônio Fernandes Rosado Coimbra 1759-1766
Antônio José Pereira Algarve 1743-1753
João Teixeira Bragança Braga 1749
Manoel Dorta Lisboa 1738
Torneiro Antônio da Costa Ilha Terceira 1721
Manoel Alvares Braga 1731
Carpinteiro e João de Andrade Braga 1746-1753
marceneiro
Abridor de João Gomes Batista Lisboa 1724-1784
Cunhos
Torneiro- Antônio Ferreira Beça Braga 1734-1760
Carpinteiro
Torneiro- Manoel de Sousa Brito Porto 1721
Marceneiro
Ferreiro e Manoel da Cunha Lima Ergueiro 1738-1746
Serralheiro
Engenheiro José Fernandes Pinto, Sargento Alpoim Viana do 1736-1765
Mór Castelo
Carpinteiro Manoel Francisco Lisboa Lisboa 1727-1766
e Mestre das
obras Reais
Pedreiro e José Pereira* Arouca Porto 175?-1794
carpinteiro
Espingardeiro Antônio Lopes da Rocha Braga 1753
Pedreiro e José Pereira dos* Santos Porto 1752-1762
arquiteto
Espadeiro Antônio Carvalho da Silva Porto 1731
Armeiro Manoel José Vieira Braga 1800
* Testamento
Fonte: MARTINS, 1974.
352 Marcelo Almeida Oliveira

Durante o período setecentista, as oportunidades de trabalho influíram decisi-


vamente na difusão de conhecimentos específicos e na formação de mão-de-obra
nativa, sobressaindo-se nomes já bastante estudados como os dos brasileiros Antônio
Francisco Lisboa (c.1730-1814) e Manoel da Costa Ataíde (c.1762-1830). Fora do
circuito das vilas e cidades, a realidade era outra, como demonstrado no relato de
D’Orbigny, referente à primeira metade dos oitocentos,
Em Minas, cada um é o seu próprio arquiteto. Para se construir uma casa, cravam-se no
chão (...) pedaços de pau brutos (...). Quanto aos tetos, compõem-se dos ramos e das folhas de
uma gramínea chamada sapé pelos habitantes (...)4.
Diante da dificuldade de acesso à região das Minas, da extensão do seu território
e da existência de demandas específicas de trabalho nos aglomerados, inferimos que
a maior concentração de mão-de-obra especializada acontecia principalmente nas
áreas mais urbanizadas, onde havia requintes de vida civilizada desde os setecentos.
A ocorrência de tal situação é evidente em Ouro Preto e Mariana, onde elevado
número de obras testemunhou a participação de artífices e artistas portugueses. No
caso de Ouro Preto, assumiu a função de capital da Capitania a partir de 1720 e
passou a ser sede do poder temporal. Quanto à Mariana, tornou-se a partir de 1745 a
primeira sede de bispado em Minas, sendo elevada à condição de cidade. Esta deixou
de ser conhecida oficialmente como Vila do Ribeirão do Carmo, sendo tratada pelo
nome da esposa de D. João V, Dona Maria Ana. Eram lugares distintos da maioria,
onde se evidenciaram e se materializaram as mais diversas manifestações dos poderes
secular e religioso.
Constatamos também a participação dos portugueses em outras partes da Capita-
nia, igualmente propícias ao fomento da produção artística durante o século XVIII.
Nesse contexto, Sabará aparece referenciada 13 vezes, o que representa 5,35% do
universo trabalhado, seguida de Tiradentes (11; 4,53 %), Rio das Pedras (10; 4,12%),
Congonhas do Campo (9; 3,70%). Outros sítios como Catas Altas, Rio Acima, Santa
Luzia, São João Del Rei aparecem evidenciados 8 (3,29%) vezes cada um. Quanto
às ocorrências de Caeté, Campanha, Pitangui e Raposos, notam-se 5 (2,06%) regis-
tros para cada um desses lugares. No tocante a Curral Del Rei, Prados, Santa Rita
Durão, esses locais aparecem com 4 (1,65%) registros, Itambé com 3 (1,23%) e no
caso de Barbacena, de Cachoeira do Campo, de Camargos, de Conselheiro Lafaiete,
de Fidalgo, de Mateus Leme, de São Brás do Suaçui, de São Miguel do Piracicaba,
encontram-se evidenciados com 2 (0,82%) registros. Com 1 (um) registro, verificam-se
a ocorrência de Baependi, de Barão de Cocais, de Barra do Caeté, de Betim, de Bom
Retiro da Roça Grande, de Brumado, de Carrancas, de Conceição do Mato Dentro,
de Diamantina, de Furquim, de Glaura, de Guarapiranga, de Itabira, de Itatiaia, de
Itaverava, de Monsenhor Horta, de Roças Novas, de Santa Bárbara, de São João da
Lagoa e de Serro, conforme Gráfico n.º 3.

4 D’ORBIGNY, 1976: 146.


Considerações sobre os artífices e os artistas portugueses em Minas Gerais 353

Gráfico n.º 3 – Locais de atuação dos artífices e artistas portugueses em Minas Gerais, século XVIII

Fonte: MARTINS, Judith, 1974.

Salientamos a necessidade da realização de trabalho mais apurado de pesquisa


nos arquivos de Diamantina e Serro. Consideramos que em tais lugares houve forte
influência da cultura portuguesa, principalmente devido ao tipo de administração
ocorrido na região, baseada numa relação direta com a metrópole, tendo em vista o
rígido controle exercido sobre a extração de diamantes. Isso é indício para acreditarmos
numa maior atuação de artífices e artistas portugueses em tal realidade, ao contrário
do que sugerem os dados levantados até o presente momento. outro aspecto, que nos
faz apostar na citada ideia, é a evidência que houve a valorização das artes no âmbito
local, sobretudo em Diamantina, fato que levou o viajante Saint-Hilaire, no início
do século XIX, a estabelecer diferenças em relação a outras regiões. o mencionado
viajante reparou que as pessoas encontradas ali tinham “mais ilustração que em todo
o restante do Brasil, mais gosto pela literatura, e um amor mais vivo pela instrução”5.
Antes de determo-nos em outro ponto, é importante perceber que a maioria
das localidades acima referidas situava-se ao longo de antigos caminhos, como a
Estrada Real que interligava a região Diamantina à Capitania do Rio de Janeiro.
Tal assunto torna-se ainda mais instigante ao ser examinado a partir da geografia,
que nos mostra com clareza a relação estabelecida, por exemplo, entre os acessos
disponíveis, os recursos naturais existentes e os lugares de onde se extraíam as
riquezas, pedras preciosas e ouro. Numa visão abrangente, relativa ao processo de

5 SAINT-HILAIRE, 1974: 24-25.


354 Marcelo Almeida oliveira

ocupação do território, sobressaem as bacias dos rios Grande, das Velhas e a cadeia
de montanhas da Serra do Espinhaço, referências marcantes na paisagem mineira.
Na sequência de questões a serem desenvolvidas, é importante também enfocar os
tipos de registros em que se notam informações relativas ao objeto de nosso estudo.
Nesse universo, destacam-se documentos arquivados pela Igreja e que ilustram
fatos associados a comportamentos e valores de uma época. Graças aos serviços de
cunho arquivístico, executados de modo austero por religiosos, avançamos na síntese
de dados. Atendo-se a tal fato, ressalta-se o seguinte dizer contido no interior do
Catálogo Geral da Arquidiocese de Mariana:
(...) até a República (15.IX.1889), antes do aparecimento dos cartórios, a Igreja serviu como
zelosa tabeliã, guardando registro dos batizados e nascimentos, matrimônios, óbitos da população e
ainda serviu como escrínio, cofre fiel dos testamentos e outros contratos celebrados entre as partes (...).
No intuito de estudarmos os portugueses em Minas e particularmente os artífices
e artistas, deparamo-nos com documentos relativos ao controle exercido pela Igreja,
sobressaindo-se nesse sentido a administração exercida por Dom Frei Manoel da Cruz,
primeiro bispo de Mariana (1745-1764). Das 213 referências relativas à população
atuante na construção de nosso patrimônio, 136 registros pertencem ao conteúdo
do Livro de Devassas, cerca de 63,85% do montante das referências apuradas. os
outros tipos de registros também encontram-se associados direta ou indiretamente
à administração eclesiástica, destacando-se o Livro de Registro de Termos de Visitas
(39; 18,31%), o Livro de Cartas de Exames e Provisões de ofícios (9; 4,23%), os
Testamentos e Livros de Termos de Admoestações (7; 3,29%), o Livro de Óbitos (6;
2,82%), além dos Autos de Cobrança (1; 0,47%), de acordo com o Gráfico n.º 4.

Gráfico n.º 4 – Tipos de documentos com referências aos artífices e artistas portugueses em Minas
Gerais, século XVIII

Fonte: MARTINS, Judith, 1974.


Considerações sobre os artífices e os artistas portugueses em Minas Gerais 355

Cabe aqui ressaltar, novamente, parte do Catálogo Geral da Arquidiocese de


Mariana, referente ao papel desempenhado pela Igreja nas admoestações e, sobretudo,
nas devassas. No que se refere a estas, eram
investigações oficiais, presididas pela autoridade episcopal, sobre a conduta moral e religiosa dos
eclesiásticos e dos fiéis que aconteciam periodicamente pelas freguesias. Os bispos delegavam jurisdição a
assessores seus, chamados de Visitadores, que percorriam o território do bispado, averiguando a situação
moral, religiosa das paróquias, com a tomada de vários depoimentos de testemunhas juramentadas.
Os Visitadores descobriam irregularidades, erros, escândalos, denunciavam e cobravam
emendas dos culpados (...).
Exemplificamos a citada prática por meio do que ficou expresso num trecho do
Livro de Devassas:
João da Rocha Machado, homem solteyro, que vive de rossa, natural da Ilha Terceyra,
Bispado de Angra, morador nesta Freguezia, testemunha juramentada aos Santos Evangelhos,
disse que tinha de idade quarenta e sinco annos.
E perguntado pellos interrogatorios da visita que lhe foram lidos, disse nada e assinou. Eu
o Pe. Antonio Jose de Moura que o escrevy. (...)6.
Quanto às admoestações, consideramo-las como advertências, avisos ou con-
selhos direcionados àqueles que infringiam os preceitos estabelecidos pela Igreja e
encontravam-se em situação ofensiva perante a sociedade reinol. os documentos
testemunham muitas vezes a licenciosidade de costumes, no que se refere a relações
de concubinato entre homens brancos e escravas. Vários desses homens brancos eram
artífices, segundo registros contidos na obra de Judith Martins (1974).
Atentamos também para o período de maior incidência de documentos relativos
à presença portuguesa em Minas (ver Gráfico n.º 5). No que tange à atuação do
Gráfico n.º 5 – ocorrência de registos relativos aos artífices e artistas portugueses em Minas Gerais

Fonte: MARTINS, Judith, 1974.

6 ARQuIVo DA ARQuIDIoCESE DE MARIANA – Livro de Devassas, 1745: 1.


356 Marcelo Almeida Oliveira

grupo estudado, identificamos que a época entre as décadas de 1720 a 1760 foi a
mais evidente e talvez a mais profícua para os artífices e artistas lusitanos, o que deve
ser tratado como parte de um contexto em que sobressai a crescente afirmação dos
poderes laico e religioso, o forte controle administrativo sobre a extração de riquezas
do solo e certo acúmulo de bens por parte da população. Com relação a esses pontos,
citamos dois fatos marcantes: a realização do Triunfo Eucarístico (1733) em Vila Rica,
organizado a partir da trasladação do Santíssimo Sacramento, manifestação clara da
afirmação de poderes na sociedade da época, e a crescente arrecadação de quintos
da extração do ouro, principalmente entre os anos de 1735 a 1751.
Quanto ao acúmulo de bens, ao consultarmos o Catálogo Geral do Arquivo da
Arquidiocese, notamos que houve expressivo número de testamentos entre os anos
de 1771 a 1780, cerca de 33 (22,15%) do montante de 149 testamentos realizados
pelos portugueses durante o século XVIII. Para termos noção desse montante, iden-
tificamos apenas 3 (2,01%) testamentos entre os anos de 1711 a 1720, 5 (3,36%)
entre 1721 a 1730, 6 (4,03%) entre 1731 a 1740, 14 (9,40%) entre 1741 a 1750,
24 (16,11%) entre 1751 a 1760, 26 (17,45%) entre 1761 a 1770, 21 (14,09%) entre
1781 a 1790, 17 (11,41%) entre 1791 a 1800 e apenas 2 (1,34%) registros no século
XIX. Atentamos também para o número de pedreiros que expressaram suas vontades
nos testamentos, conferir Quadro n.º 1.
Os dados sugerem que, sobretudo a partir da segunda metade dos setecentos, já
havia condições propícias ao acúmulo de bens, concentrados em poder de parte da
população reinol e seus beneficiários. Nesse período, observam-se além do apuro
arquitetônico nas edificações urbanas, maior preocupação com o ordenamento do
espaço nas vilas e cidades, fato exemplificado nas realizações ocorridas na sede da
Capitania, entre os anos de 1740 a 1760, como salienta Vasconcellos7.
O apuro em tais obras era reflexo das oportunidades e da ocorrência de mão-
de-obra especializada na Capitania, sobressaindo-se nessa conjuntura a atuação
de portugueses como: o entalhador Felipe Vieira, o abridor de cunhos João Gomes
Batista, o engenheiro José Fernandes Pinto Alpoim (Sargento Mor), o carpinteiro
e Mestre de Obras Reais Manoel Francisco Lisboa e o pintor José Soares de Araújo
(Guarda Mor), dentre outros. Nota-se ainda o expressivo número de entalhadores
bracarenses que atuaram nas Minas (ver Quadro n.º 1).
Em Minas Gerais, havia ambiente propício ao desenvolvimento das artes e dos
ofícios, fato associado às rivalidades existentes entre os diversos grupos da sociedade
local, às regulações estabelecidas pelas corporações religiosas, ao controle camarário
desempenhado por meio dos juízes de ofícios, à realização de experiências práticas, às
possiblidades de aprendizado disponíveis aos muitos entalhadores, ferreiros, marcenei-
ros, ourives, pedreiros pintores, serralheiros e torneiros atuantes nas vilas e cidades.
Nesse ambiente fervilhante de ideias, reforçamos a importância de detectar os meios
de repasse de conhecimentos. Sabe-se, por exemplo, de uma possível ligação entre
Antônio Francisco Lisboa (c.1730-1814), mais conhecido pelo codinome “Aleijadinho”, e

7 VASCONCELLOS, 1956: 114.


Considerações sobre os artífices e os artistas portugueses em Minas Gerais 357

o desenhista, pintor, também abridor de cunhos, João Gomes Batista (?-1788), discípulo
de Francisco Vieira na cidade de Lisboa, segundo registro do Vereador Joaquim José
da Silva da Câmara de Mariana (1782). Além dessa e de outras influências recebidas,
num mundo pautado por empreitadas, louvações e riscos atribuídos a Manoel Francisco
Lisboa8, salientamos que Antônio Francisco Lisboa é reflexo de uma época favorável
ao desenvolvimento de habilidades técnicas e ao apuro das artes.
No referido mundo, não podemos negar que os portugueses disseminaram conhe-
cimentos, procedimentos e técnicas relacionadas às origens e às demandas existentes.
O entendimento dessas questões certamente contribuirá com novas possibilidades
de pesquisa.

Bibliografia
ACAYABA, Marlene Milan (coord.), 2001 – Equipamentos, usos e costumes da casa brasileira, São
Paulo: Museu da Casa Brasileira.
ARQUIVO DA ARQUIDIOCESE DE MARIANA – Catálogo Geral 1.
ARQUIVO DA ARQUIDIOCESE DE MARIANA – Livro de Devassas, 1745.
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arte no Brasil Colonial, São Paulo: Nobel, pp. 103-135.
D’ORBIGNY, Alcides, 1976 – Viagem pitoresca através do Brasil, São Paulo: EDUSP/ Belo Horizonte:
Itatiaia.
LIMA JÚNIOR, Augusto de, 1978 – A capitania das Minas Gerais, 1.ª edição (1940), Belo Horizonte:
Editora Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.
MARTINS, Judith, 1974 – Dicionário de artistas e artífices dos séculos XVIII e XIX em Minas Gerais, 2
volumes, Rio de Janeiro: Departamento de Assuntos Culturais, Ministério da Educação e Cultura.
MELLO, Suzy de, 1985 – Barroco Mineiro, São Paulo: Brasiliense.
MENESES, José Newton Coelho, 2007 – “Homens que não mineram: oficiais mecânicos nas
Minas Gerais Setecentistas”, in RESENDE, Maria Efigênia Lage de, VILLALTA, Luiz Carlos
(orgs.) – As Minas Setecentistas, vol. 2, Belo Horizonte: Autêntica; Companhia do Tempo,
pp. 378-399.
SAINT-HILAIRE, Auguste de, 1974 – Viagem pelo Distrito dos Diamantes e litoral do Brasil, Belo
Horizonte: Itatiaia.
SANTIAGO, Marcelo Moreira, Padre, et al, 2006 – Igreja de Mariana: 261 anos de história, 100
anos como arquidiocese 1906-2006, Mariana (MG): Dom Viçoso.
TRINDADE, Jaelson Bitran, 1989 – “Arte e Sociedade: o barroco no Brasil”, in II Congresso do
Barroco no Brasil, arquitetura e artes plásticas, Resumo das Comunicações, Revista Barroco.
Ouro Preto: Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Fundação Nacional
Pró-Memória, Centro de Pesquisas do Barroco Mineiro, Universidade Federal de Ouro Preto.
VASCONCELLOS, Sylvio de, 1956 – Vila Rica: formação e desenvolvimento – residências. Rio de
Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, Instituto Nacional do Livro.
VASCONCELLOS, Sylvio de, 1968 – Mineiridade, ensaio de caracterização, Belo Horizonte:
Imprensa Oficial.

8 MARTINS, 1974: 364-367.


Artistas e artífices a serviço das irmandades religiosas
do Recife nos séculos XVIII e XIX
Maria Berthilde Moura Filha

Introdução
As irmandades, suas igrejas e os artistas que as edificaram são os objetos de análise
da presente comunicação que tem como objetivo expor o panorama artístico gerado
na cidade do Recife a partir da ação das diversas irmandades religiosas ali instituídas,
em decorrência do crescimento e estratificação da sociedade urbana.
Principia-se por apresentar o contexto sócio-econômico do Recife naquela época,
para em seguida situar o surgimento dessas irmandades e enumerar os artistas e
artífices envolvidos na construção e ornamentação das igrejas erigidas para as sediar.
Esta trajetória torna possível compreender a participação destas instituições no
desenvolvimento da arquitetura e da arte sacra, em Pernambuco.
São muitos os obstáculos encontrados para levar a cabo pesquisas desta natureza
no Brasil, sendo agravante a falta de documentação e o difícil acesso aos arquivos.
Diante destas dificuldades e tratando-se de fazer uma primeira sondagem sobre as
irmandades e seus artistas, o artigo foi fundamentado em diversas fontes bibliográficas
que, no passado, reuniram informações documentais, muitas das quais hoje inexistentes.
Após sistematizar os dados obtidos em função do objetivo a ser atingido, vislumbra-se
o desejado panorama artístico, apesar das inúmeras lacunas resultantes da escassez
de fontes documentais, fato que indica um necessário aprofundamento no estudo
desta questão.

O contexto: o Recife do século XVIII


Pernambuco foi uma das capitanias hereditárias concedidas por D. João III, em
1534. Seu donatário, Duarte Coelho, veio pessoalmente conquistá-la e, imbuído dos
seus deveres, fundou ali duas vilas: Igarassu e Olinda, escolhendo esta para sede de
sua capitania.
360 Maria Berthilde Moura Filha

O sítio em que foi assentada a vila de Olinda não era adequado à atividade por-
tuária, essencial para a economia predominante em Pernambuco, que desde o início
se caracterizou como uma fértil região produtora de açúcar. Nestas circunstâncias, a
premente necessidade de um porto levou a implantá-lo em uma península próxima
e naturalmente protegida por uma linha de arrecifes. Foi esta a origem da cidade do
Recife, cuja gênese foi assim sintetizada por Josué de Castro:
E assim formou-se, sobre os areais da península, esgueirada entre o Rio Capibaribe e o mar,
uma pequena aldeia conhecida pelo nome de O Povo ou a Povoação dos Arrecifes. Povoação
criada para servir ao porto e, portanto, como uma conseqüência direta de sua atividade específica,
com sua vida e seu futuro indissoluvelmente ligados à vida do porto1.
O porto e a povoação prosperaram, acompanhando o crescimento econômico da
capitania de Pernambuco, considerada uma das mais ricas do Brasil. Novas estruturas
edificadas foram surgindo: uma ermida cercada de casas, armazéns para a guarda
do açúcar, os fortes necessários à defesa contra os corsários. Em frente à península,
numa ilha situada entre dois braços do Rio Capibaribe, os franciscanos edificaram
um convento, marcando o início da ocupação da “Ilha de Antônio Vaz”. Foi esta
a realidade encontrada pelos holandeses quando, em 1630, ocuparam Pernambuco
e fixaram-se junto ao porto, marcando em definitivo o desenvolvimento do Recife.
Enviado ao Brasil pela Companhia das Índias Ocidentais, em 1637, o Conde Mau-
rício de Nassau encontrou mudanças neste quadro edificado. Estas foram registradas
em uma carta do Conselheiro Johan Ghijselin, que havia estado em Pernambuco, em
1634, e retornava com Nassau: “Encontro aqui no Recife, desde a minha partida,
uma mudança extraordinária em casas de comerciantes, nos negócios e construções
que diariamente se iniciam em grande número, tão belas quanto na pátria, de modo
que dificilmente há lugar para nos alojarmos e muito menos para construir”2.
Sob o governo de Nassau (1637-1642) foi implantada, na Ilha de Antônio Vaz, a
“Cidade Maurícia”, seguindo um plano de construções ordenadas, no qual se destacavam
os palácios de Friburgo, da Boa Vista e um sistema de construções defensivas. Esta
passou a ser a capital do Brasil holandês, cujo território sob seu domínio abrangia a
extensão entre os atuais estados do Ceará e Alagoas.
Mas encerrado o governo de Maurício de Nassau, teve início um período de
conflitos que acabou levando à chamada “Insurreição Pernambucana”, movimento
armado que marcou o fim do domínio holandês no Nordeste do Brasil, em 1654.
Os luso-brasileiros retomaram o poder sobre toda a região, sucedendo a partir de
então um longo período de restauração econômica, política e física, uma vez que os
engenhos de açúcar, povoados e vilas, em grande parte, precisavam ser reconstruídos
por estarem bastante castigados pelas batalhas. Neste contexto, havia espaço de atuação
para homens que quisessem investir recursos e um mercado de trabalho receptivo,
absorvendo a mão-de-obra apta a participar daquele processo de reconstrução.

1 CASTRO, 1954: 73.


2 MELLO, 1987: 43.
Artistas e artífices a serviço das irmandades religiosas do Recife nos séculos XVIII e XIX 361

Segundo José Antônio Gonçalves de Mello, após 1654, foi retomada a vinda de
portugueses para Pernambuco. Predominavam os mercadores e mestres de ofícios
que vinham preencher as vagas deixadas pelos holandeses. E segundo Mello, naquela
época, “as oportunidades de fortuna para homens de negócios e oficiais mecânicos
eram grandes”, devido ao restabelecimento do comércio entre a capitania de Per-
nambuco e o Reino3.
O Recife, em especial, viveu a partir da segunda metade do século XVII, um
período de transformações. Foi esvaziado da função política que tivera durante o
domínio holandês, por esta retornar para Olinda, mas o crescente comércio estabele-
cido, a partir do porto, atraiu muitos forasteiros que para aqui vieram tentar a sorte.
Fazendo grandes fortunas, esses comerciantes se transformaram em fornecedores e
financiadores da safra dos engenhos de açúcar, fazendo surgir uma nova classe – os
mascates, que vieram a concorrer com a chamada nobreza da terra.
Firmando-se economicamente, o Recife foi elevado à condição de vila, em 1709,
fato que acabou gerando a “Guerra dos Mascates”, pois os latifundiários pernam-
bucanos não aceitaram a emancipação político-administrativa do Recife, até então
subordinado a Olinda. Em 1711, a burguesia mercantil recebeu o apoio da metrópole
e a nova vila manteve a sua autonomia.
Assim, em princípios do século XVIII, o Recife estava política e economicamente
estável para galgar seu desenvolvimento, tendo por suporte as atividades comerciais
e portuárias. A imagem urbana foi sendo renovada, tendo ênfase as construções
religiosas, por ação das ordens monásticas aí instaladas, mas também pela ação das
irmandades.
Devido ao seu caráter comercial, o Recife reunia uma população estratificada
em diversas classes sociais – desde os ricos mascates até os escravos – favorecendo a
formação de irmandades religiosas. Estas irmandades se faziam representar na paisa-
gem urbana, através das igrejas edificadas pelos ricos senhores das ordens terceiras
do Carmo e São Francisco, pelos comerciantes devotos do Santíssimo Sacramento,
pelos clérigos da irmandade de São Pedro, ou pelos artífices reunidos sob a evocação
de São José do Ribamar.

As irmandades
As Irmandades surgem no Brasil no início do período colonial, tornando-se mais
presentes nos séculos XVII e XVIII. Segundo Eduardo Hoornaert (1998), a formação
das Irmandades, Confrarias e Ordens Terceiras era o caminho adotado por alguns
grupos sociais para gozar um pouco da elitização proporcionada pela vida religiosa.
Porém, para outros estratos da sociedade, a participação nas irmandades era uma
forma de defesa contra as agruras do sistema colonial, determinadas por questões
econômicas ou raciais. Assim, as irmandades compostas por negros e pardos traziam

3 MELLO, 1957: 18.


362 Maria Berthilde Moura Filha

esse caráter de libertação e resistência, enquanto as irmandades de brancos tinham


caráter elitista.
Contexto como aquele identificado em Recife era propício à formação de um
relevante número destas associações religiosas. Na medida em que crescia, o Recife
demandava uma maior diversidade de serviços atrelados ao transporte, comércio e
ao provimento de gêneros do mercado interno. Estes eram realizados pelos vários
grupos que compunham a população: artífices, comerciantes, escravos, senhores de
engenho, homens do clero, da administração civil e militar, etc.4.
Nesta sociedade tão heterogênea, seus diversos estratos encontravam uma forma
de ganhar força e representatividade unindo-se em irmandades. Além da função
religiosa, estas assumiam um papel assistencialista, prestando aos seus membros
serviços médicos, ajuda financeira, organizando orfanatos e abrigos para a população
em geral. Segundo Virgínia Almoêdo, este duplo papel das irmandades fez com que
as mesmas funcionassem “como entidades de classe, no melhor sentido do termo, e
acabam servindo como instrumentos de ação social”5.
Isto fica mais evidente quando se observa a constituição das diversas irmandades
presentes no Recife, no século XVIII, a começar por aquela que melhor representava
o caráter de resistência de uma classe: a de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos.
Os negros escravos, retirados de suas famílias de origem, buscavam reestruturar
uma comunidade, segundo os moldes permitidos pela Igreja. Assim reuniam-se em
irmandades, criando mecanismos para melhor sobreviver perante a difícil realidade
que lhes foi imposta no Brasil colonial, contando com as relações estabelecidas para
ascenderem socialmente, ou até mesmo chegar a comprar sua alforria6. Perante o
significado que tinha a Irmandade do Rosário para os homens pretos, estes não mediam
esforços para construir seu templo, tão rico quanto aqueles erguidos pela nobreza,
apesar da condição miserável que tinham, demonstrando o desejo de reconhecimento
social que os alimentava.
Outros extratos da sociedade do Recife tinham nas irmandades, o mesmo sentido
de organização de classe. Assim ocorreu com a Irmandade de São José do Ribamar,
instituída por carpinteiros, pedreiros, marceneiros e tanoeiros, por volta de 1735.
A congregação religiosa foi a forma encontrada por estes artífices para organizar e
regulamentar suas atividades profissionais, na ausência de corporações de ofícios.
Compunham a Irmandade de São José diferentes grupos de artífices mecânicos: além
dos oficiais brancos, que possuíam reconhecimento perante a sociedade e ostentavam
um relativo status, havia artífices pobres, negros forros e pardos, denunciando as
próprias características dos oficiais no Brasil7.
Entre as camadas médias da pirâmide social do Recife, surgiram outras irmandades:
a de Nossa Senhora do Terço cujos irmãos eram, em sua grande maioria, modestos
comerciantes e artífices do Bairro de São José; a irmandade de São Pedro dos Clérigos,

4 MONTE, 2008.
5 ASSIS, 1988: 77.
6 SILVA, 2001: 7.
7 SILVA, 2008.
Artistas e artífices a serviço das irmandades religiosas do Recife nos séculos XVIII e XIX 363

instituída por estes, a 26 de Junho de 17008; a irmandade de Nossa Senhora da


Conceição dos Militares, organizada em 1722, por “militares de primeira linha dos
corpos de fuzilaria e cavalaria” da guarnição do Recife, sendo excluídos os militares
da artilharia, por já terem irmandade própria, sob a invocação de São João Batista9.
Representando o topo da pirâmide social estavam as ordens terceiras do Carmo
e de São Francisco, bem como a Irmandade do Santíssimo Sacramento. Estas
expressavam a riqueza dos mascates que fizeram do Recife um núcleo de progresso,
e da nobreza local associada aos senhores de engenho e líderes políticos da capitania
de Pernambuco.
A Ordem Terceira do Carmo surgiu juntamente com as obras de construção
do convento carmelita, sendo instituída através de um Breve apostólico, em 20 de
Outubro de 1695, atendendo a requerimento de vários irmãos terceiros residentes
no Recife10.
É dessa época, também, a Ordem Terceira de São Francisco, cuja criação foi
autorizada, em 12 de Junho de 1695, pelo visitador geral da Província Franciscana
do Brasil, atendendo, da mesma forma, ao apelo de irmãos terceiros ali residentes.
Eram estes, em sua grande maioria, mascates, alguns deles de muitas posses, como
o mestre pedreiro Antônio Fernandes de Matos11.
Por sua vez, a Irmandade do Santíssimo Sacramento surgia como o local de
congregação da aristocracia pernambucana em busca de prestígio social. Referindo-se
a esta instituição, disse Fernando Pio:
E realmente mereciam as irmandades do Santíssimo Sacramento os grandes foros de nobreza
que lhes eram concedidos pelas leis portuguesas, se atentarmos, em quaisquer delas, através dos
livros de entradas de irmãos, para a quantidade invulgar de barões, condes e viscondes que pelo
correr dos tempos ali se acham inscritos12.
Independente dos particulares propósitos que cada uma das classes sociais aqui
referidas tinha para se reunir em torno de uma irmandade religiosa, todos buscavam
marcar sua presença na cidade através da construção de um templo, cuja magnitude
da arquitetura, ora demonstrava a riqueza de alguns estratos da sociedade, ora o
esforço empreendido para exibir uma conquista social decorrente da união de irmãos
em torno de um santo de devoção. Com a edificação de seus templos, contribuíram
estas irmandades religiosas para a “urbanidade” e para a estruturação urbana da vila
do Recife, ao longo do século XVIII, em particular da Ilha de Santo Antônio, onde
as torres destes templos pontuam a paisagem urbana (Figura n.º 1)

8 MENEZES, 1984: 19.


9 GUERRA, 1970: 119.
10 GUERRA, 1970: 151.
11 GUERRA, 1970: 169.
12 PIO, 1973: 75.
364 Maria Berthilde Moura Filha

Figura n.º 1 – Implantação das igrejas distribuidas sobre o “Plano da Villa de S. Antonio do Recife de
Pernambuco situado em 8 grao”. C. 1771
A – Ig. de São José do Ribamar F – ordem Terceira de S. Francisco
B – Ig. N. Sra. do Terço G – Ig. Matriz do S. Sacramento de Santo Antônio
C – Ig. S. Pedro dos Clérigos H – Ig. N. Sra. da Conceição dos Militares
D – Ig. de S. Teresa da ordem Terceira do Carmo I – Ig. Matriz do S. Sacramento da Boa Vista
E – Ig. do Rosário dos Pretos
Fonte: REIS FILHO, 2000.

No que concerne às artes, criaram estas irmandades um “mercado de trabalho”


mais amplo para os artistas e artífices dos diversos ofícios da construção, pintura,
escultura, ourivesaria, etc. possibilitando o desenvolvimento artístico local e a afir-
mação de nomes de destaque no panorama pernambucano do século XVIII e XIX,
como se apresentará a seguir.

As obras e os artistas
Com o objetivo de apresentar os artistas e artífices que atuaram na construção e
decoração dos templos das irmandades referidas, expõe-se um pouco sobre a história
destes templos, situando as obras realizadas ao longo dos séculos XVIII e XIX.
Artistas e artífices a serviço das irmandades religiosas do Recife nos séculos XVIII e XIX 365

Igreja do Rosário dos Homens Pretos de Santo Antônio


Uma primitiva igreja da Irmandade do Rosário dos Pretos remonta a meados do
século XVII, sendo substituída pelo templo atual que foi iniciado por volta de 1725
e concluído em 177713.
Algumas obras estão identificadas na igreja velha, cuja decoração interior sofreu a
demora decorrente das poucas esmolas. Em 1699, a irmandade investiu 229$750 no
douramento do retábulo da capela-mor; quatro anos depois mandou fazer um novo
consistório; em 1706, os irmãos estavam decididos a mandar buscar em Lisboa todos
os materiais necessários para forrar a capela-mor com frisos e molduras douradas14.
As pesquisas desenvolvidas por Robert Smith (1988) e Judith Martins (s.d.) apontam
uma série de artistas que trabalharam para a irmandade, tanto na primitiva igreja
quanto na atual, como especificam as datas dos registros documentais: Domingos
Lopes, pedreiro, fez todo o telhado da igreja (1687); Francisco Gonçalves, pintor, fez
cinco painéis do forro (1715); Antônio Álvares, marceneiro, confeccionou a porta
(1722); Manoel Álvares, entalhador, fez uma charola e um sacrário (1726); Manoel
Gomes, pedreiro, fez obras para a irmandade entre 1686 e 1725; João Rocha, ourives,
executou uma naveta e vaso da comunhão em prata (1722); Francisco Rodrigues,
pintor, encarnou uma imagem de Cristo e cruz da sacristia (1725); Pedro de Matos,
pedreiro, trabalhou na construção da torre e no retelhamento da sacristia e igreja;
Manoel Pais de Lima, entalhador, para quem há várias referências de pagamentos,
em 1715, por conta dos trabalhos de “entalha do frontispício”, não sendo estes
especificados.
Em documento citado por Flávio Guerra, consta que a 21 de Dezembro de 1748,
a irmandade deliberava sobre “como fazer o novo interior da igreja, porquanto a obra
já executada atingia a altura do grande arco da Capela-mor”. Foi então chamado o
pedreiro Paulo Luiz Fiesco, para apresentar sugestões e pareceres15.

Igreja de São José do Ribamar


A origem da irmandade remonta ao ano de 1653, surgindo a partir de uma capela
mantida por alguns marceneiros. Instituída por volta de 1735, reuniu carpinteiros,
marceneiros, tanoeiros e pedreiros, que resolveram erguer a Igreja de São José do
Ribamar.
A pedra fundamental foi lançada em 29 de Junho de 1752, mas as obras só foram
iniciadas quatro anos mais tarde, transcorrendo muito lentamente, devido aos poucos
recursos de seus irmãos. Em 1779, foi feito o telhado e, em 1782, assentada a porta
principal, confeccionada por Manuel Gomes. Em 1788, a igreja estava inacabada,

13 GUERRA, 1970: 109.


14 SILVA; 2002: 201.
15 GUERRA, 1970: 111.
366 Maria Berthilde Moura Filha

recebendo o apoio do governador de Pernambuco, Tomás José de Melo, para a sua


conclusão, que ocorreu em 179716.
A irmandade de São José do Ribamar era encarregada da regulamentação e fisca-
lização do exercício das profissões de carpinteiro, marceneiro e outras em atividade
naquela época. Embora desempenhasse esta função, são poucos os registros conhecidos
sobre os artistas envolvidos na construção do seu templo.
Entre estes, surge José de Oliveira Barbosa, que em 1791 residia em casa perten-
cente à irmandade e foi encarregado da elaboração de alguns projetos para o templo.
Estando inadimplente, em 1795, teve sua dívida perdoada em função dos trabalhos que
realizou para a igreja e de “toda obra como seja da talha da capela-mor e frontispício,
porta principal e púlpito e o mais que precisava o consistório”17.
A torre da igreja só veio a ser construída em 1896, segundo o traço de Ascendino
Vitorino Lemos de Souza, secretário da irmandade. O sino foi fundido por Manoel
dos Santos Vilaça, em 188518.

Igreja de Nossa Senhora do Terço


A origem da Irmandade de Nossa Senhora do Terço remonta ao início do século
XVIII, havendo registros que certificam sua existência, em 1726. A primitiva igreja
que a abrigou fora edificada por um particular e doada à irmandade, em 173219.
Em meados do século XIX, eram péssimas as condições desse templo, sendo
apontado, em 1860, o perigo de um desabamento e a necessidade da Presidência
da Província de Pernambuco dar autorização para a realização de quatro loterias
destinadas à construção de uma nova igreja.
Esta foi iniciada, em 1863, com a reconstrução das paredes laterais, seguindo-se
as obras da coberta da nave e da capela-mor, concluídas em 1869. No mesmo ano
principiou a construção da torre, pagando-se pelo desenho desta a importância de
21$000, a pessoa não identificada, ficando a execução a cargo do mestre pedreiro
Manuel do Carmo Ribeiro.
Para a torre foram encomendados na cidade do Porto “azulejos, pirâmides e
balaustres”, a serem remetidos por Vasconcelos & Braga, conforme descrição no Livro
de Receitas e Despesas de 1870-71. Também do Porto veio o conjunto em metal de
dois anjos em adoração à cruz, assentado no frontispício da Igreja20.
Terminados os serviços de alvenaria, em 1872, entrou a construção em sua fase
final com a contratação dos serviços de cantaria das sacadas, a Antônio Pereira de
Carvalho; das grades de ferro das varandas, a Lino Pereira Pinto; das escadas de acesso
aos corredores superiores, a Manuel Mendes de Oliveira; do estuque, a José Maria
Barbosa; da “estampa de Nossa Senhora do Terço no teto da igreja”, a Martinho
16 GUERRA, 1970: 80.
17 SILVA, 2002: 210.
18 MARTINS, s/d: 200, 211.
19 MELLO, 1984: 9.
20 SILVA, 2002: 160.
Artistas e artífices a serviço das irmandades religiosas do Recife nos séculos XVIII e XIX 367

Correia da Silva e “entalha da capela-mor, púlpitos, varandas, sanefas e camarim”


ao mestre José de Souza Moréia21.
Ainda com algumas obras por acabar, foi sagrada a igreja em 1º de Janeiro de 1874,
sendo os serviços de pintura e douramento de partes da nave e dos altares realizados
somente em 1887, a cargo do mestre Joaquim Eustáquio das Neves.

São Pedro dos Clérigos


Existindo desde o ano de 1700, somente em 1719, a Irmandade dos Clérigos
resolveu construir a sua igreja, iniciada nove anos depois. A pedra fundamental foi
lançada em 3 de Maio de 1728, estando a capela-mor concluída, em 1729, e o corpo
da igreja, em 1759. As obras se prolongaram até 30 de Janeiro de 1782, quando foi
realizada a sagração22.
Sua planta foi elaborada pelo mestre-pedreiro Manuel Ferreira Jácome, que criou
uma nave de traçado octogonal inserida numa caixa quadrada, a qual não exibe,
externamente, a forma poligonal do seu interior. A pedido da Irmandade, este projeto
foi avaliado e recebeu pareceres favoráveis dos engenheiros militares João Macedo
Corte Real e Diogo da Silveira Veloso.
Na decoração do seu interior trabalharam renomados artistas da época: João
de Deus Sepúlveda, encarregado da pintura em perspectiva ilusionista do forro da
nave, (1764-1768); Manuel de Jesus Pinto, responsável pela douração do mobiliário
da igreja (1804-1815); Francisco Bezerra, autor dos dez painéis sobre a vida de São
Pedro localizados na capela-mor, e o mestre entalhador José Gomes de Figueiredo,
que executou o sacrário e o cadeiral do altar-mor, bem como todo o mobiliário da
sacristia, inaugurada em 178123.
Consagrada a igreja em 1782, as obras continuaram com o douramento do corpo
da igreja e do altar-mor, sendo este resultado do trabalho do pintor Inácio de Melo
e Albuquerque, em 1783. Entre os anos de 1804 e 1813 trabalhou nesta igreja o
mestre entalhador Felipe Alexandre da Silva, responsável pela confecção das dezesseis
tribunas da igreja, das sanefas das portas e janelas do corredor, da banqueta do altar da
sacristia, e mais seis castiçais24. Francisco José Pinto, pintor e membro da irmandade,
fez em 1833 a encarnação da imagem de São Pedro, adquirida em Portugal, em 176425.
Em 1858, a mesa da irmandade resolveu fazer uma nova capela-mor, por estar
a talha desta arruinada por completo. Foi o padre Inácio Francisco dos Santos que
executou o risco e muitas partes da talha da nova capela, tendo o auxílio de cinco
entalhadores provenientes de Lisboa, entre eles o mestre Bernardino José Monteiro26.

21 SILVA, 2002: 161.


22 MENEZES, 1984: 8.
23 SILVA, 2002: 151.
24 SILVA, 2002: 154.
25 MARTINS, s/d: 159.
26 MARTINS, s/d: 186.
368 Maria Berthilde Moura Filha

Igreja de Nossa Senhora da Conceição dos Militares


São reduzidas as informações sobre a construção desta igreja, uma vez que se
perdeu a parte mais antiga do arquivo da irmandade. Sua edificação decorreu entre
os anos de 1725 e 1757, e já a 30 de Agosto de 1725 o engenheiro Diogo da Silveira
Veloso “a pedido dos interessados, atestava que da Igreja estava feito todo o alicerce,
levantadas algumas paredes, mas não o frontispício, estando concluída a capela-mor”27.
Terminada a construção, tiveram continuidade os trabalhos de decoração do
interior do templo que se prolongaram até 1870, quando foi contratado com Fran-
cisco Dornelas Munduri o serviço de douramento da capela-mor, dos altares laterais
e do arco-cruzeiro. Nesse mesmo ano foi executada, por Bernardo Luís Ferreira, o
douramento da talha do forro da nave, sendo o painel central deste pintado por José
Rebelo de Vasconcelos, representando Nossa Senhora da Conceição com o Espírito
Santo entre as mãos28.
Sob o coro vislumbra-se no forro um painel representando a primeira Guerra dos
Guararapes, ocorrida em 1648. Segundo Judith Martins, este foi executado, em 1781,
por João de Deus Sepúlveda29, sendo também atribuído ao alferes José de Oliveira
Barbosa, que fazia parte da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição, desde 179330.
Além dos artistas já referidos, há as seguintes informações esparsas: em 1803,
Crispim Paes Varela era o mestre da obra da torre da igreja; Manuel Vicente de
Siqueira fundiu os sinos da mesma; José Inácio de Assunção executou, em 1850, uma
cruz grande de prata para a irmandade; José da Fonseca Galvão, em 1832, pintou
o nicho de São José situado na igreja; em 1857, o pintor Caetano da Rocha Pereira
fez o douramento e envernizamento de quatro painéis; o serralheiro José Francisco
Bento confeccionou quatro grades para os vãos das janelas31.

Igreja de Santa Tereza da Ordem Terceira do Carmo


A Ordem Terceira do Carmo do Recife foi instituída quando estava em construção
o convento carmelita, cujos frades, por doação, transferiram aos irmãos terceiros,
em 1696, a Capela do Santíssimo Sacramento, parte integrante da igreja monástica.
Quatro anos depois os terceiros resolveram construir a sua própria igreja, cuja
pedra fundamental foi assentada em 24 de Julho de 1700. Sendo os membros da
ordem, homens de largos recursos, em 1710 já estavam em seu novo templo, situado
ao lado da igreja da Ordem Primeira do Carmo32.
Depois de inaugurada, a igreja continuou em obras, concluídas somente no século
XIX. Nela trabalharam: Manuel de Jesus Pinto, contratado em 1792 para fazer o

27 MENEZES, 1984: 70.


28 MENEZES, 1984: 72.
29 MARTINS, s/d: 190.
30 SILVA, 2002: 206.
31 MARTINS, s/d.
32 SILVA, 2002: 168.
Artistas e artífices a serviço das irmandades religiosas do Recife nos séculos XVIII e XIX 369

douramento e a pintura da sacristia; Félix da Costa Monteiro, pago em 1786 para


pintar o forro da casa das catacumbas; Matias Antônio Quaresma, marceneiro que
executou, em 1796, as três portas principais da igreja; José Antunes, que pintou,
em 1782, um painel para a capela da casa das catacumbas; Antônio Henriques
Cardoso, responsável pela talha da capela dos noviços, em 1760; Serafim dos Anjos,
que entalhou, em 1763, o altar de Nossa Senhora da Soledade, situado na sacristia,
cujo teto tem painéis pintados e dourados por Manuel de Jesus Pinto, em 179233.
Na decoração interior desta igreja teve destaque a participação de João de Deus
Sepúlveda, contratado em 1760 para pintar os cinco painéis situados nas paredes do
altar-mor e dourar as molduras. O contrato veio a ser renovado em Novembro do
mesmo ano, para executar vinte painéis para o forro e dois a serem colocados sobre
as “portas travessas que entram para o Cruzeiro”. Finalmente, em 15 de Novembro
de 1761, foi contratada a pintura de quinze painéis do forro, sete painéis das paredes
e duas tribunas34.
Outro artista de destaque foi Felipe Alexandre da Silva, autor dos entalhes dos
retábulos da capela-mor, arco cruzeiro, altares laterais e sacristia, executados quando
em 1815, decidiu a Ordem Terceira fazer nova talha em toda a capela-mor, por se
encontrar estragada a primitiva. Em 1822, fez também a talha de cinco altares laterais
da mesma igreja35.
No início do século XIX, foi levantada a torre e colocado o gradil que encerra
a testada do lote onde está implantada a igreja, sagrada a 13 de Outubro de 1837,
sob a invocação de Santa Teresa de Jesus36. Entre 1854 e 1858, a igreja foi alvo de
novas obras, quando a capela-mor e os altares laterais foram substituídos.

Capela Dourada da Ordem Terceira de São Francisco do Recife


Por escritura datada de 9 de Abril de 1696, os frades franciscanos cederam aos
irmãos da recém fundada Ordem Terceira uma parcela das terras pertencentes ao
convento, para que ali fizessem sua capela, com arco aberto “para a igreja do dito
convento, e todas as mais casas e o mais que necessário for para a dita Ordem”37.
A partir desta doação, os terceiros puderam abrir um grande arco no lado sul da
nave da igreja conventual e iniciaram a construção da Capela dos Noviços, cuja pedra
fundamental foi lançada em 13 de Maio de 1696. Ficou encarregado da construção
o mestre pedreiro Antônio Fernandes de Matos, admitido como membro da Ordem
em 17 de Setembro de 1695 e seu ministro, entre 1697 e 1700. A 15 de Setembro
de 1697, foi celebrada ali a primeira missa, tendo sido gasta até então, a importância
de 1:356$98038.

33 MARTINS, s/d; SILVA, 2002: 169.


34 SILVA, 2002: 169.
35 MARTINS, s/d: 70.
36 GUERRA, 1970: 153.
37 SILVA, 2002: 179.
38 SILVA, 2002: 179.
370 Maria Berthilde Moura Filha

No período de 1697 a 1700, foram contratados os primeiros trabalhos de decoração


que deram a esta o título de “capela dourada”. Luis Machado executou o arco da
capela-mor, o grande arco para o convento e os móveis da sacristia. Em 1698, foi
contratado o mestre português Antônio Martins Santiago, para fazer a talha da
capela-mor, com dois nichos para as imagens dos Santos Cosme e Damião, e mais
um sacrário, frontal e dois armários. Também trabalhou na Capela dos Noviços, o
pintor José Paulo Pinhão de Matos, provável autor de nove painéis representando os
santos da Ordem, e oito, encomendados por Antônio Fernandes de Matos, em 169939.
Ao longo do século XVIII, as obras tiveram continuidade. Em 1704, foram assentados
os azulejos, trazidos de Lisboa e assinados pelo artista português Antônio Pereira.
Entre 1759 e 1761, José Ribeiro de Vasconcelos pintou dois painéis para a capela,
dourou os nichos dos santos e retocou o andor de Nossa Senhora da Conceição. Luís
Nunes executou, entre 1765 e 1766, as imagens de São Francisco e Santa Isabel para
a capela do hospital da Ordem Terceira e a imagem de São Jácome. Manoel de Jesus
Pinto foi responsável pela douração da capela, em 179940.

Igreja Matriz do Santíssimo Sacramento de Santo Antônio


Referir-se à Irmandade do Santíssimo Sacramento é remontar à história da Igreja
do Corpo Santo, sede da primeira irmandade desta invocação. Situada na Ilha do
Recife, a Igreja do Corpo Santo era a matriz de uma ampla freguesia que devido
ao aumento populacional verificado no Recife demandou a construção de um novo
templo, agora no bairro de Santo Antônio, de modo a melhor servir aos fies daquele
bairro e do de São José41.
Em 30 de Abril de 1752, a Irmandade do Santíssimo Sacramento da Igreja do
Corpo Santo registrou a compra, em leilão da Real Fazenda, do local onde estava a
antiga casa da pólvora dos holandeses, a fim de construir sua nova igreja, cuja pedra
fundamental foi lançada em 1753.
Em 1754, a capela-mor já estava aberta aos fieis, mas as obras da igreja só foram
concluídas em 1790. Com a criação da Paróquia de Santo Antônio, em 1789, passou
a nova igreja do Santíssimo Sacramento à condição de matriz42.
Na Matriz de Santo Antônio atuaram alguns dos mais importantes artistas dos
séculos XVIII e XIX: o mestre entalhador Felipe Alexandre da Silva foi responsável
pelas obras do altar-mor e trabalhos de cantaria do frontispício, realizados entre 1799
e 1808; Manuel de Jesus Pinto fez a pintura e douração de talhas da igreja, incluindo
o coro, os altares laterais e as sanefas, sendo de sua autoria o painel do Espírito Santo,
existente no altar do consistório; José de Elói é o autor do quadro que representa “O
Batismo de Jesus”, existente no batistério, tendo este artista trabalhado, também, no

39 MARTINS, s/d.
40 MARTINS, s/d; SILVA, 2002: 182.
41 SILVA, 2007: 4.
42 SILVA, 2002: 195.
Artistas e artífices a serviço das irmandades religiosas do Recife nos séculos XVIII e XIX 371

Mosteiro de São Bento de Olinda, lhe sendo atribuídos os painéis do forro da nave
e do altar da sacristia, pintados entre 1785 e 178943.

Igreja Matriz do Santíssimo Sacramento da Boa Vista


Por Provisão datada de Janeiro de 1805, ocorreu um desmembramento da freguesia
da Sé do Recife, levando à criação da nova freguesia da Boa Vista. Para sede desta
foi escolhida a igreja fundada pela Irmandade do Santíssimo Sacramento, em 1784.
Nesta, em 1793, estavam concluídas as obras da capela-mor, duas sacristias e
parte da nave, encontrando-se em condições de receber o Santíssimo Sacramento,
trasladado em procissão desde a Igreja da Santa Cruz, anterior casa da irmandade44.
Os trabalhos de decoração do interior do templo prolongaram-se por toda a
primeira metade do século XIX, envolvendo artistas em geral residentes no bairro da
Boa Vista. A obra de talha ficou a cargo do mestre Antônio Basílio de Oliveira e de
Joaquim Correia Leal, que entalhou os altares laterais da capela-mor, em 1830. Os
trabalhos de douramento foram realizados por Francisco José Pinto, substituído por
Manuel de Jesus Pinto, em 1822. São de Caetano Rocha Pereira os painéis decorativos
da capela-mor, datados de 1823, bem como a pintura do forro, de 1844. Em 1831,
o escultor Manuel da Silva Amorim foi encarregado de confeccionar as imagens de
São José, São Joaquim e São Raimundo Nonato45.
No ano de 1839, a irmandade resolveu dotar a igreja de uma notável fachada
em pedra Lioz, mandando buscar em Lisboa o projeto e toda a pedra. Em Abril de
1840, chegava um relatório do arquiteto português Manoel Joaquim de Souza, junto
com uma nova proposta de risco para o frontispício. Em Junho, estavam no porto
do Recife as primeiras pedras, a serem montadas pelo arquiteto André Willmer, em
conformidade com o projeto vindo de Lisboa46.
Desejando completar a decoração do frontispício, em 1854, a irmandade contratou
com o escultor português Francisco d’Assis Rodrigues, diretor da Academia das
Belas Artes de Lisboa, a execução do “painel da Glória” e das estátuas dos quatro
evangelistas. O “Painel da Glória” chegou ao Recife em 1858, sendo seu assentamento
concluído a 14 de Abril de 1859. As estátuas dos evangelistas só foram entregues
em 1871, e postas em seus lugares, em 187647.
Para finalizar o frontispício faltava construir as torres, também em pedra Lioz.
Sob a coordenação do mestre pedreiro André Rompke, foi concluída a torre leste,
em 1888, e a torre oeste, em 1889.

43 MARTINS, s/d; SILVA, 2002: 198-199.


44 GUERRA, 1970: 23.
45 MARTINS, s/d; SILVA, 2002: 228.
46 SILVA, 2002: 228.
47 GUERRA, 1970: 25.
372 Maria Berthilde Moura Filha

Considerações finais
Encerrada esta trajetória através da história das irmandades religiosas do Recife,
aqui trabalhadas, confirmam-se algumas idéias colocadas anteriormente. De fato, a
ação das irmandades consolidada na construção destes templos foi uma importante
contribuição para a configuração urbana do Recife, evidenciando-se, por exemplo,
na formação dos largos que antecedem as igrejas do Terço, de São Pedro e de São
José do Ribamar.
Sob o aspecto artístico, a ação destas irmandades foi ainda mais relevante, pois
resultou no já referido “mercado de trabalho” para os artistas e artífices dos séculos
XVIII e XIX, possibilitando o desenvolvimento das artes em Pernambuco e dando
espaço para a formação de renomados artistas, valendo a pena enfatizar a ligação
destes com as irmandades.
O pedreiro e arquiteto Manoel Ferreira Jácome foi discípulo do mestre de obras
Antônio Fernandes de Matos. Sendo considerado um dos oficiais mais peritos do
Recife, foi líder da sua classe tendo a função de juiz do ofício de pedreiros confirmada
pelos vereadores da câmara. Trabalhou como pedreiro na Igreja de Nossa Senhora
do Rosário dos Pretos, executou a planta da Igreja de São Pedro dos Clérigos e entre
1704 e 1706, trabalhou com João Pacheco Calheiros no claustro da Ordem Terceira
de São Francisco.
O pintor Manoel de Jesus Pinto era irmão do Santíssimo Sacramento e da Ordem
Terceira do Carmo, o que denota o seu status social. Sua longa folha de serviços dá
a dimensão da importância que teve no meio em que atuou, tendo trabalhado nas
igrejas de São Pedro dos Clérigos, das ordens terceiras do Carmo e de São Francisco,
e na Matriz de Santo Antônio. Faleceu em 1817.
João de Deus Sepúlveda é apontado como um dos maiores pintores do século
XVIII, em Pernambuco, sendo também músico. Na sua produção têm destaque as
pinturas que executou no forro da nave da Igreja de São Pedro dos Clérigos e no
forro sob o coro da Igreja da Conceição dos Militares, representando a batalha dos
Guararapes. Acrescenta-se a estes, alguns dos painéis com cenas da vida de Santa
Teresa que ornamentam a casa dos terceiros do Carmo.
Também o entalhador Felipe Alexandre da Silva, no início do século XIX, circulou
entre as ordens terceiras do Carmo e de São Francisco, executando retábulos e outros
trabalhos de talha. Para as igrejas Matriz de Santo Antônio e São Pedro dos Clérigos,
fez objetos diversos, como castiçais, tocheiros e sanefas.
Associando o “saber” destes artistas ao desejo que tinham as irmandades de exibir
seus templos perante a sociedade, surgiram experiências inovadoras para Pernambuco,
naquela época, como a planta poligonal concebida por Manoel Ferreira Jácome, para
a Igreja de São Pedro dos Clérigos e a pintura em perspectiva executada no forro da
nave desta igreja, por João de Deus Sepúlveda. Estas obras são expressões relevantes
da produção destas irmandades e de seus artistas.
Artistas e artífices a serviço das irmandades religiosas do Recife nos séculos XVIII e XIX 373

Figura n.º 2 – As igrejas das irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, São José do
Ribamar, Nossa Senhora do Terço e São Pedro dos Clérigos
Fotos: Maria Berthilde Moura Filha.
374 Maria Berthilde Moura Filha

Figura n.º 3 – As igrejas de Nossa Senhora da Conceição dos Militares e da ordem Terceira do
Carmo. Em baixo, a Matriz de Santo Antônio e a Matriz da Boa Vista
Fotos: Maria Berthilde Moura Filha.
Artistas e artífices a serviço das irmandades religiosas do Recife nos séculos XVIII e XIX 375

Figura n.º 4 – Interior das igrejas de N. Senhora do Rosário dos Pretos, N. Senhora do Terço, São
Pedro dos Clérigos e N. Senhora da Conceição dos Militares
Fotos: Maria Berthilde Moura Filha.
376 Maria Berthilde Moura Filha

Figura n.º 5 – Interior das igrejas dos terceiros do Carmo e de São Francisco (Capela Dourada).
Abaixo, o interior da Matriz de Santo Antônio e da Matriz da Boa Vista
Fotos: Maria Berthilde Moura Filha.
Artistas e artífices a serviço das irmandades religiosas do Recife nos séculos XVIII e XIX 377

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378 Maria Berthilde Moura Filha

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O cabido de Viseu: dinâmica de encomendas
no período de Sede Vacante (1720-1740)
Maria de Fátima Eusébio

Introdução
Na maioria das edificações religiosas somos confrontados com elementos resultantes
das diversas intervenções, mais ou menos profundas, que foram sendo realizadas ao
longo dos séculos. Em alguns exemplares observamos a presença de formas artísticas
distintas, cuja concomitância nem sempre se configura de forma harmoniosa e coerente
e deixa em aberto inúmeras questões relativas ao conhecimento e à interpretação das
formas que o edifício assumiu nas suas diferentes fases. A compreensão das mutações
estéticas executadas num edifício impõe a inclusão dos aspectos circunstanciais que as
motivaram e enformaram, designadamente os económicos, os religiosos, os estilísticos,
os gostos e as opções dos encomendadores.
Após o período conturbado da reconquista da cidade de Viseu e da restauração
da diocese, o bispo D. Egas (1289-1313) deu início à construção de um edifício
com as características espaciais e com as dimensões correspondentes à dignidade de
uma Catedral. Nesta construção inicial verificou-se a miscigenação de elementos
característicos das sintaxes românica e gótica.
Ao longo dos séculos o templo primitivo foi objecto de inúmeras intervenções
que alteraram profundamente a sua fisionomia medieval. Estas acções foram maio-
ritariamente realizadas por diligências dos bispos da diocese, enquanto o Cabido se
ocupava essencialmente da realização de pequenos arranjos, necessários à manutenção
da construção. Assim, ao longo dos séculos as obras de maior vulto decorreram da
intervenção directa dos prelados da cátedra viseense, que fomentaram a reforma, a
modernização e o ornato da Sé. Tratando-se do espaço religioso simbolicamente mais
proeminente no âmbito diocesano, enquanto “imagem figurativa da Igreja visível de
Cristo. O verdadeiro templo de Deus vivo, espiritual”1 justificou esta superintendência
e o especial empenho dos bispos. A projecção e a influência da Catedral não se

1 AZEVEDO, 2001: 192.


380 Maria de Fátima Eusébio

circunscrevia ao bispado, tinha um alcance mais alargado, era simbolicamente a


imagem da diocese que se transpunha para os outros bispados do território nacional.
Ao longo dos séculos foram várias as intervenções, maioritariamente resultantes
da iniciativa dos bispos, entre as quais enunciamos as de maior relevância e impacto:
–E ntre 1501-1505 a encomenda do políptico gótico para a capela-mor à oficina de Vasco
Fernandes e de Francisco Henriques, pelo bispo D. Fernão Gonçalves de Miranda;
– Em 1513 D. Diogo Ortiz de Vilhegas mandou construir a cobertura de pedra da
Catedral, a denominada abóbada de nós, e substituir a fachada gótica por uma com
o decorativismo do manuelino;
– Entre 1528-1534 D. Miguel da Silva mandou edificar um novo claustro, segundo o
risco do arquitecto italiano Francesco de Cremona;
– Em 1635 verifica-se uma intervenção do Cabido justificada pela necessidade de dar
resposta a uma situação de emergência: a fachada manuelina ruiu na sequência de um
temporal, determinando a sua substituição por outra de características maneiristas,
cujo risco era da autoria do arquitecto de Salamanca João Moreno;
– Entre 1675 e 1684 o Bispo D. João de Melo (1673-1684) alterou profundamente
a capela-mor, por considerar a existente “pequena a respeito do corpo da igreja e
mal pode receber os capitulares com a honestidade e decência que convêm, porque as
cadeiras se estendem à parte do cruseiro da igreja”2. A capela-mor gótica foi demolida
e aumentada, o político gótico foi desmantelado e substituído por uma composição
retabular enformada de acordo com a sintaxe maneirista, a abóbada foi pintada com
coloridos motivos de grutescos, a sacristia foi enobrecida com painéis de azulejos,
um novo paramenteiro e a pintura da cobertura.
Estas intervenções foram determinantes para a metamorfose do edifício catedralício,
contudo a reforma mais avultada e profunda foi efectuada não sob o expediente dos
bispos, mas sim do Cabido. Na sequência da morte do bispo D. Jerónimo Soares
(1694-1720), ocorrida em 18 de Janeiro de 1720, e em face das relações pouco
cordiais entre o Rei D. João V e a Cúria Romana, legalmente, competia ao Cabido
a administração das rendas da Mitra. Foram vinte anos de Sé Vaga em que o Cabido
como administrador das rendas da mesa pontifical tomou a iniciativa e a liberdade
de desenvolver um vastíssimo plano de reformas da Catedral, que determinou uma
manifesta mutação na fisionomia do edifício, esbatendo as suas características medievais.
Volvidas somente quatro semanas após a morte do bispo D. Jerónimo Soares, em
15 de Fevereiro de 1720, o Cabido reuniu e determinou que por estar esta Sé mui
escura e as paredes toscas, se mandasse vir um mestre de obras para tratar (de) abrir-lhe
maiores janelas e frestas e tomar medidas para se porem azulejos nas paredes e todas as
mais obras necessárias para melhor perfeição e asseio da dita Sé3.

2 A.D.V. – Instrução e Relação da Catedral de Viseu e mais igrejas do bispado para a Sagrada Congregação. CAB – DOCS
AVS, cx. 6, n.º 2; EUSÉBIO, 2002: 409.
3 A.C.S.V., 1708-1778 – Livro para nelle se assentarem os assentos e determinaçoins do Reverendo Cabbido para que fosse

mais verdadeiro.
O cabido de Viseu: dinâmica de encomendas no período de Sede Vacante (1720-1740) 381

Com esse objectivo foi solicitada a vinda a Viseu do arquitecto de Coimbra


Gaspar Ferreira para dar o seu parecer sobre as obras a realizar, tendo a primeira
reunião tido lugar logo a 11 de Março de 1720. A caracterização feita pelo Cabido
da situação em que se encontrava a Sé remete-nos para um contexto de profundo
descontentamento e de um forte anseio de modernizar o espaço religioso que deveria
ser o modelo para toda a diocese:
por a Seé se achantar com tanto desaseio e sem luses, e as paredes sem cal nem asulejo, feitas
de alvenaria e cheias de barro, e o pavimento todo descomposto, com humas pedras mais altas
e outras mais baixas, pior ainda que as ruas da cidade, e por se achar a abóboda carcumida e
alguns painéis da dita abóboda com alguma cal por não ser a pedra capaz, e o órgão desafinado,
e o coro de sima velho e com pouca lux, de sorte que o Cabbido em muitos dias escuros resava
o Offício Divino com velas4.
Descrito este cenário e evidenciados os inconvenientes que provocava foi delineado
um programa de intervenção notoriamente vasto, que compreendia obras muito
diversas, que iam desde a arquitectura, à talha, à estatuária, à azulejaria, etc.:
que se fizese hum pavimento novo da melhor forma que pudesse ser, com sepulturas em fechos
para que nunca se desordenascem, e que se mudasse o órgão para a parte do Evangelho, para
da parte da Epístolla se abrirem duas jinellas bem rasgadas para darem lux bastante à Seé, e se
abrisse outra fíngida da parte do Evangelho para comresponder, e no coro de sima se rasgasem
as duas janellas para darem lux a todo o coro, e que se abrissem mais duas jinellas no cruseiro
da Seé, huma na capella do Spírito Sancto e outra na do Sanctíssimo Sacramento, em lugar
do “0” que está nas ditas capellas, e na capella-mor se abricem também duas jinellas de meia
laranja ou como melhor poder ser, para darem lux à dita capella-mor que também hé escura. E
que as columnas, por se acharem sem forma, se faça cada huma de quatro meias columnas e se
cubram de estuque athé à altura que paresser ao arquiteto, e os painéis da abóboda se cubram
também de estuque ou como melhor parecer ao arquiteto, e os frisos ou cordõens se dourem ou
pintem sobre estuque ou sobre a mesma pedra, da sorte que melhor paresser ao arquiteto, e os
remates das collumnas e bases se fação de pao dourado, e as pillastras ou padrastais das mesmas
collumnas se fação de pedra pintada fingida da pia de baptisar ou a do púlpito, e que se mande
vir asulejo de Coimbra, do melhor de história, para se cubrirem as paredes thé à altura que
paresser ao arquiteto, e a demais thé às abóbodas se faça de estuque. E o coro de sima se mande
concertar e se tire parte da madeira que tem supérflua e que se lhe ponhão remates dourados, e
o demais que se mande pintar de xarão, com huma flor de ouro em cada cadeira, como melhor
paresser ao pintor. E se determinou mais que hum organista castelhano que está em Coimbra
fasendo o órgam de Santa Cruz viesse faser e concertar o órgam e que o arquiteto fizesse huma
planta para a caixa do dito órgão pera se fazer pella dita planta5.

4 A.C.S.V., 1708-1778 – Livro para nelle se assentarem os assentos e determinaçoins do Reverendo Cabbido para que fosse
mais verdadeiro, fls 53-55v; EUSÉBIO, 2002: 201.
5 A.C.S.V., 1708-1778 – Livro para nelle se assentarem os assentos e determinaçoins do Reverendo Cabbido para que fosse

mais verdadeiro, fls 53-55v; EUSÉBIO, 2002: 201.


382 Maria de Fátima Eusébio

o programa era tão vasto e exigia a intervenção de artistas e artífices de diferentes


ofícios, que o Cabido considerou necessário nomear dous intendentes activos e com boa
capacidade, para cuidarem na expediçam das obras e deligência dos offeciaes6.
Para além do parecer do mestre Gaspar Ferreira os capitulares solicitaram mais
dois pareceres de arquitectos, concretamente de Frei Alexandre Pereira, religioso de
São Bernardo, assistente em S. Cristóvão de Lafões, e do arquitecto do Mosteiro de
Arouca. Contudo, não temos qualquer registo da avaliação e propostas destes mestres
que nos possibilite a confrontação com o parecer do arquitecto Gaspar Ferreira.
As obras foram iniciadas com celeridade e em várias vertentes, pois em outubro de
1720 já encontramos registos de pagamentos aos pedreiros, carpinteiros, entalhadores
e pintores7. Para a execução dos trabalhos foram contratados muitos mestres, de
diferentes ofícios, maioritariamente provenientes de outras regiões do país, porque
na cidade não havia oficinas capazes de dar resposta à quantidade e à qualidade das
obras exigidas.
um levantamento dos mestres que laboraram na Sé ao longo dos vintes anos
permite-nos contabilizar um número muito elevado de artistas e artífices, um cálculo
que se encontra incompleto devido às lacunas documentais:

Quadro n.º 1
Ofícios N.º
Mestres pedreiros 14
Arquitectos 5
Mestres carpinteiros 7
Mestres entalhadores, escultores e ensambladores 20
Mestres pintores e douradores 14
Mestres ourives 5
Mestres organeiros 2
oleiros 1
Ferreiros e serralheiros 5
Sineiros 1
Livreiros 2
Vidraceiros 1
Sirgueiros 3

Muitos destes obreiros realizaram mais do que uma obra para a Catedral. No que
se refere à proveniência destes artistas verificamos que na maioria são originários
da região de Entre-Douro-e-Minho. A pequena dimensão das oficinas locais ficou
explanada numa memória descritiva registada pelo Cabido viseense para justificar
os elevados gastos com as obras realizadas na Catedral a partir de 1720, no período
de Sede Vacante:
6 A.D.V., 1739 – Reclamações. CAB – DoCS AVS; EuSÉBIo, 2002: 268.
7 A.D.V. – Instrução e Relação da catedral de Viseu e mais igrejas do bispado para a Sagrada congregação. CAB – DoCS
AVS, cx. 6, n.º 2; EuSÉBIo, 2002: 409.
O cabido de Viseu: dinâmica de encomendas no período de Sede Vacante (1720-1740) 383

como esta cidade hé pobre e nella nam havia mestres capazes e com cabedais para poderem
fazê-llas por remataçõens e se mandarem vir de Coimbra e Braga, e de outras mais partes8.
Esta constatação é especificada no mesmo documento relativamente aos enta-
lhadores que executaram os quatro retábulos para o transepto:
como nam havia officiaes na terra a quem se dessem estas obras, foy precizo mandar vir
mestres de fora para as fazerem9.
Na realidade, para as obras de maior vulto, como estruturas retabulares, o cadeiral,
o órgão e as pinturas, foram contratados conceituados mestres de Braga, Porto,
Barcelos, Guimarães, Coimbra, Lisboa e da Galiza. Para a sua contratação, nem
sempre foi cumprido o procedimento de colocação da obra com planta à vista para
que os mestres efectuassem os seus lanços e fosse arrematada ao que apresentasse
menor valor. Com frequência o Cabido, satisfeito com o trabalho realizado por alguns
artistas, lhe efectuava outras encomendas. O empenho dos capitulares no processo
de selecção dos artistas é confirmado pelo pagamento das despesas efectuadas pelo
entalhador de Coimbra Manuel Moreira na viagem a Viseu para lançar na obra do
retábulo-mor.

1. Obras de arquitectura
As obras de arquitectura realizadas neste período de Sé Vaga (1720-1740) introdu-
ziram alterações significativas no aspecto visual do interior da Catedral, capitalizando
a utilização da luz, reparando alguns problemas que condicionavam a utilização
do espaço e harmonizando esteticamente alguns componentes. A enumeração das
intervenções de cariz arquitectónico explana a diversidade e o alcance do plano de
intervenção:
– a briram-se janelas na fachada e nas capelas laterais para evitar os elevados gastos com
cera e se manifestar com melhor claridade a primurosa fábrica e artefacto da mesma Seé10;
– foi executado um novo pavimento, pois as pedras encontravam-se partidas, desnive-
ladas e desunidas devido à abertura de sepulturas ao longo dos tempos, provocando
frequentemente acidentes;
– as paredes e colunas foram rebocadas e caiadas, por se encontrarem de pedra tosqua
e denegridas11;
– considerou-se que as capelas laterais, dedicadas a São Pedro e a São João, eram muito
baixas, com pequenos arcos e desproporcionadas, sem nenhuma conrespondência ao da
capella-mor, que se achava mais muderno, (…) rezam porque se mandaram levantar as
ditas cappellas, fazendo-sse as abóbedas e pondo-se-lhes arcos à face corespondentes aos da
cappella-mor, mandando-lhes também abrir frestas rasgadas, para lhes communicarem luz12;
8 A.D.V., 1739 – Reclamações. CAB – DOCS AVS; EUSÉBIO, 2002: 268.
9 A.D.V., 1739 – Reclamações. CAB – DOCS AVS; EUSÉBIO, 2002: 268.
10 A.D.V., 1739 – Reclamações. CAB – DOCS AVS; EUSÉBIO, 2002: 262.
11 A.D.V., 1739 – Reclamações. CAB – DOCS AVS; EUSÉBIO, 2002: 263.
12 A.D.V., 1739 – Reclamações. CAB – DOCS AVS; EUSÉBIO, 2002: 264.
384 Maria de Fátima Eusébio

– ao claustro, que tinha um único andar, foi acrescentado um segundo piso, para evitar
a exposição aos temporais e as humidades que causavam danos nos altares, nos
quais se nam podia sellebrar em muitos dias, por se acharem molhados e com a humidade
apodreciam frontais e soalhos dos altares13. o claustro de cima, executado pelos mestres
pedreiros António Ribeiro de Santiago de Poiares, termo de Barcelos, e Pascoal
Rodrigues do concelho de Coura, comarca de Viana, composto por colunas toscanas
e cobertura de madeira, articula-se internamente com o claustro renascentista, e
alterou consideravelmente a fisionomia do exterior da Catedral, pela introdução de
uma nova galeria de janelas voltadas para o adro;
– a Casa de São Teotónio, onde se realizavam as sessões capitulares, foi reformada
nas paredes e na porta, que ficou mais espaçosa e com um nicho para a colocação
da imagem de São Teotónio.

Figura n.º 1 – Claustro superior

2. Outras tipologias artísticas


As intervenções arquitectónicas foram acompanhadas por um vasto programa de
execução de obras de talha, imaginária e azulejaria, que no seu conjunto imputaram
ao interior da Catedral os brilhos, a exuberância da cor e do ouro, a dinâmica de
formas e a teatralidade que são apanágio do barroco.
A talha e o azulejo foram dois recursos claramente vinculados à fase inicial do
plano de intervenção, contudo, a amplitude da sua aplicação foi-se dilatando ao
longo da década de vinte do século XVIII.
Numa primeira fase estabeleceu-se como necessária a execução de dois púlpitos
e de duas estruturas retabulares para as capelas do transepto, depois destas serem
objecto de uma reforma arquitectónica.
13 A.D.V., 1739 – Reclamações. CAB – DoCS AVS; EuSÉBIo, 2002: 265.
o cabido de Viseu: dinâmica de encomendas no período de Sede Vacante (1720-1740) 385

Figura n.º 2
Púlpitos

o púlpito anterior, de mármore da Arrábida, foi considerado como sendo de


modelo antigo, à vista de obras modernas e perfeitas14, pelo que se encomendaram dois
novos, com bases de granito, em forma de mísulas lavradas com grandes folhas, e
grades de intalhado, escadas e currimõens de bronze15, que foram executadas em 1721.
Esta perspectiva do Cabido relativamente à necessidade de incorporar na Cate-
dral estruturas de talha modernas, enformadas pela sintaxe estilística hodierna, em
substituição dos espécimes anteriores, considerados antigos e obsoletos, foi uma
justificação recorrente para fundamentar as sucessivas encomendas, como ficou
explanado na justificação da encomenda das estruturas retabulares para as capelas e
altares do transepto, que na acepção do Cabido se achavam huns e outros tam antigos
e curcomidos do carruncho, que estes por se acharem sem molduras nem cappitéis se lhe
ignorava o princípio de sua forma, e aquelles nam constavam mais que humas táboas velhas,
metidas em hum arco, com sombras de que foram pintadas, e todos indignos de estarem
em huma pobre aldea, quanto mais em huma cathedral16.
14 A.D.V., 1739 – Reclamações. CAB – DoCS AVS; EuSÉBIo, 2002: 263.
15 A.D.V., 1739 – Reclamações. CAB – DoCS AVS; EuSÉBIo, 2002: 263.
16 A.D.V., 1739 – Reclamações. CAB – DoCS AVS; EuSÉBIo, 2002: 266.
386 Maria de Fátima Eusébio

os retábulos das capelas de São Pedro e de São João Baptista foram entalhados
em 1721, pelo mestre Manuel Correia (Santa Maria de Landim, Barcelos), e os de
Nossa Senhora do Rosário e de Santa Ana em 1726, pelo mestre Manuel Vieira da
Silva (Barancelhe, Guimarães), contribuindo estes exemplares para a admissão precoce
das primeiras formas do formulário joanino na diocese de Viseu, ainda que articuladas
com motivos do barroco nacional, demonstrando que o Cabido era receptivo e estava
culturalmente aberto à aceitação das novidades artísticas.
Conservando-se as invocações primitivas das capelas, a substituição das composições
pictóricas pelas de talha ocasionou a encomenda das correspondentes esculturas.
Mais uma vez o Cabido evidenciou o seu desvelo e conhecimentos artísticos na
escolha do artista, incidindo a sua preferência num dos mestres mais reputados que
na época trabalhavam no Reino, Claude Courrat Laprade. A inserção destas imagens
em retábulos barrocos remete-nos para a manifesta intenção de transformar o espaço
interno da Sé, vinculando-o à ambiência e caracteres identitários do barroco.

Figura n.º 3
Retábulo da capela de São Pedro

Simultaneamente, iniciou-se a reforma do cadeiral do coro-alto. Tratava-se de


uma composição encomendada no século XVI por D. Miguel da Silva, composta por
cadeiras dispostas em u e repartidas por dois andares, que o Cabido mandou remodelar
em 1721, alterando significativamente a sua fisionomia, através da incorporação
o cabido de Viseu: dinâmica de encomendas no período de Sede Vacante (1720-1740) 387

de um espaldar guarnecido com exuberantes composições de acantos dourados e


representações pictóricas em chinoiserie.
outra das prioridades do Cabido incidiu sobre a execução de um novo órgão, pois
o anterior além de ser piqueno se achava antigo como a mesma Seé, e faltos de registos e
muito derotados da madeira e canos, sem embbargo de ter sido concertado por vezes, sendo
as suas vozes mais pervocativas de zombaria que de louvor17. A importância da música
nas cerimónias e a relevância que o órgão assumia visualmente no espaço interno da
Catedral justificaram a rapidez do Cabido em encomendar ao arquitecto Gaspar Ferreira,
ainda no ano de 1721, a planta para as bacias de um exemplar pelo estilo moderno
e com vistosa fábrica assim no ornato dos canos como da bacia18, que foram executadas
pelo entalhador Manuel Madeira enquanto da parte técnica se ocupou o organista
castelhano que na época estava a executar o órgão da igreja de Santa Cruz de Coimbra.
o brilho do ouro e a exuberância da policromia foram também aplicados aos
ornatos de pedra executados no período manuelino, concretamente os brasões dos
fechos da abóbada, os bocetes, as nervuras curvas na abóbada que suporta o coro
alto, os capitéis e a balaustrada do coro-alto. Conjuntamente, nas paredes das naves
laterais foi colocado um lambril de azulejos barroco19, executado na oficina do oleiro
Agostinho de Paiva e assente por Joseph de Góes entre 1720 e 1722.
Nesta sequência de obras seguiu-se a execução de sanefas de talha para a Sala do
Cabido, que de acordo com um registo de pagamento foram douradas em 172520. Trata-se
de um conjunto exuberante, com minuciosa pintura de motivos dourados sobre fundo
vermelho imitando a exuberância dos tecidos de brocado e volumosos lambrequins do
registo inferior. As paredes deste espaço foram revestidas por um elevado lambril de
azulejos barrocos, com figurações profanas, pintados pelo mestre Manuel da Silva de
Lisboa e executados na oficina do conimbricense Agostinho de Paiva.

Figura n.º 4
Sala do Cabido

17 A.D.V., 1739 – Reclamações. CAB – DoCS AVS; EuSÉBIo, 2002: 267.


18 A.D.V., 1739 – Reclamações. CAB – DoCS AVS; EuSÉBIo, 2002: 267.
19 Actualmente estes azulejos revestem as paredes do claustro.
20 A.D.V. – CAB – DoCS AVS, Cx. 40, n.º 249; EuSÉBIo, Maria de Fátima, 2005: 714-715.
388 Maria de Fátima Eusébio

No plano de intervenção inicial e na documentação até 1729 não encontramos


qualquer referência à intenção de se encomendar um novo retábulo para a capela-
mor, em substituição do que lá se encontrava, de sintaxe maneirista, que tenha sido
executado cerca de cinquenta anos antes. Contudo, em 1729 o Cabido encomendou
uma nova composição retabular para este espaço, fundamentando posteriormente
esta diligência, em 1738, da seguinte forma:
estar o retábolo da cappella-mor fabricado à antigo e a sua architetura e grandeza hera sem
muita deferença igual à de outro antigo que se acha no altar do Sacramento, à mão direita, em
o cruzeiro da mesma Seé, e ficava o correspondente da parte esquerda, que hé da invocassam
do Spírito Santo, sem retábolo, com todo o frontespício nú, em pedra tosqua, sendo huma das
partes principais a que se atende a boa armonia da compusisam dos templos, rezam porque se
mudou o da cappella-mor para este do Spírito Santo, por ficar corespondendo ao do Sacramento,
e se mandou fazer hum de novo, com melhor ideia, para o altar-mor, por serem estes sempre os
mais patentes e adonde deve existir o melhor primor do aceyo, e neste com muyta specialidade
por se achar nelle colocada a antiga e miraculosa imagem de Nossa Senhora do Altar-Mor21.
Esta resolução teve também implicações arquitectónicas, pois para que o novo
retábulo assentasse completamente no topo da capela-mor e não restringisse o
espaço do coro baixo, foi indispensável determinar o rasgo de um arco na parede de
fundo, para o retábulo ficar mais recolhido na grosura da parede e a capella-mor com
mais capacidade e grandesa22. Para se asseverar de que a nova composição retabular se
iria igualar às estruturas mais magnificentes e modernas contemporâneas, o Cabido
encomendou o respectivo risco ao mestre responsável por dois dos principais retábulos
de estilo joanino, o da igreja dos Paulistas em Lisboa e, muito provavelmente, o da
Sé do Porto23, o afamado arquitecto e entalhador Santos Pacheco.
Em conformidade com os procedimentos da época, a obra de entalhe foi posta
a preguam em a prassa pública da cidade com a planta à vista pera que todos os mestres
emtalhadores que pera a aremataçam da dita obra comcorressem darem a seus lanços24.
À obra concorreram vários artistas, entre os quais o mestre Manuel Moreira de
Coimbra, ao qual os capitulares custearam a deslocação a Viseu. O lanço mais baixo,
no valor de um conto e trezentos mil réis, foi apresentado pelo entalhador Francisco
Machado, pelo que lhe foi arrematada a empreitada e lavrada escritura de contrato
em Novembro de 1729. Depois de concluída a obra de entalhe o Cabido seleccionou
três prestigiados mestres – Luís Pereira da Costa, Miguel Francisco da Silva, ambos
com oficina no Porto, e Gaspar Ferreira de Coimbra – para efectuarem a avaliação
do retábulo entalhado por Francisco Machado. Na revisão da obra os entalhadores
consideraram que não se encontrava em conformidade com a planta, pelo que não
poderia ser aceite e o mestre Francisco Machado foi forçado a sujeitar-se a uma nova

21 A.D.V., 1739 – Reclamações. CAB – DOCS AVS; EUSÉBIO, 2002: 266.


22 A.D.V., 1732 – CAB – DOCS AVS, cx. 20, n.º 11; EUSÉBIO, 2002: 248.
23 Na acepção de Robert Smith estas duas composições retabulares conferem a Santos Pacheco primazia absoluta na

arte de elaborar desenhos para a talha dessa época.


24 A.D.V. – Livro de Notas de Viseu, n.º 575/67, fls. 20v-22; EUSÉBIO, 2002: 226.
O cabido de Viseu: dinâmica de encomendas no período de Sede Vacante (1720-1740) 389

escritura de ajuste, lavrada a 19 de Março de 1732, para entalhar um novo retábulo,


na forma da planta de Santos Pacheco e mais direção de Gaspar Ferreira, (…) pelo mesmo
preço e quantia em que se ajustou o outro25.
O curto intervalo temporal que medeia a execução deste exemplar e o retábulo-
mor da Catedral do Porto, realizado entre 1727 e 1729, em paralelo com os mestres
seleccionados pelo Cabido viseense para o retábulo-mor, permite-nos equacionar a
existência de uma ascendência directa do exemplar portuense sobre o congénere de
Viseu. Esta ocorrência deverá ter sido favorecida pelo facto de, tal como em Viseu,
também no Porto a empreitada do retábulo-mor ter coincidido com o período de
sede Vacante (1717 a 1741). As circunstâncias análogas em que os capitulares das
duas catedrais se encontravam terão eventualmente favorecido um relacionamento
mais próximo e, em simultâneo, ocasionado alguma competição no engrandecimento
artístico das respectivas catedrais. A decisão do Cabido viseense de substituir o
retábulo-mor ocorre precisamente quando a composição portuense se encontrava
em fase de conclusão, esta simultaneidade parece evidenciar que a resolução poderá
ter sido motivada na sequência do contacto com a obra do Porto. Este contexto de
alguma rivalidade e influência é corroborado pela escolha dos mestres efectuada pelos
capitulares de Viseu: para o risco foi preferido um dos mais conceituados arquitectos
e entalhadores do Reino, Santos Pacheco, que possivelmente também foi o autor do
risco da composição retabular portuense; para a revisão da obra depois de entalhada
a opção recaiu precisamente sobre os dois mestres que entalharam o retábulo da Sé
do Porto, Luís Pereira da Costa e Miguel Francisco da Silva.
O conhecimento dos capitulares de Viseu em relação às obras da Catedral por-
tuense é confirmado com a decisão de execução de um cadeiral para a capela-mor.
À semelhança do que aconteceu com o retábulo-mor esta empreitada não constava
da proposta de intervenção inicialmente delineada pelo arquitecto Gaspar Ferreira
nem nunca aparece referenciada no desenvolvimento das obras ao longo da década
de vinte. A obra do cadeiral foi encomendada em 1733 ao arquitecto Gaspar Ferreira,
em madeira de pau-preto e de castanho. Na sua estrutura e decoração são evidentes as
analogias com o correspondente da Sé do Porto26. Esta derivação foi mesmo evocada
pelo Cabido no contrato celebrado com o mestre José de Miranda Pereira, em 1736,
para o douramento e envernizamento do cadeiral, registando-se na escritura que
a obra deveria ficar na forma que se acha o coro da capella-mor da cidade do Porto27.
Para o espaço da sacristia foram encomendados novos espelhos por nam haver nella
mais que huns muito piquenos, antiquíssimos e com partes quebrados, e sem asso para o
reflexo da lus28 e duas novas mesas, com pedras finas e pés de pau-preto.

25 A.D.V., 1732 – CAB – DOCS AVS, cx. 20, n.º 9; EUSÉBIO, 2002: 240.
26 O cadeiral da Sé do Porto foi entalhado pelo entalhador Miguel Marques, em 1726, segundo o risco da cadeira
realizado por Luís Pereira da Costa. Ver FERREIRA-ALVES, 2001: 79.
27 A.D.V. – CAB – DOCS AVS, Cx. 20, n.º 14; EUSÉBIO, 2006: 721.
28 A.D.V., 1739 – Reclamações. CAB – DOCS AVS; EUSÉBIO, 2002: 268.
390 Maria de Fátima Eusébio

Figura n.º 5
Capela-mor

os sinos, denominados de Nossa Senhora e de São Teotónio encontravam-se


quebrados, pelo que se mandaram fundir e fizeram-se uns novos.
A dinâmica de encomendas do Cabido da Sé de Viseu incluiu também ornamentos
e objectos considerados essenciais à magnificência e à dignidade dos cerimoniais
religiosos, nomeadamente paramentos, castiçais, cálices, tocheiros e livros de coro.

Conclusão
A profunda metamorfose de que a Catedral de Viseu foi objecto no período de
Sede Vacante, compreendido entre 1720 e 1741, evidencia uma intenção clara do
Cabido no sentido de imputar ao edifício de raiz medieval a exuberância, o brilho,
os contrastes cromáticos e de volumes indispensáveis à criação de uma espacialidade
barroca. De acordo com o Cabido, a Sé encontrava-se “com o ornato da sua primeira
construeçam, menos polida pella tenuidade do rendimento do bispado e muita pobreza
que nele e nesta mesma cidade há”29, pelo que era imprescindível uma intervenção
avultada, capaz de solucionar os problemas existentes e de lhe conferir a exuberância
correspondente à sua dignidade. Ao longo dos séculos a iniciativa da maioria das
empreitadas ficou a dever-se aos bispos, contudo, a reforma mais profunda e com
maior impacto na fisionomia da Catedral foi da responsabilidade dos capitulares e
ocorreu num período manifestamente curto.
Em período de Sede Vacante, o zelo com a magnificência e modernização do espaço
litúrgico não se confinou à Catedral, compreendeu também as igrejas filiais, como a
matriz da paróquia de São João de Lourosa, para a qual o Cabido encomendou uma
nova estrutura retabular (est. 655) para a capela-mor, “em rezam de que o que tinham
hera muito velho e antiguo e quazi todo despedaçado, além de muito piqueno”30 e outra
para a igreja de São Miguel de Fetal.
29 A.D.V., 1739 – Reclamações. CAB – DoCS AVS; EuSÉBIo, 2002: 262.
30 A.D.V., 1739 – Reclamações. CAB – DoCS AVS; EuSÉBIo, 2002: 270.
O cabido de Viseu: dinâmica de encomendas no período de Sede Vacante (1720-1740) 391

A prática de encomendas do Cabido deverá ter desempenhado também influência


sobre os responsáveis por outros espaços religiosos da diocese, incentivando-os à
tomada de iniciativas semelhantes.

Fontes e Bibliografia

Fontes
A.C.S.V., 1708-1778 – Livro para nelle se assentarem os assentos e determinaçoins do Reverendo
Cabbido para que fosse mais verdadeiro.
A.D.V., 1732 – Instrução e Relação da Catedral de Viseu e mais igrejas do bispado para a Sagrada
Congregação. CAB – DOCS AVS, cx. 6 e 20, n.º 2, 9, 11, 14 e 249.
A.D.V. – Livro de Notas de Viseu, n.º 575/67, fls. 20v-22.
A.D.V., 1739 – Reclamações. CAB – DOCS AVS.

Bibliografia
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XXXV, fasc. 4. Viseu: Assembleia Distrital de Viseu.
ALVES, Alexandre, 1995 – A Sé Catedral de Santa Maria de Viseu. Viseu: Câmara Municipal de
Viseu, Santa Casa da Misericórdia de Viseu, Grupo de Amigos do Museu de Grão Vasco.
ALVES, Alexandre, 2001 – Artistas e Artífices nas Dioceses de Lamego e Viseu. Viseu: Governo
Civil do Distrito de Viseu.
AZEVEDO, Carlos A. Moreira, 2001 – “Sé”, in Dicionário de História Religiosa de Portugal, vol.
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Artistas Portugueses en el Museo Vostell Malpartida
(MVM) (Extremadura-España). Documentación del
Archivo Happening Vostell (AHV).
Mª del Mar Lozano Bartolozzi*

El 30 de octubre de 1976, el artista Wolf Vostell (Leverkusen, 1932-Berlin, 1998),


dibujante y pintor, autor de assemblages, dé-coll/ages, environments, performances,
creador del happening en Europa, fundador del movimiento Fluxus junto a Maciunas,
Higgins, Nam June Paik, etc, y de otras manifestaciones multimedia desarrolladas desde
los años cincuenta y sesenta, inauguró un Museo de Arte y Naturaleza que lleva su
nombre, en el paraje de los Barruecos de Malpartida de Cáceres, a 15 kilómetros de
la capital cacereña1. Con tal motivo cursó invitaciones a distintos artistas, críticos,
profesores de Universidad, para que asistiesen. Entre ellos al artista y crítico portugués
Ernesto de Sousa, al que ya se había dirigido para que acudiera a otra actividad
previa en el pueblo de Malpartida en el mes de abril del mismo año, tal como lo
demuestra una carta conservada en el Archivo Happening Vostell (AHV)2. A partir
de su presencia el 30 de octubre, toda una relación, entre Portugal y Malpartida de
Cáceres, se puso en marcha, principalmente en el último lustro de los años setenta.
Al ser invitada por la Doctora Nathalia Marinho a participar en esta reunión
internacional para poner en común investigaciones sobre artistas luso-brasileiros, se
me ocurrió hacer una síntesis de las actividades realizadas por los artistas portugueses
en el citado lugar de Malpartida, en esa primera época. Una síntesis a partir de la
documentación y de las obras conservadas en el Museo y el Archivo Happening Vostell,
que organizado por el propio artista es hoy propiedad de la Junta de Extremadura y
se encuentra ubicado en el Museo Vostell Malpartida3. Hemos intentado reconstruir

* Art History Professor at the Universidad de Extremadura ([email protected]).


1 VV.AA., 2003.
2 Archivo Happening Vostell (AHV). Caja de madera 108 B. Museo Vostell II.
3 AHV. Caja de madera 107. Durante los tres últimos años hemos dirigido un proyecto de investigación denominado:
Cotidianeidad, parquedad y perspectiva temporal y global en Fluxus, el Arte Conceptual y el Arte Conceptual y el
Arte Intermedia (Su documentación a partir del Archivo Vostell Malpartida), financiado por la Junta de Extremadura
con varios miembros del grupo ARPADEX (Arte y Patrimonio Cultural Moderno y Contemporáneo) del que soy
investigadora principal de la UEX, del MVM como el director Gerente Don José Antonio Agúndez y el Director
del Centro de Conservación y Restauración de Bienes Muebles de la Junta de Extremadura.
394 Maria del Mar Lozano Bartolozzi

dicha confluencia analizando los fondos del Archivo citado, la mayor parte cartas
dirigidas a Vostell por parte de Ernesto de Sousa (1921), alguna del crítico Fernando
Pernes y fotografías de lo allí ocurrido; y las obras de la colección que fueron donadas,
aunque muchas de las manifestaciones artísticas eran procesuales (hechas durante
un tiempo) y efímeras. Ciertamente hay otros fondos donde investigar, el primero el
Archivo del “CEMES-Centro de Estudos Multidisciplinares Ernesto de Sousa” dirigido
por Isabel Soares Alves, esposa de Ernesto de Sousa, que tiene una magnífica página
web donde se muestran referencias a la participación en Malpartida, pero de momento
yo he querido hacerlo, sobre todo, con la documentación y obras en Extremadura.
Antes del año 1976 en la región extremeña no se había producido nada semejante.
La llegada de Vostell y el desembarco de las manifestaciones conceptuales fueron
absolutamente novedosas. Vostell ligado estéticamente a Extremadura desde al año
1958 al venir a conocer Cáceres y Guadalupe4, y afectivamente desde el año 1959,
al contraer matrimonio con Mercedes Guardado Olivenza, maestra cacereña; llegó a
Malpartida el año 1974, acompañado del pintor expresionista, Juan José Narbón, al
que había conocido en Cáceres de la mano de Mercedes. Este pintor viajó después a
Alemania por razones de trabajo y participó en alguno de los happening vostellianos en
Düsseldorf. Ambos fueron juntos al paraje de los Barruecos, que subyugó a Vostell de
tal forma que decidió crear allí un Museo con obras de los Nuevos Comportamientos
Artísticos: Happening, Fluxus. El Alcalde de la localidad malpartideña (Juan José
Lancho Moreno) y otras personas del entorno cultural, entre las que yo misma me
encontraba, respondimos con entusiasmo a las iniciativas del artista, en un espacio
que, si bien era totalmente ajeno a cualquier tipo de manifestaciones artísticas,
tenía el bagaje de ser un lugar de enorme belleza natural con huellas humanas de
la Prehistoria, y un pueblo cercano muy anclado en unas costumbres vernáculas sin
apenas contaminaciones ajenas, lo cual coincidía con las búsquedas de los artistas
conceptuales y del movimiento Fluxus.
Sousa, artista y teórico, capitaneaba en Portugal la reivindicación del arte
conceptual con experiencias de activismo propio. Acudió a la V Documenta de
Kassel el año 1972, en la que participó Wolf Vostell, aunque entonces no lo conoció
personalmente. El artista portugués sí tomó contacto con Josep Beuys, con el que
aparece en fotografías que Sousa difundió en varias publicaciones y conoció además
a otros artistas. Según palabras de su mujer Isabel:
“O Ernesto em 1972 foi à dokumenta 5, e estabeleceu uma rede de contactos de artistas
alemães, entrevistou o Beuys, e contactou em directo com a obra de artistas fluxus, fomos
ao congresso da AICA na Alemanha e também ele deixava contactos.”
El mismo año 1972, dio una conferencia en Lisboa titulada “Da vanguarda
artística em Portugal e do mercado comum; como uma receita que contribuirá para
a resolução de alguns dos problemas que afligem a nossa patria”, que hemos leído

4 FRANCO, A. AGÚNDEZ, J. A., CANO RAMOS, J.J., 1994


Artistas Portugueses en el Museo Vostell. Malpartida (MVM) (Extremadura-España). 395

publicada en la Revista Colóquio en diciembre de 19755, en la que mencionaba


los nuevos derroteros de la crítica y la teoría artística citando a Jean Baudrillard,
Dichter o Lewis Mumford, y en la que hablaba también de la presencia en el mundo
Occidental de formas de expresión artística que eran diferentes a la pintura, como
el arte no objetual es decir el body-art, el land art, el arte del comportamiento, etc.,
el arte conceptual, arte de sistemas, etc. y de lo que denomina la vía lúdica y de
diálogo, en relación a los movimientos “Happening”, “Fluxus” y otros. En el texto
aporta al mismo tiempo su concepto del arte a partir de una cita de Giulio Carlo
Argan que habla de aquél como donde el factor práctico se reduce a “Zero”, y donde
el factor ideal, cualitativo, tiende al infinito, al absoluto. Además Sousa denunciaba
la tendencia imparable que existía en Portugal hacia la valoración de la pintura en
todas sus orientaciones y la falta de atención a otras propuestas que se habían hecho
como la del pre-conceptualismo de Almada Negreiros o la de Joaquim Rodrigo.
A parte de la puesta en marcha del proyecto museístico en el paraje de los
Barruecos y en los edificios de un antiguo lavadero de lanas que se encontraban
enfrente, separados por una bella charca o laguna, el Ayuntamiento de Malpartida
de Cáceres ofreció a Vostell el uso de un local del pueblo, en la calle Argentina, que
se convirtió en el CC-MVM (Centro Creativo del Museo Vostell Malpartida). Un
Centro de Iniciativas artísticas y culturales dependiente del futuro museo inaugurado
en el mes de abril del mismo año 1976, para cuyo evento invitó Vostell a Sousa por
primera vez. En la primera carta de éste, fechada el día 11 de octubre de 1976, leemos
cómo fue esa invitación de Vostell:
“Caros Amigos,
Em julho pasado recebi um vosso amável convite para participar na inauguração do
Centro Creativo do Museo Vostell em Malpartida, Cáceres.
Nessa época foi absolutamente impossivel deslocar-me a Cáceres embora o lamente.
Segundo leio no vosso folheto, o primero environment de Vostell abre ao público a 30
de Outubro do corrente ano. Ficaria muito grato que me confirmassen esta data assím
como todos os informes necessários para no caso de partir de Lisboa a 29 poder entrar
rápidamente en contacto convosco e outras entidades presentes, suponho que no propio
dia 30.
É possível que consiga organizar una excursão com outros artistas e críticos portu-
gueses; de qualquer maneira estarei aí com mina mulher no dia 30 para fazer entrevistas,
fotografias e outros contactos.
Para facilitar os problemas cambiais agradecia que me mandassem um novo convite.
Com saudações cordiais.
P.S. Em separado seque um programa do me último trabalho com o compositor Jorge
Peixinho. Porventura “Luis Vaz 73” poderia vir a ser realizado em Malpartida”6

5 SOUSA, 1975.
6 AHV. Caja 108 B Museo Vostell II.
396 Maria del Mar Lozano Bartolozzi

Figura n.º 1
Wolf Vostell en la inaugura-
ción del ambiente V.o.A.E.X.
Los Barruecos de Malpartida
de Cáceres, 30 de octubre de
1976.
Fotografía de la autora..

Sousa acudió con su mujer, a la inauguración del Museo, en una jornada en la


que el artista alemán finalizó el ambiente VOAEX (Viaje de (h)ormigón por la Alta
Extremadura). En consecuencia, a partir del encuentro personal entre los dos artistas
y sus familias comenzó una amistad y relación ininterrumpida con clara repercusión
en la presencia de artistas portugueses en actividades y donación de obras para la
colección.
Sousa fue siempre un gran admirador de Vostell. En otra carta al citado artista,
esta vez escrita en francés y a máquina el día 1 de octubre de 19777, relata aspectos
de su trayectoria vital y artística. Cuenta que el matrimonio habían realizado un viaje
que los llevó de París a Colonia, de Amsterdam a Berlin, de Kassel a Bolonia, etc. Y
además explica, “Je place surtout mon travail actuel sur le binomium ART'SOcIÉTE
et là je verifie de plus en plus l’importance de ton role et de ton exemple; et ce qui est plus,
peut-être, de la forcé que émane de toi vers autrui.” Además Sousa escribió en varias
ocasiones sobre las experiencias de Malpartida.
Vostell concibió el Museo como un centro dinámico y alternativo a los museos
tradicionales, con actividades participativas en un espacio donde mostrar el arte
procesual internacional. Artistas, críticos y los habitantes del pueblo de Malpartida,
a los que frecuentemente vemos en las fotografías que se hicieron como testimonio
de las acciones, debían coincidir en su proyecto de alto contenido sociológico. La
actitud buscaba cierta radicalidad, propia del final de la década de los sesenta y
primeros años de la década de los setenta. Los recursos económicos eran entonces
muy escasos pero los artistas conceptuales y fluxistas estaban acostumbrados a tra-
bajar con pocos medios dependiendo mucho de la amistad que surgía de los grupos
organizados con apoyo mutuo.
Vostell era un gran organizador, escribía a unos y a otros desde sus distintas sedes
habituales o desde los hoteles donde pernoctaba por razones de trabajo, como su

7 AHV. Caja 108 B. Museo Vostell II.


Artistas Portugueses en el Museo Vostell. Malpartida (MVM) (Extremadura-España). 397

casa en Colonia/luego en Berlín, el estudio de París, hoteles de Madrid o Cáceres y


Malpartida. A los pocos meses de inaugurar el VOAEX decidió poner en marcha una
primera Semana de Arte Contemporáneo, denominada SACOM, a la que siguió otra
posterior y una tercera, e incluso después lo que fue no una semana sino un día al
que llamó DACOM. Semanas con actividades diarias que se hicieron en el Centro
Creativo, en el Cine Morán o en el “Palacio Topete”, -edificio singular del siglo
XVII, de grandes dimensiones y relevancia constructiva, futura residencia y estudio
de trabajo de la familia Vostell-, situados en el pueblo de Malpartida, o en el Museo,
bien en la zona abierta de la Peña del Tesoro donde se instaló el VOAEX o bien en
los edificios arruinados que formaban parte de los antiguos lavaderos de lanas. Las
performances, instalaciones, conciertos fluxus, desarrollados en aquellos días eran en
gran parte efímeras, una de las características de este arte de acción, como ya hemos
comentado. Quedan fotografías, alguna película y testimonios personales de quienes
vivieron aquello, aunque también hubo donaciones de las obras y restos objetuales
o fotografías que constituyen fondos de la colección actual del Museo.
Sousa informaba a Vostell, en varias cartas escritas en portugués, francés o inglés,
de su interés en colaborar en esa 1ª SACOM. Y relata el proyecto que llevaría, una
exposición-participación esencialmente documental afirmando que la idea le gustaba
mucho pues supondría por una parte algo muy personal y por otra parte algo colectivo.
La exposición estaría compuesta de fotos, catálogos, etc. La documentación procedería
de tres exposiciones críticas y polémicas que había organizado en 1972, 1974 y 1977.
La última era la llamada “Alternativa Zero”. Sousa comenta así mismo su intención de
solicitar una ayuda a la Fundación Gulbenkian para dicha exposición pero afirma que
en caso de no obtenerla iría con sus propios recursos y una gran alegría en el corazón
al poder hacer esta revisión de un cierto aspecto de su trabajo, que no consideraba
menos creativo que cualquier otro; y de hacerlo en el punto magnífico de encuentro
que era Malpartida. Además indicaba su intención de llevar fotos, un proyector de
cine super 8 y diapositivas. Así como que podría llevar una película performance con
unas serigrafías que tuvieron otra versión en Lublin (Polonia) y quizás unas películas
de otros artistas. Por último invitaba a viajar a Lisboa a Wolf Vostell y a Mercedes,
poniendo a su disposición una casa de campo a 30 km. de Lisboa.
En otra carta posterior, del 26 de octubre de 19778, acusaba recibo de una de
Vostell invitándole a participar definitivamente en la 1ª SACOM que se celebraría
en enero de 1978. Es una aceptación dando el título de su actividad: “THIS IS MY
BODY (ESTE ES MI CUERPO)”. Mostraría unas páginas de un libro, con carácter
autobiográfico, separadas y plastificadas, que se pudieran suspender de un muro en
vertical. Llevaría también unas películas super 8 tituladas: “THIS IS MY BODY NO.
I, THIS ES MY BODY NO. 2”; las películas serían proyectadas en una sala donde se
expondrían unas serigrafías prácticamente blancas con un “comunicado” pidiendo
la colaboración del público. Las serigrafías medirían 102 x 65 cm. (solamente se
expondrían si las películas pudieran ser proyectadas y lo harían de tres en tres según

8 AHV. Caja 108 B. Museo Vostell II.


398 Maria del Mar Lozano Bartolozzi

Figura n.º 2
Cartel de la exposición Alternativa zero.
Foto cortesía Archivo Happening Vostell. Museo Vostell Malpartida.

el espacio disponible). Además informaba que llevaría un documental, también S8,


en color sobre “Alternativa zero” y se ofrecía de nuevo a llevar otras películas de
autores portugueses.
En la misma carta comentaba que habían estado en Berlín y que esperaba que
los Vostell hicieran un viaje a Lisboa. Así mismo le informaba de sus conversaciones
con el crítico Fernando Pernes que tenía interés en conocer a Vostell y hablar de
una exposición a celebrar en Lisboa y oporto, quizás del tipo de la que iba a realizar
nuestro artista en la Fundación Miró en Barcelona. Harían un buen catálogo y Sousa
se ofrecía para escribir un texto.
En 1977 Ernesto fue Comisario-Director de la polémica exposición Alternativa
zero celebrada en febrero-marzo, por la Secretaría de Estado da Cultura, en la
Galería Nacional de Arte Moderno de Lisboa, en la Avenida Brasilia, en Belém9.
una exhibición en la que participaron un amplio número de pintores, escultores,
diseñadores, músicos, poetas, autores de happening e instalaciones. “um balanço
de toda a dispersa actividade que, no sector genericamente ligado ao conceptual, se
desenvolvia e nele se consagram econfrontam obras de muito diversa origem e valor…
organizada por Ernesto de Sousa –antigo teórico do neo-realismo- o único crítico a
acompanhar o desenvolvimento das novas correntes”10. Mientras estuvo abierta se
celebraron conciertos, performances participativos, cine, rituales, comidas colectivas,
9 Catálogo Alternativa zero, 1977. Perspectiva: Alternativa zero
10 MELo-PINHARANDA, 1986. 20 años después se hizo una exposición conmemorativa en la Fundação Serralves
de oporto publicándose un libro que recoge tanto las obras y referencias a los artistas participantes como las críticas
y textos contemporáneos a la exposición y reflexiones posteriores: Perspectiva: Alternativa zero.
Artistas Portugueses en el Museo Vostell. Malpartida (MVM) (Extremadura-España). 399

juegos, talleres didácticos infantiles. El catálogo reprodujo un texto de Eduardo Prado


Coelho y otro de Ernesto de Sousa. Además de una serie de fotografías comentadas.
Sousa en su texto pone de nuevo como antecedente del arte conceptual portugués,
el pre-conceptualismo de Almada Negreiros y reproduce el mural “Começar” rea-
lizado para el nuevo edificio de la Fundación Gulbenkian, en 1968-1969, que fue
considerado una de las obras más relevantes y su testamento espiritual11; así como
la producción artística de Joaquim Rodrigo. Ya en un artículo publicado en el Diário
da República el 28 de diciembre de 1972 había escrito: “Podemos mencionar 1919
como o ano em que aconteceu o caso mais significativamente simbólico daquilo
a que chamamos a modernidade. Nesse año Marcel Duchamp põe bigodes numa
reprodução da Giconda. Este acto surge-nos em primeiro lugar como um puro acto
gratuito e destrutivo, como o primeiro menifesto contra aquilo a que se chamaria
mais tarde a cultura asfixiante…”12.
Durante la primera semana de enero de 1978 se celebró la SACOM. Vostell la
concibe como un festival, como una fiesta estética, organizando distintas actividades
con la intención de que fueran muy participativas por parte tanto del pueblo de
Malpartida, como de profesores, críticos, artistas. La idea de ser un festival es común
a los artistas Fluxus. Sousa en la publicación Alternativa Zero, reprodujo varias
fotografías con pies que hablan de ello. En la primera aparece Robert Filliou, con el
texto: “Vanguarda e Festa. O “Aniversário da Arte” foi invetado por Robert Flliou,
que vemos aquí em Aix-la Chapelle em 1973. No ano seguinte o “Aniversário” foi
celebrado por nós, de colaboração com o Círculo de Artes Plásticas de Coimbra”; lo
que se ve en otra foto con el texto: “Vanguarda e Festa. Recente manifestação “Arte
na Rua”, em Coimbra, Portugal. Iniciativa do C.A.P.C.”.
En una tercera fotografia tomada el día del desencofrado del VOAEX, el pie escrito
es: “Vanguarda e Festa são noções que frequentemente exigen um entendimento
recíproco. Almoço com Vostell durante a recente inauguração de um envolvimento
deste operador estético, no Museo Vostell de Malpartida (Cáceres)”. Pero una fiesta
que no quiere sentirse ajena a reivindicaciones sociales, por lo que en otro pie de
foto donde vemos una construcción urbana con el tejado destrozado, aparece la
frase: “A Festa estética não é inofensiva. Cooperativa “Árvores” do Porto, após o
atentado de que foi víctima”.
Como se afirma en la prensa, al comentar la primera SACOM: “El triángulo
sobre el que se desarrollará esta magna exposición de arte, está constituido por el
palacio del Topete, los Barruecos y el Lavadero”13. Aunque se añade la celebración
de exposiciones y performances en el CC-MVM. El arte conceptual se consideraba
entonces un arte comprometido con la libertad y la reafirmación de una nueva
época, que no era otra que la transición política que estaba viviendo nuestro país.
Por eso Narbón declaró a un periodista de Cáceres: “La semana en sí viene a ser un
hecho reivindicativo, dentro del compromiso del Museo Vostell, como organizador y
11 Gonçalves, 1991: 109.
12 “O estado Zero. Encontro com Joseph Beuys”, República, 28-12-1972.
13 Diario Extremadura, 1977.
400 Maria del Mar Lozano Bartolozzi

Figura n.º 3
E. de Sousa en el Centro Cre-
ativo del MVM 1ª SACoM
(1978).
Foto cortesía Archivo Happening Vostell.
Museo Vostell Malpartida.

promotor de la misma, como respuesta artístico-cultural que hace al pueblo extremeño,


a España y al mundo entero. Incluye, por lo tanto, la intención única y exclusiva
de valoraciones progresistas en el sentido más amplio de la cultura libre con fines
de revalorización de civilizaciones olvidadas y entendimientos futuristas. Es también
principal medio de llegar a los límites conceptuales que empiezan a engendrar una
nueva forma renovadora de hombre o sociedad, con plena participación de todos
los sentidos que comportan como tal: lo auditivo, lo visual, lo gustativo, lo táctil y
lo olfativo en comunión perfecta con el alma o pensamiento, y todo ello dentro de
los intereses creativos”14.
En primer lugar se inauguró una exposición de 32 autores, denominada “Convi-
vencias”, en el Palacio Topete. Pertenecían a Rafael Tous, cuya colección mantenía un
claro carácter ideológico de izquierdas, con obras de Llimós, Equipo Crónica, Guinovart,
Bartolozzi, Arranz Bravo, Miralda, Saura, etc. El segundo día se inauguró la muestra
individual con fotografías de Ernesto de Sousa, expuesta en el Centro Creativo y la
realización de una performance, todo bajo el nombre: “Tu cuerpo es mi cuerpo, mi
cuerpo es tu cuerpo”. “Haciendo partícipes a los espectadores que proyectaron con él,
en una imagen fílmica, fragmentos del cuerpo según su imaginación y desinhibición.
Dichos espectadores habían sido motivados previamente con diapositivas y fotografías,
creadoras de un ambiente, y tuvieron el aliciente de sentirse ellos mismos creadores
al verse reflejados en la pantalla”15. “A exposição era dupla. Metade, exposição-
das-minhas-exposições, “Do Vazio à Pró Vocação”, “Projectos-Idias”, “Alternativa
zero”; e outra metade, masi pessoal, ou mais exclusivamente pessoal…Fotografias,
montadas analíticamente. E é aí que me aproximo desta afirmação tautológica que
abordo desde 1972: “o teu corpo é o meu corpo- o meu corpo é o teu corpo”…”As
“pessoas” de Malpartida entraram neste jogo a sério, e alegremente. Houve cuspo,

14 RIVERo, 1978: “Semana de Arte Contemporáneo. El acontecimiento más importante de Extremadura”, Diario
Hoy, 3 de enero.
15 LozANo BARToLozzI, 1978: 17.
Artistas Portugueses en el Museo Vostell. Malpartida (MVM) (Extremadura-España). 401

sangue, impressões digitais e outras coisas”16. Además hubo debates sobre Portugal
y el arte portugués.
Vostell inauguró el cuarto día su segundo ambiente en los Barruecos: “El muerto
que tiene sed”. Y en la Biblioteca Pública se expusieron desde el día 5º una colección
de objetos antiguos bajo el título “uso diario y ritos olvidados” con el fin de recuperar
una memoria con un imaginario común. Fueron seis días de exposiciones, ambientes,
performances y para cerrar una mesa redonda con artistas, teóricos y el público que
debatieron sobre lo sucedido.
Sousa impulsó al mismo tiempo los contactos entre Vostell y el crítico Fernando
Pernes, así como con algunos artistas portugueses, por ello el mismo año 1978, Vostell
fue a Lisboa17. Lo hizo el día 10 de agosto. Allí se reunió con Sousa y con Fernando
Calhau. El día 11 estuvo en la Fundación Gulbenkiam, con João Vieira, Director de
la Galería de Arte Moderno y con Julião Sarmento. Comió con Heldes y Bataglia.
También estuvo el día 12 en que se trasladó a Estoril donde tuvo un encuentro con
Pernes, que vino de Oporto, Vieira, Sousa, Sarmento, y con la artista Dulce d’ Agro
de la Galería Quadrum. El 13 de agosto se fue desde Estoril a Malpartida.
Las actividades artísticas continuaron en el Museo, así en agosto de 1978, el
artista italiano domiciliado en Génova, Claudio Costa, instaló en los Barruecos el
ambiente “El Volcán durmiente-El pensamiento emigrante”, un ensamblaje formado
por un nido de cigüeña, elemento que forma parte habitualmente del paisaje de los
Barruecos, colgado de unos palos de madera formando un trípode. La obra, que Sousa
reprodujo fotográficamente en la revista Colóquio-Artes18, ya no existe.
El día 8 de febrero de 1979 Vostell viajó de nuevo desde Malpartida a Lisboa,
se entrevistó con Sousa, lo hizo también en la Fundación Gulbenkian y el día 10 se
trasladó de Lisboa a París19. En día 10 de mayo Vostell volvió a Lisboa y tuvo una
vernissage en la Gulbenkian, permaneció hasta el día 13.
Entre el 7 y el 11 de abril de 1979 se desarrolló la 2ª SACOM. Supuso la puesta
en marcha de lo que constituyeron las salas permanentes del Museo Vostell en el
Lavadero durante una serie de años. Todas las obras expuestas y documentos fueron
donados al Museo. El primer día era un homenaje a G. Maciunas que había fallecido
recientemente, presentándose y procediendo a la inauguración de la colección Fluxus
del italiano Gino di Maggio, con obras de Brecht, Higgins, Kaprow, Spoerri, Maciunas,
etc. Vostell en el folleto editado escribió su declaración de intenciones:
“La Semana de Arte Contemporáneo Malpartida es el festival anual que venimos
realizando en el M V M (Museo Vostell Malpartida) instalado en los Barruecos y en el
Lavadero. Este año por primera vez en el mundo, se expone una colección permanente
del Movimiento Internacional “FLUXUS” en las nuevas salas instaladas en el Lavadero.
Esta colección es prestada a largo plazo y presentada por Gino di Maggio, el editor y

16 SOUSA, 1998: 287


17 AHV. Agenda personal de Vostell del año 1978.
18 SOUSA, 1979 - Colóquio-Artes, nº 42, Septembro.
19 AHV. Agenda personal de Vostell del año 1979.
402 Maria del Mar Lozano Bartolozzi

promocionador más dominante y dinámico de esta línea de Arte Conceptual y Accional,


en la segunda mitad del siglo XX. Se presentarán en esta Semana también las actividades
en Portugal de artistas del “Comportamientos de hoy”; una exposición documental del
arquitecto Ruhnau “Humanización del Ambiente a través de la colaboración arquitecto-
artista” y como siempre habrá también la participación del pueblo, esta vez con las “Comidas
olvidadas extremeñas”. Tendremos algunas obras más donadas al MVM por artistas de
rango internacional como Canogar, Costa, Hidalgo, Marchetti de Zaj y otros. Estas obras
enriquecen el diálogo con los malpartideños; todas las obras donadas son suyas, lo mismo
las instaladas en los Barruecos como las del Lavadero.
El museo Vostell-Malpartida, no es un museo privado como algunos piensan, es un
Museo del Municipio de Malpartida. Lleva mi nombre porque soy el Fundador-Director
y porque incluyo la amistad, la obra, el cariño y el interés de otros artistas que, como yo,
van al mismo camino largo de un arte, que es un proceso de vida, para la esperanza del
espíritu humano. Esta iniciativa es como una obra de arte mía para y con el pueblo de
Malpartida de Cáceres”.
El tercer día se dedicó a las acciones, performances y exposición de obras de
artistas portugueses en el Lavadero. Tras los contactos de Sousa y la variación de
algunos nombres a lo largo de sus gestiones, acudieron catorce artistas a Malpartida,
que con sus acompañantes formaron una comitiva de treinta personas; otros cinco
no fueron aunque mandaron y donaron las obras. Procedían de Lisboa, Coimbra y
Oporto. Dicha posibilidad de confluencia para trabajar juntos fue alabada por Sousa:
“Durante uma semana vivemos um espírio novo. Na “Alternativa” ainda estábamos
dispersos; em Malpartida pudemos realmente conhecer-nos melhor, através de im
trabalho comum num ambiente amigável”20. En el AHV se encuentra la relación o
Catálogo de la Participación y obras donadas por un grupo de artistas que representaba
con toda seguridad las opciones conceptuales, grafistas y de performance portuguesas;
que se expresaron con fotografías, cine super 8, haciendo instalaciones, etc. Simul-
táneamente a sus acciones y obras, mostraban una postura crítica, a veces propia
de una cierta catarsis estética, teniendo en cuenta que en 1974 había finalizado la
dictadura salazarista al producirse la Revolución del 25 de abril, y el país caminaba
por unos aires nuevos de libertad ideológica y cultural.
Algunos de los artistas estaban ligados a la revista ARTA. Los de Lisboa pertenecían
en su mayoría a La cooperativa Diferença, fundada recientemente y que según Sousa
daba continuidad al colectivo Grafil. Trabajaban juntos desde “Alternativa Zero”.
Sousa, en una entrevista realizada por Michel Giroud, comentó que la experiencia de
convivir varios artistas, añadía para él algo más: “Penso que há em Portugal um espírito
ecumênico, que se deve às navegações. Não somos fascistas, somos abertos, tanto à
África como à Índia ou à América, pelo Brasil“21. La documentación fotográfica fue
realizada por el fotógrafo artista lisboeta Monteiro Gil, de la cooperativa Diferença.

20 GIROUD, 1979.
21 GIROUD, 1979.
Artistas Portugueses en el Museo Vostell. Malpartida (MVM) (Extremadura-España). 403

Figura n.º 4
Exposición de E. de Sousa en
el Centro Creativo del MVM
1ª SACoM (1978).
Foto cortesía Archivo Happening Vostell.
Museo Vostell Malpartida.

Figura n.º 5
SACoM 1979. obra de
Helena Almeida. Desenho
Habitado, 1979.
Foto cortesía Archivo Happening Vostell.
Museo Vostell Malpartida.

Vieira llevaba um vídeo de La Galería de Belém. La relación de autores y obras que


no estuvieron presentes es la siguiente:
Helena Almeida (Lisboa,1934): “Desenho Habitado” (quadros mixed-media
originais), perteneciente a la reflexión que inició en los setenta sobre el cuerpo a
través de la fotografia, pues, como afirma Melo-Pinharanda: en su obra “a fotografia
(processo mecânico e naoartistico) regista o corpo encenado artisticamente sobre as
superícies seriais assim definidas”22. Irene Buarque (São Paulo): “Janelas”-1 instalação
y “Janela Malpartida” (caixa com livros). Fernando Calhau (Lisboa,1948): “Void-
Trap” 16 caixas e 2 títulos. José Carvalho (Évora, 1949): “VTR- Singularidade 1”
Fotografia documental de una pieza vídeo. José Conduto (Beja, 1951): “Matéria de
Comunicação” fotografia.
Sí acudieron a la SACoM: José Barrias (Lisboa,1944) con “Cinco Exercícios
Postais” (postais com intervenção), António Barros que expuso obras de poesia
visual de la serie: “Gritos da Angústia e do Sarcasmo” como “Revolução” (tira de
pano), “Escravos” (tira de pano), “Ver/dade” (tira de pano) y “Valores” (5 sacos de

22 MELo-PINHARANDA, 1986
404 Maria del Mar Lozano Bartolozzi

Figura n.º 6
SACoM 1979. António Barros “Revolução” (tira de pano)
Foto cortesía Archivo Happening Vostell. Museo Vostell Malpartida.

Figura n.º 7
SACoM 1979. Fernando
Calhau “Void-Trap.
Foto cortesía Archivo Happening Vostell.

pano). Alberto Carneiro (S. Mamede do Coronado, 1937), que realizó “Gravura nos
Barruecos”. Montiero Gil (Guarda, 1943) llevó a cabo “A Mão e a Escrita” 2 paineis
com 6 fotografias, inquerito visual, realizando una encuesta al público al escribir en
las paredes: “Responde lo que tu piensas”, por lo que como contestación los visitantes
escribían en las mismas paredes de la sala, y “Livro com documentação”. Lucena con
“Structural Piece” (instalação). Cerveira Pinto (Macau, 1952), que expuso “o Libro”
(quadro-colagem). Joana Rosa (Lisboa, 1959) con “Torno-me eu própria” (5 fotografias
documentação de uma “performance”). Túlia Saldanha (Peredo/Macedo de Cavaleiros,
1930) llevó el “Homenagem a Maciunas” (objeto com comida negra): una cesta de
mimbre pintada de negro con dos botellas en su interior de licor amoroso sobre una
mesa también pintada de negro. Julião Sarmento (Lisboa, 1948) “MVM” (Série de 16
polaroides con 8 envelopes lacrados escondidos nos Barruecos). Este autor utilizaba
Artistas Portugueses en el Museo Vostell. Malpartida (MVM) (Extremadura-España). 405

Figura n.º 8
SSACoM II 1979. Montiero Gil “A Mão e a Escrita.
Interrogatorio visual”.
Foto cortesía Archivo Happening Vostell. Museo Vostell Malpartida.

en aquellos años la fotografía mientras que a partir de los ochenta se decantó por la
pintura. Ernesto de Sousa “Identification con tu cuerpo” (instalação), continuación
de los trabajos de los años anteriores. Mário Varela (Lisboa, 1949) 1-“ART IS” (Livro
com 36 fotocópias, múlt). 2- Livro com documentação y 3-”um Espaço Para a Tua
Memória. Desenho na terra com pigmento. João Vieira (Vidago, 1934): “Incorpório”
Sarcófago em plástico c/1 vestido-letra em plástico e 1 manequim e intervenção com
purpurina dourada. Y 2 vestidos-Letras em plástico da “exposição mole”.
Las obras fueron instaladas en el Lavadero, salvo las que se hicieron en el exterior,
como la mencionada de Alberto Carneiro: “Grabado en la piedra”, una intervención
en una de las piedras graníticas de los Barruecos, grabando la frase de Vostell: “Arte
= Vida, Vida = Arte”. Las fotografias, tomadas durante el proceso, ordenadas con-
secutivamente, forman una obra artística conjunta. Carneiro a finales de los sesenta
estuvo en Inglaterra donde conoció diversas formas de arte experimental como el
postminimalismo organicista; allí “se inicia (en él) una nueva problematización de
su trabajo, vuelto hacia el earth art y el land art en uno de los raros momentos de
perfecta coincidencia de época del arte portugués con el tiempo internacional”23. Fue
autor del Manifiesto para un arte ecológico escrito durante su estancia inglesa, que
años después, en 1976, fue presentado en la Bienal de Venecia junto a sus obras. El
grabado de Carneiro estaba relacionado con propuestas duchampinianas y era una
intervención integrada y casi desapercibida en la naturaleza, muy diferente a cómo
Vostell lo había hecho al instalar el ambiente VoAEX, obra más monumentalista
y provocadora.

23 PINTo DE ALMEIDA: 41.


406 Maria del Mar Lozano Bartolozzi

Figura n.º 9
SACoM II 1979. Alberto
Carneiro: Arte=Vida.
Grabado en la piedra.
Foto cortesía Archivo Happening Vostell.
Museo Vostell Malpartida.

Figura n.º 10
SACoM II 1979. João Vieira.
“operación Plástica” con la
escultura ambiente: “Incorpo-
ración”. En la foto el artista,
E. de Sousa y otros.
Foto cortesía Archivo Happening Vostell.
Museo Vostell Malpartida.

En el aliviadero de la charca, que precede a la entrada de los Lavaderos, João


Vieira, considerado el iniciador en Portugal de la practica de las performances en los
años setenta24 y autor de pintura sígnica basada en caracteres tipográficos occidentales,
que realiza su letrismo con distintos materiales25, llevó a cabo la acción “operación
Plástica” con su escultura ambiente: “Incorporación”. un sarcófago vacío de poliester
pintado de purpurina que lanzó por el citado vertedero o aliviadero de la charca
utilizado en una performance realizada en 1973 al inaugurarse una exposición en
Lisboa titulada “26 artistas de Hoy” organizada por la AICA-Asociación Internacional
de Críticos de Arte y la SNBA-Sociedade Nacional de Bellas Artes, 1973. Allí el
sarcófago flotaba sobre un líquido dorado. En un momento dado una mujer desnuda
y maquillada, entró, dio una vuelta a la sala y fue conducida al sarcófago penetrando
en él. Permaneció durante unos minutos y después se retiró serenamente26.

24 MELo-PINHARANDA, 1986
25 GoNÇALVES: 103.
26 GoNÇALVES
Artistas Portugueses en el Museo Vostell. Malpartida (MVM) (Extremadura-España). 407

Figura n.º 11
SACoM II 1979. Vostell en
el Concierto- Fluxus.
Foto cortesía Archivo Happening Vostell.
Museo Vostell Malpartida.

Figura n.º 12
SACoM II 1979. Perfor-
mance de Ção Pestana
“Tu Boca”
Foto cortesía Archivo Happening Vostell.
Museo Vostell Malpartida.

Además se añadió la participación de varios artistas portugueses en un Concierto-


Fluxus el 8 de abril con Juan Hidalgo y Vostell. Comentado por Sousa leemos: “o
concerto Fluxus que organizou no teatro foi de um humor e de um rigor magníficos
e a maior parte das peças foram perfeitamente assimiladas pelos habitantes da aldeia
(La Pomme, 13, Sang ET Champagne, Nivea, Tousser)”. “Hidalgo trajo además a
Llorenç Barber (músico, fundador del grupo Actum de Valência); Gil (artista de lãs
Canárias) y Nacho Criado (artista plástico y de instalaciones de Madrid)”27.
Los participantes portugueses en ese concierto fueron António Barros: “Ver/dade”,
Ção Pestana “Tu Boca”, Túlia Saldanha “oblacion”, Julião Sarmento “performer”,
Ernesto de Sousa “Fluxus”, Alberto Carneiro “Silêncio e Vacio”, Joana Rosa “Traspaso
mi sombra” y Cerveira Pinto “Yo casi no se fluxus pero me gusta”.
Ernesto de Sousa hizo el día 9 por la mañana la instalación y acción “Identificación
con tu cuerpo”. De ella guardamos la hoja que nos repartió a cada participante,
con el encabezamiento: “Amigo. En los Barruecos está una cuerda donde yo colgué
27 GIRouD, 1979.
408 Maria del Mar Lozano Bartolozzi

Figura n.º 13
SACoM II 1979. Perfor-
mance de Ernesto de Sousa
Foto cortesía Archivo Happening Vostell.
Museo Vostell Malpartida.

una centena de retratos de vosotros, habitantes de Malpartida, que hice en los años
1977 y 1978. Tal vez esté allá tu retrato. Si quieres, búscalo, llévalo contigo y deja
en cambio alguna cosa de tu cuerpo como recuerdo para mi.”
Y tras la enumeración de posibles residuos aportados que pueden corresponderse
con un homenaje a artistas, escritores, etc. como Goya, Duchamp o Lacan, -lo que
nos evoca la columna de Schwitters en Colonia-, termina: “Por fin cualquier cosa
todo o cualquier parte de tu cuerpo que pueda ser enmarcada encuadrada formada
compartida en esta cuerda así como una idea acerca de tu cuerpo hazlo con amor
acuérdate tu cuerpo es mi cuerpo mi cuerpo es tu cuerpo.”
El mismo dia 9 hubo “Comidas Portuguesas” con las intervenciones en el cine
Morán, de João Vieira y Túlia Saldanha que distribuyó un licor amoroso de moras
silvestre que a todos conducía a vivencias populares e identitarias, del que daba por
escrito su composición y la receta: Las moras silvestres: “Si vais al Noroeste “Tras
montano” durante los meses de Agosto y Septiembre, procura coger de las moreras
las mejores moras, mételas en un recipiente de cobre con la misma cantidad de
azúcar, ponlas al fuego hasta que de el punto de azúcar, llegado este punto se mete
en frascos y ya está a punto de servirse y se conserva mucho tiempo”. Licor amoroso:
“Hacer una infusión con 1kg. de moras y 2 l. de aguardiente, poner 1 kg. de azúcar
y dejar reposar tres meses. Después de tres meses se puede servir”.
Podemos considerar que las obras, performances, conciertos tienen su fundamento
en conceptos como los explicados teóricamente por el filósofo-científico Gaston
Bachelard en su libro “La poética del espacio” (1957), publicación con reflexiones
sobre la casa, la memoria, los secretos, las cajas, la intimidad. Y cómo los artistas se
relacionan con los demás y con el mundo a través de sus expresiones, de la fonética,
de la palabra escrita, del gesto del cuerpo.
Vostell organizó la presencia de las obras portuguesas pensando en la posibilidad
de instalar un pequeño museo en los Lavaderos, diferenciado del resto. “Je voudraies
Artistas Portugueses en el Museo Vostell. Malpartida (MVM) (Extremadura-España). 409

installer une salle portugaise. On a parlé à Lisbonne de la constitution d’un petit


musée portugais, indépendant, au Lavadero. C’est un geste nécéssaire”28.
Tras las gestiones de Sousa y Pernes, en mayo/junio de 1979 se celebró la exposición
“Wolf Vostell (De 1958 a 1979) Envolvimento/ Pintura / Happening/ Desenho/ Video/
Gravura/ Multiplo” en la Galeria de Belém, Fundación Calouste Gulbenkian de Lisboa
y en julio en el Museo Nacional de Soares dos Reis en Oporto. Vostell se desplazó
a Lisboa el día 1 de mayo desde Dusseldorf, estuvo los días 2, 3, 4, el día 5 fue a
Coimbra, el 6 a Oporto, el 7 a Estoril y el 8 de nuevo a Lisboa donde permaneció
hasta el día 18, en que abandonó la ciudad portuguesa para trasladarse a Barcelona
y después a Berlín. El día 14 llegó a Lisboa el cantaor flamenco malpartideño Paco
Corrales que actuó en la exposición.
Era una muestra que había sido celebrada previamente en el Museo de Arte
Contemporáneo de Madrid y en la Fundación Miró de Barcelona. El día de la
inauguración en el Diário Popular, periódico lisboeta, se leyeron sus palabras: São as
coisas que nao conhoceis que transformarao a vossa vida Vostell. Una frase que publicó
en un periódico local cada vez que exponía su obra, en distintos idiomas, según el
país donde se celebrara la muestra.
En las dos sedes portuguesas Vostell realizó el ambiente “Depresión Endógena”.
El catálogo incluyó los textos de las ediciones de las dos exposiciones de España, de
Jörn Merkert, Jürgen Schilling, Simón Marchán y Santiago Amón, pero se añadieron
los textos escritos por Ernesto de Sousa, organizador de la publicación, a lo largo
de todo el libro, como comentarios de algunas obras fotografiadas y un Postfacio al
final: “Vostell a mesma não-identidade” en el que expuso teorías propias tomando
fragmentos de textos y poemas de otros autores. Así escribe “Na palabra de Almada,
Vostell “é o diálogo com outro que não nos pomos a sabe-lo”.
Precisamente una de las fotografías elegidas por Sousa para este catálogo pertenece
a la Fiesta de Malpartida con motivo de la inauguración del VOAEX, a la que le
añade el texto: “Por outro lado, interessa ao trabalho de Vostell toda a acção humana
destinada a enfrentar, a des-colar (em sentido inverso) daquelas situações alienatórias,
fomentadoras de entropía. A operação estética, a festa – mesmo que seja a festa do
desperdício – o convívio intenso e enriquecedor”.
En junio de 1979 se realizaron nuevas donaciones al Museo, entre ellas las de
Cerveira Pinto, José Barrias, Antonio Barros, Irene Buarque, Tulia Saldanha, Alberto
Carneiro, M. Varela, Juliao Sarmento, Lucena, Claudio Costa, Ernesto de Sousa,
Fernando Calhau, Monteiro Gil y Wolf Vostell.
En mayo de 1980, entre los días 7 y 11 de mayo, se celebró la III SACOM para
cuya preparación Sousa y Vostell intercambiaron cartas y proyectos invitando a
personalidades como Pernes. Dentro de su programación, se desarrolló un seminario
de discusión e intercambio cultural de artistas y teóricos del arte, propuesto por
el escultor Pablo Palazuelo que en aquellos años tenía su residencia en un castillo
adquirido en el pueblo extremeño de Monroy y expuso su escultura “Proyecto para

28 Revista Canal, 79, Julio-Septiembre 1979, recogido en Carta de Malpartida, SOUSA de 1998 a, 245.
410 Maria del Mar Lozano Bartolozzi

un Monumento nº1”, en el Lavadero. Un debate que concluyó con el “Manifiesto del


Lavadero”, sobre la situación de las Artes Plásticas al final del siglo XX. No llegaron
a consensuar un texto unitario sino que cada artista o teórico: Rafael Canogar, Luis
Gordillo, Pablo Palazuelo, Fernando Pernes, Jürgen Schilling, Ernesto de Sousa, João
Vieira y Wolf Vostell, leyó en alto sus palabras. Un grupo internacional: “En un
intento de participación comunal entre los pueblos, sin interferencias especulativas y
económicas, con fines de revalorización de civilizaciones olvidadas y entendimientos
futuristas como principal medio de llegar a los límites conceptuales que comienzan
a engendrar una nueva forma de entender la vida”29. A continuación reproducimos
las palabras de Pernes, Sousa y Vieira. Los textos manuscritos de los dos primeros se
conservan en el AHV escritas en francés.
“Los portugueses de hoy sabemos que lo esencial de nuestro futuro debe cumplirse
en la aproximación a Europa. No es necesario un conocimiento más profundo e íntimo
de España PARA nuestra conciencia moderna. Tenemos necesidad de una verdadera
cultura ibérica para aproximar nuestra integridad portuguesa y europea. Malpartida
es un lugar por excelencia para el diálogo profundo e os artistas portugueses consigo
mismos”, Fernando Pernes.
“Actualmente hay una corriente de fondo dentro de la cual hay múltiples caminos
en los que se podrá considerar el arte verdaderamente contemporáneo. Es aquella
que conduce a considerar la total responsabilidad social del artista creador y ésta
en dos parámetros fundamentales: el que obliga al artista por la naturaleza de su
profesión y de su creciente notoriedad social. Por sus creaciones, participa de una
corte epistemológica de la estética moderna que aproxima y compromete directamente
el arte y la ética. Crear llega a ser un acto abierto en un proceso abierto a todos los
compromisos e incluso a todos los errores. Esto refuerza la segunda situación en la
que debe afrontar todos los poderes e incluso su propio poder en la emergencia de
la novedad. Así, en esta doble faceta, el artista se transforma y se transforma con
el mundo. En este compromiso bifronte y necesario, Malpartida se presenta como
un ejemplo práctico en el que las dos vías pueden ser sólo una favoreciendo así
un deseo que ha hechizado a todos los hombres y, sobre todo, a los artistas: el ser
global”, Ernesto de Sousa.
“Es en la búsqueda y descubrimiento de su originalidad profunda que el artista
podrá alcanzar el universo. El artista, como un marginal que es, como ciudadano
integrado que pude ser, deberá utilizar todos los medios a su disposición, junto con
los otros artistas y, si es posible, junto con el público en general, para comunicar que
es a través del proceso de creación artística por donde el hombre puede pasar por
encima de la muerte”, João Vieira.
También hubo dos exposiciones de los artistas conceptuales Sousa y Vieira,
la proyección de varios cortos de Oldenburg, Hoedicke, Vostell y otros, más una
exposición de fotografías familiares antiguas: “Llevamos como tradición en estos
actos y exposiciones durante el SACOM, incluir también la participación del pueblo.

29 El País, 1980
Artistas Portugueses en el Museo Vostell. Malpartida (MVM) (Extremadura-España). 411

Figura n.º 14
SACoM II 1979. Acción “Identificación
con tu cuerpo documento entregado
por Ernesto de Sousa a los asistentes
Foto cortesía Archivo Happening Vostell.
Museo Vostell Malpartida

No hay vanguardia sin tradición, ni tradición sin vanguardia” (Vostell, texto en el


folleto anunciador de la SACoM 3). Vostell inauguró su ambiente “Inducción” en
el Lavadero. otra exposición fue la de Joan Brossa, “Septet visual” en el Centro
Creativo de Malpartida de Cáceres.
Como colofón de estos años vibrantes de relaciones amistosas y estéticas, el año
1982 Mercedes Guardado olivenza, de Vostell, publicó un libro Homenaje por el 50
aniversario del artista, bajo el nombre: “El enigma Vostell”, con los textos enviados
por 200 amigos, artistas, críticos, escritores, a los que había pedido anteriormente su
colaboración. unos escribieron y otros enviaron dibujos. Así António Barros escribió:
“…a Cultura é um preTexto, o verdadeiro Texto cincunscreve-se no exercicio da
vivencia, e se a vivencia é Poética o Texto aí é Monumento; desperdicio da propia
Vida”. Alberto Carneiro admirador de la cultura zen escribió: “Para o Vostell Pedra
rolada pelos movimentos do tempo mandala que gera a arte vida ainda a nossa obra.”
Julião Sarmento preparó una página pictórica como imagen con las palabras, “o
Êxtase da dulcissima violencia”. Ernesto de Sousa escribió: “Vostell é Grande. Ele é
grande por privação e por excesso. É grande quando desperdiça e quando constrói.
É uma grandeza do nosso tempo, no qual se constrói e re-constrói o desperdício…
Diante dos nossos olhos o espectáculo constante da Morte torna esta inexistente:
Tudo nos interroga. Tudo olha para nós e espera uma resposta…Vostell faz parte
dessa resposta.” Tulia Saldanha realizó un dibujo poniendo en relación varias ciudades
portuguesas y Malpartida. También lo hizo Ana Vieira.
412 Maria del Mar Lozano Bartolozzi

Figura n.º 15 Figura n.º 16


Página del libro “El enigma Vostell” (1982) Página del libro “El enigma Vostell” (1982)
Julião Sarmento. Tulia Saldanha .

Vostell continuó manteniendo contactos con Portugal. En 1985, durante los meses
de marzo-abril y mayo, se celebraron una serie de actividades de teatro, performances
y música, en la Fundación Calouste Gulbenkian de Lisboa bajo el nombre de “Diálogo
sobre Arte Contemporânea”; Vostell participó el día 12 de abril, en una mesa redonda
que fue moderada por Manuel Rio de Carvalho, y en la que participaron también
Ernesto de Sousa, João Vieira y Fernando Aguiar; el tema fue: “As performances
em questão”, Además estrenó en la sala polivalente, la Ópera Fluxus “Jardim das
Delícias”, que dio lugar a la improvisada reacción agresiva del público organizando
un happening beligerante al tirar por los aires objetos de la performance, que enfadó
en un principio al artista tal como ha sido analizado por Rui Serra30.
Pero las actividades en el Museo decayeron durante unos años ante la falta de
apoyos económicos, hasta que la Junta de Extremadura tomó las rienda a partir
de 1988, iniciándose una labor de restauración de los Lavaderos que dio lugar a la
reapertura del Museo Vostell en dos fases (1994 y 1998), la última meses después del

30 o happening começa com a sala às escuras. Como pano de fundo ouve-se uma banda sonora que predispõe à
meditação; são vozes repetidas, palavras repetidas e sobrepostas – o termo “raíz” em várias línguas. Entretanto,
facto não esperado pelo autor, as pessoas continuam a entrar e o silêncio previamente pedido, não é respeitado.
Gradualmente o som e a luz aumentam. o som cria um efeito de reverberação que cria um mal-estar no público.
Este começa a ficar impaciente, e, de repente, a situação rebenta e torna-se incontrolável. Alfaces e almofadas
são arremessadas, mesas são viradas de pernas para o ar, e parte do público torna-se participante do espectáculo,
alterando as expectativas do autor: 69-71
Artistas Portugueses en el Museo Vostell. Malpartida (MVM) (Extremadura-España). 413

fallecimiento del artista. Algunas actividades volvieron a traer hasta el Museo a los
artistas portugueses, así entre febrero y mayo de 1996 se celebró la exposición “Arte
d’ escrita” del artista portugués Fernando Aguiar integrada por dos instalaciones,
6 telas plásticas de gran tamaño y 14 obras pertenecientes a dos de sus series más
significativas: ENTRE PARÉNTESIS Y (DENTRO/FORA). Un artista grafista que
en palabras de José Antonio Agúndez es: “sobre todo, un poeta, un artista-poeta
que busca afanosamente a través de sus trabajos transmitir al espectador el carácter
eminentemente lírico, estético e innovador del buen literato, pero con la pluma de
la poesía de vanguardia que no basa ya su expresión lírica en la semántica de las
palabras, sino en la unidad idiomática de imagen y palabra”31.
En noviembre de 2000 el Museo colaboró con la Galería Diferença de Lisboa
en la exposición “Homenaje a Wolf Vostell”. Y ya en marzo de 2001 se celebró una
emotiva y documentada exposición en el MVM titulada: “Portugueses en el MVM.
¿Y qué hace usted ahora?”, invitando a los artistas, aún vivos, que habían estado
relacionados con el Museo a lo largo de su trayectoria para que presentaran una obra
actual, confrontándola con la de la Colección. Hubo respuesta por parte de Aguiar,
Almeida, Barrias, Buarque, Calhau, Carneiro, Carvalho, Cerveira Pinto, Conduto,
Gil, Palolo, Rosa, Saldanha, Sarmento, Sousa, Varela y Vieira y sobre todo con la
presencia de Isabel Alves. Desde finales del año 2009 se celebrará una exposición de
la colección de artistas conceptuales del MVM, entre otras las de autores portugueses
que hemos ido mencionando a lo largo del trabajo, preparándose la edición de un
nuevo catálogo, con comentarios críticos que contribuirá a que Vostell y sus amigos
recuperen una memoria que aunque partió de obras hechas en el transcurso de un
tiempo, todos queremos que permanezcan.

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414 Maria del Mar Lozano Bartolozzi

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O Atelier de David Moreira da Silva
e Maria José Marques da Silva Martins:
projectos para o Funchal (1942-1947)
Maria do Carmo Marques Pires

[…] Poderia dizer-te de quantos degraus são as ruas em escadinhas, [….]; mas já sei que seria o
mesmo que não te dizer nada. Não é disto que é feita a cidade, mas sim pelas relações entre as medidas do
seu espaço e os acontecimentos do seu passado: […] Mas a cidade não conta o seu passado, contém-no
como as linhas da mão, escrito nas esquinas das ruas [.. ]1.

A cidade do Funchal como qualquer outra cidade representa um permanente


compromisso entre o espaço e o lugar, entre o tempo memorizado, o fluir do presente e das
perspectivas futuras1. Aqui, como em muitas outras cidades, a imobilidade é impossível
e este espaço é, frequentemente, alvo de profundas transformações. Lugar onde a
construção e destruição convivem, dependendo de decisões ligadas a inúmeros factores
como as orientações políticas, económicas, sociais, de gestão urbana, sensibilidades
ou catástrofes e conflitos vários, designadamente entre interesses públicos e privados,
entre edifícios e zonas verdes2.
Como lembra a arquitecta Sofia Coelho a propósito da intervenção na zona
histórica do Porto3 [e]xistem momentos na história das cidades que são cruciais para o
evoluir da sua forma e do seu carácter. Ao prefaciar esta mesma obra, José Ferrão Afonso
evidencia as opções que ao longo do tempo, e em determinadas épocas, se tomam
e que ditam a sua forma4. Estes momentos também aconteceram aqui nesta cidade
e encontram-se inscritos em pequenos e subtis apontamentos, daí a necessidade do
recurso a uma breve contextualização histórica para o conhecimento, compreensão,
interrogação e justificação das decisões que transformaram o seu tecido urbano. Para as
entender é imprescindível conhecer-se o tipo de actuação dos seus autores e actores.
Cidade criada por Alvará Régio de 1508, foi-se transformando urbanisticamente
por razões de ordem económica, inicialmente a partir da prosperidade açucareira,
1 CADETE, 2003: 9.
2 CADETE, 2003: 12-15.
3 COELHO, 2001: 15.
4 COELHO, 2001: 11.
416 Maria do Carmo Marques Pires

depois com a produção vinícola e mais recentemente, no boom provocado pela época do
turismo internacional5.
Designa-a José Manuel Fernandes por “cidade-paisagem”, implantada em “litoral-
a-ver-o-sul”[…]6, considerando ser esta a primeira cidade influenciada por modelos
urbanos da metrópole, sendo o da cidade de Setúbal aqui adoptado em virtude das
suas semelhanças com esta cidade insular. Segundo o mesmo autor, a fixação junto a
ribeiras, ou perto de enseadas abrigadas era quase sistemática, como antes no continente o
era na procura das margens de um rio, ou da protecção de um estuário7.
O crescimento e desenvolvimento urbano desta cidade faz-se de nascente para
poente, dos séculos XV ao XX, desde a modesta povoação de artesãos de St.ª Maria do
Calhau, ao bairro da Sé, a S. Francisco e terminando na actual Avenida do Infante8.
De acordo com estudos realizados por António de Aragão9, o espaço da actual parte
baixa da cidade do Funchal constitui a génese da evolução de duas zonas distintas,
a primitiva que se estendia das ribeiras de Santa Luzia e João Gomes, até à actual zona
do Forte de S. Tiago e outra que partia destas ribeiras até à Ribeira de S. João10.
Em Oitocentos surgem algumas alterações que significam um tempo de mudança.
Na sequência de uma catástrofe natural ocorrida em 9 de Outubro de 1803, quando
um grande aluvião se abate sobre o Funchal, as três ribeiras transbordaram das suas
margens, particularmente a ribeira de João Gomes, tendo saído do seu leito, em
3 sítios, arrastando para o mar muitas casas e parte da cortina defensiva da cidade11.
O engenheiro Oudinot é chamado a intervir na reconstrução da cidade, tendo
desembarcado no Funchal em 19 de Fevereiro de 1804. A planta realizada na época
ilustra o estado em que a cidade fica e apresenta o projecto de um novo espaço de
expansão da “Nova Cidade”, espaço esse localizado a poente da ribeira de S. João,
na zona das Angústias, onde mais tarde se abriria a Av. do Infante e se projectariam
o parque e o Casino da Cidade.
A Ilha da Madeira possui um clima ameno, sendo um importante destino turístico
durante os séculos XVIII e XIX, sobretudo para o turismo Terapêutico12. Desde o
século XX, este arquipélago é eleito por portugueses e estrangeiros que aí procuram
a cura para os seus males do peito13. De acordo com as palavras de André Tavares
existe uma geografia da cura, noção em que a topografia, o clima, a qualidade da terra
e os regimes dos ventos definem territórios adequados à constituição física de cada um14.
Após vários séculos de pesquisa e de experimentação, acreditava-se que a cura se
conseguia através de uma terapia do repouso, de uma alimentação variada, de exercícios

5 VASCONCELOS, 2008:13.
6 FERNANDES, 2003: 95.
7 FERNANDES, 1986: 252-253.
8 FERNANDES, 2003: 95.
9 ARAGÃO, 1979: 29-53.
10 ARAGÃO, 1979: 29.
11 CARITA b, 1982: 23-24
12 VASCONCELOS, 2008: 11.
13 ALMEIDA, 2006: 21.
14 TAVARES, 2005: 23.
O Atelier de David Moreira da Silva e Maria José Marques da Silva Martins: projectos para o Funchal 417

fortificantes em estabelecimentos situados em lugares altos15. Estudos realizados para


a Madeira levaram à conclusão que esta Ilha possuía um clima favorável através [d]
o casamento do ambiente marítimo com a altitude, com a luxuriante e frondosa vegetação,
com a excelente exposição solar, e, ainda com as temperaturas amenas, durante todo o
ano 16. Detentora, por isso, de condições naturais para a cura da tuberculose que
amplamente publicitadas a tornam no grande destino da Europa17.
Em inícios do século XX a cidade mantém-se com ruas estreitas, mal pavimen-
tadas, sem saneamento, sentindo-se a necessidade de a remodelar e modernizar,
através da criação de infra-estruturas urbanas: abertura de avenidas, calcetamento
das ruas, obras de saneamento, criação de uma rede de água potável e importantes
equipamentos públicos.
O arquitecto Miguel Ventura Terra é convidado a participar nessa modernização,
tendo aceite o desafio e realizado o Plano Geral de Melhoramentos, entre 1913-1915.
Com este projecto Ventura Terra propõe uma profunda transformação do tecido
urbano, com a criação de grandes eixos viários rectilíneos, rotundas de distribuição
viária, amplas e regulares praças, parques periféricos, tendo destinado a zona oeste
às classes mais ricas e abastadas – a Avenida oeste é destinada a habitações luxu-
osas, com uma tipologia de habitação burguesa18. Constatando que era ao porto
do Funchal que afluía a maior parte do seu movimento, o arquitecto projecta uma
praça pública à entrada da cidade, espaço de recepção e de reunião de turistas, e a
sua consequente distribuição pela cidade através de amplas avenidas. O arquitecto
projecta três avenidas, uma a oeste, outra a leste e ainda uma outra a norte. Destas,
só a Avenida oeste, mais tarde chamada do Infante, se veio a concretizar19.
Teresa Vasconcelos considera ser este o ponto de partida para as transformações
operadas na cidade no século XX. Na década de trinta, o Plano de Urbanização do
Funchal (1931-33), da autoria do arquitecto Carlos Ramos e inspirado no anterior,
projecta e concretiza o prolongamento da Av. Arriaga com a abertura do primeiro
lanço da Avenida oeste, concluído em 1934. A agora designada Avenida do Infante,
inicialmente desenhada por Ventura Terra, apresenta três rotundas, a actual rotunda
do Infante, outra projectada para o actual largo que antecede o Casino da Madeira
e uma terceira a poente. Carlos Ramos propõe ainda a cobertura das três ribeiras
(Fernão Gomes, St.ª Luzia e S. João), transformando-as em vias públicas.
Atingida pelo primeiro conflito mundial, pela instabilidade política durante a
1.ª República, pela arrastada crise de 1929, a Madeira vive momentos de miséria,
desemprego e convive com as degradantes condições sociais da população, condições
essas agudizadas, posteriormente pelo segundo conflito mundial. A afirmação do
Estado Novo levou temporariamente os madeirenses ao ”esquecimento” da luta pela
autonomia, em prol da afirmação de uma unidade nacional.

15 MILLER, 1992 : 6.
16 ALMEIDA, 2006: 6.
17 Almeida. 2006: 21-27.
18 VASCONCELOS, 2008: 38-39.
19 VASCONCELOS, 2008: 35-38.
418 Maria do Carmo Marques Pires

Durante esse regime a Madeira é dotada com equipamentos públicos e arranjos


urbanísticos como o Mercado dos Lavradores, o Liceu do Funchal, o Banco de Portugal,
as Avenidas Marginal (que integrou a actual Avenida do Mar e das Comunidades
Madeirenses), de Gonçalves Zarco e do Infante, a organização da Praça do Município20
e o Parque de Santa Catarina. Infra-estruturas que renovam a cidade e pertencem à
iniciativa do autarca Fernão Manuel de Ornelas Gonçalves, presidente da Câmara
do Funchal entre 1935-1946, fomentando intensa campanha de obras então levada a
efeito na cidade do Funchal […] projectando-a para a modernidade […]21. Manda rasgar
avenidas para permitir uma nova organização do espaço urbano e procede ao calcetamento
das principais ruas, introduzindo alargamentos e novos alinhamentos22. Durante o seu
mandato este autarca realiza ainda obras portuárias: o prolongamento do cais, a
conclusão do Molhe da Pontinha e da Avenida do Mar.
Pelo Decreto-Lei n.º 26.980 de 5 de Setembro de 1936, o arquipélago da Madeira
é classificado como Estância de Turismo (artigo 1.º) e na cidade do Funchal é criada
a Delegação de Turismo da Madeira (artigo 2.º). Este Decreto-Lei prevê o seu
desenvolvimento turístico através da implementação de iniciativas que a valorizem
quer a nível de património artístico quer a nível de infra-estruturas que atraiam um
maior número de turistas. Esse desenvolvimento pertence à iniciativa da Delegação
de Turismo que deve instituir nas propriedades do Estado, a que se refere o art. 9.º, um
centro de atracção, conforto e recreio e Administrar a concessão de jogos de fortuna ou de
azar da zona permanente da ilha da Madeira – Funchal (artigo 5.º alíneas c) e d)) e a
tornem num importante pólo turístico. Com o objectivo da resolução de problemas
que afectam o turismo local, possibilita a utilização das três quintas do Estado – Bianchi,
Pavão e Vigia –, para a instalação de um casino, criação de uma esplanada e parque
com campos de jogos desportivos, jardins, casas de chá23.
Um ano antes, em 12 de Abril de 1935, numa entrevista feita por um jornalista
do Diário de Notícias ao Dr. Adolfo de Sousa Brazão (antigo deputado pela Madeira e
Inspector de Saúde) são expressas várias preocupações relativas ao desenvolvimento
económico e urbanístico do arquipélago enquanto zona de turismo. Diz aquele ex-
deputado que a Ilha enquanto centro de atracção turístico necessita de infra-estruturas
(estradas, escolas, fontanários, saneamento básico), precisando no seu lado oeste, de
uma grande obra de urbanização. Nesta entrevista intitulada O Que o Funchal Precisa
para se Tornar Numa Terra de Turismo a Valer, o Dr. Adolfo de Sousa Brazão concorda
com a edificação de um novo casino e com o aproveitamento das três Quintas do
Estado para o embelezamento e lazer da cidade, espaço destinado a turistas e locais,
assim como um importante contributo para a autonomia económica do Funchal.

20 LOPES, 2008: 134. A nova organização deste espaço, 1945, é da autoria do arquitecto-urbanista Faria da Costa
que projectou ainda o novo edifício para a capitania do Funchal.
21 LOPES, 2008: 9-10.
22 LOPES, 2008: 215.
23 FIMS/A/DMSMJMS – Livro de Correspondência trocada entre o atelier de David Moreira da Silva e Maria José Marques

da Silva Martins com instituições públicas, privadas e particulares. do arquipélago da Madeira. O Decreto-Lei n. 26.980
encontra-se neste processo.
O Atelier de David Moreira da Silva e Maria José Marques da Silva Martins: projectos para o Funchal 419

Sublinha a necessidade de urbanização da parte oeste da Ilha, concorda com a


completa alteração desta zona que integra edificações impróprias de uma terra civilizada:
casas velhas, roupas e panos dependurados, uma cadeia, uns barracões, enfim uma série de
coisas bem desagradáveis24. Da parte oeste da Avenida do Infante a construir pela Junta
Autónoma das Obras do Porto, de acordo com o projecto aprovado e, aproveitando
o terreno a sul do cemitério e o alto de Stª. Catarina, deve manter-se apenas a sua
antiga capela. A restante parte do terreno situado entre a Avenida Marginal e a
projectada Avenida do Infante de Sagres, deve ser utilizada para parque de diversões,
de exposições permanentes, um casino condigno e que bem explorado gere receitas e
atraia estrangeiros ricos. Defende a existência de uma boa propaganda do arquipélago
no país e no estrangeiro, uma boa política turística e faz a apologia de um turismo
que seja uma fonte de riqueza para a nossa terra, mas que não se exerça de mão no nariz,
para se livrar a pituitária de agentes que lhe são desconhecidos25.
É neste contexto de renovação urbanística da cidade do Funchal (anos trinta e
quarenta), pelos motivos apresentados e pela política do Estado Novo que através
do Ministério das Obras Públicas, se intensifica a realização de acessibilidades a nível
regional, fazendo face ao desemprego, de acordo com o Decreto-lei n.º 24.802 de 21
de Novembro. Diz este documento que com a comparticipação das câmaras municipais
e do Estado, pelo Fundo de Desemprego, a realização de melhoramentos locais de natureza
vária em todo o País se reduz o número de desempregados e se fixam os princípios gerais
a que devem obedecer os planos de urbanização26, criando uma imagem urbana com
que o próprio regime se identifica27. Promove o levantamento de plantas topográficas,
a elaboração de planos gerais obrigatoriamente submetidos à aprovação do Governo,
através do Ministro das Obras Públicas e Comunicações. Estes projectos são atribuídos
preferencialmente a arquitectos e engenheiros civis portugueses, facilitando, deste
modo, a localização dos equipamentos necessários e a orientação na criação da rede
viária e de serviço. A Junta Geral Autónoma e a Câmara Municipal do Funchal são
os órgãos regionais responsáveis pelas transformações urbanísticas.
Nos inícios dos anos 40, apenas existem dois urbanistas portugueses com formação
específica nesta área, Faria da Costa e David Moreira da Silva, ambos diplomados
pelo Instituto de Urbanismo de Paris.
Muitos foram aqueles profissionais que durante a vigência de Fernão de Ornelas
(1935-46) contribuíram para uma profunda transformação urbana e modernização do
Funchal, no século passado28. Uns, através de propostas/projectos não concretizados;

24 FIMS/A/DMSMJMS – Livro de Correspondência trocada entre o atelier de David Moreira da Silva e Maria José Marques
da Silva Martins com instituições públicas, privadas e particulares do arquipélago da Madeira. A notícia referenciada
integra este processo, Diário de Notícias de 25/4/35.
25 FIMS/A/DMSMJMS – Livro de Correspondência trocada entre o atelier de David Moreira da Silva e Maria José Marques

da Silva Martins com instituições públicas, privadas e particulares do arquipélago da Madeira. A notícia referenciada
integra este processo, Diário de Notícias de 25/4/35.
26 LOBO, 1995: 255-259.
27 LOBO, 1995: 13.
28 LOPES, 2008: 213-217.
420 Maria do Carmo Marques Pires

outros, através de projectos concretizados; outros ainda, através de projectos que


tardaram a serem executados.
O atelier de David Moreira da Silva insere-se no primeiro grupo de intervenientes
nesta cidade, tendo apresentado diversos projectos para diversos espaços públicos
e privados do Funchal, respectivamente nas áreas do urbanismo, desenho urbano,
equipamentos ligados ao turismo e programa ligado a habitação unifamiliar. O enorme
envolvimento deste atelier na elaboração de projectos encomendados pelo Estado
e por particulares, desde inícios da década de 40 de Novecentos, e as razões da não
concretização desses estudos, prendem-se sobretudo a aspectos de conjuntura inter-
nacional, nacional e regional. No segundo grupo encontram-se o arquitecto-urbanista
Faria da Costa e o arquitecto Raul Lino responsáveis, respectivamente, pelo projecto
de modernização da Praça do Município/Novo edifício para a capitania do Funchal
e pelo projecto da Fonte Pelourinho neste espaço da cidade29. Os arquitectos Miguel
Ventura Terra e Carlos Ramos, inserem-se no último grupo, por terem elaborado
projectos de urbanismo para esta cidade atlântica, respectivamente, o Plano Geral de
Melhoramentos para o Funchal (1913-1915) e o Plano de Urbanização para o Funchal
(1931-1933). Algumas das propostas por eles apresentadas foram materializadas a
partir de meados do século XX, sujeitas a diversos condicionamentos.
Nesta época de transformação e modernização deste importante pólo de atracção
turística, surge o atelier de David Moreira da Silva e Maria José Marques da Silva,
sedeado na cidade do Porto. O primeiro arquitecto, recém-formado pela Escola
Superior de Belas Artes e pelo Instituto de Urbanismo de Paris (em 1939) insere-se
neste contexto de modernização da cidade do Funchal, a partir de 1940, e a segunda
arquitecta, Maria José Marques da Silva Martins, após 1943, num trabalho de cola-
boração com o marido30. Paralelamente, entre 1940 e 1947 é intensa a actividade
destes arquitectos em inúmeros anteprojectos de urbanização no continente, na
colónia de Angola, em projectos de desenho urbano e de equipamentos privados31.
Numa altura em que a conjuntura internacional era marcada pelo segundo grande
conflito mundial, David Moreira da Silva viaja com frequência para a colónia de
Angola (1941 e 1944), para a concretização do Plano de Urbanização de Luanda,
elaborado em co-autoria com o urbanista De Gröer32. O arquitecto aproveita esta
deslocações para estabelecer contactos em várias regiões da colónia, contactos esses
destinados a angariar encomendas para outros planos de urbanização33.

29 LOPES, 2008: 215.


30 Maria José Marques da Silva termina o curso superior de arquitectura em Julho de 1943, e em Setembro do mesmo
ano contrai matrimónio com David Moreira da Silva, passando a colaborar em todos os seus projectos.
31 Por possuir formação específica conjuntamente com De Gröer e com Faria da Costa, David Moreira da Silva foi

chamado pelo ministro Duarte Pacheco para integrar o primeiro grupo de urbanistas. Colabora com Etienne De
Gröer, nos planos de urbanização de Coimbra e Luanda (1940/41).
32 FIMS/A/DMS – Processo com documentação avulsa sobre Luanda. David Moreira da Silva elabora com De Gröer, de

1940 a 1944, o Plano de Urbanização de Luanda.


33 FIMS/A/DMSMJMS – Correspondência trocada, entre 1942 e 1946, com as Câmaras de Luanda, Malange, Benguela,

cidade de Sá da Bandeira, Vila de Robert Williams, Vila de Gabela, Vila Teixeira da Silva.
O Atelier de David Moreira da Silva e Maria José Marques da Silva Martins: projectos para o Funchal 421

Nos anos de 1943 e 1944, Moreira da Silva e Maria José Marques da Silva Martins
fazem escala no Funchal quando se dirigem ou voltam de Luanda, permanecendo
nesta Ilha alguns meses34, no Atlantic Hotel.
Para o Funchal, este atelier elabora projectos nas áreas do urbanismo, em edifícios
públicos/equipamentos turísticos e em espaços privados de habitação e de turismo.
Na área de urbanismo refiram-se o esboceto de remodelação da Praça do Município
(1940), o anteprojecto da Avenida do Infante (1942-1943), o anteprojecto de
remodelação da Zona Marginal do Porto do Funchal (1942) e o anteprojecto do
Parque da cidade do Funchal (1944-1947). Na área dos edifícios públicos de vocação
turística, o projecto de modificação do edifício do casino da Madeira (1944). Na
área dos espaços privados, a habitação unifamiliar a construir para o engenheiro
Paiva Brites (1944-1945), na Avenida do Infante e o edifício privado/ equipamento
turístico – anteprojecto de Remodelação e Ampliação do Savoy Hotel (1945-1947).
Da imensa correspondência trocada entre este atelier e o Ministério das Obras
Públicas – Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, através dos enge-
nheiros Germano Venade e Manuel de Sá e Melo, Chefes da Secção de Melhoramentos
Urbanos e do Presidente da Câmara Municipal do Funchal, Fernão Manuel de Ornelas
Gonçalves, se conclui a presença e a participação do atelier de David Moreira da
Silva em estudos e projectos encomendados para a renovação urbana do Funchal.
Germano Venade, em nome do Ministro das Obras Públicas (1942-1944), solicita
ao arquitecto pareceres sobre os projectos da Avenida do Infante e sobre aspectos
ligados à urbanização do Funchal e aos projectos do arranjo urbanístico da Praça do
Município e do Parque da Cidade do Funchal. David Moreira da Silva apresenta os
seus próprios projectos nestas áreas.
Da correspondência trocada ainda entre este atelier e a Delegação de Turismo
da Madeira - através dos seus presidentes Dr. João Abel de Freitas (1944-1945), e
José Rafael Basto Machado (1947-1948); da direcção da Empresa do Savoy Hotel
ou do engenheiro Paiva Brites (1945-1954) e a nível particular entre o engenheiro
Paiva Brites (1944-1954) – se infere da ligação e da participação deste atelier do
Porto em projectos que integram as propostas de renovação urbana do Funchal, na
década de 40.

Anteprojecto da Avenida do Infante


A primeira intervenção do atelier por nós escolhida para esta comunicação e
de acordo com uma sequência cronológica, é o anteprojecto de Urbanização para a
Avenida do Infante nesta cidade, datado dos anos de 1942-1943.

34 FIMS/A/DMSMJMSM – Processo com documentação avulsa sobre Luanda. David Moreira da Silva e Maria José
Marques da Silva Martins partem para Luanda pouco tempo após o seu casamento, a partir de meados de Setembro
de 1943. Em Outubro desse ano encontram-se no Atlantic Hotel do Funchal, e em Luanda, em Novembro, onde
permanecem até Fevereiro de 1944. Na viagem de regresso param no Funchal, no mês de Março, onde permanecem
até inícios de Abril de 1944.
422 Maria do Carmo Marques Pires

Da análise da correspondência trocada e das plantas deste anteprojecto35, lemos as


propostas de transformação apresentadas por David Moreira da Silva. Este arquitecto
considera existir num anterior projecto para esta zona, um grande desequilíbrio na
ligação da Avenida do Infante à Avenida Manuel de Arriaga; opõe-se ainda à edificação
de um monumento no centro desta rotunda por ser demasiado grande e cujo eixo
principal não coincide com o da Avenida de Arriaga, penalizando uma das melhores
perspectivas da cidade e dificultando a circulação pelas dimensões exageradas da sua
placa central. É de opinião que o perfil transversal projectado demonstra uma má
adaptação ao solo porque, passando a avenida a um nível inferior aos terrenos que
intercepta, e estando previstos muros altos, prejudica o seu arejamento e a insolação,
além de ser inadequado no ponto de vista turístico.
Apresenta um estudo no qual propõe para o lado sul desta importante via, a
existência de taludes ajardinados encimados por sebes, na área destinada ao futuro
Parque da Cidade que abrange em toda a extensão o cemitério existente e as quintas
do Estado. Para a parte norte desta Avenida, propõe uma zona Non Aedificandi, onde
não poderão ser construídas fábricas, definindo o tipo de parcelamento em talhões com
área e largura mínimas e o recuo obrigatório dos edifícios da frente de rua, edifícios
que não devem exceder a altura de um andar acima do rés-do-chão36. Propõe ainda
a arborização dos dois lados desta avenida, tornando-a um espaço mais atraente.
No ofício do M.O.P.C.T., de 24 de Março de 1943, o ministro concorda com
as alterações propostas pelo arquitecto na supressão da inflexão da rua transversal
que sobe do mar em direcção à praça do Infante, entrada que deve ser feita no seu
alinhamento quando chega à Avenida do Infante; na alteração da Praça do Infante
e na substituição da pequena rotunda anteriormente projectada para a entrada do
casino, por novos taludes ajardinados; na correcção do perfil transversal da avenida
e da directriz rectilínea da Av. do Infante, num projecto ainda sujeito a apreciação.
Este anteprojecto foi aprovado pelo ministro, em ofício de 10 de Julho de 1943 com
as seguintes reservas: o arquitecto devia dar discreta saída à rua Princesa D. Amélia
e simplificar o arranjo dos jardins previstos no canto entre a Avenida do Mar e a
Avenida do Infante, assim como na rua de ligação entre estas avenidas. Solicita ainda
a David Moreira da Silva a elaboração de um projecto que respeite estas reservas.

Ante-projecto de remodelação da Zona marginal do Porto do Funchal


A Direcção Geral dos Serviços Hidráulicos encarregou o arquitecto da elaboração
do Anteprojecto de Remodelação da Zona Marginal do Porto do Funchal. Em 1942,
David Moreira da Silva envia toda a documentação elaborada segundo as instruções

35 FIMS/A/DMS – Anteprojecto do Parque da Cidade – peças desenhadas à escala de 1:1000 – planta geral, outra à de
1:500 – planta parcial da Praça do Infante e entrada para o Casino/Parque de St.ª Catarina e outra do perfil transversal
à escala de 1:100.
36 FIMS/A/DMSMJMS – Correspondência relativa ao Funchal, carta dirigida por David Moreira da Silva ao Ministério das

Obras Públicas e Comunicações – Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, Secção de Melhoramentos
Urbanos, em 16 de Outubro de 1942.
O Atelier de David Moreira da Silva e Maria José Marques da Silva Martins: projectos para o Funchal 423

da Repartição de Portos. Deste documento constavam as peças desenhadas (cartas à


escala de 1:400 e 1:1000 do porto do Funchal, uma planta geral da Ilha da Madeira,
uma planta geral do Funchal) e uma memória descritiva e justificativa. Neste estudo
realizado para a remodelação desta zona que o autor considera ser um importante
centro turístico e comercial e possuidora de uma privilegiada situação em terreno
acidentado37, David Moreira da Silva propõe medidas necessárias ao seu arranjo
condigno e à sua valorização. Localiza a área de intervenção na zona marginal entre
a Pensão Lido e o Lazareto, abrangendo toda a zona marginal desde a Pontinha, a
ocidente, até o extremo leste, entre o Oceano e uma linha imaginária que passa
paralelamente a cerca de 300 m do Litoral38. Após estudo aprofundado daquele local,
conclui não possuir as instalações portuárias condignas. Os cais sem armazéns ou
pórticos deixam as mercadorias e os passageiros expostos às más condições climáticas.
O edifício da Alfândega encontra-se deslocado, os estaleiros Blandy de reparações
navais, fora do lugar.
As principais deficiências por ele detectadas verificam-se ao nível das instalações
portuárias que considera insuficientes e a consequente necessidade de criação de
edifícios destinados a depósitos, armazéns, estaleiros e alfândegas, edifícios esses
agrupados entre o ângulo sueste do cemitério e o extremo oeste do Molhe da Pontinha.
Propõe entre outras a transferência dos estaleiros da Companhia Blandy & Brothers,
o prolongamento dos cais, a construção de um varadouro para os pequenos barcos,
uma praia artificial, a cobertura da Ribeira de S. João, entre esta avenida e o Largo
dos Lavradores, assim como novas construções na Av. do Mar. Propõe ainda que não
seja permitida a construção de edifícios estranhos à actividade portuária, excepto
na parte compreendida entre a Ribeira de S. João e o Palácio de S. Lourenço que
pode ser destinada a edifícios mistos mas nunca a fábricas. Estabelece a altura dos
diversos edifícios a construir na zona.
Nas palavras de João Figueira Sousa, o arquitecto enquadrava o conjunto das
instalações portuárias no arranjo urbanístico da cidade dando um grande aproveitamento
das áreas terrestres por entender que se devia desviar para o lado de terra o maior número
de instalações portuárias. Esta orientação, […] era perfeitamente justificável face à maior
facilidade de estabelecimento de terraplenos e aos custos elevados que acarretaria a execução
de grandes obras marítimas39. Apesar de prever também o prolongamento do molhe da
Pontinha, numa extensão de 400 metros ultrapassando a testa do cais da entrada da cidade,
o autor do Ante-projecto relegava-o para segundo plano, por o considerar injustificado,
dando relevância às instalações para os serviços de exploração do porto.

37 FIMS/A/DMS – Memória descritiva e Justificativa do Anteprojecto de Remodelação da Zona Marginal do Porto do Funchal,
1942.
38 FIMS/A/DMSMJMS – Anteprojecto de remodelação da Zona Marginal do Porto do Funchal, 1942.
39 SOUSA, 2004: 290.
424 Maria do Carmo Marques Pires

Anteprojecto do Parque da Cidade do Funchal


David Moreira da Silva é encarregado, por despacho ministerial de 24 de Maio de
1943, de dar um parecer sobre o novo Parque da cidade, a partir das obras a realizar
no edifício do casino e nos parques e quintas do Estado. Espaços que deveriam ser
adaptados a fins turísticos de acordo com o Decreto-Lei n.º 26.980 de 5 de Setembro
de 193640. Obra destinada a valorizar a cidade do Funchal, de grande interesse
turístico-cultural e necessária à população desta Ilha.
O estudo abarca uma área que compreende a estrada da Pontinha, a rua princesa
D. Amélia, a Av. do Infante de Sagres e a ribeira de S. João41. O arquitecto que à
data se encontrava instalado no Atlantic Hotel, em missão oficial42, é informado
desta decisão através do presidente da Delegação Geral de Turismo, Dr. João Abel
de Freitas que considera chegado o momento de preparar a Madeira para o turismo
de futuro […]43.
A Delegação de Turismo da Madeira aproveita a presença no Funchal do arquitecto
e urbanista portuense para o encarregar de proceder ao estudo das obras a realizar no
Casino e nas Quintas do Estado, espaços que deverão ser transformados em parque
de turismo. Na sequência deste projecto fazem-se expropriações de prédios urbanos e
rurais na zona destinada ao parque, a maior parte pertencendo à Companhia Blandy
& Brothers e a particulares, entre os quais se encontra o proprietário da Quinta
da Nossa Senhora das Angústias e prédios municipais (cadeia civil, cemitério). De
acordo com o Plano realizado por esta Delegação de Turismo relativamente às obras
a executar nas Quintas do Estado, David Moreira da Silva elabora e apresenta o seu
anteprojecto do Parque da Cidade em Maio de 194444.
O arquitecto respeitou na generalidade as directrizes dadas pela Delegação Geral
do Turismo da Madeira. Para o espaço anteriormente ocupado pela Quinta Bianchi,
situada no extremo oeste da área destinada ao parque e entre a rua Princesa D. Amélia
e quinta do Pavão, propõe a sua ocupação com quatro cortes de ténis e uma zona
ajardinada a norte; para a zona ocupada pela anterior quinta do Pavão, localizada
entre as Quintas Bianchi (a oeste) e a da Vigia (a este) o urbanista projecta jardins e
o futuro casino com acesso pelo norte, através da Avenida do Infante e jardins a sul;
para o espaço ocupado pela Quinta da Vigia, localizada entre a Quinta do Pavão (a
oeste) e a Quinta da Nossa Senhora das Angústias (a leste), o arquitecto indica na

40 FIMS/A/DMSMJMS – Livro de Correspondência trocada entre o atelier de David Moreira da Silva e Maria José Marques
da Silva Martins com instituições públicas, privadas e particulares do arquipélago da Madeira.
41 FIMS/A/DMSMJMS – Livro de Correspondência trocada entre o atelier de David Moreira da Silva e Maria José Marques

da Silva Martins com instituições públicas, privadas e particulares do arquipélago da Madeira.


42 FIMS/A/DMSMJMS – Livro de Correspondência trocada entre o atelier de David Moreira da Silva e Maria José Marques

da Silva Martins com instituições públicas, privadas e particulares do arquipélago da Madeira. Ofício nº 133, L.º 7, de
23 de Outubro de 1943.
43 FIMS/A/DMSMJMS – Livro de Correspondência trocada entre o atelier de David Moreira da Silva e Maria José Marques

da Silva Martins com instituições públicas, privadas e particulares do arquipélago da Madeira. Ofício nº 133, L.º 7, de
23 de Outubro de 1943.
44 FIMS/A/DMSMJMS – Anteprojecto do parque da Cidade do Funchal, elaborado e apresentado ao Ministério das Obras

Públicas e Comunicações.
O Atelier de David Moreira da Silva e Maria José Marques da Silva Martins: projectos para o Funchal 425

planta geral uma zona de estacionamento, a edificação de um centro cultural e jardins.


Após a expropriação da Quinta das Angústias para integração no futuro Parque da
Cidade, Moreira da Silva aí propõe a criação de lugares distintos: parque infantil,
orquideário, grande lago, jardins, restaurante, pavilhão de chá, jardins, preservando
aqui a antiga capela de St.ª Catarina. Projecta ainda uma grande esplanada com
pérgola abrangendo a parte sul de todas as quintas, um espaço de recreio possuidor
de um magnífico cenário sobre o mar.
Este projecto aprovado pela Delegação de Turismo da Madeira não é, no entanto
consensual, uma vez que a Câmara Municipal da Madeira o rejeita, em 23 de Março
de 1944, em reunião ordinária, alegando o seu presidente Fernão de Ornelas que esta
instituição só o poderia aprovar se o projecto que integra zonas diversas resultasse
num espaço com unidade de composição e sem qualquer referência aos limites das
Quintas45. Afirma que, tendo David Moreira da Silva conhecimento destas condições,
criou duas zonas distintas dando a impressão que se projectam dois parques separados pela
Quinta da Nossa Senhora das Angústias que se conserva isolada46. Há posições distintas
quanto à aprovação do projecto, uma da Delegação de Turismo que o aceita e outra
a da Câmara Municipal que o rejeita. David Moreira da Silva quando regressa de
Luanda e faz escala no Funchal, no mês de Março é confrontado com a notícia que
não aceita nem compreende.
Para estudar uma solução para o Parque da Cidade é constituída uma comissão,
em 18 de Outubro de 1944, presidida pelo Dr. João Abel da Delegação Geral de
Turismo e integrando quatro vogais: o Dr. Fernão de Ornelas, o Engenheiro Schrek,
o Capitão do Porto do Funchal e o Engenheiro da Câmara Municipal do Funchal.
Na sequência destes acontecimentos, o arquitecto troca correspondência com a
Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, submetendo ao engenheiro
Director Geral do MOPCT o seu projecto para o Parque de St.ª Catarina, em Maio
de 1946. Face às divergências existentes entre a Delegação Geral de Turismo da
Madeira e a Câmara Municipal do Funchal, Manuel de Sá e Melo responde que foi
decidido escolher-se um arquitecto que tivesse a anuência das duas entidades47.
A correspondência termina em Junho de 1948, com o pagamento a David Moreira
da Silva dos honorários dos trabalhos realizados para o Funchal.

Anteprojecto de remodelação do casino do Funchal


A par do anteprojecto para o parque de St.ª Catarina e pelo Decreto-Lei n.º 26.980
de 5 de Setembro de 1936, o casino do Funchal que funcionava e funcionaria na
casa da Quinta da Vigia, devia ser sujeito a obras, por se tratar de uma importante
fonte de receitas daquela zona turística.

45 FIMS/A/DMSMJMS – Correspondência com o Funchal, ofício nº 176, Livro n.º 52.


46 FIMS/A/DMSMJMS – Correspondência com o Funchal, ofício nº 176, Livro n.º 52.
47 FIMS/A/DMSMJMS – Correspondência com o Funchal, ofício n.º 13880, processo n.º U-136.
426 Maria do Carmo Marques Pires

No seu projecto do Parque da Cidade o arquitecto faz uma apreciação do edifício


da quinta da Vigia, nos seguintes termos: A casa da Quinta da Vigia está longe de reunir
as condições necessárias para funcionar como Casino duma estancia de turismo como é a
do arquipélago da Madeira. Tem todavia, um certo sabor plástico, é aproveitável e poderá
vir a funcionar como centro cultural depois de construído um edifício próprio para casino
e demolida a varanda envidraçada, desagradável “enxerto” de construção recente48.
Na Casa da Vigia funcionava então o único e pequeno casino da Madeira49.
Como afirma o arquitecto na Memória Descritiva e Justificativa do anteprojecto de
Remodelação do Casino do Funchal, datado de Setembro de 1944, a remodelação
da casa pretende obter uma distribuição mais racional e confortável das dependências do
casino, não se pretendendo uma obra luxuosa, mas uma obra decente. Propõe manter
as fachadas do edifício com algum interesse plástico, ampliar e decorar o vestíbulo
e operar algumas alterações a nível das plantas do rés - do - chão, primeiro andar e
sub-solo. O principal pavimento deve manter o vestíbulo, o salão de dança, o bar,
o restaurante e instalações sanitárias das senhoras com outra disposição e incluindo
neste pavimento a grande sala de jogo que é retirada do primeiro andar. No 1.º
andar ficam a biblioteca, os escritórios; no subsolo, amplas instalações sanitárias para
os cavalheiros, um vestiário uma garrafeira e instalações do pessoal. Como se pode
observar na planta do rés-do-chão, referenciada na Figura n.º 3, a sala de jogo passa
a ocupar parte do salão de baile e galeria contígua à grande sala.
Em ofício nº 130, L.º 8, enviado pelo Presidente de Turismo da Madeira, o Dr.
João Abel Freitas a David Moreira da Silva, em 21 de Outubro de 1944, informa ter
recebido o seu projecto relativo aos melhoramentos a realizar no edifício da Quinta da
Vigia, para adaptação do casino velho, tendo ele e o Conselho de Turismo votado a
aprovação do projecto. Esse Conselho foi de opinião que as transformações propostas
só começassem a ser realizadas quando houvesse a certeza de que o novo casino não
iria ser construído tão cedo50.

Habitação unifamiliar
Em Abril de 1944, o engenheiro Paiva Brites encomenda a David Moreira da Silva
o projecto de um edifício destinado a habitação própria, a construir no lado sul da
Avenida do Infante. Edificação a implantar no meio do lote, recuada relativamente à
avenida, com fachada principal voltada a norte, fachada posterior a Sul, num terreno
em declive que possibilitava a existência de uma cave num edifício com rés-do-chão
e primeiro andar.

48 FIMS/A/DMSMJMS – Anteprojecto do Parque da Cidade.


49 FIMS/A/DMSMJMS – Anteprojecto de Remodelação do Casino do Funchal, 1.
50 FIMS/A/DMSMJMS – Correspondência com o Funchal.
O Atelier de David Moreira da Silva e Maria José Marques da Silva Martins: projectos para o Funchal 427

O sítio escolhido integra-se na Avenida do Infante onde já tinham sido definidas


tipologias locais, para um espaço orientado preferencialmente para edificação de
residências unifamiliares de referência – formas distintas de habitar51.
Dez anos antes, em 19 de Março de 1934, a Junta Geral do Funchal enviava à
Câmara Municipal, as novas directrizes para construção de habitações nesta área da
cidade, edificações que [d]everiam ser moradias isoladas, não terem menos de rés-do-chão,
primeiro e segundo andar, quanto ao estilo, determinou-se que deveriam possuir, um “cunho
madeirense devidamente modernizado”, que proporcionasse uma agradável disposição e
proporcionalidade dos volumes52. As posturas camarárias estabeleceram normas a que
deveriam estar sujeitas as edificações construídas na Av. do Infante, habitações essas
unifamiliares com fachadas principais “arquitectonicamente trabalhadas”53, recuadas
cinco metros da via pública, com garagem, pérgolas, baixos muros de vedação, amplos
terrenos envolventes ajardinados e projectadas exclusivamente por arquitectos e
engenheiros.
Através da análise das peças desenhadas do projecto (planta, fachadas e cortes)
desta habitação unifamiliar, concluímos tratar-se de um edifício com uma organização
espacial que indicia distinção e hierarquização do espaço habitado, pensado para
integrar este lugar da cidade - espaço urbano animado pela luz do sol, mar e paisagem.
Edifício possuidor de uma fachada norte de grafia sóbria mas elegante, ornamen-
tada e ritmada pelo pórtico circular e escadaria, encimados por varanda, elementos
definidores de um claro eixo vertical. A sua fachada posterior, pretende-se voltada a
sul, numa exposição solar claramente favorável, para um espaço envolvido por jardins.
Projecto que hierarquiza os seus dispositivos espaciais interiores. No rés-do-chão
os espaços de recepção voltados para a sua fachada principal (o vestíbulo, uma sala
de estar, uma pequena sala de visitas, um escritório) e os espaços de sociabilidade
dispostos na parte posterior, localizando-se a sala de jantar perto da cozinha, da copa
e da marquise no lado sul. No primeiro andar a zona íntima dos quatro quartos e a
cave destinada a garagem, a arrecadação e aos aposentos dos domésticos. Uma varanda
ampla voltada a Norte, na fachada principal e uma galeria porticada orientada a este/
sul com pérgola voltada para um pequeno jardim. A circulação faz-se a partir da porta
principal, partindo do vestíbulo, através de uma escada ampla e cuidada que permite
o acesso ao primeiro andar e uma outra de serviço, pensada e destinada à circulação
do pessoal doméstico, evitando a sua passagem numa zona nobre da habitação54.
Este projecto agradou ao proprietário, propunha uma outra forma de habitar, mas
nunca chegou a ser concretizado.

51 PIRES, 2000: 38.


52 SOUSA, 2004: 292.
53 SOUSA, 2004: 292.
54 FIMS/A/DMSMJMS – Correspondência com várias instituições regionais e particulares do Funchal.
428 Maria do Carmo Marques Pires

O Savoy Hotel
Quando o arquitecto Raul Lino desiste do projecto de remodelação e ampliação do
Savoy Hotel, em Maio de 1944, a empresa que lhe encomendara o estudo, adquirira já
o terreno para a sua ampliação, num espaço situado a oeste do imóvel55. Confrontada
com esta desistência, a gerência do Savoy Hotel abre um concurso destinado à apre-
sentação de projectos de arquitectura para ampliação e remodelação deste importante
equipamento turístico, em Setembro de 194556. O engenheiro Paiva Brites, em nome da
direcção da empresa, envia o programa do concurso ao atelier do Porto. Neste documento
são enunciados os problemas a resolver, designadamente, o embelezamento e arranjo
dos acessos e da fachada voltada a norte que se tornará a fachada principal e a mais
importante do edifício, na sequência da abertura da Avenida do Infante; o estudo do
novo acesso ao edifício pelo lado Norte que se pretende mais amplo; o levantamento
do muro de vedação; as alterações na disposição das dependências do rés-do-chão e
do primeiro andar voltado a Norte; um estudo do plano de conjunto que privilegia o
aumento de sessenta quartos com banho privativo; propõe ainda a construção de uma
nova sala de jantar, a melhoria das instalações de apoio (cozinha e anexos), o arranjo
dos terrenos de expansão a oeste e a localização do corte de ténis.
David Moreira da Silva envia o seu anteprojecto de remodelação e ampliação em
Dezembro de 1945, tendo sido seleccionado pela direcção desta empresa hoteleira.
Nele, o arquitecto expressa algumas opiniões relativas ao hotel localizado numa
zona privilegiada a nível paisagístico, dominando um vasto horizonte que o Atlântico
generosamente lhe oferece. Considera David Moreira da Silva que as suas fachadas e
interiores são quase deselegantes, e os seus interiores de datas menos felizes da nossa
arquitectura, modestos, incaracterístico mau gosto da sala de jantar que não se encontra
voltada nem para o mar nem para a terra, cozinha acanhada, recantos e corredores
mal iluminados, escadas mal lançadas, vestíbulo pouco amplo.
O arquitecto apresenta algumas propostas de remodelação tais como: a implantação
da sala de jantar ao nível do primeiro andar, voltada a sul; o principal acesso do edifício
localizado a Norte; a ligação entre o vestíbulo e uma linda avenida ajardinada com
saída para a Av. do Infante; um muro de vedação simples enriquecido com portão
em ferro forjado para peões e veículos; uma pérgola de madeira cobrindo o muro em
toda a sua toda a extensão; as duas fachadas principais embelezadas – a do norte
sobrepondo à porta um mastro sobre o qual, em letras de néon, se encontra o nome
do hotel; a do sul simplificada e valorizada pela nova sala de jantar, coroada com
pérgola e tabuleta luminosa; a ampliação do hotel com sessenta quartos prevista para
os terrenos de expansão a oeste e em ligação com os quartos existentes.
Interessados no projecto, os proprietários propõem outras alterações ao projecto
do arquitecto, as quais excluem a construção da nova sala de jantar (por ser uma
solução dispendiosa); concordando com a solução proposta para a remodelação das

55 FIMS/A/DMSMJMS – Correspondência com várias instituições regionais e particulares do Funchal. Carta enviada do
Funchal a David Moreira da Silva, em 29 de Julho de 1944, pelo eng.º Vasco de Paiva Brites.
56 FIMS/A/DMSMJMS – Correspondência com várias instituições regionais e particulares do Funchal.
O Atelier de David Moreira da Silva e Maria José Marques da Silva Martins: projectos para o Funchal 429

fachadas e do aumento da nova edificação a Oeste. Solicitam a inclusão, no primeiro


andar, de novos dispositivos espaciais - uma sala de leitura, uma pequena biblioteca,
um pequeno dancing, um bar e sala de bilhar; o aproveitamento da sala de jantar
existente; a cobertura da actual varanda do primeiro andar que passará a ser um
terraço mais amplo e o arranjo dos jardins. Sugestões estas enviadas através de um
croqui a David Moreira da Silva.
Em Setembro de 1947, após alterações feitas ao seu projecto inicial, e de acordo
com as propostas da empresa, o atelier envia ao Savoy Hotel o anteprojecto de remo-
delação e o projecto definitivo do seu muro de vedação a construir no alinhamento
da Av. do Infante.
Em 1948, a empresa encomenda a elaboração do projecto definitivo que, todavia,
nunca chega a ser realizado devido à sua precária situação, consequência da crise
vivida no turismo madeirense.

Conclusão
Partimos para esta abordagem pelo interesse e pelo desafio suscitados, a nível
metodológico, pela documentação que fomos levantando e desvendando. Outros
caminhos, diversos dos inicialmente perspectivados, nos foram sendo sugeridos através
dos diferentes registos, privilegiando no nosso estudo a análise processual (com toda
a dinâmica “de bastidores”) sobre a análise sistematizada do projecto definitivo do
arquitecto.
A abordagem que fizemos interessa-nos pelas particularidades metodológicas.
Permitiu explorar as potencialidades significativas de um conjunto de registos com
um nível de informação que de outro modo ficaria secundarizada ou emudecida.
Esta atribuição de sentidos se, por um lado, exige uma cumplicidade do leitor pela
minúcia da análise, por outro lado, oferece pontos de partida para futuras reflexões.
O nosso trabalho desenvolve-se baseado no conhecimento e no reconhecimento
dos vários registos de memórias (correspondência oficial e particular, guias e seguros de
viagem timbrados ou não pela censura, bilhetes, fotografias, minutas de correspondência,
folhetos turísticos, plantas, anteprojectos e esbocetos) enquanto documentação para
a compreensão do processo de elaboração, apresentação e validação dos projectos
de urbanismo e de arquitectura.
A não concretização dos diversos projectos encomendados para a cidade do Funchal
não constituiu um obstáculo ou motivo de exclusão do tema, antes um estímulo para
estudar a trama dos interesses e condicionalismos em questão.
Vivendo numa outra cidade, distante do Funchal, o atelier assumiu o compromisso
de projectar para esse espaço longínquo, a partir de diálogos institucionais continuados.
A distância marcou a interpretação do lugar e o afastamento físico colocou obstáculos
à concretização dos projectos encomendados e aceites. Frequentemente alheados dos
interesses e dos conflitos institucionais gerados por dissidências políticas locais ou
conjunturas nacionais e internacionais adversas, os arquitectos foram confrontados
com decisões baseadas em critérios que não apreenderam.
430 Maria do Carmo Marques Pires

Todos os diálogos estabelecidos, todos os pareceres trocados, todas as expectativas


partilhadas acrescentaram memória àquela cidade insular podendo quebrar o registo
de silêncio que normalmente envolve os projectos esquecidos. Esperando alguém que
a interrogue … a cidade não conta o seu passado, contém-no como as linhas da mão,
escrito nas esquinas das ruas…

Figura n.º 1 – Anteprojecto do Porto do Funchal (1942)


Fonte: FIMS/A/DMS.

Figura n.º 2 – Anteprojecto do Parque da Cidade (1944)


Fonte: FIMS/A/DMSMJMS.
o Atelier de David Moreira da Silva e Maria José Marques da Silva Martins: projectos para o Funchal 431

Figura n.º 3
Anteprojecto de
Remodelação do
Casino do Funchal
(1944)
Fonte: FIMS/A/DMSMJMS.

Figura n.º 4 – Anteprojecto de Ampliação e remodelação do Savoy Hotel, fachada sudoeste (1944)
Fonte: FIMS/A/DMSMJMS.
432 Maria do Carmo Marques Pires

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O Atelier de David Moreira da Silva e Maria José Marques da Silva Martins: projectos para o Funchal 433

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Silva
Fundos documentais: JMS – José Marques da Silva; DMS – David Moreira da Silva e DMSMJMS
– David Moreira da Silva e Maria José Marques da Silva.
Anteprojecto da Avenida do Infante Funchal 1942/4;
Anteprojecto de Remodelação da Zona Marginal do Porto do Funchal 1942;
Anteprojecto de Remodelação do Casino do Funchal 1944;
Anteprojecto do Parque da Cidade 1944/48;
Anteprojecto de Remodelação e Ampliação do Savoy Hotel, 1945/1947;
Projecto de Casa de Habitação para o Eng.º Paiva Brites, na cidade do Funchal, 1944/45.
Correspondência 1944 – 48 e1942/45.
A encomenda a entalhadores portugueses
nas missões franciscanas do Paraguai no século XVIII
Maria José Goulão

Uma das situações mais invulgares encontradas na área platina diz respeito aos
conjuntos de talha setecentista de uma série de templos paraguaios que, embora tenha
sido até hoje praticamente ignorada pelos historiadores da arte, é merecedora de um
destaque muito particular, já que corporiza a questão da miscigenação cultural e da
recepção dos modelos europeus. Gostaríamos de destacar estas obras, sobretudo a de
S. Boaventura de Yaguarón, que serviu de modelo às restantes, como exemplo maior
de uma situação que porventura não terá sido única na região do Rio da Prata, e que
nos permite compreender de forma mais clara os processos de transmissão, assimilação,
adaptação ou reformulação dos modelos europeus (neste caso, luso-brasileiros) em
zonas consideradas periféricas.
O autor do projecto de talha do templo de Yaguarón, que consideramos matricial, já
que influenciou de forma determinante uma série de outras empreitadas setecentistas
na região paraguaia, foi um entalhador português chamado José de Sousa Cavadas.
No caso de Yaguarón, temos o surgimento em plena selva paraguaia, numa zona de
população predominantemente indígena, de um sumptuoso conjunto de talha barroca
joanina, com alguns elementos de transição que apontam para a adopção da estética
rocaille, que ao tempo despontava na Europa.
Simultaneamente, encontramos um fenómeno de mestiçagem, devido ao uso de
mão-de-obra local, indígena, para executar os riscos do mestre entalhador lusitano,
esquema de trabalho que se repete, dando origem a uma obra na qual essa mesti-
çagem é mais evidente, na igreja de Capiatá. Assiste-se ainda, pela mesma altura, à
divulgação por outros templos da mesma área desta estética importada de Portugal,
cuja “pureza” se vai diluindo em sucessivas adaptações ao gosto local e à formação
dos artífices indígenas.
Sigamos o percurso do mestre português. Sousa Cavadas nasceu em Matosinhos,
em data desconhecida1. Por volta de 1742 já se encontrava no Rio de Janeiro, onde
1 Ana Maria Parsons, que efectuou algumas pesquisas muito parcelares nos arquivos nortenhos, aponta duas datas
possíveis para o seu nascimento, 1712 e 1716, embora baseando-se em elementos bastante vagos respeitantes a duas
crianças com pais homónimos dos de Sousa Cavadas, e nenhuma delas registada em Matosinhos, localidade que o
próprio artista indicou aos oficiais reais em Buenos Aires como sendo a que o viu nascer (PARSONS, 1996: 207).
436 Maria José Goulão

chegara com o seu conterrâneo Manuel da Costa Sereno, travando aí amizade com
frei Manuel do Socorro, leigo franciscano que sabemos que trouxe desta cidade
brasileira madeiras de jacarandá para o convento de S. Francisco de Buenos Aires.
Sensivelmente por essa altura, Sousa Cavadas radicou-se em Minas Gerais. Desta
sua estadia em Minas, contudo, nada nos foi possível descortinar. O nome deste
português não consta na extensa nómina de artistas elaborada por Judith Martins, nem
noutras relações de artífices publicadas2, nem tão-pouco apareceu até ao momento
ligado a obra feita.
Sousa Cavadas deve ter feito o percurso de muitos dos seus compatriotas que,
atraídos pela fama de riqueza e de trabalho fácil na região mineira brasileira, então
em pleno boom aurífero, aí se fixaram e exerceram os seus mesteres, vindos do
Continente. Esta fase, embora não tenha durado mais do que alguns anos, foi
certamente determinante na formação do artista, já que a integração em oficinas
de entalhadores e imaginários mineiros, que então tinham em mãos empreitadas
relevantes, terá contribuído para a criação e maturação de uma linguagem plástica
com um cunho muito particular.
À passagem por Minas Gerais há que somar uma prévia formação inicial em
Portugal, certamente no seio de alguma oficina portuense, se bem que o seu nome não
conste na completa documentação revelada por Natália Ferreira Alves3. Embora não
saibamos com que idade chegou ao Brasil, o mais provável e habitual nestes artistas
viageiros era emigrar depois de completada uma aprendizagem que os habilitasse a
desempenhar a profissão com total autonomia.
Alguns anos mais tarde, Sousa Cavadas emigra do Brasil para Buenos Aires, onde
reencontra Manuel da Costa Sereno, aí chegado uns anos antes. Pensamos que terá
sido este amigo de longa data, já estabelecido na cidade platina, o responsável pela
vinda do artista, abrindo-lhe as portas de um meio desconhecido.
Na Notícia de Estrangeiros de 1771, Sousa Cavadas, que se encontrava nesse ano
em Buenos Aires, declarava haver passado da Colónia do Sacramento a esta cidade
em 1748, utilizando assim um trajecto de acesso aos territórios da Coroa espanhola
muito concorrido pelos imigrantes clandestinos luso-brasileiros. A Colónia do Sacra-
mento era uma praça-forte fundada pela Coroa portuguesa em 1680, uma verdadeira
feitoria comercial situada na margem oriental do amplo estuário do Rio da Prata,
face à cidade de Buenos Aires, de que se encontrava separada por um trajecto que
demorava apenas seis horas a percorrer de barco.
Sousa Cavadas deverá ter ficado na capital platina até pelo menos 1752, ano em
que contrata a execução do retábulo da capela de S. Roque, em Buenos Aires, e se
muda para a cidade de Luján, igualmente na região platina.
Possivelmente nesse mesmo ano, viaja para o Paraguai, onde trava conhecimento
com vários membros da ordem franciscana, que afirmarão mais tarde haver Sousa
Cavadas aí permanecido vários anos4. Com efeito, três testemunhos, entre os quais
2 MARTINS, 1974; VASCONCELLOS, 1955.
3 FERREIRA-ALVES, 1989a.
4 PLÁ, 1970: 16-17.
A encomenda a entalhadores portugueses nas missões franciscanas do Paraguai no século XVIII 437

os de dois franciscanos, referem-se à sua ida para o Paraguai por volta de 1752.
Sabemos que por essa altura mantinha relações estreitas com membros da ordem, que
supervisionava a província de Nossa Senhora dos Anjos, onde se integrava a missão
franciscana de Yaguarón. Um dos religiosos referidos, frei Francisco Vieira Ferrete,
afirma conocerlo hace doce años y haber habitado dos años y siete días en la Provincia de
Nra. Sra. de los Angeles del Paraguay donde Sosa asistió algunos años5.
Este testemunho é fundamental para confirmar a atribuição ao entalhador português
do conjunto retabular de S. Boaventura de Yaguarón, já que foi durante essa estadia
no Paraguai que Sousa Cavadas executou tal empreitada.
Em 1759, encontramo-lo instalado novamente em Luján, de oficina aberta. Em
1771, residia ainda nesta povoação, onde se havia casado. Em 1778 e novamente em
1780 está documentado em Buenos Aires, onde tinha morada por detrás da igreja
de Santo Inácio.
É possível estabelecer uma lista das obras cuja atribuição a Sousa Cavadas não
suscita dúvidas, pelo facto de se encontrar devidamente documentada: os três retábulos
da igreja de Luján (1759-1776); o retábulo da capela de S. Roque, em Buenos Aires
(completado em 1761); e dois retábulos da igreja de S. Domingos de Buenos Aires
(1771-1780)6. Estes três últimos foram pasto das chamas nos distúrbios peronistas de
1955, e os de Luján foram destruídos no século passado. Nada resta, pois, da obra
do mestre entalhador português na Argentina.
No entanto, a comparação entre os retábulos dos templos de Capiatá e de Yaguarón,
no Paraguai, e os de S. Roque e de Luján, na Argentina, que conhecemos através de
fotografias antigas, permitiu atribuir a este escultor português a autoria dos primeiros,
reforçada pelas provas documentais já referidas acerca da sua estadia no Paraguai.
Estas obras de Sousa Cavadas distinguem-se dos restantes retábulos bonaerenses
da época, que eram muito menos sumptuosos, pela riqueza da ornamentação, pela
profusão de elementos rocaille, pela policromia intensa, pela existência de várias
imagens e pelo grande nicho central.
A obra de Sousa Cavadas no Paraguai e em Buenos Aires revela um mestre de mão
segura e espírito empreendedor, que assimilou e aplicou com notável desenvoltura um
léxico ornamental e um reportório formal devedores de um conhecimento profundo
do que à época se fazia de melhor em Portugal neste domínio artístico. Sousa Cavadas
pratica um barroco filiado no “gosto ao moderno” da escola de talha portuense da
primeira metade do século XVIII, profundamente marcada pelo barroco romano,
adoptando o novo esquema teatral, movimentado e de grande efeito cenográfico.
Mas as obras de talha de Sousa Cavadas no Paraguai são igualmente devedoras
de um processo de transculturação, que recria e “re-semantiza” formas europeias.
Esta arte “mestiça” mostra um total desdém pelas plantas dos edifícios e pelas novas
soluções espaciais, preocupando-se quase em exclusivo com a ornamentação. Alguns
dos motivos decorativos inspiram-se na flora e fauna tropicais (jaguares, abacaxis,
5 SCHENONE, 1955: 49.
6 Por um dos altares executados para S. Domingos, Sousa Cavadas recebeu uma quantia exorbitante para a época,
6 000 pesos, o que prova que devia ser obra de muito merecimento (FURLONG, 1969: 292).
438 Maria José Goulão

maracujás, ramagens de fetos, etc.). Trata-se de uma arte que admite assim a tradição
cultural e religiosa indígena, inserindo-a sem problema junto a temas cristãos.
Este processo de mestiçagem deve-se certamente à criação de uma oficina inte-
grando artesãos indígenas, formados possivelmente por Sousa Cavadas, cuja esfera
de influência se estendeu a outros templos da área paraguaia, fazendo perdurar o
impacte de uma obra tão marcante para o contexto local como a de Yaguarón.
Uma questão de relevo, para a qual não temos resposta definitiva, prende-se com a
hipotética presença no Paraguai não só de Sousa Cavadas, mas de toda uma pequena
companha de artífices portugueses, que teria necessariamente de incluir douradores e
pintores, e um ou outro entalhador ou imaginário auxiliar. Com efeito, a obra de talha
de Yaguarón constituiu uma empreitada de grandes dimensões para o contexto local,
que muito possivelmente só pôde ser posta em prática com a colaboração de vários
artesãos especializados. Ao contrário do que sucedeu na área das missões jesuíticas,
nos pueblos de indios paraguaios não havia oficinas organizadas que permitissem suprir
todas as necessidades locais, e muito menos realizar obras da envergadura das de
Yaguarón; daí a vinda de artistas como Sousa Cavadas.
Sousa Cavadas formou certamente outros artífices, que actuaram em toda a região,
e cujo rasto é detectável. A igreja da aldeia de Santa Lúcia, na província de Corrientes
(Argentina), tinha um retábulo e um púlpito executados em 1795 pelo índio José
Bogarín, natural de Yaguarón; na igreja de Santa Ana, igualmente em Corrientes, o
púlpito e outras obras de carpintaria foram realizados pelo artesão índio José Yaguarón,
responsável igualmente por obras na Catedral daquela cidade argentina7.
Na factura do retábulo-mor de Capiatá terão colaborado dois artífices, um deles o
padre Adorno, que se dava como discípulo de los jesuítas8. A confirmar-se esta infor-
mação, cuja fonte nunca foi indicada, teríamos uma pista importante para entender
as diferenças de estilo entre a retabulística de Yaguarón, que surge claramente como
um paradigma, e as interpretações dela decorrentes, como a talha de Capiatá. Por
outro lado, Josefina Plá pensa que o padre Adorno e o irmão Gabriel, que trabalharam
na igreja de Capiatá, poderiam ser discípulos de Sousa Cavadas.
O cronista Aguirre afirmou, cerca de um quarto de século depois da passagem
de Sousa Cavadas pelo Paraguai, que a sua estadia fue ocasión de adelantarse mucho
los indios de estos pueblos9, o que efectivamente parece indicar que se formou uma
oficina dirigida por este mestre, ligada ao estaleiro de Yaguarón, que terá perdurado
mesmo depois da sua partida.

7 GUTIÉRREZ, 1983: 42, 50, 287. Era relativamente frequente o recurso à mão-de-obra das missões guaranis para
levantar edifícios e construir retábulos fora da área missioneira. Artífices desta proveniência ajudaram a levantar
igrejas em Córdoba por volta de 1725, outros colaboraram no estaleiro da Catedral de Asunción, em 1717, outros
ainda armaram retábulos para templos bonaerenses e de Córdoba. No entanto, os comitentes eram quase sempre
instituições ou templos ligados aos Jesuítas; a imaginária produzida nas missões não tinha grande aceitação entre
a clientela rio-platina, e era vendida por quantias muito baixas (PLÁ, 1973: 25-26).
8 É Josefina Plá (PLÁ, 1975: 83-84) quem nos dá esta informação, que colheu de ALBORNO, 1944. Este, por sua

vez, não indica a fonte documental original.


9 Citado por PLÁ, 1975: 19.
A encomenda a entalhadores portugueses nas missões franciscanas do Paraguai no século XVIII 439

Deve-se ao primeiro bispo de Asunción, Pedro Fernández de la Torre, um fran-


ciscano nomeado em 1555, a fundação das primeiras reduções10 do Paraguai, com a
ajuda de religiosos da sua ordem, em finais do século XVI. Estas reduções situavam-se
relativamente perto da cidade de Asunción.
Yaguarón e Capiatá situam-se na área paroquial (não administrada directamente
pelas ordens religiosas). Não são portanto missões, mas sim povoados de índios, e
não estavam sujeitas à ordem jesuítica. Apesar da secular antipatia que separava
Franciscanos e Jesuítas na região missioneira, é provável que tenha havido uma
intervenção de artesãos formados nas oficinas das reduções jesuíticas, sobretudo a
seguir à expulsão da ordem e ao desmantelamento dos povoados dela dependentes,
em 1767.
A melhoria das condições económicas na região fez com que por volta de 1755
fosse possível iniciar não só a obra de Yaguarón, como também as de muitos outros
templos como Capiatá, Piribebuy, Valenzuela, etc. É de crer que muitos artesãos
índios formados pelos jesuítas tenham participado nestas empreitadas, mas, dado
que eram sobretudo bons executores e que não era comum ocuparem-se das tarefas
relacionadas com o desenho das estruturas retabulares ou do mobiliário litúrgico, a
presença de Sousa Cavadas era imprescindível.
O templo de S. Boaventura de Yaguarón, no Departamento Paraguarí, é sem
dúvida o exemplo mais relevante das igrejas paraguaias do século XVIII. Fica situ-
ado num pueblo de indios11 fundado em 1539 por Franciscanos, e que, por falta de
religiosos, foi entregue mais tarde (em 1596) ao clero secular, em cujas mãos ainda
se encontrava em 1744.
As missões jesuíticas dos índios Moxos e Chiquitos, situadas na actual Bolívia,
apresentavam semelhanças muito sensíveis com os povoados paraguaios de índios
guaranis. O plano geral é o de uma aldeia exclusivamente para os indígenas, baseada
na vida comunitária, sob a autoridade de um sacerdote. As respectivas igrejas das
missões respeitam uma mesma tipologia de grande simplicidade funcional, resultante de
uma prática arquitectónica voltada sobre si mesma, com poucas influências exteriores,
e da solução dos problemas construtivos baseada nos materiais disponíveis, no meio
tropical que as rodeia e na ideia da vida comunitária. Os templos são de três naves
com cobertura de duas águas, pórticos e peristilos de madeira, colunas feitas de troncos
de árvores e paredes exteriores de adobe. Nas fachadas, dá-se o prolongamento da
estrutura interior, que avança para formar o pórtico12.
Em Yaguarón, uma primitiva igreja de grandes dimensões, construída por mando
do governador Hernandarias por volta de 1616, apresentava-se muito degradada em
meados do século XVIII, altura em que se optou por erguer um novo edifício religioso.

10 Uma “redução” era uma concentração de índios em aglomerações organizadas, estáveis e acessíveis, de forma a facilitar
a evangelização e a administração (BENNASSAR, 1987: 176).
11 Num pueblo de indios, existiam autoridades seculares instituídas (Cabido e corregedor indígenas, chefe de guarnição),

sendo que apenas a catequese e conservação da fé estavam a cargo dos Franciscanos (PLÁ, 1970: 7-8).
12 GISBERT, 2000: 549-552.
440 Maria José Goulão

Em 1761, o administrador Gerónimo Morello deitou mãos à obra, decidido a


construir uma grande igreja de pedra, abobadada, que nunca passou do arranque das
paredes, por falta de financiamento, já que Yaguarón, segundo informação da época,
era paróquia de mucha gente, mas algo atrasado de medios13. A nova igreja tornou-se
assim um projecto demasiado ambicioso, «obra inacabable y superior a las fuerzas del
pueblo»14. Neste mesmo ano (1761), o bispo de la Torre informava que o retábulo-
mor se encontrava concluído, sendo «cosa ridícula» ter-se encomendado esta obra
de talha antes da conclusão do templo definitivo. Frustrada a construção em pedra,
optou-se pelo tradicional modelo de estrutura de madeira com muros de adobe, «al
uso de la provincia», sendo a igreja finalmente consagrada em 1772.
Assim, sabemos que entre 1752 e 1759, anos-limite da estadia no Paraguai, já
que em ambas as ocasiões Sousa Cavadas se encontra documentado em Luján, o
nosso artista esteve nesta região e foi contratado para a execução da empreitada de
talha da igreja de Yaguarón, cujos retábulos se encontravam terminados em 1761,
embora só fossem montados anos mais tarde, já depois do regresso do escultor ao
estuário do Prata. Fonte segura, que escreve algum tempo depois da conclusão dos
trabalhos, afirma serem as obras da autoria de un tallista portugués que hizo contrata
del altar de San Roque de los Terceros de San Francisco de Buenos Aires, e que vino al
Paraguay con el fin de sus obras15.
A igreja, de planta rectangular, e para a qual se optou por uma estrutura de
madeira, rodeada de galerias externas que correm ao longo das quatro fachadas,
constituía uma unidade morfológica com a praça, no centro da qual se situava, e
com as galerias porticadas que a rodeavam. Interiormente, trata-se de um edifício de
três naves, divididas por colunas de madeira, terminadas em modilhões quadrados,
esculpidos e pintados, que não conseguem impor-se de forma a diluir a sensação
de um espaço unitário de igreja-salão. Todas as traves do vigamento do telhado de
duas águas encontram-se à vista no interior do edifício; esta espécie de artesonado
completa-se com as sapatas duplas ou mísulas de perfil recortado, entalhadas, que
suportam as vigas da cobertura, igualmente esculpidas e pintadas. As portas exteriores
e as portadas das janelas, trabalhadas com desenhos em relevo, devem ser as originais,
mas foram sendo sucessivamente repintadas.
A capela-mor deste templo é profunda, como era habitual nas igrejas luso-
brasileiras; tem um forro de madeira formando abóbada de berço, e é flanqueada por
dependências várias. Perpendicularmente à capela-mor, e nas suas traseiras, existe uma
capela-sacristia de uma só nave, coberta igualmente por uma abóbada de berço de
madeira e por uma falsa cúpula do mesmo material, inserida numa espécie de cruzeiro.
O tecto de artesonado do corpo do templo e as abóbadas e cúpula estão totalmente
decorados com motivos variados e policromos, entre os quais se inserem exemplares
da flora local, como as grinaldas de amambay (feto), flores autóctones como as de

13 GUTIÉRREZ, 1983: 287.


14 Segundo as palavras de Juan Francisco Aguirre, citado por PLÁ, 1970: 10.
15 GUTIÉRREZ, 1983: 287.
A encomenda a entalhadores portugueses nas missões franciscanas do Paraguai no século XVIII 441

mburucuyá (passiflora, ou maracujá), e motivos geométricos formando caixotões


octogonais, alternados com cabeças de querubim.
Os motivos usados nestas pinturas, composições florais que repetem o desenho
da talha das cornucópias do ático ou os esquemas do coroamento do sacrário, levam
a supor que Sousa Cavadas terá igualmente intervindo na sua composição. Embora a
igreja não estivesse concluída na altura em que a obra de talha do retábulo-mor foi
executada, e portanto não fosse possível ao artista ter acompanhado a empreitada
da pintura do interior do templo, não é de excluir a hipótese de este ter deixado
desenhos prévios, que os artesãos locais copiaram mais tarde.
A acrescentar maior densidade a este conjunto, sabemos que as paredes estive-
ram em tempos revestidas de pinturas, que desapareceram debaixo de uma infeliz
demão de tinta em 1919. A igreja sofreu certamente outras reparações ao longo dos
tempos, dado que, na altura da revolução paraguaia de 1912, as tropas a ocuparam
e a transformaram em aquartelamento, mercado, cozinha, cavalariça e até salão de
baile. Relatos desta época referem os penosos tratos a que foram sujeitos mobiliário e
imagens. Os confessionários foram usados como mictórios, as imagens foram mutiladas,
as cadeiras foram arrastadas para o exterior, os bancos serviram de pasto ao fogo. Já
em épocas anteriores, os habitantes locais haviam arrancado os dedos da figura de
suporte do púlpito, que guardaram como relíquias16.
O exterior do templo, que aparenta uma grande simplicidade, contrasta enor-
memente com o interior, onde a talha barroca, a policromia das colunas e dos
suportes da cobertura, os painéis do tecto da sacristia e da capela-mor, profusamente
ornamentados e policromados17, o mobiliário fortemente colorido (confessionário,
cadeiras de braços, arcaz-altar da sacristia), criam um espaço altamente elaborado e
sofisticado, de grande efeito cenográfico. Os recursos ornamentais são usados com
toda a intensidade, unindo a pintura mural e a escultura barroca para obter um clímax
visual. Esta opção terá correspondido certamente ao gosto dos paroquianos, já que
todas as igrejas da área, que chegaram a ser mais de cem, apresentavam as mesmas
estruturas arquitectónicas simples, despojadas e funcionais, a que se contrapunha um
investimento claro na decoração interior, no mobiliário e na imaginária.
A pintura e o douramento dos retábulos, mobiliário, colunas e painéis do tecto de
madeira de Yaguarón coloca algumas questões não resolvidas, dada a total ausência
de documentação que nos permita acompanhar as várias fases da obra. Parece-nos
óbvio que não haveria em Yaguarón artesãos capazes de dominar primorosamente
estas técnicas, que exigiam, para além de uma longa aprendizagem especializada,
instrumentos e materiais, como a folha de ouro, inexistentes na região. Contudo,
sabemos que nas missões jesuíticas se praticavam estas artes, e que não faltaram
em nenhuma igreja desta ordem os móveis litúrgicos, retábulos e tectos de madeira

16 PLÁ, 1970: 39-40.


17 As pinturas são realizadas a têmpera, ao que parece com pigmentos vegetais existentes na região, como o yrybú
retymá (negro), a yerba mate (verde), ou o urucú (vermelho), a que se juntavam colorantes minerais, como caulinos
e ocres. Os indígenas possuíam bons conhecimentos de tinturas vegetais, dada a sua longa tradição de coloração
de fibras para as manufacturas têxteis (PLÁ, 1975: 88-89).
442 Maria José Goulão

pintados e dourados, como sucedeu em Santo Inácio ou S. Cosme. Embora Yaguarón


seja um templo da área não-missioneira, é apontado frequentemente por especialistas
como um exemplo aproximado do que deveriam ter sido essas superfícies pintadas
no interior dos templos da Companhia de Jesus18.
O retábulo do altar-mor, executado em madeiras da região, apresenta uma série
de soluções comuns à retabulística portuguesa da época, entre as quais se destacam o
perfil ondulante da mesa de altar e do entablamento, a utilização de colunas torsas, o
ático mistilíneo, o camarim e nichos com sanefas e cortinados de complexo pregueado
e as cartelas decorativas com elementos rocaille.
A liturgia é uma das chaves da compreensão do barroco americano. A fé penetrava
nas almas dos indígenas pela audição, mas também através do olhar e do tacto, vendo
nas igrejas ornamentos curiosos e pinturas devotas e vistosas19. No período barroco, o
retábulo assume-se como a representação por excelência da ordem universal, um
“teatro” onde as figuras, inseridas nos seus respectivos nichos, segundo uma localização
rigorosamente determinada, representavam as ligações existentes entre si, e o seu
lugar na hierarquia celestial. A própria estrutura retabular constituía em si mesma
um sistema hierárquico que conjugava razão e fantasia, unido num todo os aspectos
construtivos e a ornamentação.
No caso de S. Boaventura de Yaguarón, o marcado efeito ascensional do retábulo
destinava-se a elevar o olhar dos fiéis para o ático, onde se inclui a representação mais
significativa, Deus Pai, que contém o sentido geral de todo o conjunto figurativo20. A
figuração do Pai Eterno representado como um ancião de barbas, juntava-se à pomba
do Espírito Santo, que surge no intradorso da tribuna, e ao Cristo crucificado, imagem
já desaparecida que provavelmente estaria colocada sobre o trono eucarístico; temos
assim Deus na sua forma tríplice, como três pessoas distintas, numa disposição vertical
chamada trono de gracia, iconografia comum em Portugal, mas pouco frequente em
território hispano-americano21. O fuste das colunas salomónicas ajuda a criar esse
movimento ascensional, guiado pelos enrolamentos fitomórficos, que apenas surgem
nos dois terços superiores.
O trono eucarístico existente no retábulo de Yaguarón merece um destaque especial,
pois é um elemento que consideramos particularmente revelador da influência dos
modelos da talha portuguesa. Esta estrutura piramidal, colocada sempre ao centro do
retábulo-mor, é frequente apenas nas igrejas da esfera de influência artística lusitana22.
No retábulo de Yaguarón existem três nichos. O nicho central constitui o cama-
rim, que contém o trono eucarístico, com os degraus adornados de talha dourada, e
sobre o qual se encontra uma imagem de Nossa Senhora da Imaculada Conceição

18 PLÁ, 1975: 184-185.


19 Regra dos Avisos do Padre José de Carabantes (1628-1694), citada por GUARDA, 1984: 472.
20 BURUCUA, 1997: 437.
21 Na América, contrariando as directivas pós-tridentinas, insistiu-se até épocas mais tardias na representação da

Santíssima Trindade sob a forma de três pessoas quase idênticas, apenas distinguidas pelos seus atributos, evitando
assim interpretações politeístas da divindade cristã e hipotéticas tendências zoólatras a que conduziria a visão da
pomba do Espírito Santo entre os indígenas (BURUCUA, 1997: 438).
22 SMITH, 1963: 169; FERREIRA-ALVES, 2000: 305; MARTINS, 1991: 17-18.
A encomenda a entalhadores portugueses nas missões franciscanas do Paraguai no século XVIII 443

com panejamentos movimentados, de boa factura, que originariamente não estaria


aí colocada; sobre o sacrário, na abóbada do camarim, pende uma auréola dourada
com a pomba do Espírito Santo ao centro.
Na parede fundeira da tribuna, um halo dourado, flanqueado de anjos, tem no
centro uma concavidade elíptica com uma pequena imagem de S. Pedro, que não
sabemos se é a que originariamente ocupou o lugar de destaque no camarim, em
vez da grande imagem da Virgem que hoje aí se encontra23. De ambos os lados do
nicho central, foram colocadas colunas torsas, verdadeiramente salomónicas, com a
primeira secção do fuste estriada, separada dos dois terços superiores por um círculo
de folhas de acanto. Os dois terços superiores dos fustes são de forma helicoidal, com
grinaldas de rosas e margaridas enroscadas nas espirais, e rematados por capitéis com
duas filas de folhas de acanto e volutas.
O entablamento mistilíneo, jogando sabiamente com as reentrâncias e saliências,
apresenta uma arquitrave finamente moldurada, um friso com folhas de acanto e
uma cornija fortemente reentrante na zona dos intercolúnios. Nos nichos laterais,
que ocupam os intercolúnios, encontram-se as estátuas de S. Miguel Arcanjo e de S.
Boaventura, patrono do templo, ambas de muito boa execução, sob baldaquinos com
lambrequins. Originalmente, em vez da figuração de S. Boaventura, existia uma imagem
de S. Rafael, hoje desaparecida24. A escultura de talha de S. Miguel, apresentando
elmo e couraça, dotada de belos panejamentos ondulantes e com movimento de
grande teatralidade, calcando aos pés o demónio alado, é sem dúvida obra de Sousa
Cavadas, e repete-se com grandes semelhanças na imagem de S. Miguel conservada
no retábulo-mor de Capiatá.
A tribuna é dotada de um belo efeito de profundidade, sabiamente encenado,
obtido pelo prolongamento do entablamento até ao centro da composição, alongando-
se na concavidade do nicho. Este efeito é acentuado pelas delicadas molduras dos
arcos reentrantes que circundam a boca da tribuna, decoradas lateralmente com
elegante “renda”, composta por um friso vertical de volutas e motivos florais, que
rodeiam elementos em treliça formando um reticulado. Esta solução, que se repete
no confessionário, surge também nalguns templos brasileiros da época, como no
altar-mor das igrejas de Nossa Senhora do Pilar de São João del Rei e de Ouro Preto,
e mesmo em retábulos da área andina25.
O coroamento do retábulo é semelhante, na composição e na iconografia, ao de
Nossa Senhora do Pilar de São João del Rei. O ático, de perfil sinuoso, apresenta
um relevo de Deus Pai, num fundo de glória flanqueado de querubins, ladeado de
cornucópias de onde saem exuberantes espécimes da flora local, como a passiflora (ou
mburucuyá), o feto e a palma. De ambos os lados das pilastras encurvadas que formam
23 Josefina Plá, ao descrever o templo nos anos setenta do século XX, refere-se à imagem de S. Pedro com as chaves,
que era mencionada em descrições de inícios daquela centúria, e que teria desaparecido sem deixar rasto; no
entanto, após o último restauro, a imagem de S. Pedro passou a ocupar o lugar de destaque que hoje mantém no
retábulo-mor. (PLÁ, 1970: 30).
24 PLÁ, 1970: 32.
25 Idêntico motivo de “renda” lateral com treliça delimitada por grande voluta de inspiração fitomórfica surge, por

exemplo, num retábulo conservado no Museu do Convento das Mercês em Quito, no Equador.
444 Maria José Goulão

o ático, surgem dois anjos de elegante factura, empunhando palmas, assentes sobre
mísulas e destacando-se num enquadramento de volutas e enrolamentos fitomórficos.
Um pouco mais abaixo, lateralmente, estão colocadas duas figuras alegóricas
femininas, empunhando palmas, graciosamente sentadas sobre o arranque do frontão
curvo interrompido do retábulo. Esta composição dos fragmentos de frontispício com
figuras alegóricas sentadas é uma fórmula básica frequente nos retábulos do barroco
joanino lisboeta, tirada do tratado do padre Pozzo, e usada igualmente no Norte de
Portugal, por exemplo no retábulo da capela-mor da Sé do Porto26.
As colunas torsas do retábulo assentam em mísulas com volutas, decoradas com
cabeças de querubim na base. No embasamento dos intercolúnios, surgem grandes
cartelas de molduras assimétricas e ornamentação fitomórfica.
O tabernáculo foi objecto de um especial destaque, tendo sido profusamente
ornamentado com um primoroso trabalho de talha. Dez cabeças de querubim
relevadas, entre nuvens, circundam a porta, onde surge o Cordeiro com o lábaro.
Sobre o conjunto, elevam-se um dossel com lambrequim e uma cornija moldurada
e encurvada, encimada por duplos enrolamentos, formando um coroamento que
repete em escala reduzida o desenho do ático, e que se prolonga em altura numa
profusão de ramagens, volutas e flores. Dos lados, duas imagens de putti apoiam-se
em elegantes colunas, cuja decoração é de um gosto requintado e erudito.
Impressiona no conjunto o enorme sentido cénico da composição, acentuado
pelo sábio doseamento dos volumes, reentrâncias e saliências, pelo sentido da pro-
fundidade, pela utilização das imagens de vulto, que se dispõem em poses teatrais e
muito elegantes, com uma gestualidade expressiva e movimentada. Toda a talha de
Yaguarón foi objecto de restauro há alguns anos, pelo que não sabemos até que ponto
foi respeitada a policromia original, mas esta certamente que contribuiu para acentuar
a beleza do conjunto. É inegável que o estaleiro possuiu douradores e pintores de
boa formação, não sabemos se discípulos de Sousa Cavadas que com ele vieram, se
treinados localmente pelo mestre.
Só se conservam no interior do templo dois dos quatro primitivos retábulos laterais,
que são de pequenas dimensões e bastante diferentes um do outro, embora com
idêntica estrutura de três nichos flanqueados de pilastras. Diferem essencialmente
na forma do coroamento. O de remate mais alteado e sinuoso apresenta um ático
ondulado e rematado por motivo de feixe de plumas, conservando lateralmente as
mesmas pilastras encurvadas do remate do retábulo-mor, encimadas por ramos de
flores tropicais que caem em cachos, o que dá ao conjunto um forte sabor exótico.
Parece-nos corresponderem ambos à mesma empreitada da execução do retábulo
principal, embora estejam muito repintados, o que dificulta a apreciação; apoiam-se
em mesas de altar que não são certamente as originais, mas sim possivelmente trazidas
de algum templo jesuítico após a expulsão da ordem.
Os restantes dois retábulos laterais de Yaguarón foram trasladados em 1855 para
a igreja da Santíssima Trindade, em Asunción, onde ainda hoje se encontram. São

26 SMITH, 1962: 107.


A encomenda a entalhadores portugueses nas missões franciscanas do Paraguai no século XVIII 445

sem dúvida os mais interessantes pelas dimensões, estrutura e decoração, aspectos


que nos permitem confirmar que indubitavelmente faziam parte do mesmo conjunto
primitivo do templo de S. Boaventura. Repetem em tudo o vocabulário decorativo
usado por Sousa Cavadas no retábulo-mor de Yaguarón, revelando idêntica qualidade
na escolha dos temas ornamentais e na delicadeza da talha. Conservam as mesmas
colunas torsas com grinaldas de flores nos dois terços superiores dos fustes, separados
do terço inferior por anéis de folhas de acanto, idêntico entablamento mistilíneo,
o frontão interrompido logo no arranque e os mesmos motivos fitomórficos de
inspiração local.
Sousa Cavadas, saído de Portugal durante o segundo quartel de Setecentos,
parece-nos marcado pelo conservadorismo da tradição portuense, ainda ligada ao
barroco joanino27. No entanto, é possível que na sua estada em Minas Gerais tenha
assimilado algumas novidades que terão o seu pleno desenvolvimento na segunda
metade da centúria, como os concheados e cartelas assimétricas e o emprego de
aletas em estilo rococó, com curvas de festões e reticulados.
Apesar das alterações sofridas, a impressão causada pelo conjunto de talha de
Yaguarón é a de uma obra de arte total, sabiamente articulada para conseguir um belo
efeito de perspectiva, que se centra no retábulo-mor. A ornamentação foi concebida
como um todo orgânico, embora hoje infelizmente esse sentido unitário se tenha
diluído, dado que algumas peças desapareceram ou foram retiradas da igreja com
destino a outros templos, e outras não terão resistido às depredações, aos estragos
do tempo e às catastróficas tentativas de restauro, havendo sido substituídas por
mobiliário e retábulos trazidos de diferentes locais, que mesmo um olhar desatento
identifica como espúrios.
Do conjunto original fazem parte os dois confessionários, trabalhados igualmente
em madeiras duras das selvas paraguaias. Trata-se de duas peças idênticas, de feliz
e original composição, nas quais o entalhador usou colunas torsas semelhantes às
do retábulo-mor. O entablamento mistislíneo conserva um frontão curvo, de perfil
muito ondulado, rematado por grande “penacho”.
Plumas, rosetas, concheados e palmas, bem como os graciosos remates laterais
formando uma “renda” com volutas e treliça, terminando inferiormente em folhagem
e flores, repetem soluções usadas por Sousa Cavadas no retábulo-mor. Embora a
policromia original tenha sido possivelmente alterada nos vários restauros, os dourados
nos altos-relevos e os fundos pintados nas cores predominantes no retábulo acen-
tuam o ar exótico e vagamente oriental, contribuindo para um conjunto de grande
originalidade, onde certamente colaborou mão-de-obra local formada pelo mestre.
Do mobiliário setecentista, restam ainda três originais cadeiras de braços. O
cadeirão principal, usado nas grandes cerimónias religiosas, mereceria um estudo
pormenorizado, já que parece condensar uma série de influências, sintetizando de
forma esclarecedora a inventividade do seu autor.

27 FERREIRA-ALVES, 1989a: 469.


446 Maria José Goulão

A estrutura geral desta peça de mobiliário é a de uma cadeira de braços portuguesa


do século XVII, de linhas sóbrias e direitas, com o seu assento e encosto de sola
lavrada. A esta estrutura simples, juntou o entalhador, com notável imaginação,
elementos decorativos que constituem pequenas variações sobre os temas da talha do
altar-mor: a travessa dianteira, ou testeira, poderosamente recortada com enrolamentos
e volutas formando cornucópias de onde saem flores, a aba repetindo o motivo dos
lambrequins, o espaldar com flores entalhadas e muito recortado, rematado por
volutas laterais, concheados e um topete ou feixe de plumas encrespado, e na parte
inferior do chassis uma cabeça simiesca coroada por volutas.
As pernas dianteiras são encurvadas e terminadas em pés “de pincel”. Os seus
braços figuram, em vez do motivo europeu das cabeças de leão, faces de animais com
o focinho aberto e língua pendente, que representam o yagua (jaguar), yaguareté,
ou puma da mitologia guarani; o corpo do animal metamorfoseia-se nos apoios de
braços encurvados, como se fosse o dorso, e as pernas anterior e posterior da cadeira
formam as patas do animal.
Uma das peças mais originais do mobiliário litúrgico primitivo deste templo é
sem dúvida o grande arcaz-altar da sacristia, uma feliz combinação de retábulo e de
móvel de gavetas para guardar a paramentaria, que se aproxima do estilo do escultor
português. Apresenta um perfil muito ondulado, e imaginativas cartelas barrocas
em talha dourada, que cobrem quase por completo as faces das gavetas, criando um
efeito semelhante ao das ferragens de bronze do mobiliário rocaille. Este pormenor
é revelador da enorme capacidade de adaptação do entalhador às condições locais,
que exigiam grande inventividade para suprir a falta de materiais e técnicas usados
na Europa.
A parte superior deste móvel de sacristia, que forma uma estrutura retabular, tem
certamente mão indígena, embora o desenho e motivos decorativos do entablamento,
coroamento, colunas torsas, painéis dos intercolúnios e moldura do nicho central
repitam soluções já usadas no retábulo-mor.
A sacristia é em si mesma um belíssimo e original conjunto, que pela decoração
cuidada e pela importância atribuída ao mobiliário litúrgico mais parece uma verda-
deira capela. Conserva a cúpula de madeira policromada a têmpera, única na região.
O púlpito de S. Boaventura de Yaguarón, obra que incluímos igualmente no conjunto
de talha delineado pelo mestre entalhador português para este templo, merece um
destaque especial, não só pela sua originalidade mas porque serviu de protótipo para
uma série de outros conservados em igrejas da zona. A figura de suporte masculina que
sustenta a tribuna é especialmente interessante, já que constitui uma particularidade
pouco comum na América Latina. Trata-se de uma elegante escultura de talha de
vulto redondo, representando um jovem de feições europeias e trajos ricamente
dourados, formando panejamentos ondulantes. Os braços levantados e abertos fazem
o gesto de amparar uma elegante “cesta de folhagem” composta de enrolamentos
fitomórficos, que constituem a base da tribuna, colocada sobre a cabeça da figura.
No espaço de influência portuguesa, este tipo de suporte antropomórfico conserva-se
no púlpito de S. Francisco da Bahia (Brasil) e no púlpito da igreja de Santa Maria
A encomenda a entalhadores portugueses nas missões franciscanas do Paraguai no século XVIII 447

do Castelo, em Alcácer do Sal (Portugal). No barroco americano, o suporte antro-


pomórfico identifica-se com a figuração do indígena que apresenta à Igreja católica
o camarico (do quechua camari), tributo semi-voluntário que os fregueses ofereciam
aos curas das doutrinas de de índios28. No púlpito da igreja de S. Francisco de Quito
(Equador), surgem três figuras masculinas, neste caso com características étnicas
europeias, sustentando sobre as costas a base da tribuna. Igualmente na ourivesaria
hispano-americana encontramos o suporte antropomórfico, nas chamadas custódias
“de figura”, em que a haste se transforma numa escultura de um arcanjo, que suporta
o peso do viril. Esta solução formal, conhecida da ourivesaria barroca do vice-reinado
do Peru, foi utilizada sobretudo na Nova Espanha29.
O púlpito de Sousa Cavadas em Yaguarón serviu claramente de modelo a vários
outros que se conservam em templos paraguaios, e que nele se filiam. São de destacar
os das igrejas de Emboscada, Piribebuy, Valenzuela, Paraguary, S. José de Caazapá,
S. Francisco de Atyrá e Villeta,
A igreja da Virgem da Candelária de Capiatá, povoação situada no Departamento
Central do Paraguai, foi começada a erguer em meados do século XVIII, sendo
portanto contemporânea da de Yaguarón. Era considerada na época uma da melhores
da região, juntamente com a desta última localidade. O edifício, embora de menores
dimensões que o de Yaguarón, segue a mesma tipologia. As obras executadas no século
XX descaracterizaram-no completamente, ao introduzirem uma fachada que nada
tem que ver com a estrutura primitiva, que era em tudo semelhante a Yaguarón e a
muitas outras igrejas da região. A igreja de Capiatá é um exemplo da edificação ou
reconstrução de mais de vinte templos paraguaios, que parece ter-se iniciado com a
obra de Sousa Cavadas, desenvolvendo-se nos anos que se seguem à expulsão dos
Jesuítas.
A total ausência de documentação sobre estas construções torna muito difícil
a tarefa de rastrear os seus construtores, entalhadores e pintores, sendo impossível
obter certezas quanto às influências que aí se fizeram sentir. A influência do altiplano
andino é perceptível em alguns exemplos de retábulos; a origem missioneira de
muitas peças de mobiliário indicia a transumância de obras de arte sucedida após a
saída dos Jesuítas.
Em Setembro de 1997, quando visitámos a igreja de Capiatá, deparámos com o
interior do templo em pleno restauro, e com o retábulo-mor totalmente desmontado.
Infelizmente, apenas pudemos observar parcialmente os dois retábulos laterais,
cobertos por telas, e ter acesso a algumas reproduções fotográficas da principal
estrutura retabular.
A policromia existente no retábulo, que não sabemos se mantém as cores originais,
é dominada pelas tonalidades azuis e douradadas, conferindo-lhe um aspecto mais
severo e fruste que o de Yaguarón. Também aqui o forro de madeira da cabeceira se

28 SEBASTIÁN, 1990: 59-60.


29 ESTERAS MARTIN, 1997: 449.
448 Maria José Goulão

encontra pintado, embora com motivos menos variados, dominando os elementos


fitomórficos combinados com volutas e cartelas, de composição erudita.
As semelhanças entre ambos os conjuntos de talha são evidentes. A composição
do retábulo-mor é decalcada da de Yaguarón, consistindo num grande camarim e em
dois nichos laterais, separados por colunas torsas, com belíssimos adornos fitomórficos
ao longo dos fustes helicoidais.
No camarim, que apresenta um sacrário e um trono eucarístico idênticos aos do
templo de S. Boaventura, obteve-se o mesmo efeito de profundidade, através do
emprego de arcos paralelos na abóbada deste nicho central, que se destacam em
planos sucessivos, com molduras decoradas de forma individualizada.
Os nichos laterais albergam as estátuas de S. Miguel Arcanjo e de S. Francisco
Xavier, que se apoiam em mísulas e são sobrepujados por baldaquinos de concepção
idêntica aos de Yaguarón. A imagem de S. Miguel calcando o demónio é inspirada
na que se conserva naquele templo.
O ático repete a estrutura do de Yaguarón quanto às pilastras laterais encurvadas
e ao frontão, embora estejam ausentes os dois anjos de pé e surjam apenas as duas
figuras femininas que o ladeiam, sentadas no arranque do frontão curvo. Ao centro,
a figura de Cristo destaca-se num fundo de raios dourados.
Conservam-se ainda no interior da igreja dois retábulos laterais, que em nossa
opinião fizeram parte do conjunto desenhado por Sousa Cavadas, já que apresentam
uma estrutura e decoração semelhantes, embora muito mais simples.
O púlpito da igreja da Virgem da Candelária de Capiatá, embora não tenha um
suporte antropomórfico, mas sim uma coluna-balaústre decorada com cabeças de
anjos muito toscas, segue nos demais aspectos o modelo de Yaguarón. Apresenta
uma tribuna em octaedro, faces separadas por colunas torsas apoiadas em pequenos
quartelões, ou pilastras misuladas, sendo o bordo superior constituído por uma
cornija fortemente recortada, com projecções proeminentes. A decoração é também
idêntica à do púlpito de Yaguarón: as várias faces têm pinturas representando santos,
embora estas se apresentem emolduradas por arcos de volta perfeita encimados por
enrolamentos vegetais, que se repetem sobre as cabeças de querubim situadas no
registo inferior da varanda.
Os guarda-vozes dos púlpitos de Yaguarón e de Capiatá têm ambos forma piramidal.
O de Yaguarón apresenta a encimá-lo um remate mais exuberante, com grande halo
luminoso ornado de anjos, rodeando a pomba do Espírito Santo.
Este modelo de púlpito com guarda-voz circular ou de forma piramidal, predo-
minante em toda a região, deve ter-se inspirado em formas mais antigas, pois já nas
primeiras décadas do século XVIII, aquando de obras na antiga igreja de Yaguarón,
do tempo de Hernandarias, se mencionava a construção de um púlpito con chapitel30.
A sua estrutura geral segue modelos que eram usados igualmente nas missões
jesuíticas de Chiquitos, na actual Bolívia (S. Rafael, Santo Inácio). Igualmente em

30 GUTIÉRREZ, 1983: 287.


A encomenda a entalhadores portugueses nas missões franciscanas do Paraguai no século XVIII 449

Quito (Equador) encontramos púlpitos com estrutura idêntica em La Concepción,


El Sagrario, S. Francisco, Santa Clara, na igreja da Companhia de Jesus, etc.31.
Também em Capiatá é perceptível a ideia de um programa decorativo global, que
incluía não só os retábulos como as três cadeiras de braços, que conhecemos apenas
através de reprodução fotográfica. Estes móveis seguem protótipos europeus, já de
meados do século XVIII, apresentando pernas dianteiras contracurvadas, braços
terminando em volutas, espaldar com tabela em forma de violão, testeira ondulada,
com feixe de plumas central, e minuciosa decoração entalhada cobrindo quase todas
as superfícies.
Englobam-se neste conjunto de talha dois confessionários, que não estavam
visíveis no interior do templo em restauro aquando da visita efectuada, bem como o
púlpito, já acima referido. Segundo Josefina Plá, os confessionários repetem elementos
da decoração de Yaguarón (remate dos frontões em feixe de plumas, aletas laterais,
colunas torsas), revelando um desenho de igual qualidade, se bem que de execução
mais fruste32.
A empreitada do retábulo-mor de Capiatá denuncia mão indígena, talvez de um
discípulo de Sousa Cavadas formado no estaleiro de Yaguarón. Estamos em crer que
foi o próprio mestre português que riscou esta obra e orientou o início da fase de
execução, se bem que possivelmente não tenha acompanhado a ensamblagem, que
se encontrava concluída antes de 1767. Corroboram esta conjectura uma série de
aspectos bastante originais que se encontram em ambos os conjuntos de talha, fun-
cionando quase como marca pessoal do mestre português: as “aletas” contracurvadas
com motivo de reticulado, que surgem também, por exemplo, na decoração de talha
do altar-mor da matriz de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto, as cornucópias das
quais saem plantas e flores carnudas e vigorosas que existem no ático do retábulo de
Capiatá, idênticas às ramagens empunhadas pelos anjos do retábulo de Yaguarón, os
sacrários muito parecidos, rodeados por teoria de cabeças de querubim e de nuvens, o
emprego de cartelas assimétricas encerrando motivos florais, a exuberância revelada
no tratamento das folhagens e flores, e as botas da figura de suporte do púlpito de
Yaguarón, iguais às da figura do S. Miguel Arcanjo de Capiatá.
Encontramos em Yaguarón e Capiatá a marca muito evidente da talha do período
joanino, que atingiu o paroxismo barroco em Portugal sob a influência dos artistas
italianos, da importação de obras de arte e de tratados como o do padre Pozzo. Esta
corrente foi assimilada por Sousa Cavadas durante a aprendizagem em Portugal e a
estadia no Brasil. Não é de excluir que o mestre português se tenha feito acompanhar
de alguns oficiais luso-brasileiros, que poderão ter ficado no Paraguai depois da sua
partida, dando formação a artífices locais, que espalharam reinterpretações “mestiças”
deste estilo por diversos templos da região.
No risco das suas obras paraguaias, o artista utilizou com grande prolixidade todo
um novo vocabulário ornamental característico da talha joanina, que inclui conchas,

31 GIURIA, 1950: 131.


32 PLÁ, 1968: 28.
450 Maria José Goulão

leques de plumas, volutas, palmas, frisos de folhas e de plantas em botão, grinaldas e


festões floridos onde predominam as margaridas, rosas e girassóis. Associa-lhes motivos
arquitectónicos muito usados à época na metrópole, como a disposição côncava do
retábulo, as verdadeiras colunas salomónicas, os baldaquinos e sanefas com cortinados
ou cortinas com borlas, os fragmentos de arco ou volutas do frontão interrompido,
onde se sentam anjos ou figuras alegóricas femininas, com gestos amplos e graciosos.
É muito provável que Sousa Cavadas tenha contactado com o estilo da talha
joanina através da sua vertente portuense, já que deverá ter feito a sua aprendizagem
em oficinas nortenhas. É perceptível nas suas obras o gosto pelas formas naturalistas e
robustas, pelo partido marcadamente cenográfico, pela utilização de lambrequins, pela
abundância de anjos e elementos decorativos que caracteriza a talha portuense33. Na
igreja paraguaia de Yaguarón nota-se ainda, cruzada com esta influência predominante
dos modelos joaninos, a marca do rococó francês que chegou a Lisboa pouco depois
de 1730, visível na escolha de alguns motivos de florões e de concheados assimétricos.
O gosto rocaille surgiu no Norte de Portugal na segunda metade do século XVIII;
caracteriza-se por uma maior elegância, pelo emprego de jogos de curvas e contra-
curvas e de uma ornamentação de grande delicadeza, e pela utilização de remates
assimétricos e sinuosos e das características formas movimentadas e onduladas.
No Brasil, o apogeu do estilo barroco joanino dá-se entre 1730 e 1760. Os principais
conjuntos retabulares deste período são os da igreja de S. Bento do Rio de Janeiro
e da igreja de S. Francisco do Salvador da Bahia. A orientação estética comum é
fruto da influência da talha portuguesa do eixo costeiro Porto-Aveiro e sobretudo
da talha da igreja de S. Francisco do Porto.
A obra de talha da igreja do mosteiro de S. Bento do Rio de Janeiro é da responsa-
bilidade de frei Domingos da Conceição da Silva, natural de Matosinhos, como Sousa
Cavadas. Este conjunto de excepcional qualidade constitui um marco na evolução da
talha brasileira. O altar-mor e o arco cruzeiro apresentam composições mais tardias,
de estilo rococó. O trono eucarístico foi igualmente obra de outro entalhador, ficando
concluído apenas em 178934. A parte superior do retábulo de Yaguarón assemelha-se
na composição ao retábulo da capela-mor de S. Bento do Rio de Janeiro, mas há que
referir o brilhante efeito de profundidade obtido em Yaguarón, com a sequência de
arcos reentrantes, decorados com volutas laterais com motivo de reticulado, motivo
usado também nos confessionários.
Encontram-se similitudes com o retábulo de Yaguarón na obra de talha da
igreja dos Terceiros de S. Francisco da Penitência do Rio de Janeiro, começada em
1726. Trata-se de uma igreja-relicário, com o interior totalmente revestido a talha
dourada, cujos autores foram Manuel de Brito e Francisco Xavier de Brito, ambos
portugueses. O retábulo-mor, composto de baldaquino e de grandes e pesadas
colunas reentrantes, apresenta escultura decorativa de grande qualidade, volumosa,

33 BORGES, 1986: 50 e segs.


34 DIAS, 1999: 463-464; ROCHA, 1991.
A encomenda a entalhadores portugueses nas missões franciscanas do Paraguai no século XVIII 451

dominada pelos motivos de tarjas de folhas de acanto de acentuada verticalidade


e já assimétricas35.
Sabemos que entre cerca de 1742 e 1748, Sousa Cavadas permaneceu no Rio
de Janeiro e em Minas Gerais, tendo certamente podido apreciar algumas das novas
obras de talha e eventualmente colaborado na sua execução. A talha das grandes
igrejas matrizes mineiras deve ter exercido sobre ele uma poderosa influência. O
coroamento do retábulo de Yaguarón é semelhante, na composição e na iconografia,
ao de Nossa Senhora do Pilar de São João del Rei.
O retábulo da igreja de Nossa Senhora da Conceição, matriz de Catas Altas, em
Minas Gerais, filiado na talha de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto, apresenta
igualmente aspectos que nos permitem aproximá-lo do trabalho de Sousa Cavadas,
sobretudo no que concerne ao remate do coroamento e aos motivos dos frisos verticais
da boca da tribuna, formando volutas preenchidas com reticulado.
A figura de Deus Pai no medalhão central de Yaguarón, de longas barbas e olhos
amendoados, que lhe conferem um ar oriental, segurando o globo celeste e o ceptro, é
muito parecida com semelhantes figurações nos retábulos da igreja da Ordem Terceira
de S. Francisco de São João del Rei e da igreja de S. Francisco de Assis de Ouro
Preto, ambas obras mais tardias (entre 1778 e 1781), de António Francisco Lisboa,
o Aleijadinho. Faz igualmente lembrar a cabeça da figura de um dos Apóstolos, do
mesmo escultor, que se encontra no santuário do Senhor Bom Jesus de Matosinhos
de Congonhas do Campo. A inclusão de figuração tão idêntica na obra de talha de
Yaguarón, cerca de trinta anos mais cedo, não deixa de causar alguma perplexidade.
No entanto, o relevo do Omnipotente inserido num medalhão central foi usado em
Portugal já antes de 1750, como sucedeu na capela do Calvário em S. Francisco de
Évora, concluída na primeira metade da centúria.
Na região paraguaia, a localização física, o efeito da selva ou as relações com
as culturas indígenas tiveram um peso muito significativo na evolução da prática
artística. Fundações como as de Yaguarón e Capiatá situam-se em lugares que podem
considerar-se de periferia geográfica. No entanto, estes conjuntos artísticos, aparen-
temente periféricos, porque afastados dos grandes centros da Coroa espanhola, como
Lima, Cuzco ou Quito, não podem pura e simplesmente ser vistos como produções
periféricas ou provinciais.
Estas obras de talha, embora se situem em território sob domínio da Coroa espa-
nhola, não se assemelham às restantes obras de outros territórios sul-americanos, nem
às obras produzidas em Espanha. Podem, contudo, acercar-se de outros importantes
centros artísticos, como o norte de Portugal e as regiões do Rio de Janeiro e de Minas
Gerais, por onde itinerou Sousa Cavadas.

35 BARATA, 1975.
452 Maria José Goulão

Figura n.º 1
Exterior da igreja de
S. Boaventura de Yaguarón,
Paraguai

Figura n.º 2
Interior da igreja de
S. Boaventura de Yaguarón,
Paraguai
A encomenda a entalhadores portugueses nas missões franciscanas do Paraguai no século XVIII 453

Figura n.º 3 – Retábulo da capela-mor, igreja de


S. Boaventura de Yaguarón, Paraguai

Figura n.º 4 – Figura de suporte do púlpito


da igreja de S. Boaventura de Yaguarón,
Paraguai

Figura n.º 5
Retábulo lateral proveniente da igreja de S.
Boaventura de Yaguarón,
igreja da Santíssima Trindade, Asunción
454 Maria José Goulão

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A presença do Brasil
no Santuário do Bom Jesus do Monte (Braga)
Natália Marinho Ferreira-Alves

Introdução
O Santuário do Bom Jesus do Monte ainda hoje mantém a sua aura poderosa junto
das nossas gentes, mormente as do Norte do país. Com efeito, quem se desloque a
Braga e suba a estrada íngreme que nos conduz até à basílica e, depois desta, até ao
Pátio dos Evangelistas, ou se preferir, e esta é a forma mais recomendada, faça toda a
escalada a pé, poderá facilmente constatar que ainda nos nossos dias, a afluência da
população é um facto, sendo significativo o número daqueles que cumprem promessas
feitas num momento de aflição da sua vida. Aquela força instintiva e anímica, ditada
pela Fé no Senhor Crucificado, leva muitos a fazer o caminho simbólico do Calvário,
revendo-se mimeticamente na Paixão de Cristo, seguindo a sua Via Crucis até ao altar
mor da Basílica, onde está representada a Crucifixão, e daí, continuando o percurso
ascensional, em direcção às últimas capelas que lhes irão revelar a Ressurreição e a
Ascensão do Senhor, com a certeza das suas preces serem atendidas e levando dentro
de si, no regresso, a promessa da sua redenção.
Santuário que servirá de modelo a muitos outros santuários cristológicos e mario-
lógicos espalhados de norte a sul de Portugal, foi para Germain Bazin “le sanctuaire le
plus parfait qu’ait realisé le christianisme”1, tendo despertado um interesse crescente
junto de estudiosos2 desde o século XVIII e, particularmente, a partir da década de
oitenta do século XX.
Os santuários cristológicos são das manifestações mais importantes da religiosidade
portuguesa que necessitam de um estudo profundo já que as explicações que têm
vindo a ser dadas, vinculando-os a esquemas de outras regiões europeias – como
por exemplo, a associação do Bom Jesus aos desígnios que presidiram à criação do
santuário de Varese, hoje posta em causa3 – nem sempre reflectem a nossa realidade

1 BAZIN, 1963: 218.


2 PEREIRA, 1783; MASSARA, 1988; PEREIRA, 1989; ALMEIDA, 1991; FERREIRA-ALVES, FERREIRA-ALVES,
1992; LIMA, 1996; BEZERRA, 2002.
3 ALMEIDA, 1991: 74.
458 Natália Marinho Ferreira-Alves

complexa, não tendo sido ainda definida a linha demarcatória entre os locais dedicados
à devoção da Cruz e os santuários propriamente ditos que reproduzem os Passos da
Paixão.
Magnífica e gigantesca estrutura, com uma densa linguagem iconográfica ligada à
Paixão de Cristo, a que o barroco conferiu toda uma simbologia complexa, o Santuário
do Bom Jesus do Monte é, a nosso ver, o exemplo mais elaborado dos sacri monti do
Mundo Católico, e aquele que melhor representa o espírito da devotio moderna, já
que dá uma resposta directa às necessidades da gente simples, que precisa sentir de
forma palpável o poder da visualização imagética no cumprimento dos seus actos
devocionais, mas que também se dirige aos espíritos eruditos a quem a complexidade
simbólica faz mergulhar nos escritos que servem de inspiração aos modelos artísticos.
Destacando-se pela sua monumentalidade, o santuário surge inserido numa
linha de representações artísticas onde se enquadram as Jerusaléns, as Viae-crucis,
os Calvários e os Passos da Paixão e, embora obedecendo ao mesmo espírito ligado
à Paixão de Cristo, desde a sua génese até à organização actual, desenvolve uma
proposta espiritual de complexa elaboração ao longo da subida vertiginosa.

1. O Santuário do Bom Jesus do Monte: fases evolutivas


Para se compreender verdadeiramente a evolução do Santuário do Bom Jesus
desde a sua estrutura inicial, temos de ter sempre presente o significado profundo que
representava para todo o Cristão a peregrinação a Jerusalém, o centro do Mundo, o
local onde Cristo morreu e ressuscitou, e onde, segundo as Sagradas Escrituras, irá
acontecer o Juízo Final, constituindo, por consequência, um ponto axial de vivência
pessoal e colectiva.
Com o impedimento causado pela ocupação islâmica dos lugares sagrados, nome-
adamente após a tomada de Bizâncio (1453), seguida da queda de Jerusalém (1516),
e conquista da Palestina pelos Turcos Otomanos, era imperioso criar um mecanismo
de transferência para essa prática tão ardentemente desejada, representando-se de
forma imaginária a cidade de Jerusalém, que servira de palco aos últimos momentos
de Cristo.
A esta situação não é alheio o facto de, ao longo da Idade Média, uma das
temáticas mais frequentes em pintura, escultura e gravura ser a recriação de Jeru-
salém e os Passos da Paixão. Por outro lado, e como tem vindo a ser apontado por
vários autores4, os santuários com escadórios e capelas, buscando a reprodução do
percurso feito por Cristo a caminho do Gólgota na cidade Santa, haviam começado
a generalizar-se a partir do século XV, designadamente na Alemanha, sofrendo um
impulso notório no século XVII.
A realização das peregrinações de substituição, no enquadramento da devotio
moderna, tornam necessária uma meditação por parte do crente praticada na nova

4 Entre outras, refiram-se as obras acima mencionadas de Germain Bazin e Carlos Alberto Ferreira de Almeida.
A presença do Brasil no Santuário do Bom Jesus do Monte (Braga) 459

espacialidade dos montes sacros onde, graças ao precioso auxílio da Arte, se procede
a uma encenação mais verosímil do Calvário.
A este movimento místico aderiram as ordens religiosas em Portugal, surgindo
espaços adequados à meditação, quer nas cercas, quer nos claustros, onde a existência
de capelas alusivas à Paixão de Cristo, juntamente com fontes de água corrente,
propiciavam esse recolhimento, sendo designadas por Jerusaléns ou, muito expres-
sivamente por desertos. Um dos mais famosos desertos da época Moderna, ligado à
Ordem dos Carmelitas Descalços, foi o do Buçaco, pela sua extensão e tentativa de
reprodução aproximada do modelo da via crucis de Jerusalém já que, de acordo com
a descrição feita, nos inícios do século XVIII, o percurso que contemplava os Passos
da Prisão e os Passos da Paixão do Senhor, “ tinha as mesmas medidas como estão
em Jerusalém”5. D. João de Melo, 49º Bispo de Coimbra e 14º Conde de Arganil
(1684-1707), seria o grande responsável pela organização monumental do espaço e,
de tal forma era vívido o seu sentimento religioso, que frequentemente se recolhia
na ermida de Nossa Senhora da Expectação (a primeira das onze reservadas para
os religiosos), “deixando os regalos do seu Palácio, & os divertimentos da Cidade”6.
Outro exemplar famoso, e este directamente ligado com o nosso tema7, a Jerusalém
que existia na cerca do Convento do Pópulo, em Braga, mandada construir nos inícios
de Seiscentos pelo Arcebispo D. Agostinho de Castro (1588-1609), e que incluía,
para além de cinco fontes, sete ermidas dedicadas aos Passos da Paixão, que eram
rematadas por uma grande varanda de ampla vista.
O Santuário do Bom Jesus surge, assim, neste contexto de grande misticismo do
Mundo Católico. Situado na freguesia de Tenões (Braga) temos de buscar os seus
primórdios ao local onde, no século XIV, se venerava a Santa Cruz; aí seria mandada
construir pelo Arcebispo D. Jorge da Costa, em 1494, uma pequena ermida com
a mesma invocação8, e que seria reedificada e ampliada no século seguinte, por
empenho de D. João da Guarda, Deão da Sé de Braga, como consta de uma inscrição
existente na parede do Escadório das Virtudes: “Esta igreja ou capella mandou fazer
o Prothonotário D. João da Guarda, Deão de Braga e Lamego, Conde Palatino do
Concelho de El Rey por sua devoção aos 17 de Setembro de 1522”9.
O ano de1629, é a data da construção da quarta ermida (ou capela), erguida no
mesmo local já que, tendo-se arruinado a anterior, “alguns Devotos a reedificaram
e lhe collocarão huma Santíssima Imagem de Jesus Cristo na figura de Crucificado
com o título de =Bom Jezus do Monte= e depois no ano de 1629 instituirão huma
confraria debaixo da glorioza invocação do mesmo dulcíssimo nome do Bom Jezus”10. A
partir desta data, a Confraria do Bom Jesus do Monte, numa tentativa de promover a
ampliação do santuário, vai procurar angariar fundos graças à realização de procissões,

5 COSTA, 1868: 46 (II).


6 COSTA, 1868: 48 (II).
7 ALMEIDA, 1991: 73-74.
8 FEIO, 1984: 22.
9 “como consta da lapida que está metida na parede da escadaria das Virtudes”. Ver COSTA, 1932: 3, 777.
10 MASSARA, 1988: 35, nota 6.
460 Natália Marinho Ferreira-Alves

encenações sacras e músicas; na sequência destes esforços, construiram-se pequenas


ermidas onde se representavam os tormentos do Senhor, que eram nichos “muito
pequenos nem mais figuras lhe cabião pela pequenez das mesmas capellas”11, bem
como alguns quartéis para os peregrinos, cujo número ia aumentando.
A necessidade de se colocarem imagens alusivas aos temas ligados à Paixão de
Cristo, leva à celebração de um contrato, em 2 de Abril de 1691, entre o Reverendo
D. Francisco Pereira da Silva, Deão da Sé de Braga e Juiz da Confraria do Bom Jesus,
e os “oficiais” da mesma, com o escultor João Barbosa, morador atrás dos Açougues,
pelo qual ficou acordado que, pelo preço de cinquenta e cinco mil réis
elles mandarão fazer huma capella para o emterro no sitio do Bom Jezus do Monte e para a dita
cappella herão nessessarias des feguras que são hum Christo sobre a sepultura e Nossa Senhora
e dous profetas e dous anjos e tres Marias e hum São João […] as quais fará de bom barro e
muito bem feitas com todo o primor da arte e as asentara nos lugares comvenientes e cada huma
das ditas feguras bem asentadas e vistozas que fiquem com todo o aparato necessário a dita obra
e as pora cozidas muito bem que fiquem perfeitas e acavadas de tudo na mão que pintallas e
elles dittos offeciais farão o tumolo sobre que elle dito mestre porá o Cristo com o lançol feito de
barro com toda a perfeiçãoa qual obra dará feita e acavada por todo o mes de Agosto […] e
tanto que tiver as ditas feguras postas e asentadas na dita capella serão vistas por mestres da dita
arte e tendo algum defeito a refará elle dito mestre a sua custa e não a refazendo a mandarão
elles ditos offeciais reformar a custa delle dito mestre e tudo elle pagara de sua caza e fazenda12.
Podemos acompanhar esta faceta seiscentista do santuário ao lermos as palavras
de Carvalho da Costa: “Aqui está em huma fermosa Capella, que fizerão devotos, o
Bom Jesus do Monte, imagem milagrosa, não visitada de muita romagem, mas assistida
de Ermitaens, & festejada com grandes despezas pelos da Cidade”13.
A importância crescente da Confraria do Bom Jesus, no contexto religioso e social
bracarense, é patente num contrato de 6 de Março de 1706. Nesta data, alguns mem-
bros da Confraria (o Padre Luís de Távora, João da Mota, os mercadores Frutuoso do
Vale Campos e Pedro Rodrigues, Manuel Pereira de Araújo, morador na rua Nova de
Bouça e Custódio de Oliveira, tabelião geral em Braga) foram contratados pelos juízes
da Confraria do Santíssimo Sacramento da Sé de Braga (António Teixeira Coelho,
fidalgo de Sua Magestade, morador na rua do Alcaide, e o Reverendo Bento Maciel,
Cónego Prebendado da Sé de Braga), para organizarem esquemas festivos de grande
impacte na cidade num dos dias mais importantes do calendário litúrgico católico:
huma dança de estrumentos e duas folias huma de brancos e outra de pretos todas tres
muito lustrosas e bem bestidas com bons instromentos bem afinados e as folias com boas bozes
e muito lustrozas e cada folia não levara mais que hum tabor no meio bem destro e aprazível
para a porsição do Domingo do Senhor e as porão na rua as oito oras para que a porcição
possa sair sedo e os coros convenientes para que per rezão das ditas danças e folias não aja

11 MASSARA, 1988: 35, nota 9.


12 FERREIRA-ALVES, FERREIRA-ALVES, 1992: 463-464.
13 COSTA, 1868: 164 (I).
A presença do Brasil no Santuário do Bom Jesus do Monte (Braga) 461

dilação na porcição […] e duas comedias huma de duellos de iguenio (sic) e fortuna e a outra
o pallo e clarins bomos muito lustrozas as feguras bem vestidas e ornadas com boas muzicas
viollas e entremezes para estar no tabolado nos dias que lhe forem asinados na semana despois
do dito Domingo do Senhor […] e sendo cazo que a porcição não possa sair no dito dia […]
representasem se as comedias nos dias que lhe forem asinados14.
De acordo com relatos da época15, enquanto a devoção crescia ao Senhor Bom
Jesus do Monte, levantaram-se questões de grande gravidade entre as sucessivas
Mesas e o Deão da Sé de Braga, Reverendo D. Francisco Pereira da Silva, com a
ingerência directa do Deão nos destinos da Confraria, motivada pela apetência dos
proventos das esmolas. Esta situação levaria a um abandono por parte da Mesa de
1710, ficando o santuário sem o governo da Confraria, com consequências lamentáveis
nos anos que se seguiram, já que se assistiu a um abandono total, ficando em ruína
as construções seiscentistas existentes. Só em 7 de Junho de 1722, data em que o
Arcebispo D. Rodrigo de Moura Teles (à frente da Diocese de 5 de Junho de 1704
a 4 de Setembro de 1728) se assumiu como Juiz da Confraria, se restabeleceria a
ordem nos destinos do santuário.
Da intervenção pessoal do Arcebispo Primaz, entre 1722 e 1725, irá surgir a
Jerusalém Sancta restaurada e reedificada (Figura n.º 1) assumindo-se uma planificação
arquitectónica onde, a partir de um pórtico monumental, se iniciava o percurso
ascensional até à igreja “feita à romana, de forma quasi redonda”16. Dessa via crucis
faziam parte: para além do pórtico com as armas do arcebispo (Figura n.º 2), oito
capelas de planta quadrada – como as da Ceia e do Horto (Figura n.º 3) que ainda
subsistem – onde se contemplavam os Passos da Ceia à Ascensão, várias fontes
alegóricas ladeando os caminhos em rampa, e o Escadório dos Cinco Sentidos (Figura
n.º 4), tudo inserido num enquadramento paisagístico natural, ainda sem grande
intervenção da mão do Homem, como iremos ver mais tarde.
Esta primeira versão organizada do santuário iria sofrer modificações diversas ao
longo dos séculos XVIII e XIX, até à sua estrutura monumental actual. Assim, de
1725 até 1740, e de acordo com o inventário datado de 1740, as capelas passaram a
ser doze “todas feitas ao moderno, com suas imagens do Senhor, as quais sam todas
em vulto, e mais santos e seus farizeos todos em vulto”17. Entre 1749 e 1771, graças
ao empenho de Manuel Rebelo da Costa, comerciante abastado de Braga e membro
da Confraria, foi dado um novo impulso ao santuário, tendo corrido por sua conta
as obras do Terreiro dos Evangelistas, com as três capelas de planta poligonal onde
são tratados os temas da Aparição de Cristo a Madalena, o Encontro de Emaús e a
Ascensão do Senhor, as quatro fontes e o chafariz central.

14 FERREIRA-ALVES, FERREIRA-ALVES, 1992: 464-465.


15 MASSARA, 1988: 36, nota 12.
16 PEREIRA, 1989: 94.
17 LIMA, 1996: 25, nota 63 (I).
462 Natália Marinho Ferreira-Alves

Porém, será com o Arcebispo D. Gaspar de Bragança18 que assistimos a um novo


período áureo para a história do santuário. Figura marcante na sua época, actuando com
a magnanimidade própria de um príncipe de sangue, o arcebispo ficou conhecido pelo seu
espírito caritativo19 e pela sua paixão pela música, mas também marcando o seu ministério
por uma preocupação constante na busca de uma religiosidade esclarecida, protegendo e
incentivando o culto cristológico nos locais onde se revivia a Paixão de Cristo20.
O Bom Jesus do Monte será, por inerência, objecto da sua particular atenção,
patente logo na primeira visita que faz após a sua chegada a Braga. Os festejos que
manda celebrar no santuário para comemorar o seu aniversário; as esmolas que deixa
sempre que aí se desloca; a aprovação da licença dada para se colocar o Santíssimo
Sacramento na igreja21; a sua intervenção directa junto de Roma, para que fossem
concedidas indulgências e outros privilégios à Confraria pelo Papa Clemente XIV; a
verba avultada deixada em testamento; e a imagem de Cristo Crucificado que manda
fazer em Roma e para ser colocada na capela mor, e que foi levada em procissão a 8
de Setembro de 1779, são algumas das manifestações da protecção directa do Prelado.
Porém, a década de oitenta irá ser decisiva para os destinos do santuário. Conside-
rada de pequenas dimensões em função da crescente afluência de peregrinos, a igreja
do tempo da campanha de D. Rodrigo de Moura Teles é demolida, mandando-se
construir uma nova, de grandes proporções e de acordo com os novos códigos estéticos
vigentes. Escolhido o projecto do arquitecto Carlos Amarante, os trabalhos iniciaram-
se com o lançamento da primeira pedra em 1 de Junho de 1784, prolongando-se os
trabalhos até 1811 (Figura n.º 5). O local escolhido para a nova igreja, numa posição
suficientemente elevada, enquadrava-se nas estruturas arquitectónicas existentes,
tendo por trás o Terreiro dos Evangelistas, construindo-se o Escadório das Virtudes,
também projectado por Carlos Amarante, no espaço que ficava entre a igreja do
tempo de D. Rodrigo de Moura Teles e a nova.
A partir da conclusão da nova igreja, procedeu-se a uma série de encomendas
significativas relativas ao seu interior, desde a capela mor e o conjunto escultórico
notável representando o Calvário, até aos demais retábulos, imagens, pinturas,
paramentos e alfaias litúrgicas.
O século XIX traria consigo modificações importantes, efectuando-se uma
remodelação em 1885, como podemos constatar no projecto da autoria do Tenente
António Augusto Pereira. Desta época data uma reestruturação do traçado, para que
a subida fosse mais suave, fazendo-se a demolição de sete capelas do século XVIII
(Prisão de Cristo, das Trevas, da Flagelação, do Ecce Homo, do Caminho do Calvário

18 D. Gaspar de Bragança (1716-1789), era um dos célebres Meninos de Palhavã, filho ilegítimo de D. João V, mas
reconhecido pelo monarca, como seus irmãos. Nomeado arcebispo em 1756, dá entrada em Braga em 28 de Outubro
de 1759, “com huma pompa e magnificência que igualou aos grandes triunfos, com que a famosa Roma recebia os
seus imperadores”. Ver FERREIRA-ALVES, 1987: 37, nota 5.
19 Segundo a tradição, mandava distribuir todos os anos pelos pobres 27 000 cruzados. Ver Nobreza de Portugal e do

Brasil, 1960: 604 (I).


20 O santuário do Senhor de Perafita, em Alijó (Trás-os-Montes), é disso testemunho, já que foi graças à protecção

directa de D. Gaspar que foram feitas as obras de vulto, construindo-se a igreja cuja traça é de grande erudição.
21 A 1 de Outubro de 1765. Ver LIMA, 1996: 51 (I).
A presença do Brasil no Santuário do Bom Jesus do Monte (Braga) 463

e da Crucifixão), que seriam substituídas pelas capelas octogonais, introduzindo-se


na via crucis o passo do Cireneu22.
Da mesma forma, o enquadramento paisagístico que, desde sempre mereceu o
maior interesse, no século XIX vai receber um contributo importante com a planta-
ção de carvalhos, de quinhentas plantas coníferas vindas dos viveiros do Buçaco, e
com a oferta de uma colecção de plantas oferecidas pelo Visconde Villar d’Allen23,
evidenciando-se simultaneamente uma grande preocupação com o abate de árvores,
sendo utilizada muitas vezes a sua madeira para as obras no santuário. Este cuidado
com a mata deve ser entendido não numa perspectiva lúdica, mas sim no contexto
da cenografia sacra, onde se incluíam as capelas devocionais, a igreja com o Calvário
monumental, os escadórios e as fontes de onde jorrava água, gerando um clima
propício à meditação sobre a Paixão de Cristo.

2. O Santuário como paradigma da encomenda artística


Ao longo da sua evolução bem complexa até aos nossos dias, o santuário constitui
um exemplar único onde se cruzam promotores, benfeitores e artistas, tendo como
objectivo último a obra extraordinária que atravessou séculos e que até hoje permanece
fiel ao espírito inicial da via dolorosa.
Entre os principais promotores das diversas campanhas construtivas devemos
referir, para além da Confraria do Bom Jesus do Monte, os Arcebispos D. Rodrigo de
Moura Teles e D. Gaspar de Bragança. Os dois ilustres prelados aparecem também
na qualidade de benfeitores, já que D. Rodrigo de Moura Teles deixa em testamento
cinco mil cruzados para as obras, enquanto D. Gaspar de Bragança deixa, de igual
modo, cem moedas de ouro para o mesmo efeito.
Na campanha de D. Rodrigo de Moura Teles (1722-1725), o responsável por ele
escolhido para a execução do planta do percurso, com início no pórtico e terminando
na igreja, teria sido Manuel Pinto de Vilalobos, surgindo-nos os nomes de alguns
artistas como o escultor António Campos Peixoto e o pedreiro Ambrósio dos Santos.
Posteriormente, ao longo do século XVIII, e por toda a centúria seguinte, assistimos
à participação de mestres pedreiros, de escultores, pintores e outros artistas, que
contribuíram de forma significativa para a concretização das aspirações dos enco-
mendadores. Se bem que alguns desses artistas ainda permaneçam mergulhados no
anonimato, hoje conseguimos estabelecer uma cronologia razoável para as obras
efectuadas, com a identificação dos seus autores.
Assim, e unicamente a título de exemplo, escolhemos para os séculos XVIII e XIX,
os seguintes nomes, ligados aos respectivos ofícios. Do século XVIII realçamos como:
arquitectos, para além de Manuel Pinto de Vilalobos, atrás mencionado, Carlos Luís Ferreira
da Cruz Amarante, ou como é mais conhecido, Carlos Amarante (1780 – projecto da
nova igreja do Bom Jesus e Escadório das Virtudes); entalhadores, João Bernardo da Silva
22 MASSARA, 1988: 44.
23 LIMA, 1996: 77 (II).
464 Natália Marinho Ferreira-Alves

(1765 – retábulo mor); João Martins Coelho (1802 – retábulo mor da nova igreja); Manuel
José Correia (1802-1803 – feitura do retábulo mor); José Francisco Moreira Torres e José
António (1803-1805 – retábulos laterais e colaterais); João António de Sousa Azevedo
(1813 – colabora na execução dos bancos para a capela mor); escultores, António Monteiro
(1729 – esculturas para a capela do Descimento da Cruz); António de Campos Peixoto
(1745-50 – várias esculturas em pedra); Domingos Ferreira (1755-1756 – uma figura para o
tanque); Domingos António (1759-60 – imagem de um fariseu para a capela do Calvário);
José de Sousa, Manuel de Sousa e António de Sousa (1770-1771 – quatro profetas para o
pátio da igreja); Manuel Joaquim Alves de Sousa Alão (1807 – modelo para as esculturas
para o Calvário; 1808 – desenho para as estátuas dos Evangelistas para a fachada); João
Monteiro da Rocha (1807 – execução das esculturas para o Calvário); José Domingues
(1808 – execução das estátuas dos Evangelistas para a fachada); pedreiros, Diogo Soares
(1744 – Fonte das Cinco Chagas); Ambrósio dos Santos (1749-1751 - plintos das figuras
do Escadório dos Cinco Sentidos); Dionísio Félix de Gouveia (1750-1752 – uma capela);
João Domingues (1752-1753 - ilhargas das capelas do Calvário e do Senhor da Cana
Verde); António Ferreira, Cristóvão José Farto, Caetano Lourenço, Francisco Soares, e
Manuel Vivas (1762-65 – Capelas do Terreiro dos Evangelistas); pintor, Pedro Alexandrino
(oito painéis pintados a óleo, que se achavam colocados nos seis altares da igreja, e dois
nos lados da capela-mor); pintores-douradoures, João Coelho (1741-1742 – pinturas das
figuras para a Capela da Ressurreição); Filipe Dias (1779 – pintura dos bustos-relicários);
António José da Rocha (1809 – pintura das figuras do Calvário e do baldaquino; 1812
– douramento do retábulo do Santíssimo Sacramento).
O papel desempenhado pela Confraria enquanto entidade promotora das obras, ou
pelos seus confrades, individualmente, é um dado muito importante a reter. A figura, a
todos os títulos notável, de Manuel Rebelo da Costa, comerciante bracarense abastado
“confrade e benfeitor”24 que, a expensas suas, suporta a construção do Terreiro dos
Evangelistas, entre 1750-1760, é um dos exemplos mais expressivos do significado da
“esmola” para o próprio e para a comunidade; com efeito, menciona que deu a quantia
avultada de 66$360 réis de esmola para se pagar a José de Sousa e seus irmãos (Manuel
de Sousa e António de Sousa) “huma fonte que fizerão pegado a ultima cappella nova”;
mais outros 38$400 réis para pagamento de uma escultura para a referida fonte, e por
outra para a fonte que, entretanto, fazia Ambrósio dos Santos pegada à capela nova
que se fez no Terreiro dos Evangelistas; e ainda mais 36$520 réis para pagar a Ambrósio
dos Santos por uma fonte semelhante àquela que havia feito José de Sousa “no terreiro
pegado a ultima cappella nova que se fez no terreiro grande”25.
As esmolas que eram recebidas pela Confraria para as obras do santuário eram des-
tinadas especificamente para algo concreto, como podemos verificar pelos lançamentos
feitos no Livro dos Recibos de 1758-1792 das seguintes dádivas: do bracarense Gabriel
Rodrigues Nunes, de 45$478 réis e 17$148 réis, para a construção de uma fonte no
terreiro grande, de 190$470 réis para a capela que se fez “a porta das Casas do Cazeiro”,

24 MASSARA, 1988: 50, nota 72.


25 MASSARA, 1988: 109-110.
A presença do Brasil no Santuário do Bom Jesus do Monte (Braga) 465

e de 6$400 réis para ajuda das pinturas do escadório; de Manuel Simão da Costa,
que deu 95$236 réis, para a capela acima mencionada; de José Félix, que ofereceu de
esmola 14$320 réis para os frontais da igreja; e ainda da preta Inácia Ana do Paraíso
cuja esmola de 22$400 réis foi utilizada para a pedra do púlpito do lado direito26.
Hoje, pelos estudos que têm vindo a ser feitos, sabemos que as grandes obras de
remodelação do santuário que foram efectuadas ao longo de todo o século XIX, só
foram possíveis com a ajuda da burguesia enriquecida de Braga, do Porto e de Lisboa.
O bracarense João António dos Santos Braga, residente à época27 no Porto, deu
generosamente 48$800 réis para a imagem de Nossa Senhora (e respectiva pintura)
que fazia parte do conjunto escultórico do Calvário. Se são mencionadas quantias
avultadas (36$800 réis) como aquela que deu António da Cunha, da freguesia de
São Jerónimo, e que foi utilizada para a feitura de uma das Santas Mulheres, outras
menores não devem ser ignoradas; assim, de uma relação de pessoas de Braga, podemos
elencar: 7$200 réis, da viúva de José Custódio de Magalhães, da esquina da rua da
Avenida; 1$600 réis, de António José de Azevedo, da rua da Água; 6$400 réis, do
Padre Carlos José de Araújo, da rua Nova, verbas que foram aplicadas no pagamento
da pintura das imagens de Maria Madalena e de São João Evangelista28. Estes exemplos
irão repetir-se de forma sistemática, mantendo-se, ou não, o anonimato.
Entre os benfeitores que mais reconhecidamente contribuíram para o engrande-
cimento do santuário destaca-se, em primeiro lugar, Pedro José da Silva, a quem a
Confraria homenageou com uma lápide comemorativa em 1934, ano do 1.º centenário
do seu falecimento29. Figura para sempre ligada aos destinos do Bom Jesus do Monte,
vai desempenhar um papel relevante no andamento dos trabalhos, quer fazendo dádivas
sucessivas, quer estimulando com o seu próprio exemplo o grupo de comerciantes de
Lisboa, cuja devoção serviu de sustentáculo à gigantesca empreitada.
Pelos elementos que atrás apontámos, podemos fazer uma ideia do que repre-
sentaram as esmolas sucessivas de Pedro José da Silva: em 1814, paga as imagens
dos oito soldados (cada um custando 30$000 réis) e as dos dois ladrões (cada um
custando 32$000 réis), para figurarem no Calvário; mas, entre as muitas outras
ofertas, mereceu na época especial destaque os oito painéis da autoria do pintor de
Lisboa Pedro Alexandrino, que foram colocados na igreja em 1809. Com efeito, pela
importância do montante e pelo contributo artístico que representava, foi registado
o seguinte: “a esta Meza se fizeram patentes os magníficos painéis para os altares do
sanctuario do Bom Jesus, que tinha dado de esmola para o mesmo sanctuario Pedro
Joze da Silva hum dos maiores devotos deste sanctuario, pelo que nesta Meza se
determinou que em agradecimento se lhe fizesse huma carta de agradecimento”30.

26 MASSARA, 1988: 117, 118-119.


27 1811. Ver LIMA, 1996: 148, nota 613 (I).
28 LIMA, 1996: 148, notas 612 e 615 (I).
29 Texto da lápide: “Homenagem da Confraria do Bom Jesus do Monte ao grande benemérito Pedro José da Silva no

1.º centenário do seu falecimento 17 de Março de 1934”.


30 LIMA, 1996: 151 (II).
466 Natália Marinho Ferreira-Alves

Neste contexto onde analisamos os benfeitores, entre os finais de Setecentos e ao


longo do século XIX, são relevantes os contributos vindos de várias zonas do “Império
do Brasil”, como Rio de Janeiro, Pernambuco e Minas Gerais31. Os donativos vindos
de terras brasileiras cedo se revelaram vitais para os destinos do santuário, cuja
ampliação exigia somas cada vez mais avultadas. A dádiva feita, em 23 de Junho de
1857, pela Baronesa de Gatamarates, da cidade do Rio de Janeiro, por intermédio de
Constantino Gomes de Faria, pela qual “tres peças douro para ser aplicado em quatro
rimas de cortinas para as duas portadas do Santíssimo Sacramento”, é reveladora de
uma devoção fervorosa ao Bom Jesus no Império do Brasil.
A admissão de Irmãos surge, desta forma, como um dos processos a implementar
para permitir a continuidade das obras. A 5 de Janeiro de 1862 é assinada uma
procuração autorizando uma Comissão a admitir Irmãos para a Confraria em
“todo o Império do Brasil”, sendo mencionados dois anos depois (1864), no dia 21 de
Abril, António José Gonçalves Braga e Francisco Jorge de Oliveira, vindos do Rio
de Janeiro, e então residentes em Braga, como membros da Comissão que “n’aquella
cidade Império do Brazil se quizerão encarregar da acquisição de entrada de irmãos
para a nossa real Confraria do Senhor Bom Jesus do Monte”.
A partir da acção desenvolvida pela Comissão, os donativos tornam-se frequentes
como podemos constatar pelos exemplos que passamos a referir: em 6 de Janeiro de
1864, foi lida uma carta do “Prezidente e thesoureiro da commissão instalada no Rio
de Janeiro remetendo uma letra”; em 22 de Março de 1895, foi apresentada à Mesa,
pelo tesoureiro das esmolas, a quantia de vinte e quatro mil reis que lhe fora entregue
por ordem “do bemfeitor Joaquim Colaço Dias, da cidade de Pernambuco”; em 3
de Junho de 1900, foram oferecidas vinte e duas libras em ouro por José Gonçalves
Guimarães, residente na rua do Senado, número um, da cidade do Rio de Janeiro
“como promessa e com applicação a obras”; e em 5 de Agosto de 1900, foram oferecidos
cem mil réis por D. Luísa Joaquina Martins Guimarães, mulher de José Gonçalves
Guimarães, para “applicação a obras ou despezas correntes do mesmo sanctuário”.
Se o termo para aplicação nas obras é uma constante, casos há, porém, que aparece
especificado o destino do donativo, como é o caso da remessa de quarenta e cinco palmas
“sendo cinco brancas para o altar do Santíssimo e as outras quarenta para distribuir pelos
altares do templo”, por parte de D. Contança Deolinda de Vieira Teixeira, residente
no Rio de Janeiro, rua das Palmeiras, numero vinte e cinco (18 de Junho de 1900).
Outro aspecto interessante relativamente ao apoio vindo de além-mar, são os legados
deixados ao santuário que nos fornecem elementos preciosos para a compreensão da
mentalidade religiosa da época. Assim, temos conhecimento de montantes elevados
provenientes de várias regiões do Brasil, tais como: da cidade da Bahia, em 7 de
Julho de 1883, 295$155 réis provenientes do legado de Manuel Gonçalves Pereira
Guimarães; de Porto Alegre “Estados Unidos do Brasil”, em 25 de Agosto de 1900,
600$000 réis “em moeda brasileira” do legado deixado por Manuel Joaquim Esteves;

31 LIMA, 1996: 5, 50, 52 (II).


A presença do Brasil no Santuário do Bom Jesus do Monte (Braga) 467

e do Rio de Janeiro, em 23 de outubro de 1903, “seis contos de reis em moeda


brazileira”, de Francisco José da Costa, que aí havia falecido em 1897.
Por vezes, surgem-nos ainda outros dados curiosos ligados aos legados como acontece
na referência específica ao produto da venda de um oratório com várias imagens,
deixado ao Santuário por Joaquim José Ferraz Braga, sendo seu testamenteiro Francisco
de Sousa Santos Moreira da “cidade da Bahia Império do Brazil” (11 de Janeiro de
1871), fornecendo-nos, desta forma, elementos adicionais sobre os devotos brasileiros.

*************
Ao concluirmos esta nossa intervenção, deixamos um testemunho daquele que,
para nós, continua a ser o mais importante santuário cristológico de sempre, que
deixou marcas profundas na devoção e no imaginário do Português, não só dos
séculos que apontámos, mas que também na segunda metade do século XX serviu
de amparo às angústias das gentes do Norte como pudemos testemunhar. Aqui,
pois, deixamos o nosso preito de homenagem a todos aqueles que reviveram, e
continuam a reviver, com Fé a Paixão de Cristo no Santuário do Bom Jesus do
Monte, e àqueles que o admiram como uma das melhores manifestações artísticas
do Mundo Português32.

Figura n.º 1
Inscrição da Jerusalém Sancta
e restaurada
Fotografia da autoria de
Joaquim Jaime B. Ferreira-Alves.

32 Presentemente, estamos a desenvolver, em colaboração com o nosso colega Joaquim Jaime B. Ferreira-Alves, um
estudo sobre o Santuário do Bom Jesus do Monte para recolocá-lo no lugar que lhe é devido no panorama da
Historiografia da Arte Portuguesa.
468 Natália Marinho Ferreira-Alves

Figura n.º 2 – Pórtico e armas de D. Rodrigo de Moura Teles


Fotografia da autoria de Joaquim Jaime B. Ferreira-Alves.
A presença do Brasil no Santuário do Bom Jesus do Monte (Braga) 469

Figura n.º 3 – Capelas da Ceia e do Horto


Fotografia da autoria de Joaquim Jaime B. Ferreira-Alves.

Figura n.º 4
Escadório dos Cinco Sentidos
Fotografia da autoria de Joaquim Jaime B. Ferreira-Alves.
470 Natália Marinho Ferreira-Alves

Figura n.º 5 – Igreja do Bom Jesus do Monte. Placa comemorativa do lançamento da 1.ª pedra em 1784
Fotografia da autoria de Joaquim Jaime B. Ferreira-Alves.
A presença do Brasil no Santuário do Bom Jesus do Monte (Braga) 471

Bibliografia
ALMEIDA, Carlos Alberto Ferreira de, 1991 – “Em torno do Bom Jesus de Braga”, in Estudos de
História Contemporânea. Lisboa: Livros Horizonte.
BAZIN, Germain, 1963 – Aleijadinho et la sculpture baroque au Brésil. Paris: Ed. Le Temps.
BEZERRA, João Alírio Xavier, 2002 – Subsídios para uma outra leitura do Bom Jesus do Monte –
Santuário de Peregrinação. Braga: Edições Passionistas.
COSTA, Américo, 1932 – Diccionário Chorographico de Portugal Continental e Insular Hidrographico
Histórico Orographico Biographico Archeologico Heraldico Etymologico. [S/l]: Edição do autor.
COSTA, António Carvalho da, 1868 – Corografia Portugueza (2.ª edição). Braga: Typographia de
Domingos Gonçalves Gouvea.
FEIO, Alberto, 1984 – Bom Jesus do Monte. Braga.
FERREIRA-ALVES, Natália Marinho, 1987 – O Santuário do Senhor de Perafita. Aspectos da
mentalidade religiosa popular na segunda metade do século XVIII. Vila Real: Biblioteca Pública e
Arquivo Distrital de Vila Real/Instituto Português do Património Cultural.
FERREIRA-ALVES, Natália Marinho, FERREIRA-ALVES, Joaquim Jaime B., 1992 – “O Santuário
do Bom Jesus do Monte em Braga: ensaio sobre os santuários cristológicos em Portugal”, in
Las cofradías de la Santa Vera Cruz. Sevilla: Universidad de Sevilla.
LIMA, Maria Luísa Gonçalves Reis, 1996 – A Renovação Estética da Igreja do Bom Jesus do Monte
na Época Contemporânea, 2 vols. Porto (tese de doutoramento policopiada).
MASSARA, Mónica, 1988 – Santuário do Bom Jesus do Monte. Fenómeno Tardo Barroco em Portugal.
Braga: Confraria do Bom Jesus do Monte.
NOBREZA de Portugal e do Brasil, 1960. Lisboa/Rio de Janeiro: Editorial Enciclopédia.
PEREIRA, José Fernandes, 1989 – “Bom Jesus do Monte”, in Dicionário de Arte Barroca em Portugal.
Lisboa: Editorial Presença.
PEREIRA, Martinho, 1783 – Modo prático de visitar as capelas do devoto Sanctuario do Senhor do
Monte. Porto.
Pintura mural da primeira metade do século XVI
em igrejas paroquiais do Norte de Portugal:
encomendas, artistas, obras.
Paula Bessa*

1. Algumas palavras prévias


Todos reconhecemos a importância de que se reveste o estudo da encomenda
nos séculos XV e XVI, época em que as determinações dos encomendadores
condicionavam fortemente as obras1. A ausência de contratos conhecidos relativos
à realização das pinturas murais que subsistem deste período parecia inviabilizar o
nosso conhecimento global dos seus encomendadores que ficaria reduzido aos casos
em que as pinturas incluem legendas ou brasões.
Num estudo anterior, apoiando-me na consideração atenta dos trabalhos de
investigação histórica desenvolvidos por Franquelim Neiva Soares2, José Marques3
e Avelino de Jesus da Costa4, desenvolvi uma metodologia que permite contornar
esta dificuldade5 e que exporei rapidamente de seguida.
Franquelim Neiva Soares, tendo por base o seu amplo estudo das Visitações
que subsistem para a arquidiocese de Braga6, foi o primeiro a notar, com absoluta
clarividência, que a encomenda para as igrejas paroquiais se dividia entre, por um
lado, os padroeiros ou abades dessas igrejas e, por outro lado, os paroquianos. Aos

* Departamento de História da Universidade do Minho


1 Cf., por exemplo, BAXANDALL, 1972: 1 ou os contratos para os retábulos do mosteiro de Ferreirim e para o da

igreja de Valdigem publicados por CORREIA, 1928: 29-32.


2 SOARES, 1997: 457-458: “(...) segundo o costume da arquidiocese a sua fábrica [da capela-mor] era da obrigação do

padroeiro, do comendador ou do abade, só em casos excepcionais recaindo sobre os fregueses (...).” “A sua fábrica [corpo
da igreja] era geralmente da obrigação dos fiéis, que se deviam fintar para as despesas (...). Mas conhecem-se casos de
abades ou padroeiros terem alguns encargos nessa parte do templo (...)”.
Pedro Dias no seu estudo sobre arquitectura gótica portuguesa refere a repartição de responsabilidades na construção
e manutenção das igrejas paroquiais entre o padroeiro e os fregueses; cf. DIAS, 1994: 30 (“(...) era obrigação do
padroeiro das igrejas paroquiais pagar as obras de construção e manutenção da capela-mor, da sacristia e da casa do pároco,
enquanto os fregueses tinham de arcar com o custeamento do corpo (...).).
3 Por exemplo, MARQUES, 1988.
4 Por exemplo, COSTA, 2000.
5 BESSA, 2007: vol. I, 39-56 (consultável em http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/8305).
6 SOARES, 1997: 457-458.
474 Paula Bessa

primeiros cabia a responsabilidade pela manutenção, obras e dotação de tudo quanto


era necessário às capelas-mor, assim como aos segundos cabia a manutenção, obras
e aquisições relativas ao corpo das igrejas paroquiais. Também o estudo que fizemos7
confirma tal divisão de responsabilidades no que dizia respeito às encomendas de
pintura mural para igrejas paroquiais.
Como os encomendadores de pinturas murais para as capelas-mor de igrejas
paroquiais eram ou os seus abades ou os detentores do seu padroado, sabendo-se qual
a cronologia das pinturas murais é possível conhecer quem, à época, era o padroeiro,
consultando os Censuais, ou quem era o abade, consultando Livros de Confirmações e
Livros de Registo de Títulos. Para além disto, os Tombos e a constituição de comendas
novas da Ordem de Cristo8, por exemplo, dão-nos uma ideia dos rendimentos de
que poderiam dispôr9.
Quando observando pinturas murais, como distinguir o que era feito por obrigação
do que correspondia à livre vontade dos encomendadores? O arcebispo de Braga
D. Luís Pires nas suas Constituições Sinodais para a arquidiocese de Braga de 147710
determinou que casas beneditinas tivessem figurações de S. Bento e de S. Bernardo
(tradição que foi seguida nas pinturas murais para as capelas-mor das igrejas de Vila
Marim e de S. Mamede de Vilaverde, igrejas paroquiais do padroado do mosteiro
beneditino de Pombeiro) e que casas de Cónegos Regrantes de Santo Agostinho
tivessem figuração deste santo. Mais tarde, em 1496, D. Diogo de Sousa, enquanto
bispo do Porto, determina que exista figuração do orago ao centro da parede fundeira11,
repetindo esta exigência nas Constituições Sinodais para arquidiocese de Braga (c.
1506)12. As visitas pastorais que, durante todo o século XVI, se referiam não só ao
espiritual, mas também ao temporal13, constituíam-se como um importante meio no
sentido de que se implementassem as decisões dos prelados. Relativamente a pintura
mural, o que os visitadores mandam é que se pintem os altares, o orago na parede
fundeira da capela-mor, às vezes acompanhado por mais dois santos, e, para o corpo
das igrejas, os altares de fora e, sobre eles, santos (que, as mais das vezes, deixam à
escolha dos paroquianos) e, no topo do arco triunfal, a Crucifixão acompanhada por
Nossa Senhora e S. João Evangelista. Ou seja, tudo o que ultrapassa estes programas
de pintura mural corresponderá à livre vontade dos encomendadores.

7 Os resultados desta investigação poderão ver-se em BESSA, 2007: vol. I, 39-40.


8 Assunto estudado por SILVA, 2002.
9 Os resultados da investigação a que procedi seguindo esta metodologia – obviamente condicionada pela disponi-

bilidade das fontes documentais que referi – poderão ver-se em BESSA, 2007: vol. I e Anexo I.
10 GARCIA, 1982: 81.
11 Publicadas no ano seguinte: Constituiçõees qve fez ho senhor Dom Diogo de Sovsa B[is]po do Porto, Porto, na oficina de

Rodrigo Alvares, 1497


12 Constituições Sinodais de D. Diogo de Sousa para o arcebispado de Braga (1506), fol. 2 vº: “(...) Como os dom

abbades e dom priores e abbades ham de teer ymageens de seus sanctos nos altares mayores.
13 Entenda-se, estado material das igrejas, ordenando os visitadores o que consideravam indispensável ao seu bom

funcionamento, por exemplo, trabalhos de manutenção, obras (incluindo pintura mural) e aquisição de bens de
carácter móvel (por exemplo, frontais de altar, cortinas, toalhas, corporais, castiçais, etc.).
Pintura mural da primeira metade do século XVI em igrejas paroquiais do Norte de Portugal: … 475

2. Introdução
Uma vez que os encomendadores para as capelas-mor e para o corpo das igrejas
paroquiais não eram os mesmos, coloca-se a questão: será que as oficinas de pintura
mural executavam o mesmo tipo de programas – e da mesma forma – para capelas-mor
e para naves, para satisfazer os desejos de abades e padroeiros e de fregueses? Haveria
diferença na sofisticação das pretensões destes diferentes tipos de encomendadores
que se manifeste nas obras efectivamente realizadas? Haverá diferença na qualidade
de execução de pinturas realizadas pelas mesmas oficinas quando respondendo aos
desejos (e, possivelmente, capacidade finaceira) de abades e de paroquianos? O trabalho
que agora se apresenta procura fazer face a estas questões que se nos têm colocado.
Centraremos as nossas reflexões na actividade de três das mais importantes oficinas14
com laboração datada da primeira metade do século XVI e cuja abundante produção
actualmente conhecida permite comparar o que realizaram para corresponder a
encomendas de abades (ou padroeiros) e de fregueses: a oficina activa em S. Salvador de
Bravães I, a oficina activa em Nossa Senhora de Guadalupe de Mouçós e mestre Arnaus.
Detenhamos, então, o nosso olhar nas pinturas murais realizadas por estas oficinas
para igrejas paroquiais.

3. A Oficina Activa em Bravães I: as encomendas, as obras15.


Em S. Salvador de Bravães (Ponte da Barca) esta oficina executou programas
quer para a capela-mor, quer para a nave e arco triunfal16. Não conhecemos na sua
inteireza o que foi realizado na capela-mor (apenas subsistiu uma pequena parte com
o orago e pintura de enquadramento com quadrifólios) mas o que se conservou indica
que o mesmo tipo de pintura figurativa e de padrão foi realizado para corresponder
quer às encomendas do abade, quer às dos paroquianos.
Na igreja de S. Mamede de Vilaverde (Felgueiras) esta oficina executou programas
que subsistem na capela-mor e na nave, sendo muito provável que tenha realizado
também pinturas sobre os altares de fora (das quais nada sabemos) e que poderão
ter desaparecido quando se refez o arco triunfal. Tal como acontecera nas paredes
14 Por necessidade de contenção de espaço editorial não estenderemos as nossas reflexões à produção de outras oficinas
que as permitiriam como seria o caso da oficina do Mestre Delirante de Guimarães ou da oficina das Volutas.
15 Esta oficina é a que Joaquim Inácio Caetano designa por oficina do Marão II e a que Luís Afonso designa por “Mestre

de 1510”. Sempre que um mestre não tenha deixado menção do seu nome, entre outras ordens de razão, preferimos,
no entanto, a designação de oficina. Nesta ocasião, apenas não seguimos a designação de Joaquim Inácio Caetano
(que no seu trabalho se justificava plenamente porque o mote para a sua argumentação tinha sido o estudo de uma
série de pinturas murais no distrito de Vila Real, mas que eram relacionadas com outras fora dessa área) pelo facto
desta oficina ter laborado abundantemente fora da zona do Marão.
16 A data que, actualmente, se pode ler no Martírio de S. Sebastião I de Bravães é 1501. Luís Afonso propôs, no

entanto, que pudesse ter havido má interpretação de restauro e que essa data pudesse antes ser 1510. Parece haver
hipótese de esclarecimento desta questão, segundo Joaquim Inácio Caetano, analisando-se, com recurso a lupa
de grande potência, se de facto há restos de pigmento na zona que Luís Afonso supõe indicar um “x” e não um
“i”, tal como agora é possível ler. O esclarecimento desta questão é para nós relevante não só no que se refere ao
estabelecimento da cronologia mas porque assim se poderá esclarecer também a responsabilidade pela encomenda
do primeiro programa de pintura na capela-mor.
476 Paula Bessa

laterais da nave de Bravães, nas paredes laterais da nave de S. Mamede de Vilaverde


apenas se fez pintura de quadrifólios, que neste último caso, se estendia do nível do
solo até ao da cobertura.
Também na igreja de Santo André de Telões (Amarante) subsistem intervenções
desta oficina na capela-mor e na nave. Se na capela-mor se realizou um extenso pro-
grama que se estendia, pelo menos, por toda a parede fundeira, o que, presentemente,
se conhece na nave é parte de um pequeno painel numa zona alta da parede do arco
triunfal do lado do Evangelho. Nesta igreja parece, assim, ter havido diferença na
extensão dos programas encomendados pelo cabido da igreja colegiada de Nossa
Senhora da Oliveira (que detinha o padroado desta igreja) e pelos paroquianos; no
entanto, o gosto que neles se manifesta parece ter sido idêntico.
Em Santa Marinha de Vila Marim (Vila Real) e em S. Martinho de Penacova
(Felgueiras) apenas subsistiu pintura desta oficina nas respectivas capelas-mor; já em
S. Nicolau de Canaveses (Marco de Canaveses) e em S. Salvador de Freixo-de-Baixo
(Amarante)17 só subsistiram pinturas nas paredes laterais da nave, não sendo por
isso possíveis comparações entre estes programas e os que possam, eventualmente,
ter sido realizados para as respectivas capelas-mor. No entanto, convirá notar que
o que subsistiu em S. Nicolau de Canaveses inclui pintura relativa à Anunciação no
arco triunfal mas, também, na parede lateral da nave do lado do Evangelho, pequeno
painel de pintura votiva de iniciativa particular.
Tudo parece indicar que a extensão dos programas encomendados a esta oficina
por abades e padroeiros, por um lado, e paroquianos, colectiva ou individualmente,
por outro, podia variar desde programas incluindo figuração e motivos decorativos
para toda uma parede a pequenos painéis, fossem estes de iniciativa colectiva ou
particular de paroquianos; no entanto, não parece haver diferenças substantivas nem
no gosto, nem na qualidade de execução das pinturas realizadas para capelas-mor
ou para as naves.

4. A Oficina Activa em Nossa Senhora de Guadalupe de Mouçós18: as


encomendas, as obras.
As pinturas atribuíveis a esta oficina19 encontram-se nas igrejas paroquiais de
Santa Leocádia de Montenegro (na capela-mor e nas paredes laterais da nave), de
Santa Marinha de Vila Marim (parede lateral da nave), de S. Tiago de Folhadela
(capela-mor e nave), de S. Miguel de Tresminas (capela-mor; existe também pintura
17 Em fotografias antigas da Direcção Geral dos Monumentos Nacionais, anteriores ao restauro e destacamento,
apenas é visível motivo de padrão de quadrifólios sob camada de pintura posterior.
18 Joaquim Inácio Caetano designa esta oficina como oficina III do Marão e Luís Afonso propõe a designação “Mestre

AM.DRA”. As designações são pouco importantes. Preferimos a referência a uma das obras da oficina, neste caso a
única explicitamente datada (1529). Não nos agrada, no entanto, a designação de “Mestre AM.DRA”, entre outros
motivos, porque não nos ocorre a lembrança do uso de “AM. DRA” como abreviaturas de nomes na documentação
dos fins do século XV e do século XVI. Cf. CAETANO, 2001: 36-48 e AFONSO, 2006, vol. I: 175-178.
19 Sobre este assunto vejam-se, por exemplo, COSTA e al, 1997: 112, CAETANO, 2001: 36-48, 66-68 e 69- 73 e

CAETANO, 2002: 211-233.


Pintura mural da primeira metade do século XVI em igrejas paroquiais do Norte de Portugal: … 477

no arco triunfal atrás de retábulos mas que, por falta de acesso, não podemos estudar),
de Nossa Senhora da Azinheira de Outeiro Seco (nave), de S. João de Cimo de Vila
Castanheira (arco triunfal) e de S. Julião de Montenegro (capela-mor).
Dediquemos, então a nossa especial atenção a programas realizados por esta oficina
quer para a capela-mor, quer para a nave de uma mesma igreja.
Em Santa Leocádia de Montenegro (Chaves) existem grandes diferenças de
extensão e de sofisticação de execução entre o que esta oficina realizou para a capela-
mor e para a nave. Se na capela-mor se pretendeu um programa extenso que só não
preenche a zona central da parede fundeira da capela-mor (porque havia imagem
de vulto do orago?), na nave apenas subsistem três painéis, dois provavelmente de
encomenda colectiva (Missa de S. Gregório e Lamentação sobre Cristo Morto) e um
de encomenda particular (Santa Marta). Também a sofisticação da apresentação dos
temas figurativos na capela-mor e na nave é diferente: na capela-mor finge-se uma
loggia com seu rodapé, colunata e friso e que deixa ver as cenas figuradas por entre
as colunas da loggia, não havendo tal sofisticação de enquadramentos na pintura
que subsistiu na nave. Mesmo a qualidade de execução dos motivos de padrão nos
enquadramentos da pintura figurativa na capela-mor e na nave parece ser diferente
(motivos mais simples e mais sumariamente executados na Lamentação e na Santa
Marta), assim como a sofisticação de execução da Santa Marta é muito inferior à das
pinturas de figura na capela-mor.
Diferenças de qualidade de execução se sentem também nas pinturas realizadas
na capela-mor e na nave da igreja de S. Tiago de Folhadela (Vila Real).
Estes exemplos pareceriam indicar que esta oficina respondia a encomendas de
abades com muito maior cuidado de feitura mas, no entanto, em algumas igrejas
apenas subsistem programas atribuíveis a esta oficina nas naves e, nalguns casos,
esses programas têm grande complexidade e grande sofisticação de execução. Assim
acontece na nave de Vila Marim (Vila Real; parte de uma Oração de Jesus no Horto,
Prisão de Jesus e Santo Antão, S. Brás e S. Roque) e, igualmente, em vários e sucessivos
programas realizados por esta oficina para as paredes laterais da nave da igreja de
Nossa Senhora da Azinheira de Outeiro Seco (Chaves). Na verdade, em Vila Marim,
as duas pinturas que subsistem com a Oração e a Prisão, levam-nos a perguntar: terá
havido aqui programa mais extenso relativamente à Paixão?
As pinturas realizadas na nave de Nossa Senhora da Azinheira merecem grande
atenção por vários motivos. No século XVI esta era a igreja paroquial, à qual estava
anexa a igreja de S. Miguel de Outeiro Seco20; mais tarde, S. Miguel passou a ser
usada como igreja paroquial (e, portanto, Nossa Senhora da Azinheira terá deixado
de estar no centro do investimento renovador da paróquia), o que, provavelmente,
explica que as pinturas murais existentes em Nossa Senhora da Azinheira se tenham
conservado tão extensamente. Na verdade, considerando a pintura mural que se
conserva nas paredes laterais da nave desta igreja, a primeira coisa que nos parece
que devemos assinalar é a extensão do que se foi realizando em, pelo menos, duas

20 Arquivo Distrital de Braga, Registo Geral, Livro 323, fols. 218 (frente e verso).
478 Paula Bessa

campanhas desta oficina (e com outras intervenções ainda, por outros pintores). Ora,
como vimos, nem as Constituições Sinodais em vigor na primeira metade do século
XVI ordenavam programas de pintura para as paredes laterais das naves, nem nas
Visitações que se conservam para o século XVI se ordena tal esforço de encomenda,
o que significa que os sucessivos programas existentes nas paredes laterais da nave de
Nossa Senhora da Azinheira correspondem, muito provavelmente, ao empenho – e,
certamente, a um considerável esforço voluntário – dos paroquianos, ainda que com
o concurso dos clérigos de Missa que possam ter estado ao serviço da sua cura de
almas21 e que não tinham a responsabilidade da manutenção e obras na capela-mor
(que cabia ao abade ou ao padroeiro).
Verificamos já que em algumas igrejas paroquiais (como Santa Leocádia de
Montenegro e S. Tiago de Folhadela) esta oficina executou programas de pintura
mural com extensão, complexidade e qualidade de execução bastante diferente na
capela-mor e na nave. E, no entanto, quer na nave de Vila Marim, quer na de Nossa
Senhora da Azinheira de Outeiro Seco, se realizam programas extensos e, por vezes,
de composição complexa e de execução cuidada, à semelhança do que a oficina fazia
para capelas-mor. O que poderá explicar que nuns casos esta oficina faça pinturas
muito mais sofisticadas para as capelas-mor do que para as naves e noutros que faça
programas de complexidade e qualidade de execução comparável?
A extensão, complexidade e qualidade dos programas de pintura mural nas
paredes laterais das naves dependeria da vontade de encomenda dos fregueses e,
provavelmente, da sua capacidade financeira. Assim, frequentemente, os casos que
conhecemos de encomendas particulares expressas em naves (quer a esta oficina,
quer a outras, mais antigas ou mais recentes) assumem a forma de painel com suas
molduras de enquadramento. Se na nave de Santa Leocádia de Montenegro, a
Lamentação (da provável encomenda da comunidade dos fregueses) e a Santa Marta
(encomenda particular) têm também a forma de painel, já na nave de Vila Marim,
em que o programa incluía várias cenas de pintura figurativa, se procura uma relação
com a arquitectura, uma articulação com o muro (como sempre parece ter acontecido
nas capelas-mor), que leva os pintores a fingirem, por exemplo, rodapés com o motivo
tão estimado na azulejaria coeva dos paralelepípedos perspectivados.
Voltemos ao caso das pinturas realizadas para a nave de Nossa Senhora da
Azinheira de Outeiro Seco. Numa primeira campanha na parede lateral da nave do
lado do Evangelho, figurou-se um Santo António e um Martírio dos Inocentes e, mais
acima, um friso que, tanto quanto é possível ver, provavelmente, seria semelhante
aos da capela-mor de Santa Leocádia. Esta primeira campanha na nave de Nossa
Senhora da Azinheira parece ter pretendido seguir o exemplo de programa realizado
na capela-mor de Santa Leocádia. Conheciam os paroquianos de Outeiro Seco – ou
os seus clérigos de Missa – as pinturas da capela-mor de Santa Leocádia? Que elos
se estabeleceram entre os paroquianos de Outeiro Seco e esta oficina de pintura?

21 Do que há exemplo claro na nave e arco triunfal da igreja de São Tiago de Adeganha. Sobre este assunto veja-se,
por exemplo, o que dizemos em BESSA, 2006 a: 457.
Pintura mural da primeira metade do século XVI em igrejas paroquiais do Norte de Portugal: … 479

Na verdade, João da Azinheira, capelão perpétuo de Nossa Senhora da Azinheira


desde 27 de Junho de 1523 e que ainda exercia essas funções em 1537 quando
mostrou os seus títulos ao arcebispo de Braga e Infante D. Henrique, havia recebido
a sua carta de ordens menores, datada de 20 de Setembro de 1516, na sé de Braga,
dada pelo bispo D. Fernando22. Ora, em 1516, era arcebispo de Braga D. Diogo de
Sousa (que haveria de o nomear capelão perpétuo de Outeiro Seco em 1523, ainda
antes de recebidas as ordens de Evangelho e de Missa) e só havia então dois bispos
com o nome Fernando, D Fernando Coutinho, bispo de Silves, e D. Fernando de
Meneses Coutinho e Vasconcelos, então bispo de Lamego, que havia sido, justamente,
o encomendador do vasto programa de pintura mural para a capela-mor da igreja de
Santa Leocádia. Porque recebeu João da Azinheira carta de ordens menores na sé
de Braga das mãos de D. Fernando (de Meneses Coutinho?)? Porque se conheciam?
Porque havia feito alguma preparação para as receber sob orientação de D. Fernando?
Fosse pela proximidade de João da Azinheira a D. Fernando de Meneses Coutinho
e Vasconcelos, fosse pela relativa proximidade de Outeiro Seco a Santa Leocádia
de Montenegro, é bem possível que as pinturas da capela-mor de Santa Leocádia
tenham servido de referência para as escolhas do que se deveria realizar no primeiro
programa para as paredes laterais da nave de Outeiro Seco, optando-se pela mesma
oficina. E, no entanto, nesta campanha a qualidade de execução da pintura figurativa
(especialmente no Massacre) parece-nos ser inferior à das da capela-mor de Santa
Leocádia. Porquê? Porque aqui – e nas pinturas da nave de Santa Leocádia – inter-
vieram membros secundários da oficina? Porque havia uma relação entre, por um
lado, a qualidade de execução e, por outro lado, o preço? Finalmente, seria muito
interessante podermos compreender de que meios podiam dispor as comunidades
paroquiais. Relativamente, a esta questão seria certamente relevante conhecer a
dimensão das comunidades paroquiais ao tempo da realização de programas de
pintura mural na medida em que numa referência na Visitação de 1548 à igreja de
Santa Eulália de Gontim os visitadores ordenam que o confirmado faça fintar os
paroquianos para o pagamento, entre outras obras, de pinturas murais no topo do arco
triunfal e num dos altares de fora23. Se era esta a prática usual, quanto maior fosse a
comunidade paroquial, maior poderia ser a sua capacidade financeira, ainda que ela
pudesse depender dos rendimentos de que cada um podia auferir e que, no caso de
paróquias eminentemente rurais, dependeriam frequentemente, muito provavelmente,
do tipo de culturas e actividades e da maior ou menor produtividade da terra. Talvez
diferentes capacidades financeiras de paróquias mais ou menos populosas, mais ou
menos ricas, resultassem em encomendas mais ou menos extensas, de arranjo mais
ou menos complexo e mais ou menos bem executadas, por mestres principais ou
secundários de uma oficina.
Mas em Nossa Senhora da Azinheira as campanhas de pintura mural continuaram
em ano(s) subsequente(s), deixando as paredes laterais da nave quase inteiramente

22 Arquivo Distrital de Braga, Registo Geral, Livro 323, fols. 218 (frente e verso).
23 Arquivo Distrital de Braga, Visitas e Devassas, Livro 434, fol. 12 vº.
480 Paula Bessa

cobertas de pinturas, desta feita com uma grande sofisticação de arranjo dos programas
na sua articulação com a arquitectura e, por vezes, como acontece com o Pentecostes,
por exemplo, de grande qualidade de composição e de execução.
*
Como se terá constituído a clientela desta oficina? Tudo indica que era integrada,
por exemplo, por D. Jorge de Almeida, bispo-conde de Coimbra24, D. Fernando de
Meneses Coutinho e Vasconcelos, D. Pedro de Castro25, o herdeiro de João Teixeira
de Macedo26, o abade de S. Julião de Montenegro, o abade de Tresminas, o capelão de
Santiago de Folhadela. Em relação a todos eles convém lembrar que todos auferiam nas
igrejas para as quais mandaram realizar pinturas murais de importantes rendimentos27.
Será que esta rede de clientes correspondia de algum modo a uma rede social?
Ao aperceber-me de que vários notáveis encomendadores (D. Jorge de Almeida, D.
Fernando de Meneses Coutinho, D. Pedro de Castro, por exemplo) escolheram esta
mesma oficina de pintura pareceu-me relevante proceder a indagações de carácter
genealógico28.
De facto, laços de família ligavam vários importantes prelados – e encomendadores
– da primeira metade do século XVI. Assim, D. Jorge de Almeida, bispo-conde de
Coimbra, era tio de D. Fernando de Meneses Coutinho, uma vez que era irmão da
mãe de D. Fernando, D. Isabel da Silva.
O arcebispo de Braga D. Diogo de Sousa era primo de D. Fernando de Meneses
Coutinho e Vasconcelos, uma vez que ambos descendiam, por via masculina, de
Gonçalo Mendes de Vasconcelos e de D. Teresa Ribeiro. Na verdade, por via
feminina, D. Fernando de Menezes Coutinho e Vasconcelos e D. Diogo de Sousa
eram descendentes de D. Pedro de Menezes, Governador de Ceuta, uma vez que
D. Fernando era neto de filha legítima de D. Pedro, D. Isabel de Menezes, sendo D.
Diogo de Sousa neto de D. Isabel de Menezes, filha bastarda do mesmo D. Pedro
de Menezes. Vemos, portanto, que D. Fernando e D. Diogo, para além dos laços de
parentesco que os uniam, tinham também ligações próximas à casa de Vila Real.
Ora, um outro encomendador a esta oficina sobre cuja actividade vimos reflectindo
foi D. Pedro de Castro, capelão do marquês de Vila Real e abade de S. Salvador
24 Joaquim Inácio Caetano propôs uma autoria comum para as pinturas murais da capela-mor de Santa Leocádia, por
exemplo, e para o chamado retábulo de S. Simão ou de S. Salvador no Museu de Aveiro e que usam um mesmo motivo
de padrão de adamascado; note-se que no reverso dos volantes deste retábulo está pintado o brasão de armas de
D. Jorge de Almeida. A propósito da atribuição da autoria deste retábulo e de pinturas murais à oficina que vimos
comentando veja-se a comunicação de Joaquim Inácio Caetano (De la fragmentation du regard à l’identification des
ensembles, ou le formalisme dans l’étude des peintures murales des Xvème et XVIème siècles au Nord de Portugal) ao Ciclo
de conferências «Out of the Stream: new perspectives in the study of Medieval and Early Modern mural paintings»
organizado por Luís Afonso na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 2006.
25 O encomendador das pinturas murais para a igreja de Nossa Senhora de Guadalupe (Mouçós, Vila Real), datadas

de 1529. Sobre este assunto poderá ver-se BESSA, 2006 b.


26 O encomendador das pinturas murais para a parede fundeira da capela de S. Brás (Vila Real). Sobre este assunto

poderá ver-se BESSA, 2003: 67-95.


27 Sobre este assunto veja-se BESSA, 2007: vol I, 211-214.
28 Estas indagações de carácter genealógico foram feitas recorrendo ao Nobiliário de Famílias de Portugal de Felgueiras

Gaio e à Pedatura Lusitana de Cristóvão de Alão de Morais. As referências bibliográficas sobre estas questões seriam
demasiado extensas para esta publicação, razão pela qual as publicarei noutra ocasião.
Pintura mural da primeira metade do século XVI em igrejas paroquiais do Norte de Portugal: … 481

de Mouçós, o encomendador do programa de pintura mural para a igreja de Nossa


Senhora de Guadalupe. Numa comunicação recente apresentada ao XXVIII Encontro
da Associação Portuguesa de História Económica e Social (2008) Lisbeth Oliveira
revelou que os Livros de Contas do Hospital das Caldas da Rainha, de 1520 a 1524,
atestam a presença à mesa da Rainha Velha, D. Leonor, viúva de D. João II e irmã do
rei D. Manuel I, de D. Jorge de Almeida e do capelão do marquês de Vila Real – que
sabemos ser D. Pedro de Castro.
D. Diogo de Sousa era ainda primo direito de D. Miguel da Silva, uma vez que
a mãe de D. Diogo de Sousa, D. Branca da Silva, era irmã de D. Diogo Gomes da
Silva, 1º conde de Portalegre, e pai de D. Miguel da Silva.
Na verdade, esta pequena digressão serve para fortalecer a hipótese que já anterior-
mente havia colocado de que a criação de uma rede de clientes de uma mesma oficina
de pintores poderá ter por base uma rede social que inclui – mas ultrapassa – laços
de família. A mesma reflexão se poderia fazer relativamente à atitude mecenática:
terá a cultura familiar estimulado a intensa actividade mecenática, por vezes marcada
por gosto italianizante, destes prelados que referi, D. Diogo de Sousa, D. Jorge de
Almeida, D. Fernando de Meneses Coutinho, D. Miguel da Silva?

5. Mestre Arnaus: as encomendas, as obras.


As pinturas autógrafas ou atribuídas a este mestre em igrejas paroquiais incluem as
realizadas nas igrejas de S. Paio de Midões (capela-mor), S. Salvador de Fontarcada
(capela-mor), S. Mamede de Vilaverde (capela-mor), Santa Marinha de Vila Marim
(capela-mor) e S. Tiago de Folhadela (capela-mor e arco triunfal).
Todas as pinturas realizadas por mestre Arnaus para capelas-mor revelam grande
qualidade de execução e a vontade – e capacidade – de encontrar novas soluções
de apresentação dos programas, adequadas às diferentes características dos espaços
arquitectónicos em que se integrariam29. De todos os programas referidos, o mais
extenso foi, talvez, o da capela-mor da igreja de Fontarcada, programa que, aliás,
colocava dificuldades de concepção geral, uma vez que as paredes românicas eram
animadas por arcos cegos, o que colocava a questão de ou entaipar tudo para obter
uma parede lisa ou a de tirar partido dessas características dos muros, solução que
mestre Arnaus abraçou com imaginação e brilhantismo, realizando, em trompe l’oeil,
ao nível térreo, uma colecção de imagens de vulto (fingidas) de santos, cada um
abrigado em seu arco cego como se fora um nicho.
Apenas em S. Tiago de Folhadela existem pinturas de mestre Arnaus quer na
capela-mor, quer na nave, permitindo-nos comparar o que fez mestre Arnaus para a
capela-mor e para a nave desta igreja. E, em ambos os casos, segundo Joaquim Inácio
Caetano, a intervenção de mestre Arnaus complementa programas anteriores. Ou
seja, conserva – largamente – as pinturas anteriormente realizadas, por exemplo, pela
29 Sobre este assunto veja-se, por exemplo, o que escrevemos em BESSA, 2007: vol. I, 109-110, 227-230 e vol. Anexo
I, 171-175, 219-222 e 419-422.
482 Paula Bessa

oficina activa em Nossa Senhora de Guadalupe. Porquê? Porque partes dessas pinturas
se tinham danificado? Porque esta intervenção de mestre Arnaus, revelando um gosto
mais moderno – provavelmente revelador do conhecimento de decorações de fachadas
flamengas30 mas também de motivos de carácter decorativo em voga na Itália –, se
pretendeu como uma forma de dar um ar mais à la page a um bom programa anterior
mas que o volver dos anos ia fazendo parecer démodée? Convém notar que a obra
de Arnaus nesta igreja renova, por exemplo, todo o rodapé da capela-mor e que o
que fez no arco triunfal revela a sempre elevada qualidade de desenho e de invenção
deste pintor. Repetimos a questão: o que determinou esta forma de intervenção?
Limitações financeiras dos encomendadores quer para a capela-mor, quer para a
nave? Vontade de renovação estética? Provavelmente, ambas.
É que, na primeira metade do século XVI, altura em que os programas de pintura
mural se devem ter realizado, a igreja de S. Tiago de Folhadela era da câmara do
arcebispo que nela apresentava não um abade mas um capelão perpétuo, ao qual
apenas se pagava um salário anual, ao qual se acrescentava o pé de altar. Como nas
pinturas da capela-mor não se conserva nenhum brasão arcebispal, é de crer que
tenham sido encomendadas pelo capelão, provavelmente Duarte Mendes que, aliás,
receberia de D. Diogo de Sousa, aquando da sua confirmação em 1527, um salário
anual (3000 réis) que era mais do dobro do do capelão anterior (1300 réis), salário
que o mesmo arcebispo aumentaria ainda no ano seguinte em mais 2000 réis, para
perfazer 5000 réis31. Na verdade, o programa mais antigo existente na capela-mor desta
igreja deverá ser de data próxima de 1529. Porque terá atribuído D. Diogo de Sousa
a Duarte Mendes um salário tão excepcional? Para que pudesse pagar este programa
de pintura mural? Para que pudesse assumir uma actividade de encomenda – e de
enobrecimento da sua igreja paroquial – como só era devida a um padroeiro ou abade
tirando partido das propriedades da sua igreja? De qualquer modo, um capelão apenas
dispunha de um salário fixo, ou seja, mesmo no caso de Duarte Mendes, pago tão
excepcionalmente, os seus rendimentos eram limitados. Talvez o facto de S. Tiago de
Folhadela apenas ter capelão – e não abade – explique os limites da intervenção de
Mestre Arnaus na capela-mor, provavelmente espelhando os limites da capacidade
financeira do encomendador. E a mesma limitação de recursos financeiros (desta
vez dos paroquianos) se poderá supor a propósito do que mestre Arnaus fez no arco
triunfal. E, no entanto, apesar de se tratar de intervenções de extensão limitada, o
mestre executa-as com grande qualidade, expondo renovadas fontes de cultura visual
e surpreendentes efeitos de trompe l’oeil como o do diabo que agarra a moldura do
painel em que se figura S. Bartolomeu, como se se estivesse a preparar para saltar
para fora do quadro, coisa que, evidentemente, para tranquilidade dos fregueses,
S. Bartolomeu não permitiria, uma vez que o tem bem amarrado com corrente de

30 O rodapé de mestre Arnaus para a igreja de S. Tiago de Folhadela é idêntico ao de um projecto de decoração de
fachada de Hans Holbein (trata-se de um desenho a pena, tinta castanha, aguarela e gouache azul da Colecção de
Edmond de Rothschild, Paris, publicado em GRUBER, 1994: 114).
31 BESSA, 2007, vol.1: 213-214.
Pintura mural da primeira metade do século XVI em igrejas paroquiais do Norte de Portugal: … 483

ferro32. A consideração destas pinturas dá-nos a impressão de que este mestre, quando
confrontado com possibilidades de pagamento limitadas, ainda que intervindo mais
reduzidamente, fá-lo com a mesma sofisticação de concepção e de execução e a
mesma vontade de renovação estética com que trabalha em programas extensos.

6. Conclusão
Acompanhámos o trabalho de três oficinas nas suas encomendas para capelas-
mor e naves de igrejas paroquiais, ou seja, quando correspondendo a diferentes
tipos de encomendadores, fossem eles abades, capelães ou paroquianos, colectiva
ou individualmente.
A oficina activa em Bravães parece ter respondido a esses diferentes tipos de
encomendas apenas alargando ou limitando a extensão dos programas, mantendo,
em qualquer dos casos, a sua característica qualidade de execução. Claro que quando
os programas se deveriam estender por toda uma parede isso colocava questões de
articulação da pintura com a arquitectura, resultando, tanto quanto é possível analisar,
numa maior sofisticação da concepção do arranjo geral do programa. O facto de
os progamas realizados por esta oficina variarem sobretudo na sua extensão talvez
signifique que esta oficina, à semelhança do que frequentemente se documenta na
Península Itálica do Quatrocento, se fazia pagar em função da extensão da área a
pintar33.
Já a oficina activa em Nossa Senhora de Guadalupe parece responder a diferentes
encomendadores – e, muito provavelmente, a diferentes capacidades de pagamento –
de um modo muito diversificado. Quando trabalhando para um cliente dispondo de
muito amplos rendimentos (como D. Fernando de Meneses Coutinho e Vasconcelos),
concebe a apresentação do programa geral com grande sofisticação, talvez reservando
a pintura de figura mais visível (na parede fundeira, por exemplo34) ao melhor pintor
da equipa e, talvez, deixando a pintura das paredes laterais da capela-mor a bons
pintores. É possível que os programas para as capelas-mor de S. Tiago de Folhadela
e de S. Miguel de Tresminas (assim como os de Nossa Senhora de Guadalupe de
Mouçós ou da capela de S. Brás35) tenham sido realizados para encomendadores
com menos possibilidades financeiras do que D. Fernando de Meneses Coutinho e
Vasconcelos, na medida em que a complexidade da concepção do arranjo geral do
programa é, no nosso entender, menor.

32 AFONSO, 2006.
33 Por exemplo, Borso d’Este, duque de Ferrara, pagou os frescos para o Palazzo Schifanoia a dez lire bolonhesas por
pé quadrado; cf. BAXANDALL, 1972: 1.
34 Vejam-se os S. Pedro e S. Paulo da parede fundeira de Santa Leocádia de Montenegro, por exemplo, nos quais se

manipulam as proporções da parte baixa e alta dos corpos para dar a ilusão de figuras muito mais altas do que
realmente são.
35 Nossa Senhora de Guadalupe (Mouçós, Vila Real) não era uma igreja paroquial. A Capela de S. Brás (Vila Real)

era uma capela – e morgadio – particular.


484 Paula Bessa

Quando trabalhando para paroquianos, a diversidade das respostas desta oficina


é muito grande, o que talvez espelhe a diversidade das capacidades financeiras
de diferentes comunidades paroquiais. Assim, muito provavelmente, um membro
secundário da oficina realizou a Santa Marta para o paroquiano de Santa Leocádia
que a mandou pintar por sua devoção, simplificando, em relação ao que foi feito na
capela-mor dessa igreja, quer os motivos decorativos, quer o tratamento de figura;
mas a Lamentação e a Missa de S. Gregório, prováveis encomendas da comunidade dos
fregueses para a nave da mesma igreja, evidenciam maior qualidade de execução que é
comparável à das pinturas figurativas nas paredes laterais da capela-mor dessa igreja.
Já na nave de Nossa Senhora da Azinheira de Outeiro Seco foram realizadas,
sucessivamente, várias intervenções desta equipa com qualidade diversa. Um primeiro
programa para a parede lateral da nave do lado do Evangelho, muito provavelmente
encomendado para seguir o tipo de concepção geral do que esta oficina havia feito
nas paredes laterais da capela-mor da igreja de Santa Leocádia, apresenta, no entanto,
no nosso entender, uma qualidade de execução inferior à do que aí havia sido feito.
Mais tarde, novo programa foi realizado para a parede lateral da nave do lado da
Epístola de Nossa Senhora da Azinheira, sendo grande a sofisticação da apresentação
geral e, por vezes, muito grande a qualidade de execução da pintura figurativa, como
acontece no Baptismo de Cristo (datado de 1535). Uma outra pintura atribuível a esta
oficina para a nave desta igreja, desta feita para a parede do lado do Evangelho, o
Pentecostes, é mesmo, de entre as obras que conhecemos desta oficina, a que evidencia
uma concepção geral de apresentação do tema mais sofisticadamente italianizada,
fingindo-se um absidíolo de planta circular e de gosto renascentista.
Assim, as obras que conhecemos atribuíveis a esta oficina variam na extensão das
áreas pintadas mas também na competência da execução. Praticaria esta oficina uma
política de preços em função da área a pintar mas também em função de quem a
executaria, contando com membros com diferentes competências? Sabemos que em
Itália, pelos meados do século XV, contratos para a execução de pinturas deixam de
insistir tanto na riqueza dos materiais a usar e passam a insistir mais noutro tipo de
riqueza, a da execução pelo mestre36. Semelhantemente, terá esta oficina diferenciado
o preço do trabalho do mestre e dos seus membros mais competentes?

Mestre Arnaus, por seu lado, parece responder sempre às encomendas que lhe
são feitas procurando novas soluções de apresentação dos temas, sempre com grande
qualidade de execução, buscando concepções gerais de apresentação dos programas
que tiram partido da arquitectura ou a transfiguram pelo recurso aos trompe l’oeil. Se
os seus encomendadores têm capacidades financeiras mais limitadas – como cremos
que terá acontecido em S. Tiago de Folhadela – a área da sua intervenção pode ser
reduzida mas não a sua qualidade nem o seu empenho na renovação estética ou na
busca de novas soluções de articulação da pintura com o muro. Relativamente à

36 Cf., por exemplo, BAXANDALL, Michael, 1972 – Painting and experience in Fifteenth Century Italy, Oxford, Clarendon
Press, p. 14-17.
Pintura mural da primeira metade do século XVI em igrejas paroquiais do Norte de Portugal: … 485

actividade deste mestre e em face do que foi dito, parece legítimo supor que a sua
política de preços se faria com base na extensão da área a pintar.

Bibliografia
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486 Paula Bessa

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A encomenda municipal – artistas e obras
em Viana da Foz do Lima na Época Moderna
Paula Cristina Machado Cardona

Ao leque de encomendantes, por norma confinado à encomenda régia e nobili-


árquica e à Igreja, com particular ênfase para a figura do Bispo, queremos adicionar
o universo Municipal ampliando horizontes de análise e abrindo outra perspectiva
de abordagem no campo da encomenda artística.
Os Livros de Vereações do Arquivo Histórico Municipal de Viana do Castelo,
por nós estudados, cobrindo uma baliza cronologia que decorre entre o século XVI
até ao segundo quartel do século XIX, encerram conteúdos variados de extrema
importância para o conhecimento da actividade do município como promotor da
produção artística não só na esfera local, circunscrita ao burgo, mas também a nível
concelhio.
Um olhar mais atento aos fundos documentais municipais permite perscrutar em
rigor, obras de diferente tipologia e artistas de variada proveniência e formação a
que se alia, um extenso corpo normativo municipal que dimensiona o processo de
evolução urbanística, a par do pulsar da vida do burgo.
A actuação da Câmara não se confina apenas às encomendas de infra-estruturas
e equipamentos públicos, estende-se às unidades conventuais e a igrejas fundadas em
território municipal, em particular à igreja colegiada identificando-se neste espaço
duas áreas de intervenção: uma de ordem material e física - construção, manutenção
e reconstrução, artes decorativas e outra de carácter institucional cujo focus assenta
no relacionamento com os restantes actores do espaço paroquial – confrarias e cabido
da colegiada.
É no contexto político e administrativo, tendo por base a primeira carta de foral
concedida por D. Afonso III em 1258, que encontramos a semente do progresso de
Viana, há época São Salvador do Adro, território constituído maioritariamente por
uma comunidade marítima.
A tónica dominante da carta de foral, que constitui claramente um privilégio, é
o da auto-administração. Viana passa a depender directamente do rei em matéria
de administração civil, financeira e de justiça, que se exerce através do município,
composto pelo Concelho e pela Câmara. À Câmara cabia a decisão sobre assuntos
488 Paula Cristina Machado Cardona

de gestão corrente, dela estavam dependentes a alcaiadaria, na defesa e policiamento


do burgo, a almotaçaria destinada a ordenar o comércio e o abastecimento de bens
de primeira necessidade e finalmente a assistência à vila, assegurada pelo guarda-mor
de saúde, médicos e boticários; juizado dos órfãos e juizado das sisas.
Com meios financeiros próprios, rendas cedidas pelo poder régio e receitas, ficam
asseguradas por um lado as despesas decorrentes do funcionamento da estrutura
municipal e por outro lado, é garantido a concretização de um vasto programa de
obras públicas assentes essencialmente nas de carácter militar, como a fortificação da
Vila no século XIV. A questão defensiva, muito marcante na urbe vianense, justificará,
aquando do crescimento da vila para a poente, a construção de uma roqueta no
tempo de D. Manuel I para proteger toda a foz1.
Obras directamente relacionadas com a acessibilidade interna e externa de Viana
de que é exemplo a criação do porto de mar, com as suas infra-estruturas, a abertura de
novas ruas e a criação de praças, estas maioritariamente destinadas à actividade comercial.
Obras destinadas a responder às necessidades mais básicas da comunidade como
o abastecimento de água e a construção de açougues.
Obras de equipamentos directamente relacionados com as atribuições da Câmara de
que são exemplos os edifícios públicos da Casa da Câmara da Cadeia e da Alfândega.
Com uma frota de mais de uma centena de navios, esta comunidade marcada-
mente mercantil, controla a rota dos panos e ferro do norte da Europa, explora a
rota do açúcar brasileiro, dedica-se à pesca longínqua nos mares da Terra Nova e à
comercialização dos produtos das Ilhas Atlânticas2.
Viana de seiscentos, apresenta-se florescente e economicamente activa, ingleses,
franceses, holandeses, suecos e alemães, são atraídos por esse vigor económico, fixando
neste território importantes comunidades com destaque para os grandes mercadores
banqueiros, ligados ao negócio do açúcar brasileiro, de que se conhecem nomes como
Guilherme de Campanear de origem holandesa, Guilherme Robim, seu compatriota,
natural de Anvers e o alemão Gaspar Varneque3. Viana é neste período um destino
cosmopolita com uma rede vastíssima de contactos comerciais com toda a Europa. Esta
“textura” cosmopolita de Viana é mensurável na quantidade de intérpretes e tradutores
nomeados pela Câmara – o partido das línguas, cargo que muitos acumulavam com
funções consulares. Exigia-se, como requisito, o domínio da língua estrangeira para o
provimento do partido de acordo com as línguas vulgarmente mais faladas e necessárias
à gestão do governo local: holandês, inglês, francês, alemão, castelhano, biscainho4.
Adiciona-se ainda regulamentação municipal sobre a actividade comercial dos
mercadores estrangeiros5. Esta comunidade participava activamente na vida do burgo

1 MOREIRA, 1992: 38-44.


2 MOREIRA, 1995: 10-11.
3 MOREIRA, 1996: 29-45.
4 Os “partidos da língua” eram ocupados por nacionais, residentes em Viana, que podiam ser providos num ou mais

partidos, dependendo das suas capacidades para o domínio da língua estrangeira, ou por estrangeiros radicados no
burgo. A.H.M.V.C., Actas da Câmara, 1660, fls. 19v.-20v. Actas da Câmara, 1675-1676, fl.24 Actas da Câmara,
1678-1680, fls.60-61; 66-67v. Actas da Câmara, 1681, fls.4v.-5; Actas da Câmara, 1726-1731, fl. 131.
5 A.H.M.V.C., Acórdãos de 1616, fls. 34v.-35.
A encomenda municipal – artistas e obras em Viana da Foz do Lima na Época Moderna 489

e desempenha um papel não despiciendo, junto do poder local, como nos revela a
solicitação dos homens de negócios estrangeiros que apresentam em reunião de Vereação
de 19 de Dezembro de 1703 sobre a necessidade de aumentar o número de pilotos
de barra devido ao grande tráfego de navios estrangeiros6.
A população residente cifra-se em finais do século XVI e no primeiro quartel do
século XVII em 8.550 habitantes7. Este número oscilará, o pedre António Carvalho
da Costa refere-se desta forma à população da vila de Viana em 1706 – “Tem esta villa
três mil vizinhos (…)”8. Na segunda metade da centúria, atendendo às informações
das Memórias Paroquiais, a paróquia de Santa Maria Maior tinha 4.468 habitantes
e a paróquia de Monserrate cerca de 3.500 habitantes. Totalizava a população de
Viana em 1758, 7.968 habitantes9. Em 1794, a população da vila foi estimada em
4.275 moradores e a população do termo em 11.124 moradores10.
Viana divide-se (à imitação de Lisboa) em os bairros seguintes a saber, a villa cercada
de muros, o bairro da Bandeira, o da Carreira, o de Monserrate, o da Ribeira, o de S. Bom
Homem, o do Postigo, o de S. Bento & o do Campo de Forno, todos estes bairros estão bem
povoados de casas nobres, & tem de comprido meya legoa, que começa da Rua do Loureiro até
São Vicente de Fora11.
De todos os Concelhos, Viana, cabeça de comarca, é o mais desenvolvido eco-
nómica, administrativa e socialmente, é o mais povoado e diversificado do ponto
de vista dos seus recursos. Mas de todas as variáveis, as mais determinantes foram
sempre o Rio Lima e o Oceano Atlântico
O desenvolvimento urbanístico de Viana está dependente do rio e do mar. A
condicionante marítima exigiu a construção de infra-estruturas de grande enverga-
dura, como o porto de mar, a que se deve adicionar questões de carácter militar que
justificaram também a construção de equipamentos necessários à defesa da costa
como fortes e muralhas.
São muitas as referências nas Vereações à construção e custeamento do cais e
da barra.
Justificando, em 1610, os avultados custos com a construção do cais e da barra, a
Câmara cria fortes resistências ao pagamento dos encargos dos cónegos da Matriz12.
Veja-se ainda, a acta de vereação de 24 de Setembro de 1631, na qual a Câmara se
pronuncia sobre o resultado do lançamento público da obra do cais de São Lourenço
informando que apesar da obra ter andado a pregão durante muito tempo não teria
havido pedreiros que adjudicassem13. As obras do cais de São Lourenço estariam

6 A.H.M.V.C., Acórdãos de 1701-1706, fl. 6fv.


7 MOREIRA, 1995: 21.
8 COSTA, 1706:189.
9 CARDONA, 2004 (Vol. II. Anexo V, Transcrições, Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, Viana do

Castelo).
10 CAPELA, 1994: 71.
11 COSTA, 1706: 189.
12 A.H.M.V.C., Acórdos da Câmara da Vila de Viana de 1610, fls. 28-99v.
13 A.H.M.V.C., “Acordaons 1631”, fls. 34v.-35.
490 Paula Cristina Machado Cardona

em fase de conclusão em 1643, data em que a Câmara notifica o mestre das obras,
Inácio Dias morador em Viana, para a entregar no prazo de 15 dias14. Quatro anos
depois, uma carta régia determinava a construção de um cais frente ao mosteiro de
S. Bento, obra que arrematou o empreiteiro Afonso Costa15.
As razões de carácter militar têm especial incidência nas obras do castelo/fortaleza
como comprovam as decisões municipais, plasmadas nas actas de vereação da segunda
metade do século XVII. Senão vejamos: A 8 de Janeiro de 1650 é apresentada uma
provisão pelo procurador da comarca, que obrigava à aplicação do dinheiro das
contribuições do sal para as obras da fortaleza que se encontrava bastante danificada,
como havia informado o Conde de Castelo Melhor ao rei, em 1649. A Câmara
reage, dizendo que não existia qualquer acento da pretensão de obras na fortaleza
nas vereações anteriores e que não deviam ser as rendas agravadas, solicitando que
não fosse subtraído qualquer tributo do sal16.
Um ano depois, por decisão régia, as obras do castelo / fortaleza seriam financiadas
pelas rendas do real de água17. Em Maio de 1660, uma ordem do Governador da
Armas da Província de Entre Douro e Minho, referindo a capital importância da
fortificação de Viana, “por ser huma das principais povoaçoins da província de entre o douro
e Minho”, submeteu a obra à avaliação técnica dos engenheiros, mandou desenhar
e ajustou as plantas, ordenando ao Vedor Geral que as rendas do real de água da
vila de Viana e seu termo, fossem expressamente aplicadas nesta obra, obrigando a
Câmara a nomear dois avaliadores das fazendas, e assistentes para acompanhamento
da obra. O documento determina ainda que o Corregedor da Comarca mandara
que dos conselhos de geras e de Santo Antão como mais vizinhos e ynteressados acudão
também ao trabalho da ditta fortificação. O Ouvidor da Comarca de Barcelos devia
angariar para a obra pessoas das comunidades vizinhas de Viana18. Nesse mesmo ano,
em Agosto os vereadores convocam o thenente general de artelharia, Miguel Lescol
no sentido de solicitar a sua presença em regime de permanência em Viana para a
continuidade das obras da fortaleza19.
Imagens de marca de Viana setecentista, ainda hoje perscrutável na Viana do
Século XXI, o cais e a fortaleza, são amplamente referenciadas nas obras impressas
e manuscritas da época.
Descreve em 1706 a Corografia Portugueza: “Tem hum caes de pedraria, que
começa no fim da villa no sitio, que chamão o Papanata & acaba junto a barra no
mar largo, com um reducto no fim, aonde se vão recrear os moradores. Tem na boca
da barra huma inexpugnável fortaleza respeitada das Naçoens estrangeiras (…)”20.
Em a Fénix Vianeza, o autor menciona o cais como “obra tão magestoza (…)
que no senhorio de Portugal se não acha semelhante, porque alem de ser muito alto,
14 A.H.M.V.C., “Acórdãos – 1642-1643”, fls. 27v.
15 A.H.M.V.C., “Acórdãos – 1647”, fl. 28v.
16 A.H.M.V.C., “Acordaons 1650”, fls. 5v.-7v.
17 A.H.M.V.C., “Acordaons 1651”, s/fls.
18 A.H.M.V.C., “Acordaons 1660”, fls. 17-17v.
19 A.H.M.V.C., “Acordaons 1660”, fls.26-27
20 COSTA, 1706: 189.
A encomenda municipal – artistas e obras em Viana da Foz do Lima na Época Moderna 491

muito largo, he muito forte, feito todo de pedra d’esquadria (…) que principia do
magnifico Convento de São Bento, lavado todo o Lima até se entranhar pelas ondas
do Oceano, servindo-lhe de remate hum grande forte, o qual pode jugar oito peças
d’Artilharia por ser sua plante espherica”21.
O porto de mar e o forte mereceram especial destaque na descrição da freguesia
de Monserrate, apresentada nas Memórias Paroquiais – “Tem um porto de mar que
foy hum dos notáveis do Reyno, em quanto as areias não impediram a entrada de
grandes embarcaçoens no qual entravão sacenta e satenta navios (…). Fica a barra
no destricto desta freguezia garnecida da parte do Norte de hum famozo caes, com
seu forte e postes para se amararem com segurança as embarcaçoens (…)”22.
Estas infra-estruturas de grande envergadura que consumiam uma significativa
quantia das rendas e receitas municipais eram complementadas por outra tipologia de
obras públicas: ruas, praças e construção de pontes; obras que se destinavam a suprir
necessidades básicas da comunidade que, como referimos, tinham especial impacte
as relacionadas com o abastecimento de água. Neste ponto gostaríamos de precisar
que as medidas municipais recaiam essencialmente na manutenção, reparação e
conservação das redes de captação e distribuição de água para os chafarizes e fontes
municipais, referências que se plasmam de forma muito vincada nas Vereações a partir
de 1604. Este tipo de intervenções envolvia obrigatoriamente mestres pedreiros com
vasta experiência, não nos passa incólume, nomes como os dos mestres pedreiros
Damião Lopes e Pedro Lopes, contratados pela Câmara Municipal, respectivamente
em 1606 e 1610, para a reparação dos chafarizes da rua do Postigo e S. Domingos,
mestres pertencentes a uma família de prestigiados pedreiros locais, activos em Viana
desde o século XVI23. Estes contratos, com periodicidade de um ano, são em muitos
casos dilatados, como aliás observamos no caso do mestre pedreiro João Rodrigues
que adjudica com a Câmara as obras de manutenção dos chafarizes entre 1701 e
170524. Caso paradigmático que se testemunha com o mestre pedreiro António
Lopes Trindade, contratado pelo município, por um longo período, que decorreu
entre 1729 e 174925.
Se este tipo de obras implicava consideráveis encargos, outras houve, como as
que se realizavam em edifícios públicos, que assumiam expressão nas contas públicas.
Importa contudo salientar que se trata de áreas de intervenção que exigiam o recurso
a mão-de-obra especializada como se constata das tabelas que se seguem.

21 NORTON, 1981: 152-153.


22 INATT – Dicionário Geográfico 1758. Memórias Paroquiais, vol. 39, n.º 149, fls. 881-886.
23 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1606, fls. 20v.-21; A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1610, s/fls.
24 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1698-1701, fls. 93v.-94v.; Actas da Câmara 1701-1706, fl. 32v.; Actas da Câmara

1701-1706, fls. 66.-66v.


25 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1731-1738, fls. 28-29; Actas da Câmara 1744-1748, fls. 27-28; A.D.V.C., Fundo

Notarial de Viana do Castelo, Livro de Notas, Tabelião: COSTA, Baltazar Gomes da, 2.º Ofício, fl. 274.
492 Paula Cristina Machado Cardona

Quadro n.º 1 – Abertura de ruas e praças, construção e reparação de pontes


Data Descrição da Obra Autor
1610, 29 de Referência a uma praça nova, mandada construir na Ribeira, como
Dezembro local destinado à feira quinzenal26. Esta praça receberia o comércio
de pescado, uma vez que o local onde se realizava anteriormente a
venda de peixe, a Porta da Ribeira, era bastante exíguo27.
1632, Decisão sobre a abertura de uma rua para permitir a serventia à fonte
7 de Janeiro do Gontim, tendo sido estabelecidas negociações com a comunidade
religiosa do convento do Carmo28.
1698, Execução da calçada da rua da Bandeira, desde o extremo de S. Manuel Afonso e Domingos
12 de Abril Vicente até à casa de Domingos Dias29. Pires da Lage (pedreiros)
1698, obra da rua de S. Sebastião, desde Santa Clara até ao Campo do António Martins Aleixo
7 de Maio Forno30. (pedreiro)
1699, obra da calçada da rua dos Cabreiros31. Domingos Lourenço (pedreiro)
21 de Janeiro
1701, Adjudicação da obra da calçada da rua das Correias32. Manuel Fernandes Portela
2 de Janeiro (mestre pedreiro)
1716, Decisão sobre a construção de uma ponte e os seus impactes sobre
15 de Abril a barra da vila33.
1751, Proposta da Câmara aos concelhos circunvizinhos no sentido de
28 de Julho co-financiarem a reedificação da ponte, por serem directamente
beneficiados com essa infra-estrutura34.
1756, obra da calçada da rua da Piedade e o conserto da rua da Bandeira35. António Lopes Trindade
4 de Julho Bento Lourenço (mestres
Pedreiros)
1761, Conserto da rua de Altamira .36

21 Janeiro
1768, 9 de Decisão sobre a restituição da Praça das Couves, que havia sido
Novembro desactivada. Era necessário um local onde se pudessem vender
hortaliças de manhã e forragem para os animais de tarde37.
1774, Referência às obras das ruas da Bandeira e da Picota38.
28 de Maio
1785, Adjudicação do arruamento da zona das tendas e tabernas do campo
23 de Julho da feira da Senhora da Agonia39.
2627282930313233343536373839

26 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1610, fls. 43-43v.


27 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1610, fls. 50-52.
28 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1632, fls. 47v.- 48.
29 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1696-1698, fls. 3-3v.
30 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1698-1701, fl. 4v.
31 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1698-1701, fl. 30.
32 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1698-1701, fls. 88-88v.
33 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1713-1717, fls. 91v.-93.
34 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1750-1752, fls. 135v.-136.
35 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1753-1754, fls. 35v.-37
36 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1760-1766, fl. 34.
37 A.H.M.V.C., Acórdãos 1766-1770 fl. 64v.
38 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1770-1776, fls. 169-169v.
39 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1781-1788, fls. 108v.-109.
A encomenda municipal – artistas e obras em Viana da Foz do Lima na Época Moderna 493

Quadro n.º 2 – Abastecimento público de água40414243444546474849505152


Data Descrição da Obra Autor
1606, 23 de Decisão sobre a construção de um chafariz no cruzeiro de Altamira40.
Dezembro
1624, 3 de obra do encanamento da água da fonte do Espírito Santo, para a Domingos Pires e Manuel
Março rua da Bandeira41. Afonso (pedreiros)
1632, 7 de A Câmara determinou fazer uma captação de água para a fonte
Janeiro do Espírito Santo42.
1646, 7 de A Câmara decidiu nomear uma pessoa encarregue de superintender Martim Casado Jácome
Janeiro as obras das fontes que se faziam43.
1651, 20 de Reforço do abastecimento de água ao convento de S. Domingos, a Gonçalo de Araújo Africano
Novembro partir do chafariz da vila44. (mestre Pedreiro)
1680, 27 de Aplicação das rendas do imposto sobre o azeite para as obras dos
Janeiro chafarizes45.
1717, 11 de Referência às obras de captação de água para abastecimento do Manuel Bento Brochado
Setembro convento de S. Domingos46. [pedreiro(?)]
1729, 6 de obra dos aquedutos das águas provenientes do chafariz do Campo António Lopes Trindade,
Fevereiro do Forno47. morador na Portela, Viana
(mestre pedreiro)
1731, 20 de obra de encanamento da água do chafariz do Campo do Forno para António Lopes Trindade (oficial
Setembro o chafariz do Postigo48. de pedreiro)
1744, 25 de Referência à manutenção dos canos dos chafarizes da vila, na António Lopes Trindade,
Agosto sequência da falta de água que se sentia49. (fontaneiro)
1749, 8 de obra de captação de água de uma mina e respectivo encanamento50. António Lopes Trindade,
outubro morador no lugar da Portela,
Viana (mestre pedreiro)
João Alves Bispo, morador na
freguesia da Areosa, Viana
(mestre pedreiro)
1755, A Câmara pronuncia-se sobre o encaminhamento das águas dos
7 de Maio aquedutos públicos, que desembocavam no chafariz de S. Domingos,
considerando-as de grande utilidade aos fregueses de Monserrate.51
1767, Reforma do paredão por onde circulavam ao aquedutos das águas
22 de Abril públicas, convocando para esse efeito, o mestre dos aquedutos.52

40 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1781-1788, fls. 44-45.


41 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1624, fls. 18v.-19.
42 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1632, fls. 50-50v.
43 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1646, fl. 3v.
44 A.H.V.C., Actas da Câmara 1651, fls.38v.-39v.
45 A.H.V.C., Actas da Câmara 1651, fls. 53v.-54.
46 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1717-1720, fls. 53-53v.
47 A.D.V.C., Arquivo Notarial de Viana do Castelo, Tabelião: GuIMARÃES, José Ribeiro, 7.º ofício, fls. 56-56v.
48 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1731-1738, fls. 28-29.
49 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1744-1748, fls. 27-28.
50 A.D.V.C., Fundo Notarial de Viana do Castelo, Livro de Notas, Tabelião: CoSTA, Baltazar Gomes da, 2.º ofício,
fl. 274.
51 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1755-1757, fls. 2-5.
52 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1766-1770, fls. 27-27v.
494 Paula Cristina Machado Cardona

Data Descrição da Obra Autor


1768, 7 de Foi ordenado a restituição aos tanques públicos, da água que havia
Dezembro sido canalizada para o convento de S. Teotónio.53
1771, 23 de Pedido de exame aos aquedutos devido à falta de água que se fazia
Dezembro sentir.54
1774, 22 de Construção de um novo chafariz na Praça das Couves. Foram
Junho mandadas examinar as arcas de água.55
1774, 1 de A Câmara sublinha a necessidade de terminar o chafariz do cais
Julho de S. Bento.56
1778, 19 de A Câmara mandou examinar as mães de água do Fincão, os aquedutos
Fevereiro públicos e os particulares.57
5354555657
Quadro n.º 3 – Edifícios e equipamentos público – as marcas do poder585960616263646566
Data Descrição da Obra Autor
1599, Provisão Régia dirigida à Câmara ordenando a mudança do pelourinho Fernão Dias (Pedreiro)
31 de Julho do sítio onde se encontrava (omite o local) para a uma nova praça que
se construía no Postigo58.
1683, 24 de Vistoria aos edifícios da Câmara e Audiência para se definir o programa
Novembro de obras a realizar59.
1684, Decisão sobre a nova Casa da Câmara e Cadeia60.
22 de Abril
1698, 24 de Adjudicação da obra da Casa da Roda61. José Rodrigues (oficial de pedreiro)
Dezembro
1699, 3 de Remate da obra de carpintaria da cadeia62. Manuel Gonçalves (oficial de
Fevereiro carpinteiro)
1699, 7 de Adjudicação da obra do edifício da Câmara63. João Rodrigues (mestre pedreiro)
Fevereiro
1701, 2 de Adjudicação da obra de carpintaria do edifício da Câmara64. Manuel Fernandes (carpinteiro)
Janeiro
1701, 17 de Conclusão das obras de reedificação da Casa da Câmara, alvenaria, Francisco Fernandes Cerdal,
outubro carpintaria, reboco, estuque e telhados65. morador em Viana (mestre de obras)
1724, Execução da obra da Casa da Roda, Cadeia e Alfândega66. José Meira (mestre carpinteiro)
5 de Maio

53 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1766-1770, fls. 66v.-67.


54 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1766-1770, fls. 69v.-70v.
55 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1766-1770, fls. 175-176 A água seria retirada da taça inferior do chafariz do Campo
do Forno, os canos seriam de chumbo, forrados de pedra.
56 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1766-1770, fls. 176-177.
57 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1776-1781, fls.97-98.
58 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1599, fls. 38-39.
59 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1683-1685, fl. 28.
60 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1683-1685, fls. 30v.-31.
61 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1698-1701, fls. 26v.-27.
62 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1698-1701, fl. 34.
63 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1698-1701, fl. 34v.
64 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1698-1701, fl. 88v.
65 A.D.V.C., Arquivo Notarial de Viana do Castelo, Tabelião: RoCHA, António da Silva, MACIEL, João António,
RoCHA, Francisco José, 5.º ofício, fls. 124v.-125.
66 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1721-1726, fl. 112v.
A encomenda municipal – artistas e obras em Viana da Foz do Lima na Época Moderna 495

Data Descrição da Obra Autor


1733, Adjudicação da obra da Alfândega Real67. Domingos Vieira
22 de Agosto (mestre carpinteiro)
1740, Vistoria às obras dos alpendres construídos pela confraria do Santíssimo Manuel Pinto Vilas Lobos;
11 de Agosto Sacramento68. Manuel Alves Martins e António
Trindade. (mestres pedreiros)
1744, A Câmara manda colocar a pregão da obra do conserto da Alfândega
19 de Março Nova69.
1769, Reedificação da Alfândega Nova, Cadeia, chafariz do Postigo e cais70.
13 de Junho
1770, 26 de Reparação e conserto da cadeia71.
Setembro
1771, Criação de uma escola de retórica, grego, gramática e filosofia, no edifício
7 de Agosto do convento de S. Teotónio72.
1772, o risco definido pelos mestres pedreiros para as obras do cais de S. Bento
26 de Agosto implicava a anexação de terreno conquistado ao rio, o que valorizava, na
opinião do Senado, a frente urbana da vila, dignificando o pelourinho que aí
existia e o convento de S. Bento que ficava mesmo em frente ao terreiro73.
1773, Pintura e reboco da Cadeia e Casa da Câmara74. Paulo Rodrigues de oliveira, da
7 de Julho freguesia de Afife
1774, A Câmara ordenou que os alpendres do Santíssimo Sacramento que se
9 de Abril localizavam no Postigo fossem destapados, por prejudicarem o aspecto
estético da vila causando entraves à movimentação de pessoas75.
1774, Decisão sobre a demolição dos arcos do São Bom Homem e Cavalcante76.
23 de Abril
1774, Provisão real a ordenar a construção de uma Casa da Pólvora77.
30 de Abril
1776, Adjudicação das obras da Casa da Câmara78. João Ferreira (pedreiro)
19 de Junho
1776, Adjudicação da obra de madeiramento da Casa da Câmara79. Simão Gonçalves (carpinteiro)
31 de Julho
1777, Decisão sobre a obra dos estuques da Casa da Câmara – fachada
1 de Março principal80.
1777, 17 de obra do passeio público para recreio dos habitantes de Viana, usando para
Dezembro o efeito o terreno que servia de entrada ao convento Santo António81.
676869707172737475767778798081

67 A.D.V.C., Arquivo Notarial de Viana do Castelo, Tabelião: GuIMARÂES, José Ribeiro, 7.º ofício, fls. 93v.-94v.
68 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1739-1744, fls. 59v.-61v.
69 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1744-1748, fls. 58-58v.
70 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1766-1770, fls.77v-78.
71 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1770-1776, fls. 6v.-8.
72 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1770-1776, fls. 55v.-63v.
73 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1770-1776, fls. 106v.-108.
74 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1770-1776, fls. 144v.-145v.
75 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1770-1776, fls. 158v.-159v.
76 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1770-1776, fls. 161v.-162v.
77 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1770-1776, fls. 164-165v.
78 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1770-1776, fls. 4-4v.
79 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1770-1776, fls. 12-12v.
80 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1770-1776, fls. 32-32v.
81 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1776-1781, fls. 90-91.
496 Paula Cristina Machado Cardona

As rendas municipais asseguravam também encargos religiosos, em particular com


os edifícios e as fábricas da igreja82.
Neste contexto, balizaremos a intervenção do município entrando em linha de
conta com o papel que lhe coube em matéria executiva, isto é, as obras que efec-
tivamente por direito e dever devia assegurar e providenciar e outras, dependentes
das deliberações municipais - deferimento e despachos de autorização de obras em
e de edifícios públicos por solicitação de um variado leque de requerentes.

Obras e encomendas municipais para a Colegiada de Viana do Castelo


Segundo dados compulsados por Manuel António Fernandes Moreira em 1522,
as rendas da Câmara de Viana eram de 147.200 réis, sendo as despesas de 137.300
réis. A maior fatia, no valor 66.000 réis, equivalente a 48% do total, correspondia à
terça da igreja83. Como despesas obrigatórias tinham o custeamento das festas reais e
sustentação do culto e as obras do corpo da igreja; os sinos, relógio e o órgão estavam
também debaixo da sua alçada84.
As intervenções do município na igreja Matriz estão documentadas, praticamente
desde a construção do templo, em inícios do século XV, quando este dirige em 1439,
um pedido a D. Afonso V para obter autorização e financiamento para custear a
construção da torre, uma sacristia e alpendres. De facto, a fábrica do corpo da igreja
matriz e as torres, estavam sob alçada municipal.
À luz do relato das Memórias Paroquias de 1758, a matriz evocativa da colegiada
de Santa Maria Maior, pouco havia alterado em comparação com o relato de Vilas-
Boas de 1710-1715: “tem vinte altares, o altar-mor da Senhora com irmandade, o
do Santíssimo com irmandade, o de São Caetano, o de São Bernardo, o do Espirito
Santo, com irmandade, o da Senhora da Graça, o das Almaz com irmandade, o da
Senhora da Piedade, o de São Miguel com irmandade, o de São Braz, o da Senhora
da Luz com irmandade, o de São Thome, o de Christo, o de Jezus com irmandade,
o da Senhora da Consolação o de São Bartholomeu, o da Senhora da Conceição o
de Santa Catharina o de São Nicolao com irmandade, o de Santo António”85.
O esquema seguinte procura ser uma reconstrução do que seria a distribuição das
capelas e respectivas invocações na segunda metade do século XVIII.

82 CAPELA, 1995: 35.


83 MOREIRA, 1992: 42.
84 MOREIRA, 1996: 199. Quanto às festas religiosas da obrigação da Câmara, o autor identifica a do Corpo de Deus,

Anjo Custódio, Santa Isabel, São Filipe, São João, São Sebastião, Santa Maria Maior e Santos Mártires (Santa
Revocata, São Teófilo e São Saturnino),.
85 CARDONA, 2004 (Vol. II. Anexo V, Transcrições, Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, Viana do

Castelo).
A encomenda municipal – artistas e obras em Viana da Foz do Lima na Época Moderna 497

Figura n.º 1

1 – Capela-mor 12 – Capela de N.ª Sr.ª das Dores


2 – Capela do Santíssimo Sacramento 13 – Capela de S. Cristóvão
3 – Capela do Santo Cristo 14 – Baptistério
4 – Capela dos Mareantes 15 – Sacristia de N.ª Sr.ª da Assunção
4.1 – Altar de S. José 16 – Acesso à tribuna do retábulo-mor
4.2 – Altar de N.ª Sr.ª do Rosário 17 – Sacristia do Santíssimo Sacramento
5 – Capela do Espírito Santo 17.1 – Primeira casa ou casa dos bancos
5.1 – Altar de S. Pedro 17.2 – Casa da Cera
5.2 – Altar de S. Paulo 17.3 – Cartório/consistório do Santíssimo Sacramento
6* – Capela de S. Bernardo 18 – Sacristia dos Mareantes
7* – Capela dos Inocentes 19 – Sacristia do Espírito Santo
8 – Capela dos Camaridos 19.1 – Consistório do Espírito Santo
9 – Capela de Nossa Senhora da Piedade 20 – Torre do Espírito Santo
10 – Capela de S. Bartolomeu, teve invocação de Santiago. * Informação retirada do Livro das Sepulturas da confraria
Actualmente é dedicada à Senhora dos Artistas. do Espírito Santo (1708, 27 de Agosto)
11 – Capela das Almas

Vários interesses de ordem institucional convergiram no espaço da igreja Matriz


de Viana, com reflexos e expressão nas obras que aí foram realizadas pelos diferentes
actores. Algumas destas obras, não muitas, nem significativas dependeram do arbítrio
da mitra primacial bracarense, outras deveram-se à iniciativa privada, em especial
à aristocracia local, grande parte delas partiu da dinâmica dos movimentos laicais,
as confrarias e um número específico de intervenções esteve a cargo da Câmara.
o estudo da documentação municipal permite-nos destacar três níveis de interven-
ção da Câmara Municipal de Viana do Castelo, na igreja Matriz: obras de construção
e manutenção do templo; encomendas relacionadas com artes decorativas e um
terceiro nível, o do relacionamento institucional com os restantes actores sedeados
no espaço paroquial – a igreja e as confrarias, com reflexo na gestão física do mesmo.
498 Paula Cristina Machado Cardona

Construção e manutenção do templo


Uma escritura de contrato e obrigação assinada pela Câmara a 20 de Agosto
de 1619 marca a sucessão de intervenções, mais sistemáticas na igreja paroquial de
Santa Maria Maior, Colegiada Matriz de Viana do Castelo.
Esta escritura descreve os contratos de obras de carpintaria, pedraria e ferragens,
indiciando que por essa altura o templo passava por uma grande reforma na sua
cobertura. A obra de carpintaria foi adjudicada a João Ribeiro, “arquitecto de car-
pintaria”, natural de Guimarães, a Pedro Gonçalves e Francisco Gomes, carpinteiros,
moradores em Viana, por preço de 1.320.000 réis. Trabalhando com uma equipe de
oito oficiais, comprometem-se a dar pronta toda a asnaria, ripagem e forro do tecto
pela Páscoa de 1620, de forma a proceder-se, faseadamente, ao telhamento da nave
da igreja. A obra de pedraria foi entregue aos mestres pedreiros António Gonçalves
do Lago e Pedro Lopes de Viana e Pedro Soeiro da freguesia de Moreira de Geraz,
do mesmo concelho, por preço de 190.000 réis, ficando a seu cargo o fornecimento
da pedra lavrada para assentar o telhado da igreja. Neste contrato é adjudicado aos
mestres ferreiros Gonçalo Martins e Gonçalo Anes a execução dos tirantes de ferro
e ferragens, obra que se executaria durante o mês de Fevereiro de 162086.
Na vereação de 9 de Maio de 1620 é deliberado nomear uma pessoa “entendida”
que acompanhasse as obras de pedraria e carpintaria, entretanto adjudicadas, para
assegurar que as mesmas respeitavam o traçado definido. Escolheram António Pires
o Velho, morador em Viana, “pessoa de muita artesania e entendimento”87.
O juiz de fora, os vereadores, o procurador do concelho e o procurador dos
mesteres reúnem-se novamente a 29 de Janeiro de 1629 para adjudicar o relógio a
instalar na torre norte da Matriz. Lourenço Fernandes foi o mestre armeiro contratado,
natural de Viana do Castelo. Receberia pelo equipamento 60.000 réis. O relógio
tocaria sempre que a Câmara ordenasse, nas festas principais e em caso de fogo ou
aproximação de inimigos88.
As actas da Câmara de 1 de Outubro de 1631 indicam que foram colocadas a
pregão e adjudicadas as obras de pintura das seis frestas da igreja Matriz ao pintor
João Machado89.
Na reunião de 3 de Abril de 1660 referem o incêndio que assolou a sacristia dos
cónegos da colegiada.90 Este incêndio teria destruído o espólio da Câmara depositado
nesse espaço, nomeadamente alfaias e objectos litúrgicos como se induz nesta mesma
vereação, em que se fez a entrega ao procurador do concelho de 30 marcos de prata

86 CARDONA, 2004 (Vol. II. Anexo I, Transcrições, Documentação Notarial de Viana do Castelo, Doc. n.º 1).
87 CARDONA, 2004 (Vol. III, Anexo I, Quadros. A Encomenda de Obras no Concelho de Viana do Castelo, 1600-
1650). A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1620, s. fls.
88 CARDONA, 2004 (Vol. II. Anexo I, Transcrições, Documentação Notarial de Viana do Castelo, Doc. n.º 5).
89 CARDONA, 2004 (Vol. III, Anexo I, Quadros. A Encomenda de Obras no Concelho de Viana do Castelo, 1600-

1650). A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1631, fl. 37v.


90 CARDONA, 2004 (Vol. III, Anexo I, Quadros. A Encomenda de Obras no Concelho de Viana do Castelo, 1650-

1700). A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1660, fl. 14.


A encomenda municipal – artistas e obras em Viana da Foz do Lima na Época Moderna 499

e 9,5 onças salvas do incêndio91. O P.e Pedro de Almeida Couraça, na sua obra
Fénix Vianeza, descreve desta forma o incêndio: “No ano de 1656, ardeu a principal
sacristia com muita perda d’ornamentos, e muita quantidade de prata, a qual perdas
foi avaliada em muitos mil cruzado […]”92.
Um capítulo de visita obrigará a Câmara, em 1682, a aplicar parte do rendimento
do imposto das sisas nas obras de reparação da igreja Matriz93.
No século XVIII a Câmara determina o conserto da abóbada da torre, para impedir
as chuvas de danificar o relógio, procedendo à reposição do forro do último tramo do
sobrado94. A torre continua a ser alvo das intervenções da Edilidade, especialmente
em 1723, quando adjudicam a Agostinho Ferreira da Rocha, mestre sirgueiro, a
obra da fundição do relógio95. Este mestre encarregar-se-á da execução de um novo
relógio em Dezembro de 174396.
Um novo sino para a torre da igreja é encomendado, por decisão da Câmara, em
172497. Este equipamento, que a Câmara era obrigada a prover, devia ser mantido nas
mais perfeitas condições, como se documenta em 1744, com uma nova fundição do
sino, obra examinada pelo sargento-mor e engenheiro mestre relojoeiro e em 1785,
quando se colocam editais convocando todos os pedreiros e ferreiros a concorrer
para a obra da armação do sino do relógio da igreja Matriz98.
O frontispício da Matriz apresentava sinais de degradação, “estava arruinado
indecente e cheio de ervas e musgos,” providenciando a Câmara a limpeza necessária.
Assim decidem em Junho de 1791. Este tipo de intervenções relacionadas com a
manutenção da igreja Matriz e todas as outras destinadas ao ornamento do templo
estavam definidas numa antiga provisão régia, no livro do Foral Grande, conforme
referem, devendo, por esse facto, o provedor da comarca considerar todas as despesas
com as obras necessárias à igreja Matriz99.
A Câmara actuou diligentemente, pelo menos inicialmente, no sentido de se
proceder à reconstrução da igreja Matriz logo após o incêndio de 1806.
Uma semana após a ocorrência assumiram as despesas que se fizeram com a extinção
do fogo e convocaram os cónegos da colegiada para definir regras de actuação, com

91 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1660, fl. 14.


92 NORTON, 1981: 153.
93 CARDONA, 2004 (Vol. III, Anexo I, Quadros. A Encomenda de Obras no Concelho de Viana do Castelo, 1650-

1700). A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1682-1683, fls. 10v.-11


94 CARDONA, 2004 (Vol. III, Anexo I, Quadros. A Encomenda de Obras no Concelho de Viana do Castelo, 1700-

1750). A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1717-1720, fls. 132-132v.


95 CARDONA, 2004 (Vol. III, Anexo I, Quadros. A Encomenda de Obras no Concelho de Viana do Castelo, 1650-

1700). A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1721-1726, fls. 76-76v.


96 CARDONA, 2004 (Vol. III, Anexo I, Quadros. A Encomenda de Obras no Concelho de Viana do Castelo, 1700-

1750). A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1739-1744, fls. 209-210


97 CARDONA, 2004 (Vol. III, Anexo I, Quadros. A Encomenda de Obras no Concelho de Viana do Castelo, 1650-

1700)- A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1721-1726, fls. 101-102


98 CARDONA, 2004 (Vol. III, Anexo I, Quadros. A Encomenda de Obras no Concelho de Viana do Castelo, 1750-

1800). A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1744-1748, fls.12 -13; Actas da Câmara 1781-1788, fls.100v.-101
99 CARDONA, 2004 (Vol. III, Anexo I, Quadros. A Encomenda de Obras no Concelho de Viana do Castelo, 1750-

1800). A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1788-1794, fls.107v.-108


500 Paula Cristina Machado Cardona

o objectivo de dar início ao programa de obras de reconstrução100. A 1 de Fevereiro


de 1806 convocam as confrarias da Matriz, solicitando destas corporações apoio
financeiro para a empreitada. A confraria do Espírito Santo assumirá a reconstrução
da sua capela, ampliando-a em comprimento e executando o retábulo de acordo com
o risco previamente aprovado pela Câmara. A confraria do Santíssimo Sacramento
informa a Câmara que faria tudo o que fosse necessário para a recuperação da igreja,
incluindo a capela e o retábulo. Quer num caso, quer noutro ambas as confrarias
obrigaram-se a assinar escritura pública com estas declarações101.

Artes decorativas
Nesta rubrica, antes de documentarmos as intervenções mais frequentes, de
responsabilidade municipal, e referimo-nos especificamente aos órgãos encomendados,
gostaríamos de salientar as intervenções que implicaram directa e indirectamente
capelas do espaço paroquial e respectivos ornamentos: uma reporta-se ao séc. XVI,
precisamente a 21 de Maio 1524 data em que colectivamente a Câmara Municipal,
a Misericórdia e a confraria do Espírito Santo, para enobrecimento da igreja Matriz,
decidiram fazer uma capela, em frente à capela do Santo Nome de Jesus dos
Mareantes, na forma de cruzeiro, na qual construiriam um altar com as imagens da
Misericórdia e do Espírito Santo e onde colocariam também as imagens dos Santos
Apóstolos. Nesta capela dir-se-iam os ofícios divinos de uma e outra irmandade.
Paralelamente decidiram fazer uma sacristia com seus armários para guardarem as
pratas e ornamentos102.
A colocação de um cadeiral na capela-mor, por iniciativa do cabido da colegiada
(que originou uma veemente reacção da confraria do Santíssimo Sacramento), levantou
celeuma com a Câmara que dirigiu ao cabido da Sé Primaz, em Setembro de 1730,
uma carta informando dos graves inconvenientes que havia em serem colocadas
cadeiras na capela-mor. Em resposta, o cabido afiançava que não se colocaria nada
na capela-mor sem consentimento prévio destes e da Câmara103.
Da encomenda municipal, provavelmente para a Matriz, fez parte uma imagem
de Nossa Senhora que em 1754 é encomendada ao mestre pintor vianense Manuel
José de Gouveia104.
As obrigações da Câmara, no espaço da paróquia, incluíam também a música
e, neste plano, gostaríamos de destacar a do órgão, obrigatória nas funções régias e
nos momentos litúrgicos mais solenes, como por exemplo a assistência nas missas de
Vésperas da Paixão, Semana Santa e Vésperas da Páscoa. As vereações registam os

100 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1806-1822, fls. 4v.-6


101 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1806-1822, fls. 7-7v.
102 Arquivo da Igreja Matriz de Viana do Castelo, “Tombo das Escrituras e mais papéis pertencentes a esta irmandade

do Espírito Santo [...] até ao ano de 1659 [...]”, fls. 56v.-57v.


103 CARDONA, 2004 (Vol. III, Anexo I, Quadros. A Encomenda de Obras no Concelho de Viana do Castelo, 1700-

1750). A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1731-1738, fls. 183v.-184


104 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1753-1754, fls. 86-87v.
A encomenda municipal – artistas e obras em Viana da Foz do Lima na Época Moderna 501

nomes dos diversos mestres capela e organistas contratados para o cumprimento deste
desiderato e os investimentos feitos nas aquisições e manutenções deste equipamento.
Foram quatro, pelo menos, os órgãos encomendados pela Câmara105.
Trabalhámos as vereações referentes às encomendas e aos consertos dos órgãos
desde finais do primeiro quartel do século XVII. Ao organeiro Tomé da Costa foi
adjudicada a 15 de Fevereiro de 1620, a obra de um novo órgão106. Este equipamento
será reparado em 1638, sendo feitas intervenções ao nível da caixa e dos mecanismos,
concretamente os canos em falta, 40.000 réis foi o valor dos honorários cobrados
pelo mestre organeiro bracarense Sebastião Fernandes107.
Em Setembro de 1701 a Câmara assinará escritura de contrato referente à repa-
ração do órgão da Matriz com o mestre “de obra e construtor organeiro”, natural de
Braga, Geraldo Vieira, também autor dos apontamentos, pela quantia de 120.000
réis, pagos pelas rendas da Câmara108. É nossa convicção que só em 1719 se decide
o douramento da caixa do órgão. A informação é ventilada pelo termo de Vereação
que determina, nesse mesmo ano, a adjudicação da pintura da caixa do órgão pelo
lance mais baixo109.
Tudo leva a crer que o organeiro bracarense tenha sido avençado pelo município
para assegurar a afinação do órgão da Matriz. Esta ideia é transmitida na acta de
Janeiro de 1730, na qual referem especificamente que Geraldo Vieira era detentor do
partido de afinação do órgão da Matriz de Viana e como há muito que não executava
a afinação do referido instrumento, por se encontrar distante, propõem que o mesmo
partido transitasse para Pedro Francisco Cerdal, natural e morador em Viana, pessoa
experiente no ofício de afinador, porquanto fazia a afinação do órgão da capela dos
Mareantes na mesma igreja110.
Numa nova audiência, os reverendos da colegiada, reiterando que o órgão se
encontrava bastante danificado, manifestam urgência na execução de um novo
equipamento. Tendo conhecimento da presença em Viana do padre Lourenço da
Conceição Sousa, residente no Porto e mestre perito em órgãos, solicitaram que
o mesmo examinasse o da Matriz, informando da viabilidade da sua reutilização.
Temendo os párocos que o órgão não ficasse capaz, comprometem-se a comparticipar
na obra da caixa do novo órgão.
Presente em Câmara, o mestre Lourenço da Conceição, depois de examinar
o órgão da Matriz, informou que o mesmo não se encontrava capaz de afinar ou

105 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1624, fls. 23-23v.; Actas da Câmara 1631, fl. 14; Actas da Câmara 1647, fl. 29 (cota:
764); Actas da Câmara 1651, s/fls.; Actas da Câmara 1686-1687, fl. 6; Actas da Câmara 1696-1698, fl. 32; Actas
da Câmara 1721-1726, fls. 129v.-130; Actas da Câmara 1731-1738, fls. 237-237v.; Actas da Câmara 1776-1781,
fls. 32-32v. ; Actas da Câmara 1781-1788, fls. 5-5v.
106 CARDONA, 2004 (Vol. III, Anexo I, Quadros. A Encomenda de Obras no Concelho de Viana do Castelo, 1600-

1650). A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1620, s. fls.


107 CARDONA, 2004 (Vol. III, Anexo I, Quadros. A Encomenda de Obras no Concelho de Viana do Castelo, 1600-

1650). A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1638/1639, fl. 5v.


108 CARDONA, 2004 (Vol. II. Anexo I, Transcrições, Documentação Notarial de Viana do Castelo, Doc. n.º 15).
109 CARDONA, 2004 (Vol. III, Anexo I, Quadros. A Encomenda de Obras no Concelho de Viana do Castelo, 1700-

1750). A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1717-1720, fls. 132-132v.


110 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1726-1731, fls. 130-130v.e fls. 144-145v.
502 Paula Cristina Machado Cardona

reparar. A Câmara decidiu que se fizesse o órgão novo à vista dos apontamentos
que já se haviam feito, solicitando um orçamento a Lourenço da Conceição. Os
apontamentos foram previamente vistos pelo mestre capela Rafael da Gama Coelho.
A obra do novo órgão seria então adjudicada por 350.000 réis, dando-lhe o órgão
velho, comprometendo-se o mestre organeiro a concluí-lo e a colocá-lo no seu sítio
em Dezembro de 1730. Este equipamento encontrava-se numa das paredes da nave
da igreja Matriz111.
Para a conservação do instrumento a Câmara é obrigada a aplicar uma medida
extrema. Em Fevereiro de 1745 decidem proceder a mais uma reparação do órgão
e interditar a sua utilização fechando-o de forma a evitar que nele tocassem inva-
riavelmente muitas pessoas, impedindo por esta via que se agravassem os danos
causados ao instrumento112.
A Câmara gastava uma verba anual de 40.000 réis correspondente ao órgão,
tocado diariamente nas missas da Matriz. Este valor era acrescido de mais 33.000
réis, despendidos com o mesmo equipamento quando era usado nas suas festas113.
A necessidade de executar um novo órgão é ventilada em 1759114. A obra será
adjudicada, por decisão da Câmara de 6 de Maio de 1761, a Juam Fontanes, mestre
organeiro, castelhano, pela quantia de 117.000 réis115.

O relacionamento institucional. Impactes no espaço paroquial


O relacionamento da Câmara, que tinha obrigações na igreja Matriz, com as
outras instituições sedeadas no mesmo espaço, era em alguns casos de cooperação e
inter-ajuda e noutros, de confronto e ruptura.
Da documentação extraímos alguns exemplos nos quais se esclarece melhor
este intrincado mundo de interesses institucionais em conflito. Em finais de 1610 a
Câmara está reunida para deliberar acerca dos 500.000 réis que era obrigada a pagar
para os encargos dos cónegos nomeados para a Matriz, valor retirado das receitas
das contas correntes ou dos rendimentos da Câmara. Achavam-se prejudicados com
essa situação vendo esta contribuição como um grande inconveniente, pelo facto dos
cónegos não representarem a Câmara nas igrejas para as quais eram nomeados, neste
caso particular, agravado pelo facto dos cónegos serem jovens e poderem renunciar.

111 CARDONA, 2004 (Vol. III, Anexo I, Quadros. A Encomenda de Obras no Concelho de Viana do Castelo, 1700-
1750). A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1731-1738, fls. 153-157
112 CARDONA, 2004 (Vol. III, Anexo I, Quadros. A Encomenda de Obras no Concelho de Viana do Castelo, 1700-

1750). A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1744-1748, fls.12 -13


113 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1748-1750, fls. 51v.-53
114 CARDONA, 2004 (Vol. III, Anexo I, Quadros. A Encomenda de Obras no Concelho de Viana do Castelo, 1750-

1800). A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1758-1760, fls. 60v.-61. A 12 de Dezembro de 1759, em audiência conjunta,
os cónegos e o arcipreste da Matriz, juntamente com o prior da igreja paroquial de Monserrate, informam que o
órgão da colegiada se encontrava incapaz para os ofícios divinos, por se encontrar degradado e desafinado, por não
ter sido reparado nos últimos trinta anos. Propõem à Câmara a execução de um novo instrumento, colocado no
corpo da igreja Matriz, recebendo a parede em frente um outro órgão falso.
115 CARDONA, 2004 (Vol. III, Anexo I, Quadros. A Encomenda de Obras no Concelho de Viana do Castelo, 1750-

1800). A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1760-1766, fls. 41-43


A encomenda municipal – artistas e obras em Viana da Foz do Lima na Época Moderna 503

Estes argumentos são reforçados com o custo avultado que se fazia com as obras do
cais e da barra116.
A vereação de 4 de Julho 1663 encerra um termo de denúncia, contra o arcipreste,
tesoureiro e cónegos da Matriz, que não faziam o devido acompanhamento do culto
divino, infringindo desta forma as obrigações que lhes eram atribuídas: dizer missa na
terça-feira e assistir aos enfermos. Referem ainda a atitude negligente do cabido da
Matriz no acompanhamento da procissão de Santa Isabel, organizada pela Câmara117.
As relações entre a Edilidade e o cabido da colegiada atingem níveis muito críticos
em finais de setecentos, processo que se vinha agravando desde meados do século
XVII, período em que começam a emergir os conflitos entre as partes. Assim, em
reunião de vereação datada de 4 de Março de 1793, é lida uma denúncia apresentada
pela confraria do Santíssimo Sacramento contra os cónegos da colegiada que não
consentiram a utilização do órgão, propriedade da Câmara, nas funções do Lausperene,
ignorando a licença conferida pela Edilidade aquela confraria. A discussão entre a
confraria e os cónegos, foi, segundo informam, violenta, “athe chegar ao nunca visto
escandallo”. O motivo da discórdia estava relacionado com o facto dos cónegos
da colegiada não quererem comparticipar com mais 8 tostões para os músicos, na
sequência do aumento introduzido em instrumentos e vozes, não consentindo que
estes ocupassem o coro, onde sempre cantaram. Esta atitude de resistência por
parte dos cónegos mereceu da Câmara, a seguinte reacção: “[...] que já de antigos
sisthemas e envelhecidas intrigas, estão costumados a causar as mayores desordens
e contra os direitos que esta Camera sustenta sobre o dominio da mesma Matriz,
que foi sempre padroado desta Camera”. Comentário revelador de antecedentes de
conflituosidade. Este posicionamento extremo por parte dos cónegos da Matriz leva
a Câmara a decidir a proibição do mestre capela de tocar nas funções dos cónegos
da Matriz, interditando-lhes também o uso e toque do relógio118.
Os conflitos estão ao rubro em 1801. Em vereação de 22 de Agosto desse ano,
na sequência de mais uma desautorização cometida pelos cónegos aos direitos da
Câmara, na presença da nobreza e do povo, convocados a esse acto, convêm que,
de facto, os cónegos eram “causa notória e continua desde tempos antigos, de todas
as desordens que aconteciam na villa [...]”, umas vezes usurpando e atacando a
administração da igreja, cujo padroado a Câmara preservava, outras vezes afrontando
as confrarias instituídas naquele templo. Referem que com uma das confrarias,
certamente a do Santíssimo Sacramento, os pleitos ascendiam a mais de cinquenta.
Concluem que o principal motivo destes conflitos era “huma prepotencia e orgulho
dos mesmos reverendos conegos”, que “com hum escandallo de grandes e pequenos,
não acompanharão a procissão real que saía da Matriz com o Santíssimo Sacramento
em acção de graças pelo felis nascimento da serenissima senhora infanta”. A reposição

116 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1610, fls. 28-99v.


117 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1663, fls. 17-18v.
118 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1788-1795, fls. 173-175
504 Paula Cristina Machado Cardona

da ordem passaria, segundo a edilidade, na comunicação da ocorrência ao príncipe


regente, restituindo à Câmara a fábrica e a administração da igreja119.
Se esta postura é manifestamente de oposição aos cónegos da colegiada, outras
houve de abertura e convergência, nos casos das encomendas das obras dos órgãos,
acatando as propostas do cabido da colegiada, executando de forma lesta as obras dos
referidos instrumentos e, aquando do incêndio de 1806, que obrigou em definitivo
ao estabelecimento de tréguas entre as duas entidades, até então em ruptura.
Esse compromisso institucional é acordado a 28 de Janeiro de 1806, data da
audiência marcada com o arcipreste e cónegos da colegiada para se manifestarem a
respeito da destruição da igreja Matriz e das medidas a aplicar para a sua reconstrução.
Entre o juiz de fora, o arcipreste e os cónegos da Matriz foram ponderadas as
razões de uma e outra parte sobre os direitos de propriedade e uso da igreja Matriz
“incendiada e absolutamente queimada na noite do dia desanove do corrente mês”,
acordando o seguinte: o cabido da colegiada retornaria à igreja assim que estivessem
concluídas as obras de reconstrução, mantendo o uso de celebrar diariamente as horas
canónicas, como havia sido instituído por D. Justo Baldino, bispo de Ceuta, no ano
de 1483; realizariam todas as tarefas que eram obrigados; residiriam na igreja o pároco
e o arcipreste, exercendo todas as funções paroquiais próprias da sua obrigação; o
cabido da colegiada ficaria a pertencer à fábrica da igreja, recebendo pelo fabriqueiro
todos os emolumentos e ofertas que por costume se pagavam pelas sepulturas da
igreja, sendo estes obrigados, do rendimento da fábrica, a fazer consertos menores,
obras que não exigissem despesas de maior vulto.
A Câmara, como representante do povo, proprietária do corpo da igreja, transferia
para o cabido o direito que tinha de deliberar sobre os pedidos de particulares para
realizarem na igreja actos religiosos; a Câmara mantém o direito de mandar celebrar
na igreja Matriz, as funções reais e outras quaisquer a que fosse obrigada por costume,
sem impedimento por parte do cabido; aplicavam o mesmo princípio para as funções
extraordinárias. O reverendo cabido passa a ser obrigado a assistir e a acompanhar
todas as funções reais e outras de carácter extraordinário; o cabido ficaria com o uso
do órgão, para mandar tocar pelos mestres capela, pagos pela edilidade, na condição
desta preservar o direito de posse sobre o equipamento. Por este acordo, o cabido
da colegiada reconhecia a propriedade da Câmara sobre o corpo da igreja, fixando
através de escritura pública, estes direitos acordados entre as partes120.
Num outro nível, a Câmara colabora voluntariamente com as confrarias da Matriz.
Registe-se o apoio financeiro concedido à confraria de São Sebastião, em 1637, quando
estes pretenderam fundar de novo a sua confraria121; ou como se verifica em Junho de
1702, ao concederem licença à confraria do Espírito Santo para a utilização do órgão

119 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1788-1795, fls. 86-86v.


120 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1806-1822, fls. 4v.-6.
121 CARDONA, 2004 (Vol. III, Anexo I, Quadros. A Encomenda de Obras no Concelho de Viana do Castelo, 1600-

1650). A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1637, fls. 24-24v.


A encomenda municipal – artistas e obras em Viana da Foz do Lima na Época Moderna 505

por ter comparticipado na sua reparação122; ou por exemplo em 1740, quando, em


Agosto, concedem licença à confraria do Santíssimo Sacramento para executar a obra
dos alpendres, que a edilidade recomenda serem vistoriados pelo engenheiro militar
Manuel Pinto Vilalobos e pelos mestres pedreiros Manuel Alves Martins e António
Lopes Trindade123. Finalmente e ainda em referência a esta confraria, a seu pedido,
a Câmara concederá a 1 de Dezembro de 1832, o rendimento dos sinos, sepulturas e
fábrica que lhe pertenciam para, com esse dinheiro, a confraria fazer face a todos os
pequenos consertos que se impunham na fase final da reconstrução da Matriz após
o incêndio, reconhecendo a Câmara ter sido a confraria do Santíssimo Sacramento
a principal impulsionadora das obras que se haviam arrastado por 26 anos124.

Obras sujeitas a deferimento e despachos municipais


Como afirmámos anteriormente, Câmara delibera sobre um vasto leque de
solicitações apresentadas por diversas instituições religiosas. Os pedidos que chegam
à Câmara são de diversa natureza desde a identificação de locais para a fundação
de unidades conventuais, como sucederá na primeira metade do Século XVII, com
os complexos monacais de S. Francisco125, e Santa Cruz, este último sob proposta
apresentada em 1602 pelo geral da Ordem, D. Sebastião da Graça126.
Delibera sobre as mais variadas matérias relacionadas com as obras de reedifi-
cação da unidade conventual das religiosas de S. Bento: reconstrução e reparação
do convento, reabilitação de muros, alargamento da cerca, posterior demolição,
abastecimento de água 127.
Pronuncia-se, por solicitação do arcebispo, sobre a fundação de uma nova paróquia
em Monserrate128. Autoriza a fundação de ermidas, igrejas e capelas por solicitação
de oficiais mecânicos, confrarias, militares e particulares129.

122 CARDONA, 2004 (Vol. III, Anexo I, Quadros. A Encomenda de Obras no Concelho de Viana do Castelo, 1700-
1750). A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1701-1706, fls. 16-16v.
123 CARDONA, 2004 (Vol. III, Anexo I, Quadros. A Encomenda de Obras no Concelho de Viana do Castelo, 1700-

1750). A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1739-1744, fls. 59v.-61v. Uma das fontes de rendimento desta confraria
provinha das receitas auferidas com o aluguer dos espaços da feira.
124 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1827-1832, fls. 24-26v.
125 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1610, fls. 30-32v.; fls. 35-35v.; fls. 36-38 Em 1610 a Câmara é chamada a deliberar

sobre a escolha do local, para a mudança do convento de S. Francisco do Monte.


126 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1624, fls. 38v.-39; A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1755-1757, fls. 65-67v.; fls.

81v.-84v.; A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1766-1770, fls. 56v.-57; fls. 66v.-67v. Com invocação de S. Teotónio a
Câmara deliberará sobre as obras de reedificação desta unidade apresentada pelos cónegos regulares de Santa Cruz
de Coimbra em 1756; sobre a cedência de meio anel de água para esta unidade que se encontrava em obras, até à
posse administrativa do edifício por ordem régia em 1768.
127 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1698-1701, fls. 47-48; A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1706-1713, fls. 26-26v.;

A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1726-1731, fls. 57v.-58v.; fls. 62-62v.; fls. 116-117; A.H.M.V.C., Actas da Câmara
1753-1754, fls. 17v.-19v.. Deliberações registadas na documentação municipal entre 1699 a 1796.
128 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1621, fls. 4-6.
129 A.H.M.V.C.; Actas da Câmara 1621, fls. 29v.-31; A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1637, fls. 24-24v.; A.H.M.V.C.,

Actas da Câmara 1744-1748, fls. 33v.-34, fls. 93-93v., A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1750-1752, fls. 69v.-70.
506 Paula Cristina Machado Cardona

Património sacro municipal

Sem nos ser possível, factualmente, determinar a localização do retábulo de


Cristo, que presumimos, corresponderá à capela com a mesma invocação na igreja
Matriz, é-nos apresentada na documentação municipal, uma deliberação tomada a
21 de Agosto de 1610 que culminaria no douramento do retabolo do Christo, igual ao
retábulo do Bom Jesus da Igreja de São Domingos. Apolinário de Andrade, mestre
pintor dourador, adjudicou esta obra, a ser paga pelas rendas do Concelho, conforme
o decurso dos trabalhos130.
O edifício municipal esteve a partir de finais do século XVII, sujeito a um intenso
programa de obras que finalizaram em 1701, e implicaram novas intervenções no seu
altar como nos confirma o Termo da rematação da obra do oratório da camara de 20 de
Março de 1703, que menciona o contrato com o pintor vianense Manuel Cardoso do
Vale, para pintar o retábulo, dossel e altar bem como encarnar a imagem de Cristo.
O retábulo devia ser dourado como anteriormente estava e o dossel pintado de azul
com estrelas de ouro. O ouro devia ser do mais subido. O frontal devia ser pintado
como os restantes. O mestre pintor obrigava-se a entregar a obra concluída no mês
de Abril desse mesmo ano131.
Está documentada a execução de uma nova estrutura retabular em 1747, o
remate da obra foi feito pelo mestre imaginário local António Rodrigues Pereira132.
Esta estrutura é novamente intervencionada em 1789, quando em Vereação decidem
proceder às reparações necessárias ao oratório da Casa da Câmara, bem como a
aquisição de novas cortinas, toalha de linho para o altar, seis castiçais de madeira
dourados e cruz à romana dourada133. As cortinas, em damasco, foram executados
pelo mestre alfaiate António Nicolau Pereira134.
A dinâmica artística municipal, no contexto das obras que era obrigada a prover, as
de carácter militar, as que se relacionavam com a criação, ampliação e adaptação de
infra-estruturas urbanas – praças, ruas, edifícios públicos e as que se orientavam para
suprir as necessidades básicas da população, como o abastecimento de água, exigiam
a presença de artistas e artífices, com ampla e comprovada experiência formativa e
técnica – engenheiros e mestres pedreiros de que se destacam nomes como Miguel
L’Escole; Manuel Pinto Vila Lobos ou António Lopes Trindade. Nas artes decorativas
e especialmente para igreja Matriz de Viana do Castelo, o município reúne um
importante escol de mestres entalhadores, imaginários, pintores e douradores, peritos
na sua arte, que acentuam e reforçam o importante papel que coube à Câmara de
Viana, como encomendante de relevo. O cruzamento das encomendas municipais,
com as que se produziram por iniciativas dos grupos de encomendantes mais referidos
130 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1610, s. fls.
131 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1701-1706, fls. 35v.-36.
132 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1744-1748, fls. 171v.-172; Actas da Câmara 1744-1748, fls. 181-181v.
133 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1788-1794, fls.86v.-87.
134 A.H.M.V.C., Actas da Câmara 1788-1794, fl. 100. A obra dos cortinados foi decidida na vereação de 12 de Março

de 1791.
A encomenda municipal – artistas e obras em Viana da Foz do Lima na Época Moderna 507

pela historiografia de arte à escala regional, impõem-se cada vez mais, no cenário do
processo da encomenda artística.

Fontes e bibliografia

Fontes
A.H.M.V.C., Arquivo Histórico Municipal de Viana do Castelo – Actas da Câmara.
A.H.M.V.C., Arquivo Histórico Municipal de Viana do Castelo, Acórdãos.

Bibliografia
CAPELA, Viriato José, 1994 – “As Contas da Câmara de Viana (1740-1770). Limites da sua
Autonomia Financeira”, in Estudos Regionais, Boletim Cultural, n.º 15. Viana do Castelo.
CARDONA, Paula Cristina Machado, 2004 – A Actividade Mecenática das Confrarias nas Matrizes
do Vale do Lima nos séculos XVII a XIX, 4 vols. Porto: Faculdade de Letras da Universidade
do Porto (Tese de doutoramento policopiada).
COSTA, P.e António Carvalho da, 1706 – Corografia Portugueza e Descripçam Topográfica do Famoso
Reino de Portugal, 1.ª edição. Lisboa.
INATT – Dicionário Geográfico 1758. Memórias Paroquiais, vol. 39, n.º 149, fls. 881-886.
MOREIRA, Manuel António Fernandes, 1992 – “Viana nas suas Origens – de Póvoa marítima
a vila e sede do concelho”, in Estudos Regionais, Boletim Cultural, n.º 12. Viana do Castelo,
pp. 38-44.
MOREIRA, Manuel António Fernandes, 1995 – Os Mareantes de Viana e a Construção da Atlantidade.
Viana do Castelo: Câmara Municipal de Viana do Castelo.
MOREIRA, Manuel António Fernandes, 1996 – “Os Mercadores Banqueiros de Viana no século
XVII”, in Cadernos Vianenses, tomo 21. Viana do Castelo: Câmara Municipal de Viana do
Castelo, pp.29-45.
MOREIRA, Manuel António Fernandes, 1996 – O Município e os forais de Viana do Castelo. Viana
do Castelo: Câmara Municipal de Viana do Castelo.
NORTON, Manuel Artur, 1981 – “Fénix Vianeza ou Vianna Renascida em o Átrio”, in Arquivo
do Alto-Minho, 3.ª série, XXVI, vol. VI. Viana do Castelo.
Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro:
ponte de artistas entre dois mundos
Regina Anacleto

No Rio de Janeiro vivia, nos anos trinta do século XIX, uma ainda não muito
numerosa colónia de portugueses, que, na sua maior parte, manifestava interesses
semelhantes e procurava conviver, a fim de estreitar laços comuns; por isso, poucos
anos após a independência, gerou-se entre eles a ideia de fundar um centro associativo
que lhes possibilitasse “isolarem-se na doce recordação das coisas da pátria e na
ilustração do espírito, pela leitura sã dos bons autores e dos periódicos da época”1.
Do grupo, pelo papel relevante que desempenharam dentro da associação, não
pode deixar de se destacar o Dr. José Marcelino da Rocha Cabral, que actuou como
o verdadeiro mentor espiritual do movimento e Francisco Eduardo Alves Viana,
responsável pela redacção dos primeiros estatutos.
Rocha Cabral, nascido a 17 de Agosto de 1806, no concelho de Macedo de Cava-
leiros, “em função das ideias adeantadas de progresso que abertamente professava”2,
por via da usurpação de D. Miguel, viu-se na necessidade de deixar o reino e acabou,
após ter vagueado pela Europa, por, em 1828, aportar ao Rio de Janeiro, onde já
encontrou outros colegas a exercer a advocacia, com destaque para António José
Coelho Louzada, Alberto António de Morais Carvalho e Caetano Alberto Soares3;
tratava-se de um homem culto e brilhante, que aliava às capacidades jornalísticas as
de eloquente legista. Alves Viana, por seu turno, havia nascido na Ilha da Madeira
e era comerciante, estabelecido bem no coração da velha urbe, ali mesmo, na rua
do Ouvidor4.
A cidade do Rio de Janeiro assumiu-se como pioneira na fundação daquele tipo de
associações, pois logo a 14 de Maio de 1837, num domingo, quarenta e três imigrados
se reuniram na casa do advogado português Dr. António José Coelho Louzada, que
se situava no n.º 20 da antiga rua Direita, hoje 1.º de Março, a fim de assinar a
certidão de nascimento do Gabinete Português de Leitura.

1 TABORDA, s/d: 10.


2 CERQUEIRA, 1903: 26.
3 MARTINS, 1913: 12.
4 TABORDA, s/d: 16-17; TAVARES (dir. de), 1977: 22.
510 Regina Anacleto

Seria interessante conhecer o ambiente carioca em que se movimentava aquele


grupo de portugueses, “varões prestantes”, “homens robustos pela fé e pela abnega-
ção”, sempre “movidos pelo amor do nome nacional”, onde pontificava o Dr. José
Marcelino, mas tal, neste contexto, torna-se impraticável, embora não totalmente
incontornável, pois Carlos Malheiro Dias deixou-nos um bem eloquente retrato da
casa do Dr. Coelho Louzada5.
Reunido o cenáculo de imigrados, presidido pelo dono da casa e pelo então encar-
regado de negócios de Portugal, João Baptista Moreira, fundaram, naquela “primeira
reunião de portuguezes, que tem havido no Imperio em um estabelecimento proprio
por elles creado”6, não apenas o Gabinete Português de Leitura, mas muito mais do
que isso, insuflaram vida à colónia portuguesa do Rio de Janeiro.
Com efeito, “a sociedade instituida em 1837 sob o nome de Gabinete Português de
Leitura (…) é uma associação particular, regida por seus estatutos e pela lei das sociedades
civís, que tem por fim promover a instrução entre os seus associados e não associados com
a organização e manutenção de uma livraria de caracter literário e científico, em obras
impressas ou manuscritas, sôbre quaisquer assuntos e em diversos idiomas. A sociedade
realiza também, com o mesmo objectivo, prelecções ou conferências, em sessões públicas,
e poderá, ainda, promover a impressão, à sua custa, das obras que lhe sejam ofertadas
por seus autores e a reimpressão das que, por se terem esgotado as anteriores edições,
haja conveniência em publicar de novo e sem ferir direitos de quem quer que seja”7.
A directoria, ali eleita, desde logo corroborou a principal finalidade da agremiação,
que foi fundada “intuito da sua [dos imigrados] illustração, da illustração geral, e de
concorrer para restaurar a gloria literaria da sua patria”8. Por isso, unindo a consciência
do saber a um sentimento patriótico, durante o seu mandato, organizou catálogos que
servissem para a encomenda de livros, adquiriu manuscritos raros, obteve obras de
autores portugueses, assinou três periódicos de Lisboa, dois do Porto, dois de Londres,
dois de França e um de Buenos Aires, “todos, dos que costumão trazer mais amplas
e veridicas noticias commerciais, e politicas”9. Simultaneamente, subscreveu ainda
os jornais brasileiros que então se publicavam.
Com estas aquisições, que se prolongaram, com uma maior ou menor intensi-
dade, ao longo de mais de século e meio de existência, a que se somaram legados e
doações, particulares ou estatais, o Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro
conseguiu formar a sua, ainda hoje, portentosa livraria; contudo, infortunadamente,
deixou perder a maior parte das colecções de jornais resultantes das subscrições. Na
realidade, esta biblioteca que funcionava como um “vasto repositorio dos varios ramos
do saber humano”, em 1860 contava já com cerca de 33.000 volumes10, em 1879,
o seu acervo rondava os cinquenta mil exemplares11 e, no ano seguinte recebia, por
5 TABORDA, s/d: 13-14; TAVARES (dir. de), 1977: 15-16.
6 MARTINS, 1913: 10.
7 Real Gabinete Português de Leitura. Resumo histórico, 1940: 7.
8 MARTINS, 1913: 10.
9 TABORDA, s/d: 28.
10 MARTINS, 1913: 13.
11 Relatorio da directoria do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro em 1879, 1880: 4-5.
Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro: ponte de artistas entre dois mundos 511

assinatura e remetidas de todo o mundo, nada menos do que noventa e um títulos


de publicações periódicas12.
Até 1860 a sociedade adquiriu obras muito valiosas, impressas e manuscritas, com
particular relevância para uma primeira edição de Os Lusíadas que havia pertencido
à casa setubalense da Companhia de Jesus13. Neste contexto, não admira pois que,
em 1880, fosse considerada a mais importante biblioteca do Brasil, depois da Pública
do Rio de Janeiro14.
O Gabinete Português de Leitura teve a sua primeira sede no sobrado do número
83 da rua de S. Pedro, embora, em 1842, se tivesse transferido para a rua da Quitanda,
onde ocupou o edifício com número 55, um “belo prédio de três pavimentos, de
fachada azulejada e beiral de telhas de canal esmaltadas em Alcobaça”15; no entanto,
o espaço necessário para guardar os numerosos livros que possuía tornou-se exíguo
e, em 1850, a directoria viu-se obrigada a procurar novo abrigo, desta feita, na já
“periférica” rua dos Beneditinos, número 12.
Mas a biblioteca não parava de aumentar e a casa da rua dos Beneditinos acabou
por deixar de caucionar as exigências da associação, impelindo as directorias, pelo
menos a partir de 1861, a pensar na construção de um edifício próprio que respondesse
com comodidade e eficácia às carências e objectivos da instituição.
Foi também, e paradoxalmente, mais ou menos por esta altura que a colectividade
passou por uma crise que quase se pode denominar de crescimento. É que entre os
mais velhos, que haviam fundado o Gabinete e uma geração de imigrados jovens,
chegados ao Brasil a partir de 1842, veio a travar-se, em sucessivas assembleias, uma
luta cerrada, porque os segundos, entre os quais se contavam Fernando Castiço,
Manuel de Melo, Ernesto Cibrão, Xavier Pinto, Constantino Lemos, Melo e Faro,
José Coelho Lousada, Joaquim da Costa Ramalho Ortigão, Francisco Ramos Paz e
outros, gente ligada à novas correntes estético-literárias, pretendiam a reforma das
colecções da biblioteca e um amplo alargamento do círculo de influências em que a
instituição se movimentava16.
Inserto neste contexto, ou não, “a necessidade mais urgente do Gabinete Portuguez
de Leitura [era] uma casa propria para a sua bibliotheca, com as vastas proporções
que requer[ia] a sua avultadissima livraria”, mas a directoria, apesar da boa vontade,
sem ajuda, pouco faria; levar a porto seguro um empreendimento de tamanha monta
só seria possível, se todos “carrega[ssem] uma pequena pedra”, o que permitiria “em
curto espaço de tempo poder ver a conclusão de um edificio que attestar[ia] no futuro
o patriotismo e a dedicação dos actuaes accionistas do Gabinete”17.

12 Relatorio da directoria do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro em 1880, 1881:1-4.


13 TABORDA, s/d: 32.
14 Juizo da imprensa do Rio de Janeiro acêrca do relatorio da Directoria do Gabinete Portuguez de Leitura em 1880. Terceiro

centenario de Camões, 1881: 13.


15 CASTRO FILHO, 1977: 32.
16 MARTINS, 1913: 15.
17 Relatorio do Gabinete Portuguez de Leitura, apresentado em sessão de Assembléa Geral de 24 de Fevereiro de 1861 pelo

respectivo director José Peixoto de Faria Azevedo, 1861: 2.


512 Regina Anacleto

A transferência do centro para a rua dos Beneditinos não fora favorável ao


desenvolvimento da instituição e cerceara mesmo a possibilidade de frequentar a
biblioteca, pois o edifício encontrava-se distante do eixo nevrálgico da cidade; talvez
por isso, a directoria pensava em construir a sede num lugar acessível e, em 1871,
comprou o prédio onde funcionava o Hotel São Pedro, na rua da Lampadosa, actual
Luís de Camões, bem perto da do Ouvidor e a dois passos da da Quitanda. Era ali,
“no bairro das artes e dos estudos” que se ia erguer “mais este templo da ciência”.
No ano seguinte, sob a presidência de Boaventura Gonçalves Roque, certamente
depois feito visconde do Rio Vez e que, a partir de 1881 veio viver para Portugal,
tendo passado a exercer as funções de representante do Gabinete, no nosso país, foi
adquirido um outro edifício, que confinava com o primeiro.
O espaço destinado a acomodar os livros apresentava-se cada vez mais limitado,
ao ponto de a direcção se ver obrigada a, como refere o Relatorio das actividades
concernente ao ano de 1872, “com mais razão do que no anno ultimo”, no que toca
a publicações recentes, ter apenas adquirido as “de mór procura” e, quanto às que
deveriam completar as colecções, se ver obrigada a uma total inépcia18.
Uma vez que os terrenos adquiridos pelo Gabinete na rua da Lampadosa se
encontravam já desonerados, a ideia de fazer construir o edifício começa a arrogar-se
em formas mais palpáveis. Neste mesmo ano de 1872 a directoria recebeu, graças
aos bons ofícios do comendador Miguel Couto dos Santos e do vice-director João
Maria de Miranda Leone, dois projectos que se destinavam à casa da sua livraria;
o primeiro, “no gosto da renascença italiana”19, saíra da pena do arquitecto Pedro
Bosisio e o segundo, traçado por Rafael da Silva Castro, “adoptava no seu desenho
a architectura manuelina, que no edificio dos Jeronymos em Belém, consubstanciou o
que Camões fez na poesia epica, e frei Luiz de Souza na prosa descriptiva”20.
Aliás o posicionamento de Castro, assumindo uma atitude tipicamente romântica,
capaz de criar ambientes significativos, carregados de sugestões culturais e emotivas,
resultava do desejo de uma certa elite local21, como se encontra bem patente nas
decisões que os elementos mais empenhados do Gabinete, pertencentes, na sua maior
parte a um destacado extracto económico e social, acabavam por tomar.
Aproximava-se, entretanto, o tricentenário da morte de Camões e, face à comunhão
dos sócios mais representativos com as conotações que envolviam este acontecimento,
a instituição não pretendia nem desejava manter-se alheia à efeméride, tendo já a
directoria, no seu relatório de 1878, aventado a hipótese de aderir às comemorações22.
A ideia foi bem acolhida e, dentro deste espírito, o Gabinete, desejando ligar o
nome do poeta ao instituto através de um laço perpétuo, escolheu um vínculo de
pedra, dando simbolicamente início, nesse dia, à construção da sua nova biblioteca.

18 Relatorio da directoria do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro apresentado em sessão da Assembleia Geral de
1 de Junho de 1873 pelo director Boaventura Gonçalves Roque, 1873: 7.
19 MARTINS, 1913: 21.
20 MARTINS, 1913: 21.
21 BRENNA, 1987: 41.
22 Relatorio da directoria do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro em 1879, 1880: 15.
Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro: ponte de artistas entre dois mundos 513

Além disso promoveu uma edição especial de Os Lusíadas23, que receberam letra
de forma na casa lisboeta de Castro Irmão. Adolfo Coelho reviu o texto e elaborou
um vocabulário camoniano que foi aposto à publicação; José Duarte Ramalho Ortigão
redigiu o prefácio; Reinaldo Carlos Montóro escreveu uma nota histórica sobre o
estabelecimento24. O frontispício do poema aparece adornado com um retrato de
Camões, magnífica gravura de Pannmaker e cada canto iniciava-se e terminava
com vinhetas alusivas, desenhadas por Macedo, Pedroso e Columbano, com cunhos
abertos por Pedroso, Severini e Alberto.
Mas as festividades não se ficaram por aqui: iluminações, regatas, uma marcha
flambeaux e outras manifestações, ombrearam com a récita que na noite de 10 de
Junho se efectuou no Imperial Teatro D. Pedro II; tratou-se de um sarau artístico-
literário, minuciosamente preparado, que “correspondeu amplamente aos desejos [dos
organizadores] e excedeu, talvez, a geral expectativa”25, pois contou com a assistência
de mais de três mil pessoas. Joaquim Nabuco foi o orador oficial e os artistas Lucinda
Simões (Catarina de Atayde) e Furtado Coelho (Camões), nos principais papéis,
interpretaram a peça “Tu só, puro amor” escrita expressamente para a ocasião por
Machado de Assis. A festa contou ainda com a concorrência de Artur Napoleão,
conhecido e reputado maestro e compositor26.
A fim de celebrar o centenário do épico e perpetuar a data do “assentamento da
pedra fundamental do novo edifício”, facto este que se transformou no acto mais
relevante das comemorações camonianas levadas a cabo pelo Gabinete e que havia
sido aprovado, sob proposta da directoria, já na sessão do conselho deliberativo de 10
de Junho de 1879, foi cunhada uma medalha, que funcionaria como “uma lembrança
duradoura da augusta solemnidade do centenario de Camões, data memoravel que
fulgurará perpetuamente nos annaes da humanidade”27; cunhada em Paris sobre
“trabalho do bem reputado gravador francez Janvier”28, parece que o desenho, da
responsabilidade de Angelo Agostini29, se apresentava “assaz incorrecto”.
Aquando do momento em que se consumou a decisão de integrar o lançamento
da pedra fundamental da biblioteca nas comemorações camonianas, o “plano do
edificio, cuja fachada principal ser[ia] modelada no estylo manuelino”, estava entregue
ao “provecto e distinto architecto o Sr. commendador Bethencourt da Silva” o que
significava a certeza antecipada de se tratar de uma “obra de merito”. Desde logo
ficou assente que “a fachada manuelina vir[ia] completa de Lisboa, e que no plano
da obra entra[ria] consideravel material de ferro”30.

23 Relatorio da directoria do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro em 1879, 1880: 17; RELATORIO da directoria
do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro em 1880, 1881: 48.
24 TABORDA, s/d: 56.
25 Relatorio da directoria do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro em 1880, 1881: 18-21.
26 L., G., 1888: 58-59.
27 Relatorio da directoria do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro em 1880, 1881: 6.
28 Juizo da imprensa do Rio de Janeiro acêrca do relatorio da Directoria do Gabinete Portuguez de Leitura em 1880. Terceiro

centenario de Camões, 1881: 14.


29 Relatorio da directoria do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro em 1880, 1881: 18.
30 Relatorio da directoria do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro em 1879, 1880: 10-11.
514 Regina Anacleto

Através de tudo o que então se escreveu acerca do assunto e daquilo que se con-
segue enxergar nas entrelinhas, visiona-se de forma bem clara o desejo da directoria
de fazer construir um imóvel que se integrasse num programa “moderno”, capaz de
apresentar uma interligação perfeita entre as pedras “historicistas” e o ferro “industrial”.
Entretanto e sem que se consigam vislumbrar com clareza todos os meandros, a
verdade é que a directoria recebeu alguns projectos relacionados com o edifício vindos de
Nova Iorque, passando, parcialmente, a integrar o acervo do Real Gabinete Português de
Leitura do Rio de Janeiro; mas, como apenas se conservaram as plantas, tendo, os alçados,
se é que existiram, desaparecido, permanece a dúvida de saber se eles se integravam
também num estilo historicista. A verdade, porém, é que com os elementos disponíveis,
não se consegue compreender a trama que se desenrola em torno de toda esta questão.
O projecto que havia sido encomendado, cerca de 1878, a Bethencourt da Silva,
convém não esquecer, seria obrigatoriamente “modelado no estylo manuelino”; o
artista, posteriormente, entregou ao Gabinete “um bello plano de forma elegantissima,
apreciado e elogiado por quantos o têm visto”, mas que, no entanto, foi preterido
pelo “do edificio no estylo manuelino, traçado em Lisboa pelo architecto o sr. Raphael
da Silva e Castro”31.
Ao observar um desenho muito deteriorado que se encontra arquivado no Real
Gabinete e que, tal como Giovanna Brenna32, presumo ser a opção de Francisco
Joaquim, não posso deixar de constatar que a fachada se insere dentro de um gosto
historicista, mas não ultrapassa uma certa ambiguidade que fica muito longe da
pincelada forte do estilo neomanuelino apresentado pelo português.
Contudo, não se pode deixar de ter em conta a formação de cada um e o local
onde os dois homens trabalhavam, pois enquanto Silva Castro, sempre a conviver
paredes meias com o manuelino, agregado ao ministério das Obras Públicas e a
colaborar também nos Jerónimos, vivia na capital, o luso-francês, Francisco Joaquim
Bethencourt da Silva, havia nascido a bordo do veleiro Novo Comerciante, lá pelas
bandas de Cabo Frio, fora discípulo de Grandjean de Montigny, completara os seus
estudos na cidade dos papas e exercia a sua profissão no Rio de Janeiro.
O Relatorio de 80, publicado no ano seguinte, informa os sócios que Silva Castro
traçara em Lisboa o projecto e já enviara o orçamento da frente do edifício, a fim de
se poder deliberar acerca da adjudicação da obra, que devia ser executada na capital
portuguesa; contudo, o Parecer apenso ao mesmo Relatorio e assinado a 24 de Abril
de 1881, faz referência ao “plano da fachada” que “ha pouco [havia sido] dado á
estampa no n.º 80 do Occidente, excellente revista illustrada de Lisboa, [e que] tem
merecido o mais geral applauso”33.
Como quer que fosse, a verdade é que, integrando as festas camonianas, a pedra
fundamental do edifício foi lançada no dia 10 de Junho de 1880. O acto, a que estiveram
presentes as autoridades mais representativas da cidade, decorreu na presença de
grande número de convidados e do “concurso de muito povo”, tendo sido transportada,
31 Relatorio da directoria do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro em 1880, 1881: 43.
32 BRENNA, 1987: 43.
33 Relatorio da directoria do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro em 1880, 1881: 9.
Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro: ponte de artistas entre dois mundos 515

no meio de grande solenidade, a primeira pedra para o local do assentamento “por


S. M. o Imperador; [pel]o snr. ministro do Imperio, Barão Homem de Mello; [pel]
o presidente da Illustrissima Camara Municipal, Dr. Adolpho Bezerra de Menezes;
e [pel]o presidente da directoria do Gabinete”34. No pavilhão, previamente erguido
para esse fim, teve lugar a leitura do “auto do assentamento da pedra fundamental
do edificio para a bibliotheca do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro”,
que, de seguida, foi assinado por Sua Majestade e por muitos dos presentes35.
Os trabalhos não se iniciaram logo de seguida, embora “a inauguração da nova
bibliotheca est[ivesse] fixada pela directoria para 10 de Junho de 1884”36, tempo
bastante curto se se tiver em conta que a cantaria da fachada seria trabalhada em
Lisboa e o ferro importado da Europa37. Para ver a obra efectivamente arrancar
houve que esperar pelo dia 7 de Março de 1881, depois de terem sido estipuladas
as condições que permitiram ao arquitecto Frederico José Branco passar a ser, por
delegação da directoria, o administrador geral da construção38. Contudo, só a 15
de Outubro do mesmo ano chegaram ao Rio os desenhos do pavimento térreo e a
indicação dos honorários mensais pretendidos por Castro, a fim de fiscalizar o trabalho
dos canteiros e riscar os desenhos em tamanho natural39.
A 15 de Novembro de 1881, o visconde do Rio Vez, então já em Lisboa, como
representante do Gabinete, contratou com Germano José de Sales o fornecimento
da cantaria destinada à zona da fachada correspondente ao piso térreo40, mas,
posteriormente, este contrato foi derrogado41 e acabou por ser celebrado, através de
escritura pública lavrada a 21 de Março de 1882, um outro, que previa o fornecimento
da pedra para toda a fachada por onze contos de réis42.
Um dia antes, a 20 de Março, também o escultor Simões de Almeida havia
assinado o seu contrato com o Gabinete, a fim de estipular as condições que deviam
servir de base à feitura das estátuas destinadas a ornamentar a frontaria43. Dentro
de um programa consentâneo com o ideário que norteou a construção do edifício,
deviam ser representados o infante D. Henrique, o iniciador das descobertas dos
portugueses; Luís de Camões, o imortal cantor das glórias de Portugal; Vasco da Gama,
o esforçado navegador que trouxe à pátria as riquezas da Índia e ensinou ao mundo
o caminho para lá ir; e Pedro Álvares Cabral, o descobridor do Brasil. De acordo
com o Relatório44 deveria ainda encarregar-se de esculturar, para a fachada, quatro

34 Relatorio da directoria do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro em 1880, 1881: 43.
35 ARGPLRJ – Manuscritos e autógrafos, pasta K, documento 1.
36 Relatorio da directoria do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro em 1881, 1882: 7.
37 Relatorio da directoria do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro em 1881, 1882: 26.
38 ARGPLRJ – Livro de actas das sessões da directoria, 1880-1896: 10-11.
39 ARGPLRJ – Livro de actas das sessões da directoria, 1880-1896: 42.
40 ARGPLRJ – Livro de actas das sessões da directoria, 1880-1896: 56-57.
41 Relatorio da directoria do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro em 1882, 1883: 13.
42 ARGPLRJ – Livro de actas das sessões da directoria, 1880-1896: 66; ARGPLRJ – Manuscritos e Autógrafos, pasta N,

documento 3.
43 ARGPLRJ – Livro de actas das sessões da directoria, 1880-1896: 66; ARGPLRJ – Manuscritos e Autógrafos, pasta N,

documento 3.
44 Relatorio da directoria do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro em 1881, 1882: 28.
516 Regina Anacleto

medalhões que representassem Fernão Lopes, Gil Vicente, Alexandre Herculano e


Garrett, mas, embora tivesse levado a cabo esse trabalho, ele encontra-se omisso na
escritura. Os dois últimos apresentam-se insculpidos no portal da entrada, como se
fossem os “guardiões eternos daquêle templo do saber humano”45.
Os primeiros volumes idos de Lisboa com as pedras lavradas, chegaram ao Rio
de Janeiro a 23 de Abril de 1882 e, entretanto, Germano Sales começara já a lavrar
as portas interiores destinadas ao edifício46.
Não se sabe ao certo quanto custou ao Gabinete, no total, o projecto de Castro
e isto porque, no arquivo, se não encontra qualquer documento relacionado com o
assunto; contudo existem alguns indicativos, porquanto o Parecer anexo ao Relatorio
de 1881 insere uma extensa nota relacionada com despesas do edifício, onde se
encontra lançada a verba de 561$920 réis pagas a Rafael da Silva Castro pelas
plantas47; além disso, nos manuscritos do cartório da instituição conservam-se vários
recibos assinados pelo arquitecto no valor de 50 mil réis48 e que devem corresponder
aos honorários mensais pedidos por Castro “pela direcção geral do trabalho e pelos
desenhos em tamanho natural49. Restaria averiguar se a primeira verba englobaria
todos os riscos e alterações ou se apenas se referiria aos últimos desenhos, porque,
segundo a mesma fonte, ao arquitecto Branco, pela direcção das obras no Rio, àquela
data, já havia sido entregue a choruda quantia de 3:300$000 réis.
O edifício do Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro, a que D. Carlos
se dignou conceder o título de Real por decreto de 12 de Setembro de 190650, em
1884, já se encontrava exteriormente concluído e coberto51; com efeito, a estrutura
superior deste ‘templo da cultura’ e mormente a do salão destinado à livraria, num
primeiro momento pensada em madeira, acabou por ser, sob proposta de Frederico
Branco, substituída, com vantagem, por uma outra de vidro e ferro. Ao apresentar
esta proposta, o arquitecto demonstrou estar na posse de conhecimentos tecnológicos
modernos, difundidos, sobretudo, no período romântico.
Na sessão de 12 de Junho de 1882, “o architecto Branco apresenta em oito dese-
nhos os planos para a coberta de ferro do edificio e cupula para claraboia do salão da
bibliotheca e mais accessorios descriptos em um orçamento de Manoel Joaquim Moreira
& C.ª”52. A Directoria vai analisar esta proposta e, na semana seguinte, convoca uma
reunião destinada a resolver o assunto e “adopta para cobertura do edificio, cupula,
claraboias, e seus accessorios, tudo de ferro, o plano apresentado pelo architecto o Sñr.
Frederico José Branco, em substituição do plano primitivo (…); sendo a preferencia
baseada na grande superioridade do novo plano sobre o antigo, não só quanto á solidez

45 TABORDA, s/d: 88.


46 ARGPLRJ – Manuscritos e Autógrafos, pasta N, documento 5.
47 Relatorio da directoria do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro em 1881, 1882: 5.
48 ARGPLRJ – Manuscritos e Autógrafos, pasta N, documento 4.
49 ARGPLRJ – Livro de actas das sessões da directoria, 1880-1896: 42.
50 ARGPLRJ – Manuscritos e Autógrafos, pasta K, documento 9; Relatorio da directoria do Gabinete Portuguez de Leitura

no Rio de Janeiro. Actos e contas do exercicio de 1906-1907, 1908: 8.


51 Relatorio da directoria do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro em 1883-1884, 1885: 23.
52 ARGPLRJ – Livro de actas das sessões da directoria, 1880-1896: 76.
Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro: ponte de artistas entre dois mundos 517

e menor peso, mas tambem quanto á bellesa da obra e / conveniencia de luz para o
salão principal”. É ainda de parecer que o trabalho seja concretizado no Brasil e não
na Europa “em razão dos inconvenientes que podem surgir na collocação” e delega em
Branco “os poderes necessarios para contractar a obra em vista do plano approvado,
quer seja directamente com uma officina, ou pondo a obra em concurso entre diversos
estabelecimentos, entre os quaes a directoria especialisa os de Manoel Joaquim Moreira
& C.ª, A. J. de Mattos & C.ª e as officinas de Finnie Kemp”53.
O trabalho acabou por ser entregue à firma de Manoel Joaquim Moreira & C.ª54.
É interessante constatar que o entusiasmo e emoção, despertados pelo edifício do
Gabinete Português de Leitura, não decorreram do facto de aquele ser, com grande
margem de certeza, a primeira obra de estrutura metálica construída no Rio, mas
giraram em torno do “belo estilo manuelino” patenteado pela sua arquitectura e da
mensagem ideológica que continha55.
As atenções, depois de 1884, voltaram-se para o interior do prédio, fazendo
prosseguir os acabamentos e, simultaneamente, erguer as colunas, os varandins e
as estantes destinadas a albergar o extraordinário espólio literário, que havia sido
acumulado ao longo de cinquenta anos56.
Não tendo sido possível que a inauguração da nova casa se realizasse a 10 de Junho
de 1884, como inicialmente o presidente pensava e expressou no seu discurso57, a
directoria, nesse mesmo ano, acreditava poder “fixar o prazo final da construcção (…)
no futuro anno de 1886”58; mas, na realidade, no mês de Janeiro desse ano ainda se
apreciavam as propostas do concurso aberto para a adjudicação da pintura interna do
edifício e para a obra de ferro e bronze da escada de ferro, portão, caixilhos e gradil.
Com efeito, na sessão de 16 de Janeiro de 1886, a Directoria colocou à discussão os
diversos orçamentos de pintura apresentados por Geraldo Peeci, Figueiredo de Braga
e Frederico Antonio Steckell e os respeitantes ao ferro e bronze a utilizar no interior,
enviados por de Manoel Joaquim Moreira & Comp.ª e por Costa Ferreira & Companhia.
Lidas as propostas “optou-se quanto á pintura, que a proposta mais vantajosa em
preço e mais em condições de garantias na execução era a de Frederico Antonio
Steckel, por isso se adoptava” e no que respeita ao ferro e bronze “depois de lidas
e discutidas, foi igualmente acceita, pelas condições de preço e garantia de perfeita
execução, a da officina dos Snr.es Manoel Joaquim Moreira & C.ª”59.
O escultor Simões de Almeida, que se obrigara a entregar as estátuas da frontaria
prontas em Maio de 1883, deve ter excedido em pouco o prazo estipulado, porque em
Maio de 1882 já havia feito, em gesso, o modelo da estátua de Camões60 e em Novembro

53 ARGPLRJ – Livro de actas das sessões da directoria, 1880-1896: 77.


54 ARGPLRJ – Livro de actas das sessões da directoria, 1880-1896: 94 e 96.
55 BRENNA, 1989: 165.
56 Relatorio da directoria do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro em 1883-1884, 1885: 23.
57 Discurso proferido pelo presidente da directoria na sessão inaugural do Conselho Deliberativo em 18 de Julho de 1881.

Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro, 1881: 9.


58 Relatorio da directoria do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro em 1883-1884, 1885: 23.
59 ARGPLRJ – Livro de actas das sessões da directoria, 1880-1896: 169.
60 ARGPLRJ – Manuscritos e Autógrafos, pasta N, documento 4.
518 Regina Anacleto

o da de Cabral61. Além disso, em 2 de Outubro de 1884 a Sociedade de Geografia de


Lisboa enviou ao Gabinete Português de Leitura um ofício a agradecer a valiosa oferta
dos modelos das quatro estátuas que devem decorar a fachada do edifício no Rio de
Janeiro, a fim de ornamentar, na capital portuguesa, os salões daquela associação62.
As estátuas, em 1885 já se “achavam collocadas no edificio” e parece que o
efeito produzido era agradável, até porque as figuras se encontravam esculpidas com
enorme correcção e tinham “toda a nobreza e severidade que a arte aconselha na
grande estatuaria que é a grande idealisação dos heroes que a historia registra nas
suas paginas gloriosas, e que as gerações vão elevando em pedestaes de ouro”. Neste
conjunto de estátuas heróicas, sobressai “o porte elevado [das figuras], a physionomia
grave e severa, a atitude pousada e nobre”.
Mas se a estatuária se inseria num programa historicista que exprimia a maneira
de pensar e de actuar dos encomendantes e de alguns dos seus contemporâneos,
sobretudo dos mais ilustrados, outro tanto decorre no que toca à pintura e à decoração
dos interiores, bem como às obras de arte que enfeitam o edifício.
Ainda antes da inauguração, quando em 10 de Setembro de 1887 se festejou
o quinquagésimo aniversário da fundação do Gabinete, a “livraria [já] se achava
collocada nas galerias da grande sala da bibliotheca”63 e as festividades puderam
desenrolar-se nas novas instalações sitas na antiga rua da Lampadosa, embora as
obras só se tivessem terminado em Setembro do ano seguinte e a inauguração oficial
tivesse efectivamente acontecido a 22 de Dezembro de 1888.
O prédio manuelino, que os portugueses radicados no Rio de Janeiro ali deixaram
como padrão da sua nacionalidade e como sucessão histórica do seu valor e da sua
energia, acabou por custar, incluindo algum mobiliário, cerca de 600:000$000, soma
importante, mas relativamente moderada, se se tiver em conta a sua alta qualidade.
Evidentemente que o facto de não ter atingido valores mais elevados se deve à sábia
administração “do intelligente architecto Sr. Frederico José Branco, que teve a gloria
de inaugurar e terminar sem interrupção esta obra” e à dedicação desinteressada de
todos quantos nela colaboraram; por isso a directoria, naquele momento, não podia
deixar de expressar o seu grande reconhecimento aos “Srs. Manoel Joaquim Moreira &
C., habeis e acreditadissimos industriaes d’esta cidade, pelos seus primorosos trabalhos
de fundição e pela escrupulosa exactidão no cumprimento de seus contractos; [a]o Sr.
Frederico Steckel, pelos seus inexcediveis trabalhos de pintura tão intelligentemente
estudados e executados, e [a]os Srs. Carvalho Moreira & C., afamados fabricantes
marceneiros, pelos seus admiraveis trabalhos de esquadria e mobilias, pelo esplendor
e brilho da obra que empregaram na patriotica construcção”64. Contudo, apesar de
reconhecer as qualidades dos referidos marceneiros, a directoria não se eximiu a
comprar a mesa e as cadeiras góticas que deviam adornar o salão de honra, em Paris65.

61 ARGPLRJ – Livro de actas das sessões da directoria, 1880-1896: 94.


62 ARGPLRJ – Livro de actas das sessões da directoria, 1880-1896: 144 e 145.
63 Relatorio da directoria do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro em 1885-1888, 1889: 60.
64 Relatorio da directoria do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro em 1885-1888, 1889: 69.
65 Relatorio da directoria do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro em 1885-1888, 1889: 71.
Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro: ponte de artistas entre dois mundos 519

o edifício do Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro, por expresso


desejo dos seus impulsionadores, e dentro de um espírito romântico em que o historicismo
e o patriotismo se apresentavam de mãos dadas, insere-se nos cânones neomanuelinos e
filiou-se, como ficou bem patente, nos Jerónimos, esse “arco de triunfo por onde Portugal,
senhor dos mares, entrou na História da Civilização!…”66; além disso, os responsáveis,
escolheram um arquitecto nacional para o riscar, um escultor lisboeta para dar forma às
monumentais estátuas e fizeram esculpir as pedras da sua fachada em Portugal.
Ao longo dos séculos constata-se que a pedra sempre foi o material preferido pelos
portugueses para erguer as suas obras de arte e a magia e o significado das pedras,
bem como o sentido patriótico que o edifício fluminense assumia, foram exaltados no
eloquente e longo discurso que Joaquim Nabuco, homem relacionado com as letras
brasileiras, tribunício proeminente e paladino da abolição da escravatura, proferiu
na sessão inaugural67.
o Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro começou por ser uma insti-
tuição fundada por portugueses poucos anos depois da independência e, graças às
qualidades que os seus membros revelaram possuir, ao longo dos tempos, acabou por
granjear prestígio, somar triunfos e depositar no templo manuelino, padrão memorável
dos descobrimentos e navegações nacionais, o atestado vivo da alma poética e do
valor moral da geração que logrou deixar, em terra estranha, um monumento tão
representativo do seu passado histórico e do amor à literatura pátria.

Figura n.º 1
Desenho da fachada do Real Gabinete
Português de Leitura do Rio de Janeiro
Fonte: Projecto de Rafael da Silva castro
[O Occidente, 1881: 57].

66 CASTRo FILHo, 1977: 82.


67 TABoRDA, s/d: 124-127.
520 Regina Anacleto

Figura n.º 2 – Fachada do Real Gabinete Português Figura n.º 3 – Estátua de Camões.
de Leitura do Rio de Janeiro Escultor Simões de Almeida
Foto: Regina Anacleto. Foto: Regina Anacleto.

Figura n.º 4
Sala de Leitura
do Real Gabinete
Português de Leitura
do Rio de Janeiro
Foto: Disponível na internet em:
<www.photoindustrial.com>.
Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro: ponte de artistas entre dois mundos 521

Figura n.º 5 – Cúpula de ferro e vidro que cobre a Figura n.º 6 – Salão nobre do Real Gabinete
Sala de Leitura do Real. Português de Leitura do Rio de Janeiro
Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro Foto: Regina Anacleto.
Foto: Regina Anacleto.

Figura n.º 7
Projecto de uma estante para o Real Gabinete
Português de Leitura do Rio de Janeiro
Fonte: ARGPLRJ. Foto: Regina Anacleto.

Fontes e bibliografia
Fontes Manuscritas
ARGPLRJ – Livro de actas das sessões da directoria, 1880-1896.
ARGPLRJ – Manuscritos e Autógrafos, pasta K.
ARGPLRJ – Manuscritos e Autógrafos, pasta N.
522 Regina Anacleto

Fontes Impressas
Discurso proferido pelo presidente da directoria na sessão inaugural do Conselho Deliberativo em 18 de
Julho de 1881. Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro, 1881, Rio de Janeiro: Typ. e
Lith. de Moreira, Maximino & C.
Juizo da imprensa do Rio de Janeiro acêrca do relatorio da Directoria do Gabinete Portuguez de Leitura
em 1880. Terceiro centenario de Camões, 1881, Rio de Janeiro: Typographia e Lithographia de
Moreira, Maximino & C.
Real Gabinete Português de Leitura. Resumo histórico, 1940, Rio de Janeiro.
Relatorio da directoria do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro em 1879, 1880, Rio de
Janeiro: Typ. e Lith. Moreira, Maximino & C.ia.
Relatorio da directoria do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro em 1880, 1881, Rio de
Janeiro: Typ. e Lith. Moreira, Maximino & C.ia.
Relatorio da directoria do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro apresentado em sessão da
Assembleia Geral de 1 de Junho de 1873 pelo director Boaventura Gonçalves Roque, 1873, Rio
de Janeiro: Typographia Perseverança.
Relatorio da directoria do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro em 1881, 1882, Rio de
Janeiro: Typ. e Lith. Moreira, Maximino & C.ia.
Relatorio da directoria do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro em 1882, 1883, Rio de
Janeiro: Typ. e Lith. Moreira, Maximino & C.ia.
Relatorio da directoria do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro. Actos e contas do exercicio
de 1906-1907, 1908, Rio de Janeiro: Typ. de Heitor Ribeiro & C.
Relatorio da directoria do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro em 1883-1884, 1885, Rio
de Janeiro: Typ. e Lith. Moreira, Maximino & C.ia.
Relatorio da directoria do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro em 1885-1888, 1889, Rio
de Janeiro: Typ. Perseverança.
Relatorio do Gabinete Portuguez de Leitura, apresentado em sessão de Assembléa Geral de 24 de Fevereiro
de 1861 pelo respectivo director José Peixoto de Faria Azevedo, 1861, Rio de Janeiro: Typographia
de Pinheiro & Comp.

Bibliografia
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Fundação Calouste Gulbenkian/JNICT.
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BRENNA, Giovanna Rosso del, 1989 – “Neogotico europeo a Rio de Janeiro (1816-1899)”, in
BOSSAGLIA, Rossana (org) – Il neogotico nel XIX e XX secollo, vol. I. Milão: Mazzotta, pp.
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CASTRO FILHO, Manoel Ferreira de, 1977 – “Gabinete, sacrário da Luso-Brasilidade”, in
TAVARES, António Rodrigues (dir.) – Fundamentos e actualidade do Real Gabinete Português
de Leitura. Rio de Janeiro: RGPLRJ, pp. 27-112.
CERQUEIRA, Joaquim, 1903 – “Joaquim da Costa Ramalho Ortigão e o Gabinete Portuguez de
Leitura do Rio de Janeiro”. Brasil-Portugal, n.º 98. Lisboa.
L., G., 1888 – “O Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro e o tri-centenario de Camões”,
in O Occidente, n.º 80. Lisboa.
MARTINS, A. A. de Barros, 1913 – Esboço historico do Real Gabinete Portuguez de Leitura no Rio
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TABORDA, Humberto, s/d [1937] – História do Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro. S/l.
TAVARES, António Rodrigues (dir.), 1977 – Fundamentos e actualidade do Real Gabinete Português
de Leitura. Rio de Janeiro: RGPLRJ.
A Igreja Matriz de Ovar nos séculos XVII-XIX:
obras e artistas
Sofia Nunes Vechina

Introdução
Das oito freguesias existentes no concelho, Ovar tem sido a maior fonte de
curiosidade para os investigadores locais, destacando-se, consideravelmente, a Igreja
Matriz. Todavia, os documentos consultados nas primeiras décadas do século XX,
desapareceram do arquivo paroquial, incluindo os valiosíssimos livros de visitações.
Resta-nos, por agora, a difícil tarefa de manter viva a sua memória, acrescentando
alguns elementos e perspectivando novas formas de investigação.
Dedicada a S. Cristóvão, esta Igreja é referida pela primeira vez em Maio de 11321,
localizando-se em Cabanões2.
No século XVI, mais propriamente em 1550, surge a primeira alusão documental3,
até agora conhecida, à Igreja de Ovar, comprovando, assim, a transferência4 da Igreja
Matriz de Cabanões para a vila de Ovar.
Em 1623, D. Rodrigo da Cunha considera-a “(…) das fermozas Igrejas do Biſpado5”,
supondo um certo bom gosto, comprovado pelos azulejos hispano-árabes encontrados
nas intervenções arqueológicas realizadas entre 1998 e 20006, no entanto em 26 de
Outubro de 1665 “o Visitador, Fernam Pereira Soares” diz
“que a Igreja se achava arruinada, e arrebentada a parede nas linhas quasi todas,
chovendo em algumas partes do norte, e em principal no altar de Nossa Senhora do

1 BASTOS, 2001: 28.


2 À época seria o centro da freguesia de Ovar, na actualidade, é um lugar da recém-formada freguesia de S. João de
Ovar.
3 “Em documentos da época, da transição (séc. XVI) tanto aparece Igreja de Cabanões ou Igreja de S. Cristóvão de

Cabanões (1539), como Igreja de S. Cristóvão de Ovar ou Igreja de Ovar (1550), ou ainda S. Cristóvão de Cabanões
morador na dita vila de Ovar (1597)”. (BASTOS, 2001: 31).
4 Outras teses defendem que a Igreja de Cabanões foi transferida para Ovar na primeira metade do século XV, como

diz o Pe. Miguel de Oliveira: “Embora sem elementos positivos de prova, parece-me que a “igreja velha” de Cabanões,
referida no Foral de 1514, foi substituída, em data anterior às transacções entre o Bispo e o Cabido [1466], talvez
na primeira metade do século XV.” (OLIVEIRA, 1967: 138; LAMY, 2001: 100).
5 CUNHA, 1623: 388.
6 FRANÇA, 2009: 119-130.
524 Sofia Nunes Vechina

Rosário, e por me dizerem que de novo se quer edificar a Igreja de naves, mando que
em quanto não, a segurem dentro os mesmos freguezes, sob pena de dez cruzados,
por se apropinquar o Inverno”7.
A partir de finais do século XVII esta igreja sofre várias alterações e aquisições,
tanto ao nível da arquitectura como da talha.
Na arquitectura podemos acrescentar um documento existente no Arquivo
Episcopal do Porto, de 26 de Fevereiro de 1674, e alguns documentos manuscritos
e desenhos, divulgados parcialmente em 19888, no Jornal João Semana, sobre a
reedificação do século XIX.
Nos ditos artigos foram citados alguns apontamentos sobre a obra de arquitectura
e divulgados os desenhos referentes ao frontispício da Igreja, todavia, é chegado o
momento de rever os documentos originais e mostrar todos os restantes desenhos,
inclusive, o risco do retábulo da capela do Santíssimo Sacramento, incluídos na
mesma pasta, no Arquivo Municipal de Ovar.
Quanto à talha do século XVII e XVIII, tomando por base os documentos citados
por Domingos de Pinho Brandão em 1984 e 1986, pretendemos compreender as obras
de Ovar, comparando a documentação e a obra existente, para além do reconhecimento
de outras obras feitas na zona norte do país, que poderá elucidar-nos da importância
das formas aplicadas em Ovar no percurso do artista.

1. Arquitectura
Iniciada a reedificação no século XVII “(…) cederam-se sepulturas privativas,
dentro do templo, a algumas famílias nobres, que por isso concorriam com mais
avultadas quantias para as obras9”, destacando-se Salvador de Matos Soares Tavares
da Rocha, que adquiriu três sepulturas e ergueu a Capela do Sr. da Agonia, onde,
ainda hoje, se lê, em epígrafe: Esta capela eh de Sal/vador de Matos So/ares e des sevs
erdeiro/s mandov a fazer sev/ filho o Prior de Carre/goza anno d 1670.

1.1. Reedificação na década de 1670


Após alguns anos de desespero por não se verem iniciadas as obra na capela-mor,
finalmente, em 1674:
“Dizem os m.es da villa dovar que lles tem a Igreja accabada de todo o neceſ.º e ornada
com toda a deçençia e som.te se vai contenuando cô a cappella mor, que faz por sua conta o
R.do Cabbido, e sem em.to de esta naõ estar acabada, fica m.to decente es.ta Igreja p.ª em ella se
scelebrarh os off.os diuinos, doq em a Capella de N. Snra da Graça, que he limitada, por cauza
doq neſtes Domingos da Quaresma estâ o pouo ouvindo o sermão a chuva e há outros incon-
venientes, que arem.ce […] ser not.os, em.tos cô pouco seruiſo de Deos, os que senaõ conçideraõ

7 PINHO, 1959: 156.


8 BASTOS, 1988.
9 LÍRIO, 1926: 51-52.
A Igreja Matriz de Ovar nos séculos XVII-XIX: obras e artistas 525

nad.ta Igreja, porq.to o arco da Capella eſtá perfeitto, como deue ser, eo naõ por onde se entra
p.ª ella eſtá tapado cô parede, q som.te se há de desfazer ao tempo, que estiver accabada es.ta
capella em cujos termos naõ se pode conciderar indeçençia, por naõ estar accabada que he todo
o fundam.to comq o R.do Cabbido impugna odizerse miſ na Igreja, enella scelebraremse os off.os
diuinos; e porq por euitar os inconuenientes, e conſtar se he, ou naõ decente, fazeremse os off.
os nella, deue Rem.e mandar uizitar es.ta Igreja, conſtanto ser […] oq supp.tes allegaõ lhes deue

Rem.e conceder licença p.ª se scelebrarem os off.os diuinos nella nesta quaresma, e os panos na
4ª Dominga, eſtando os mes. Na d.ta capella de N. Snra da Graça, eq som.te as endoenças se
exponha ne.ta Igreja, e sendo neceſa. faraõ os supp.tes termo emq se obrigaõ no dia de Paschoa
faz.do a prociſaõ da Resureiçaõ a tornar ao locallo nad.ta Capella de N. Snra da Graça, pelloq
(…) Dizem os moradores da villa de Ovar q naõ ſe confformam […] a Igreja Matriz com custo
de m.tos mil cruzados q se pagou no arco da capella e q […] naõ esta accabada q he fabrica do
m.to R.do Cabido e por q o pouo he m.to grande naõ podem comodam.te ouvir miſſa nas Ermidas
e por iſſo a querem ouvir na dita Igreja (…)10.”
Todavia, o cabido responde que:
“Não está finda a obra da Capella da Igreja de Ovar por falta do pedreiro, a quem se deu
por Rematação por hua Escritura pública; E tem recebido muito mais dinheiro, do q impera a
obra, que tem feito; pelo q já fizemos petição do Corregedor do Civel, q o mandasse prender;
E no mes de Septembro proximo deu despacho, que a acabasse dentro de seis meses; E logo foi
notificado por elle; E porq na mesma escritura está o pedreiro desaforado p.ª o juizo Eclesiastico;
Requeremos ao senhor p.or do Bispado mande proceder contra elle, E da nossa parte fazemos
toda a dilig.ca E estamos prestes a dar todo o dinheiro pª a obra, que queremos se acabe logo.
E emquanto a petição dos supplicantes não deve ter lugar ferirselhe por hora; porq. posto digão
[…] o arco tapado, não ficacem e; nem contem que se digão missas na Igreja antes de acabada
a obra da Capella; por q sempre pª se acabar, se ha de abrir arco pª a serventia da obra; E
será grande indecencia, que se andem com obras na Igreja; disendose missa nella; E esperamos
mto em breve se acabe a obra da dita Capella pellas sesões que os suplicantes representão; E da
nossa parte faremos toda a dilligencia; E o senhor governador do Bispado fará em tudo justiça.
Porto em […] 19 Março de 167411.”
Portanto, só em 1679, se iniciou o culto na nova igreja12.

1.2. A igreja em 1758


No século XVIII, terá sido construída a Casa da Fábrica (demolida em 1854)13 e
a capela e sacristia dos Passos (lado norte).

10 A.E.P. – Autos de huas acçoes e despachos do m.º R.do Senhor Dr. governador do Bispado sobre huns requirimentos dos
freguezes de Ovar, 26 de Fevereiro de 1674.
11 A.E.P. – Autos de huas acçoes e despachos do m.º R.do Senhor Dr. governador do Bispado sobre huns requirimentos dos

freguezes de Ovar, 26 de Fevereiro de 1674.


12 GONÇALVES, 1981: 174.
13 LÍRIO, 1926: 60.
526 Sofia Nunes Vechina

As Memórias Paroquiais (1758), falam-nos de alguns danos causados pelo terramoto


de 1755, na Igreja Matriz, onde
“(…) padeceu ruina a Cappella maior da Igreja, porque tendo já duas aberturas, as deo
mais a conhecer. Cahirão duas Cruzes: huma do frontespicio da Igreja, outra da Cappella mór;
abriu-se a abóbeda da Cappella do sr. dos Passos por varias partes: descomposselhe o telhado;
cahiulhe a Cruz, e duas pirâmides. Igual ruína experimentou a abobeda da sancristia chamada
do Senhor, e as paredes, que abrirão14.”
Na sequência deste acontecimento deu-se a reedificação da capela-mor e da
sacristia em 176215.
Ainda, em 1758, a Igreja Matriz de Ovar:
“He São Christovão; tem seis Altares; o da capella môr, em que está o santíssimo sacramento,
e a Imagem do Padroeiro; Dous collaterais pegados ao Arco Cruzeiro; hum da parte direita, da
Senhora do Pilar, e Almas; outro da parte da esquerda, que he da Senhora do Rozario; outro
com capella lançada fora das paredes principais da Igreja, mas dentro della, que he do Senhor
dos Passos; outro da parte direita do Senhor da Agonia; e em correspondência deste da parte
esquerda outro de S. Bartolomeu. Tem oito naves: quatro por cada parte, alem de 4 meias naves,
que são duas por cada parte; a saber, duas junto ao Arco Cruzeiro; e duas junto ao coro16.”
Causará, por certo, alguma estranheza, a descrição de um edifício com oito naves,
no entanto, haverá com certeza uma confusão entre “naves” e espaços.
Depois de analisar a documentação do século XIX, confirmamos a existência
de colunas no interior do templo, uma vez que “Estas duas paredes interiores [dos
arcos] levarão no prûme de cada coluna huma linha de ferro da groçura e feitio das
que tem17”. Portanto, a igreja seria constituída pela capela-mor, a capela do Senhor
dos Passos e sua respectiva sacristia, a sacristia do Senhor, três naves e o coro-alto,
ou seja, oito espaços, que poderiam ter sido confundidos com oito naves, “quatro
por cada parte” ou quatro espaços no corpo da igreja e quatro fora dele, “alem de 4
meias naves” ou seja da Capela e sacristia dos Passos e da capela-mor e sua sacristia.

1.3. Edificação da Capela do Santíssimo Sacramento


A Capela do Santíssimo Sacramento (Figura n.º 9), da autoria do mestre de obras
Manuel Lourenço Afonso, foi edificada entre 1831-34 e, segundo a documentação18,
teria “(…) vinte palmos de cumprido de vivo por dentro e outra tanta largura (…)”,
com “(…) Alicerces (…) de oito palmos de altura e cinco de groçura athe a sapata,
e dahi para sima de quatro (…)”.
Foi construída com a preocupação de se harmonizar com a Capela do Paço ou do
Pretório (Figura n.º 15), por isso, no interior “(…) tera hum degrao no Arco como o
14 BASTOS, 1984: 34.
15 LAMY, 2001: 177.
16 BASTOS, 1984: 30-31.
17 A.M.O. – Apontamentos para a Igreija da Villa de Ovar, pasta 1547, fl. 2 e 2v.
18 A.M.O. – Apontamentos para a nova Capella do Santifsimo Sacramento da Igreja da Villa de Ovar, s/ data, pasta 1547.
A Igreja Matriz de Ovar nos séculos XVII-XIX: obras e artistas 527

da Capela do Paço e o arco do m.mo feitio como o do Paço19”, enquanto no exterior


“a empena da Capella será coberta de Cantaria como a da Capela Mór com huma
crus em sima e duas piramideas sobre os cunhaes tudo como as da Capella Mor, e
terá a mesma altura esta Capella que a dos Paços20”.
A informação escrita, assinada pelo supracitado mestre de obras, de Avanca
(concelho de Estarreja), faz-se acompanhar de alguns desenhos que embora não
tenham sido assinados, serão do mesmo autor, e onde se verificam algumas diferenças,
entre o projectado e a obra acabada, como é o caso do desenho onde se pretendia
“(…) acentar a baze do pedestal de cada huma das pilastras sendo tudo cheio de cantaria
entre pedestal e pedestal com sua cornija como se ve no risco, e com seu refendido para mostrar se
o almofadado, este pedestal será da altura da banqueta do altar pouco mais ou menos conforme
se lhe indicar21.”
No referido risco (Figura n.º 10), figuram vários elementos decorativos de ins-
piração vegetalista e floral, e um “Painel Alegoria a S. Sacramtº22”, que não foram
executados. Todavia, mantém-se a estrutura arquitectónica, e em vez do painel,
abriu-se uma janela de cada lado.
A planta (Figura n.º 12), onde se afiguram as ditas pilastras, foi seguida com
exactidão, como ainda hoje se pode verificar in situ, bem como, a cornija que tem
(…) em roda da Capella com intabolamento frizo e alquetraba como se ve nos moldes
nas costas da mma planta23.
Quanto à proveniência dos materiais seriam, provavelmente, próximos de Ovar,
como é o caso da (…) pedra d’Aguncide bem lavrada24, ou seja de Argoncilhe, no
concelho vizinho de Santa Maria da Feira.
No que diz respeito à
“(…) grade do Comungatório25, e o degrau será mudado athe ás primeiras Colunas da Igreja
de hum e de outro lado, o degrau (…) faceara pela parte debaixo com as Colunas, e a grade
ficara a meio das mesmas ficando espaço de palmo e meio fora da grade para ajoelhar: esta
grade terá a mesma portada que no meio; de huma destas colunas athe a do pulpito Continuara
o degrau e grade no mesmo nivel do de sima, e a entrada para o pulpito se arranjara de modo
que fique da parte de dentro da grade. Desta coluna do Pulpito athe a parede da Igreja continua
o degrau e a grade tendo huma portada. Do outro Lado se fará outro tanto.
Todas as sepulturas que se puderem acumodar da parte de dentro das Grades se acomodarão
Compondo os caixilhos de pedra e fazendose de novo as tampas de todas as de dentro da grade
de madeira de pinho (…). Poderá o rematante aproveitar de toda a pedra que se achar, com
tanto que nenhuma fique com defeito. As ferrajes da grade serão por conta do arrematante

19 A.M.O. – Apontamentos para a nova Capella do Santifsimo Sacramento da Igreja da Villa de Ovar, s/ data, pasta 1547.
20 A.M.O. – Apontamentos para a nova Capella do Santifsimo Sacramento da Igreja da Villa de Ovar, s/ data, pasta 1547.
21 A.M.O. – Apontamentos para a nova Capella do Santifsimo Sacramento da Igreja da Villa de Ovar, s/ data, pasta 1547.
22 A.M.O. – Risco para as ilhargas da Capela do Santíssimo Sacramento, s/ data, pasta 1547
23 Ver Figura n.º 8 (A.M.O. – Planta, s/ data, pasta 1547).
24 A.M.O. – Apontamentos para a nova Capella do Santifsimo Sacramento da Igreja da Villa de Ovar, s/ data, pasta 1547.
25 Ver Figura n.º 1.
528 Sofia Nunes Vechina

aproveitandose daquellas q a mesma tem e que puderem servir. A grade que faltar a mandara
fazer o rematante irmão do que esta em feitio qualidade de madeira, e groſura.
Feira 4 de Fevereiro de 1833.
José Afonso de [Meneses?]26.”

1.4. Projectos de reedificação do Arquitecto Luís Inácio de Barros Lima


Desde finais do século XVIII, que o edifício requeria cuidados. Optando pela
reconstrução, foi necessário encomendar o respectivo projecto, que ficou a cargo
do Arquitecto Luís Inácio de Barros Lima27, do Porto, que o apresentou em 1804,
mas que em inícios da década de 1830 terá exposto um esboço mais desenvolvido
e, consequentemente, mais próximo do objectivo final.
Embora este último risco, não esteja datado nem assinado, comparando o tipo de
papel e de desenho, pode-se concluir que será da mesma autoria do risco de 1804.
O mesmo acontece com os desenhos de pormenor relativos às torres (Figura n.º 7).
A 11 de Fevereiro de 1824, o visitador Dr. António de Sousa Dias de Castro, diz:
(…) louvei o Rdo Parocho pelo que diz resp.º à Capella Mór, que achei bem preparada
(…)28, no entanto:
“O corpo da Igreja Matriz se acha reduzido ao mais deploravel estado, por falta de se terem
cumprido os Cap.os das Vizitas passadas, q determinavão os reparos mos nos telhados, forros,
solho, e portas da Ig.ª (…)29. Portanto mando, que toda a Igreja seja forrada, telhada, e solhada
na im.ª que precizo for30.”
O supracitado visitador, dá-nos, ainda, a saber que chovia em cima nos retábulos
colaterais.
Em suma, era urgente intervir no corpo da Igreja, e em 1824, já existia um primeiro
projecto de reedificação do frontispício, mas só na década de 1830, se avançou com
um segundo projecto e respectiva distribuição de encargos.
Quanto à obra de pedraria:
“Primeiramente terá a altura que indica o Risco que são cincoenta e oito palmos (…);
As Torres serão conforme diz o Risco, em altura, largura, e ellegancia, so com diferença de não
ter os balaustres31 que o risco mostra, e terão as janelas, ou frestas que o inspector determinou;
Os Alicerces do Frontespicio, e ilhargas das Torres serão da profundidade de doze palmos, e oito
de largo athe a sapata, a qual será de esquadria, e recolhera a parede hum palmo, elevando huma
faxa com seus socos, (…) e Bazes, conforme indica o Risco athe abraçar as ilhargas das Torres, e
continuará esta parede do Frontespicio e Torres na groçura de sete palmos athe a altura que pede (…)32.”

26 Ver Figura n.º 1.


27 Foi um dos mais importantes arquitectos activos no Porto nos princípios do século XIX, principalmente entre 1801 e 1822,
época em que traçou diversos planos urbanísticos e projectos de edifícios. Ver PEDREIRINHO, 1995: 145.
28 A.E.P. – Livro que hade servir na vizita encarregada ao Illº Rº Abadde de Stª Maria de Vallega, 1824, fl. 33.
29 A.E.P. – Livro que hade servir na vizita encarregada ao Illº Rº Abadde de Stª Maria de Vallega, 1824, fl. 34.
30 A.E.P. – Livro que hade servir na vizita encarregada ao Illº Rº Abadde de Stª Maria de Vallega, 1824, fl. 35.
31 Risco de 1804 (Ver Figura n.º 4).
32 A.M.O. – Apontamentos para a Igreija da Villa de Ovar, s/ data, pasta 1547, fl. 1.
A Igreja Matriz de Ovar nos séculos XVII-XIX: obras e artistas 529

O frontispício (Figuras n.os 3 a 5), em harmonia com as restantes partes do edifício,


inclusive com a Capela do Santíssimo Sacramento33, terá:
“(…) em Lugar de huma janella que mostra o Risco34 haverá duas janellas de padieiras
direitas: a altura, e largura como as da Capella Mor: entre estas duas janelas haverá um Nixo
de Esquadria de altura das janellas com a ellegancia neceſaria; e Cûpula de [Canpa ?], e como o
Inspector lhe determinar; devendo levar o Ornato que indica o Risco por cima da porta principal,
e na distancia huma da outra que o Inspector determinar.
As paredes das ilhargas terão os seus alicerces; a profundidade de oito palmos, e largura
de sete, athe a Sapata que será de esquadria e depois recolherá hum palmo sobre a sapata, e
haverá huma faxa e como a da Capela do Santiſsimo Sacramento por fora, e se elevará com a
groçura de seis palmos (…)35.”
As paredes laterais, terão
“(…) duas portas trabeças da altura, e largura como as que tem, ou como lhe destinar o
Inspector com a sua competente simalha, e ornato necessario.
Terão estas paredes quatro frestas por banda de padieiras direitas e o mais em tudo como
as da Capella Mor, e terão cada huma dellas as competentes grades de ferro da groçura das da
Capella Mor, em que como as Redes, e os vidros serão acentes nas mesmas grades de ferro (…).
Estas paredes levarão em sima a competente simalha como a da Capella do Santissimo
Sacramento36.”
As restantes paredes (Figura n.º 6):
“(…) paredes das Arcadas, e impena do Arco Cruzeiro serão elevados na mesma groçura
athe a altura que convier não tendo porem os óculos que mostra o Risco. Estas duas paredes
interiores levarão no prûme de cada coluna huma linha de ferro da groçura e feitio das que tem,
e que abraçarão os freichous com seus joelhos, e pregados com groços pregos. Em correspondência
a Cada huma destas Linhas levará outra linha da mesma groçura, e feitio que abraçará aonde
pedir a parede dos arcos com as das ilhargas da Igreja aonde pregará nos freixos das paredes das
ilhargas e Virá abraçar a parede dos Arcos que será bazada e levará da parte opposta humas
grandes Xabetas entruduzidas nas mesmas paredes37.
Todas estas paredes serão feitas de boa Cal, e Area de Medição; dous de area, e hum de
cal (…)38.“
A torre do lado norte,
“(…) huma dellas terá a Escada de Caracol, e hua porta em baixo da altura de dez palmos,
largura porpocionada, e de boa esquadria a forrar toda a parede (…) Pera esta porta dar servidão
a Torre, independente da Igreja, e terá por baixo do Coro outra porta para da Igreja sahir para

33 Contemporânea desta reedificação.


34 Risco da década de 1830 (Figura n.º 5).
35 A.M.O. – Apontamentos para a Igreija da Villa de Ovar, pasta 1547, fl. 1v.
36 A.M.O. – Apontamentos para a Igreija da Villa de Ovar, pasta 1547, fl. 1v e 2.
37 A.M.O. – Apontamentos para a Igreija da Villa de Ovar, pasta 1547, fl. 2 e 2v.
38 A.M.O. – Apontamentos para a Igreija da Villa de Ovar, pasta 1547, fl. 2v.
530 Sofia Nunes Vechina

o coro que será pelas Escadas da mesma Torre, e (…) no pavimento do coro terá outra porta
da Torre para o Coro da altura e largura suficiente (…) Tera logo a sima hum [beco?] feito de
abobeda de tijolo para assentar o Relogio, por baixo do qual ficar (…).
Por sima desta abobeda aonde se hade assentar o relógio levará outra abobeda de tijolo
sobre que se hade assentar o Pavimento da Torre, e sobre o qual se hade assentar o lageado de
Esquadria devendo ficar na mesma certos buracos aonde convier para se comunicar o trabalho
do relógio de sino39.”
A torre do lado sul,
“(…) terá em baixo o baptistério que terá communicação para a Igreja no competente lugar
por meio de huma porta da altura de doze a quinze palmos, e largura proporcionada de esquadria
a cubrir a parede, e o pavimento deste Baptisterio sera laziado de Esquadria bem como a da
outra Torre – Por cima deste Baptisterio (…) será abobeda de Tijolo na altura que inspector
determinar (…) e será huma escada ao correr da parede por fora bem feita da largura de cinco
palmos com suas barandas de ferro, e no simo desta escada terá huma porta para a torre, e
outra da torre para o coro do tamanho e feitio das da outra Torre, e depois continuará daly a
escada pelo interior da torre, athe o lugar a qual será de caracol (…)40.”
Quanto à obra de carpintaria – portas travessas:
“As portas trabeças serão feitas de boas madeiras de castanho da groçura de quatro dedos
(…) [e] almofadadas.
Serão forradas por dentro de Lamina de ferro pregadas com bom prego de cabeça redonda
de meio em meio palmo.
Levará cinco dobradiças (…) e a porta trabeça do Norte levará duas trancas de ferro por
dentro, e os seus competentes feixos (…)41.”
A porta principal,
“(…) será a mesma (…)42.”
As portas das torres sineiras e coro-alto,
“(…) serão de boas madeiras de castanho de tres dedos de groçura e (…) com quatro
almofadas, com quatro dobradiças, e huma fixadura cada huma43.”
A armação da Igreja,
“(…) será toda infreixada, em freixas de (…) carvalho que terão de groçura hum palmo
de largo, e tres quartos de groço, pregando huns nos outros a dente de Cão e pregados com
grossos pregos44.”

39 A.M.O. – Apontamentos para a Igreija da Villa de Ovar, pasta 1547, fl. 2v e 3.


40 A.M.O. – Apontamentos para a Igreija da Villa de Ovar, pasta 1547, fl. 3.
41 A.M.O. – Apontamentos para a Igreija da Villa de Ovar, pasta 1547, fl. 4.
42 A.M.O. – Apontamentos para a Igreija da Villa de Ovar, pasta 1547, fl. 4.
43 A.M.O. – Apontamentos para a Igreija da Villa de Ovar, pasta 1547, fl. 5.
44 A.M.O. – Apontamentos para a Igreija da Villa de Ovar, pasta 1547, fl. 5.
A Igreja Matriz de Ovar nos séculos XVII-XIX: obras e artistas 531

O guarda-pó (Figura n.º 2) será


“(…) de castanho sobreposto e bem pregado, e será o Ripado de castanho de palmo em palmo45.”
Quanto à obra de trolha:
“Sera toda esta Igreja guarnecida por dentro, por fora e caiada assim como as Torres, e
baptistério, e tudo caiado –, cas abobedas q ficão nas Torres.
Será toda estocada levando sua simalha (…) a qual será de boa madeira de castanho46.
Esta obra será feita com boa cal traçada da maneira seguinte = Húma medida de saibro, e
outra de area (…) tudo bem serandado, e huma da cal penerada tudo bem a Masſado (…)47.”
Os telhados,
“(…) serão bemfeitos a Mouriscados, e a telha que faltar será da milhor: as telhas sobrepuêrao
meio palmo humas as outras, e levará os caloens neceſarios asſi das torres e aonde forem percizos48.”
Quanto aos altares laterais,
“(…) tornarse hão a por na Maneira em que estão qdo algum delles se desmanche49.”
Nos documentos supracitados fica, ainda, definido que os arrematantes da obra
de pedraria, carpintaria e trolha, poderiam, cada um em sua área, aproveitar para a
execução na nova obra todos os materiais que existissem na igreja.
Outro documento50 assinado por Pinto, “Antonio […]” e António José da Silva,
refere que a obra de pedraria ficaria por 7:869$000, a de carpintaria por 2:250$000,
e a de trolha por 550$000, num total de 10:669$665.
O mesmo “Antonio […]” que assina a Lutação, assina um documento onde diz:
“Recebi do Illº Snr. Dor Corregedor desta Comarca Joaquim Pintto […] e Vasconcellos o
risco du Frontespicio da Igreja de Ovar, para mandar copiar escriver me da sua copia de governo
para a Obra; e me obrigu a dar conta a este Juiz do original Risco dentro em quinze dias ou
logo que pedido me seja para reunir aos Autos, e quando aſim não faça me sugeito a Castigo
que seu Ministro me der.
E por verdade fis paſar o prezente que aſigno nesta villa da Feira aos vinte oito de Mayo de
Mil oitocentos e trinta e trez anos51.”
Não é referido qual dos dois riscos lhe é cedido, mas deveria se tratar do segundo,
não datado, que através deste documento e da inscrição que encima o portal principal
(Pavete ad Santuarium Meum: Ego Dominus/1834/Levit. C. XXVI.II), pode ser atribuído
com segurança a um dos primeiros três anos da década de 1830.

45 A.M.O. – Apontamentos para a Igreija da Villa de Ovar, pasta 1547, fl. 5.


46 A.M.O. – Apontamentos para a Igreija da Villa de Ovar, pasta 1547, fl. 5v.
47 A.M.O. – Apontamentos para a Igreija da Villa de Ovar, pasta 1547, fl. 5v e 6.
48 A.M.O. – Apontamentos para a Igreija da Villa de Ovar, pasta 1547, fl. 5v.
49 A.M.O. – Apontamentos para a Igreija da Villa de Ovar, pasta 1547, fl. 6.
50 A.M.O. – Lutação, pasta 1547.
51 A.M.O. – Recebi do Illº Snr. Dor Corregedor desta Comarca, 28 de Maio de 1833, pasta 1547.
532 Sofia Nunes Vechina

Em suma, a igreja foi reedificada em todo o frontispício, paredes laterais e interiores


(dos arcos), e nos telhados, usando-se bons materiais e recorrendo-se a um arquitecto
com obra na cidade do Porto.
Em 29 de Agosto de 1864, este edifício é caracterizado como: Boa Igreja de naves
(…) com reliquias sete dos sete altares (…)52.

2. Talha
O edifício que acabamos de conhecer, é composto por sete retábulos, dos quais,
o mais antigo, será o retábulo lateral do Senhor da Agonia (Fig. 13), inserido numa
estrutura pétrea53, a sua talha é, fundamentalmente, uma moldura da representação
pictórica de Nossa Senhora e de São João Evangelista, que forma um harmonioso
conjunto iconográfico, com a escultura do Senhor do Bonfim (Cristo crucificado,
em tamanho quase natural, proveniente de Roma54).
Muito próximo cronologicamente deste retábulo, estarão os dois retábulos colaterais,
com painéis representativos de cenas do antigo e novo testamento, onde se evidencia
uma estética entre o maneirismo e o estilo nacional. Do lado do evangelho, o retábulo
colateral referido nas Memórias Paroquiais com a invocação a Nossa Senhora do Pilar
e Almas, substituída, na actualidade, pela devoção a Nossa Senhora de Fátima e, do
lado da epístola, o retábulo dedicado a Nossa Senhora do Rosário.
Segue-se o retábulo da Capela dos Passos ou do Pretório, da autoria de José
Teixeira Guimarães; o retábulo-mor rococó, do qual não temos, até ao momento,
qualquer documento; o retábulo do Santíssimo Sacramento da capela com a mesma
invocação, da autoria de Manuel António da Fonseca, e finalmente, um retábulo,
dedicado a Nossa Senhora da Conceição, executado no século XX, que veio substituir
a primitiva invocação de S. Bartolomeu, consequência da proclamação do Dogma
da Imaculada Conceição, em 8 de Dezembro de 1854, através da encíclica Ineffabilis
Deus, proclamada pelo papa Pio IX.

2.1. O segundo retábulo-mor: Domingos Lopes e José de Araújo


Em 4 de Julho de 1681, o mestre entalhador e imaginário Domingos Lopes55,
assina o contrato referente à obra do retábulo-mor56, conserto do sacrário antigo57,
52 A.E.P. – Livro que hade servir na vizita encarregada ao Illº Rº Abadde de Stª Maria de Vallega, 1824, fl. 60.
53 No fecho, do arco de volta perfeita, encontra-se o brasão da família Soares de Albergaria.
54 LÍRIO, 1926: 31.
55 Morava na Rua da Ponte Nova (Porto), referido na documentação como ensamblador, entalhador, escultor, imaginário,

mestre de arquitectura, mestre carpinteiro, mestre entalhador, e oficial de imaginário, trabalhou em várias igrejas das
cidades de Aveiro, Porto, Vila do Conde, Vila Nova de Gaia, Baião, Braga e Ovar. (FERREIRA-ALVES, 2008: 186-187).
56 Deve ser de madejra seca sem nos nem podridão Alguma toda de Castanho entalhada (…) sera asentado este Retabollo

sobre hum garete Toda de Castanho de grossura Ao menos de hum Couto de madeyra Bem sequa para q. não trosa será
m.to bem gateada com gatos de fero Chumbados na parede todos os que forem nessesarios para firmeza e segurança do dito
Retabollo (…). Domingos Lopes, (…) sera mais obrigado a fazer As suas Custas padrestais de pedra pera asentar o dito
Retabollo (…). Ver BRANDÃO, 1984: 523.
57 (…) Regarnesera o redor Com homens targas Recortadas com perfeição para melhor o Ceo do Sacrario. Ver BRANDÃO,

1984: 523.
A Igreja Matriz de Ovar nos séculos XVII-XIX: obras e artistas 533

armário da sacristia58, e caixa de frontais59, onde se diz que “(…) o Retabollo velho
da dita Capella mor dever assim como tudo o mais ser para elle dito mestre (…)60”,
sendo, portanto, o retábulo a executar, o segundo da Igreja Matriz de Ovar.
No dia 6 de Agosto de 1688, o pintor José de Araújo, assina a escritura de fiança
e obrigação da pintura e douramento do referido retábulo, onde se definiram as zonas
a dourar e as partes que deveriam ser pintadas de branco, e no qual se declarou que
“A Capella mor tem de alto trinta e quatro palmos e de largo trinta e hu, e tem a obra tres
Corpos fora o frontespicio. E declaro mais q. em huas taboas q. ficao no Segundo Corpo entre
o nicho que esta lisas se farao huas alcaxofras de ouro, como tambem outras taboas q. fico no
terceiro Corpo entre as quartellas q. estao Lisas se fara o mesmo (…)61.”
Dão-nos, ainda, a saber que no
“(…) pr.º Corpo se pintarao tres painéis nos quais se farao em dous São Pedro e São Paulo,
e no meyo se farao huns Anjos cõ suas nuvens e hu pavilhão bottado no sima p.ª baxo, e no
meyo o q. ocupar o Sacrario se fará hu Ceo azul, e os caixilhos destes painéis serao os ornatos
dourados como tambem hu bucel q. tem pla banda de dentro cõ seu fillete, e o mais de branco,
esta pintura hade ser feita plos melhores mestres q. ouver na cid.e do Porto(…)62.”
O documento refere três registos, compostos por um nicho, certamente central,
e três painéis com moldura, o central teria a representação de anjos, enquanto nos
laterais figuraria S. Pedro e S. Paulo. A dita disposição de elementos estruturais,
parece, pelas suas características formais, corresponder ao retábulo da Capela de S.
Miguel (Figura n.º 14), da mesma freguesia.
Inserido numa capela construída entre 1711 e 172363, este retábulo é, claramente,
resultado da acoplagem de vários elementos. Por um lado, um arco de volta perfeita
de estilo nacional e duas meias molduras maneiristas. Por outro, uma composição
formada por uns frisos com apontamentos maneiristas e outros com elementos
vegetalistas a ladear um espaço, onde já existiu uma cara de anjo, inseridos numa
estrutura que se harmoniza com os restantes elementos.
Ao analisar a documentação do primitivo retábulo, como já foi referido, encontrámos
semelhanças entre o contrato de pintura, de 1688, e alguns elementos existentes
no actual retábulo-mor da Capela de São Miguel, sobretudo, no que diz respeito à
existência de um nicho e de três painéis64, correspondendo, provavelmente, às duas

58 (…) todo de Castanho forrado por baixo e será de Cores por dentro com suas vidraças nas portas e molduras por fora (…).
Ver BRANDÃO, 1984: 523-524.
59 (…) de Castanho limpo, fará taobem huma moldura bem feita em forma da grade com huma Caravella em cada Canto

para paresser por sobre os frontais no Altar mor para que os pés dos Selebrantes não tratem mal os frontais (…). Ver
BRANDÃO, 1984: 524.
60 BRANDÃO, 1984: 524.
61 BRANDÃO, 1984: 655.
62 BRANDÃO, 1984: 654.
63 LAMY, 2001: 141.
64 BRANDÃO, 1984: 654.
534 Sofia Nunes Vechina

meias molduras, existentes em São Miguel, e que em outros tempos, poderiam ter
servido de enquadramento a duas pinturas, uma de São Pedro e outra de São Paulo.
As influências estilísticas, presentes no retábulo da Capela de São Miguel,
coadunam-se, perfeitamente, com a época de transição entre o maneirismo e o estilo
nacional, e alguns elementos chegam a tocar a obra de Domingos Lopes:
“friso com pedras ovaladas e diamantes, referido na obra do sepulcro da Sé do Porto,
está presente no remate do retábulo dedicado a S. Miguel65;”
As consolas que ladeiam superiormente, as pinturas, do cadeiral do Convento
de Corpus Christi, em Vila Nova de Gaia, parecem ter servido de modelo para as
existentes na dita capela.
Todavia, estes elementos são característicos do gosto de uma época e, por isso,
utilizados por muitos artistas desse tempo.
Aliando esta constatação à falta de documentação, não podemos tirar conclusões,
mas devemos alertar para essa possibilidade, abrindo, assim, uma possibilidade de
investigação mais profunda da obra ainda existente da autoria de Domingos Lopes.
Com já foi referido, como o terramoto de 1755, a capela-mor entrou em ruína66,
levando à substituição do retábulo-mor.
Deste retábulo (Figura n.º 1), não conhecemos, até agora, quaisquer documentos,
no entanto, formalmente, deve enquadrar-se no rococó bracarense, e nele se insere
uma maquineta com Presépio oferecido em c.1860, por António Ferreira Meneres67,
executado na Fábrica das Devesas, e atribuído a Teixeira Lopes (Pai).

2.2. Marcas da obra de José Teixeira Guimarães na capela do pretório


No dia 9 de Abril de 1735, o mestre entalhador José Teixeira Guimarães68, passa
uma procuração ao pintor António José Pereira69 para que “possa cobrar todo o resto
que se lhe deve da talha dos Passos da Vila de Ovar70”, o que prova a existência
do retábulo (Figura n.º 16) neste ano, e a edificação da Capela dos Passos poucos
anos antes.
Em 23 de Dezembro de 1750, José Teixeira Guimarães, passa uma procuração a
Manuel Tomás Baptista, da Vila de Ovar, “(…) para que, em seu nome, como se presente
fora em pessoa, possa rematar o acrescento da obra de entalha da capela do Senhor dos
Passos, colocada na igreja matriz da dita Vila (…)71.”

65 BRANDÃO, 1984: 462.


66 BASTOS, 1984: 34.
67 Ofereceu, também, o órgão do coro-alto, datado de 1862. ([s_a], 1985: 10).
68 Por esta data, morava na Rua do Bonjardim (Porto), é designado na documentação como “mestre entalhador”, e

a sua vasta obra é conhecida, em grande número, na cidade do Porto, e alguns exemplares na Diocese do Porto
(talha da Capela do Senhor dos Passos em Ovar, talha da capela-mor da Igreja Matriz de Cucujães no concelho de
Oliveira de Azeméis, bancos das naves da Igreja de São Salvador de Matosinhos, e o frontispício da capela-mor da
Igreja Matriz de Mosteirô no concelho de Santa Maria da Feira). FERREIRA-ALVES, 2008: 163-164.
69 Residente na Rua de Santa Ana, no Porto (BRANDÃO, 1986: 306).
70 BRANDÃO, 1986: 307.
71 BRANDÃO, 1986: 578.
A Igreja Matriz de Ovar nos séculos XVII-XIX: obras e artistas 535

Nesse mesmo dia, o dourador Pedro da Silva Lisboa72, passa, igualmente, uma
procuração a Manuel Tomás Baptista, (…) para que, em seu nome, como se presente
fora em pessoa, possa rematar o dourado do acrescento da obra da capela do Senhor dos
Passos, colocada na igreja matriz da dita Vila (…)73.
Estes dois últimos documentos, dão-nos conta do acrescento da obra de talha, o
que revela que o retábulo terá sido executado em 1735, enquanto a restante talha,
e possivelmente, alguns “ajustes”/ modificações no retábulo são obra de 1750.
Com os, já referidos, danos causados pelo terramoto de 1755, na Igreja Matriz, o
tecto desta capela deverá ter sido entalhado depois de 1758.
O portal de acesso à capela, é composto por um arco de volta perfeita em alvenaria
trabalhada, e tem no fecho as letras S.P.Q.R.74, indicando o contexto social da época
que se pretende retratar, enquanto as paredes laterais servem de suporte a quatro
representações da Paixão de Cristo (do lado direito, o Lava pés e a Última Ceia; do
lado esquerdo, a Oração no horto e a Prisão) e o retábulo, é a base de sustentação
para três esculturas de vulto perfeito (do lado direito Cristo atado à coluna, do lado
esquerdo, Coroação de espinhos, e ao meio, Cristo carregando a Cruz).
Quanto à talha, apesar da harmonia que este conjunto faz transparecer, estamos
perante três formas de desenho:
1) Retábulo existente em 1735, executado por José Teixeira Guimarães, com colunas
salomónicas e elementos decorativos, que serão continuados pelo artista, em várias
obras até à década de 176075;
2) A obra de ampliação, de 1750, que corresponderá a alguns pormenores do retábulo
e ilhargas da capela, caracterizadas por uma decoração mais pormenorizada e fluida
(Figuras n.os 16 e 17), igualmente da autoria de Teixeira Guimarães;
3) A obra de entalhamento do tecto e parede circundante ao arco de acesso, mais
movimentada, diversificada e menos volumosa, que poderá não ter sido obra da
mesma mão criadora (Figura n.º 18).
A capela foi "restaurada em 1903/ sendo/ juiz/ Pe. A. Dias Borges/ secretario/ Pe.
Correia Vermelho/ thesoureiro/ M. R. Valente Lopes/ deputados/ A. d’Oliveira Pinto/ J.
Pacheco Plonia", como comprova a inscrição inserida no pé direito do portal.

2.3. Retábulo do Santíssimo Sacramento


"A talha foi arrematada por Manuel Ferreira Maia, do Porto, por 224$000 reis.
O portão, obra do serralheiro Joaquim Manuel de Freitas, da Feira, custou 96$000 reis76."

72 Residente na Rua de Santana (Porto). Ver BRANDÃO, 1986: 579.


73 BRANDÃO, 1986: 580.
74 S.P.Q.R. (Senatus Populus que Romanus – O Senado e o Povo Romano).
75 Retábulo da Casa do Despacho da Venerável Ordem Terceira de S. Francisco do Porto (1748/49); do retábulo-mor

da Igreja de S. Nicolau - Porto - (1754/62); dos retábulos de Santo Eloi e de Nossa Senhora da Conceição da Igreja
de S. Nicolau (1762/63).
76 BASTOS, 2001: 37.
536 Sofia Nunes Vechina

O risco do retábulo é da autoria de “Manoel Antonio da Fonsêca” que o "desenhôu


na Feira77", correspondendo este desenho quase na totalidade ao resultado final,
exceptuando, a sanefa e o altar. O primeiro caso, ganhou movimento, através de um
corpo central mais avançado, que é decorativamente inspirado no desenho, embora
mais elaborado, enquanto o segundo, teve uma pequena substituição: onde figuravam
duas cabeças de anjos, duas espigas de trigo e uma parra, foi colocada a inscrição IHS.
Deve destacar-se a importância que este artista de Santa Maria da Feira teria, ao
nível do desenho de retábulos neoclássicos, para lhe ter sido solicitado este risco pela
Igreja Matriz de Ovar. Poderá encontrar-se mais alguma produção sua nesta região,
porque este não seria o único retábulo que riscou, o que se poderá verificar até pela
qualidade do desenho (Figura n.º 11).

Conclusão
Ovar, contou ao longo de séculos com a colaboração de alguns artistas regionais,
sobretudo, no que respeita a pequenos trabalhos, mas no que concerne a projectos
de arquitectura, obras de talha, pintura e douramento, preferiu os grandes nomes da
época e em especial da cidade do Porto.
Como já verificámos anteriormente, José Teixeira Guimarães confiou uma pro-
curação em 1735 a um pintor da cidade do Porto, António José Pereira; e outra em
1750 a Manuel Tomás Baptista de Ovar. Que quererá isto dizer? Será que o pintor
da cidade do Porto, tinham alguma ligação profissional à cidade de Ovar em 1735?
Teria efectivamente, Teixeira Guimarães executado e retábulo, em 1750, ou riscou
a dita obra e delegou-a a outrem?
De qualquer modo, é evidente a importância da cidade de Ovar, e em especial
da Igreja Matriz, não só pelos artistas que chama, mas também pela grandiosidade
da obra deixada, o que terá a ver com a característica da qual se faz referência em
1824: "Povo Christão, e tão destincto e conhecido em todo o Reino q caracteriza a nobre
villa de Ovar78".
Começando pela imagem do Senhor da Agonia, proveniente de Roma; passando
pela obra de transição entre o maneirismo e o estilo nacional dos retábulos colaterais;
e, posteriormente, pelo revestimento total da capela do pretório a talha dourada; e,
ainda, pela monumental máquina rococó do retábulo-mor; e, finalmente, pelo retábulo
neoclássico da capela do Santíssimo Sacramento, desenhado por um artista de Santa
Maria da Feira, parece ser óbvia a passagem harmoniosa dos séculos e dos diversos gostos,
num só edifício, onde os grandes nomes da criação artística se juntaram para nos dar uma
extraordinária percepção da evolução humana, destacando-se o centro artístico do Porto.
Resta, à nossa geração e aos vindouros identificar, estudar, proteger, e dar a
conhecer obras, artistas, encomendadores e beneméritos, para que compreendendo
o passado se viva melhor o futuro.
77 A.M.O. – Risco do retábulo do Santíssimo Sacramento, assinado por Manoel Antonio da Fonseca, s/ data.
78 A.E.P. – Livro que hade servir na vizita encarregada ao Illº Rº Abadde de Stª Maria de Vallega, 1824, fl. 34v.
A Igreja Matriz de ovar nos séculos XVII-XIX: obras e artistas 537

Figura n.º 1 – Fotografia do interior da Igreja Matriz de ovar (vista da nave para a capela-mor),
anterior a 1914
Fonte: A.M.O.

Figura n.º 2 – Fotografia do interior da Igreja Matriz de ovar (vista da capela-mor para o coro-alto),
anterior a 1914
Fonte: A.M.O.
538 Sofia Nunes Vechina

Figura n.º 3
Igreja Matriz de ovar
Fonte: cHAGAS, cOLER, 1903: 137.

Figura n.º 5 – Elevação da fachada para a nova


Igreja Matriz de São Christovão d’ovar
Fonte: A.M.O., s/d, não assinado, pasta 1547.

Figura n.º 4 – Elevação do Projecto para a Igreja


Matriz da Villa de ovar
Fonte: A.M.O., 1804, Luís Inácio de Barros Lima, Porto, pasta
1547.
A Igreja Matriz de ovar nos séculos XVII-XIX: obras e artistas 539

Figura n.º 6 – Desenho das paredes laterais e Figura n.º 7 – Desenhos de promenor das torres
interiores Fonte: A.M.O., s/d, não assinado, pasta 1547.
Fonte: A.M.O., s/d, Luís Inácio de Barros Lima, pasta 1547.

Figura n.º 8 – Planta


Fonte: A.M.O., s/d, não assinado,
pasta 1547, verso.
540 Sofia Nunes Vechina

Figura n.º 10 – Risco para as ilhargas da Capela


Figura n.º 9 – Capela do Santíssimo Sacramento do Santíssimo Sacramento
Fonte: A.M.O., s/d, pasta 1547.

Figura n.º 12 – Planta


Fonte: A.M.O., s/d, não assinado, pasta 1547.

Figura n.º 11 – Risco do retábulo da Capela


Santíssimo Sacramento
Fonte: A.M.O., s/d, Manuel António da Fonseca, Feira, pasta 1547.
A Igreja Matriz de ovar nos séculos XVII-XIX: obras e artistas 541

Figura n.º 13
Retábulo do Senhor do Bonfim
Fonte: casa-Museu de Arte Sacra de Ovar, s/d.

Figura n.º 14
Retábulo da Capela de São
Miguel, antes da última
intervenção
Fonte: A.M.O.
542 Sofia Nunes Vechina

Figura n.º 15 – oração de Cristo no Horto e Prisão

Figura n.º 16 – Capela do Pretório


A Igreja Matriz de ovar nos séculos XVII-XIX: obras e artistas 543

Figura n.º 17 – Última Ceia e Lava pés

Figura n.º 18 – Tecto da Capela do Pretório


544 Sofia Nunes Vechina

Fontes e bibliografia

Fontes
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governador do Bispado sobre huns requirimentos dos freguezes de Ovar, 26 de Fevereiro de 1674.
A.E.P. – Livro que hade servir na vizita encarregada ao Illº Rº Abadde de Stª Maria de Vallega, 1824.
A.M.O., Arquivo Municipal de Ovar – Apontamentos para a Igreija da Villa de Ovar, pasta 1547.
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s/ data, pasta 1547.
A.M.O. – Apontamentos para a nova Capella do Santiſsimo Sacramento da Igreja da Villa de Ovar,
pasta 1547.
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A.M.O. – Elevação da Fachada Para a nova Igreja Matriz de São Christovão d’Ovar, n/ assinado, s/
data, pasta 1547.
A.M.O. – Elevação da Fachada Para a nova Igreja Matriz de São Christovão d’Ovar, n/ assinado, s/
data, pasta 1547.
A.M.O. – Elevação do Projecto para a Igreja Matriz da Villa de Ovar, Luís Inácio de Barros Lima,
Porto, 1804, pasta 1547.
A.M.O. – Fotografia do interior da Igreja Matriz de Ovar (vista da capela-mor para o coro-alto),
anterior a 1914.
A.M.O. – Lutação, pasta 1547.
A.M.O. – Planta, n/ assinado, s/ data, pasta 1547.
A.M.O., – Recebi do Illº Snr. Dor Corregedor desta Comarca, 28 de Maio de 1833, pasta 1547.
A.M.O. – Risco do retábulo da Capela Santíssimo Sacramento, Manuel António da Fonseca, Feira,
s/ data, pasta 1547.
A.M.O., – Risco para as ilhargas da Capela do Santíssimo Sacramento, s/ data, pasta 1547.
A.M.O. – Fotografia do interior da Igreja Matriz de Ovar (vista da nave para a capela-mor), anterior
a 1914.
CMAS, Casa-Museu de Arte Sacra da ordem Franciscana Secular de Ovar, s/d – Fotografia do
Retábulo do Senhor do Bonfim.
A Igreja Matriz de Ovar nos séculos XVII-XIX: obras e artistas 545

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Henrique José da Silva, um pintor português
na Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro
Sonia Gomes Pereira

Entre as inúmeras iniciativas de D. João, durante sua permanência no Brasil,


encontra-se a criação da Escola Real de Ciência, Artes e Ofícios em 1816. Para o
seu funcionamento, foram contratados vários artistas e artífices franceses, que aqui
chegaram nesse mesmo ano, mas a escola, já com o nome de Academia Imperial de
Belas Artes, só foi aberta efetivamente dez anos depois, em 1826.
Vários historiadores1 já se debruçaram há algumas décadas sobre a discussão da
criação dessa Escola, da contratação dos franceses e da evidente mudança de rumo,
ao transformá-la numa Academia exclusivamente dedicada às Belas Artes. Muito já se
debateu sobre a dificuldade dos mestres franceses – todos emigrados para o Brasil logo
após a queda de Napoleão -, obrigados a conviver com uma corte anti-bonapartista
e com a rivalidade de artistas portugueses então vivendo no Rio de Janeiro.
Essas discussões voltaram à tona em 2008, por ocasião dos eventos comemorativos
dos 200 anos da chegada da corte portuguesa ao Brasil.
Emparelhada entre os períodos colonial e moderno, a arte do século XIX passou
grande tempo esquecida ou rejeitada pela crítica de arte, com exceção daqueles
artistas e movimentos que eram tidos como anunciadores da vinda do modernismo.
No entanto, a historiografia da arte desse período tem merecido nas últimas
décadas uma significativa revisão historiográfica, tanto no exterior quanto no Brasil,
especialmente nos meios acadêmicos. Vários aspectos essenciais têm sido postos
em discussão, tais como: os conceitos de academicismo; a relação entre a tradição
e a modernidade; as formas específicas da sociedade brasileira entender e absorver
os movimentos europeus; a questão do ensino da arte e a criação de um campo e
um mercado artísticos; a urgência do progresso e a necessidade do nacionalismo; a
relação entre a produção dos artistas desse período e os que se seguiram no primeiro
e segundo modernismos.
Dessa forma, temos hoje uma compreensão muito mais ampla e complexa da
produção artística do século XIX, livre dos estereótipos tão freqüentes tais como:

1 TAUNAY, 1983; RIOS FILHO, 1942; PEDROSA, 1955; GALVÃO, 1954.


548 Sonia Gomes Pereira

o enaltecimento dos mestres franceses da chamada “Missão Artística de 1816” e o


confronto com artistas portugueses e brasileiros contemporâneos, invariavelmente
tidos como atrasados e retrógrados; ou então, o seu contrário, a rejeição à “Missão”
e à Academia pelo fato de elas terem vindo macular a “pureza” da arte colonial; ou
ainda, a idéia generalizada de que os artistas europeus mudaram a sua compreensão
da arte em confronto com o cenário tropical do país.
O próprio fato da mobilização da sociedade em torno da comemoração dos 200
anos da chegada de D. João ao Brasil pode também ser creditado a esse crescente
interesse pelo século XIX. É muito interessante observar que, por ocasião dos 100
anos dessa data, a grande Exposição de 1908, realizada na Praia Vermelha no Rio
de Janeiro, comemorava-se, não a chegada de D. João, mas a abertura dos portos às
nações amigas. Essa sutil nuança na escolha do fato a ser celebrado já nos indica uma
mudança significativa nos critérios de julgamento do passado e de entendimento do
presente no país. Assim, ao contrário de 1908, a comemoração de 2008 foi pautada
por exposições em museus e centros culturais, acompanhadas de publicações, em
que o aspecto artístico teve uma importância prioritária.
Esta comunicação parte, assim, de duas premissas: a revisão historiográfica que
vem ocorrendo nas últimas décadas sobre o século XIX e a crítica de arte que vem
sendo exercida nesses eventos comemorativos recentes.
Tomarei aqui o caso das duas grandes exposições organizadas no Rio de Janeiro no
ano de 2008 e voltadas especificamente para as questões artísticas com suas respectivas
publicações: O Teatro de Debret e Nicolas-Antoine Taunay: uma leitura dos trópicos.
O Teatro de Debret foi organizada pelos Museus Castro Maya e realizada em
março e abril de 2008 na Casa França-Brasil. Nicolas-Antoine Taunay: uma leitura
dos trópicos foi apresentada no Museu Nacional de Belas Artes de maio a julho, e
depois na Pinacoteca de São Paulo, de julho a setembro de 2008. Acompanhando
as exposições, foram lançadas inúmeras publicações2.
Logicamente a idéia de reunir grande parte da obra desses artistas e exibi-la é,
em si, uma oportunidade extraordinária, tanto para o historiador da arte quanto
para o público em geral: permite a junção de obras separadas em coleções distintas,
tanto no Brasil – é o caso da exposição Debret –, quanto no exterior – como na
exposição Taunay.
No caso de Debret, foram reunidas mais de 500 obras de sua autoria: 346 aquarelas
dos Museus Castro Maya e 151 pranchas litográficas gravadas em Paris nos anos
1834-39 da Coleção Mindlin, além de seis quadros a óleo de acervos do Rio de
Janeiro, Petrópolis e São Paulo.
Quanto a Taunay, foram mostradas obras produzidas não só durante a sua
permanência no Brasil (1916-1821), mas também na Europa, antes e depois de sua
viagem, provenientes de inúmeras instituições francesas.

2 CATÁLOGO, 2008; BANDEIRA, LAGO, 2007; SCHWARCZ, 2008; SCHWARCZ, 2008; LAGO, 2008.
Henrique José da Silva, um pintor português na Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro 549

O que me preocupa, no entanto, é a insistência em artistas e questões, certamente


muito importantes, mas já bastante estudados, em detrimento de uma compreensão
mais abrangente do campo artístico – tema pouco explorado e ainda problemático.
Quase toda a historiografia tradicional brasileira aborda esse período da mesma
maneira: a exaltação dos artistas franceses, em contraste com a depreciação dos
artistas portugueses presentes no Rio de Janeiro na época de D.João.
É interessante observar que mesmo um historiador da arte português – José
Augusto França – mantém essa visão enaltecedora dos franceses e depreciativa dos
portugueses:
As negociações para a ida dos franceses para o Rio...acham-se envolvidas em algum mistério:
houve sem dúvida prudência diplomática... da parte do Governo. Era preciso que os franceses
fossem sem grande compromisso oficial; seriam protegidos mas nada lhes ficava a ser devido…
Eles vieram com dinheiro emprestado semioficialmente, e foram bem recebidos, com excelentes
pensões, por D. João VI...“Deveriam muito contribuir para o melhoramento da indústria nacional”,
comentou então o conde da Barca; porque, como sublinhara o seu porta-voz Cândido Lusitano
no decurso das diligências, “as artes liberais e de luxo deviam ceder o passo às úteis e necessárias
à economia interior do país”. Nesse sentido de resto pretendeu agir Lebreton, projectando logo em
Junho de 16 uma dupla Escola de Artes... Em 12 de Agosto seguinte o decreto real deu-lhe razão.
Aconteceu porém o contrário, por culpa de tudo e de todos: do conde da Barca, que morreu
logo a seguir, em 17, esgotado de trabalho, do próprio gênio dos artistas arribados, das intrigas
que os rodearam e da inércia geral. E em vez de um dinâmico conservatório de artes e ofícios,
uma academia tradicional, assim intitulada em 20, foi-se organizando, dentro das normas
francesas, responsável finalmente por toda uma evolução da pintura brasileira, bem separada
da portuguesa pela independência do Império, logo seis anos depois. Esse academismo brasileiro,
não podemos esquecer que, vindo de fontes mais nobres, mais profissionais e mais eruditas que
o português, lhe foi superior…3.
A importância e a qualidade de alguns artistas franceses – como Grandjean de
Montigny, Nicolas- Antoine Taunay e Jean-Baptiste Debret – são inquestionáveis,
mas a insistência numa leitura em que os franceses se destacam pela excelência em
contraste com a indigência artística dos portugueses da época precisa ser melhor
estudada. Para evidenciar como é problemática essa questão, vou-me referir aqui a
José da Costa e Silva e Henrique José da Silva.
Em outras ocasiões4, dediquei-me ao estudo da arquitetura produzida no Rio de
Janeiro nas primeiras décadas do século XIX, tendo, como premissa, a idéia de reunir,
sem distinções, arquitetos e engenheiros, franceses, portugueses e brasileiros. A minha
intenção era, justamente, fugir das dicotomias usuais da historiografia tradicional.
Nesse conjunto, destacou-se a figura do arquiteto português José da Costa e Silva.
Nascido em 1747, estudou arquitetura com Filipe Rodrigues e desenho de figura com
Carlo Maria Ponzoni – italiano emigrado para Lisboa na época de D. João V e mestre
3 FRANÇA, 1990: 203. A 1.ª edição desse livro do Prof. França data de 1967 – dois anos depois da publicação da
sua obra mais conhecida: Lisboa Pombalina e o Iluminismo.
4 PEREIRA, 1997: 79-88; PEREIRA, 1998: 109-120; PEREIRA, 2000: 35-48 ; PEREIRA, 2002: 209-230.
550 Sonia Gomes Pereira

de desenho no Colégio dos Nobres. De 1769 a 1778, estudou na Itália. Na Academia


Clementina, teve aulas com Carlo Bianchoni e Petrônio Fancelli e, em 1775, recebeu
o título de Accademico d´onore, diploma conservado na Biblioteca Nacional do Rio
de Janeiro. De 1775 a 1778, fez o grand tour por várias cidades italianas. Em 1781,
já em Lisboa, enviou à Academia de S. Lucas em Roma alguns desenhos e recebeu
a patente de acadêmico de mérito.
De 1778 a 1812, Costa e Silva atuou como arquiteto em Lisboa, desempenhando
um papel importante na implantação do neoclassicismo de raiz italiana em Portugal.
Entre as suas inúmeras obras, destacam-se o novo Erário de 1789, o Teatro S. Carlos
de 1792 e o Palácio da Ajuda, começado em 1796 por Manuel Caetano e reiniciado
em 1801 com José da Costa e Silva e o italiano Fabri.
Veio para o Brasil em 1812, com 65 anos, trazendo uma valiosa coleção de desenhos
e estampas, que vendeu em 1818 à Biblioteca Real, da qual foi feita um excelente
catálogo em 19955. Foi contratado como arquiteto real das obras reais, mas a sua
atuação aqui no Rio de Janeiro ainda é pouco conhecida, vindo a falecer em 1819.
Aqui, nesta comunicação, pretendo discutir um outro exemplo do pouco conheci-
mento que ainda temos dos artistas atuantes na época de D. João no Brasil: o pintor
Henrique José da Silva.
Uma verdadeira unanimidade em toda a historiografia da arte brasileira, Henrique
José da Silva é sempre mostrado como artista medíocre e péssimo caráter – mesqui-
nho, invejoso, em grande parte responsável pelas intrigas contra os franceses e pelas
dificuldades iniciais na implantação da Academia, pois, com a morte do Lebreton
em 1919, tornou-se seu diretor até 1834 – data de sua própria morte.
Vamos analisar, em primeiro lugar, a relação de Henrique José da Silva com a
Academia. Nascido em Lisboa no ano de 1772, foi para o Brasil em 1819. A convite
do Barão de São Lourenço, Ministro das Finanças do Reino, foi nomeado para o
cargo de professor de Desenho da Escola Real de Belas Artes, e também para diretor,
para substituir Lebreton, que havia falecido no ano anterior. Permaneceu nesses
cargos até 1834, ano em que faleceu e foi substituído na direção da Academia por
Félix-Émile Taunay.
Quanto a seu caráter e atuação como diretor da Academia, não sabemos ainda
muito mais do que aquela historiografia veiculou. Mas, pelo menos em relação a um
caso específico, podemos verificar que a crítica que lhe foi dirigida é infundada. Trata-
se da acusação de que alterou o currículo original criado por Lebreton, ampliando
a importância da sua disciplina de Desenho.
Na nossa historiografia, é sempre mencionado que o projeto original de Joachim
Lebreton6 para a Escola Real de Ciência, Artes e Ofícios tinha concepção estética
5 AMBROSINI, Anna Maria; MARQUES, Luiz; MORSELLI, Raffaella. Dissegni italiani della Biblioteca Nazionale
di Rio de Janeiro – La collezione Costa e Silva. Milão: Banca Popolare dell´Adriatico / Servizio Editoriale Amilcare
Pizzi, 1995.
6 Joachim Lebreton (1760-1819). Historiador e teórico da arte. Durante o período revolucionário, foi chefe da seção

de Museus, Conservatórios e Bibliotecas do Ministério do Interior. Em 1795, tomou posse na Classe de Ciências
Morais e Políticas do Instituto de França. Em 1803, tornou-se secretário perpétuo da Classe de Belas Artes, cargo que
ocupou até a sua demissão em 1815. Lebreton acompanhou, portanto, de perto todo o processo por que passaram as
Henrique José da Silva, um pintor português na Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro 551

“mais moderna”, em comparação com a opção por uma solução “mais antiquada”
adotada posteriormente.
O projeto de criar uma escola de ciências, artes e ofícios estava certamente
imbricado na vontade de alavancar uma instituição que pudesse se transformar em
apoio ao desenvolvimento do país, a fim de acompanhar o progresso industrial e
tecnológico da época. Mas esta idéia era realmente de difícil concretude, tanto na
época, quanto mais tarde. Basta verificar que o Liceu de Artes e Ofícios do Rio de
Janeiro, que começará as suas atividades em 1858, terá também, como a Academia
de 1826, imensas dificuldades para manter-se em funcionamento.
Mas, se a idéia de pensar artes e ofícios juntos, naquela época, nos parece muito
“moderna”, é importante que se deixe claro que o pensamento estético de Lebreton
era absolutamente de acordo com a tradição clássica e com o sistema acadêmico, e
está em sintonia completa com a ideologia e a estrutura implantadas posteriormente
na Academia.
O Decreto de 12 de Agosto de 1816, promulgado pelo Conde da Barca, que criou a
Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios foi muito lacônico, limitando-se às disposições
contratuais, à relação dos professores e funcionários e a seus respectivos vencimentos.
Para se conhecer as concepções que nortearam o programa daquela Escola é preciso
recorrer, sobretudo, ao projeto manuscrito do próprio Joaquim Lebreton, datada de
12 de junho de 1816, portanto, dois meses antes do Decreto oficial e cerca de três
meses após a chegada dos artistas franceses ao Brasil – documento encontrado pelo
Prof. Mário Barata nos arquivos do Palácio Itamarati7.
Do programa elaborado por Lebreton, fica logo evidente a importância funda-
mental que ele dedica ao desenho. Não prevê uma cadeira específica de desenho,
mas descreve detalhadamente todo o processo do seu ensino – a partir de cópias dos
desenhos dos professores, das estampas, das moldagens e finalmente do modelo vivo
–, ficando implícito que seria desenvolvido por todos os professores em suas disciplinas
específicas, como formação básica de cada curso. No projeto, está evidente que não
só reconhecia a importância fundamental do desenho, como considerava-o como o
eixo aglutinador, tanto das artes como dos ofícios:
Professores de uma dupla escola das artes do desenho bastarão para todo o ensino dessas
artes, e mesmo de suas aplicações aos ofícios. Mas é essencial que se determine bem o emprego
de cada um, e não se deixe ao patronato, desprovido de luzes, nem às pretensões pessoais dos
artistas, a possibilidade de intervir ou enfraquecer a ordem do ensino pela invasão de qualquer
Professor medíocre ou não clássico, pois a escola teria, desde o início, germes de fraqueza e de
torpor que não tardariam a prejudicá-la8.

artes durante este período – a extinção das antigas Academias em 1793; a criação do Instituto de França em 1795
(dividido em 3 Classes: Ciências Físicas e Matemáticas; Ciências Morais e Políticas; e Literatura e Belas Artes); a
reforma do Instituto de França por Napoleção em 1803 (com a criação de uma 4.ª Classe: Belas Artes) – até a sua
vinda para o Brasil em 1816.
7 BARATA, 1959: 283- 307.
8 BARATA, 1959: 287.
552 Sonia Gomes Pereira

A passagem acima explicita a adesão ao classicismo de forma inequívoca. Sabemos


que desde o final do século XVIII a retomada do classicismo adquirira uma conotação
política e didática, de regeneração da arte, de retomada dos princípios autênticos da
antiguidade clássica: era, portanto, uma posição inovadora.
Assim, é através da hierarquia clássica que Lebreton vê o lugar das artes e dos
ofícios:
É de se desejar que...a profissão de artista fique, em geral numa região média da sociedade:
que o pintor e o escultor sintam prazer com a leitura dos poetas e dos historiadores e se inspirem
neles; que o arquiteto seja capaz de eurdição e de penetrar, até certo grau, nas ciências mate-
máticas. Como não há ainda necessidade de grande número de artistas, talvez seja menos difícil
tornarmo-nos exigentes com relação à qualidade dos alunos e obrigá-los a adquirir instrução.
Isto seria, pelo menos, bastante desejável no próprio início. Talvez criando simultaneamente uma
Escola de Belas Artes... e uma escola de desenho para as artes e ofícios, se possa preserva a
primeira pela segunda, classificando e mantendo nesta, que não poderia chegar a ser demasiado
freqüentada, todos que não conviessem à outra9.
Não houve, portanto, mudança ideológica entre o projeto de Lebreton e aquele
que efetivamente foi instituído em 1826: ambos se apoiavam na adesão ao classicismo,
na estrutura acadêmica de ensino e na posição prioritária do desenho na formação
do artista.
Passemos, agora, ao segundo ponto: a questão da obra artística de Henrique
José da Silva. Sabemos que foi discípulo de Joaquim Manuel da Rocha e de Pedro
Alexandrino.
Em relação ao ensino artístico em Portugal, sabemos que houve iniciativas
particulares e oficiosas antes, mas elas foram suplantadas por uma iniciativa oficial,
partida da Real Mesa Censória, e, em fins de 1781, estabeleceu-se na capital a Aula
Régia de Desenho de Figura e de Arquitetura. Os professores de desenho escolhidos
foram Joaquim Manuel da Rocha e seu substituto, Joaquim Carneiro da Silva, ambos
nascidos em 1727, artistas de herança pombalina, o segundo considerado superior
ao primeiro, tido como mero imitador de Vieira Portuense, mas que deu nome à
“aula do Rocha”10.
Quanto a Pedro Alexandrino de Carvalho, nascido em 1730 e morto em 1810,
foi um fecundo pintor de igrejas, a quem a Reconstrução ofereceu vasto terreno
de trabalho. Hábil pintor de tetos, painéis, carruagens de gala e cenários de teatro.
Trabalhou também no Palácio de Queluz11.
Quanto à obra de Henrique José da Silva, conhecemos muito pouco, como, por
exemplo, duas pinturas – o Retrato do senador João Antônio Rodrigues de Carvalho (Museu
Nacional de Belas Artes) e o Retrato de D. Pedro I (Museu Imperial de Petrópolis).

9 BARATA, 1959: 293.


10 FRANÇA, 1990: 67.
11 FRANÇA, 1990: 33.
Henrique José da Silva, um pintor português na Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro 553

Figura n.º 1
Retrato do Senador
João Antônio Rodrigues de Carvalho
Henrique José da Silva. Óleo sobre tela
(Museu Nacional de Belas Artes).

No entanto, no Museu D. João VI da Escola de Belas Artes da universidade


Federal do Rio de Janeiro, há uma coleção de desenhos de grande qualidade, assinados
por ele. São ao todo 125 desenhos: 82 desenhos anatômicos (partes do corpo), 24
academias (corpo inteiro), nove cópias de artistas europeus (figuras tiradas de obras
de artistas, sobretudo italianos – Michelangelo, Andrea Del Sarto entre outros – e
um francês – Poussin) e dez desenhos de ornatos. A grande maioria é executada em
crayon ou carvão e uma minoria em grafite ou sangüínea sobre papel.
Certamente, esses desenhos eram usados como material didático nas aulas de
Desenho. Sabemos que a iniciação do aluno se dava pela cópia, começando por
desenhos do professor, em seguida estampas, moldagens de gesso até chegar ao
modelo vivo. os desenhos de Henrique José da Silva cobrem quase todos os passos
dessa trajetória pedagógica.

Figura n.º 2
Estudo de mão
Henrique José da Silva. Desenho, carvão / papel, s/d, 23,2 x 19,0 cm. Acervo
Museu D. João VI / EBA / UFRJ reg. 476.
554 Sonia Gomes Pereira

Além disso, esses desenhos revelam um grande conhecimento de anatomia,


como era exigido nas academias de arte. Sendo o corpo o principal instrumento
para a construção do caráter narrativo tanto da pintura quanto da escultura, o
seu conhecimento funcional e a destreza em representá-lo em diferentes gestos,
expressões e atitudes eram requisitos indispensáveis no universo dessa arte ainda
ligada à retórica clássica12.
Finalmente, esses desenhos demonstram o interesse em conhecer e copiar as obras
dos mestres da grande tradição ocidental – não apenas apreendendo a totalidade da
cena, mas também recortando figuras em atitudes corporais diversas – verdadeiras
tipologias que poderiam ser retomadas pelos alunos e artistas em suas obras futuras.
Assim, os desenhos assinados por Henrique José da Silva do acervo do Museu D.
João VI nos mostram que, apesar das críticas sofridas, ele foi um grande desenhista.
Podemos especular se os desenhos são mesmo de sua autoria ou se apenas lhe
pertenciam e constituíam material didático para suas aulas de desenho. Mas, nesse
caso, de quem seriam esses desenhos?
Essas dúvidas e lacunas evidenciam o quanto o período joanino ainda nos é obscuro
e o quanto ainda precisamos avançar para ter uma compreensão mais abrangente do
campo artístico brasileiro na época.
Nesta perspectiva, é uma pena que as comemorações dos 200 anos da vinda de
D. João ao Brasil não tenham sido aproveitadas para um estudo aprofundado deste
período ainda obscuro nas artes brasileiras.
12
A Figura n.º 3 mostra o esqueleto humano, ilustrado com letras e números que se referem a legendas explicativas.
Transcrição da lateral direita: Estudo da Osteologia. Os Ossos que estão representados no presente desenho do Esqueleto
do Corpo humano, são exactamente designados pelos nomes próprios de cada um deles, e da maneira que os facultativos
da Arte Anatômica os nomeião e conhecem, cujo conhecimento se torna necessário na Arte do Desenho e vão marcados
com as letras do Abecedário e do Algarismo da maneira seguinte: A- Coronal. B- Pomato C- Mandíbula Superior D-
Mandíbula inferior E.F.G.H.- Estas quatro letras mostrão a estensão dos ossos que chamão Vértebras,as quaes de E até a
cabeça chamão-se Vértebras do Pescoço, o seu numero he sete, de Eaté F, nomeião-se Dorso e he onde pegão as Costelas, o
seu numero he doze, de F até G são as dos Rins, o seu numero he cinco, e de G até H, são de Sacro e de Cóccix, que está
na extremidade do Sacro, o seu numero he dez, seis para o Sacro e quatro para o Cóccix.I-Clavicola K- Externum, cuja
extremidade he aguda e acaba de feichar o peito L- Cartilagem Xifoide, vulgarmente chama-se Espinhela M- Humeros, he
o que forma o Braço N Omoplata, ou Espadoa O- Cubitus, ou do Cotovelo P- Radio. O Cubitus ou Radio formão a parte
que se chama Ante braço Q- Carpo, he composto de oito ossos, os quais se unem ao Ante braço e a mão, chama-se Pulso
R- Metacarpo, he composto de cinco ossos, os quais estão unidos ao Corpo e a os dedos S- Os cinco dedos compostos cada
um de trêz ossos, denominados phalanges, distinguidas 1.ª, 2.ª, 3.ª. À excepção do pollix que só tem duas. T.V.X.- Estas
trêz letras mostrão os ossos que chamão inominados, dos quais a parte marcada T chama-se Ilion, a da marca V chama-se
Ischion e a marca X chama-se Púbis. Y- Fêmur, he o mais longo e grosso de todos os ossos Z- Cabeça do Fêmur, a qual
encacha no ossa Ischion, também se chama Osso da Coixa.
Transcrição da lateral esquerda: 1 - O grande Trocanter, este nome da-se a uma eminência que está no principio do osso da
Coixa, pouco inferior à cabeça, e da parte externa. 2 - O pequeno Trocanter, he uma eminência que está no osso da Coixa;
porém mais inferior que a do grade Trocanter, e da arte interna. 3 - A Rodella, este osso está colocado na parte anterior do
joelho, entre o Fêmur e a Tíbia e he propriamente o que forma o joelho. 4 - A tíbia, vulgarmente chama-se Caxilha ou o osso
da Perna 5 - Peroneo, está situado da parte externa da Perna e ligado ao lado da Tíbia, a sua extremidade exterior forma o
Maléolo externo, vulgarmente chamado tornozello, e desce abaixo do Maléolo interno, que he formado pela extremidade da
Tíbia. 6 - Estes Ossos juntos formão uma parte do Pé, chama-se Tarso, he formado de sete ossos, dos quais um chama-se
Astragalo, que se articula com os dois ossos
da Perna, e chama-se Calcâneo; outro terceiro citado adiante do Astrágalo chamado Icafoide ou Navicalar, e quatro mais
dispostos em fileira, que recebem os ossos do Metatarso. 7 - Estes ossos formão outra parte do Pé chama-se Metatarso,
composto de cinco ossos que estão situados entre o Tarso e os Artelhos ou dedos. 8 - Os cinco Artelhos, ou dedos, compostos
cada um de trêz ossos, excepto o Polex, que só tem dois, e se chamão phalange como os das mãos.
Henrique José da Silva, um pintor português na Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro 555

Figura n.º 3 – Estudo de osteologia Figura n.º 4 – Estudos (cópias de Perugino,


Henrique José da Silva. Desenho, crayon / papel, s/d, 60,0 x 42,0 cm. Fra Bartolommeo, Pinturicchio)
Acervo Museu D. João VI / EBA / UFRJ reg. 46. Henrique José da Silva. Desenho, grafite / papel, s/d, 39,3 x 27,3 cm.
Acervo Museu D. João VI / EBA / UFRJ reg. 412.

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556 Sonia Gomes Pereira

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A obra do arquitecto italiano Francesco da Cremona
(c.1480-c.1550) em Portugal:
novas pistas de investigação
Susana Matos Abreu

Pouco se sabe em concreto sobre o italiano Francesco da Cremona apesar da fama


que vem ganhando nos últimos anos, a de introdutor da arquitectura do Renasci-
mento no Norte de Portugal. O artista estabeleceu-se aqui em data desconhecida,
talvez à roda de 1525. Crê-se que tenha nisto seguido o bispo de Viseu D. Miguel
da Silva (1486-1556) quando, de Roma, este foi mandado regressar à pátria pelo
rei D. João III, trazendo-o para seu serviço privativo. Aliás, o destino de Francesco
da Cremona liga-se estreitamente a esta figura extraordinária. D. Miguel da Silva
passou a Portugal como Escrivão da Puridade e bispo de Viseu, cumulado ainda de
cargos e bens eclesiásticos que aplicou em obras arquitectónicas de grande fôlego;
e nos seus vastos domínios territoriais, este poderoso senhor, que fora embaixador
português junto da Curia romana desde 1515, membro da fervilhante roda social
dos Medici e familiar dos papas Leão X e Clemente VII, não abdicou dos mesmos
confortos que conhecera na Roma papal, nem da expressiva grandeza das suas obras
arquitectónicas. No remanso da província nortenha onde se recolheu, em Santo Tirso
e Viseu, ou na Foz do Douro junto à cidade do Porto, D. Miguel protagonizou vastos
empreendimentos de carácter representativo, cuja expressão formal, exibindo a sua
condição de grande prelado à italiana, delegou no mestre cremonês.
A redescoberta crítica da obra de Francesco da Cremona liga-se, assim, à figura
de D. Miguel e, especialmente, à reabilitação da memória histórica deste seu mecenas
como homem de presença marcante nos meandros sociais e culturais romanos – o que
tem vindo a ser feito a partir da completa biografia que lhe traçou Sylvie Deswarte1.
1 DESWARTE, 1989a. D. Miguel da Silva era filho de D. Diogo da Silva e Menezes, aio de D. Manuel I, 1.º Conde de
Portalegre, e de D. Maria de Aiala. A damnatio memoria que pesou largos séculos sobre D. Miguel da Silva deveu-se
a vários factores, que só nas últimas décadas começam a ser esclarecidos. Estes relacionam-se sobretudo com a
fuga de segredos de Estado para a Curia papal, perturbando os interesses de Portugal em matérias relacionadas
com a administração dos bens da Igreja, a distribuição de seus cargos e dignidades, ou ainda o estabelecimento da
Inquisição e questões relativas aos cristãos-novos. A elevação de D. Miguel da Silva ao cardinalato por Clemente
VII em detrimento do infante D. Henrique (para o qual D. João III ambicionava o barrete cardinalício) será a gota
de água num crescendo de desconfiança entre a família real e D. Miguel, que culminará na fuga precipitada deste
558 Susana Matos Abreu

Estudos recentes sobre a dupla faceta de D. Miguel, a de diplomata e humanista,


vêm permitindo conhecer melhor a sua acção mecenática desenvolvida em Portugal
entre 1525 e 1541, à sombra da qual Francesco da Cremona realizou as melhores
obras na qualidade de valido privado. Mostram ainda que, da obscuridade no seu país
natal, Francesco passará subitamente ao cume da profissão como arquitecto na terra
de acolhimento, e isto por respaldo deste grande senhor. Pois certo é – e embora o
elenco da actividade artística de Francesco não se esgote ao serviço de D. Miguel da
Silva2 –, terá sido na resposta às encomendas do bispado de Viseu que a sua obra se
revelará mais rica e densa de significados plurais no complexo quadro de referências
do Renascimento italiano3, o qual D. Miguel, enquanto estudioso de antiguidades
e patrono das letras e das artes, muito contribuiu para trazer para o país natal. Sob
este desafio máximo, Francesco da Cremona levantará uma série de obras que se
caracterizarão pela aplicação de uma proposta estilística então quase desconhecida
em Portugal: a renascentista.
Independentemente dos últimos trabalhos publicados, ora sobre D. Miguel, ora já
sobre a sua acção materializada pelo braço executor de Francesco, a verdade é que as

para Roma no Verão de 1541 e subsequente expatriação e confisco dos bens. Não retornando mais à pátria por
proibição régia, será nessa cidade, que o acolhera triunfalmente na juventude quando participara na embaixada de
Tristão da Cunha (1514), que D. Miguel encontrará a morte em 1550.
2 Além das obras, conhecidas por via documental, realizadas para o bispo de Viseu no Porto – Igreja de S. João
Baptista (BASTO, 1964: 327; MOREIRA, 1983: 324), Farol de S. Miguel-o-Anjo (BASTO, 1964: 327), baliza
de navegação no leito do Douro (por inscrição latina no farol anexo) – e em Viseu – claustro da Sé (JOAQUIM,
1955: 293, 299; MOREIRA, 2000: 87; RUÃO, 2000: 15) –, dois documentos mencionam o artista ao serviço da
Câmara do Porto em 1539 – como “Mestre Francisco Italiano Carmones d’obras de pedraria que tem carrego das obras
do Bispo de Viseu” (Viterbo, 1988: vol. I, 531-532) e “mestre Francisco, pedreiro italiano” (Basto, 1964: 139-140) –,
tendo sido aí chamado a dar um parecer sobre a torre dos paços concelhios.
Porquanto ao serviço do bispo de D. Miguel da Silva, crê-se também, embora sem fundo documental, que tenha
renovado os paços abaciais (MOREIRA, 1994) e realizado (até 1536) um farol dedicado a Nossa Senhora da Luz
hoje destruído (MOREIRA, 1995: 336; MOREIRA, 2000: 85), ambos na Foz do Douro; que em Viseu tenha sido
autor do projecto de uma loggia renascentista para a Sé, já prevista em 1534 (MOREIRA, 2000: 87; RODRIGUES,
2001), da regularização do adro medieval da Sé de Viseu feita em 1534 (MOREIRA, 2000: 87-88), da reforma do
Paço do Fontelo para quinta de recreio dos bispos de Viseu (MOREIRA: 2000) e do risco da Casa do Miradouro,
realizada c. 1528-1536 para o deão da Sé D. Fernão Ortiz de Vilhegas (ALVES: 1984).
Como D. Miguel foi abade comendatário do mosteiro beneditino de Santo Tirso e comendatário e prior perpétuo
do mosteiro agostinho de Landim, suspeita-se ainda que Francesco da Cremona tenha interferido em certas obras
de vulto feitas no Mosteiro de Santo Tirso c. 1529 (sobre tais obras leia-se MOREIRA, 1995: 338; MOREIRA,
2000: 85; BARROCA, 2001: 25-27), na reconstrução da igreja paroquial tirsense de S. Bartolomeu da Lagoncinha
(BARROCA, 2001: 27-28), bem como noutras obras no Mosteiro de Landim (MOREIRA, 1988: 12), também de
vulto. De nenhuma destas obras subsistem vestígios dignos de apreço.
Sabendo-se que o artista permanecerá no país após o regresso de D. Miguel da Silva a Roma, atribui-se-lhe ainda a
loggia renascentista da Igreja de S. Tomé de Negrelos em Santo Tirso, realizada para o cardeal Alessandro Farnese
c. 1545 (MOREIRA: 1995: 339). Por estrita filiação formal, atribuem-se-lhe ainda as autorias dos riscos do Paço
dos Cunhas em Santar (SERRÃO, 2001: 58), dos Paços do Concelho de Vila do Conde erguidos entre 1538 e
1544 (MOREIRA, 1982: 28; MOREIRA, 1995: 339) e do Paço de Arnelas em Vila Nova de Gaia (AFONSO,
2005: 135). Ainda de mencionar, é a suspeita da sua colaboração na obra camarária do cais do porto da Ribeira,
na cidade do Porto (BARROS, 2003: 16-18).
3 Múltiplos estudos vêm mostrando como D. Miguel da Silva usou do engenho de Francesco da Cremona para
moldar os seus empreendimentos à imagem das obras que conhecera em Itália, isto segundo um ambicioso programa
humanístico de representação social (MOREIRA, 1988; MOREIRA, 2000). Tal programa será objecto de nossa
atenção na Dissertação de Doutoramento que em breve apresentaremos à Faculdade de Letras da Universidade
Porto.
A obra do arquitecto italiano Francesco da Cremona (c.1480-c.1550) em Portugal:… 559

investigações sobre o artista e a sua obra parecem estacionadas num impasse. A primeira
causa disto (e se calhar única) assenta na imensa lacuna documental que pesa sobre a
sua trajectória de vida (primeiro em Itália, depois em Portugal), seja sobre algumas obras
em que se crê que tenha trabalhado, mas do que não se registam absolutas certezas4. Mas
notemos que, embora paire a incógnita sobre Francesco da Cremona – pelo patronímico
deduz-se que seria lombardo, mas nada se sabe sobre quando nasceu ou onde fez a
aprendizagem do ofício –, muito se conhece já, por outra parte, sobre D. Miguel da Silva.
É, aliás, fruto deste conhecimento sobre o mecenas, que o corpo principal da obra de
Francesco da Cremona vem sendo aceitavelmente firmado nas últimas investigações,
sobretudo por estudos de Rafael Moreira. Além disso, podemos dizer que as relações
profissionais estabelecida entre D. Miguel e Francesco – binómio inseparável naquele
corpus artístico – podem ser dadas por conhecidas com razoável certeza; a qualidade das
arquitecturas levantadas espelham a partilha de ideias sustentadas visivelmente num ideal
estético comum, em que o desejo de D. Miguel em imprimir certo cunho humanístico
e antiquizante às formas se combina com certas noções práticas da arte arquitectural,
aplicadas com inventividade pelo Cremona. Ora isto aponta para uma cumplicidade
semelhante à que se estabelecia então entre o comitente erudito e o seu arquitecto nas
práticas da Roma contemporânea, este como aquele ali derivando, especulativamente,
da definição teórica, vitruviana-albertiana, de architectus5. Podemos então dizer que o
que falta em conhecimento sobre Francesco da Cremona é largamente compensado pelo
quanto se sabe do patrono e da melhor parte da obra do artista; e podendo as relações
entre ambos ser aqui dadas por conhecidas com razoável aferição, estaremos em presença
de uma equação de três termos dos quais apenas é desconhecido o primeiro.
Assim, e sem tencionarmos fazer aqui uma síntese dos conhecimentos sobre o
tema, propomo-nos pegar isoladamente em questões que a atribuição autoral levanta
acerca das obras de Francesco da Cremona, procurando, segundo ângulos menos
explorados deste maneio temático (que não deixará de ser também metodológico),
achar alguma novidade que contribua para resolver tal equação em ordem ao melhor
conhecimento do artista.

4 Vd. nt. 2. As principais referências documentais sobre a actividade de Francesco da Cremona em Portugal continuam
a ser as de Artur de Magalhães Basto e Sousa Viterbo já referidas. Para novos contributos sobre a sua biografia em
Itália, ver MOREIRA, 2000.
5 Este assunto será igualmente objecto da nossa Dissertação de Doutoramento a apresentar em breve à Faculdade

de Letras da Universidade do Porto, ainda que de forma marginal. Podemos entretanto adiantar que esta relação
entre D. Miguel e o seu arquitecto privativo, pese embora ainda mal esclarecida quer pela documentação, quer
pelos vários estudos que a vêm acompanhando, nos parece ser uma falsa incógnita: o contributo de D. Miguel da
Silva para as melhores obras de Francesco da Cremona em Portugal, nomeadamente as do complexo da Foz do
Douro ou as que rodeiam a catedral de Viseu, foi já identificado por Rafael Moreira, o qual demonstrou em vários
estudos que àquele mecenas se deve seguramente o alinhavo do programa ideológico da obra ao amparo de um
ambicioso plano de representação social (MOREIRA, 1988; MOREIRA, 1995; MOREIRA, 2000). Tal aspecto
vem propriadamente trazendo à consideração a enorme cumplicidade entre D. Miguel da Silva e o seu arquitecto
privativo, e isto num quadro socio-profissional talvez único no reino à data dos primeiros trabalhos do artista
documentados em Portugal (antes de 1528), mas que tinha abundantes precedentes em Itália. É à luz desse ideário,
de matriz teórica mas que em Itália se aplicava correntemente às práticas, que a obra de Francesco nos parece
reger-se por um método projectual decalcado dos exemplos romanos, enquanto D. Miguel da Silva, na posição de
comitente, encarna bem os amplos interesses mecenáticos nas franjas do Humanismo.
560 Susana Matos Abreu

1. A aprendizagem romana
Partindo dos estudos de Rafael Moreira que atribuem a Francesco da Cremona o
invulgar complexo portuário, urbanístico e arquitectónico, que D. Miguel da Silva
levantou a partir de 1526 na Foz do Douro, junto à cidade do Porto, podemos afir-
mar que Francesco representa bem o artista formado no Vitruvianismo dos círculos
intelectuais romanos em que se movia o seu patrono. Deixaremos aqui de parte o
programa humanístico gizado para este conjunto ribeirinho, certos porém que novas
considerações se poderiam tecer sobre essa premissa de D. Miguel da Silva, em parte
já desvelada na identificação simbólica e formal do projecto com o famoso complexo
portuário de Óstia realizado na Antiguidade6. Em abono da paridade de Francesco
com os artistas dos círculos romanos, note-se então apenas que a esta obra da Foz
do Douro não é estranha a citação de modelos colhidos do repertório arqueológico,
sobre o qual então se debruçavam artistas como Raffaello Sanzio ou Antonio da
Sangallo (que também estudaram Ostia antica), e que a sua cultura visual revela
contacto directo com o meio artístico da Cúria.
A capela inserida no farol de S. Miguel-o-Anjo (1528), por exemplo, uma cons-
trução miniatural erguida para sinalização nocturna da perigosa barra do Douro, tem
um carácter marcadamente antiquizante na sua mole pétrea sensivelmente cúbica,
em cuja planta se escavam nichos nas faces internas compondo um tipo inspirado
nos ninfeus romanos (Figura n.º 1). Alguns metros a ocidente, e ultrapassando já a
escala diminuta da capela-farol, também a igreja de S. João Baptista (c.1527-c.1546)7
se matricula em tipologias de matriz antiquária pela sua nave ampla e capela-mor
centralizada, ainda que de espacialidade resolutamente moderna (Figuras n.os 2 e 3).
Como especial herança arqueológica, destaca-se aqui o exonártex de acesso tripartido8,
a lembrar o do baptistério de S. João de Latrão conforme aparece desenhado em alguns
cadernos quinhentistas de antichità. Nele se escavavam, ábsides semicirculares em
oposição, nos lados do seu interior, parecendo nisto copiar a planta de umas ruínas
existentes junto à igreja de Santa Croce em Gerusalemme, também estas na rota de
estudo das antiguidades romanas9.

6 MOREIRA, 1988: 12-13; DESWARTE, 1989: 64.


7 MOREIRA, 1983: 324. A igreja esconde-se no interior da fortaleza do mesmo nome, que a envolveu a partir de
1570. Pese embora o desaparecimento de parte das paredes laterais e a dissolução de alguns outros elementos
arquitectónicos, a sua estrutura mantém-se perfeitamente legível. As abóbadas da nave foram apeadas em 1647 para
ampliação da fortaleza, sendo hoje esse espaço um pátio a céu aberto. Para um resumo das alterações entretanto
sofridas pela igreja, ver BARROCA, 2001: 80-82.
8 OSÓRIO, 1994: 76. Este nártex havia sido em tempos amparado por duas grossas torres. Foram ainda encontrados

vestígios de pequenas abóbadas de tijolo de função mal definida, que poderiam dizer respeito a um coro-alto
levantado sobre a entrada da igreja e ao qual se teria acesso a partir de torre sul. Notemos que, com isto, tal solução
parece muito semelhante à que veio a ser adoptada poucos anos depois na Igreja de Nossa Senhora da Graça, em
Évora, parecendo também tratar-se de um protótipo experimental das Sés e Misericórdias portuguesas que foram
construídas já após a primeira metade do séc. XVI. Rafael Moreira acrescenta a este elenco as igrejas dos Jesuítas
(OSÓRIO, 1994: 61), embora estudos de fundo sobre a arquitectura das igrejas dos Jesuítas, de Fausto Sanches
Martins, provem que dificilmente terá sido este o seu protótipo.
9 Como detectamos no tratado Architettura Ingegneria e Arte Militare, Francesco di Giogio Martini, f. 76v., tav. 140.
A obra do arquitecto italiano Francesco da Cremona (c.1480-c.1550) em Portugal:… 561

Os aspectos tectónicos destas construções denotam igual observação cuidadosa


dos vestígios arqueológicos, o que se reflecte na aplicação do tijolo na elaboração de
fundações e estruturas portantes contínuas. Do ponto de vista formal, estar opção
técnica traduz-se por massas escavadas segundo as necessidades do modelado da obra10,
o que é especialmente notório em S. Miguel-o-Anjo. A grande cúpula de seis panos
e lanternim que cobre a capela-mor de S. João Baptista, ainda que moderna, acentua
a ideia dessa aprendizagem acerca do uso do tijolo feita junto da ruína, ao mesmo
tempo que testemunha a importação de técnicas desconhecidas aos mestres locais.11.
Por outro lado, vem sendo notado que os tipos antiquizantes da capela-farol e
da igreja foram retomados em moldes puramente renascentistas, mostrando um
enraizamento nos anseios estéticos do seu próprio tempo. O embasamento e a cornija
que cintam o exterior do farol de S. Miguel-o-Anjo declaram-se como interpretações
contemporâneas de fórmulas antiquárias (Figura n.º 4), do mesmo modo que o alto
embasamento que ancora a igreja de S. João Baptista ao solo (Figura n.º 8), constituído
por molduras clássicas sobrepostas, ou o entablamento dórico onde alternam métopas
e tríglifos junto à cornija do templo (Figura n.os 10 e 11), evidenciam a interpretação
crítica dos modelos clássicos.
Ora, podemos dizer que todos estes aspectos (tipológicos, construtivos e formais)
concordam grosso modo com a marca conceptual que caracteriza as obras romanas
dos primeiros anos do século XVI, tendo sido definida em continuidade com os
objectivos do século anterior: a inspiração colhe-se dos edifícios antigos, sem todavia
deixar de se exercer sobre eles um juízo crítico tutelado pelo corpo teórico da disci-
plina então em formação sobre os alicerces do tratado De Architectura (séc. I a.C.)
do latino Vitrúvio. No resultado final ficaria patente certa liberdade experimental
sobre tipologias, técnicas construtivas, ou outros. Sendo isto em parte revelado à
transparência na obra de Francesco da Cremona, nota-se, porém, que a mesma
enferma por vezes de algumas deficiências na concepção geral do projecto clássico,
e até mesmo de limitações na apreensão das regras articulativas das ordens. Estas
características, já notadas na igreja da Foz do Douro e no claustro da Sé de Viseu
em particular12, sugerem-nos uma formação incompleta, talvez colhida mais de visu
do que por meio de uma relação do tipo mestre-discípulo. Por outro lado, alguns
atavismos que lhe apercebemos ao nível da linguagem plástica levam-nos a propôr
a ideia de uma formação recebida junto de mestres de carácter regional, ou, quando
muito, activos na geração anterior. Serão estas pequenas imperfeições, que todavia
não tiram encanto e apelo às obras do cremonês, que, se olhadas mais de perto, talvez

10 Note-se que o resultado formal e espacial desta técnica é totalmente diferente do que decorre da aplicação do
sistema construtivo tradicional português – uma malha de pontos de apoio unidos por paredes-cortina –, o qual
descende directamente da tradição tecno-construtiva do Gótico tardio e já nada tem a ver com as técnicas romanas,
configurando-se esta como exacerbamento do valor estrutural do edifício a ponto de diluir o morfológico.
11 A documentação da fábrica dá-a por “obra italliana e feyta à guisa de Itália”, e, por isso mesmo, terminada pelo “Mestre

Francisco Italiano” (ou “Cremonês”) após o retorno de D. Miguel da Silva a Roma (mas ainda antes de 1546), por
pedido expresso das autoridades locais feito a D. João III. MOREIRA, 1983: 324.
12 GUILLAUME, 1989: 111; RUÃO, 2000, 15
562 Susana Matos Abreu

permitam lançar aqui novas pistas sobre as rotas de formação e pesquisa do artista
antes de se estabelecer em Portugal.
A aceitarmos como referindo-se-lhe o único documento da actividade italiana
que, em rigor, se conhece a um certo “maestro Francesco Cremonese”, o mesmo terá
trabalhado como “muratore” nas obras de S. Pedro de Roma, de onde supostamente
foi resgatado por D. Miguel da Silva. Francesco deverá tratar-se, assim, do homó-
nimo assinante do termo de compromisso, datado de 4 de Agosto de 1514, que lhe
consigna parte da obra de alicerce do nicho ocidental do transepto. É na qualidade
de “muratore” que o artista se compromete a realizar a obra, deixando-a pronta até
ao nível do terreno13.
A contextualização destes dados vem permitindo a Rafael Moreira considerar
que Francesco da Cremona estaria integrado na empreitada dirigida por Giuliano
Leno, esta sob alçada dos peritos arquitectos Fra Giovanni Giocondo da Verona
(1433-1515), Raffaello Sanzio (1483-1520) e Giuliano da Sangallo (c. 1443-1516).
E ao notar que tal contrato foi firmado apenas quatro dias após Raffaello ter tomado
as rédeas do estaleiro papal, o mesmo autor supõe “uma relação anterior de plena
confiança”14 entre Raffaello (na qualidade de superintendente máximo da obra) e
o cremonês. Perante isto, aventa ainda a hipótese de que a formação de Francesco
se viesse fazendo junto daquele arquitecto, talvez em outras obras realizadas no
perímetro urbano de Roma, ou que essa mesma confiança derivasse de relações
laborais previamente estabelecidas entre mestre Francesco e o anterior responsável
pela fábrica de S. Pedro, o – também lombardo – arquitecto Donato Bramante
(1444-1514). Todas estas hipóteses continuam em aberto à espera que confirmação
documental sendo ainda inconclusivas, tais como outras igualmente plausíveis15. Certo
é, se as obras levantadas por Francesco da Cremona em Portugal não desmentem
uma aprendizagem romana como já atrás se expôs, fazem-no com particularidades
que, em hipótese, poderão ser eloquentes acerca da formação e actividade do artista
nas fábricas romanas, questionando tais ligações.

13 Segundo documento referido por Rafael Moreira (MOREIRA, 2000: 85) a partir de elenco documental publicado
por Christoph Luitpold Frömmel (FROMMEL, 1984: 264), estes alicerces faziam parte da “Cappella del Re di
Francia”, isto é, a primeira do lado do evangelho. Para Jean Guillaume, Francesco da Cremona tratar-se-á de um
homónimo sem ligações a S. Pedro (GUILLAUME, 1989: 112).
14 MOREIRA, 2000: 85, 91.
15 Afigura-se ainda possível a recomendação do artista a D. Miguel pelo próprio Raffaello Sanzio ou pelo banqueiro

Agostino Chigi, sendo que Francesco bem poderia ter estado a serviço do último como colaborador de Raffaello nas
obras da sua capela privada em Santa Maria del Populo, ou até nas esplêndidas stalle da villa do banqueiro, conhecida
como La Farnesina, sita na imediata vizinhança da residência de D. Miguel nas margens do Tibre. Sylvie Deswarte
recorda ainda que este palácio que D. Miguel da Silva ocupou no fim da sua embaixada em Roma, chamado de S.
Jacopo in Settignano, havia tido a sua fachada renovada pouco tempo antes pelo mesmo Giuliano Leno à sombra
do qual Francesco da Cremona aparece no rol de S. Pedro (DESWÄRTE, 1989b: 60). Estabelece-se, nisto, outra
possível ligação directa entre o artista e aquele arquitecto e gestor das fábricas papais.
A obra do arquitecto italiano Francesco da Cremona (c.1480-c.1550) em Portugal:… 563

2. De muratore a arquitecto: a igreja de S. João da Foz do Douro


Retomando a apreciação da torre-farol de S. Miguel-o-Anjo, note-se como, no
desenho do seu prisma granítico, estão ausentes quaisquer elementos tectónicos a
reforçar visualmente os cunhais, ou mesmo a funcionar como balizas compositivas
do seu único vão hoje visível, aberto no alçado nascente (Figura n.º 4). A tímida
cornija que sobrepuja a janela voga livremente junto à moldura do vão sem a tocar,
por idênticas deficiências do projecto clássico. E apesar do recurso insistente à
molduragem antiquizante, ainda não se recorreu aqui às ordens arquitectónicas.
Perante o exemplo, a verdade não pode ser escamoteada. A confirmar-se como
relativo a Francesco da Cremona, o referido documento administrativo de S. Pedro,
embora prestigiando o artista pela sua colaboração em fábrica tão importante, é claro
quanto ao tipo de desempenho que dele se esperaria na obra: Francesco é indicado
como “muratore”, o que não deixa dúvidas acerca da sua participação subalterna
ligada à obra mais grosseira dos alicerces16. De facto, será como “pedreiro”, e sempre
nesta qualidade, que o “Mestre Francisco Italiano” comparecerá décadas depois na
documentação portuguesa da Igreja de S. João Baptista, ideia esta que convirá reter
mesmo que a nomenclatura profissional não tenha sido tão precisa em Portugal
quanto o foi na Itália do século XVI17.
A observação da igreja de S. João Baptista da Foz do Douro não deixa margem para
uma apreciação muito diferente da que já se fez acerca do pequeno farol, pese embora
se trate de obra mais evoluída por aplicação das ordens. No exterior, a sobreposição de
molduras logra aqui um efeito de gosto mais rico (Figura n.º 8 e 11) e Francesco cria
certa monumentalidade pela espessa cornija da base da cúpula, ornada com métopas
vazias e triglifos com gotas pendentes. O detalhe de desenho, porém, parece-nos trair
uma reflexão tardia sobre o tema e suscitada provavelmente já em Portugal, feita
através dos livros, talvez do “Vitrúvio” de Cesare Cesariano18, porquanto se mostre
algo distante das soluções romanas, estas mais ligeiras na aparência. No exterior da
capela-mor e no remanescente das torres da frontaria, o alto envasamento cria um
efeito de podium a partir do qual se lançam pilastras capitelizadas na verticalidade
dos cunhais, denotando nisto uma exploração do sentido tectónico das ordens
que, em Roma, estimulava os supra-mencionados artistas activos em S. Pedro. Já o
interior da nave (Figura n.º 9 e 10) roça a indigência relativamente ao faustoso gosto
all’antica que o exterior do templo procura captar por via dos elementos decorativos
mencionados. Os seus panos lisos, de aparelho irregular que uma fina camada de

16 O facto não poderá ser contornado, mesmo que se possa reconhecer a estes elementos uma função estrutural
importante, como se deduz da sua “funzione intermedia fra i pilastri e i contro-pilastri della cupola, e l’attacco di una
sacrestia verso ovest” (FRÖMMEL, 1984: 264).
17 Vd. nt. 2. Podemos salientar que as vantagens de D. Miguel da Silva em trazer um mestre-pedreiro para Portugal

seriam inúmeras, dada a escassez de mestres locais que soubessem trabalhar segundo o novo estilo. Assim se entende
a solução de compromisso encontrada neste artista, capaz de realizar riscos “à romana”, mas também sabedor de
como os materializar em estaleiro – o que não seria certamente o caso de boa parte dos arquitectos-artistas activos
em Roma na sua geração.
18 MOREIRA, 1995: 337.
564 Susana Matos Abreu

reboco uniformizaria, apenas são animados pelos vãos de acesso ao recinto e pelas
janelas altas que iluminam o templo. Apesar de ser aqui perceptível um cuidado no
arrumo dos vãos da nave, este a denunciar já o recurso ao desenho no momento do
projecto, note-se que a modulação rítmica dos alçados internos, ainda imperfeita,
não tem verdadeira contrapartida tectónica como seria de esperar tendo em mente
a lição clássica dos arquitectos papais. As janelas, de derrame profundo orlado de
singelo filete granítico, parecem suspender-se na tímida cornija que cinta as paredes
laterais da nave sem qualquer referente tectónico a ditar a sua posição. Do mesmo
modo, pequenas saliências tipo mísula (idênticas às que se vêm na galeria do claustro
de Viseu), elementos planos e de efeito meramente decorativo que assinalam, sem
pretensões de rigor, a distância média entre os vãos, parecem suspensas da mesma
cornija. Tratam-se de elementos característicos das obras do primeiro Renascimento,
a partir dos quais usualmente se lançavam abóbadas de tijolo (como sucede na galeria
viseense), marcando o sítio dos panos murais onde, nas obras mais evolucionadas de
Roma, se destacavam pilastras19. Aliás, é à imagem das obras romanas, e acompa-
nhando o que se fez nos paramentos exteriores do edifício, que a capela-mor se ritma
por estes elementos capitelizados (Figura n.º 11). Por conseguinte, a sua ausência na
nave carece de justificação20.
A presença de elementos próprios do vocabulário das ordens, embora uma novidade
face ao que acontece na torre-farol, conflitua aqui com a sua elementar sintaxe e não
atende, na sua aplicação, a certos critérios compositivos mais elementares. A linha
da cornija da nave, por exemplo, embora percorra adequadamente o recinto a toda
a roda, não se compadece, na parede que divide a nave da capela-mor, nem com a
altura destinada para o seu arco, nem com a linha da imposta deste, acabando por
se interromper a cerca de um terço da altura total do seu meio-ponto (Figura n.º 11
e 12). Com igual falta de critério, a mesma cornija passa bem acima das edícolas que
ladeiam o acesso à capela-mor, e estas, embora acompanhem a altura da imposta do
seu arco, vogam livremente nos panos de parede laterais, o que acentua a estranheza
anti-canónica do conjunto.
Com isso, o registo de Francesco da Cremona como “muratore” nas fábricas papais
suscita alguma reflexão sobre a sua qualidade de arquitecto, tendo em conta que
estas imprecisões revelam uma obra realizada à conta de métodos projectuais ainda
não totalmente afinados segundo os mais recentes desenvolvimentos. Vejamo-lo
mais de perto.

19 A supressão destas pilastras na nave leva-nos a propor que talvez se previsse a ornamentação das paredes internas
do templo com pintura a fresco, eventualmente representando arquitectura fingida – e sabemos que D. Miguel da
Silva tinha adornado assim o seu palácio de romano de S. Jacopo in Settignano. Tal opção estaria de acordo com
estas ausências de pontuação rítmica do aparato murário interno, com o tipo de paramento escolhido, e ainda com
a arrumação dos vãos chegada à linha da cornija, libertando-se deste modo os panos murários para receber vastas
cenas pictóricas.
20 Os exemplos romanos aplicam estas pilastras de ângulo às arestas internas de quadras em forma octogonal (como

na capela-mor da igreja de S. Pietro in Montorio), ou de planta circular (como na Capela Chigi), neste último caso
servindo para explorar a sua quadratura, sublinhando-a estruturalmente.
A obra do arquitecto italiano Francesco da Cremona (c.1480-c.1550) em Portugal:… 565

A planta da Igreja, por exemplo, revela alguma debilidade no manejo da geometria


instrumental ao projecto, consequência de um ainda fraco entendimento modular do
espaço (Figura n.º 2). O diâmetro da cúpula (8 metros) e a sua altura total (16 metros
medidos do chão ao zénite) indicam a utilização de um módulo espacial cúbico, que
foi duplicado na volumetria da capela-mor. Mais detidamente, observa-se que toda a
planta da capela obedece a uma malha quadrilátera que trabalha o módulo de 6,5 x
6,5 braças como medida-padrão, tendo sido este quadrado, também em duplicado, a
definir o comprimento total da nave. Do mesmo modo, é este módulo que define e os
limites do presbitério. A planta hexagonal da capela-mor resulta da sua quadratura.
Esta armadura geométrica, porém, afasta-se das pesquisas contemporâneas sobre o
emprego de rácios matemáticos na planificação das principais quadras de um projecto,
o que já tinha sido formulado com clareza, havia já mais de meio século, no De re
aedificatoria (1485) de Leon Battista Alberti. A verdade é que a implantação do
edifício no terreno, feita com base nesta malha, marca-se por algumas deficiências:
o limite frontal do exonártex da fachada é impreciso relativamente a esta geometria,
e a parede norte da nave apresenta um desvio sensível em relação ao seu eixo reitor
longitudinal, o que na prática se traduziu pelo enviesamento da capela-mor. E mesmo
que se possa considerar que estes aspectos tenham eventualmente resultado de
condicionantes exercidas por edifícios pré-existentes, não deixam todavia de assinalar
uma ainda frágil mestria da geometria enquanto disciplina ancilar da Arquitectura.
Tal grelha serve aqui, antes de mais, para estabelecer o perímetro externo do edifício,
e não as proporções das áreas internas como o reclamaria qualquer divisão harmó-
nica das mesmas segundo as evoluídas teorias albertianas. Isto confirma-se na sua
frouxa capacidade reitora enquanto efectiva armadura ao desenho mais preciso da
planta: no desenho da capela-mor, por exemplo, é o diâmetro bruto do recinto que
resulta de um círculo inscrito na área útil do módulo quadrado (Figura n.º 3), isto
quando tal módulo deveria antes definir a sua área útil, segundo a lógica moderna
de harmonização dos espaços. E se o facto poderá traduzir receio de construir uma
cúpula com maiores dimensões do que a que foi feita, tal resulta, enfim, de uma
geometria pouco clara e que atende mal ao conceito de espaço modular. Por último,
repare-se que a esta malha não correspondem sub-módulos a ditar a localização dos
vãos nas paredes laterais do templo, nem ainda a distribuir as mísulas da cornija,
ainda que estes elementos mantenham sensivelmente igual distância e simetria entre
si, como já foi observado. O facto traduz incoerência na definição geométrica do
todo, e deverá ser resultado da coexistência, na mesma obra, de vários sistemas de
modulação do espaço, estes nem sempre compatíveis entre si, e menos ainda com
a sintaxe das ordens.
Tudo isto revela um entendimento ainda tardo-medieval (ou, quando muito,
proto-renascentista) da vantagem das armaduras geométricas para definir a obra
no terreno e a sua repartição, longe ainda do valor modernamente concedido à
geometria euclidiana em fase projectual. Na linha desta apreciação, note-se que a
escolha das proporções da nave em duplo quadrado se estreita à tradição cristã de
reproduzir as do Templo de Salomão nos recintos sacros, também estas de preferência
566 Susana Matos Abreu

tardo-medieval ou proto-renascentista, como atesta a Capela Sistina no Vaticano,


terminada nestes moldes em 1484 por Baccio Pontelli21. Na Foz do Douro, o facto
denuncia uma escolha certamente mais motivada por considerações simbólicas, e por
referência a uma geometria sagrada, do que derivando do moderno entendimento
modular do espaço que a gramática vitruviana das ordens pressupunha e implicava.
De facto, nenhuma relação se estabelece entre as proporções ditadas por esta malha
e a membratura clássica patente na obra. Em geral, todos estes aspectos juntos
parecem indicar a mão de mestre familiarizado com as feições das ordens, sobretudo
com os seus aspectos decorativos, certamente ainda dotado com alguma habilidade
para o desenho de traças, mas ainda pouco treinado no manejo das regras clássicas
de composição.

3. Atavismos e regionalismos. A formação lombarda


Pese embora estas indecisões projectuais, reconhece-se na obra de Francesco
da Cremona um entendimento da arquitectura renascentista que ultrapassa já a
combinação de elementos clássicos soltos apostos sobre membratura tardo-gótica, tal
como ainda em 1526 propunha o tratado Medidas del Romano, dirigido aos “oficiales”
por Diego de Sagredo. Neste aspecto, o belíssimo piso-térreo que Francesco realizou
para o claustro da Sé de Viseu entre 1528 e 1534, em linguagem clássica de rara
pureza em Portugal, sobeja para demonstrar um conhecimento que se avantajava
ao do autor espanhol. O desenho das arcadas, moduladas segundo o ideal clássico,
transcende a primeira versão do tratado sagrediano e impõe-se, sem dúvida alguma,
como o melhor claustro renascentista executado no país.
Noutros aspectos, porém, a arte de Francesco fica-se a meio caminho entre aquele
entendimento meramente decorativo das ordens, que as destitui de implicações
métricas na geometria articulada do edifício, e uma evidente atenção às tipologias
da Antiguidade e suas técnicas construtivas (já aqui apreciado em 1.), como se podia
achar nas pesquisas italianas mais avançadas uma vez superada a compreensão das
ordens. Este meio-caminho, patente em vários aspectos da sua obra, merece ser
observado mais de perto, já que dele emanam sinais identificáveis como atavismos,
ou até mesmo regionalismos, o que poderá ajudar a contextualizar melhor a sua
aprendizagem em Itália.
À roda de 1528, acompanhando o avançar de outras obras na Foz do Douro,
Francesco da Cremona renovou também a brévia existente junto à igreja de S. João
Baptista, e fê-lo em coerência com a linguagem renascentista escolhida para todo o
complexo. As suas novas portas-janelas (Figura n.º 5 e 6), de incontestável requinte
palaciano e cortesão, recordam, nos seus detalhes, outras semelhantes desenhadas por

21 A cobertura da igreja de S. João Baptista, se feita em madeira – o que seria “perfeitamente concebível” (GUILLAUME,
1989: 113) – aproximá-la-ia da igreja de Santa Áurea realizada por Baccio Pontelli em Óstia, ainda que achados
arqueológicos levem Rafael Moreira a propor, para a igreja portuguesa, uma abóbada em tijolo do tipo “volta à
unghete” (MOREIRA, 1994: 69).
A obra do arquitecto italiano Francesco da Cremona (c.1480-c.1550) em Portugal:… 567

Antonio da Sangallo Il Vecchio (1455-1534) para o Palácio Contucci (in.1519), em


Montepulciano (Figura n.º 7). Não deixam ainda de apontar para outro precedente,
este romano, nos vãos que Antonio da Sangallo Il Giovanne (1484-1546) – sobrinho
do anterior – desenhou para o palácio do cardeal Farnese iniciado em 1515.
Esta semelhança merece reparos. A estrutura arquitravada que sobrepuja o
lintel do vão no paço da Foz, distinta por alto friso sustentado por pilastras jónicas
capitelizadas em substituição das jambas, iguala, em refinamento estético, a vivência
cosmopolita que se respira nos precedentes referidos, e que certamente D. Miguel da
Silva procurou copiar aqui. Neste particular, os vãos de Francesco representam bem
o trabalho de um mestre formado na linha das obras papais renascentistas, que terá
ocasião de reafirmar mais tarde, ainda em Portugal mas já após a fuga de D. Miguel
para Roma, nas obras que supostamente levantou até aos anos 50, década em que
se lhe perde o rasto documental. Lembramo-nos, por exemplo, da Loggia anexa à
igreja de S. Tomé de Negrelos (c. 1545), construída em Santo Tirso para o cardeal
Alessandro Farnese (que era afilhado de baptismo de D. Miguel e foi herdeiro dos
seus títulos e bens eclesiásticos em Portugal), ou do risco da nova Câmara de Vila
do Conde (1538-1544), cujas “singulares janelas arquitravadas de tipo sangallesco”,
semelhantes às dos paços abaciais da Foz do Douro, vêm permitindo atribuir o seu
risco ao cremonês por estrita filiação formal (Moreira, 1995: 338-339).
Mas este refinamento, bem romano na origem programática, e que aqui ficou
patente no gesto de voltar as sacadas à paisagem do estuário, não se acompanha
por uma erudição extensiva aos paramentos adjacentes do edifício. Pelo contrário,
nenhum entendimento modular do todo arquitectónico se expressa no volume desta
construção, pelo que nenhuma coerência compositiva, sujeita à mesma criteriosa
geometria que preside aos seus vãos, lhe é lícito reconhecer. Os vãos dispõem-se nos
panos murários sem sombra de referência a qualquer divisão estratificada do alçado
ou sua marcação vertical, o que poderia ter sido feito por recurso a embasamentos,
pilastras ou cunhais rusticados, ainda a frisos moldurados, como era então moda
generalizada em Roma. A torre-farol ali bem próxima e a igreja junto ao paço, vimos
já, enfermam de condição semelhante.
O caso repete-se em Viseu, por exemplo, adquirindo contornos mais específicos
no painel central da fachada da Casa do Miradouro (Figura n.º 13), levantado
pela mesma data. Aqui, a articulação do portal jónico arquitravado com a janela
bífora que lhe assenta no estrato superior, ainda que de belo efeito, não se faz com
a coerência compositiva interna a que obrigava o projecto clássico, nem respeita,
sequer, as elementares regras da sobreposição de ordens. Em vez disso, comporta-se
como a justaposição de dois módulos diferentes, cada qual com a sua integridade
própria bem definida à luz do paradigma, mas numa junção inorgânica segundo as
mesmas leis. A composição é aqui feita por adição simples de dois módulos deco-
rativos vogando em planos secos, traindo um classicismo ainda incipiente – ou até,
talvez melhor dizendo, certo goticismo atávico de que o desenho dos restantes vãos
da fachada poderá ser resíduo, estes bem medievalizantes no alfiz que os remata.
568 Susana Matos Abreu

Retenha-se, entretanto, que se poderia dizer que esta tendência para a disposição
dos vãos nos panos murários, feita sem referente geométrico que ultrapasse uma
elementar noção de symmetria e ritmo, é paralela à relativa indiferença que Antonio
da Sangallo Il Vecchio votava à animação murária com base no entendimento tec-
tónico das ordens – e valha aqui o exemplo único do já referido Palácio Contucci.
Franceso da Cremona parece inclusive seguir a proposta sangallesca na recusa do
tema da sobreposição das ordens – e pensamos agora no painel central da Casa do
Miradouro –, assunto este que, se prima pela indiferença geral que lhe vota a obra
de Sangallo, muito pelo contrário preocupava outros arquitectos atentos ao estudo
de ruínas como as do Coliseu ou do Teatro de Marcelo. Naturalmente, esta aproxi-
mação entre algumas marcas do desenho da obra de Francesco e as de Antonio da
Sangallo – cujo irmão Giuliano, recordamos, seria coadjuvante de Raffaello na obra
de S. Pedro pela altura em que o “maestro Francesco Cremonese” aí trabalhou – lança
pistas para sondar a actividade romana do artista italiano antes de vir para Portugal.
Por outro lado, e de igual modo, as mesmas características permitem ainda
equacionar uma precoce formação lombarda de Francesco, feita talvez na órbita dos
artistas regionais das imediações da sua Cremona natal. É que os mesmos particu-
lares das fachadas da brévia da Foz do Douro e da Casa do Miradouro denotam,
fundamentalmente, um método compositivo que é bem regional e lombardo: isto
é, que se revela por vezes mais atento à decoração arquitectónica empreendida em
módulos complexos de grande poder exornativo, do que à sua verdadeira integração
num sistema coerente subordinado ao uso escorreito das ordens.
Como teste à viabilidade desta hipótese, e certamente com interesse para futuras
averiguações sobre o artista, ocorre-nos lembrar que a invasão da Lombardia pelas
tropas francesas de Carlos VIII, ocorrida em 1494, provocara o êxodo massivo dos
artistas e artífices lombardos para Roma, à cata de melhor sorte do que a que aquela
região devastada pela guerra lhes podia oferecer22. Ora, tendo em mente que a
crítica aponta a década de 80 de Quatrocentos para o nascimento de Francesco da
Cremona23, podemos considerar a hipótese de o mesmo episódio militar ter sido o
responsável pela deslocação do jovem Francesco. A verificar-se isto, tal permitiria
certificar-nos que Francesco da Cremona seria sensivelmente da geração do seu
mecenas (e não substancialmente mais novo como certos estudos consideram), pelo
que poderíamos aceitar ainda que teria chegado a Roma em idade capaz de sorver
a lição antiquária. A fixação dos idiomatismos compositivos e formais na sua obra,
mais próprios dos estaleiros lombardos do que de outros, poderia ter-se dado por duas
vias: por uma precoce aprendizagem em obras de carácter provincial, ou depois, já
durante a integração romana, pela colaboração com artistas originários desta região.
Algumas razões de peso se poderão juntar em favor desta precoce formação
lombarda: note-se aqui, em primeira-mão ao que julgamos, que o módulo superior
do painel central da Casa do Miradouro segue de perto o desenho dos vãos inferiores

22 AZZOLINI, 1996: 9.
23 MOREIRA, 2000: 85.
A obra do arquitecto italiano Francesco da Cremona (c.1480-c.1550) em Portugal:… 569

das sacristias absidais da igreja da Madonna della Steccata de Parma (Figura n.º
14), a fábrica religiosa mais importante desta cidade. E Parma, ali bem próxima de
Cremona, havia sido incorporada nos Estados Papais no início de Quinhentos.
Crê-se que os vãos desta igreja parmesã, compostos por janelas em arco de volta
perfeita inseridas em composição arquitravada jónica, tenham sido desenhados pelo
mestre construtor local Giovan Francesco d’Agrate, que desde 1525 colaborou na obra
da igreja, projectada pelos lombardos Bernardino e Giovanni Francesco Zaccagni24.
Se a data da sua realização parece tardia para permitir considerar a aprendizagem
de Francesco neste estaleiro em particular – não obstante poder tê-la feito depois
de ter estado em Roma, o que a sua ligação às fábricas papais não exclui –, podemos
notar que, sobretudo no estriado das pilastras e na generosa projecção da cornija,
apontamentos estes que sobressaem na obra de Viseu, os mencionados vãos seguem
de perto um precedente realizado no claustro de San Giovanni Evangelista da mesma
cidade, onde o referido Bernardino trabalhara de 1510 em diante (Figura n.º 15). A
obra da Madonna della Steccata denota ainda outras características que igualmente
encontramos na igreja da Foz do Douro enquanto preferências lombardas, embora as
tivéssemos observado já na obra de Antonio da Sangallo, por exemplo: a presença de
um alto embasamento do qual partem pilastras delgadas de ordem única até à linha
da cornija, sendo esta uma composição simples, mas de grande efeito monumental,
que nas obras lombardas contrasta vivamente com a aposição de pequenos módulos
arquitecturais trabalhados com requinte e minúcia, tais como os já mencionados vãos
e do paço abacial anexo. Este efeito em S. João da Foz do Douro seria equiparável
às investigações dos Zaccagni feitas na esteira experimental de Bramante, pelo que
cumpre agora referir que a obra dos Zaccagni em Santa Maria della Steccata rece-
beria poderosos influxos da obra daquele arquitecto – talvez no debuxo geral, como
diz Vasari –, e contaria ainda com a apreciação directa de Antonio da Sangallo Il
Giovanne desde 152625. Perante isto, talvez o posterior encontro formal da obra de
Francesco com a destes arquitectos não seja fruto de mero acaso.
Evidentemente, não podemos deixar de relacionar estas mesmas características
com a sua posterior difusão no gosto romano, como já atrás se disse. Encontramo-las
aqui expresso nomeadamente na fábrica da Igreja de Santa Maria do Loreto, da
autoria do mesmo Antonio da Sangallo, ou até nas de Raffaello, como a Capela
Chigi. Mas poderemos agora acrescentar que um dos responsáveis pela divulgação
deste gosto teria sido precisamente um artista da geração anterior também já aqui
mencionado, tal como se prova pelo exterior de Santa Maria della Consolazione ou
de S. Pietro in Montorio, exemplos romanos mais antigos que se podem colher dentre
outros possíveis do mesmo artista já fora da cidade, tais como a igreja de Sta. Áurea
de Óstia. Trata-se do escultor e arquitecto florentino Baccio Pontelli (1450-1492),
que várias vezes terá precedido a acção de Bramante e de Raffaello em algumas
importantes fábricas papais romanas.

24 LOTZ, 1995: 61.


25 LOTZ, 1995: 61-63.
570 Susana Matos Abreu

Talvez com interesse para investigações sequentes, esclareça-se que, segundo a


tradição, Baccio Pontelli teria sido o responsável pela construção da igreja de Santa
Maria del Popolo à qual a Capela Chigi se adossa, obra que realizou entre 1472 e
1477 por encomenda da congregação lombarda dos eremitas agostinhos. Esta obra
teria ainda contado com a colaboração do escultor e arquitecto Andrea Bregno
(1418-1506), este procedente de uma das mais importantes famílias de artistas do
norte da Itália26. A intensidade das relações laborais de Pontelli com Bregno é algo
que não se deverá perder de vista como sinal de contacto dos discípulos de Pontelli
com modismos originários da Lombardia, pelo menos desde o penúltimo quartel do
século XV. Como não deverá ser ainda esquecido, no contexto da predilecção do
cardeal D. Miguel da Silva pelos letreiros epigrafados com que sempre adornou os seus
edifícios – mas também das suas relações sociais –, que se deve a Bregno, presente
nos círculos humanísticos de Sisto IV, a estandardização da epigrafia classicizante,
conforme a fixou, gravada, nos túmulos que fez para vários cardeais.

4. Na esteira de Baccio Pontelli: novas pistas de investigação


A igreja de S. João Baptista apresenta particularidades que nos dão conta de
Francesco da Cremona como artista inventivo e que, fazendo uso dos modelos
antiquários e modernos romanos, procura superar, não sem espírito, algumas
deficiências dos seus conhecimentos. Chega, inclusive, a lograr soluções absoluta-
mente originais, como é o caso das celebradas janelas em tabula ansata criadas para
iluminar o interior da igreja de S. João Baptista27. Mas será talvez no tratamento
das ordens, sobretudo da jónica enquanto capricho programático do “uomo literratto
e di vita quieta” (como diria Sebastiano Serlio) que era o bispo D. Miguel da Silva,
que Francesco da Cremona se revelará mais original. No arco da capela-mor da
igreja da Foz do Douro, por exemplo, onde as pilastras foram tratadas como pilares
embebidos na parede que separa o presbitério da nave, as proporções do jónico
foram alongadas muito além dos cânones, fosse na modulação dos fustes, fosse
na dos pseudo-capitéis. Estes últimos foram desenhados com caprichosas volutas
distendidas como asas abertas de um pássaro singular, unidas por um flos abaci de
seis pétalas duplas de turgidez expressiva (Figura n.º 16)28. Francesco explorou

26 GRUNDMANN, 1998: 111.


27 Tratam-se de originalíssimas molduras rectangulares asadas que eruditamente evocam as placas com inscrições
triunfais que os antigos romanos suspendiam nos templos (MOREIRA, 1983: 324; GUILLAUME, 1989: 111).
Como paralelos italianos, Moreira refere os vãos superiores da fachada do palácio Naselli-Crispi (1537), construído
pelo arquitecto Girólamo da Carpi em Ferrara (MOREIRA, 1994: 69), obra que, podemos acrescentar, em geral
revela proximidade às de Raffaello, Bramante e Antonio da Sangallo il Giovanne. Tendo sido louvada no VII Livro
de Sebastiano Serlio (Frankfurt, 1575) redigido entre 1545-1550, o próprio tratadista utilizará a tabula ansata para
envolver a canhoeira de um projecto de porta de fortaleza (MOREIRA, 1994: 69; AFONSO, 2004). Em Portugal,
apenas na fachada da Misericórdia de Braga (in. 1562) foi detectada uma pervivência desta “invenção” de Francesco
da Cremona (BARROCA: 2001, 31).
28 As pilastras capitelizadas que marcam os vértices do hexágono da capela-mor, igualmente jónicas, foram vincadas

pelo meio – como era aliás corrente em fábricas romanas, mas sempre em versões corintizantes como nos exemplos
A obra do arquitecto italiano Francesco da Cremona (c.1480-c.1550) em Portugal:… 571

aqui o potencial plástico das caneluras ao prolongá-las a partir do fuste para o friso
do entablamento, este tratado como se do cesto de pseudo-capitel de tais pilares
se tratasse (Figura n.º 11). Este aspecto repete-se nas colunas da galeria claustral
da Sé de Viseu (in. 1528), onde as caneluras reproduzidas nos cestos exploram a
adaptação deste modismo à ordem compósita, esta com enrolamentos de acanto
projectados nos quatro cantos do ábaco e um flos abaco semelhante ao da Foz do
Douro, agora reduzido a cinco pétalas (Figura n.º 17).
Este tratamento estriado dos fustes das pilastras prolongando-se pelos cestos
dos (pseudo-)capitéis, juntamente com o desenho do flos abaci, parece confirmar a
formação lombarda de Francesco da Cremona. Representa, aliás, um tique bastante
divulgado por artistas do Norte da Itália nos estaleiros florentinos e romanos do
seu tempo29. Mas se já na mencionada tendência para a aplicação das ordens em
pilastras altas e delgadas, estas a marcar ritmicamente os panos verticais do edifício,
encontramos ressonâncias directas e modelares das obras romanas, sobretudo das
da geração anterior à do próprio Francesco, parece-nos ser nestes mesmos detalhes
do tratamento das ordens, agora observando a sua inserção tipológica, que mais se
parece confirmar essa influência.
Foi já notado30 que o claustro de Viseu segue, em geral, o protótipo tipológico do
claustro do Palácio da Chancelaria Apostólica de Roma (ou Palazzo della Cancelleria),
evidências que podemos especificar no ritmo dos arcos lançados sobre colunas, no
alto friso preparado para receber inscrições, ou mesmo nas páteras decorativas que
preenchem os panos entre a arcada e a arquitrave (Figura n.º 18 e 19). Valerá a
pena recordar, a propósito, que a crítica recente tem aproximado esta obra romana
dos protótipos de Francesco di Giorgio Martini por via de Baccio Pontelli, o qual,
segundo a tradição, lhe terá desenhado o cortile. Com efeito, este pátio porticado
identifica-se com os protótipos tardo-quatrocentistas, dentre os quais sobressai o
cortile do palácio ducal de Urbino onde os mencionados Martini e Pontelli haviam
trabalhado junto a Luciano Lauranna31 – justificando-se assim as semelhanças entre
esta obra urbinense e a de Viseu, que vêm sendo correntemente apontadas.
Porém, o pormenor do tratamento dos ângulos do claustro de Viseu é diferente
do da Cancelleria, que aqui se resolve por um duplo pilar de canto orientado a meia
esquadria, enquanto que, em Viseu, tal se faz por uma dupla coluna de canto. Como
aponta Rafael Moreira, tal pormenor da dupla-coluna de canto aplicada à articulação
das quatro faces da arcada claustral viseense tem um precedente directo em Roma,
no claustro de S. Salvatore in Lauro (Figura n.º 20) – este uma bela construção

já referidos e nunca explorando a modalidade jónica, tanto quanto julgamos saber –, criando uma inusitada partição
da flor do ábaco.
29 MOREIRA, 1995: 338. O autor nota ainda que tais capitéis são também semelhantes, no particular do fuste

estriado, aos do cortile do palácio Pazzi-Quaresi (1470-1472), atribuído a Giuliano da Maiano, e, na decoração do
ábaco, aos da SS. Annunziata de Florença, realizados por Michelozzo di Bartolomeo. O facto documenta assim
uma tendência não apenas ligada à diáspora dos arquitectos e escultores lombardos dos finais do século XV, mas
talvez ainda a exploração de um tipo antigo conhecido na época.
30 RUÃO, 2000: 15.
31 FRÖMMEL, 1998: 408-413.
572 Susana Matos Abreu

renascentista iniciada cerca de 1450 por Baccio Pontelli. Podemos ainda adicionar
a este precedente os capiteis duplos do Palazzo Comunale de Jesi (1486-1498), de
Francesco di Giogio Martini (Figura n.º 21), os quais se tratam certamente, como
os anteriores de Roma, do resultado de uma reflexão conjunta de Pontelli e Martini
sobre a tipologia claustral e o pátio civil. No tratamento das colunas de D. Salvatore
in Lauro, Pontelli substitui os acantos do cesto dos capitéis, estes de um singular
compósito almofadado com óvulos, por caneluras no prolongamento do fuste (Figura
n.º 22), tecendo nisto um outro parentesco muito próximo com o claustro de Viseu.
Os enrolamentos de acanto sob os ábacos lembram ainda, intensamente, o jónico
da igreja da Foz do Douro.
O conjunto das observações até agora feitas exige um ponto da situação, quer
sobre as influências recebidas por Francesco da Cremona a partir das obras modernas,
quer sobre os seus métodos projectuais. As primeiras notas, baseadas em pressu-
postos documentais, apontam algumas obras que talvez tenham sido influentes na
sua aprendizagem e, certamente também, consistido em referências visuais do seu
patrono: trabalhos de Donato Bramante e de Raffaello Sanzio, em primeiro lugar,
ainda que as ulteriores criações de Raffaello e de Bramante reflictam uma moderni-
dade idiossincrática que achamos não comparecer nos arranjos formais portugueses.
Uma precoce formação lombarda de Francesco, feita talvez ainda nas imediações da
sua terra natal, ou, mais tarde, já nos estaleiros romanos pelo convívio com artistas
lombardos, parece-nos vivamente de considerar. Em regra, poderá ser observado que as
influências modelares romanas colhidas por Francesco da Cremona bebem sobretudo
de obras realizadas pela geração anterior à sua, como revela certa atenção dada ao
trabalho de Antonio da Sangallo Il Vechio. Mas sobretudo, obras como a igreja da
Foz do Douro ou o claustro de Viseu, mas também o farol de S. Miguel-o-Anjo em
boa medida, revelam o estudo cuidado da lição de Baccio Pontelli, este um artista de
grande proeminência nas fábricas papais a partir de Sisto IV. É possível que algumas
destas influências tenham chegado tarde a Francesco da Cremona, ou pelo contacto
com os estaleiros de Bramante – que sucedeu a Pontelli nas fábricas de Santa Maria
della Pace e da Cancelleria –, ou com os de Raffaello – que igualmente lhe sucedeu
em Santa Maria del Populo (na construção da Capela Chigi anexa) e na Cancelleria.
No que tange a Pontelli, algumas notas deverão ser acrescentadas quanto às
preferências estéticas de D. Miguel da Silva. Lembremos que Sisto IV (1471-1484)
della Rovere, continuava a ser admirado em Roma enquanto patrono cívico da
cidade e verdadeiro evergeta all’antica, e que ainda no tempo de D. Miguel era
louvado pela sua proverbial visão de urbanista na tradução arquitectónica do ideal
da renovatio urbis. Foi precisamente a Baccio Pontelli que coube a oportunidade
e o mérito de ter estabelecido pela primeira vez uma verdadeira visão all’antica
da arquitectura em Roma, desenvolvendo um maneirismo propriamente local:
o claustro de S. Salvatore in Lauro e a fachada da Cancelleria constituem dois
marcos deste avanço estilístico, e saldam-se como os primeiros exemplares romanos
de um claustro e de um palácio de verdadeiramente renascentistas. Pontelli teve
ainda uma actividade importante na renovação urbana de Óstia já durante os
A obra do arquitecto italiano Francesco da Cremona (c.1480-c.1550) em Portugal:… 573

pontificados seguintes, de Inocêncio VIII e Júlio II. Este facto, talvez mais do que
qualquer outro, deverá chamar a atenção para a importância modelar das obras de
Pontelli na perspectiva de D. Miguel da Silva, estas de alguma maneira emuladas
para dar corpo ao programa humanístico de recriar Ostia antica na Foz do Douro32.
Quanto aos métodos conceptuais de Francesco da Cremona, a sua obra evi-
dencia uma aprendizagem estabelecida na observação das obras do seu tempo,
mas não necessariamente entendendo cabalmente a qualidade do seu desenho.
Sobretudo, revela que tal aprendizagem terá sido feita sem contacto estreito com
os instrumentos teóricos normativos da prática compositiva feita segundo o sistema
arquitectural clássico. Como tal, a cópia de tiques decorativos, se é marca evidente
da modernidade da sua obra, revela uma aplicação que por vezes sobrevaloriza o
seu efeito plástico em invenzioni quase expressionistas, ao mesmo tempo que cai
num mimetismo descarnado de alguns conhecimentos elementares de composição
clássica.
Por fim, deverá ser frisado que, seja nos vãos rectangulares orlados de pesada
molduragem arqueologizante, seja nos abundantes letreiros epigrafados que incrustou
nos paramentos murários de S. Miguel-o-Anjo, seja ainda na inventividade indecisa
da figuração formal das ordens, a sua obra denuncia um gosto antiquário que é,
tendencialmente, próprio de algumas décadas anteriores aos anos 20 do século XVI33.
Com isto, a suposição de que mecenas e arquitecto seriam da mesma geração deve
considerar-se acertada, já que ambos parecem partilhar os mesmos valores estéticos
ao apontar para referências visuais comuns. Além disso, a datação dos modelos de
Francesco da Cremona, quase todos de finais do século XV, condiz com os seus
métodos de fazer. Estes apresentam-se desenvolvidos ao abrigo de uma aprendizagem
de feição ainda tardo-quatrocentista e de certo modo imperfeita, aparentemente mais
presa à prática de estaleiro do mestre-pedreiro do que ao debuxo em atelier, ainda
que atenta às ruínas arqueológicas. Ao votar maior atenção aos valores expressivos
do desenho clássico do que à modulação geométrica da obra, Francesco de Cremona
parece retrair-se ainda nas preocupações conceptuais que eram próprias da geração
anterior.

32 Vd. nt. 16.


33 Também assinalado por Carlos Ruão (RUÃO, 2000: 12-15) Fica assim justificada a apreciação de Rafael Moreira
acerca dos detalhes formais da obra do claustro de Viseu, dos seus tiques patentes na sobreposição de molduras
em bases, arquitraves e cornijas, ou no hipotraquélio em caneluras, que “traem mão de mestre habituada a traçar
no papel o gosto grandiloquente da Roma papal do fim do Quattrocento, de elegância retórica às vezes excessiva”
(MOREIRA, 2000: 87).
574 Susana Matos Abreu

Figura n.º 1
Reconstituição da planta original do Farol de
S. Miguel-o-Anjo (Gouveia Portuense)

Figura n.º 2 – Igreja de S. João Baptista, planta,


esquemas proporcionais

Figura n.º 3 – Igreja de S. João Baptista, planta,


esquemas proporcionais
A obra do arquitecto italiano Francesco da Cremona (c.1480-c.1550) em Portugal:… 575

Figura n.º 4
Capela e farol de
S. Miguel o Anjo
(c. 1528),
Foz do Douro, Porto

Figura n.º 5 – Paço abacial Figura n.º 6 – Paço abacial


(antes 1538-1544), Foz do Douro, Porto (antes 1538-1544), Foz do Douro, Porto
576 Susana Matos Abreu

Figura n.º 7
Palácio Contucci
(Antonio da Sangallo
Il Vechio, in 1519),
Montepulciano, Itália

Figura n.º 8 – Igreja de S. João Baptista Figura n.º 9 – Igreja de S. João Baptista
(c.1527-c.1546), exterior, (c.1527-c.1546), nave e capela-mor,
Foz do Douro, Porto Foz do Douro, Porto
A obra do arquitecto italiano Francesco da Cremona (c.1480-c.1550) em Portugal:… 577

Figura n.º 10 – Igreja de S. João Baptista (c.1527-c.1546), nave e capela-mor, Foz do Douro, Porto

Figura n.º 11 – Igreja de S. João Baptista


(c.1527-c.1546), arco da capela-mor,
Foz do Douro, Porto

Figura n.º 12
Igreja de S. João Baptista (c.1527-c.1546),
arco da capela-mor,
Foz do Douro, Porto
578 Susana Matos Abreu

Figura n.º 13 – Casa do Miradouro Figura n.º 14 – Igreja da Madonna della Steccata
(c. 1528), Viseu (Bernardino e Giovanni zacagni, 1521-1527),
Parma, Itália

Figura n.º 16 – Igreja de S. João Baptista


(c.1527-c.1546), pilastra do arco da capela-mor,
Foz do Douro, Porto

Figura n.º 15 – Convento de San Giovanni


Evangelista, claustro (Bernardino zacagni, in.
1510), Parma, Itália
A obra do arquitecto italiano Francesco da Cremona (c.1480-c.1550) em Portugal:… 579

Figura n.º 17
Claustro da Sé
(c. 1528-1534),
dupla-coluna de canto, Viseu

Figura n.º 18 – Claustro da Sé (c. 1528-1534), Viseu


580 Susana Matos Abreu

Figura n.º 19
Pátio do Palácio della
Cancelleria (Baccio
Pontelli?, in. 1486),
Roma, Itália

Figura n.º 20
Claustro de S.
Salvatore in Lauro
(Baccio Pontelli, c.
1450), Roma, Itália
A obra do arquitecto italiano Francesco da Cremona (c.1480-c.1550) em Portugal:… 581

Figura n.º 21
Claustro do Palazzo Comunale
(Francesco di Giorgio Mar-
tini,1486-1498), dupla-coluna de
canto, Jesi, Itália

Figura n.º 22
Claustro de S. Salvatore in Lauro
(Baccio Pontelli, c.1450), capitel,
Roma, Itália
582 Susana Matos Abreu

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As encomendas de arte italiana
de D. Fr. José Maria da Fonseca Évora (1690-1752)
Teresa Leonor M. Vale

1. Introdução: a figura de D. Fr. José Maria da Fonseca Évora


Da biografia de D. Fr. José Maria da Fonseca Évora tivemos já ocasião de nos ocupar
em estudos anteriores1, pelo que, para esta apresentação se justifica tão-somente uma
sumaríssima menção aos aspectos que assumem alguma relevância para a temática
que nos propomos seguidamente abordar.
Nascido em Évora, a 3 de Dezembro de 1690, José Ribeiro da Fonseca Figueiredo
e Sousa, era filho de Manuel Ribeiro da Fonseca Figueiredo – que servira, como
tenente de cavalos, a Casa de Áustria, em Milão e na Flandres – e de sua esposa, D.
Ana Maria Barroso da Gama Michão. Aquele que a história fixaria como D. Fr. José
Maria da Fonseca Évora, embaixador de D. João V em Roma e bispo do Porto, terá
iniciado o seu percurso académico na universidade de Évora, onde obteve o grau de
Mestre em Artes, prosseguindo, a partir de 1710, na universidade de Coimbra, onde,
segundo alguns autores, terá obtido posteriormente o grau de Doutor em Direito
Canónico. Será todavia a sua ida para Roma, integrado na comitiva da embaixada
do marquês de Fontes, no mês de Janeiro de 1712, que marcará de forma indelével
o percurso que efectuou, no contexto da ordem franciscana (na qual professou a 8
de Dezembro de 1712) e também da diplomacia.
Com efeito, José Maria da Fonseca Évora viveu os seguintes 28 anos da sua vida
na cidade pontifícia, a qual deixou em de 1740, feito bispo do Porto, por nomeação de
D. João V, no mês de Fevereiro de 1739, apresentada no consistório de 2 de Janeiro
de 1740 e confirmada pelo Sumo Pontífice.
No Porto viveu os seus últimos anos e aí veio a falecer no dia16 de Junho de
1752, na qualidade de bispo daquela cidade, sendo sepultado, no dia imediato, sob
o altar-mor da sua Sé.

1 VALE, 2002: 11-18.


586 Teresa Leonor M. Vale

2. A aquisição de obras de arte italiana enquanto agente de D. João V


Durante os anos da sua permanência em Roma na qualidade de embaixador do
rei de Portugal, Fr. José Maria da Fonseca Évora viu-se na contingência de proceder
à aquisição de inúmeras obras de arte destinadas ao reino. Assim, seguindo as ordens
do soberano, filtradas e bem acompanhadas pelas advertências do Dr. José Correia
de Abreu, oficial da Secretaria de Estado (o qual foi também Reposteiro da Câmara
d’el Rei e Guarda-mor da Alfândega de Lisboa), José Maria da Fonseca Évora
procura satisfazer da melhor forma as sucessivas encomendas emanadas de Lisboa.
Sendo ambos conhecedores do ambiente romano (note-se que Correia de Abreu
permanecera diversos anos na cidade pontifícia ao serviço da Coroa, facto que as
cartas escritas desde Lisboa, muito povoadas de italianismos, denunciam), como bem
evidencia a correspondência trocada, estes dois homens ocupam-se e empenham-se
em satisfazer os desejos e concretizar as ordens do Magnânimo, da melhor forma que
as suas capacidades o permitiam. Menos familiarizado com alguns aspectos específicos
relativos às encomendas e, em particular, à realização de algumas das obras de arte
encomendadas a partir de Lisboa, Fonseca Évora vê-se orientado, esclarecido e cons-
tantemente recordado por um Correia de Abreu profundo conhecedor do ambiente
romano e experimentado oficial do aparelho burocrático do Estado.
Assim, a correspondência relativa a encomendas de obras de arte, que ao longo
de vários anos foi sendo trocada entre estes dois agentes da Coroa2, contém frequen-
temente, da parte do Dr. José Correia de Abreu, detalhadas instruções, advertências
(quanto à qualidade mas também quanto aos custos das peças a realizar) e mesmo
manifestações de descontentamento e consequentes admoestações, quando a qua-
lidade das obras, entretanto aportadas a Lisboa, não correspondia àquela esperada
e desejável (para o serviço de uma basílica real como a de Mafra, por exemplo) ou
quando as mesmas não haviam chegado no melhor estado. Enquanto desde Roma,
o frade franciscano feito embaixador do Magnânimo se limitava a dar notícias das
sucessivas diligências empreendidas e das obras de arte que ía embarcando para o reino.
Por razões que se prendem com os estudos por nós desenvolvidos, permitimo-nos
destacar, entre as várias encomendas de obras de arte idas de Lisboa, aquelas relativas
à basílica de Nossa Senhora e Santo António de Mafra – indubitavelmente o maior
empreendimento régio no período correspondente à missão diplomática de Fonseca
Évora em Roma – e dentro destas as respeitantes à aquisição de obras de escultura e
ourivesaria3. Quanto às outras encomendas, sobretudo àquelas de pintura, da maior
relevância, no contexto das aquisições joaninas, elas são talvez as que mereceram

2 A correspondência trocada entre José Correia de Abreu e José Maria da Fonseca Évora pode encontrar-se sobretudo
em Biblioteca Nacional (B.N.) (Lisboa), Secção de Reservados, Fundo Geral, Mss. 41, n.º 7 e em Biblioteca da
Ajuda (B.A.) (Lisboa), Ms. 54-IX-2, tendo sido parcialmente publicada por diversos autores.
3 Com efeito, nos últimos vinte anos temos consagrado preferencialmente a nossa atenção à importação de escultura

barroca italiana em Portugal – tendo tido oportunidade de publicar diversos títulos dedicados a tal temática – e
mais recentemente direccionámos a nossa investigação também para a importação de obras de ourivesaria italiana,
considerando sempre a relação existente entre escultores e ourives, projecto que desenvolvemos, desde 2007, no
contexto de uma bolsa de pós-doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia.
As encomendas de arte italiana de D. Fr. José Maria da Fonseca Évora (1690-1752) 587

maior atenção da parte de outros (e mais meritórios) autores4, pelo que uma nossa
abordagem seria desprovida de sentido e de pertinência.
Entre 1729 e 1734-1735, a correspondência sobrevivente, trocada entre Lisboa
e Roma, revela, ainda que de modo parcelar, a evolução da grande encomenda de
estátuas destinadas à basílica de Mafra, realizadas por um conjunto de escultores
activos, não apenas na cidade pontifícia, mas também noutros pontos da Península
Itálica. A fonte mais importante para a identificação das razões conducentes à
eleição dos vinte e seis escultores que trabalharam para Mafra é certamente a carta,
escrita desde Lisboa por José Correia de Abreu, a 10 de Maio de 1730, e endereçada
a José Maria da Fonseca Évora5. A leitura dessa missiva permite reconhecer como
critérios subjacentes à realização das obras de escultura para a basílica de Mafra (e à
consequente eleição dos artistas), os seguintes: a qualidade (a “perfeição”, de que fala
Correia de Abreu) dos materiais e da execução; a rapidez de execução, sendo que este
se revelou um factor determinante; a conveniência dos preços (aspecto recorrente
em toda a documentação ida de Lisboa) e a correcção iconográfica (a “propriedade
das roupas e das insignias dos Santos”, segundo a expressão de José Correia de Abreu).
Com efeito, o segundo critério: a rapidez de execução exigida desde Lisboa, foi
responsável por um recrutamento de escultores que não seriam todos mestres mas
que eram certamente todos os disponíveis. A necessidade de executar a encomenda
com a brevidade reclamada por Lisboa explica, aliás, a procura de artistas fora do
ambiente romano, e se a contratação de escultores em Florença poderia ser facilmente
justificada por uma sugestão do cardeal Neri Maria Corsini Júnior (que era pessoa
das relações do embaixador de Portugal, como bem sabemos), ele próprio florentino;
já a contratação de escultores em Carrara só pode explicar-se pela necessidade de
ter o maior número possível de artistas empenhado na concretização da encomenda.
A viagem do embaixador de Portugal a Carrara – onde certamente se deslocara
para supervisionar a escolha dos mármores e eventualmente obter preços mais aces-
síveis – relaciona-se também com o terceiro ponto mencionado por José Correia de
Abreu na carta de 10 de Maio de 1730: a “conveniencia dos pressos”6, pois apesar
dos meios económicos disponíveis, não parece haver qualquer intenção, por parte
de Lisboa, em despender mais do que o absolutamente necessário, o que, aliás, se
depreende do texto de uma outra carta de José Correia de Abreu, datada de 15 de
Novembro do ano seguinte7.
Ainda quanto ao segundo ponto, o da rapidez, deve notar-se que a urgência na
realização de uma tão grande quantidade de estátuas fez com que se tentasse que
cada artista esculpisse mais do que uma peça e terá também motivado que alguns
escultores tivessem certamente sugerido a eventual colaboração de discípulos (ou
mesmo de familiares aos quais o trabalho da pedra não seria estranho). É esta situação
que explica o envolvimento na concretização da componente escultórica de Mafra

4 Ver, nomeadamente, os estudos de QUIETO, 1990; SALDANHA, 1994.


5 B.N., Secção de Reservados, Fundo Geral, Mss. 41, n.º 7, Doc. 21. Publicado por VALE, 2002: 127-132.
6 B.N., Secção de Reservados, Fundo Geral, Mss. 41, n.º 7, Doc. 21, fl. 4.
7 B.N., Secção de Reservados, Fundo Geral, Mss. 41, n. 7, Doc. 46, fl. 1v.
588 Teresa Leonor M. Vale

de artistas tão diferenciados entre si, não apenas quanto ao mérito em absoluto, mas
também quanto à fase da carreira em que se encontravam ou quanto à carreira que
não tiveram, pois alguns dos artistas italianos de Mafra permanecem na obscuridade,
não parecendo possuir obra anterior nem posterior àquela realizada para Portugal
nos inícios da década de trinta do século XVIII.
Todavia, outra ordem de factores terá contribuído para que a escolha recaísse
sobre aqueles vinte seis escultores que trabalharam para Mafra, designadamente os já
mencionados contactos do embaixador Fr. José Maria da Fonseca Évora com o cardeal
Neri Maria Corsini Júnior, os quais explicam a quantidade de escultores florentinos
envolvidos, bem como a coincidência de artistas empenhados na realização das
componentes escultóricas da capela Corsini de Latrão e da basílica de Nossa Senhora
e Santo António de Mafra, como já tivemos oportunidade de notar noutro local8.
A por demais mencionada carta escrita por José Correia de Abreu para o
embaixador de Portugal em Roma, a 10 de Maio de 1730, permite-nos ainda abordar
alguns aspectos, mais concretos, relativamente à questão da escolha dos artistas,
possibilitando o reconhecimento dos preferidos e dos preteridos.
Entre os primeiros temos forçosamente de referenciar Carlo Monaldi (1691-
1760), responsável pela execução de sete estátuas e de um relevo. A sua eventual
disponibilidade no momento da encomenda explicará apenas parcialmente o facto
de lhe ser confiada a realização de um tão significativo número de peças. Outros
aspectos terão concorrido para esta escolha, designadamente o facto de Monaldi ter já
trabalhado para a ordem franciscana, tendo como interlocutor directo Fr. José Maria
da Fonseca Évora, concretamente aquando da realização, ocorrida entre os anos de
1720 e 1725, da estátua do fundador da ordem a colocar na basílica vaticana, a que
já atrás se aludiu. Por outro lado, aspecto importante neste contexto foi ainda o facto
de ter Monaldi ensinado na Academia de Portugal em Roma entre os anos de 1724
e 17289, da qual o Dr. José Correia de Abreu fora director e onde tinha tido por
discípulo o escultor português José de Almeida (1708-1770), regressado a Portugal
precisamente nesse ano de 172810, decerto também ele responsável pela difusão de
uma imagem positiva da figura do mestre no reino.
Finalmente deve referir-se o que pode ser entendido como simples gosto (even-
tualmente traduzido numa relação de afeição pessoal) pela obra de Carlo Monaldi
por parte de Fr. José Maria da Fonseca Évora, o qual, mais do que uma vez, se fez
retratar por este artista11, como adiante teremos ocasião de notar.
Curiosamente são alguns documentos produzidos cerca de dez anos após a conclusão
do processo de encomenda e realização das obras de escultura italiana para Mafra, que
nos oferecem uma síntese quanto à apreciação dos vinte e seis escultores, que haviam

8 VALE, 2002: 33-42.


9 FERRARIS, 1995: 509-510.
10 VALE, 2008; MONTAGU, 1993: 82-83.
11 QUIETO, 1990: 77; AA.VV., 1991: 255. As representações de Fonseca Évora a que nos reportamos são o busto

feito para a Biblioteca Eborense do convento de Aracoeli (a sua demolição, em 1883, determinou que o busto se
conserve actualmente no Collegio Romano) e também aquele que se guarda no paço Ducal de Vila Viçosa.
As encomendas de arte italiana de D. Fr. José Maria da Fonseca Évora (1690-1752) 589

sido envolvidos pelo embaixador Fonseca Évora na concretização da componente


escultórica italiana da basílica de Nossa Senhora e Santo António. Com efeito, no
ano de 1745, e a propósito da encomenda de obras de escultura (concretamente um
relevo figurando a Virgem com o Menino e uma estátua de Nossa Senhora, em bronze
dourado destinados à Patriarcal), solicita-se a realização de modelos de tais peças,
sendo então comunicada uma lista de escultores, por ordem de preferência. Assim,
para o modelo do relevo, o escultor preferido é Giovanni Battista Maini, (…) e non
essendo più uiuo il detto Maini, sarà preferito il signore Pietro Bracci, e mancando questi
il signore Carlo Monaldi12. Relativamente ao modelo para a estátua, a preferência
continuava a cair sobre Maini, sendo as alternativas: (…) e se fosse morto questo lo
farà Pietro Bracci, ed in mancanza di questi Gioseppe Llirone, o Carlo Monaldi si però
sarà viuo il detto Giovanni Battista Maini, il modello doura farlo lui senz’altra replica13.
Considerando globalmente o conjunto escultórico italiano de Mafra facilmente
se reconhece que a todas as exigências de Lisboa procurou o embaixador Fr. José
Maria da Fonseca Évora dar a melhor satisfação. Porém, cremos que terá prevalecido
o critério da brevidade com que a obra precisava de ser realizada pelo que não foi
possível cumprir plenamente a outra exigência, aquela de que as estátuas fossem
todas executadas por escultores “professores”, como pedia José Correia de Abreu.
A componente escultórica italiana da basílica de Nossa Senhora e Santo António
de Mafra é um conjunto notável de escultura do settecento mas apresenta obras
de qualidade muito diferenciada. Trata-se, afinal, como qualquer obra de arte, do
resultado do conjunto de circunstâncias que envolveram a sua realização.
Um outro domínio que tivemos ocasião de estudar, aquele da ourivesaria, permitiu-
nos constatar como tal tipo de obras de arte se encontrava muito representado no
universo das colecções de José Maria da Fonseca Évora, das quais nos ocuparemos
adiante.
Também enquanto agente da Coroa portuguesa em Roma, Fr. José Maria da
Fonseca Évora procedeu a inúmeras aquisições de obras de ourivesaria, em nome
do soberano, designadamente para a basílica de Mafra, cuja encomenda de peças de
ourivesaria barroca romana já tivemos oportunidade de abordar14 e da qual sobrevive
na actualidade um conjunto de 13 peças. Trata-se em concreto de uma píxide, seis
cálices e seis relicários todos de prata e da comprovada autoria dos ourives romanos
Giacomo Pozzi (1682-1735), Antonio (ou Giovanni Francesco ou Agostino) Arrighi
(1687-1776) e Giovanni Paolo Zappati (1691-1758). A estas obras, sobreviventes
de um muito mais vasto conjunto, juntam-se ainda dois outros relicários em metal
prateado.
Mas o frade franciscano diplomata e depois prelado, também procedeu à enco-
menda de obras de ourivesaria para a igreja nacional em Roma, Santo António dos
Portugueses, e para si próprio. Concretamente para a igreja nacional, Fonseca Évora
encomendou, para além de diversos castiçais de prata, uma Urna da Reposição, cujo
12 B.A., Ms. 49-VIII-29, fl. 64 v.
13 B.A., Ms. 49-VIII-29, fl. 72 v.
14 VALE, 2009: 19-44.
590 Teresa Leonor M. Vale

autor é conhecido, trata-se do ourives Giovanni Paolo Zappati, que trabalhara para
Mafra. Trata-se de uma peça particularmente elaborada, dotada de uma componente
ornamental característica da produção romana da época e ostentando sobretudo
um programa iconográfico particularmente expressivo e, como seria esperável, uma
vez que se destinava a ser usada na Sexta-feira Santa, alusivo à Paixão do Senhor
(figurações da coluna, dos flagelos, dos cravos e da coroa de espinhos, bem como
de putti chorosos). Numa das faces da urna observam-se as armas reais de Portugal,
pelo que pode depreender-se que, apesar da oferta do objecto em questão à igreja
nacional dos Portugueses, ter sido efectuada por Fr. José Maria da Fonseca Évora, a
mesma terá sido feita pelo diplomata em nome do monarca, não se tratando assim
de uma oferta pessoal do franciscano.

3. A colecção de arte italiana de José Maria da Fonseca Évora


O estudo da colecção de obras de arte em geral e de obras de arte italiana em
particular, constituída ao longo da sua vida por José Maria da Fonseca Évora, depara-se
desde logo com um problema decorrente do facto de a mesma ter sido irremediavel-
mente dispersa no seguimento do falecimento do coleccionador, ocorrido a 16 de
Junho de 1752, pois os bens do prelado foram vendidos em hasta pública, a fim de
saldar as suas dívidas. Assim, as obras de arte de que era detentor dispersaram-se
entre múltiplos proprietários que então as adquiriram e hoje só muito dificilmente se
consegue proceder à sua localização e associação à pessoa de José Maria da Fonseca
Évora. Contudo, algumas obras são ainda passíveis de serem sem dúvida ou com
razoável certeza associadas ao frade franciscano embaixador e prelado e é delas que
nos ocuparemos seguidamente.
Também neste capítulo se seguirá o critério já anteriormente enunciado: não
ignorando as restantes vertentes das colecções de arte de José Maria da Fonseca
Évora, conceder-se-á todavia particular e mais demorada atenção àquelas que se
situam nos domínios preferenciais dos nossos estudos: a escultura e a ourivesaria.
Não será sequer questionável o facto de que o frade franciscano, embaixador de
D. João V e depois bispo do Porto, terá encomendado e adquirido diversas obras
de pintura, durante os anos da sua permanência romana, fossem estas de temática
sacra ou situáveis no âmbito da retratística. Mesmo sem abundantes sobrevivências
a sua existência é atestada pelos documentos, designadamente pelo inventário dos
bens (móveis) pertencentes à Coroa portuguesa, realizado no seguimento da saída de
Fonseca Évora da cidade pontifícia (1740). Nesse inventário reconhecem-se diversas
obras de pintura15 e cremos poder afirmar que algumas delas terão sido adquiridas a

15 B.A., Ms. 49-VIII-21, Inventario di Robbe Spettante alla Corte di Lisbona Lasciate in Roma dal Vescovo del Porto sino
al 30 Settembre 1740, pp. 17 a 22, este manuscrito será publicado pela nossa obra que se encontra no prelo: Teresa
Leonor M. VALE, Arte e Diplomacia. A vivência romana dos embaixadores joaninos. A figura e as colecções de arte de
José Maria da Fonseca Évora (1690-1752).
As encomendas de arte italiana de D. Fr. José Maria da Fonseca Évora (1690-1752) 591

título pessoal e não na qualidade de diplomata, considerando decerto José Maria da


Fonseca Évora que não se justificaria fazê-las viajar até ao Porto.
Não se tratando verdadeiramente de uma composição no âmbito da retratística,
ainda que não deixe de retratar os intervenientes na cena, a pintura hoje pertencente à
Biblioteca Nazionale Centrale Vittorio Emmanuele II de Roma, representando Fonseca
Évora com os cardeais Neri Corsini, Marcello Passeri e Antonio Saverio Gentili no
acto de assinatura do acordo de concessão do título cardinalício à nunciatura de
Lisboa, é bom exemplo das encomendas realizadas em Roma pelo frade franciscano
ao serviço da Coroa portuguesa16. A tela em questão, datável de c. 1731-1733 e que
esteve na biblioteca fundada por Fonseca Évora no convento romano de Aracoeli, tem
a sua autoria atribuída a Agostino Masucci (1692-1758), pintor que muito trabalhou
para Portugal, desde a campanha de Mafra – coordenada desde Roma por Fr. José
Maria da Fonseca Évora, como por demais se referiu – até àquelas da Patriarcal e da
capela de S. João Baptista, já próximo do final do reinado do Magnânimo.
Outro pintor que com muita probabilidade terá satisfeito encomendas pessoais de
Fonseca Évora é Francesco Trevisani (1656-1746), com quem o franciscano contactou
em mais do que uma ocasião e muito concretamente aquando da realização pelo artista
da tela, figurando o Êxtase de S. Francisco, destinada à capela Savelli da igreja do
mosteiro de Santa Maria de Aracoeli, em cuja balaustrada apôs as suas armas pessoais.
Já quanto à escultura, também são escassas as sobrevivências de uma colecção
que terá sido inevitavelmente mais vasta. Com efeito, dois bustos retratando o enco-
mendador, afiguram-se escasso testemunho das prováveis aquisições de um apreciador
de arte que, tão-só para Mafra se ocupou da aquisição de mais de sessenta estátuas,
contactando para o efeito com grande parte dos escultores activos na cidade pontifícia
(e não só), entre os quais se reconhecem alguns dos mais relevantes do seu tempo.
Dos dois bustos a que se aludiu, bastantes idênticos entre si, um encontra-se em
Roma, no Collegio Romano, e o outro, pertença da Fundação da Casa de Bragança,
pode observar-se no Paço Ducal de Vila Viçosa17.
Pensa-se que este busto seja uma segunda versão – datável de 1740 pela idade que
aparenta o retratado - daquele encomendado por Fonseca Évora para a denominada
Biblioteca Eborense, que mandara edificar no convento franciscano de Santa Maria
in Aracoeli de Roma, demolida (com as restantes dependências conventuais) com
vista à edificação do denominado Altar da Pátria em 1883-1886, e actualmente no
vestíbulo do Collegio Romano18.
A obra, que se observa actualmente na denominada Sala dos Paramentos, do Paço
Ducal de Vila Viçosa, foi adquirida na década de oitenta do século XX pela Fundação
da Casa de Bragança ao Dr. João de Figueiredo, antigo conservador do palácio19.
16 QUIETO, 1994: 67.
17 Inv. n.º 1.661. ver VALE, 2005: 119-124.
18 FERRARIS, 1995b: 509.
19 Até ao final do século XIX o busto permanecera na capela do Solar dos Peixinhos (Vila Viçosa), como sinal de

reconhecimento às diligências que Fonseca Évora efectuara em Itália e junto da corte para conseguir o regresso do
exílio da família dos Lucenas, banida de Portugal desde a execução, em 1643, de Francisco Lucena, fidalgo da casa
ducal e depois secretário de D. João IV. Ver TEIXEIRA, 1989: 40.
592 Teresa Leonor M. Vale

A atribuição do busto a Carlo Monaldi assenta não só na leitura escultórica que


a peça permite – a qual evidencia afinidades com a restante obra deste escultor –
mas também pela relação que existiu entre o encomendador e o artista ao longo da
permanência romana do franciscano embaixador de D. João V. A qual se traduziu
nomeadamente no facto de ter sido Monaldi o artista eleito por José Maria da Fonseca
Évora para a execução da estátua de S. Francisco (c. 1720-1725) a figurar na galeria
de fundadores e reformadores de ordens religiosas do interior da basílica de S. Pedro
do Vaticano, o mesmo Monaldi que, entre os anos de 1724 e 1728, ensinava na
Academia de Portugal em Roma.
Por outro lado, e como já tivemos ocasião de notar, é Monaldi o escultor com
maior número de peças (sete estátuas e um relevo) entre os vinte e seis artistas
empenhados na realização da componente escultórica da basílica de Nossa Senhora
e Santo António de Mafra.
Sem se assumir como um grande escultor no contexto do settecento romano,
Monaldi consegiu todavia alcançar um prestígio que lhe assegurou um conjunto de
encomendas de alguma importância20.
A contextualização tipológica de uma obra como esta deverá efectuar-se no âmbito
dos bustos de eclesiásticos realizados no settecento romano, de que são bons exemplos
aqueles dos cardeais D’Adda e Omodei, da autoria de Agostino Cornacchini (1686-
1754), que se encontram na sacristia da igreja romana de SS. Ambrogio e Carlo al
Corso, o do cardeal Fabbrizio Paolucci, do escultor Pietro Bracci (1700-1773), que se
observa na igreja de SS. Giovanni e Paolo de Roma, e ainda os bustos da autoria de
Gaspare Sibilla (m. Roma, 1782) e datáveis de c. 1758, que integram os monumentos
fúnebres de Onofrio Panvinio, Gregorio da Rimini e Girolamo Seripando, na igreja
romana de Sant’Agostino. Todos estes exemplos se integram na tipologia mais formal
(e muito frequente) do busto do settecento, destinada a representar de modo adequado
homens da Igreja, tendo em consideração os modelos sociais e morais coevos, e assim
perpetuar a sua memória.
Já antes da nomeação de Fr. José Maria da Fonseca Évora como prelado do
Porto, eram significativas as encomendas de peças de prata efectuadas pelo religioso
franciscano nomeadamente junto da oficina do ourives romano Antonio Arrighi,
aquele que mais trabalhou para a corte portuguesa durante o reinado do Magnâ-
nimo. Assim, ao longo sobretudo da década de trinta, são numerosos os assentos de
pagamentos relativos a obras destinadas a Fonseca Évora, reconhecíveis nos registos
da oficina daquele ourives. Podem identificar-se abundantemente peças de uso civil
– pratos, taças, talheres, garrafas, copos, bacias de barba, lâmpadas e lucernas e uma
escrevaninha, por exemplo21. Bem como, naturalmente, de uso sacro – castiçais de
20 Veja-se o que a seu propósito escrevemos (e a bibliografia que indicamos) em VALE, 2002: 62-63.
21 Veja-se, entre outros documentos citáveis, Archivio di Stato di Roma (A.S.R.), Ospizi, SS. Trinità dei Pellegrini,
Busta 229, Int. 15, fls. 2v., 110-113, 118v. Devemos referir que toda a documentação do Archivio di Stato di Roma
relativa à oficina Arrighi nos foi com grande generosidade facultada pela Professora Jennifer Montagu (Warburg
Institute, University of London) – a quem desde já penhoradamente agradecemos -, a qual recolheu e transcreveu
tal documentação com vista à sua inclusão na obra a publicar a breve trecho, intitulada Antonio Arrighi, a silversmith
and bronze-founder in Baroque Rome.
As encomendas de arte italiana de D. Fr. José Maria da Fonseca Évora (1690-1752) 593

altar, sacras, um cálice, galhetas, relicários22 – as quais aumentam após a elevação


do frade franciscano à prelasia.
Era igualmente prática corrente de Fonseca Évora o recurso à oficina de Arrighi
para a realização de reparações ou transformações de peças. É essa a situação
verificada, tanto em Setembro de 1735 – com dois cálices e uma bacia (dos quais
deviam ser apagadas armas de outrem e proceder-se à sua substituição pelas próprias,
da ordem franciscana e do Senado Romano)23 –, como em Fevereiro de 1736, com
seis pequenas colunas de prata, as quais deviam ser reparadas retirando-se as armas
que ostentavam24, e ainda em 1738, com várias peças de um “surtout de table”
(uma “sortu”, na versão italianizada do termo) em metal dourado25. As reparações e
intervenções em peças pré-existentes por encomenda de Fonseca Évora sucedem-se
nos anos seguintes e em particular durante aquele de 1740, em que se preparava para
regressar ao reino, nomeado que estava como bispo do Porto. Com efeito, durante o
mês de Janeiro desse ano diversas peças entram na oficina de Antonio Arrighi com
a única finalidade de nelas serem gravadas as armas do recente prelado: desde logo
uma campainha, à qual deviam ser retiradas as armas do rei de Portugal e colocadas
as de Fr. José Maria da Fonseca Évora, o mesmo sucedendo com uma salva ou prato
para galhetas (deviam ser apagadas as armas de outrem e colocadas as de Fonseca
Évora), com duas garrafas (para água e vinho), com um cálice e ainda com uma
bacia em latão dourado26.
Afigura-se-nos bastante provável que uma sobrevivência destas inúmeras peças
de uso civil encomendadas à oficina de Antonio Arrighi possa ser uma cafeteira (que
apresenta a marca do ourives), recentemente levada à praça por uma casa leiloeira
lisboeta e na actualidade pertença de um coleccionador particular. De facto, num
leilão do Palácio do Correio Velho que teve lugar em 9 de Maio de 2006, surgia (com
o nº de lote 78) uma cafeteira de corpo facetado octogonal, alternando faixas largas
e estreitas, sendo estas últimas lisas e as outras ostentando uma decoração gravada
de motivos vegetalistas e de carácter arquitectónico. Sob o bico (adossado ao corpo e
com tampa móvel) era reconhecível um elemento decorativo, claramente de execução
posterior, e destinado a ocultar um brasão de armas. O que nos leva a considerar poder
ser esta uma sobrevivência das peças pertencentes a D. Fr. José Maria da Fonseca Évora
– leiloadas, no seguimento do seu falecimento – são sobretudo dois motivos: antes de
mais, a inclusão, num momento posterior, do motivo decorativo sob o bico, tendo por
finalidade ocultar umas armas anteriormente existentes, e ainda a existência de uma
remarcagem da peça pela contrastaria do Porto (P-13, 1768-c.1784)27 e pelo ourives
Diogo Pereira Marinho (m. 1792), activo naquela cidade desde 176228. Este último
aspecto poderia traduzir uma aquisição da cafeteira no seguimento do leilão dos bens
22 Veja-se nomeadamente: A.S.R., Ospizi, SS. Trinità dei Pellegrini, Busta 229, Int. 15, fls. 101v-105v.
23 A.S.R., Ospizi, SS. Trinità dei Pellegrini, Busta 229, Int. 15, fls. 31v-32v.
24 A.S.R., Ospizi, SS. Trinità dei Pellegrini, Busta 229, Int. 15, fl. 43.
25 A.S.R., Ospizi, SS. Trinità dei Pellegrini, Busta 229, Int. 15, fl. 101v.
26 A.S.R., Ospizi, SS. Trinità dei Pellegrini, Busta 229, Int. 15, fls. 113, 113v., 115 e 117.
27 ALMEIDA, 1995.
28 Acerca deste ourives, ver SOUSA, 2005: 263-266.
594 Teresa Leonor M. Vale

de Fonseca Évora, ocorrido precisamente no Porto, e a necessidade de transformação


da peça pelo novo proprietário, para o que recorreu a um ourives da cidade, o qual
ocultou as armas do anterior detentor e remarcou a peça como sinal da sua intervenção.
Quando, em 1740, Fonseca Évora parte de Roma com destino ao reino, já na qualidade
de bispo do Porto, deixa a Giuseppe Zarlatti o encargo de acompanhar a conclusão
de diversas peças que encomendara, entre as quais refere Luca Antonio Chracas no
seu Diario Ordinario as seguintes: (…) due Corpi Santi, nomati S. Aurelio, e S. Pacifico,
quali essendo stati vestiti con ricche vesti ricamate d’oro, e collocati in due magnifiche Urne,
furino queste, ne’ giorni scorsi trasportate nel Palazzo dell’Ecc.mo Sig. Duca di Bracciano,
ove concorse molta Nobiltà e Popolo per osservare il nobile lavoro non meno delle medesime
Vrne, che di molti Paramenti sacri ricamati d’oro, e d’argento, ed un Altare portabile di nuova
invenzione, con quantità di metalli dorati, che in tutto composti numero 11 colli sono stati
mandati in questi giorni a Génova in due filuconi, e di lì con vascello a Lisbona, per indi
passare a Porto, accompagnati da un Familiare del sudetto Prelato29. Lamentavelmente o
texto de Chracas não permite apurar se as duas magníficas urnas eram um trabalho de
ourivesaria ou não, mas quanto ao altar portátil “de nova invenção” é-nos dado saber
que se tratava de um trabalho de metalista, com eventual participação de ourives, o
que aliás, só vem confirmar a aptidão para consumir este tipo de peças por parte de
Fr. José Maria da Fonseca Évora, bem como para as trazer – como novidade – para o
contexto nacional em geral e para o ambiente portuense em particular.
Assim, é-nos dado saber que D. Fr. José Maria da Fonseca Évora adquiriu em Roma
a título pessoal e já enquanto bispo do Porto (ou seja depois de 1739), entre outras, as
seguintes obras, na sua maioria, se não na totalidade, realizadas pela oficina de Antonio
Arrighi: uma crossa de báculo em prata, que actualmente integra o acervo do Museu
Nacional de Soares dos Reis; um altar portátil com metais dourados30; seis relicários de
ouro e de prata e doze relicários de cobre dourado; um porta-paz em cobre dourado;
uma píxide pequena com copa, de prata dourada; outra píxide, mais pequena do que a
anterior, em latão dourado; uma cruz episcopal de prata dourada com compartimentos para
relíquias; um porta-paz em prata (com uma miniatura no meio tendo por tema a Pietà,
em cristal, ladeada por dois anjos em adoração); um aspersório de prata; seis castiçais de
cobre dourado decorados com cabeças de querubins, com as armas do encomendador e
um pelicano em baixo relevo; um cálice e respectiva patena, em prata; uma campainha
grande em latão dourado; um porta-paz em metal dourado (e respectiva miniatura);
um relicário de prata; um baixo-relevo da Virgem com moldura de metal dourado; um
turíbulo com correntes “à portuguesa”, naveta e colher, tudo em prata; um conjunto de
três sacras; uma cruz de ouro esmaltada (que se destinava a ser oferecida pelo bispo ao
seu gentil-homem Abade Pompiglia); um relicário da altura de três palmos, em prata
perfurada e parcialmente dourado (para conter e expor uma garrafa de vidro com sangue
de cento e doze mártires) e ainda três pias de água benta em prata31.

29 CHRACAS, 1749: 11.


30 Ao qual alude Chracas, como se viu.
31 Todas estas encomendas datam dos anos de 1739-1740 – Ver A.S.R., Ospizi, SS. Trinità de’Pellegrini, Busta 229,

Int. 15, fls. 107, 108v., 109, 109v., 113v., 114, 114v., 116, 116v., 117, 117v., 119, 120v., 123, 124, 124v.
As encomendas de arte italiana de D. Fr. José Maria da Fonseca Évora (1690-1752) 595

Angela Delaforce aproxima ainda da colecção de D. Fr. José Maria da Fonseca


Évora um relevo de prata, actualmente numa colecção particular, da autoria de
Antonio Arrighi (1687-1776) (ostenta a sua marca), datado de c. 1743-1744, tendo
por tema a Anunciação, montado sobre uma estrutura de bronze dourado e dotado de
moldura atribuída ao ourives Luigi Valadier (1726-1785)32. A fundamentação para
tal proposta assenta num pagamento feito a Arrighi em nome de Fonseca Évora (em
data posterior à sua partida de Roma), pelo então embaixador de Portugal Manuel
Pereira Sampaio33. Todavia, duas questões de imediato se levantam: desde logo a
data do registo de pagamento – Novembro de 1741, quando a peça surge datada de
1743-1744, pela própria autora; uma segunda questão é a que se prende com o teor
do registo, pois nada refere quanto às peças a que se reportava, constando o mesmo
apenas do seguinte: pagamento de 2400 escudos (scudi romani) ao ourives Antonio
Arrighi, com ordem do Padre Giovanni Battista Carbone, por peças realizadas Sotto
l’ordinazione di Monsignore vescouo di Porto prima della sua partenza di Roma34. Assim,
com base nestes dados e na ausência de outros mais esclarecedores, afigura-se-nos
abusivo associar tal pagamento ao relevo, ainda que o mesmo possa ter integrado o
conjunto de bens de D. Fr. José Maria da Fonseca Évora.
Já há muitos anos de regresso ao reino, em 1749, ainda D. Fr. José Maria da Fonseca
Évora continuava a encomendar peças à oficina do ourives romano, concretamente
um serviço de altar portátil e uma escrevaninha35.
Entre as peças sobreviventes e certamente pertencentes a D. Fr. José Maria da
Fonseca Évora emerge a crossa de báculo na actualidade no Museu Nacional de Soares
dos Reis36. O registo deste pagamento ao ourives pela realização deste báculo para o
bispo do Porto, com data de 10 de Janeiro de 1740, foi recentemente localizado por
Jennifer Montagu no âmbito de uma investigação consagrada à actividade da oficina
deste ourives e de seu pai, Giovanni Francesco Arrighi (1646-1730). No manuscrito
em questão pode ler-se: Per haver fatto un Pastorale d’arg.to alto 10 palmi in circa tutto
il manico composto di 4 pezzi di canna tutte lavorate alla Chinese con arma interzata dell
P. R.o ne lavori alla Chinese di detto manico con sua punta da piede ciselata à spichi con
incastri e vite fatte à torno per comporlo e dismeterlo con faciltà incima à detto manico
vi e un pezzo quadrato d’architettura con 4 nichie dentro alle quale vi sono 4 Figure di
rilievo che rapresentano le 4 Virtù Fede Speranza Carità e Giustizia quale sono riportate
e saldate nell mezzo di dette nichie tutto il restante di detto pezzo quadrato e tutto ornato
di cartellami e volute d’ cartocci e altro ornato sopra al medemo vi e l’arma di P. R.o con
inpresa ricavata con fiochi e cappello il pezzo sopra che compone il pastorale tutto di getto e
tutto di fogliami e cartocci con un mezzo putto d’ rilievo con sue alle che nasce d’un voluta
in mezzo alla mappa dell’ pastorale il tutto fattone modello à posta. che pesa d’argento lb.7.

32 DELAFORCE, 2002: 323-324.


33 DELAFORCE, 2002: 324.
34 B.A., Ms. 49-IX-22, fl. 85.
35 Respectivamente em Março e Abril de 1749 – Ver A.S.R, Ospizi, SS. Trinità dei Pellegrini, Busta 229.6, (Arm. M,

n.º 6, Parte), p. 123.


36 M.N.S.R., Inv. 32 Our.
596 Teresa Leonor M. Vale

o.3. d.6. che inporta in m[one]ta ---s.87:25. Per il suo solito calo di denari 4 per libra
---s.1:21. Per la fattura di detto Pastorale con anima di legno e vita e madrevita d’ottone
e ferro d’entro ---s. 12037. O mesmo assento de pagamento revela ainda a realização
da respectiva caixa, a qual garantiria o seu bom acondicionamento, para enfrentar
a viagem até Portugal: Per la sua custodia con gangani per aprirse e occhietti d’ottone e
ancinelli foderata dentro di scamuscio rosso e fora di Cordovano cremise filettata d’oro (…)38.
A crossa encomendada pelo bispo Fonseca Évora a Arrighi encontrava-se ainda
no paço episcopal em 1809, data em que, por ordem do bispo D. António de S. José
de Castro se realiza um inventário do paço, que nos permite conhecer o seu estado
após a invasão francesa e subsequente saque. Neste documento pode efectivamente
ler-se: Um bacolo de prata dourada39, que cremos ser este, entre as escassas peças de
prata então existentes no paço dos bispos portuenses.
A peça, hoje acertadamente tida como pertença de D. Fr. José Maria da Fonseca
Évora, ostenta todavia as armas de D. Fr. António de Sousa (1690-1766), bispo do
Porto desde 1756, as quais foram sobrepostas a outras apagadas. Tal circunstância
poderia estar relacionada com os problemas inerentes à utilização das armas dos
Távoras (D. Fr. António de Sousa era filho do 2.º marquês de Távora), as quais
teriam sido apagadas para surgirem as dos Sousas de Arronches (que o bispo também
podia utilizar por ascendência materna). Porém, afigura-se como hipótese bem mais
provável o facto de as armas inicialmente existentes terem sido as de D. Fr. José
Maria da Fonseca Évora visto que num retrato deste prelado (pintura da autoria de
João Glama Ströberle, assinada e datada de 1749, que pertence à igreja de S. Pedro
dos Clérigos, Porto) surge representado um báculo em tudo idêntico.
A crossa de báculo em questão, da autoria do ourives Antonio Arrighi, o mais
activo entre todos os que trabalharam para Portugal, como já tivemos ocasião de
constatar, não sendo excepcional, não pode todavia deixar de ser considerada notável.
Com efeito, a crossa evidencia bem as capacidades de Arrighi em articular uma
gramática ornamental vegetalista (de recurso frequente nesta tipologia de peças) com
as cabeças de putti que conferem um dinamismo e uma graça adicional ao objecto.
A diferença e mais-valia resultante da aplicação desta solução decorativa, fica bem
patente se se efectuar uma comparação da crossa de báculo hoje pertencente ao
acervo do Museu Nacional de Soares dos Reis com aquela, da autoria de Giovanni
Francesco Arrighi, pai de Antonio, que se encontra na concatedral de Santa Maria
Assunta de Cingoli, e que terá sido realizada cerca de quinze anos antes (c. 1726)40.
O enriquecimento e singularidade da peça vêem-se sublinhados pelo programa
iconográfico veiculado na parte inferior, a qual se apresenta vasada por três nichos
albergando figurações de quatro virtudes, Fé, Esperança, Caridade e Justiça.
Sempre entre as sobrevivências das peças que decerto pertenceram a D. Fr. José
Maria da Fonseca Évora – ainda que ostentem as armas do prelado seu sucessor na

37 A.S.R, Ospizi, SS. Trinità dei Pellegrini, Busta 229, Int. 15, fl. 112v. Transcrição de Jennifer Montagu.
38 A.S.R, Ospizi, SS. Trinità dei Pellegrini, Busta 229, Int. 15, fl. 112v. Transcrição de Jennifer Montagu.
39 A.D.P., Arquivo Distrital do Porto, Cartório da Mitra do Porto, vol. 177. Publicado por SMITH, 1968: 19.
40 Confirmar a respeito desta peça, BARUCCA, MONTAGU, 2007: 85, 218.
As encomendas de arte italiana de D. Fr. José Maria da Fonseca Évora (1690-1752) 597

diocese do Porto, D. Fr. António de Sousa – e constantes do acervo do Museu Nacional


de Soares dos Reis, reconhecem-se uma caixa de galhetas e um par de galhetas41.
Cremos que podemos identificar menções a tais peças entre os numerosos assentos
de pagamentos de Antonio Arrighi. Assim, a 10 de Janeiro de 1740, Arrighi fazia-se
pagar pela gravação das armas de Fonseca Évora em duas galhetas: Per avere intaglata
l’arma a due Ampolline (…)42. No seguinte mês de Junho, já o pagamento ficava a
dever-se à realização de (…) una Cantinetta d’arg.to per metervi le 4 Garaffe con aqua
e vino (...) cisellata alla Chinese (…)43. A menção à decoração “alla Chinese” corrobora
a possibilidade de correspondência entre a referência documental e o objecto, pois
trata-se do tipo de decoração que a caixa ostenta, decoração profusa filiforme incisa
(ou em muito baixo-relevo).
O conjunto de paramentos episcopais – de que ainda sobrevivem alguns exemplos
hoje nas colecções do Museu Nacional de Soares dos Reis – e alfaias pessoais de
D. Fr. José Maria da Fonseca Évora deveriam ser tão ricos e sumptuosos que, no
contexto da ausência de peças notáveis que caracterizou o pós-terramoto, (…) os
cónegos da Catedral de Lisboa procuraram obter alguns objectos litúrgicos do bispo do
Porto44. Testemunhos do gosto de Fonseca Évora para este tipo de peça são igualmente
os paramentos – ostentando as suas armas (enquanto franciscano e não enquanto
prelado) – existentes na igreja de Santo António dos Portugueses de Roma.

4. Brevíssimas considerações finais


Como tivemos ocasião de notar, D. Fr. José Maria da Fonseca Évora (1690-
1752) revela-se uma das mais relevantes figuras da primeira metade da centúria de
Setecentos para os interessados em temáticas tão diversificadas como sejam, desde
logo, a diplomacia joanina e o ambiente político-cultural da Roma pontifícia, a
aquisição e circulação de obras de arte italiana, o coleccionismo, os prelados do Porto
e a sua actuação pastoral e/ ou mecenática, etc. Todavia, na nossa apresentação,
abordámos tão-somente o papel desempenhado por Fonseca Évora na aquisição de
obras de arte italiana enquanto agente de D. João V – passo essencial para a sua
familiarização com o ambiente artístico romano da primeira metade do settecento –,
para seguidamente nos determos na construção da sua própria colecção, procurando
reconhecer estratégias e preferências desse frade franciscano que, por vontade do
Magnânimo, se viu feito embaixador de Portugal e bispo do Porto, diocese para onde
se empenhou em trazer as suas aquisições romanas. Esperamos assim ter contribuído
(ainda que modestamente) para a construção de um mais completo retrato desta
fascinante personalidade de Setecentos.

41 M.N.S.R., Inv. 22 Our. e Inv. 43 / 1 e 2 Our.


42 A.S.R., Ospizi, SS. Trinità de’Pellegrini, Busta 229, Int. 15, fl. 112v.
43 A.S.R., Ospizi, SS. Trinità de’Pellegrini, Busta 229, Int. 15, fl. 119.
44 CARDOSO, 2001: 136.
598 Teresa Leonor M. Vale

Figura n.º 1 – Fr. José Maria


da Fonseca Évora
Fonte: Biblioteca Nacional de Portu-
gal (Lisboa), Secção de Iconografia,
Colecção de Estampas, Série Preta n.º
153 ou Retratos de cardeaes, Bispos,
e Varoens Portuguezes Illustres em
Nobreza, Armas, Letras, e Santidade
coordenados nos Mezes de Abril e Maio
do Anno do Senhor, 1791, fl. 5.

Figura n.º 2 – Fr. José Maria


da Fonseca Évora com os
cardeais Neri Corsini, Mar-
cello Passeri, Antonio Saverio
Gentili, no acto de assinar
a concessão do cardinalato
à nunciatura de Lisboa (c.
1730-1733)
Fonte: Agostino Masucci (1692-
1758), atrib.; óleo sobre tela.
Biblioteca Nazionale Centrale Vittorio
Emmanuele II, Roma. Publicado por
SALDANHA, 1994: 67.
As encomendas de arte italiana de D. Fr. José Maria da Fonseca Évora (1690-1752) 599

Figura n.º 3
Busto de Fr. José Maria da Fonseca Évora
Fonte: Carlo Monaldi (1691-1760), atrib.; mármore.
Paço Ducal de Vila Viçosa (Inv. PDVV 1.161).

Figura n.º 4
Casula com as armas de Fr. José Maria da
Fonseca Évora – pormenor
Fonte: Roma, séc. XVIII; seda bordada. Igreja de Santo
António dos Portugueses, Roma.
600 Teresa Leonor M. Vale

Figura n.º 5
Retrato de D. Fr. José Maria da Fonseca
Évora, Bispo do Porto
Fonte: Autor desconhecido; óleo sobre tela. Paço
Episcopal, Porto. Publicado por RoCHA, 1992.

Figura n.º 6
Crossa de báculo
Fonte: Antonio Arrighi (1687-1776); prata fundida,
cinzelada e dourada. Museu Nacional de Soares dos
Reis, Porto (Inv. 32 our.).
As encomendas de arte italiana de D. Fr. José Maria da Fonseca Évora (1690-1752) 601

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Conclusões
Conclusões
IV Seminário Internacional Luso-Brasileiro
A Encomenda. O Artista. A Obra
(Bragança, 15-17 de Outubro de 2009)

O IV Seminário Internacional Luso-Brasileiro A Encomenda. O Artista. A Obra,


realizado em Bragança, dentro do espírito dos Seminários anteriores que tiveram
lugar no Porto, Salvador e Rio de Janeiro, veio provar mais uma vez a importância
da periodicidade destes eventos, permitindo o intercâmbio de experiências a nível
da pesquisa científica levada a cabo pelos investigadores portugueses e brasileiros
e, a partir de agora, também por espanhóis, permitindo-nos ter uma visão cada vez
mais concreta do que foi o legado artístico deixado pelos Portugueses. Por outro
lado, devemos referir que todo este trabalho tem vindo a ser incrementado graças
à existência de protocolos de cooperação científica assinados entre o CEPESE e
diversas instituições brasileiras e espanholas (Universidades Federais da Bahia e do
Rio de Janeiro, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Universidad de
Santiago de Compostela e Universidad de Extremadura).
Como conclusões do Seminário, uma vez terminados os trabalhos, podemos
apontar as seguintes:
O Seminário contou com trinta e quatro comunicações, três das quais apresentadas
por colegas espanhóis (Universidades de Santiago de Compostela, da Extremadura e
La Laguna-Tenerife) convidados a participar no encontro científico; as restantes trinta
e uma foram da autoria de membros do Grupo de Investigação de Arte e Património
Cultural no Norte de Portugal, bem como dos seis colegas brasileiros que colaboram
connosco no âmbito da investigação da História da Arte Luso-Brasileira.
As comunicações apresentadas revelaram uma excelente qualidade, como se pode
comprovar pelos trabalhos agora publicados, constituindo uma prova evidente da
importância da produção que tem vindo a ser produzida pelo nosso grupo, apresentada
periodicamente à comunidade científica.
Foram plenamente atingidos os objectivos que havíamos traçado para o nosso
Seminário, sendo analisadas das formas mais diversas os três vectores escolhidos
como temática central – A Encomenda. O Artista. A Obra – comprovando-se a sua
importância e abrindo-se novas pistas de pesquisa.
Foi feito o balanço do trabalho da equipa durante o ano de 2009, referindo-se o
aumento da produtividade individual e colectiva, e a subida de patamar de exigência.
Os trabalhos foram encerrados com a apresentação da segunda fase do banco de
dados a ser desenvolvida no ano de 2010 e que será decisiva para um conhecimento
mais alargado dos artistas e dos artífices activos no Mundo de Expressão Portuguesa.
Como apontamento final, os Congressistas manifestaram o seu apoio à proposta de
candidatura conjunta de Bragança e Zamora, no domínio do Património Histórico-
Cultural, a Património da Humanidade, face à importância da preservação da riqueza
patrimonial da região.
606 Conclusões

Conclusions
IV Internacional Luso-Brazilian Seminar
The Order. The Artist. The Work
(Bragança, 15-17 october 2009)

The IV International Seminar Luso-Brazilian The Order. The Artist. The Work,
performed in Bragança, and following the spirit of the previous Seminars of Porto,
Salvador and Rio de Janeiro, proved again the importance of the regular frequency
of these events, allowing the interchanges of Portuguese and Brazilian (and from now
on also from Spanish) scientific researchers’ experiences, giving us a more concrete
vision of the meaning of the Portuguese artistic legacy.
on the other hand, we must also point out that all this work could be developed
due to the protocols of scientific cooperation signed with some Brazilian and Spanish
universities (Federal universities of the Bahia and Rio de Janeiro, Pontifical university
Catholic of Rio de Janeiro, universidad of Santiago de Compostela and universidad
de Extremadura).
As conclusions of the Seminar, once the scientific sessions were over, we can
mention the following ones:
During the Seminar thirty-four communications were presented, three of them by
Spanish colleagues (university of Santiago de Compostela, of the Extremadura and
La Laguna-Tenerife) our guests in the scientific meeting; the other thirty-one were
presented by members of the the Group of Art and Cultural Heritage in the North of
Portugal, including those of the six Brazilian colleagues who have been collaborating
with us in the Luso-Brazilian History of the Art research field.
We could verify the quality of the communications, as it is proved now in the
published proceedings, being an obvious evidence of our Group’s production value,
presented periodically to the scientific community.
All the expected goals for our Seminar were accomplished, and the three main
subjects The Order. The Artist. The Work were analyzed in several interesting ways,
proving how important they are and leading to new research fields.
A final checking of the team’s work during the year of 2009 was done, being
mentioned the increasing of individual and collective productivity, and was also
pointed out the established exigence level for 2010.
The works were finished with the presentation of the second phase of the data
base to be developed in the year of 2010 and which will be a most important step for
a better knowledge of artists and artisan’s activity in the Portuguese Speaking World.
As a final note, the Congressmen made public their support to the joint proposal
of candidature of Bragança and zamora, in the domain of the Cultural Heritage,
to the World Heritage, due to the importance of the preservation of the culture of
this geographical region.
Sobre os autores
Sobre os Autores

Alberto Darias Príncipe


·· Licenciado em Filosofia e Letras pela Universidade de la Laguna.
·· Doutorado em História da Arte pela Universidade de la Laguna.
·· Professor Catedrático na Universidade de la Laguna.

Ana Margarida Portela Domingues


·· Licenciada em Conservação e Restauro – vertente de Tecnologia em Materiais Pétreos
pelo Instituto Politécnico de Tomar.
·· Mestre em História da Arte em Portugal pela Faculdade de Letras da Universidade do
Porto.
·· Doutorada em História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
·· Investigadora do CEPESE.

Anna Maria Monteiro de Carvalho


·· Licenciada em Letras Português-Francês pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro (1971-1975).
·· Mestre em Artes Visuais-História e Crítica de Arte pela Escola de Belas Artes da
Universidade Federal do Rio de Janeiro - EBA/UFRJ (1985-1988).
·· Doutorada em História da Arte pela Faculdade de Letras de Coimbra.
·· Professora do Curso de Pós-Graduação em História da Arte e Arquitectura pelo Depar-
tamento de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
·· Colaboradora do CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade.

António Manuel Vilarinho Mourato


·· Licenciado em Artes Plásticas Pintura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade
do Porto.
·· Mestre em História da Arte em Portugal pela Faculdade de Letras da Universidade do
·· Porto.
·· Doutorado em História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
·· Professor do ensino secundário na Escola Secundária da Maia.
·· Investigador do CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade.
610 Sobre os Autores

António José de Oliveira


·· Licenciado em Ciências Históricas, ramo científico, pela Universidade Portucalense.
·· Mestre em História e Cultura Medievais, pela Universidade do Minho.
·· Doutorando em História de Arte, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
·· Vice-Presidente do Conselho Executivo do Agrupamento de Escolas Arqueólogo Mário
·· Cardoso.
·· Investigador do CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade.

Carla Sofia Ferreira Queirós


·· Licenciada em História, variante Arte, pela Faculdade de Letras da Universidade do
·· Porto.
·· Mestre em História da Arte em Portugal pela Faculdade de Letras da Universidade do
·· Porto.
·· Doutorada em História de Arte, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
·· Investigadora do CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade.

Cybele Vidal N. Fernandes


·· Licenciada em Desenho e Artes Plásticas pela Escola de Belas-Artes da Universidade
Federal do Rio de Janeiro.
·· Mestre em Artes Visuais pela Escola de Belas-Artes da Universidade Federal do Rio
de Janeiro.
·· Doutorada em História Social da Cultura pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
·· Professora titular da Escola de Belas-Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ).
·· Colaboradora do CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade.

Diana Gonçalves dos Santos


·· Licenciada em História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
·· Mestre em História da Arte em Portugal pela Faculdade de Letras da Universidade do
Porto.
·· Doutoranda em História da Arte Portuguesa na Faculdade de Letras da Universidade
do Porto.
·· Bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia.
·· Investigadora do CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade.

Eugênio de Ávila Lins


·· Licenciado em Arquitectura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia.
·· Doutorado em História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
·· Professor Adjunto IV da Faculdade de Arquitectura da Universidade Federal da Bahia.
·· Pró-Reitor de Extensão da Universidade Federal da Bahia.
·· Colaborador do CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade.
Sobre os Autores 611

Eva Sofia Trindade Dias


·· Licenciada em História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
·· Mestranda em História da Arte Portuguesa na Faculdade de Letras da Universidade
do Porto.
·· Investigadora do CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade.

Joaquim Jaime B. Ferreira-Alves


·· Licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
·· Doutorado em História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
·· Professor Catedrático da Universidade do Porto.
·· Investigador do CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade.

José Carlos Meneses Rodrigues


·· Licenciado em História, variante Arte, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
·· Mestre em História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
·· Doutorado em História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
·· Docente no Instituto de Estudos Superiores de Fafe.
·· Investigador do CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade.

José Francisco Ferreira Queiroz


·· Licenciado pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
·· Mestre pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
·· Doutor em História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
·· Docente do Mestrado Integrado em Arquitectura da Escola Superior Artística do Porto.
·· Investigador do CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade.

Juan M. Monterroso Montero


·· Licenciado en Geografía e Historia, Sección de Historia del Arte pela Universidad de
Santiago de Compostela.
·· Doctor en Geografía e Historia, Sección de Historia del Arte pela Universidad de
Santiago de Compostela.
·· Profesor titular de la Universidad de Santiago de Compostela.
·· Decano de la Facultad de Geografía e Historia de la Universidad de Santiago de Compostela.

Lúcia Maria Cardoso Rosas


·· Licenciada em História, variante Arte, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
·· Pós-graduação em História da Arte pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa.
·· Doutorada em História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
·· Professora Associada do Departamento de Ciências e Técnicas do Património da Faculdade
de Letras da Universidade do Porto.
·· Investigadora do CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade.
612 Sobre os Autores

Luís Alberto Casimiro


·· Licenciado em Artes Plásticas-Pintura, pela Faculdade de Belas Artes da Universidade
do Porto.
·· Doutorado em História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
·· Professor auxiliar convidado na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
·· Investigador do CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade.

Luís Alexandre Rodrigues


·· Licenciado em História, variante Arte, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
·· Mestre em História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
·· Doutorado em História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
·· Professor na Escola Secundária Abade de Baçal, Bragança.
·· Investigador do CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade.

Manuel Engrácia Antunes


·· Licenciado em História, variante Arte, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
·· Mestre em História de Arte em Portugal pela Faculdade de Letras da Universidade do
Porto.
·· Doutorado em História de Arte pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
·· Conservador de museus da Câmara Municipal do Porto.
·· Investigador do CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade.

Manuel Joaquim Moreira da Rocha


·· Licenciado em Ciências Históricas pela Universidade Portucalense Infante D. Henrique.
·· Mestre em História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
·· Doutorado em História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
·· Professor Auxiliar do Departamento de Ciências e Técnicas do Património da Faculdade
de Letras da Universidade do Porto.
·· Investigador do CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade.

Marcelo Almeida Oliveira


·· Licenciado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Minas Gerais.
·· Especialista em Percepção Ambiental e Espaço Urbano pela Universidade Federal de
Minas Gerais.
·· Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia.
·· Doutor em Artes e Técnicas da Paisagem pela Universidade de Évora.
·· Analista Ambiental do Instituto Estadual de Florestas de Minas Gerais – IEF/MG.
·· Colaborador do CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade.
Sobre os Autores 613

Maria Berthilde Moura Filha


·· Licenciada em Arquitectura e Urbanismo pela Universidade Federal da Paraíba.
·· Doutorada em História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
·· Professora Adjunta do Departamento de Arquitectura da Universidade Federal da Paraíba.
·· Colaboradora do CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade.

Maria de Fátima Eusébio


·· Licenciada em História (variante História da Arte) pela Faculdade de Letras da Uni-
versidade de Coimbra.
·· Mestre em História da Arte em Portugal na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
·· Doutorada em História da Arte em Portugal na Faculdade de Letras da Universidade
do Porto.
·· Coordenadora do Departamento dos Bens Culturais da Diocese de Viseu.

Maria del Mar Lozano Bartolozzi


·· Doctora en Historia del Arte por la Universidad Complutense de Madrid.
·· Catedrática de Historia del Arte de la Universidad de Extremadura.
·· Ha sido 9 años Directora del Departamento de Historia del Arte de la Universidad de
Extremadura y 8 años Directora científica del Consorcio de la Ciudad Monumental
Histórico-Artística y Arqueológica de Mérida.
·· Es directora de la Revista científica Norba-Arte de la Universidad de Extremadura.

Maria do Carmo Marques Pires


·· Licenciada em História, variante Arte, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
·· Mestre em História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
·· Doutoranda em História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
·· Professora Titular na Escola E.B. 2/3 de Valbom.
·· Investigadora do CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade.

Maria José Goulão


·· Licenciada em História-Variante de História da Arte pela Universidade de Coimbra.
·· Doutorada em História da Arte pela Universidade de Coimbra.
·· Professora Auxiliar da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto.

Natália Marinho Ferreira-Alves


·· Licenciada em História pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
·· Doutorada em História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
·· Professora Catedrática da Universidade do Porto.
·· Investigadora do CEPESE
·· Coordenadora do grupo de investigação “Arte e Património Cultural no Norte de Portugal”.
614 Sobre os Autores

Paula Bessa
·· Licenciada em História, variante de Arte e Arqueologia, pela Faculdade de Letras da
Universidade do Porto.
·· Master of Arts in Historical Research, pela Universidade de Lancaster, Inglaterra (a este
mestrado foi atribuída, posteriormente, equivalência ao grau de Mestre em História da
Arte pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto).
·· Doutorada em História, área do conhecimento de História da Arte, pelo Instituto de
Ciências Sociais da Universidade do Minho.
·· Professora Auxiliar na Universidade do Minho.
·· Colaboradora do CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade.

Paula Cristina Machado Cardona


·· Licenciada em História, variante Arte, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
·· Pós-graduação em Assuntos Culturais no Âmbito das Autarquias, pela Faculdade de
Letras da Universidade de Coimbra.
·· Mestre em História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
·· Doutorada em História de Arte pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
·· Especializada em Marketing Turístico pelo Instituto de Planeamento e Desenvolvimento
do Turismo.
·· Técnica Superior Assessora de Turismo da Câmara Municipal do Porto.
·· Investigadora do CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade.

Regina Anacleto
·· Licenciada em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
·· Provas de capacidade científica e aptidão pedagógica prestadas na Faculdade de Letras
da Universidade de Coimbra.
·· Doutorada em Letras, especialidade de História da Arte, pela Universidade de Coimbra.
·· Professora jubilada da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
·· Investigadora do CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade.

Sofia Nunes Vechina


·· Licenciada em História da Arte, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
·· Mestranda em História da Arte Portuguesa, na Faculdade de Letras da Universidade
do Porto.
·· Investigadora e inventariante do património religioso do concelho de Ovar.
·· Investigadora do CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade.

Sonia Gomes Pereira


·· Bacharel em Museologia pelo Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro.
·· Mestre em História da Arte pela Universidade da Pennsylvania (Philadelfia – Estados
Unidos da América).
·· Doutorada em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da Universidade
Federal do Rio de Janeiro.
·· Pós-doutorada no Centre de Recherches sur le Patrimoine Français (CNRS), França.
Sobre os Autores 615

·· Professora titular da Escola de Belas-Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro.


·· Colaboradora do CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade.

Susana Matos Abreu


·· Licenciada em Arquitectura pela Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto.
·· Mestre em História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
·· Doutoranda em História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
·· Bolseira de investigação pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia.
·· Investigadora do CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade.

Teresa Leonor M. Vale


·· Licenciada em História, variante de História da Arte na Faculdade de Letras da Uni-
versidade de Lisboa.
·· Mestre em História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
·· Doutorada em História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
·· Tem em curso um projecto de investigação intitulado Ourives e Escultores. A ourivesaria
barroca italiana em Portugal – acervo, contexto e processos de importação, no âmbito do
programa de bolsas de pós-doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia.
·· Colaboradora do CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade.
Resumos/Abstracts
Alberto Darias Príncipe
Artistas portugueses en las Islas Canarias

Resumo
Si Castilla consiguió acordar con Portugal la incorporación a su corona del reino de
Canarias a finales del siglo XV, la presencia e influencia portuguesa en el Archipiélago
siguió pujante hasta bien entrado el siglo XVIII. Islas, como La Gomera que fue en
parte poblada por campesinos de Madeira, así como otras lo fueron de marineros de
Los Algarves. En general, aún hoy, modismos lingüísticos, tradiciones etnográficas
o folklore confirieron a este territorio una identidad especial cuyos vestigios siguen
presentes en nuestros días.
Castilla intentó frenar la inmigración con un férreo control que muchos portu-
gueses burlaron hispanizando sus apellidos o sencillamente cambiándolos. Por eso
hoy resulta tan difícil localizar a una buena parte de artistas que se afincaron en las
Canarias. Sin embargo, los portuguesismos en el arte de las Islas se suceden a pesar
del anonimato, captándose por las peculiaridades que diferencian este lugar del resto
del territorio nacional dentro del desarrollo y evolución del gusto artístico.
Desde el primer constructor de la catedral de Las Palmas a la introducción de
los techos portugueses, pasando por las custodias de tembladera en la orfebrería, la
presencia lusitana es irrefutable, dándose incluso el fenómeno de artistas españoles
que maduraron su estilo en Portugal y terminaron aportando maneras de hacer de
nuestros vecinos. Por ello resulta imprescindible dar a conocer a aquellos artistas
que dejaron no sólo su arte, sino también su nombre en las Historia del Arte isleño.

Portuguese artists in the Canary Islands


Abstract
If Castilla and Portugal got to agree with the incorporation into the Spanish crown of the
Canary Islands in the late fifteenth century, the Portuguese presence and its influence in the
archipelago remained strong well into the eighteenth century. The island of La Gomera, for
instance, was in part populated by peasants from Madeira, and other islands were populated
by sailors from Algarve. In general, even today, linguistic specificities, ethnographic traditions
and folklore bestow this land a special identity whose traces are still present.
620 Resumos/Abstracts

Castilla tried to stop immigration with an iron grip that many Portuguese avoided by
“Hispanicizing” their names or simply changing them. That is why today is so difficult to
locate many of the artists who settled in the Canaries. However, the Portuguese presence
in the arts of the islands is visible despite that anonymity, related with the peculiarities that
distinguish this place from the rest of the country regarding the development and evolution
of the artistic taste.
From the first builder of the cathedral of Las Palmas to the introduction of Portuguese
roofs, the presence of Portugal is irrefutable, including the phenomenon of Spanish artists
who perfected their style in Portugal, and ended up “importing” methods from the neighbor
country. It is therefore essential to divulge those artists who left not only their art but also
their name in the Canary History of Art.

Ana Margarida Portela Domingues


A ornamentação cerâmica da Casa do Chão Verde

Resumo
A Casa do Chão Verde, em Rio Tinto (arredores do Porto) foi a habitação dos
últimos anos de vida do extravagante António Lourenço Correia. Apesar de ter sido já
referida, mais do que uma vez, como uma espécie de protótipo da “casa de brasileiro”
no norte de Portugal, demonstramos aqui como a ornamentação cerâmica desta casa,
em concreto, tanto encaixa como entra em contradição com esse estereótipo. Na
verdade, as sucessivas encomendas propositadas e aquisições em depósito de artefactos
cerâmicos, entre cerca de 1860 e cerca de 1875, tiveram como resultado uma casa
e jardins com certas características únicas, as quais escapam a qualquer estereótipo.

Ceramic decoration at the Casa do Chão Verde


Abstract
In the Chão Verde manor house (located in Rio Tinto, in the outskirts of Porto) the
extravagant tradesman António Lourenço Correia spent the last years of his life. Despite
being quoted, more than once, as almost a prototype of the so-called “casa de brasileiro”
(house of an emigrant returned from Brazil) in northern Portugal, the architectural ceramics
of this house simultaneously fits and contradicts the stereotype. In fact, successive purchases
of ceramic artifacts, between c. 1860 and c. 1875, as a result, conferred to the Chão Verde
manor house and its gardens unique features that don’t fit into any stereotype.
Resumos/Abstracts 621

Anna Maria Monteiro de Carvalho


Manuel Dias de Oliveira e a pintura oficial da Corte no Brasil

Resumo
Em 1800, o pintor fluminense Manuel Dias de Oliveira (1763-1837) foi nomeado
professor régio da Escola Pública de Desenho e Gravura pelo príncipe regente
D. João, que oficializava assim o ensino artístico no Brasil.
Este trabalho trata de sua obra em seu aspecto mais relevante – a pintura oficial
– uma vez que ele foi um dos artistas prestigiados pela Família Real durante os treze
anos em que ela permaneceu nos trópicos (1808 a 1821).
Abordando o fenômeno artístico do ponto de vista da História da Arte e da
Cultura, o trabalho detém-se, em particular, nos gêneros pictóricos “Retrato” e
“Alegoria”, privilegiados pelo artista e que favoreciam a encomenda pública, através
da análise de três seus de quadros: “Retrato de D. João e D. Carlota Joaquina” (1815);
“Alegoria de Nossa Senhora da Conceição” (1818); “Alegoria do Nascimento de D.
Maria da Glória” (1819).
Estes exemplares mostram igualmente as influências dos novos valores estéticos
gerados pelo ideário do século XVIII em seu período de transição para o XIX – o
Rococó e o Neoclássico – vivenciadas pelo artista em seu aprendizado em Portugal
e em Roma, e o seu entendimento possível desses conceitos de “modernidade” no
âmbito cultural luso-brasileiro.

Manuel Dias de Oliveira and the official painting of the Brazilian court
Abstract
In 1800, Rio de Janeiro’s painter Manuel Dias de Oliveira (1763-1837) was appointed
Regius Professor at the Public School of Design and Engraving by the Prince Regent João,
therefore granting an official character to artistic education in Brazil.
This work deals with most the relevant aspect of his work – the official painting – since
he was one of the most prestigious artists by the Royal Family during the thirteen years that
it remained in Brazil (1808-1821).
Addressing the artistic phenomenon from point of view of Art and Culture History,
this work focuses particularly in the pictorial genres known as “Portrait” and “Allegory”,
privileged by this artist that favored public order, by analyzing three of his paintings: “Portrait
of D. João and D. Carlota Joaquina” (1815); “Allegory of the Immaculate Conception”
(1818); and “Allegory of the Birth of D. Maria da Glória” (1819).
These examples also show the influences of the new aesthetic values generated by the
ideals of the eighteenth century in its transition period for the nineteenth century – the
Rococo and the Neoclassical – experienced by the artist in his learning in Portugal and in
Rome, and his possible understanding of these concepts of “modernity” in the Portuguese-
Brazilian cultural scope.
622 Resumos/Abstracts

António Manuel Vilarinho Mourato


Flores do silêncio (um esboço da actividade artística do pintor António José da Costa)

Resumo
António José da Costa nasceu no Porto, em Cedofeita, a 9 de Fevereiro de 1840.
Frequentou a Academia Portuense de Belas-Artes, sendo discípulo de João António
Correia e Francisco José Resende. Obteve grande sucesso como pintor de flores, mas
dedicou-se também ao retrato e à pintura religiosa. Participou em várias exposições,
nomeadamente nas promovidas pela Academia Portuense de Belas-Artes, Grémio
Artístico e Sociedade Nacional de Belas-Artes. Foi professor particular de grandes
nomes da pintura portuense, como Henrique Pousão, Marques de Oliveira e Artur
Loureiro. Faleceu no Porto, a 13 de Agosto de 1929.

Flowers of silence (a sketch of the artistic activity of António José da Costa)


Abstract
António José da Costa was born in Porto, in Cedofeita, the February 9th, 1840. He
attended the Porto Academy of Fine Arts, being a disciple of João António Correia and
Francisco José Resende. He attained a great success as a flower painter, but he also dedicated
himself to portrait and religious painting. He participated in several exhibitions, namely those
promoted by the Porto Academy of Fine Arts, the Art Guild and the National Society of
Fine Arts. António José da Costa was a tutor of Porto’s great painters, such as Henrique
Pousão, Marques de Oliveira and Artur Loureiro. He died in Porto on August 13th, 1929.

António José de Oliveira


O órgão de tubos da Igreja da Misericórdia de Guimarães (1775)

Resumo
Nesta comunicação realçamos o espírito empreendedor e a robustez económica da
Misericórdia de Guimarães, como motor para o vasto programa de obras incrementadas
no seu templo. Neste contexto de empreitadas, apresentamos a construção do órgão
de tubos da Igreja da Misericórdia de Guimarães. Através de três contratos de obra,
existentes nos livros de notas da Misericórdia vimaranense, podemos constatar que o
órgão de tubos é o resultado de um trabalho conjunto de três artistas: Dom Francisco
António Solha, mestre organista, morador na rua da Fonte Nova, extramuros de
Guimarães; e dos mestres entalhadores António da Cunha Correia Vale morador
na rua dos Palheiros (Guimarães) e Manuel Fernandes Novais, da freguesia de São
Miguel de Entre-as-Aves (actual concelho Vila Nova de Famalicão). Os mestres
entalhadores comprometiam-se a construir a caixa, bacia e varandas do órgão de
tubos, enquanto que ao organista competia-lhe a feitura do conjunto organológico,
este último formado pelos foles, sistema mecânico e tubaria.
Resumos/Abstracts 623

The pipe organ of the Misericórdia of Guimarães’ Church (1775)


Abstract
In this work we emphasize the active spirit and the economic strength of the Misericórdia
of Guimarães, which enabled the vast program of works carried out in its temple. In this
context of contracts, we present the construction of the pipe organ of the Church of the
Misericórdia of Guimarães. By analyzing three work contracts found on the notebooks of
the Misericórdia of Guimarães, we can see that the pipe organ is the result of a joint work
of three artists: Francisco António Solha, master organist, who lived on the Fonte Nova
street, in Guimarães; and the master carvers António da Cunha Correia Vale, resident
on Palheiros street (Guimarães) and Manuel Fernandes Novais, from the parish of São
Miguel de Entre-as-Aves (currently in the municipality of Vila Nova de Famalicão). The
master carvers were responsible for building the box, bowl and balconies of the pipe organ,
while the organist was responsible for all the organological set, including the pipe system.

Carla Sofia Ferreira Queirós


Francisco Rebelo: um artista beirão ao serviço da Diocese de Lamego

Resumo
No âmbito da mobilidade dos artistas e, mais concretamente, no que diz respeito
à Diocese de Lamego, destacamos o nome de Francisco Rebelo, mestre imaginário
e escultor residente em Tarouca e, mais tarde, em Lamego e que ao que tudo indica
seria natural da região. Responsável por um grande número de obras, durante a
primeira metade do século XVIII, Francisco Rebelo integra-se naquela que conside-
ramos ser a segunda vaga de mobilidade artística: no seio do próprio Bispado e que
se caracteriza por artistas originários das diversas zonas da diocese lamecense, mas
que salvo raríssimas excepções, se encarregam de arrematar obras num raio muito
próximo da sua área de residência.

Francisco Rebelo: an artist from Beira at the service of Lamego diocese


Abstract
Considering the mobility of artists, namely in the Diocese of Lamego, we want to draw
attention to Francisco Rebelo, a master sculptor whom we believe came from this region,
and who lived in Tarouca and later in Lamego. Francisco Rebelo was the author of a
considerable number of pieces dated from the first half of the 18th century, and is included
in the second mobility wave. This group is characterised for having local artists, who came
from the different areas of the diocese of Lamego and worked, with a few exceptions, mainly
within their place of residence.
624 Resumos/Abstracts

Cybele Vidal N. Fernandes


O complexo caminho: da encomenda à obra realizada. Uma casa nobre no Rio de
Janeiro

Resumo
O tema dessa comunicação volta-se para um projeto de importância relevante,
uma casa nobre na região de São Cristóvão, encomendada pelo Imperador D. Pedro
I a seu arquiteto particular. Coube ao arquiteto Pierre Joseph Pézerat, formado pela
Escola Politécnica de Paris, o projeto arquitetônico e a construção do edifício, a
Pedro Alexandre Cravoé, português que ocupava o cargo de Arquiteto das Obras
Nacionais e Imperiais a Pedro Alexandre Cravoé. A decoração ficou a cargo dos
escultores franceses Marc e Zepherin Ferrez, e do pintor nacional Francisco Pedro do
Amaral. Antes de mais nada, fica claro que a escolha desses profissionais foi muito
cuidadosa, baseada na formação segura desses profissionais e na capacidade de boa
execução da obra, como convinha, dada a finalidade do projeto.
Pretendemos discutir o resultado da ação desses profissionais nas diferentes
etapas da execução da obra, procurando entender, em especial, se o produto final
correspondeu ao impulso primordial de sua realização. A partir do traçado arquite-
tônico primordial, considerar as possíveis intervenções do construtor no projeto e
refletir sobre os elementos de modificação desse espaço construído, considerando as
intervenções ocorridas ainda quanto à escultura e pintura aplicadas.

The complex path: from the order to the performed work. A nobleman’s house in
Rio de Janeiro
Abstract
The issue of this communication refers to a relevant Project, a noble house in the São
Cristóvão region, ordered by Emperor D. Pedro I to his particular architect. The architect
Pierre Joseph Pézerat, formed by the Polytechnic School of Paris, was responsible by the
project, Pedro Alexandre Cravoé; and a Portuguese citizen, the National and Imperial
Architect, was in charge for the building construction. The decorating was under the
responsibility of the French sculptors Marc and Zepherin Ferrez and the Brazilian painter
Francisco Pedro do Amaral. First of all, it is clear that the professionals choice has been
very careful, based on the strong ability of these professionals and the capacity to carry out
the construction, as required, according to the project ends.
We discuss the results of these professionals’ actions, in the different stages of the cons-
truction, trying to understand if the final product met the requirements of the initial goals.
Based on main architectonic layout, we consider the possible interventions of the constructor
on the project and reflect about the elements of change of that constructed space, besides
considering the interventions occurred regarding sculpture and painting.
Resumos/Abstracts 625

Diana Gonçalves dos Santos


Azulejaria tardobarroca dos colégios das Ordens Religiosas de Coimbra. Circunstâncias
de encomenda e de produção artística

Resumo
No conjunto dos colégios universitários das Ordens Religiosas da cidade de
Coimbra – importante núcleo arquitectónico de características únicas e muito
representativo para a definição da identidade da cidade do Mondego – destaca-se
um património azulejar de extrema importância para a compreensão global dessas
edificações enquanto exemplares de uma tipologia arquitectónica muito concreta, o
qual é também fundamental para a caracterização da produção coimbrã de cerâmica
de revestimento.
Para a 2.ª metade do século XVIII verifica-se, em seis dos colégios universitários
com azulejaria in situ, uma unidade estilística e formal muito evidente em alguns dos
seus revestimentos cerâmicos, constatando-se uma preferência dada pela clientela
local às realizações das olarias da cidade em detrimento de espécimes manufacturados
em outros centros de produção nacionais, nomeadamente Lisboa. A explanação
destas situações – devidamente enquadradas, com achegas sobre as circunstâncias de
encomenda e dados sobre a produção artística desses exemplares de azulejo – será o
principal objectivo deste artigo, colocando-se a tónica nas principais características
dos núcleos azulejares enquadrados na estética do Barroco e do TardoBarroco.

Late Baroque tiling at the colleges of the religious orders of Coimbra. Ordering and
artistic production circumstances
Abstract
In the group of the Religious Orders’ university schools in Coimbra – important architectonic
core with unique characteristics and very representative to the definition of the identity of
that city – stands out a tile work heritage extremely relevant to the global comprehension
of those edifications understood as models of a very specific architectonic typology, which
is also fundamental to the definition of the local's tile work ceramics.
In the second half of the eighteenth century, we can identify in six of the university
schools with tile works in situ, a clear formal and stylistic unity in those ceramics coverings
that reveal a notorious preference given by the local patronage to the potteries workshops
of Coimbra in spite of other national manufactures like Lisbon. The explanation of those
situations – clearly contextualized with information about the circumstances of the order
and other aspects of the artistic production of those tile works – will be the aim of this
article focused on the main characteristics of the tile cores of the Portuguese Baroque and
Late Baroque.
626 Resumos/Abstracts

Eugênio de Ávila Lins


Encomendas artísticas para a Igreja Matriz do Santíssimo Sacramento e Sant’Ana
de Salvador durante o século XVIII

Resumo
A Paróquia do Santíssimo Sacramento e Sant’Ana instituída em 1679 na cidade de
Salvador se estabeleceu primeiramente na igreja de Nossa Senhora do Desterro que servia
tanto à freguesia como ao convento de Santa Clara do Desterro, fundado em 1671. Esta
situação perdurou até a primeira metade do século XVIII quando, em 1744, a Irmandade
do Santíssimo, através do “Termo de Resolução”, decide construir uma nova Matriz.
O risco da nova igreja foi examinado pela Irmandade em sessão realizada em
agosto de 1746. O novo templo Paroquial teve o titulo do Santíssimo Sacramento
e a proteção de Senhora Sant’Ana, sendo lançada a pedra fundamental em 18 de
outubro de 1746.
Durante o primeiro período das obras, 1746 a 1760, destacam-se três encomendas
feitas pela Irmandade do Santíssimo Sacramento e Sant’Ana a artistas e artífices: a
“cantaria lisa”, para molduras, lajeados e portas; o retábulo da Capela Mor para o
Santíssimo Sacramento (quando este fosse transladado para o novo templo) e para
a imagem de Senhora Sant’Ana; e o risco e execução do frontispício da igreja.
Nas três encomendas referidas estão explícitas as formas de contratação dos
serviços que de uma maneira geral abrangem a escolha do profissional responsável
e as regras para garantir execução, prazos, e a qualidade dos serviços executados.

Artistic orders for the Church of Santíssimo Sacramento e Sant’Ana of Salvador


during the eighteenth century
Abstract
The Parish of Santíssimo Sacramento e Sant’Ana, established in 1679 in the city of
Salvador was first established in the Church of Nossa Senhora do Desterro that served both
the parish and the convent of Santa Clara do Desterro, founded in 1671. This situation
continued until the first half of the eighteenth century when, in 1744, the Brotherhood of
Santíssimo, through the “Statement of Resolution”, decided to build a new Mother Church.
The design of the new church was examined by the Brotherhood at its meeting in
August 1746. The new parish church was granted the title of the Blessed Sacrament and
the protection of Saint Anne, and the foundation stone was laid on October 18, 1746.
During the first period of construction, from 1746 to 1760, we highlight three orders
made by the Brotherhood of the Blessed Sacrament and St. Anne to artists and arti-
sans: the “smooth stone” for frames, doors and paved surfaces; the altarpiece in the
chancel for the Blessed Sacrament (when it was relocated to the new temple) and for
the image of Saint Anne; and the design and execution of the frontispiece of the church.
In these three orders we find forms of recruiting services that generally include the choice
of the responsible professional and the rules to ensure the execution, delivery deadlines and
the quality of the services performed.
Resumos/Abstracts 627

Eva Sofia Trindade Dias


A obra de Frei José de Santo António Ferreira Vilaça na igreja do antigo Mosteiro
do Couto de Cucujães

Resumo
O antigo mosteiro beneditino de São Martinho do Couto de Cucujães, situado
no concelho e comarca de Oliveira de Azeméis, fundado no século XII, conheceu
profundas obras de transformação a partir da primeira metade do século XVII, que se
estenderam até ao século XIX. É neste contexto que se insere a obra de Frei José de
Santo António Ferreira Vilaça, monge artista que permaneceu no mosteiro, como ele
próprio aponta no Livro de Rezam, entre 1792 e 1796. Este monge beneditino constituiu
uma figura marcante no quadro da segunda metade do século XVIII bracarense e,
enquanto irmão donato, desenvolveu a sua obra em diversos mosteiros da Ordem,
sobretudo no domínio da talha e escultura em madeira. As suas realizações podem
ser enquadradas em três estilos distintos e apresentam nítidas influências da obra de
André Soares e dos códigos estéticos do rocaille, introduzidos em Portugal através
das estampas decorativas avulsas, Registos de Santos e da tratadística.
Para a igreja do antigo cenóbio cucujanense, Frei Vilaça riscou dois retábulos
colaterais, concluídos no triénio de 1783-1786 e dourados no triénio de 1792-1795.
Realiza ainda a monumental sanefa do arco cruzeiro, concebida no triénio de 1792-
1795, pintada e dourada no triénio de 1795-1798 que, juntamente com os retábulos
colaterais, insere-se no terceiro estilo desenvolvido pelo artista. Para o exterior do
mosteiro, Frei Vilaça riscou a fachada principal, iniciada no triénio de 1792-1795 e
concluída no triénio de 1795-1798. Estas obras constituem um conjunto que apre-
senta influências dos tratados que o monge artista possuía na sua biblioteca pessoal,
sobretudo os de Charles-Augustin Aviler e Andrea Pozzo, e das estampas avulsas
com motivos Rococó, nomeadamente as oriundas de Augsburgo.
Estes factos permitem concluir que, apesar da situação ‘periférica’ do antigo Mosteiro
de São Martinho do Couto de Cucujães, quando comparado com a localização de
outros mosteiros e igrejas onde Frei José de Santo António Ferreira Vilaça laborou,
as obras deste monge artista que ele encerra, materializam a base erudita que está
por trás da sua concepção e o génio artístico do seu autor.

The work of Frei José de Santo António Ferreira Vilaça in the church of the monastery
of Couto de Cucujães

Abstract
The Benedictine monastery of São Martinho do Couto de Cucujães, located in the
municipality of Oliveira de Azeméis, founded in the twelfth century, undergone profound
transformation works from the first half of the seventeenth century to the nineteenth century.
It is in this context that the work of Frei José de Santo António Ferreira Vilaça, an artist
monk who remained in the monastery, takes place, as he himself points out in the Livro de
628 Resumos/Abstracts

Rezam, between 1792 and 1796. This Benedictine monk was a remarkable figure in the
second half of the eighteenth century, when he, as a donato brother, developed his work
in various monasteries of the Order, especially in the field of wood carving and sculpture.
His achievements can be grouped into three distinct styles and show clear influences of the
work of André Soares and aesthetic codes of rocaille introduced in Portugal through several
decorative prints, “saints records” and treatises.
For the former monastery church of Cucujães, Frei Vilaça designed two side altars,
completed in three years, from 1783 to 1786, and gilded from 1792 to 1795. He also
carried out the monumental arch of the crosspiece, conceived during 1792-1795, painted
and gilded on three-year period 1795-1798, together with the side altars, is part of the
third style developed by the artist. Regarding the outside of the monastery, Frei Vilaça
designed the main façade, initiated in 1792-1795 and completed in 1795-1798. These
works constitute a set that present influences of the treaties that the artist monk had in his
personal library, especially those from Charles-Augustin Aviler and Andrea Pozzo, and the
prints with Rococo motifs, particularly those coming from Augsburg.
These facts indicate that, despite the ‘peripheral’ state of the old Monastery of São
Martinho do Couto de Cucujães, when compared with the location of other monasteries
and churches where Frei José de Santo António Ferreira Vilaça labored, the works of this
artist monk present in this Monastery materialize the scholar basis behind their design and
the artistic genius of its author.

Joaquim Jaime B. Ferreira-Alves


A Sé do Porto na Sede Vacante de 1639 a 1671: obras e artistas

Resumo
Com o falecimento do Bispo do Porto, D. Gaspar do Rego da Fonseca, em 13 de
Julho de 1639, seguida da Restauração em 1 de Dezembro de 1640, inicia-se para a
Diocese do Porto um longo período de Sede Vacante. O afastamento de Portugal da
Coroa de Espanha e a ligação desta com Roma, fez que o não reconhecimento da
nossa independência, levasse a que as Dioceses em Sede Vacante, só fossem providas
de bispos no tempo de Clemente IX (1600-1669/1667-1669) que, pelo Breve Quod
quid incolumis, não só aceitava o embaixador português, como confirmaria os Bispos
eleitos. No caso do Porto, seria D. Nicolau Monteiro, a partir de 1671.
No Porto, nos séculos XVII e XVIII, durante os três períodos em que a Diocese
esteve sem Bispo, a actividade artística, por parte do Cabido, é notável. Tal aconteceu,
também, entre 1639 e 1671. Obras diversas, principalmente na Sé, marcaram esse
período, revelando a documentação existente uma série de artistas que, naquela
altura, estiveram pelo seu trabalho associados à Diocese do Porto.
Resumos/Abstracts 629

The Porto Cathedral during the ‘Sede Vacante’ in 1639-1671: works and artists
Abstract
With the death of the Bishop of Oporto, D. Gaspar do Rego da Fonseca, on the 13th of
July of 1639, followed by the Restoration on the 1st of December of 1640, a long period of
Sede Vacante began for the Diocese of Oporto. The withdrawal of Portugal from the Crown
of Spain and the Spanish links with Rome, and our independence being not recognised,
determined that the Portuguese Dioceses in Sede Vacante had bishops only in Clement IX’s
pontificate (1600-1669/1667-1669). In fact, with his Brief Quod quid incolumis, the Pope
not only accepted the Portuguese ambassador, but also confirmed the elected Bishops. In
what concerned Oporto it was D. Nicolau Monteiro from 1671 on.
In Oporto, during the 17th and 18th centuries, in the three periods, when the Diocese
had no Bishop, the artistic activity patronized by the Chapter was remarkable. This fact
happened again between 1639 and 1671. Several works carried out particularly in the
Cathedral marked this period, and a most important group of artists related with the Diocese
of Oporto was revealed by archival documents.

José Carlos Meneses Rodrigues


Talha no Baixo Tâmega e do Vale no Sousa encomendada às escolas artísticas do
Porto e de Braga (séc. XVIII)

Resumo
O estudo abarca o século XVIII – do Barroco nacional à transição Rococó-
Neoclássico –, conglomerando as interpretações de artistas e artífices (entalhadores,
ensambladores, escultores, pintores e douradores) dos centros artísticos das cidades
do Porto e de Braga, um painel de tratadística erudita que se transmite à periferia,
Baixo Tâmega e Vale do Sousa, no caso. As encomendas envolvem procuradores de
párocos, juízes das igrejas, confrarias, abades e abadessas dos mosteiros, misericórdias…
Especificamos os retábulos-mores, acrescentamentos de retábulos, tribunas e tronos,
pinturas e douramentos.

Wood carving at Tamega and Lower Vale do Sousa ordered at the art schools of
Porto and Braga (eighteenth century)

Abstract
The study embraces the eighteenth century – from the Portuguese Baroque to the
transition Rococo-Neoclassic – gathering the interpretation of artists and craftsmen (wood
carvers, joiners, sculptors and gilders) from Oporto and Braga artistic centres, a panel of
erudite treatise which is, in this matter, conveyed to the suburbs, Lower Tâmega and Sousa
Valley. The orders involve priests´ solicitors, church judges, brotherhoods, abbey abbots and
abbesses, misericórdias…The altarpieces, retable enlargements, tribunes, thrones, paintings
and gildings are here specified.
630 Resumos/Abstracts

José Francisco Ferreira Queiroz


A escultura nos cemitérios portugueses (1835-1910): artistas e artífices

Resumo
Nesta comunicação, é focada a diversidade temática e, sobretudo, a disparidade
qualitativa das peças de escultura executadas durante o Romantismo para os cemitérios
portugueses. A avaliação qualitativa dessas peças escultóricas pode estar, ou não,
relacionada com a execução por parte de um artista ou de um artífice, dado que a
fronteira entre os dois conceitos era muito ténue, nesse contexto e nessa época. A
comunicação resume, de forma até algo redutora, um tema que é vasto e que está
ainda quase por explorar na historiografia da Arte em Portugal.

Sculpture in the Portuguese cemeteries (1835-1910): artists and artisans


Abstract
In this paper we will give a general overview about sculpture in Portuguese cemeteries
during the Romanticist period. The subject is wide and almost unexplored in the
Portuguese History of Art. Thus, only some aspects will be highlighted, such as the
diversity of typologies, ranging from portraits to allegoric statues, and the disparity in
terms of quality. However, examples by some of the most famous Portuguese sculptors
are not necessarily the most interesting. The opposite does not apply either, since
the borderline between sculptors and masons was not well defined, by the second
half of the 19th century.

Juan M. Monterroso Montero


El difícil arte de pintar en Galicia. Artistas, artesanos, mecenas y clientes

Resumo
La pintura en Galicia se caracteriza por su carácter artesanal. Durante los siglos
XVI, XVII y XVIII su desarrollo está vinculado con una lenta asimilación de los
estilos europeos, por la implantación del Concilio de Trento y, en última instancia,
por la existencia de una clientela reducida, fundamentalmente de carácter eclesiástico.

The difficult art of painting in Galicia. Artists, artisans, patrons and clients
Abstract
The painting in Galicia is characterized by its artisanal profile. During the sixteenth,
seventeenth and eighteenth centuries, its development is linked with a slow assimilation of
European styles, due to the implementation of the Council of Trent and, ultimately, by the
existence of a limited clientele, mainly with an ecclesiastical nature.
Resumos/Abstracts 631

Lúcia Maria Cardoso Rosas


Nossa Senhora de Guadalupe (Mouçós, Vila Real: encomendador e obra)

Resumo
O autor das Memórias de Vila Real (1721) atribui a D. Pedro de Castro, abade
da igreja de Mouçós, a fundação da Capela de Nossa Senhora de Guadalupe pelos
anos de 1530. Confirmando esta notícia, a Capela ostenta o brasão de armas de D.
Pedro de Castro no frontal de altar e no exterior da parede testeira da capela-mor.
D. Pedro de Castro foi responsável pela construção de outras capelas em Vila Real,
nomeadamente da Capela da Misericórdia, de aspecto maneirista, edificada entre
1532 e 1548.
Habitualmente classificada como gótica, ou mesmo como românica, a Capela
de Nossa Senhora de Guadalupe, que apresenta um cuidado programa construtivo,
coloca interessantes questões no que diz respeito à simultaneidade de gostos de um
mesmo encomendador e à sobrevivência de uma tipologia medieval nos finais do
primeiro quartel do século XVI. Tentaremos responder a estas questões propondo
uma revisão da sua classificação estilística e enquadrando esta análise no contexto
das motivações da sua construção.

Our Lady of Guadalupe (Mouçós, Vila Real: commissioner and work)


Abstract
The author of Memórias de Vila Real (1721) attributes to D. Pedro de Castro, priest
of Mouçós’ church, the foundation of Our Lady of Guadalupe chapel around 1530.
Confirming this conclusion, the chapel bears the coat of arms of D. Pedro de Castro in
the altar front-piece and on the external wall of the choir. D. Pedro de Castro was also
responsible for the building of other chapels in Vila Real, namely the Misericórdia Chapel
built between 1532 and 1548, apparently in the Mannerist style.
Usually classified as gothic, and even Romanesque, the Chapel of Our Lady of Guadalupe
presents an elaborated architectonical program, posing interesting questions regarding the
concurrence of different tastes in its construction and the resilience of Romanesque structures
in the end of the first quarter of the sixteenth century. We will try to address these questions,
proposing the revision of its stylistic classification and framing this analysis in the context
of the purpose of its construction.
632 Resumos/Abstracts

Luís Alberto Casimiro


A pintura no museu de Arouca: contributo dos apócrifos e dos tratados pós-tridentinos
para a iconografia mariana

Resumo
A análise iconográfica de algumas pinturas de temática mariana, pertencentes
ao acervo do Museu da Irmandade da Rainha Mafalda de Arouca mostra que na
sua génese se encontram influências dos Evangelhos Apócrifos ou dos tratados
artísticos elaborados a partir das orientações emanadas do Concílio de Trento. Com
este trabalho pretendemos, não só chamar a atenção para os conhecimentos que os
pintores, ou os comitentes, possuíam acerca das fontes literárias que circulavam nos
meios artísticos ou eclesiásticos e que serviram de inspiração para muitos pintores.
Como também alertar para a importância que assumem, no panorama artístico
nacional, os núcleos pictóricos pertencentes ao acervo do Museu de Arte Sacra de
Arouca. De facto, os ciclos iconográficos e a qualidade das obras expostas merecem
um trabalho de divulgação que mostre a riqueza do nosso património artístico, muitas
vezes desconhecido ou subvalorizado.

Painting in the museum of Arouca: contribution of apocryphal and post-Tridentine


treatises for Marian iconography
Abstract
The iconographic analysis of some Marian thematic paintings of the former Cistercian
Monastery, the Sacred Art Museum of Arouca, shows that in its genesis we can find the
influence of Apocryphal Gospels or some artistic treatises written after the Council of Trent.
With this work, we intent not only to call attention to the knowledge that painters, or theirs
patrons, had on literary sources that circulated on artistic or ecclesiastic circles, and used,
very often, as elements of inspiration, but also to reveal other paintings of the museum, to
show the richness of our artistic heritage, very often unknown or underestimated.

Luís Alexandre Rodrigues


O buril e paleta. Santo Inácio de Loiola nas pinturas da sacristia da igreja dos
jesuítas, em Bragança

Resumo
Destacando-se na defesa e aplicação das medidas aprovadas no Concílio de
Trento, os membros da Companhia de Jesus cedo perceberam a importância da
arte na difusão daqueles valores e do seu alcance no reforço do culto dos santos.
A conveniência destes serem apresentados como regra e modelo ideal levou a que
dos prelos tivessem saído numerosas gravuras e folhas volantes com o propósito de
Resumos/Abstracts 633

divulgarem a trajectória de vida e os prodígios operados. Atenta e interessada em


todos os desenvolvimentos que pudessem engrandecer a Companhia e especialmente
a santidade de Inácio de Loiola fixaram-se os principais marcos de vida e, seguindo o
texto de Pedro de Ribadeneira, o primeiro biógrafo oficial, Jerónimo Wierix produziu
(c.1590) os primeiros conjuntos de estampas que possibilitavam a multiplicação do
fenómeno devocional.
Tendo igualmente em vista a sua beatificação, celebrada em 1609, organizou-se
uma obra composta por algumas dezenas de gravuras que, se exemplificavam a forma
como a redenção do antigo soldado coroava a renúncia às vaidades do mundo, também
se inscrevem na tendência barroca de interferência nos sentimentos religiosos a fim
de se potenciarem os seus efeitos e de se provocar o seu desdobramento na esfera
do público.
Para nós, as gravuras da Vita Beati P. Ignatii Loiolae Societatis Iesu Fundatoris são
especialmente significativas por terem servido de modelo às pinturas do espaldar do
arcaz e tecto da sacristia da igreja dos Jesuítas de Bragança, um programa narrativo
de exaltação da vida ascética, da oração e do espírito de serviço. Independentemente
do seu valor estético, este conjunto de tábuas testemunha como as obras de arte
muitas vezes se constroem sobre uma base precedente, permitindo-nos igualmente
questionar o conceito de originalidade no século XVII.

The chisel and the palette. Saint Ignatius of Loyola in the paintings at the sacristy
of the Jesuits church in Bragança
Abstract
The members of the Society of Jesus, being strict in the defence and use of the measures
approved by the Trent Council, soon understood the importance of the art in the expansion
of these values and their relevance to emphasise the worship of the saints. The intent to
present them as a character and a model had as consequence the production of abundant
engravings whose purpose was to make their lives and miracles known. They were aware
and interested in all features that enhanced the Society and mainly the piety of Ignatius
of Loyola. The major aspects of his life were built and, according to Pedro Ribedeneyra,
his first official biographer, the engraver J. Wierix shaped (by 1590) the first collection of
pictures that enabled the multiplication of his devotion.
Having in mind his beatification, celebrated in 1609, the Society ordered a work formed
by some tens of engravings which, beyond exemplifying the redeeming of the old soldier
from the glories of the world, is inserted in the Baroque tendency to interfere in the religious
feelings so that their effects might be emphasised and reproduced in the audience.
This work named Vitae Beati P. Ignatii Loiolae, which received the cooperation of Rubens
and Jean Baptiste Barbé, is significant because it served as a model for the painting of the
ceiling and part of a wall in the sacristy of Jesuits’ Church, in Bragança. Its narrative
programme praises not only the ascetic life and the service spirit of the saint but also the
Society of Jesus. Besides it provides matter of debate about the concept of creativeness in
the 17th century.
634 Resumos/Abstracts

Manuel Engrácia Antunes


Artes Mecânicas – Enfermaria e Botica em espaços Beneditinos

Resumo
A Regra de São Bento, e a Congregação de S. Bento do Reino de Portugal
entre o final do séc. XVI e o início do séc. XIX, dedicam especial atenção à cura
dos enfermos, referindo a obrigatoriedade da presença de um monge enfermeiro, e
de uma enfermaria “a modo de botica”. Um monge boticário beneditino, activo na
2.ª metade do séc. XVIII, numa publicação sobre farmacopeia inclui referências a
alguns dos símplices e compostos mencionados na documentação da Congregação.
Um capítulo desta publicação aborda os vasos quer para a preparação das mezinhas,
quer para a sua conservação, fornecendo elementos importantes para a compreensão
das tipologias das artes decorativas ao serviço dos cuidados com a saúde.

Arts and Crafts - Infirmaries and pharmacies in Benedictine Monasteries


Abstract
The Rule of St. Benedict, and the Portuguese Congregation of St. Benedict from the late
16th. to the early 19th. centuries, cared a lot for the sick, namely appointing a Monk-nurse
for each Monastery and commanding the presence indoors of an infirmary as a  kind of
pharmacy.
A Portuguese Benectine Monk, in the second half of the 18th. century, publishes
extensively on Pharmacy, referring to ingredients and compounds to be found as well in
the documentation of individual Portuguese Monasteries of that period. One chapter deals
especially with the vases for both preparing and preserving these  medicines, providing
interesting data for understanding decorative arts objects used for healthcare.

Manuel Joaquim Moreira da Rocha


Manifestações do barroco português: casas e quintas com capela

Resumo
Entre os séculos XVII e XIX constata-se, em Portugal, ao nível da arquitectura
habitacional, a emergência de um fenómeno: a anexação à casa residencial – per-
manente ou sazonal – de uma capela, que sendo privada tem funções públicas.
Esta construção religiosa, ditou, muitas vezes, a própria organização formal da casa
nobre, e afirmou-se como mais uma estrutura arquitectónica no espaço das quintas
portuguesas, particularmente, no caso em estudo, no Norte de Portugal. Sendo
raros os nomes dos artistas que trabalharam nesse complexo, – casa, capela, jardim,
quinta, – já o mesmo não se pode dizer dos encomendantes, e da linguagem formal
Resumos/Abstracts 635

usada nesses equipamentos, uma vez que subsistem ainda em grande número, bem
como das razões que levaram a essas construções esclarecidas pela documentação.

Manifestations of the Portuguese Baroque: houses and estates with chapel


Abstract
Between the seventeenth and the nineteenth centuries it was visible in Portugal, in
terms of residential architecture, the emergence of a phenomenon: the annexation to the
residential house – be it permanent or seasonal – of a chapel that albeit private has public
functions. This religious building often dictated the formal organization of the noble house,
and has established itself as a more architectural structure in the area of estates in Portugal,
particularly, in our case study, in northern Portugal. Although the names of the artists who
worked on this complex – home, chapel, garden, farm – are scarce, the same cannot be
said regarding the commissioners, and the formal language used in such equipment, since
they still subsist large numbers, as well as the the reasons for these constructions, informed
by the existing documentation.

Marcelo Almeida Oliveira


Considerações sobre os artífices e os artistas portugueses em Minas Gerais

Resumo
Tratando-se do “mundo português” no Brasil, é necessária cada vez mais a busca
de fontes primárias que contribuam para o esclarecimento das múltiplas relações
ocorridas no luso mundo. Nesse sentido, alguns arquivos mineiros, como os da cidade
de Mariana, funcionam como “cápsulas do tempo”, onde é possível a verificação de
fontes documentais que possibilitam o apuro de temas pouco divulgados.
A consulta aos catálogos do Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese da referida cidade
sugere, por exemplo, as estreitas ligações sociocultural e religiosa estabelecidas entre a
Capitania de Minas Gerais e o norte de Portugal, particularmente na segunda metade
do século XVIII. Tal consideração encontra-se apoiada no conteúdo dos códices,
em que se evidencia a origem de parte da população portuguesa que colonizou o
território mineiro. Assim, destacam-se as referências de Braga, Vila Real, Barcelos,
Guimarães, Porto, Miranda, Coimbra, além daquelas ligadas à realidade de África e
dos Arquipélagos dos Açores e da Madeira.
No mencionado universo, situa-se um dos principais construtores de Mariana,
José Pereira Arouca, “nascido e batizado na freguezia de São Bartolomeu, da Villa
Arouca, do Bispado de Lamego, Comarca do Porto”, segundo Testamento do citado
construtor do ano de 1723. Esse é um dos vários exemplos que se deve trabalhar
para o entendimento das contribuições e influências ocorridas no período colonial,
particularmente no ramo das artes.
636 Resumos/Abstracts

Considerations on the Portuguese artists and artisans in Minas Gerais


Abstract
When dealing with the “Portuguese world” in Brazil, it becomes ever more necessary to
search for primary sources which may contribute to clarify the multiple relations that have
taken place in the Portuguese world. In this sense, some archives in Minas Gerais, such as
the ones in the town of Mariana, are like “time capsules”, where it is possible to check the
documental sources which enable to deepen less disseminated themes.
Consulting the files of the Ecclesiastic Archive of the Mariana Archdiocese, for example,
leads to the close socio-cultural and religious links established between the Capitania of
Minas Gerais and the North of Portugal, mainly during the second half of the eighteenth
century. Such consideration is supported by the content of the codices, in which it is evident
the origin of part of the Portuguese population that colonized Minas Gerais. Therefore, it
is noteworthy the references to Braga, Vila Real, Barcelos, Guimarães, Porto, Miranda,
Coimbra, besides those concerning the reality of Africa and the Archipelagos of Azores
and of Madeira.
In the aforementioned universe, one of the major builders of Mariana is José Pereira
Arouca, “born and christened in the parish of Saint Bartolommeo, of the Village of Arouca,
Bishopric of Lamego, District of Porto”, according to the mentioned builder’s will of the
year of 1723. This is one of the numerous examples that we should work on for a better
understanding of the legacy and influences that took place during the colonial period,
particularly in the field of arts.

Maria Berthilde Moura Filha

Artistas e artífices a serviço das irmandades religiosas do Recife nos


séculos XVIII e XIX

Resumo
Na cidade do Recife, entre os séculos XVIII e XIX, surgiram diversas igrejas
erigidas por irmandades religiosas, instituídas devido ao crescimento e estratificação
da sociedade urbana. Tendo o desejo de expor, através da qualidade artística dos
seus templos, uma condição social adquirida a partir da congregação de seus irmãos,
estas irmandades criaram um “mercado de trabalho” para os artistas e artífices de
diversos ofícios, e foram um veículo de desenvolvimento da arquitetura e da arte
sacra, em Pernambuco. Constatando esta realidade, a presente comunicação foi
estruturada com o objetivo de identificar os artistas e artífices que trabalharam para
estas irmandades, produzindo templos que ainda hoje marcam a presença destas
instituições na paisagem urbana do Recife.
Resumos/Abstracts 637

Artists and artisans at the service of religious brotherhoods of Recife in the eighteenth
and nineteenth centuries
Abstract
In the city of Recife, between the eighteenth and nineteenth centuries, there were several
churches erected by religious brotherhoods, imposed due to the growth and stratification of
urban society. Having the desire to expose, through the artistic quality of their temples, a
social status acquired from the congregation of his brothers, these brotherhoods have created
a “labor market” for artists and craftsmen of various trades, and were a vehicle for develop-
ment architecture and sacred art, in Pernambuco. Noting this fact, this communication was
structured to identify the artists and artisans who worked for these brotherhoods, producing
temples that still mark the presence of these institutions in the urban area of Recife.

Maria de Fátima Eusébio


O cabido de Viseu: dinâmica de encomendas no período de Sede Vacante (1720-1740)

Resumo
O edifício da Catedral de Viseu constitui um repositório de diferentes sintaxes
estilísticas que ao longo dos séculos lhe foram sendo incorporadas por iniciativa
dos bispos, do cabido, das irmandades e de particulares. Contudo, a intervenção
realizada no período de Sé vaga, ocorrido entre 1720 e 1741, assumiu um alcance
mais significativo e marcou absolutamente a fisionomia e a ambiência do edifício. O
cabido, aproveitando o facto de assumir as responsabilidades na administração dos
recursos da Mitra, empreendeu com total liberdade um projecto de profunda reforma
do edifício catedralício, abrindo-o às formas artísticas do barroco, com o objectivo
claramente definido de o modernizar.
O programa de intervenção contemplou os diversos espaços da Sé e o recurso a
várias tipologias artísticas: arquitectura, pintura, escultura, talha dourada e policromada,
azulejaria, paramentaria, livros e alfaias litúrgicas. Para a concretização das obras foram
contratados mestres de diferentes partes do reino, alguns dos quais escolhidos entre
os mais reconhecidos no seu ofício. A relação contratual estabelecida entre o cabido
e os artistas desenvolveu-se num quadro de significativa exigência, como se pode
depreender dos requisitos dos contratos e das reclamações em fase de entrega da obra.
Neste processo de reforma da sé de Viseu presencia-se uma manifesta influência da
intervenção encetada pelo cabido da Catedral do Porto, igualmente em período de Sé
vaga. O cabido viseense pretendeu que a sua Sé, localizada numa cidade de interior,
numa diocese mais pobre e longe das grandes oficinas de artistas, fosse dotada com
obras com a grandiosidade e a qualidade das existentes em outros espaços religiosos
do reino, como o congénere do Porto.
638 Resumos/Abstracts

The collegiate of Viseu: dynamics of orders during the Sede Vacante (1720-1740)
Abstract
The building of the Cathedral of Viseu is a repository of different stylistic syntaxes that,
over the centuries it was being built, were incorporated to it by the initiative of the bishops,
the collegiate, the brotherhoods and private individuals. However, the intervention carried
out during the Cathedral vacancy, occurred between 1720 and 1741, had a wider range
and marked the physiognomy and environment of the building. The collegiate, by assuming
all responsibilities in the administration of the Mitra’s resources, undertook a project with
total freedom for a great reform of the cathedral building, opening it to the art forms of the
Baroque, with a clearly defined objective of modernizing it.
The intervention program included the various spaces of the Cathedral and the use of
various artistic types: architecture, painting, sculpture, gilt and polychrome tiles, garments,
books and liturgical vessels. For the realization of the works were hired teachers from different
parts of the kingdom, some of which were chosen among the greatest in their profession. The
contractual relationship between the collegiate and the artists was developed in a context
of significant exigency, as can be seen from the requirements of contracts and claims in the
delivery phase of the work.
The collegiate of Viseu intended that its Cathedral, located in a country town, a poor
diocese far from the great workshops, was endowed with works with the grandeur and
quality of those existing in other religious spaces, such as its counterpart in Porto.

Maria del Mar Lozano Bartolozzi


Artistas Portugueses en el Museo Vostell Malpartida (MVM) (Extremadura-España).
Documentación del Archivo Happening Vostell (AHV)

Resumo
Ernesto de Sousa, Alberto Carneiro, Julião Sarmento, João Vieira, y otros artistas
lusos, fueron autores y protagonistas de ambientes, performances, happening y
otras actividades de arte conceptual y accionismo, en el Museo Vostell Malpartida.
Un Museo fundado por el artista Wolf Vostell (Leverkusen, 1932-Berlin, 1998) el
año 1976, en un paraje natural: Los Barruecos de Malpartida de Cáceres, y en las
instalaciones de un antiguo lavadero de lanas, relacionado con el paso de La Mesta,
interesante conjunto de arqueología industrial.
En diversas ocasiones fueron al encuentro del artista alemán, y protagonizaron,
acciones estéticas interdisciplinares. Uno de los momentos de confluencia fue la Semana
de Arte Contemporáneo (SACOM II) celebrada en abril de 1979. Con tal motivo
intercambiaron previamente correspondencia y durante las acciones, generalmente
efímeras, generaron obras artísticas, hicieron fotografías, vídeos, fotocopias, que hoy
forman parte de la colección del Museo y del Archivo Happening Vostell.
Resumos/Abstracts 639

El Archivo Happening Vostell, obra recopilatoria y también artística del artista


Wolf Vostell y su entorno, fue adquirido por la Junta de Extremadura el año 2005
y ha sido trasladado al MVM. La ponencia que presentamos explicará qué fondos
documentales de los artistas portugueses alberga el AHV.

Portuguese artists in the Museum Vostell Malpartida (MVM) (Extremadura, Spain).


Happening Vostell Archive Documentation (AHV)
Abstract
Ernesto de Sousa, Alberto Carneiro, Julião Sarmento, João Vieira, and other Portuguese
artists created environments, performances, happenings, actions and Conceptual Art works
at the Museo Vostell Malpartida. This museum was founded by the artist Wolf Vostell
(Leverkusen, 1932 / Berlin, 1998) back in 1976 on a natural site named “Los Barruecos”,
located in Malpartida de Cáceres. The current museum used to be a washing room for the
wool related to the association of sheep holders named “La Mesta” and is also a significant
complex of industrial archaeology.
These buildings held a number of meetings between the artist from Germany and other
interdisciplinary artists who created some actions themselves. One of these key moments of
congregation was the Contemporary Art Week (SACOM II) taking place in April 1979.
On the occasion of this gathering these artists exchanged correspondence in advance and also
created works of art (mostly ephemeral) throughout the actions; they also made photocopies,
took photographs and recorded video works that are currently kept at the Museo Vostell
Malpartida and at the Archivo Happening Vostell.
The Archivo Happening Vostell – a work which is both a compilation and an artistic
work by Wolf Vostell and his relatives – was purchased by the Regional Government of
Extremadura in 2005. It was then relocated at the Museo Vostell Malpartida. Our work
aims at giving details on the documents related to Portuguese artists kept at the AHV.

Maria do Carmo Marques Pires


O Atelier de David Moreira da Silva e Maria José Marques da Silva Martins:
projectos para o Funchal (1942-1947)

Resumo
O arquipélago da Madeira possuidor de um clima ameno e de inúmeras belezas
naturais era um destino turístico muito procurado por nacionais e estrangeiros, uma
potencial fonte de riqueza cheia de lacunas ao nível das infra-estruturas e dos apoios
de todos os que a procuravam. Classificada pelo Estado como estância de Turismo
é criada a Delegação de Turismo da Madeira, instituição responsável pelo seu
desenvolvimento, embelezamento e transformação através do planeamento, controlo
e regulamentação de todas as obras de urbanização e de arquitectura, preparando o
arquipélago para as futuras exigências do turismo.
640 Resumos/Abstracts

David Moreira da Silva recém-formado em Arquitectura e Urbanismo, em Paris,


e no início da sua carreira, foi chamado a intervir na cidade do Funchal quer pelo
Estado quer por particulares através de projectos de remodelação/criação de espaços
públicos, equipamentos turísticos e habitação urbana. Nesta comunicação serão
abordados alguns dos projectos realizados por este atelier, na década de quarenta,
para a cidade do Funchal.

David Moreira da Silva and Maria José Marques da Silva Martins Atelier: projects
to Funchal (1942-1947)
Abstract
Madeira’s archipelago has a mild climate and numerous natural beauties, being a popular
tourist destination for domestic and foreign people, therefore a potential source of wealth,
although in the middle 20th century it had some problems regarding infrastructure and support
for all who sought it. Classified by the State as a tourism resort, it was then created the
Tourism Delegation of Madeira, the institution responsible for its development, beautification
and transformation by means of the careful planning, monitoring and regulation of all the
works of urbanization and architecture, preparing the island for future tourism requirements.
David Moreira da Silva, recently graduated in Architecture and Urbanism in Paris, and
still beginning his career, was called upon to intervene in Funchal both by the State and by
individuals to carry out remodeling projects and create public spaces, tourist facilities and
urban housing. This work addresses some of the projects undertaken by his studio in the
1940’s, for the city of Funchal.

Maria José Goulão


A encomenda a entalhadores portugueses nas missões franciscanas do Paraguai no
século XVIII

Resumo
Durante toda a época colonial, muitos foram os artistas de origem portuguesa
que se fixaram no Rio da Prata, território pertencente à Coroa espanhola. Entre os
escultores portugueses mais activos na região, salienta-se José de Sousa Cavadas,
natural de Matosinhos, que chegou a Buenos Aires em 1748, vindo do Brasil. Foi
o autor de vários retábulos, destinados a templos bonaerenses e à igreja paroquial
de Luján, todos lamentavelmente desaparecidos. A sua obra maior é sem dúvida o
conjunto de talha do templo paraguaio de S. Boaventura de Yaguarón, que constituiu
a matriz em que se inspiraram outras obras de talha conservadas em igrejas paraguaias.
No caso de Yaguarón, temos em plena selva, numa zona periférica, a presença de
um importante conjunto de talha barroca joanina, com alguns elementos de transição
que indiciam um aggiornamento baseado na estética rocaille, então a despontar em
Portugal. A obra de Sousa Cavadas é reveladora de uma situação de compromisso,
Resumos/Abstracts 641

de negociação e de acomodação à realidade local, detectável nas “impurezas” e


na “contaminação” a que esteve sujeita a estética barroca, quando transportada e
aclimatada em terras americanas.
O conjunto de Yaguarón, que constitui verdadeiramente um programa decorativo
global, incluindo todo o mobiliário litúrgico, imaginária e pintura, foi como que
replicado no templo da Virgem da Candelária de Capiatá, embora com algumas
diferenças, que se devem à influência jesuítica que aí se fazia sentir e à colaboração
de mão-de-obra indígena, como aliás sucedeu também inevitavelmente na igreja de S.
Boaventura. Sousa Cavadas terá certamente formado artistas locais, que se tornaram
os protagonistas de um fenómeno de reprodução dos modelos lusitanos. Com efeito,
a obra de Yaguarón teve um impacte muito significativo na área dos povoados de
índios paraguaios, visível em várias interpretações locais que revelam combinações,
justaposições e amálgamas assaz curiosas.

Orders to Portuguese woodcarvers at Franciscan missions in Paraguay during the


eighteenth century
Abstract
Throughout the colonial period, there were many artists of Portuguese origin that
established themselves in the Rio de la Plata, a territory that belonged to the Spanish
Crown. Among the sculptors that were more industrious in this region, stands out José de
Sousa Cavadas, born in Matosinhos, who arrived in Buenos Aires in 1748, coming from
Brazil. He was the author of various altar pieces for churches in Buenos Aires and for
the parochial church of Luján, all unfortunately vanished. Assuredly, his most important
commission was the woodcarving ensemble of the Paraguayan church of San Buenaventura
of Yaguarón, which established itself as the source and inspiration for other woodcarving
works preserved in Paraguayan churches.
In the case of Yaguarón, settled among the jungle, in a peripheral region, we have a
significant ensemble of Joanine Baroque wood sculpture, mingling some transition elements
that indicate an updating based in the rocaille aesthetics, by that time about to be adopted in
Portugal. Sousa Cavadas’ body of work reveals a situation of compromise, negotiation and
accommodation to the local context, perceivable in the “impurities” and “contamination” that
the Baroque aesthetics was subjected to, when transferred and adapted to American land.
The ensemble of Yaguarón, that in fact constitutes a whole decorative programme,
including all the liturgical furniture, sculpture and paintings, was replicated in the church
of Our Lady of Candelária in Capiatá, although with some differences, due to the Jesuitical
influence that left its print there, and to the collaboration of indigenous workmanship, as
it happened also inevitably in the church of San Buenaventura. Sousa Cavadas has most
certainly been responsible for the formation of local artisans, who became the protagonists
of a case of reproduction of Portuguese-Brazilian models. As a matter of fact, the works
at Yaguarón had a very significant impact in the area of pueblos de índios in Paraguay,
still visible in various local interpretations that reveal some rather curious combinations,
juxtapositions and mixtures.
642 Resumos/Abstracts

Natália Marinho Ferreira-Alves


A presença do Brasil no Santuário do Bom Jesus do Monte (Braga)

Resumo
O Santuário do Bom Jesus do Monte (Braga), é o santuário cristológico mais
importante do Mundo Católico tendo mantido ao longo dos séculos a sua força
carismática, mesmo em relação a outros santuários, quer cristológicos, quer marioló-
gicos. A ermida de Santa Cruz, erguida em finais do século XV sob o patrocínio do
arcebispo D. Jorge da Costa, constituiu o ponto de partida de um importante pólo
de peregrinação, recriando-se o Caminho do Calvário de Jerusalém e revivendo-se,
desta forma, os últimos momentos da Vida de Cristo. Sofrendo transformações nos
séculos XVI e XVII, será em Setecentos, por empenho do arcebispo D. Rodrigo de
Moura Teles, que o Santuário assume a sua feição barroca expressando de forma
única o sentimento da devotio moderna. Graças à acção mecenática do esclarecido
prelado o Santuário, através de uma densa linguagem iconográfica, transforma-se
no paradigma da mensagem apologética da Fé Católica, na qual Cristo convida o
Crente a acompanhá-lo na sua Via Dolorosa, apontando-lhe o Caminho da Redenção.
Durante o século XVIII assistimos à participação de mestres pedreiros, de escultores,
pintores e outros artistas, que contribuíram de forma significativa para a concretização
das aspirações dos encomendadores, desde os arcebispos, aos membros da Confraria,
sendo de suma importância os donativos dados pelos fiéis ligados ao Santuário. Neste
contexto, e entre os finais de Setecentos e ao longo do século XIX, são relevantes os
contributos vindos de Lisboa, do Porto e particularmente de várias zonas do “Império
do Brasil”, como Rio de Janeiro, Pernambuco e Minas Gerais. Serão estes doadores
que irão possibilitar a continuidade das obras e o trabalho dos artistas, cuja presença
ainda hoje permanece naquela que é uma das nossas maiores realizações a nível
patrimonial e manifestação profunda da Fé das nossas gentes.

The presence of Brazil in the Sanctuary of Bom Jesus do Monte (Braga)


Abstract
The Bom Jesus do Monte Sanctuary (Braga) is the most important Christological one
In the Roman Catholic World, having kept through the years its charismatic strength even
in comparison with other sanctuaries, either Christological or Mariological ones. The Santa
Cruz chapel, built in the end of the 15th under the protection of the Archbishop D. Jorge da
Costa, was the starting point of an important centre of pilgrimage, recreating the Jerusalem
Calvary Path, and living again the last moments of Jesus Christ’s Life. Several changes were
done during the 16th and 17th centuries, but in the 18th century, due to the Archbishop
D. Rodrigo de Moura Teles’ action, the sanctuary takes its baroque shape expressing in a
remarkable way the devotio moderna’s feeling. Through the Bishops’s leading patronage,
a strong iconographic language is used in the sanctuary and it will turn into a paragon of
Resumos/Abstracts 643

the Catholic Apologetic Faith, used by Christ to invite the believer to follow Him in His
Via Dolorosa, pointing him out the Redemption path.
Along the 18th century we will notice the participation of stone masters, sculptors,
painters and other artists who gave a significant contribution for the accomplishment of the
clients’ aspirations (wishes), from the Archbishops to the Brotherhood members, with the
donations given by the followers linked to sanctuary being very important. In this context,
from the end of 18th century and along the 19th century, the contributions from Lisbon,
Oporto and particularly from several regions of the Brazilian Empire, such as Rio de Janeiro,
Pernambuco e Minas Gerais were very relevant. These (patrons) donators will allow the
continuity of the works of all the artists, whose presence still remain in that most remarkable
example of our cultural heritage and a deep proof of religious Faith of Portuguese people.

Paula Bessa
Pintura mural da primeira metade do século XVI em igrejas paroquiais do Norte
de Portugal: encomendas, artistas, obras

Resumo
Este trabalho pretende ser uma reflexão sobre pinturas murais realizadas para
capelas-mor e naves de igrejas paroquiais por três oficinas de pintura mural laborando
no Norte de Portugal durante a primeira metade do século XVI.
É conhecida a falta de documentos escritos que nos elucidem sobre a prática
da pintura mural em Portugal, particularmente durante a época que referimos, o
que torna ainda mais necessária uma intensa análise interna das próprias pinturas.
Advertimos, desde já, o leitor para o facto de que, neste trabalho, nos centraremos
em enunciar problemas e formular hipóteses mais do que em apresentar certezas.
Cremos, no entanto, que esta atitude é fecunda, na medida em que orienta a
investigação a conduzir.

Mural painting of the first half of the sixteenth century in the parish churches of
northern Portugal: ordering, artists, works
Abstract
This article focuses on the analysis of early sixteenth century wall paintings in chancels
and naves of northern Portuguese parish churches made by three painting teams.
In Portugal, there is a terrible lack of written documents on wall painting (no contracts
known for the fifteenth and the first half of the sixteenth century), making an intense
internal analysis of the paintings themselves all the more needed. My purpose here is to
raise questions and hypothesis rather than to find unquestionable answers. However, I
believe in the usefulness of the exercise, which has, at least, the virtue of setting paths for
future research.
644 Resumos/Abstracts

Paula Cristina Machado Cardona


A encomenda municipal – artistas e obras em Viana da Foz do Lima na Época
Moderna

Resumo
Ao leque de encomendantes, por norma confinado à encomenda régia e nobili-
árquica e à Igreja, com particular ênfase para a figura do Bispo, queremos adicionar
o universo Municipal ampliando horizontes de análise e abrindo outra perspectiva
de abordagem no campo da encomenda artística.
Os Livros de Vereações do Arquivo Histórico Municipal de Viana do Castelo,
por nós estudados, cobrindo uma baliza cronologia que decorre entre o século XVI
até ao segundo quartel do século XIX, encerram conteúdos variados de extrema
importância para o conhecimento da actividade do município como promotor da
produção artística não só na esfera local, circunscrita ao burgo, mas também a nível
concelhio.
Um olhar mais atento aos fundos documentais municipais permite perscrutar em
rigor, obras de diferente tipologia e artistas de variada proveniência e formação a
que se alia, um extenso corpo normativo municipal que dimensiona o processo de
evolução urbanística, a par do pulsar da vida do burgo.

The municipal commission – artists and works in Viana da Foz do Lima in the
Modern Age
Abstract
To the typical group of art commissioners, usually confined to the royal and nobility
commissions and the Church, with particular emphasis on the figure of the Bishop, we
would like to add the Municipal universe, hence expanding horizons and opening another
analysis perspective in the field of art commissioning.
The town councils books at the Municipal Historical Archives of Viana do Castelo that
we studied, covering a timeline running from the sixteenth century until the second quarter
of the nineteenth century, present contents of varying importance to the knowledge of the
activity of the Municipality as a promoter of artistic production not only at a local level,
confined to the borough, but also at the county level.
A closer look at the municipal documental funds allows to perceive different types of
works and artists of varied provenance and training that is combined with an extensive set
of rules which scales the process of urban development, along with the life in the borough.
Resumos/Abstracts 645

Regina Anacleto
Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro: ponte de artistas entre dois
mundos

Resumo
A partir do momento em que os membros do Real Gabinete deliberam construir
um edifício que lhes servisse de sede tornou-se-lhes claro que ele teria de ser um
pequeno enclave da Mãe-Pátria implantado em terras brasileiras. Não vamos deter-
nos na mentalidade subjacente à escolha do estilo utilizado na feitura do imóvel,
mas sim referir os artistas intervenientes, portugueses e brasileiros, que passam pelo
arquitecto, pelo escultor, pelos canteiros, pelos metalúrgicos e por muitos outros, sem
excluir, como é óbvio, os próprios encomendantes que, neste período, desempenham
um papel determinante, tanto na encomenda, como no desenrolar da obra.

Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro: a bridge for artists between
two worlds
Abstract
From the moment the members of the Royal Cabinet decided to construct a building
to become their headquarters, it became clear for them that this structure would have to
be a small enclave of the motherland (Portugal) deployed in Brazil. In the current work,
we will not focus in the mentality behind the choice of the style used in the making of the
building, but instead we intend to mention the artists involved, Brazilian and Portuguese,
including the architect, the sculptor, the stonemasons, the metalworkers and many others,
without forgetting the commissioners that, during this period, played a decisive role, both
in the order and as the work was being carried out.

Sofia Nunes Vechina


A Igreja Matriz de Ovar nos séculos XVII-XIX: obras e artistas

Resumo
Referida, desde 1132, em Cabanões, a matriz desta freguesia é transferida para
Ovar no século XVI. A partir dessa data, estão documentadas várias obras, desde
reedificações, à construção da Capela do Senhor dos Passos, no século XVIII, e da
Capela do Santíssimo, no século XIX, e, ainda, a execução de vários retábulos.
Das intervenções arquitectónicas destacam-se nomes como, Luís Inácio de Barros
Lima e Manuel Lourenço Afonso. Na obra de talha evidenciam-se os contractos feitos
com os entalhadores Domingos Lopes e José Teixeira Guimarães, e com o pintor José
de Araújo (todos com residência no Porto). Existindo, ainda, uma proximidade entre
a descrição documental do 2.º retábulo-mor desta Igreja, e o retábulo da Capela de
646 Resumos/Abstracts

São Miguel, da mesma freguesia, pretende-se, também, averiguar as afinidades entre


a obra realizada por Domingos Lopes em Aveiro, Braga, Porto, Vila do Conde e Vila
Nova de Gaia, com a documentação referente a Ovar, e o retábulo da dita capela.
Em suma, partindo de um edifício sobre o qual muito se escreveu, em publicações
locais, avança-se, agora, com uma nova abordagem, para a clarificação de alguns
aspectos pouco reflectidos da sua história artística, e para a análise de novos elementos
documentais e formais.

The Mother Church of Ovar in the XVII-XIX: works and artists


Abstract
Mentioned since 1132, in Cabanões, the mother church of this parish is transferred to
Ovar in the sixteenth century. Thereafter, many works are documented, from reedifications,
the construction of the Chapel of Our Lord of Passos, in the eighteenth century and the
Chapel of the Blessed Sacrament in the nineteenth century, and also the implementation
of various altarpieces.
Regarding architectural interventions, names such as Luis Inacio de Barros Lima and
Manuel Afonso Lourenço stand out. As for woodcarving we highlight the contracts made with
the carvers Domingos Lopes and José Teixeira Guimarães, and the painter José de Araújo
(all resident in Porto). There is also a closeness between the description of the documents in
the second altarpiece of this Church, and the altarpiece in the Chapel of St. Michael in the
same parish, hence our intention of researching the affinities between the work performed
by Doming Lopes in Aveiro, Braga, Porto, Vila do Conde and Vila Nova de Gaia, and the
documentation regarding Ovar and the altarpiece of the aforementioned chapel.
In short, from a building about which much has been already written in local publications,
we try and present a new approach aiming at the clarification of some aspects concerning
its artistic history, and the analysis of new documental and formal elements.

Sonia Gomes Pereira


Henrique José da Silva, um pintor português na Academia Imperial de Belas Artes
do Rio de Janeiro

Resumo
O objetivo dessa comunicação é refletir sobre a defasagem entre a revisão
historiográfica que vem ocorrendo nas últimas décadas sobre o século XIX no meio
acadêmico e a crítica de arte que vem sendo exercida através das exposições e
publicações ligadas às comemorações dos 200 anos da chegada de D. João ao Brasil.
Como exemplo dessa defasagem, são examinados desenhos de Henrique José da Silva.
Resumos/Abstracts 647

José Henrique da Silva, a Portuguese painter at the Imperial Academy of Fine Arts
in Rio de Janeiro
Abstract
The point of this article is to discuss the gap between the academic revisionist studies about
the 19th century art and the expositions and publications held in the scope of the commemo-
ration of the arrival of the Regent Prince João to Brazil (1808-2008). An example of a topic
still obscure in our Art History is the work of the Portuguese painter Henrique José da Silva.

Susana Matos Abreu


A obra do arquitecto italiano Francesco da Cremona (c.1480-c.1550) em Portugal:
novas pistas de investigação

Resumo
Partindo do que se conhece acerca da actividade do arquitecto italiano Francesco
da Cremona (c.1480–c.1550) em Portugal, sobretudo da obra realizada ao serviço do
bispo de Viseu D. Miguel da Silva, este estudo procura sondar como Francesco terá
trazido, de Itália para Portugal, um saber feito de inteligência prática ao serviço do
ideal estético do Renascimento.
A análise das idiossincrasias compositivas e formais que a sua obra revela permite
desvelar a qualidade da sua aprendizagem nos estaleiros de Roma e da Lombardia.
Do mesmo modo, as suas principais referências modelares podem ser identificadas a
partir das fragilidades compositivas e idiomatismos formais que a sua obra exibe. Estas
referências recuam ao trabalho de mestres-pedreiros lombardos como a família Zacagni
ou Giovan Francesco d’Agrate, e sobretudo às fábricas papais romanas e seus arquitec-
tos, tais como Antonio da Sangallo Il Vecchio, Baccio Pontelli, ou mesmo Bramante e
Raffaello Sanzio. Esta filiação revela Francesco da Cremona como artista treinado na
observação das ruínas antigas, com a mente aguçada pelas invenzioni dos arquitectos
da sua geração e o espírito seduzido pelas conquistas formais dos seus predecessores.

The work of the Italian architect Francesco da Cremona (c.1480-c.1550) in Portugal:


new research clues
Abstract
The work of the Italian architect Francesco da Cremona (c.1480–c.1550) is not very
well known, even though his Portuguese activity has been the subject of several studies.
Based on what we know about his work at the service of the bishop D. Miguel da Silva,
this paper intends to enquire how Francesco brought, from Italy to Portugal, a knowledge
built under the ideal of the Renaissance aesthetic.
An analysis of his architectural work, especially regarding the most striking details, brings
to the forefront his former learning and training in Rome and Lombardy. The small errors of
composition and the formal regionalisms that his works often display allow us to identify his
648 Resumos/Abstracts

models. These can be traced back to Italy, to the work of Lombard master masons like the
Zacagni family or Giovan Francesco d’Agrate, and mainly to the papacy Roman construction
sites and its architects like Antonio da Sangallo Il Vecchio, Baccio Pontelli, or even Bramante
and Raffaello Sanzio. This affiliation reveals that Francesco da cremona was an artist trained
on the examination of ancient ruins, with the mind sharpened by the new achievements of his
contemporaries and the soul seduced by the architectural forms explored by his predecessors.

teresA leonor M. vAle


As encomendas de arte italiana de D. Fr. José Maria da Fonseca Évora (1690-1752)

Resumo
D. Fr. José Maria da Fonseca Évora (1690-1752) revela-se uma das mais rele-
vantes figuras da primeira metade da centúria de Setecentos para os interessados
em temáticas tão diversificadas como sejam, desde logo, a diplomacia joanina e o
ambiente político-cultural da Roma pontifícia, a aquisição e circulação de obras de
arte italiana, o coleccionismo, os prelados do Porto e a sua actuação pastoral e/ ou
mecenática, etc.
Na nossa apresentação, após uma sumaríssima abordagem biográfica, propomo-nos
ocupar do papel desempenhado por Fonseca Évora na aquisição de obras de arte
italiana enquanto agente de D. João V – passo essencial para a sua familiarização com
o ambiente artístico romano da primeira metade do settecento –, para seguidamente nos
determos na construção da sua própria colecção, procurando reconhecer estratégias
e preferências desse frade franciscano que, por vontade do Magnânimo, se viu feito
embaixador de Portugal e bispo do Porto, diocese para onde se empenhou em trazer
as suas aquisições romanas.

Orders for Italian art by D. Fr Jose Maria da Fonseca Évora (1690-1752)


Abstract
D. Fr. José Maria da Fonseca Évora (1690-1752) is one of the most relevant
figures of the first half of 18th century for those interested in subjects so different as
diplomacy of the reign of John V, the political and cultural ambience of settecento
Rome, the acquisition and circulation of Italian works of art, art collections, the
Porto bishops, their pastoral action and art patronage.
In our work, after a very short biography, we intend to make an approach to the
role of Fonseca Évora in the purchase of Italian works of art as an agent of King
John V – a fundamental step to the knowledge of the Roman artistic ambience of
the first half of the settecento –, considering after that the construction of his own
collection, trying to recognise strategies and preferences of that Franciscan friar that,
by the will of his sovereign, become ambassador of Portugal and bishop of Porto, to
where he brought his Roman acquisitions.
Índice
5 Natália Marinho FERREIRA-ALVES
Introdução

15 Alberto Darias Príncipe


Artistas portugueses en las Islas Canarias

37 Ana Margarida Portela Domingues


A ornamentação cerâmica da Casa do Chão Verde

55 Anna Maria Monteiro de Carvalho


Manuel Dias de Oliveira e a pintura oficial da Corte no Brasil

69 António Manuel Vilarinho Mourato


Flores do silêncio (um esboço da actividade artística do pintor António José da Costa)

99 António José de Oliveira


O órgão de tubos da Igreja da Misericórdia de Guimarães (1775)

111 Carla Sofia Ferreira Queirós


Francisco Rebelo: um artista beirão ao serviço da Diocese de Lamego

123 Cybele Vidal N. Fernandes


O complexo caminho: da encomenda à obra realizada. Uma casa nobre no Rio de
Janeiro

137 Diana Gonçalves dos Santos


Azulejaria tardobarroca dos colégios das Ordens Religiosas de Coimbra. Circunstâncias
de encomenda e de produção artística

161 Eugênio de Ávila Lins


Encomendas artísticas para a Igreja Matriz do Santíssimo Sacramento e Sant’Ana de
Salvador durante o século XVIII

175 Eva Sofia Trindade Dias


A obra de Frei José de Santo António Ferreira Vilaça na igreja do antigo Mosteiro do
Couto de Cucujães

195 Joaquim Jaime B. Ferreira-Alves


A Sé do Porto na Sede Vacante de 1639 a 1671: obras e artistas
652 Índice

213 José Carlos Meneses Rodrigues


Talha no Baixo Tâmega e do Vale no Sousa encomendada às escolas artísticas do
Porto e de Braga (séc. XVIII)

235 José Francisco Ferreira Queiroz


A escultura nos cemitérios portugueses (1835-1910): artistas e artífices

249 Juan M. Monterroso Montero


El difícil arte de pintar en Galicia. Artistas, artesanos, mecenas y clientes

273 Lúcia Maria Cardoso Rosas


Nossa Senhora de Guadalupe (Mouçós, Vila Real: encomendador e obra)

279 Luís Alberto Casimiro


A pintura no museu de Arouca: contributo dos apócrifos e dos tratados pós-tridenti-
nos para a iconografia mariana

291 Luís Alexandre Rodrigues


O buril e paleta. Santo Inácio de Loiola nas pinturas da sacristia da igreja dos jesuítas,
em Bragança

309 Manuel Engrácia Antunes


Artes Mecânicas – Enfermaria e Botica em espaços Beneditinos

325 Manuel Joaquim Moreira da Rocha


Manifestações do barroco português: casas e quintas com capela

343 Marcelo Almeida Oliveira


Considerações sobre os artífices e os artistas portugueses em Minas Gerais

359 Maria Berthilde Moura Filha


Artistas e artífices a serviço das irmandades religiosas do Recife nos séculos XVIII e XIX

379 Maria de Fátima Eusébio


O cabido de Viseu: dinâmica de encomendas no período de Sede Vacante (1720-1740)

393 Maria del Mar Lozano Bartolozzi


Artistas Portugueses en el Museo Vostell Malpartida (MVM) (Extremadura-España).
Documentación del Archivo Happening Vostell (AHV)

415 Maria do Carmo Marques Pires


O Atelier de David Moreira da Silva e Maria José Marques da Silva Martins: projectos
para o Funchal (1942-1947)
índice 653

435 Maria José Goulão


A encomenda a entalhadores portugueses nas missões franciscanas do Paraguai no
século XVIII

457 Natália Marinho Ferreira-Alves


A presença do Brasil no Santuário do Bom Jesus do Monte (Braga)

473 Paula Bessa


Pintura mural da primeira metade do século XVI em igrejas paroquiais do Norte de
Portugal: encomendas, artistas, obras

487 Paula Cristina Machado Cardona


A encomenda municipal – artistas e obras em Viana da Foz do Lima na Época Moderna

509 Regina Anacleto


Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro: ponte de artistas entre dois mundos

523 Sofia Nunes Vechina


A Igreja Matriz de Ovar nos séculos XVII-XIX: obras e artistas

547 Sonia Gomes Pereira


Henrique José da Silva, um pintor português na Academia Imperial de Belas Artes do
Rio de Janeiro

557 Susana Matos Abreu


A obra do arquitecto italiano Francesco da Cremona (c.1480-c.1550) em Portugal:
novas pistas de investigação

585 Teresa Leonor M. Vale


As encomendas de arte italiana de D. Fr. José Maria da Fonseca Évora (1690-1752)

605 Conclusões

609 Sobre os autores

619 Resumos/Abstracts

655 Catálogo das Publicações do CEPESE

667 Sócios Fundadores, Sócios colectivos e Patronos de Honra do CEPESE


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Publicações Autónomas

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Publicações Autónomas
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Desafios da Democratização Estudos e Ensaios em Dicionário de Relações


no Mundo Global - esgotado Homenagem a Eurico Internacionais (2.ª edição)
Desafios da Democratização Estudos e Ensaios
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Relações Portugal-Espanha: Relações Portugal-Espanha Relações Portugal-Espanha


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Os Novos Descobridores História da Indústria das


Sedas em Trás-os-Montes
CEPESE
2008 CEPESE
Edições Afrontamento
2006

Francisco José Resende Espólio Fotográfico


[1825-1893] Português
CEPESE CEPESE
Edições Afrontamento 2008
2007







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Os Presidentes da Câmara Ibéria Moncorvo.
Municipal do Porto Quatrocentos Quinhentos Da Tradição à Modernidade
CEPESE CEPESE CEPESE
2009 2009 Edições Afrontamento
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Universidade Lusófona do Porto
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